Nº 138, Outubro 2004

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Director: José Paulo Serralheiro http://www.apagina.pt redaccao@apagina.pt

ano XIII | n.º 138 | OUTUBRO | 2004 · Mensal | Continente e Ilhas 3 Euros [IVA incluído]

Ano lectivo. Abriu? Não, vai abrindo

Ricardo França Jardim é o escritor no divã de «a Página»

«O primeiro dia de escola é um mar de lágrimas»

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Educação precisa de estabilidade

“Muitos «conselheiros de estado», muitos «comendadores do regime» vão dizendo que é preciso um pacto. Ora o que desesperadamente faz falta não é um pacto de regime mas estabilidade. A começar no ministério. Desde o 25 de Abril de 1974 só dois ministros, Roberto Carneiro (17/8/1987 a 31/10/1991) e Marçal Grilo (28/10/1995 a 24/10/1999), o primeiro num governo de Cavaco e o segundo num governo de Guterres, exerceram o cargo durante uma legislatura completa. Mas para dar estabilidade ao ministério, seja qual for a orientação ideológica, é fundamental que o cargo não seja, como tem sido, ocupado por curiosos, por vaidosos, por ignorantes, por incompetentes sem escrúpulos políticos...”

Berlim, 1936. Um negro chamado Jesse Owens alcança quatro medalhas de ouro, desafiando todos os fascismos na presença do próprio Hitler. Foi o princípio do fim da ideia de superioridade de uma raça sobre outra. Um negro descendente de escravos superou os arianos! Como evoca, oportunamente, neste tempo de rescaldos olímpicos, o professor Manuel Sérgio, da Universidade Técnica de Lisboa.

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págs 2, 24, 25, 27, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 44 e 45

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Evocar Jesse Owens

Gustavo Fischman em entrevista a «a Página»

Ensinar a pescar

Conhecer os efeitos que a pobreza tem sobre a Educação é tão essencial como saber o que a Educação pode fazer no combate à pobreza. Às vezes pode não bastar ensinar a pescar... Uma reflexão de Xavier Bonal do Departamento de Sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona.

A evidente sina da info-exclusão

“A evidência dos dados empíricos vem mostrando que não só o desemprego aumentará entre os info-excluídos, como a sua esmagadora maioria se encontra entre aqueles que têm menor educação formal. As estatísticas também nos mostram que Portugal, apesar de se localizar numa das áreas económico-políticas de maior expressão tecnológica, a União Europeia, é um dos países onde a taxa de penetração das novas tecnologias digitais é menor, nomeadamente, o número da população on-line”, diz Darlinda Moreira, Textos Bissextos.

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A sociedade americana vê a educação pública em estado de crise terminal


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a cor do mês

O papel da oposição no Parlamento não é fácil…

OBSERVATÓRIO de Política Educativa Ana Benavente Professora Deputada do Partido Socialista

O trabalho que se realiza no Parlamento é mal conhecido pelos cidadãos. Geralmente, apenas chegam ao conhecimento público alguns debates parlamentares mais acesos e o resultado da produção legislativa. Mas a vida parlamentar é muito mais do que isso e, no caso da educação, o papel da oposição não é fácil… Aos deputados cabe fiscalizar a actividade do Governo e os deputados da oposição procuram por todos os meios exercer esse papel. Só que os deputados da maioria PSD/PP não têm permitido que tal aconteça nos últimos meses. Como é possível que, procurando esclarecimentos sobre a acção do Governo relativamente à colocação de professores, desde Maio e das primeiras confusões com as listas, os deputados da maioria PSD/CDS-PP rejeitem sistemática e liminarmente todas as propostas da oposição? Para que os leitores possam avaliar por si próprios a natureza do trabalho parlamentar que é feito no âmbito da fiscalização da acção do Governo e que encontra sistematicamente um “NÃO” redondo da maioria, seleccionei dois pequenos mas significativos exemplos que retractam como o papel da oposição no Parlamento não é fácil… Durante o mês de Agosto, anunciando-se uma situação de caos para o início do ano lectivo, os deputados do Partido Socialista propuseram um projecto de Resolução com o simples propósito da Assembleia da República ser atempada e devidamente informada da dimensão real dos problemas no desenvolvimento do processo de colocação de professores. Extracto do Projecto de Resolução 274/IX/2 – REJEITADO a 2 de Setembro “Considerando que o País continua a assistir, estupefacto, aos resultados práticos de medidas, que já no ano passado provocaram erros no processo de colocação de docentes, mas que agora comprometem definitivamente a abertura do ano lectivo de 2004/2005, impedindo uma adequada preparação do ano escolar, prejudicando gravemente a estabilidade de alunos, professores e de encarregados de educação e fazendo retroceder a situação das escolas a décadas passadas; Considerando que, em uníssono, os sindicatos de professores e as associações de pais denunciam o desrespeito, a irresponsabilidade e a incompetência do ME em todo este processo; Considerando que as listas definitivas de colocação de professores nos quadros de escola e nos quadros de zona pedagógica foram finalmente pu-

blicadas mas com um atraso na ordem dos 3 meses e que hoje, dia 2 de Setembro de 2004, o processo de concursos para o ano lectivo 2004/2005 ainda está longe de ficar concluído; Considerando que este grave problema – que, pelas suas dimensões e pelo clima de insegurança e de ansiedade que tem criado na comunidade educativa – não pode nem deve ser entendido, como pretende o Governo e a maioria parlamentar que o sustenta, como o resultado de um mero erro informático, mas sim de um sério problema político, que resulta da postura governamental e do Ministério da Educação em particular, que tem assumido, nos dois anos e meio que leva de exercício de funções, uma total incapacidade de execução das suas próprias políticas e uma enorme irresponsabilidade quando desmonta e interrompe, sem uma avaliação credível dos resultados, a maior parte dos programas e modelos de gestão educativa em vigor; Nestes termos, a Assembleia da República delibera emitir as seguintes recomendações no âmbito das suas competências de acompanhamento e controlo da acção do Governo: 1. Deve o Governo enviar à Assembleia da República, até 30 de Outubro de 2004, um relatório em que se analise de forma rigorosa e exaustiva todo o processo de selecção e colocação de docentes para o ano lectivo de 2004/2005, identificando as deficiências que motivaram todo o atraso verificado no referido processo, promovendo uma avaliação do impacto da legislação aprovada, designadamente do Decreto-Lei n.º 35/2003, de 27 de Fevereiro, com alterações do Decreto-Lei n.º 18/2004, de 17 de Janeiro e os eventuais responsáveis. 2. Deve o Governo enviar à Assembleia da República, até 30 de Outubro de 2004, uma tabela de que constem o número de reclamações apresentadas, o número de reclamações deferidas e indeferidas, o número de providências cautelares interpostas de que o Ministério da Educação foi notificado e o número de recursos hierárquicos apresentados à Administração Educativa por parte dos opositores ao concurso; 3. Deve o Governo enviar à Assembleia da República, até 10 de Setembro de 2004, uma calendarização rigorosa de todo o processo de colocação de docentes ainda por concluir; 4. Que se promova uma auditoria externa a todo processo de colocação de docentes para o ano lectivo de 2004/2005, realizada nas suas diversas vertentes, política, legislativa, administrativa e fi-

nanceira.” Já no dia 22 de Setembro, ultrapassada que estava a data definida pelo Governo para o início do ano lectivo, os deputados do Partido Socialista propuseram um Voto de Protesto para sublinhar a preocupação de todos os Deputados com a situação vivida e manifestarmos a nossa solidariedade às escolas e famílias, ao país, em suma. Extracto do Voto de Protesto n.º 202/IX/3 – REJEITADO a 23 de Setembro “O arranque do ano lectivo de 2004-2005 em todo o ensino básico e secundário encontra-se irremediavelmente comprometido. O processo anual de colocação de professores e início das aulas era uma rotina consolidada no nosso sistema há vários anos, rotina essa que foi seriamente abalada neste ano lectivo. Por causa de uma decisão do Governo, anunciada como uma melhoria para o sistema educativo, vivemos, afinal, o caos absoluto, com efeitos negativos imediatos para alunos, pais e professores. (…) O novo modelo de colocação de professores decidido pelo Governo não se mostrou capaz de cumprir nenhum objectivo para o qual foi anunciado. Pelo contrário, veio impedir o normal funcionamento do sistema educativo e isto é intolerável. São situações como esta que não garantem o direito ao ensino para todos e que não cumprem os objectivos de um sistema educativo fiável e estável, tão necessário à qualificação dos portugueses. (…) Nestes termos, os dveputados do Partido Socialista abaixo assinados, apresentam, (…) o presente protesto contra a não abertura do ano lectivo nas datas definidas pelo Governo, com uma séria e inaceitável penalização dos alunos, pais, professores e escolas na preparação dos trabalhos educativos.” Penso que a rejeição destas iniciativas retracta como está comprometido o normal exercício da função parlamentar de fiscalização da acção do Governo por parte da Assembleia da República . Como podem os deputados fiscalizar o Governo se tudo é rejeitado? O exercício déspota do poder parlamentar por parte dos deputados da maioria fere seriamente os princípios da sã convivência democrática entre as forças políticas presentes na Assembleia. Não nos é possível discutir o cerne das questões prementes que assolam o país porque a rejeição sistemática das iniciativas da oposição o não permite. Quem sofre somos todos nós, quem sofre é a educação, quem sofre é a escola pública, quem sofre é o país.


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editorial

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A nossa educação precisa, desesperadamente, de estabilidade

Em Portugal, os «Assuntos da educação» já mereceram, da monarquia ao dia de hoje, a atenção de 106 ministros. Dos 106 titulares, apenas dois foram mulheres, Manuela Ferreira Leite e a actual Carmo Seabra. Nos 134 anos que vão do 1º ao último ministro da educação tivemos tal cargo em 93 anos e seis meses. Em média, cada ministro teve direito a 320 dias de governo! O primeiro Ministro dos Negócios da Instrução Pública, a merecer a honra de dirigir o ramo, foi António da Costa de Sousa Macedo. Ocupou o cargo de 22 de Junho de 1870 a 29 de Agosto do mesmo ano. Aguentouse no cargo dois meses e sete dias! Os dois ilustres ministros que se lhe seguiram não tiveram melhor sorte. Ambos interinos, um ocupou o cargo durante um mês e o outro foi mais duradouro pois arcou com a responsabilidade durante quatro meses. Depois desta primeira experiência de atribuição da categoria de ministério aos assuntos da educação seguiram-se dez anos sem ministério. Em Abril de 1890 voltámos a ter ministro, desta vez com a pomposa designação de Ministro da Instrução Pública e Belas Artes. A experiência foi curta. Dois anos e quatro ministros, três dos quais interinos. Um ministro por cada meio ano. Apesar de se lançar a crédito da nossa 1ª República um grande interesse pelo ensino, a verdade é que a elevação dos assuntos da educação a ministério só ocorreu a 7 de Julho de 1913 quando António Joaquim de Sousa Júnior foi chamado ao cargo de Ministro da Instrução Pública. Nos 13 anos seguintes, a República brindou-nos com ministros em abundância, 51 Ministros! Média de um ministro por cada quatro meses! Finda a República, a partir de 28 de Maio de 1926, a ditadura militar e o advento do Estado Novo foram também pródigos a produzir ministros da instrução pública. Entre 1926 e 1936 deram-nos 16 ministros da instrução publica! Um ministro por cada ano e meio. Estabilizado o Salazarismo estabilizaram os ministros. Nos 34 anos que vão de 1940 a 1974 o Estado Novo disponibilizou-nos 10 Ministros da Educação Nacional. Mais de três anos por ministro! Apesar desta abundância de ministros, Portugal chegou a 1974 com

taxas de escolarização próximas das que os outros países Ocidentais tinham atingido oitenta a cem anos antes.(1) No dia 15 de Maio de 1974 tomou posse como Ministro da Educação e Cultura (MEC) Eduardo Henrique da Silva Correia. Desde então e até hoje fomos abençoados com 26 ministros. Média de 420 dias por ministro. Para além da curiosidade, servem estes factos para mostrar a precariedade em que os nossos «assuntos da educação» sempre viveram. Acresce que todos estes ministros precários se apresentaram no ministério com ganas de reformar o sistema. Todos lançaram mãos à obra de deitar abaixo o que estava, pensando em terraplenar o terreno onde iriam erguer o seu belo edifício educativo. Nenhum teve tempo de erguer fosse o que fosse e, quase todos, se limitaram a provocar escombros. No final de 1971, era ministro do Marcelismo Veiga Simão, quando fui apanhado a moderar um debate sobre a proposta de reforma daquele ministro. No final desse debate, o já falecido Professor Armando de Castro perguntou ao ministro se ele acreditava mesmo que aquelas propostas eram para concretizar. Ao que Veiga Simão lhe respondeu: «não, mas vossa excelência sabe, que nas actuais circunstâncias, falar destas coisas já é muito importante». Trinta anos volvidos, nas actuais circunstâncias — pensem na arrogância ministerial dos dois últimos anos — dizem-nos que falar não vale a pena que é preciso é executar. Lembro-me de uma reunião no MEC em Maio de 1975. Era ministro José Emílio da Silva, um militar também licenciado em medicina veterinária. Depois de constatarmos que um dossier que havíamos enviado por três vezes ao ministro não lhe tinha chegado às mãos, o ministro queixou-se, «sabem, isto não é um ministério, isto é uma máquina velha, pesada, ferrugenta, vinda dos

primórdios da era industrial, não funciona». E eu, com o entusiasmo da idade e da época, sugeri-lhe: «vossa excelência deite-lhe óleo, bastante óleo». Ao que ele retorquiu de pronto: «nem pense nisso! O óleo dissolve a ferrugem, esta infiltra-se na máquina e então pára mesmo”. Ora a velha máquina continua lá. Tem mais trinta anos de uso. Mais ferrugem. Mais acrescentos. Mais rodas paradas. Perante este cenário de desencanto, muitos «conselheiros de estado», muitos «comendadores do regime» vão dizendo que é preciso um pacto de regime. Ora o que desesperadamente faz falta não é um pacto de regime mas estabilidade. A começar no ministério. Desde o 25 de Abril de 1974 só dois ministros, Roberto Carneiro (17/8/1987 a 31/10/1991) e Marçal Grilo ( 28/10/1995 a 24/10/1999), o primeiro num governo de Cavaco e o segundo num governo de Guterres, exerceram o cargo durante uma legislatura completa. Mas para dar estabilidade ao ministério, seja qual for a orientação ideológica, é fundamental que o cargo não seja, como tem sido, ocupado por curiosos, por vaidosos, por ignorantes, por incompetentes sem escrúpulos. A actual troika é uma dor de alma. Neste jornal (p. 27) o nosso colaborador Xésus Jares, da Universidade da Corunha, fala da abertura do ano lectivo e porque não está cá fala de esperança. De facto, como ele tão bem sublinha, a esperança é, ou deve ser, um elemento dominante na abertura de qualquer novo ano lectivo. Também nós educadores e professores portugueses, mesmo em tempos difíceis, ou talvez até por isso, iniciámos muitos anos lectivos com esperança. A actual maioria no governo, com a sua incompetência saloia, até isso nos roubou, roubounos a esperança. Os educadores e professores, mesmo em tempo de desencanto,

são sempre chamados a educar na e para a esperança. Tenhamos pelo menos a esperança que este próximo ano e meio passe depressa e que a troika nomeada por Santana para o ME fique quietinha a estudar os dossiers e a labutar nos próximos concursos. Quanto mais se mexerem mais estragam. Tenhamos esperança que os interessados nos «assuntos da educação» aproveitem este interregno para preparar a estabilização do sistema educativo. É preciso estabilizar os professores nas escolas. Dotar as escolas e os professores de autonomia pedagógica. Acabar com o ensino unificado. Diversificar percursos escolares dando-lhes igual dignidade. Certificar com o mesmo valor todas as formas de aprendizagem dos alunos. Liquidar o dualismo ensino geral/ensino profissional. Dar sentido e a mesma dignidade a todo o ensino. Devolver ao ensino superior a responsabilidade de admitir os seus alunos de acordo com os seus próprios critérios. Tornar comum, partilhada e conhecida uma ética profissional docente. É preciso, em suma, um plano de desenvolvimento da educação e do ensino em Portugal. Neste início de ano lectivo, que a bem dizer não se iniciou, mantenho também a esperança de que o jornal a PÁGINA, seja capaz de contribuir, para discutir e gerar os percursos que devolvam a esperança na educação, não só aos educadores e professores, mas a todos os portugueses. Nota: (1) Esta realidade também ajuda a explicar os actuais maus resultados escolares. O ciclo da pobreza dos resultados escolares é muito semelhante ao da pobreza em geral. As famílias pobres têm dificuldade em não produzir filhos pobres. As famílias de baixa ou nula escolarização tendem a reproduzir tal situação nos seus descendentes. A herança educativa fascista não acabou com o 25 de Abril, ela continua a fazer vítimas entre nós.

José Paulo Serralheiro


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Jessee Owens (Berlim, 1936)

fórum educação

No meio dos 4069 atletas presentes (dos quais 326 eram mulheres) aquele negro era, para os nazis, uma brisa insalubre que lhes tornava irrespirável o ambiente.

EDUCAÇÃO desportiva Manuel Sérgio Universidade Técnica de Lisboa

O nazismo avançava tumultuoso, embravecido, quando os Jogos Olímpicos de Berlim se efectuaram. Só um distraído ou um pateta poderia esperar dos Jogos apadrinhados por Hitler o espaço ideal para o desenvolvimento de relações cordiais entre as pessoas. Demais, os alemães, cegos pela propaganda e pelo fanatismo político esperavam que as competições olímpicas consagrassem os métodos e a doutrina nazi. Toda a Alemanha se embandeirara num delírio apoteótico! Para receber a juventude do Mundo inteiro, com valentes braços, para melhor a apertar contra corações plenos de amizade? Infelizmente, não! O que o Fuhrer pretendia era instrumentalizar os Jogos, ao serviço da sua ideologia expansionista e racista. Como um conspirador satisfeito, Hitler esfregava vulpinamente as mãos. Estava prestes a desferir um dos seus golpes. Um negro, no entanto, iria estragar-lhe a festa; iria provar-lhe, sem necessitar de ocos arengadores e ar-

dorosos jornalistas, que a raça ariae 8,13 metros, no salto em comprina não era superior às outras. Daí mento. Agora, em plenos Jogos, no que, no seu camarote, o Fuhrer, imócoração da Alemanha hitleriana, covel como estátua, mas de rosto entre mo quem procura derruir, nos seus severo e rancoroso, não disfarçasse fundamentos, enganosos cultos e o desespero pelas vitórias daquele sofismas, alcançava quatro medanegro que mesmo ali à sua frente, lhas de oiro: nos 100 e 200 metros, com um secreto rosto de vingança na estafeta de 4x100 metros e no e de estrelas, espezinhava imparásalto em comprimento. vel as suas teorias No dia 4 de sobre a “raça dos AINDA DAQUELA VEZ, Jessee Agosto de 1936, senhores”. DianOwens, um negro descendente de uma multidão hete de um colored escravos, superava os arianos! terogénea, densa (suprema desfeide paixão e discita!) abatiam-se as bandeiras desfralplinada pela ideologia omnipotente dadas e o tropel faiscante de armas e omnisciente do Estado, aprestavade uma das mais desumanas ideose para estender o braço e entoar logias que o ser humano concebeu. em coro o Deutschland uber alles, No meio dos 4069 atletas presentes esperando que o seu compatriota, (dos quais 326 eram mulheres) aqueo alto e loiro Lutz Long, arrebatasse le negro era, para os nazis, uma brisa a Jesse Owens o primeiro lugar, no insalubre que lhes tornava irrespirásalto em comprimento. Owens, nesvel o ambiente. sa mesma tarde, concorria também Esse negro chamava-se Jessee à meia-final dos 200 metros, que viOwens. Norte-americano, antes dos ria a ganhar, com superioridade inJogos de 1936, já ele obtivera 22 secontestável (ante a raiva dos coriféus gundos e 6/10, nos 200 metros; 10 do nazismo) com o tempo de 21 sesegundos e 2/10, nos 100 metros; gundos e 1/10...

Contudo, meia-hora depois, esperava-o o confronto com Lutz Long, o ídolo germânico. Hitler e a sua entourage não desfitavam os olhos do que se passava na prova do salto em comprimento. Logo no primeiro ensaio, Lutz é o melhor, com 7,84 metros; no segundo ensaio, continua em posição destacada, com 7,87 metros. Uma embriaguês colectiva, como um remoinho gregário, apossa-se dos espectadores. No rosto de Hitler, grudava-se-lhe nítido o ritus da vitória. Eis senão quando (ainda não se extinguira o rumor dos aplausos pelo salto do alemão) Owens emudece tudo e todos, no ensaio seguinte, com 7,94 metros e, por fim, com 8,06 metros, marca espantosa para o tempo e que lhe deu uma vitória mais! Ainda daquela vez, Jesse Owens, um negro descendente de escravos, superava os arianos! Hitler mascavou uns sons guturais e desviou enraivecido a cabeça – sofrera assim a sua primeira derrota! Esta é, para mim, a mais bela página da História do Desporto

SBY é a grande novidade da “rentrée”

SUBLINHADO João Rita

Enquanto George W, Bush garantia, nas Nações Unidas, que os Estados Unidos da América tinham feito respeitar “as justas exigências do Mundo” ao invadir o Iraque em Março de 2003, Kofi Annan insistia em classificar tal guerra de ilegal à luz da Carta das Nações. O secretário geral da ONU, Kofi Annan, lembrou a crescente necessidade do Mundo encontrar mecanismos eficazes para descobrir as soluções que os problemas comuns exigem, regerindo expressamente os prolongados conflitos do Médio Oriente e do Iraque.

Em nome da Europa, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda, Bernard Bot, apoiou expressamente a intervenção de Kofi Annan sublinhando que “o terrorismo não pode ser evocado como alibi para a violação dos Direitos Humanos” e reafirmando a importância da criação do Tribunal Penal Internacional, instituição a que os EUA não querem submeter-se. Na “rentrée” mundial (em que a brutalidade do massacre na tristemente célebre escola da Ossétia do Norte se destacou das brutalidades

continuadas e já habituais), o tema sobre a mesa é o de um realinhamento geo-político que substitua o vigente, saído da segunda Guerra Mundial. Aumentar ou não o número de países com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas é uma das questões. Japão, Brasil, Alemanha e Índia são candidatos a uma cadeira vitalícia no Conselho de Segurança. O Brasil, que se fez representar pelo presidente Lula da Silva, defendeu a instituição de um imposto mundial para combater a fome. Tu-

do isto na véspera das eleições presidenciais dos Estados Unidos da América e na antevéspera das eleições no Iraque, uma promessa que a Guerra ali em curso pode fazer adiar, pelo menos nas regiões não controladas pela tropa Americana. Nesta “rentrée” da política mundial a única novidade é o aparecimento de uma nova sigla a reter: SBY. São as iniciais e a alcunha com que é conhecido o ex-militar Susilo Bambang Yudhoyono, o presidente eleito da Indonésia, o mais populoso dos países muçulmanos.


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O padre, o poeta e a professora de francês

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Quando não está dormindo ou reclamando alimento, o meu neto faz companhia ao avô contador de histórias. À semelhança das cartinhas que escrevi à Alice, conto ao Marcos histórias da escola que tivemos, dando voz a vozes anónimas. Contar histórias a crianças de tenra idade tem vantagens sobre contá-las a adultos. O meu neto é um ouvinte atento. E não faz comentários judiciosos. Vendo o Marco gatinhando, dirse-ia que parece alheio, desinteressado do enredo da história. Mas não é bem assim. Se eu paro de ler, ele pára de cirandar. Se eu retomo o fio da narrativa, ele retoma o seu peregrinar pelo chão da sala. Voltemos, pois, às histórias, através das palavras de professores, que falam do tempo em que tiveram ofício de aluno, e das escolas e dos professores que puseram marcas nas suas vidas. A primeira das histórias demonstra uma verdade nem sempre evidente: há professores que não usam a pedagogia como mera ciência ou arte, mas ajudam outros aprendizes a aprender a arte de viver. Era uma vez, um professor contou-me… No meu percurso escolar, houve três pessoas que recordo com ternura. O primeiro foi um professor padre, que entrou na sala e perguntou: O que quereis aprender? Essa foi a pergunta fundado-

ra de toda a sua pedagogia: O que quereis aprender? E, porque era homem de questionar em tempo de Ditadura, de padre e professor passou a “clandestino”. Esta era para mim uma palavra comum e eu mesmo viria a usar o adjectivo. Vi o “clandestino”, pela derradeira vez, no fim da primeira aula da manhã de um certo dia em que o director da escola o invectivou, violentamente: O senhor não é um padre! O senhor é um jacobino! Vá ter comigo ao gabinete! Já não deu a segunda aula. Nunca mais voltou à escola. E eu, que desconhecia o significado da palavra jacobino, logo fui ao dicionário. A última herança que esse padre-professor me deixou foi a inquietação que me conduziu ao primeiro passo de uma aprendizagem que também lhe fiquei a dever. De palavra em palavra, de definição em definição, de jacobino passei a revolucionário, de revolucionário a democrata… A curiosidade não me deu tréguas, arrastou-me a muitos serões na Biblioteca Pública. Também tive um professor-poeta (todos o são, mas este publicava poesia). Acendeu trilhos poéticos que me levaram muito para lá dos versos que convencem os adolescentes de que são poetas. Foi o primeiro professor a mostrar-me o que não cabe nas palavras, a guiar-me pelas palavras que

estão para lá das palavras e das ideias que as palavras ocultam. Provocou deslumbramentos perante Caeiro e solenidade perante os primeiros versos da Sophya. Desocultou poetas malditos e resgatou um Camões que andava naufragado em fastidiosas dissecações de decassílabos. A mais importante das aparições aconteceria já eu fizera dezoito anos. Apaixonei-me pela professora de Francês, logo à primeira (amor platónico, como é bom de ver!). Era uma mulher fantástica, que se envolvia no que ensinava. Interrogava as nossas vidas na língua de Voltaire e de Vian. As suas perguntas, feitas em catadupa, levavam-nos a novas descobertas e à descoberta de nós. Só muito mais tarde consegui entender o que aconteceu. No breve tempo de convívio com tão gostosa criatura – que a noção de tempo não é idêntica na amiba e no elefante… – a professora anediava-me a alma. As suas aulas – que eram mais uma espécie de liturgia – produziam em mim um efeito mágico, e eu para ali ficava a contemplá-la, automaticamente absorvendo tudo o que ela dizia, antropofagicamente exaurindo tudo que ela era. Numa alquimia dos sentidos, de que só ela conhecia os segredos, mais do que a amá-la, levou-me a amar a cultura francesa: Camus, Yourcenar, Eluard, Piaf…

No último dia desse ano lectivo, aconteceu algo inesperado. No fim da aula, a professora de francês juntou ao sacramental “podem sair” um apontar de dedo na minha direcção: “Precisamos conversar!” Fiquei atrapalhadíssimo. E disse, cá para mim: O que foi que eu fiz? Ter-me-ei deixado trair pelo olhar? Saíram todos. A professora retirou da sua saca de ombro um disco e um livro. E disse: “Fui a Paris, e lembrei-me de te trazer música de Jacques Brell. Sei que vais gostar. É para não te esqueceres de que me lembrei de ti”. A professora a tratar-me na segunda pessoa do singular! Coisa nunca vista! Eu fiquei preso ao chão, uma mão colada ao disco, outra no livro. Mudo por fora, gritando por dentro. E, antes que eu conseguisse resolver o conflito, a professora saiu da sala. Nunca mais voltaria a vê-la. Para ser totalmente sincero, devo confessar que, de cada vez que ouço o “Ne me quitte pas” do Brell, sinto a súplica do poeta-cantor como se minha fosse… É bem verdade que a escola que me coube em sorte se assemelhou ao vaguear num deserto. Mas, como todo o deserto que se preze é pontuado pelo mimo dos oásis, na escola também nutri afectos e aprendi a vida com um padre, um poeta e uma professora de francês.

DO PRIMÁRIO José Pacheco Escola da Ponte, Vila das Aves


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O DRAMA DAS COLOCAÇÕES

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Algumas questões pedagógicas

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ÉTICA e profissão Adalberto Dias de Carvalho Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Dia-a-Dia

Numa sociedade que promove o êxito social e o sucesso pessoal - , crescerá a tendência para se olhar o professor como alguém que, à partida, representa precisamente a precariedade, quase que o fracasso. Um fracasso público em que a privacidade de cada frustração individual é multiplicada e remetida para a tremenda vulgaridade da curiosidade colectiva. Assim, em concorrência com a força da solidariedade, cresce o fermento de uma degradação em torno da sua identidade. Os recentes desaires no processo de colocação de professores levantam, conjuntamente com os dramas pessoais, problemas de ordem pedagógica e profissional, menos falados, mas que urge equacionar. Problemas que ampliam significativamente as repercussões da irresponsabilidade e da incompetência daqueles que originaram toda esta situação, a qual ganhou a dimensão de um autêntico escândalo público. Na verdade, a mediatização do desalento, do desespero e da revolta das primeiras vítimas da desregulação deste processo de colocação trouxe consigo (na sequência, aliás, de anos anteriores, mas agora em muito maior escala) uma importante alteração da imagem social da figura do professor e a consequente reconfiguração do seu perfil diante dos alunos e, de uma maneira geral, da comunidade escolar. Ainda que na ausência de qualquer estudo objectivo e cientificamente sustentado, não custará admitir que se assiste à confrontação dessa imagem e desse perfil com a fragilidade do seu vínculo e da sua carreira profissional. No fundo – numa sociedade que promove o êxito social e o sucesso pessoal – , crescerá a tendência para se olhar o professor como alguém que, à partida, representa precisamente a precariedade, quase que o fracasso. Um fracasso pú-

blico em que a privacidade de cada frustração individual é multiplicada e remetida para a tremenda vulgaridade da curiosidade colectiva. Assim, em concorrência com a força da solidariedade, cresce o fermento de uma degradação em torno da sua identidade. Esta situação poderá, a prazo, contribuir para a delapidação do professor enquanto pólo forte da relação educativa, numa altura em que, perante a crise generalizada dos modelos familiares e sociais de referência, seria capital preservar e até promover o seu estatuto. Acresce que concomitantemente se expande a ideia de que a carreira docente é algo a evitar porque, sendo exigente, é insegura. Se agora se fala de excesso de professores, aguardemos para ver o que vai acontecer nos próximos anos em termos de deserção dos efectivos existentes e de desertificação das potenciais vocações. Corremos o risco de nos debatermos com uma preocupante carência de quadros neste sector, problema aliás já existente em diversos países europeus. É verdade que o carácter nacional e massivo dos concursos de professores faz com que se olhe cada licenciado como um professor desempregado ou em busca do lugar de professor enquanto que, por exemplo, cada licenciado em direito, apesar do seu grande número, não é especificamente

03.09 Poder sindical cai 10 por cento em mais de 90 países Um relatório mundial da OIT, feito em mais de 90 países, revela que “a globalização enfraquece a capacidade de intervenção colectiva” e que “as privatizações são uma nova ameaça à força sindical”. A OIT refere que, no mundo industrializado, a taxa de sindicalização caiu para menos de 10% e até nos serviços públicos, onde a sindicalização é maior, as privatizações “constituem uma nova ameaça à força sindical”.

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A DEMAGOGIA POLÍTICA – de que o país há muito está farto! – leva depois os responsáveis a dinamitar o enquadramento pedagógico do início do ano lectivo propondo levianamente que o mesmo arranque nas escolas de qualquer maneira, ou seja, sem a imprescindível planificação pedagógica. visto como um advogado no desemprego. Mas, bem mais grave do que isso é depararmo-nos com o redemoinho de listas e reclamações que, sucedendo-se incrivelmente no tempo, espelha a incapacidade da máquina do Estado para gerir os interesses dos cidadãos e, neste caso muito concreto, para administrar a educação. A demagogia política – de que o país há muito está farto! – leva depois os responsáveis a dinamitar o enquadramento pedagógico do início do ano lectivo propondo levianamente que o mesmo arranque nas escolas de qualquer maneira, ou seja,

sem a imprescindível planificação pedagógica. Isto acontece porque o calendário político – ditado não pela ponderação mas antes pelo atabalhoamento - se procura sobrepor violentamente, isto é, pelo uso arbitrário de um poder que se sente acossado, ao calendário lectivo… Com que moral irá depois esse mesmo poder exigir às escolas o correcto desenvolvimento dos seus projectos educativos? Ainda há pouco nos queriam libertar dos males do pedagogismo dos teóricos da educação em nome do pragmatismo social e político. Mas que pensar quando assisti-

mos agora a este autêntico bombardeamento do edifício educativo pelo aparelho burocrático do Estado? Quem vai remediar os estragos? Se, apesar de tudo, não forem, uma vez mais, os professores e os pedagogos, ninguém o fará no seu lugar. Só que tendo eles, neste momento, de percorrer caminhos cheios de escombros de que não são responsáveis e que nunca deveriam ter existido. Quem vai reconhecer e recompensar este esforço acrescido? Lição desta triste história: Que voltem os “filhos de Rousseau”… Estão perdoados!

08.09 Há 9% de analfabetos

10.09 Funcionários “custam” menos do que a média da Zona Euro

14.09 Estado poupa nas reformas

15.09 Portugal não recupera atraso na escolaridade

Portugal tem quase um milhão de analfabetos e é o país da Europa com maior percentagem de pessoas que não sabem ler nem escrever, apesar de o analfabetismo ter diminuído 17% nos últimos 30 anos. E são as mulheres que mais contribuem para estes valores, dado que nos Censos de 2001, 11,5% das mulheres declararam-se analfabetas.

“A NOÇÃO de que a Administração Pública portuguesa gasta demasiado dinheiro com os seus trabalhadores não está correcta.” Quem o afirma é o economista Eugénio Rosa, que elaborou um estudo em que o comprova, com base em dados do Eurostat referentes a 2003. Assim o Estado gastou com os seus funcionários (salários e benefícios sociais) uma percentagem inferior à média dos Doze países da Zona Euro e maior em apenas 1,2% tendo em conta a média dos Quinze.

O Estado e outras entidades públicas “pouparam” cerca de 1.500 milhões de contos (7.507 milhões de euros) em contribuições à Caixa Geral de Aposentações (CGA) durante os últimos 11 anos, acusa um estudo feito pela CGTP. Segundo o estudo assinado por Eugénio Rosa, o Estado não contribui para a GGA com 23,75% das remunerações que paga.

Portugal está no grupo dos países que registou um maior crescimento no investimento do sistema de ensino não superior, continuando a ter, apesar disso, os piores resultados na escolaridade da população. O relatório revela que seis em cada dez jovens portugueses, entre os 20 e os 24 anos, abandonaram a escola sem terminar o ensino secundário. Uma exclusão educativa que afecta mais os homens (60%) que as mulheres (40%).


“Globalização, educação e luta contra a pobreza: os limites do mito do pescador” Desde que o economista norte-americano Theodore Shultz nos revelou, em 1960, que a educação é mais investimento do que consumo, não há discurso de luta contra a pobreza que se preze que não ponha a ênfase nas vantagens da educação sobre a produtividade laboral, os ingressos e o estatuto social adquirido. Diz assim um conhecido provérbio chinês: “se um homem tem porém, hoje não se alcançou ainda a universalização da educafome não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar”. As políticas e ção básica em todo o planeta, e que, inclusivamente, irá ser diestratégias de luta contra a pobreza parecem hoje fundamenfícil consegui-lo na data para tal fixada (2015) nos denominados tar-se neste provérbio. Afastados de qualquer assistencialis“Objectivos do Milénio” subscritos pelos países membros das mo aparente, organismos internacionais, governos de todas Nações Unidas. Em todo o caso, do que não há dúvida é que as cores e inclusivamente várias ONG discorrem e planificam o capital humano global aumentou sem que sejam observados nessa linha. As cimeiras internacionais para o desenvolvimenos seus esperados benefícios sobre a redução da pobreza. to exemplificam amplamente esta estratégia. Jomtien, Dakar, Porque é que tanta educação contribuiu tão pouco para a Johannesburgo, qualquer cimeira conclui, com louváveis e deluta contra a pobreza? Obviamente que não há una única ressejáveis objectivos, em favor de políticas que consigam “actiposta para esta importante pergunta, mas merece a pena que var” os pobres para lhes facilitar a sua inclusão social (em tonos detenhamos em alguns aspectos que nos podem ajudar a do tipo de mercados, claro). A questão é preocupante, é claro, questionar os sempre inquestionados benefícios da educação porque o número de pobres no mundo não deixa de crescer para a redução da pobreza. como consequência de um modelo de globalização que arrasa 1) Os limites da política educativa são evidentes se outras os excluídos como se de um furacão se trataspolíticas sectoriais não actuarem na mesma dise. Os números são terríveis. Na América Latina TALVEZ CONVENHA que recção. Podem destinar-se muitos esforços no por exemplo (a grande esquecida hoje do cenános ocupemos não são só sentido de estender e/ou melhorar a educação rio mediático global), conta com 220 milhões de com aquilo que a educação que, porém, caem em saco roto se não houver pessoas pobres (43% da população), dos quais pode fazer para combater a uma política laboral, de saúde ou de desenvol98 milhões são indigentes. O drama da África pobreza, mas também com vimento local que facilite melhores condições de Sub-sahariana incorporou-se de tal modo nas os efeitos que a pobreza vida e de possibilidades de inserção social. E, nossas retinas que somos praticamente espectem sobre a educação. de facto, se a política económica e a política sotadores indiferentes perante as mortes por guercial não gerarem as condições para o aproveitaras, desnutrição ou SIDA. Uns números evidentemente inadmento das capacidades, só se consegue uma população mais missíveis e de autêntica vergonha no século das tecnologias da educada, mas igual ou mais pobre. informação e da comunicação. 2) Um dos efeitos da globalização sobre a educação tem Até ao momento, portanto, parece não estarmos a consesido o do aumento do nível educativo mínimo necessário paguir dar as canas adequadas, dado que não há nem uma boa ra garantir a inclusão social e laboral. A CEPAL calculou que cana nem pescaria para se satisfazer a fome. Do que não há na América Latina são necessários pelo menos 12 anos de esdúvida é que “a cana” por excelência nas últimas décadas tem colarização para conseguir escapar da pobreza. Parece claro, sido a educação. Desde que o economista norte-americano portanto, que a universalização do ensino básico não é já um Theodore Shultz nos revelou, em 1960, que a educação é mais objectivo suficiente. Esta necessidade de maior escolarização investimento do que consumo, não há discurso de luta contra tem que ver com dois factores: a própria competência de qualia pobreza que se preze que não ponha a ênfase nas vantagens ficações (mais pessoas com maior nível educativo que compeda educação sobre a produtividade laboral, os ingressos e o tem pelos postos de trabalho) e com a transformação de uns estatuto social adquirido. Desta forma, a educação é também mercados de trabalho que polarizam as remunerações: muito vantajosa a nível colectivo, posto que faz aumentar o rendimendinheiro para os altamente qualificados e salários muito baixos to nacional e a competitividade, contribui para o cuidado com o para os não qualificados. Por conseguinte, ou se consegue muimeio ambiente ou reduz os índices de criminalidade. Recenteta educação, ou aquela de que se dispõe pode ser claramente mente acrescentou-se a esta lista dos efeitos positivos da eduinsuficiente. cação sobre a coesão social, o bom funcionamento das institui3) O aumento de educação necessário para a obtenção de ções (good governance) e a cultura democrática. credenciais competitivas no mercado de trabalho deve obterQualquer revisão da evolução dos números da escolarizase, em muitos países em desenvolvimento, num contexto de ção, da esperança de vida escolar ou do nível médio de qualificrescente mercantilização educativa e de contenção da despecação da população indica que os princípios de Shultz têm sido sa pública com a educação. Políticas de recuperação de cusseguidos e de que a educação tem aumentado de forma notos, programas de créditos que substituem políticas de bolsas, tável em todo o globo. O que não deve esconder, é claro, que, aumento da oferta do ensino privado, são lugares comuns nas

novas políticas educativas. Este processo limita as possibilidades de acesso para determinados grupos sociais (especialmente desde a educação secundária em diante) e consolida níveis de qualidade muito distintos em função dos sectores de oferta e da força dos grupos de interesses para defender as suas posições de privilégio. Os limites da expansão educativa para reduzir a pobreza foramno também para reduzir as desigualdades educativas. 4) Os processos assinalados anteriormente repercutem sobre o comportamento da procura. As necessidades económicas do local obrigam muitas crianças e adolescentes a interromper a sua trajectória escolar. O aumento dos custos directos e indirectos da educação e a necessidade de investir em educação durante mais anos produzem a revisão em baixa das expectativas das famílias mais pobres e o abandono prematuro do sistema. Estas são apenas algumas das possíveis explicações dos limites do provérbio chinês. Talvez convenha que nos ocupemos não são só com aquilo que a educação pode fazer para combater a pobreza, mas também com os efeitos que a pobreza tem sobre a educação. Talvez assim descubramos que mesmo que distribuamos muitas canas estas não são suficientes para pescar os peixes que subiram o rio muito para acima.

15.09 Professores mal pagos

16.09 Três por cento dos alunos são de origem estrangeira

17.09 Absentismo dos portugueses abaixo da média europeia

18.09 Bagão Félix defende fim do sigilo fiscal e diminuição do sigilo bancário

18.09 Sindicatos descontentes com os 2,2% de Bagão

Os professores portugueses estão entre os mais mal pagos dos países desenvolvidos, de acordo com um novo estudo internacional, que demonstra ainda a queda do investimento público no sector educativo em Portugal. Ao mesmo tempo, revela o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), os alunos portugueses são dos que menos horas de aulas têm e o sistema educativo é dos que tem menos professores para os estudantes existentes.

Em Portugal, cerca de 90 mil dos alunos do pré-escolar e ensino básico de 1°, 2° e 3° ciclo, são de origem estrangeira ou filhos de emigrantes portugueses. Ao todo, representam cerca de três por cento da população estudantil até aos 15 anos de idade, que frequentam a escola.

Portugal é dos países europeus com mais baixa taxa de absentismo por doença. De acordo com os dados divulgados ontem pela revista britânica “Occupational and Environmental Medicine”, em 2000, a proporção média de absentismo nos Quinze era de 14,5%, variando entre 6,7% na Grécia, com a taxa mais baixa, e 24% na Finlândia, que apresentava o valor mais elevado. No grupo onde o absentismo é menor encontram-se a Irlanda (8,3%), Portugal (8,4%), Itália (8,5%), Reino Unido (11,7%) e Espanha (11,8%).

Bagão Félix, ministro das Finanças, disse defender a total publicitação das declarações do IRS dos portugueses e um sigilo bancário “menos forte”, como instrumentos de combate à evasão fiscal.

As estruturas sindicais manifestaram-se insatisfeitas por o ministro das Finanças ter admitido uma actualização salarial para a Função Pública na ordem dos 2,2 por cento, um valor muito inferior ao reivindicado pelos sindicatos. Em declarações à agência Lusa, o secretário-geral da CGTP, Manuel Carvalho da Silva, considerou que o que o ministro das Finanças está «a propor é uma redução dos salários reais da Função Pública».

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RECONFIGURAÇÕES Xavier Bonal Departamento de Sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona

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FORMAÇÃO e trabalho Manuel Matos Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto mmatos@fpce.up.pt

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“Insucesso” e “desescolarização”, hoje A naturalização do “sucesso/insucesso” na escola, que é a tradução cognitiva do “self-made man” da visão teológica do “dotado/não dotado”, inculca uma ideia de escola ainda incondicionalmente desejável, mas nem por todos alcançável. O insucesso é, então, vivido, experienciado e sofrido como um défice pessoal. De há uns tempos a esta parte, mais concretamente a partir dos últimos anos da década passada, começou a circular no mundo escolar um novo vocábulo que, a pouco e pouco, se substituiu a um outro, até então dominante no mesmo quadrante semântico. O novo vocábulo é o de “abandono escolar”, preferido pela linguagem técnico-admnistrativa, pelo menos a avaliar pela designação presente nos quadros estatísticos nacionais, ou o de “desescolarização”, conforme vem preferindo a linguagem de investigação de influência francesa. Este novo vocábulo tem vindo a sobrepor-se ao de “insucesso”, cuja ocorrência na linguagem comum e na problemática da investigação é cada vez menos visível. Esta mutação vocabular não parece traduzir apenas um incidente lexical no sentido de que a nova expressão seria mais ajustada para dar conta do mesmo fenómeno. Na verdade, o fenómeno do insucesso e do abandono não é o mesmo. Conforme salienta Dominique Glasman, que esteve recentemente entre nós e é um reputado investigador da questão, “é conveniente separar insucesso escolar de desescolarização. Nem todos os alunos com insucesso abandonam a escola, assim como nem todos os desescolarizados são mal sucedidos” (Ville-Ecole-Intégration Enjeux, n° 132, mars 2003). Por outro lado, para lá desta distinção de tipo empírico, parece haver uma diferença de tipo ideológico, imputável a uma mudança política e socio-organizacional da escola. Na verdade, a linguagem do “sucesso/insucesso” como fenómeno de referência dominante da escola tende a conotar a escola como um espaço e um tempo marcados essencialmente pela lógica do progresso linear e objectivo (ou a sua negação complementar), como se esse modo de funcionamento lhe fosse exclusivamente inerente. A naturalização do “sucesso/ insucesso” na escola, que é a tradução cognitiva do “self-made man” da visão teológica do “dotado/não dotado”, inculca uma ideia de escola ainda incondicionalmente desejável, mas nem por todos alcançável. O insucesso é, então, vivido, experienciado e sofrido como um défice pessoal. Na linguagem do abandono e da desescolarização, é o próprio texto oficial que admite um tempo e um espaço de retrocesso, de recusa e de desvalorização da escola, o que supõe, pelo menos, a ocorrência de três fenómenos mais ou menos evidentes no sistema educativo. Em primeiro lugar, o alargamento temporal e social do ciclo de escolarização, tanto do obrigatório, como do secundário. No caso do ciclo obrigatório, esse alargamento é o responsável por um quarto dos abandonos; quanto ao secundário, o registo dos abandonos sobe até 44% dos inscritos. Em segundo lugar, a baixa expectativa quanto aos benefícios dos diplomas sobre as hipóteses de emprego, fenómeno tanto mais evidente

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É CONVENIENTE SEPARAR “insucesso escolar” de desescolarização. Nem todos os alunos com insucesso abandonam a escola, assim como nem todos os desescolarizados são mal sucedidos”

quanto maior é a oferta “precoce” de emprego, como acontece em determinadas regiões do norte do país. Em terceiro lugar, a degradação da própria experiência escolar, designadamente quando a gestão do currículo oferece passagens de ano quase administrativas e as propostas escolares não contribuem efectivamente para ampliar os reais conhecimentos dos alunos e as suas competências práticas. Desta experiência escolar negativa resulta, frequentemente, uma imagem auto-desvalorizada de si próprio, enquanto pessoa, a qual só é possível resgatar através da recusa da própria escola. A ocorrência destes três

fenómenos na produção directa da desescolarização podem ser interpretados, paradoxalmente, como resultado do próprio processo da escolarização contemporânea, quando isso significa hiperescolarizar a sociedade na crença de que previne a marginalidade e promove a integração social. O efeito contrário, robustecendo o caudal da exclusão social e repondo o ciclo da desigualdade, faz do abandono uma causa cada vez mais social, conotada com a segurança e a prevenção da criminalidade, que torna bem evidente o quanto a escola está hoje comprometida com a gestão política do quotidiano da cidade.

18.09 Sampaio critica caos nas escolas

20.09 Barreiras arquitectónicas contrariam integração dos deficientes

23.09 Polémica nos tempos de trabalho

24.09 “Enganei-me”

25.09 20 mil casos de sida notificados em Portugal

O Presidente da República, Jorge Sampaio, apelidou, ontem, de «muito sério» o facto de as escolas não terem aberto as portas no dia previamente marcado, devido aos atrasos registados na colocação de professores. «Não estávamos habituados a que isto pudesse acontecer», afirmou o chefe do Estado, numa crítica implícita ao Governo.

A maior parte dos estabelecimentos de ensino em Portugal continua sem ter rampas ou elevadores para permitir a deslocação de deficientes. Esta é a convicção de várias associações de deficientes, baseada no contacto informal com a realidade, já que não existe qualquer estudo nacional sobre o assunto.

A Comissão Europeia apresentou ontem uma proposta de reforma da legislação dos tempos de trabalho, que suscitou a hostilidade dos sindicatos e dúvidas entre o patronato. Por um lado, a Comissão pretende que o período de referência para calcular a média máxima das 48 horas semanais seja feita num período de 12 meses, e não quatro, como acontece actualmente. O objectivo é estender os períodos laborais num prazo mais lato, para permitir aos empregadores a repartição das cargas de trabalho num período de tempo mais alargado.

A ministra da Educação confessa que não sabe o que falhou na colocação dos professores. Maria do Carmo Seabra só sabe que se enganou. Agora vai esperar os resultados das auditorias e depois decide se processa a empresa responsável pelo programa informático. A Compta teve Couto dos Santos na Administração, e tem como presidente da assembleia geral o socialdemocrata Rui Machete.

O encarregado de Missão do Plano Nacional de Luta Contra a Sida, Meliço Silvestre, disse que o número de casos de Sida notificados em Portugal é de 20 mil. Meliço Silvestre admitiu, no entanto, que o número total de casos existente no nosso país possa rondar entre os 30 e os 40 mil. “A nossa situação não é alarmante, mas preocupante”, disse o responsável pelo Plano Nacional de Luta contra a Sida.


As políticas da educação Nós temos um absurdo sistema do Ensino Superior que, nalguns sectores, é uma verdadeira fábrica de licenciados desempregados. Temos, por exemplo (é a última informação que me deram) 43 cursos de Engenharia Mecânica, enquanto a Holanda tem três. Temos várias dezenas de cursos de Direito quando, antes do 25 de Abril, havia, salvo o erro, três. Sendo esta a situação, a senhora Ministra, em vez de agir a montante, age a jusante.

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Custa-me a compreender qual é a estratégia política da actual Ministra da Ciência e do Ensino Superior e da sua colega da Educação. Nós temos um absurdo sistema do Ensino Superior que, nalguns sectores, é uma verdadeira fábrica de licenciados desempregados. Temos, por exemplo (é a última informação que me deram) 43 cursos de Engenharia Mecânica, enquanto a Holanda tem três. Temos várias dezenas de cursos de Direito quando, antes do 25 de Abril, havia, salvo o erro, três. Sendo esta a situação, a senhora Ministra, em vez de agir a montante, age a jusante. A sua preocupação parece ser a de criar esquemas de formação para adaptar os licenciados desadaptados a um mercado de trabalho que,

NO QUE DIZ RESPEITO á formação de Educadores e Professores dos vários graus, para um mercado do trabalho saturado, estamos a formar, possivelmente, três vezes mais diplomados do que seria normal. possivelmente, não existe. Acho muito bem esta sua preocupação, mas o fundamental é ir à origem do problema, e isso, tanto quanto vejo, não o está a fazer. No que diz respeito à formação de Educadores e Professores dos vários graus, para um mercado do trabalho saturado, estamos a formar, possivelmente, três vezes mais diplomados do que seria normal. E, quantos mais formamos, pior é, em muitos casos, a qualidade… e mais altas as notas. Vemos, assim, professores com três, quatro e mais anos de bons serviços, serem subs-

tituídos por jovens diplomados com notas mais altas. Se não se tomarem medidas muito sérias (que exigem alguma coragem), a única solução a curto prazo será a de montar um sistema de bolsas para os professores já formados , alguns já com bons anos de serviço, mas considerados sem formação conveniente. Esta solução abrirá, naturalmente, vários postos de trabalho para formadores. Mas como estes não estão preparados, haverá lugar para cursos de formação de formadores. É esta política “à Dona Branca” que temos estado a seguir. Os Ministérios da Educação

preferiram , este ano, fechar os olhos a estes problemas e confiar o problema da colocação dos professores a um computador, e foi o que se viu. Para ultrapassar a política da Educação em que o País se afundou, temos, sem perda de tempo, de procurar respostas tecnicamente correctas, precisas e concretas para os diferentes problemas e que possam ter uma razoável aceitação de todos os intervenientes. Mas, sobretudo, não sejam respostas isoladas, pontuais, nem transitórias, mas se possam inserir numa visão global da evolução de todos os problemas, ou seja, do futuro do País. Vamos a ver o que , neste novo ano, fazem os Ministérios e o que propõem aqueles que os criticam.

DO SUPERIOR António Brotas Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico Ex-Secretário de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica (1974-75) brotas@fisica.ist.utl.pt

O Ministério O comportamento dos anteriores responsáveis pelo ministério da educação é patético. Perante o desastre dos concursos de educadores e professores, que a realidade não permite esconder, descobre-se a podridão que reinava (e reina?) no ministério e no governo. O ministro não confiava e odiava o secretário dos recursos educativos que por sua vez não confiava e abominava o ministro. Ambos agiam como se não houvesse — e na prática não havia — uma secretária da educação. Os dois galos bicavam-se para ver quem era o rei da capoeira enquanto a galinha cacarejava. Como diria o Manel, são pior que inimigos são camaradas de partido!

O desastre dos concursos é apenas a ponta do icebergue. É apenas a parte visível dos resultados desastrosos de uma política. Quem acompanha o que se passa naquele ministério sabe que a desordem e a destruição da política educativa nacional é total. No ministério não ficou pedra sobre pedra. As estruturas que pensavam e planeavam a inovação foram de vela. O Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP) que tinha iniciado um trabalho imprescindível de validar e acreditar a formação inicial de professores, desapareceu sem deixar rasto. O sistema de avaliação das escolas foi apagado. No seu lugar ficaram as tentativas patéticas e patetas de realizar

rankings de escolas como se estas participassem num concurso televisivo rasca. A avaliação e acreditação dos materiais escolares, entre eles a política de manuais escolares, foram parar ao caixote do lixo. A rede escolar ficou no estado calamitoso que se sabe. Para encurtar a descrição, basta dizer que o próprio quadro orgânico do ministério foi varrido e a nova lei orgânica nunca foi posta em prática. Os serviços estão baralhados e paralisados e ninguém sabe o que lhe compete fazer. Perante a catástrofe, os ilustres membros da ex-troika governamental ainda têm o desplante de dizer publicamente que fizeram reformas! E que a culpa deste cataclismo e desastre geral deve ser da Ma-

faldinha e do Zé Carioca! O ministério da educação está como a horta do meu amigo Joaquim Esteves. Depois de a regar bem regada ao fim da tarde teve o azar de lhe passar por cima, durante a noite, uma grossa manada de javalis furiosos. Espatifados os legumes, sobrou um lamaçal. Para recuperar a horta o senhor Santana Lopes mandou para lá uma tocadora de flauta e dois tocadores de tambor. A emenda vai ser bem pior que o soneto! Haja esperança. Esperemos que o próximo ano e meio passe depressa e que o povo português ganhe juízo e vote com sentido de responsabilidade.

ERVA moira José Paulo Serralheiro


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OLHARES José de Sousa Miguel Lopes Universidade do Leste de Minas Gerais, Brasil

Com a ascensão da escrita, o saber pôde destacar-se parcialmente das identidades pessoais ou colectivas, tornar-se mais “crítico”, ter por alvo uma certa objectividade e um alcance teórico “universal”. Não são somente os modos de conhecimento que dependem dos suportes de informação e das técnicas comunicativas. São também, por intermédio das “ecologias cognitivas” que elas pressupõem, os valores e os critérios de julgamento das sociedades. A influência do impresso é ainda tão forte que a maioria das metáforas usadas para descrever o novo suporte usam terminologia e imagem advindas deste momento tecnológico anterior. Semelhante ao que aconteceu com relação à imprensa, são as novas gerações que conseguirão fazer um uso prático da tecnologia de modo verdadeiramente original, resolvendo também as dificuldades legais e financeiras que são ainda arrastadas do modelo impresso. A tecnologia digital rompe com a narrativa contínua e seqüencial das imagens e textos escritos e se apresenta como um fenômeno descontínuo. Sua temporalidade e espacialidade, expresso em imagens e textos nas telas, estão directamente relacionadas ao momento de sua apresentação. Verticais, descontínuas, móveis e imediatas, as imagens e textos digitalizados a partir da conversão das informações em bytes, têm o seu próprio tempo, seu próprio espaço; o tempo e o espaço fenoménico da exposição. Elas representam portanto um outro tempo, um outro momento, revolucionário, na maneira humana de pensar e de compreender. Face a a essas novas tecnologias, como se configura o processo de literacia? A escola preocupada em formar cidadãos que estabeleçam uma relação mais crítica

A literacia face a uma nova ecologia cognitiva? A influência do impresso é ainda tão forte que a maioria das metáforas usadas para descrever o novo suporte usam terminologia e imagem advindas deste momento tecnológico anterior. Semelhante ao que aconteceu com relação à imprensa, são as novas gerações que conseguirão fazer um uso prático da tecnologia de modo verdadeiramente original… com o conhecimento e com sua realidade social, precisa apropriar-se dessas tecnologias, mas não apenas como material lúdico, neutro e nem fazendo uma crítica externa a elas como se fossem na-

turalmente alienantes. Pelo contrário, deve construir um diálogo com as diferentes representações por elas veiculadas, sem buscar designar a priori o locus das verdades e o das mentiras, mas ajudan-

DESIGUALDADES

Estudo francês revela que aumentaram as desigualdades de oportunidades

Solta

Um estudo elaborado por dois investigadores franceses conclui que se regista um aumento crescente das desigualdades entre os alunos no que toca ao sucesso escolar. Eric Maurin et Marc Gurgand, investigadores do Centro Nacional de Pesquisa Científica, constataram que, desde finais dos anos 90, o prosseguimento de estudos no ensino superior e o aumento das qualificações já não fazem parte das prioridades das famílias mais desfavorecidas, apesar de o mercado de trabalho exigir uma crescente qualificação dos trabalhadores. De acordo com estes dois investigadores, a desigualdade escolar pode ser comparada a uma “desigualdade de destinos”, apoiando-se em estudos internacionais que comprovam que a pobreza das famílias contribui largamente para o insucesso escolar. “Toda e qualquer política social que vise a melhoria das condições de vida das crianças, dos jovens e dos seus pais representa um investimento extremamente rentável”, dizem.

do os alunos a inter-relacionarem criticamente as várias e contraditórias representações que circulam diferentemente inter e intra distintos espaços culturais e, a partir daí, conhecer os múltiplos

e contraditórios projectos e práticas sociais que elas legitimam, definem ou questionam para, finalmente, se posicionarem consciente e autonomamente em relação a elas. Ou seja, as tecnologias eletrónicas devem ser tratadas como construções históricas que participam da constituição do mundo social, às vezes reforçando o status quo, às vezes incentivando o seu questionamento. Isso possibilita que o ensino das várias disciplinas, além de contribuir para a formação de telespectadores que não absorvem os conteúdos dos programas televisivos como verdades inquestionáveis, discuta, com o auxílio desses programas, as complexidades, contradições das sociedades e do presente, a multiplicidade de representações de mundo social nele existentes. A relação entre literacia e a televisão, por exemplo, só é possível naquelas experiências didácticas apoiadas em metodologias de ensino que procuram romper o “monopólio da fala” do livro didáctico e do professor, incentivando o gosto pela discussão de diferentes pontos de vista, a reflexão dos alunos, a possibilidade de apropriação crítica dos conhecimentos históricos. Uma literacia que não considere o aluno como uma tábula rasa e que, ao estudar um determinado tema, confronte múltiplas representações existentes sobre ele: as que os alunos conhecem fora do espaço escolar através da televisão e outros lugares sociais e outras ainda desconhecidas. Nesse confronto, não se deve procurar definir quais representações são verdadeiras, quais são falsas, ilusórias. Devese, sim, descobrir suas diferenças ao representar o real, analisar a que grupos sociais, identidades culturais estão ligadas, quais projectos procuram legitimar.

Professores universitários angolanos em greve Os professores do ensino superior público de Angola iniciaram uma greve no dia 4 de Setembro, que se prolongará por duas semanas, para reclamar aumentos salariais e a melhoria das condições de trabalho. De acordo com Carlinhos Zasala, secretário-geral do Sindicato de Professores do Ensino Superior, o salário médio mensal de um professor titular é equivalente a 1200 euros e o de um assistente estagiário não ultrapassa os 600 euros. “O governo paga aos professores de acordo com a tabela geral da função pública, situação que nós recusamos”, explica Zasala. Fonte: AFP


A sociedade americana vê a educação pública em estado de crise terminal.

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Numa altura em que a escola pública aparece ameaçada por discursos que a dão como incapaz de responder às necessidades sociais e do mercado de trabalho, e em que o futuro da educação se conjuga cada vez mais com o verbo “privatizar”, a PÁGINA entrevista Gustavo Fischman, professor na Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, que considera que a escola pública corre um sério risco de sucumbir à influência dos grandes “lobbies” comerciais no sector educativo. Fischman fala-nos, entre outros temas, da experiência americana e de como a comercialização do sistema educativo naquele país está a pôr em risco a democratização do acesso ao ensino, apontando o exemplo brasileiro como contraponto à crescente tentativa de apropriação daquilo que considera ser um “direito” e um “bem social”.

“Nos Estados Unidos, 250 das companhias do grupo da Fortune 500 envolvem-se nesta corrida através da oferta de materiais educativos e existem grandes cadeias de televisão e rádio a querer vender “pacotes educativos”, tornando muito difícil distinguir quem decide aquilo que os estudantes devem ou não aprender”. Afirma num recente artigo, publicado no jornal A PÁGINA da EDUCAÇÃO, que “as escolas nos Estados Unidos estão cada vez mais abertas ao mercado através da influência das grandes empresas financeiras, industriais e comerciais”. De que forma se tem produzido esse fenómeno? O primeiro facto que devemos ter em conta é que este não é um fenómeno recente. Desde o princípio dos anos oitenta, em particular com a administração Reagan e através da publicação do relatório “A Nation at Risk” (Uma Nação em Risco), a sociedade americana vive com a sensação de que a educação pública está num estado de crise terminal. Essa noção de crise educativa recebe muita atenção dos meios de comunicação social americanos e levou alguns educadores e políticos a procurar soluções para os problemas das escolas públicas nos modelos de mercado. Isto é patente nos temas que hoje dominam boa parte do debate educativo. Os temas mais importantes, e que estão a ser objecto de discussão na actual campanha eleitoral, referem-se às mudanças nos modelos de financiamento a partir do uso de créditos educativos (os chamados “vouchers”) e a expansão do modelo das escolas “charter” (financiamento público e administração privada). Os vouchers e as escolas charter, pelo menos pela forma como estão a ser implementadas actualmente, mostram a força do movimento favorável à privatização das escolas públicas. A isto há que juntar o aumento continuado dos preços dos serviços

educativos, as propostas de implementação de modelos de pagamento por índice de produtividade dos docentes, a venda de produtos e serviços educativos a escolas e universidades, e finalmente a proliferação de empresas comerciais no sector educativo e a utilização de espaços e material escolar como veículos publicitários, em particular no que se refere às diferentes formas de patrocínio por parte das grandes empresas. Resumindo, hoje em dia as escolas públicas americanas enfrentam três problemas intimamente ligados e simultâneos: a comercialização da educação, a corporatização dos serviços educativos públicos e a mercantilização do conhecimento. Essa comercialização da escola pública está ligada ao processo de privatização das escolas? Considero que o avanço da comercialização da educação tem de ser encarado com preocupação e analisado além da velha disputa entre ensino público e privado. Em princípio, é mais fácil as escolas privadas serem objecto de comercialização, mas nos Estados Unidos esse processo já está instalado nas escolas públicas e particularmente no sector universitário. Apesar disso, não podemos generalizar e falar do sector privado o do sector público como um todo. Nos Estados Unidos há muitas universidades públicas e privadas de boa qualidade, trabalhando com muito rigor nas áreas de pesquisa e em relação com as comunidades locais e regionais, mas são cada vez em maior número as universidades

privadas e cada vez mais algumas universidades públicas (habitualmente mais pequenas e com menor prestígio) que funcionam com critérios puramente comerciais e pouco pedagógicos. O grande paradoxo é que essas universidades públicas têm de se “comercializar” para poder competir com as universidades privadas e nesse processo perdem muito do seu carácter de instituição pública. A educação tem de ser encarada primeiro como um direito e como um bem social e, por isso, o Estado tem que garantir o direito de acesso e permanência de todos os cidadãos aos bens educativos. Se for transformada em actividade comercial, simples e pura, só para ganhar dinheiro, vai seguir as regras do mercado. E a lógica do mercado é que há vencedores e vencidos. Ou seja, algumas pessoas vão aprender e outras não. As que têm dinheiro vão pagar por serviços melhores e outras nem acesso a eles terão. A gestão das escolas públicas através de empresas privadas poderá, no futuro, vir a constituir um excelente álibi para a desresponsabilização do poder político na área da educação. Isto, porque no caso de estas empresas terem êxito na administração das escolas os governos podem apresentá-las como um trunfo; caso contrário imputam-lhes a responsabilidade pelo fracasso e limitam-se a substituí-las por outras empresas do sector. Concorda com esta ideia? Em princípio estou de acordo com a orientação geral da sua ideia, mas

discordo com a noção implícita da possibilidade de as empresas comerciais poderem ter êxito e, portanto, substituírem o papel fundamental do Estado. As empresas comerciais apenas têm êxito se produzirem lucro, de outra forma não se podem considerar bem sucedidas. Porém, sabemos que é possível ganhar dinheiro vendendo serviços educativos e sabemos também que para gerar lucro as escolas têm muito poucas estratégias: vender mais caro o mesmo serviço (o qual só é possível em situação de monopólio, que seria muito difícil de sustentar) ou baixar a despesa. Numa escola esta última opção implica despender menos dinheiro nos salários dos professores e professoras, aumentar o número de alunos por professor, substituir professores que cobram salários altos por outros que recebem menos ou professores com formação específica por pessoas que não têm formação para a docência. O decréscimo da despesa é também possível a partir da selecção dos estudantes, procurando aqueles que são mais facilmente “ensináveis” (implicam menores custos) ou aceitando apenas aqueles que podem pagar mais pelo serviço. Esta última estratégia implicaria uma grave deterioração dos já deficientes sistemas de ensino que contemplam as parcelas de população mais marginalizadas (minorias étnicas, raciais, alunos portadores de deficiências, etc.). Enfim, não creio sequer em teoria que se possa pensar na total transferência dos serviços educati-

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“Se não conseguirmos reintroduzir no discurso público sobre o ensino a noção de potencial democratizador da escola, os benefícios individuais e sociais de aceder a uma educação com princípios de cidadania e solidariedade, sem perder de vista a dimensão qualitativa, então o risco da comercialização da educação é muito alto”. vos para a esfera privada, a menos que estejamos dispostos a suportar o enorme preço em termos de acentuação e perpetuação da já gravíssima situação de iniquidade educativa e social. Na prática, assiste-se à globalização da mercantilização da educação. Que outros países estão a pôr em prática este comércio e que consequências poderão advir da abertura aos mercados dos sistemas públicos de educação a médio/ longo prazo? Este é um fenómeno muito desenvolvido nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Europa continental, Austrália e também na Ásia e América Latina. Sabemos que em qualquer parte do mundo, inclusivamente nos Estados Unidos, o custo mais elevado de uma instituição diz respeito ao salário dos professores. Para expandir os serviços com qualidade, seria necessário criar mais escolas e formar mais docentes. A alternativa encontrada pelos governos e impulsionada pelos sectores que desejam comercializar a educação foi aumentar o número de alunos por sala de aula e gastar menos com os salários. Só que, dessa forma, a qualidade diminui. Costuma dizer-se que no passado a educação era melhor do que actualmente. Apesar de tudo, acho que essa afirmação é difícil de sustentar quando sabemos que, actualmente, os professores desempenham um maior número de tarefas e têm de dar resposta a exigências sociais e educativas que antes não existiam. Quando as escolas se comercializam procuram sempre ter o menor custo possível e para fazer in-

vestimentos querem ter garantias de lucro, o que é muito difícil de prever no sector educativo. É uma situação muito complexa, com muitos agentes económicos a concorrer no sector educativo para ganhar dinheiro. Nos Estados Unidos, 250 das companhias do grupo da Fortune 500 envolvem-se nesta corrida através da oferta de materiais educativos e existem grandes cadeias de televisão e rádio a querer vender “pacotes educativos”, tornando muito difícil distinguir quem decide aquilo que os estudantes devem ou não aprender. O poder das empresas comerciais no sector educativo transcende muitas vezes o poder das escolas e, em alguns casos, são os próprios Estados a favorecer a sua implementação. Que armas e estratégias têm os defensores da escola pública para enfrentá-las? Em primeiro lugar aceitar o facto de que para compreender os efeitos destas mudanças e desenhar alternativas é necessário transcender os discursos meramente defensivos da “escola pública” a partir de perspectivas nostálgicas. Não cair num olhar nostálgico implica defender a noção de público sem perder a capacidade de criticar e propor modificações no funcionamento das escolas públicas que, muitas vezes, discriminam as minorias, são autoritárias, e de baixa qualidade. Eu defendo o papel fundamental do Estado na garantia do acesso e permanência de todos os estudantes nas escolas e universidades. Mas essa garantia deve ser acompanhada por uma profunda melhoria no trabalho quotidiano dos profissionais

da educação com o objectivo pedagógico e político de assegurar as características e o potencial democratizador da educação. Entre muitas tarefas isto implica, nomeadamente, uma melhor preparação profissional, uma modificação do modelo 1 professor/30 alunos, uma relação mais estreita e fluida entre a produção e a partilha do conhecimento (nomeadamente entre universidades e centros de investigação e as escolas dos diferentes níveis de ensino) e, muito possivelmente, uma modificação das condições de ensino e aprendizagem, através da criação de escolas mais pequenas, horários mais flexíveis e outro tipo de organização. Em segundo lugar, é indubitável que para impedir que a lógica comercial se institucionalize definitivamente e que a propaganda continue a invadir as escolas públicas é imprescindível que os espaços escolares se reformem, aprofundando os aspectos mais ligados à lógica de cidadania e democratização. Vale sempre a pena enfatizar que a democratização da educação exige mais e não menos democracia. Concretamente, a melhor arma que os docentes têm para defender as escolas públicas é transformá-las a partir do interior, reconhecendo o carácter altamente político da sua profissão. Isto é, as escolas públicas correm hoje o risco de serem privatizadas porque a escola do passado não foi suficientemente democratizadora (no que respeita ao conhecimento, ao acesso e à permanência) e isso afectou fundamentalmente os alunos das famílias trabalhadoras e também (ainda que usando outros

mecanismos) os estudantes de famílias pertencentes a minorias marginalizadas. Se não conseguirmos reintroduzir no discurso público sobre o ensino a noção de potencial democratizador da escola, os benefícios individuais e sociais de aceder a uma educação com princípios de cidadania e solidariedade, sem perder de vista a dimensão qualitativa, então o risco da comercialização da educação é muito alto. As escolas “charter” estão a avançar em força nos Estados Unidos e em outros países anglo-saxónicos. Os apoiantes da liberalização do sistema educativo defendem que esse avanço se deve à necessidade de contrariar a ineficácia e o fraco rendimento dos alunos das escolas públicas. Este argumento tem algum fundamento válido? Essa é uma pergunta difícil de responder na generalidade, merecendo uma resposta caso a caso e olhando para os dados do rendimento académico de cada escola. No entanto, posso dar um exemplo que poderá ajudar a entender a complexidade da sua pergunta. Em 17 Setembro de 2004, sessenta escolas charter geridas pela empresa “Califórnia Charter Academy” tiveram de encerrar, deixando sem aulas mais de seiscentos estudantes. As razões que motivaram este encerramento foram de ordem financeira e tiveram origem no manuseamento pouco claro por parte do dono daquela empresa, constituindo um sério aviso dos perigos que implica reduzir o direito à educação a uma operação de mercado.


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“Eu estou convencido que o exemplo de Porto Alegre - com todas as críticas que se possam fazer deste modelo que está em constante renovação e discussão - é de que ele nos dá sinais muito claros de como avançar na construção de sociedades e escolas mais justas, percebendo que a democracia, como qualquer sonho, não se faz a partir de palavras bonitas e de boas intenções (...)” Mas há ou não evidências ou estudos que demonstrem que estas escolas produzam melhores resultados do que as escolas públicas? Bom, também em Setembro deste ano, a American Federation of Teachers (um dos sindicatos de educadores americanos) publicou o relatório National Assessement of Educational Progress, respeitante a 2003, que avalia a evolução das escolas nos Estados Unidos. Este relatório conclui, por exemplo, com dados bastante sustentados, que os estudantes das escolas charter obtêm piores resultados em matemática e leitura nos 4º e 8º anos de escolaridade por comparação com os estudantes das escolas públicas. Apesar de estes dois estudos confirmarem que as escolas charter não estão a funcionar tão eficientemente como os seus promotores o fazem crer, há muitas pessoas e organizações que continuam a assegurar que elas são um bom sistema. Apesar de os resultados não serem conclusivos, creio ser importante ter em conta que não se podem estabelecer comparações sem considerar os contextos gerais e específicos de cada uma delas. O professor insiste que “a democratização da educação exige mais e não menos democracia”, dando, neste contexto, o exemplo das escolas de Porto Alegre, no Brasil. Como é o modelo de funcionamento dessas escolas e que exemplos se podem colher delas? A cidade de Porto Alegre e respectiva área suburbana tem uma população estimada de 1.286.000 habitantes, distribuídos por 85 zonas.

Em 1989, a administração municipal adoptou um sistema participativo de tomada de decisões sobre o orçamento do município. Este program, tinha como objectivo incluir a população na discussão e elaboração do plano anual de investimentos a realizar na cidade. Um recente relatório ilustra como este programa beneficiou a área da educação na cidade: em 1989 existiam 37 escolas municipais com 24.232 alunos inscritos; em 2000 o número de escolas aumentou para 89 e serviam um total de 49.673 alunos. No mesmo período a taxa de abandono da educação básica desceu de 9,2% para 2,4% e a retenção aumentou de 71,2% para 85,5%. Este esforço para levar a cabo um reforço da oferta educativa está intimamente relacionado com o amplo processo participativo de tomada de decisões e ilustra a vontade política que pode existir para combater o tipo de colonização corporativista associada às agendas neoliberais de reforma educativa que enformam o processo de globalização em curso. Entre os projectos desenvolvidos pelo município de Porto Alegre destaca-se o Projecto Escola Cidadã. Como surge e como se estrutura este projecto? O projecto Escola Cidadã foi desenvolvido pela administração do Partido dos Trabalhadores na altura em que ganhou as eleições para o município de Porto Alegre em 1989. Durante os últimos quinze anos, educadores, alunos, pais, organizações comunitárias e indivíduos tiveram a oportunidade de expressar as suas opiniões sobre o papel que devem

ter as escolas na sociedade e reflectir sobre o tipo de prática social, política e educativa que desejariam ver funcionar nas escolas municipais. Este processo de reforma educativa expressa a articulação de ideais democráticos, experiências comunitárias, o legado do movimento educativo popular e um firme compromisso de criar um novo modelo de escola, no contexto de uma crise financeira e económica de grande magnitude. É um programa que funciona a partir da premissa fundamental de que democratizar as escolas requer um esforço colectivo, de forma a criar um projecto educativo aberto e flexível, mantendo, por sua vez, as metas de democratização integral em contexto de sala de aula. No âmbito deste projecto, as escolas transformam-se em laboratórios práticos do exercício de direitos individuais e sociais, incentivando o desenvolvimento de indivíduos autónomos, críticos e criativos, que sustentem práticas diárias de solidariedade, justiça, liberdade e igualdade de relações entre homens e mulheres, combinando todas as práticas curriculares com um compromisso de uma relação menos abusiva com o ambiente. Acha que o modelo de Porto Alegre pode, de algum modo, ser “exportado” para outros lugares do mundo? Sem pretender comparar o desempenho das escolas de Porto Alegre com as escolas americanas, não tenho dúvidas que se as nossas sociedades querem reforçar o seu carácter democrático devem avançar no sentido da democratização e não da

mercantilização da educação. Para isso, as escolas que queiram alimentar uma verdadeira participação democrática terão de transformar-se em espaços abertos, protegidas dos regimes disciplinares das regras de mercado; cada componente desse espaço dependerá necessariamente do outro. É fácil compreender a necessidade de abertura porque ela é axiomática em todas as formas de democracia. Mas tão importante como aceitar a necessidade de abraçar e pôr em prática diferentes credos e formas de olhar o mundo e realizar diversos tipos de actividades e práticas educativas, é a necessidade de as escolas estarem protegidas das pressões do mercado. Eu estou convencido que o exemplo de Porto Alegre - com todas as críticas que se possam fazer deste modelo que está em constante renovação e discussão - é de que ele nos dá sinais muito claros de como avançar na construção de sociedades e escolas mais justas, percebendo que a democracia, como qualquer sonho, não se faz a partir de palavras bonitas e de boas intenções, mas a partir de processos complexos e profundos de reflexão e de práticas colectivas. Pelos seus próprios méritos educativos e por constituir uma alternativa real face ao constante avanço dos sectores que querem comercializar as escolas, a população de Porto Alegre - sem esquecer muitas outras cidades brasileiras e de outros lugares do mundo -, e as suas escolas merecem não só que lhes prestemos atenção, mas que lhes dediquemos a nossa reflexão e as nossa acção.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


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Política de Truffaut

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CINEMA Paulo Teixeira de Sousa Escola Secundária Especializada Artística Soares dos Reis

Para o Fernando Pinto Basto, por todas as conversas-discussões sobre a nossa paixão comum Primeiro uma nota pessoal. Há 20 anos estava a trabalhar no Algarve, mais concretamente em Loulé. A meio de uma aula uma funcionária veio-me entregar um telegrama. Curto, claro. “Morreu FT. Sentimentos. Bjs”. Foi assim que tomei conhecimento da morte de François Truffaut. Neste “departamento” confesso que apenas três mortes me deram a volta ao coração, como se costuma dizer. E a primeira foi esta. As outras foram as de Kubrick e a de Marlon Brando.Truffaut político. A fórmula pode surpreender, pois o realizador passa por quem preferiu a acção no cinema à acção no mundo, opondo-se assim à posição que Jean Luc Godard é suposto representar. Ao evocar a relação de François Truffaut com a política não pretendo falar apenas das intervenções explícitas do cidadão Truffaut, como a assinatura do Manifesto dos 121 contra a guerra colonial da Argélia ou a venda de “La Cause du Peuple”, logo que o jornal maoísta foi proibido, nem mesmo dos gestos mais directamente ligados ao seu estatuto de realizador, como o papel decisivo na contestação depois do golpe contra Henri Langlois – director da cinemateca francesa – no início de 1968 ou, em Maio, a implicação na interrupção do Festival de Cannes (diz-se que até trepou pelas cortinas das salas de projecção!). O que me interessa aqui focar é a relação do Truffaut cineasta com a política. Para tentar compreender a sua posição é necessário perceber aquilo que para ele era um grande contrasenso: a diferença entre as palavras “político” e “militante”. Truffaut não foi, nunca foi, um militante. Foi exactamente o contrário. E numa época (os anos 60 e 70) onde apenas se concebia a relação com a política sobre a forma militante, ele passava por apolítico, então um adjectivo o mais pejorativo possível. O cinema de Truffaut é exemplarmente uma obra que ajuda a perceber o que opõe estes dois termos que parecem feitos para se aliar - dizemos “militante político”. A política tal como se encontra na obra de François Truffaut leva-nos para o significado etimológico do termo, à “cidade” no sentido da filosofia grega, isto é, a ideia de uma colectividade de indivíduos livres,

construindo, sem se negar como sujeitos, os modos de viver em comum.. O militantismo é o contrário: a escolha por um grupo de indivíduos de se juntarem num colectivo que tem a proeminência sobre eles, a decisão de abdicar de toda ou parte da sua autonomia, a integração num corpo por maior que seja, ao serviço de uma causa considerada digna do sacrifício da sua própria liberdade. A isto, o vagabundo Truffaut, o desertor Truffaut, o agitador Truffaut será sempre refractário. Desde “Os 400 golpes”, cujo discurso era de revolta contra a instituição escolar, contra a instituição familiar e a evasão da instituição carcerária, ele o proclamava. E mesmo correndo o risco de cair na psicologia simplista, a relação (biográfica e nos seus filmes) com a família ocupa um lugar essencial. Truffaut é contra a família instituída, a que preexiste. Mas é por uma família em construção, como organização de encontros, de cumplicidades, de

le Vague, posta em xeque. Torna-se possível construir uma outra família, uma outra relação – articulando esta nova ”família” nacional a outras, à escala internacional. Truffaut tornou-se o artesão desta edificação. É preciso ler o que é sem dúvida o seu mais belo livro, a sua “Correspondence”, para se compreender a amplitude da energia desenvolvida nesse sentido. Não existe contradição, contrariamente ao que se tem dito e escrito, entre a personagem “negativa” da adolescência e a “positiva” da maturidade, mas os dois tempos de uma mesma relação ao detestado como dado, desejado como construção. Esta relação com os outros, que inscreve como pontos cardeais opostos mas nunca antinómicos solidão de cada um e a esperança das colectividades de indivíduos, transparece em toda a sua obra. O relacionamento e a dificuldade – “une joie ET une souffrance” segundo a fórmula consagrada – de uma construída com os

François Truffaut e Jean Luc Godard em Cannes, Maio de 1968

trocas entre indivíduos admitidos e respeitados como tais. As suas duas primeiras ”famílias de eleição”, a oferecida por André e Janine Bazin e a dos “Cahiers” serão as suas primeiras manifestações. Mas pôr-se-á de maneira mais decisiva a relação com a famosa e problemática “grande família do cinema francês”. Esta família tinha os seus códigos e ritos: o autor de “Une certaine tendance du cinéma français” torna-se o seu detractor mais encarniçado. Ei-la, graças aos golpes certeiros da Nouvel-

outros são por princípio o seu projecto de cinema. Entre estes “outros” – a alteridade não é uma abstracção em Truffaut –, as mulheres, as crianças e os mortos têm um papel, conforme os filmes, principal. É possível aplicar a esta obsessão uma leitura psicanalítica fundada na sua infância pessoal, mas ela tem, quanto a mim, um horizonte mais colectivo, mais vasto. O interesse, tantas vezes referido, pela representação dos “procedimentos”, pelo “como isto funciona”, reenvia sobretudo para a representação do

que liga os humanos conservando contudo o que os separa - exemplo típico: o sistema das cartas enviadas por “pneumático” em “Beijos Roubados”, mas também a importância dada ao correio, às estações telefónicas, aos tubos nas paredes para ouvir à distância, o incrível trabalho sobre as diferentes formas da voz off... ou ainda as manifestações do que constrói os indivíduos como membros de uma comunidade possível, o que os aproxima sem contudo acabar com o que os separa. As palavras, a fala. A única fraqueza de “Fahreneit 451” é de o dizer demasiado explicitamente. E se o cinema pode parecer como um mundo ideal no imaginário de Truffaut, esse mundo que ele canta em ”A Noite Americana” onde mostra o seu artifício e os seus limites, é porque só no cinema é possível cumprir, no tempo de uma ficção clássica, o tempo, o “nem contigo nem sem ti” que leva ao princípio da existência: nem numa fusão infinita que é a negação de si e do tempo nem a separação que, pior do que a morte, traz a marca da condenação, da loucura e da traição. No número de Julho-Agosto de 2004, o realizador de Taiwan Hou Hsiaohsien na secção “Truffaut vu par...” escrevia:“ Numa lenda chinesa, há um rei que domina o mar, chamamos-lhe o rei- mar- dragão. Um dia, a sua filha, princesa do mar, casa-se com um intelectual. O rei, decepcionado com este casamento, decide encerrá-la num palácio. Para salvar a sua mulher, o intelectual imagina então esvaziar a água do mar enchendo grandes caçarolas e fazendo ferver à água até à evaporação total... Um imortal, posto ao corrente desta história, pensa dar uma ajuda com um passe de mágica na sua caçarola. Quando a temperatura da água na caçarola aumenta um grau, o mesmo acontece à agua do mar. Rapidamente, a água da caçarola entra em ebulição, então o mar agita-se cada vez mais, como se fosse atravessado por um tornado abrasador. Assustados, todos os mamíferos do mar abandonam-no. Para tornar o mar calmo o rei envia a sua filha a terra, para se reunir ao marido. Desde esse momento, este passou a ser conhecido pelo “homem que fez ferver o mar”. Os homens e as mulheres do cinema de Truffaut são como este “homem que fez ferver o mar”: têm uma paixão pelo amor. Num certo sentido, não seria Truffaut esse homem?”


O Presidente Sampaio e a História de Portugal

No mesmo dia em que o Ministro do Interior da Alemanha declarava publicamente sentir “vergonha, horror e raiva” por aquilo que os militares das SS de Hitler fizeram, o Presidente da República de Portugal publicou o primeiro de uma série de artigos de jornal sobre “o espírito dos Jogos Olímpicos e o nosso tempo”. “Devemos aproveitar a ocasião”, dizia ele, referindo-se ao retorno dos Jogos à Grécia no ano de aumento da União Europeia com 10 novos países, “para uma revisitação ao passado e assim tomar mais lúcida a percepção do presente”. Sampaio viajava no navio-escola “Sagres” até ao porto do Pireu, um navio que “contribuirá”, segundo palavras suas, “para lembrar” ao mundo “o papel pioneiro de Portugal na globalização” e “a vocação universalista da nossa história e cultura”. Esta última é expressão de particular agrado do Presidente: noutro lugar do mesmo artigo, escreve que também “os nossos atletas [olímpicos] levam consigo a universalidade da nossa história”. Estas duas posições públicas, de dois representantes dos respectivos Estados, são outras tantas formas de acertar contas com o passado. De um lado, temos a lucidez e a coragem daquilo a que Derrida, em “Os Espectros de Marx”, chama “o estar-com-os espectros”, ou seja, a capacidade de viver com os fantasmas da (in)consciência culpada, sem ver nesse processo de consciencialização uma ameaça à integridade da existência. A Alemanha, enquanto Estadonação, parece ter chegado a um momento histórico em que uma lúcida consciência colectiva dos crimes vividos e perpetrados por si perpassou para a instituição política máxima. Deve concluir-se, sem dúvida, que a destruição do país no final da Segunda Grande Guerra e a mais recente reunificação contribuíram,

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No dia 12 de Agosto último, o Ministro do Interior da Alemanha, em visita oficial, declarou publicamente sentir “vergonha, horror e raiva” por aquilo que militares das SS de Hitler fizeram numa aldeia da Toscânia, Sant’Anna di Stazzema, quando massacraram umas 560 pessoas, quase todas idosas, mulheres ou crianças. A “raiva” deveu-se ao facto de uma investigação judicial sobre o caso só ter começado quase 60 anos depois, em 2002, por iniciativa das autoridades alemãs. As declarações foram citadas pela imprensa alemã e feitas a uma das estações de televisão do país, que as gravou e transmitiu.

A HISTÓRIA DE PORTUGAL foge a sete pés dos seus fantasmas. Não reconhece os inúmeros massacres perpetrados pelos portugueses na África, na Ásia e na América… Não reconhece o desastre que foi a colonização portuguesa de 500 anos, mas aponta o dedo à descolonização… de forma crucial, para este ponto de chegada. Mas isto não retira significado e tremendo valor pedagógico ao processo alemão actual. De outro lado, reivindicando aquilo que os alemães já possuem e portanto não precisam de reivindicar, isto é, “uma consciência histórica aguda”, temos a auto-satisfeita declaração de “universalidade” para uma História, a portuguesa, que parece estar, para o Presidente, ao nível do Campeonato Europeu de Futebol: ambos, História e Euro 2004, estão presentes na memória para “reforçar o nosso nível de auto-estima”. A ida do Presidente aos Jogos é toda ela concebida no sentido que acabo de sintetizar. Basta pensar no próprio nome do navio-escola, “Sagres”, alusivo a uma localidade portuguesa que, como se sabe há muito, nada teve a ver com as navegações do século XV. O Estado português, sintomatizado pelo seu Presidente, dificilmente há-de ignorar

a História de si próprio, mas promove o esquecimento e a ignorância em nome da auto- estima dos portugueses. Definindo a História de Portugal como de “vocação universalista”, o Estado e o seu Presidente não suportam sequer o conceito de “vocação imperial” que a historiografia cultural séria atribui mesmo a algumas faixas de resistência (quanto mais às do poder) no Portugal do século XVI, o “tempo das glórias”. Este é sinal claro de que temos uma nação a viver muito mal com o seu passado. O que o Presidente prova com o seu texto é que, ao menos para ele, é impossível a reclamada “revisitação do passado”, a não ser que por ela se entenda uma revisitação já limitada pela “vocação universalista” que supostamente lhe subjaz. Por outras palavras (está ele a dizer), olhemos para o “nosso” passado, mas não o façamos para o conhecer, façamo-lo para confirmarmos perante nós próprios a nossa “universalidade”!

A História de Portugal foge a sete pés dos seus fantasmas. Não reconhece os inúmeros massacres perpetrados pelos portugueses na África, na Ásia e na América desde que Gomes Eanes de Zurara, ainda na primeira metade do século XV, conta o episódio grotesco do primeiro encontro entre portugueses e as populações da África subsariana, uns dez ou doze valentes armados às ordens do Infante D. Henrique contra um homem só, um africano que ainda assim se bateu valentemente (conforme conta o mesmo Zurara) para não ser morto ou escravizado. Não reconhece o desastre que foi a colonização portuguesa de 500 anos, mas aponta o dedo à descolonização, como se ainda não se pudesse imaginar sem império ou, como se diz agora, sem “lusofonia”. Não reconhece as guerras civis, as hipocrisias, as traições, os filhos contra pais e os pais contra filhos ao longo dos séculos, logo desde aquilo que D. Afonso Henriques fez à própria mãe na Fundação. A imagem de Portugal que o Presidente promove jamais poderá estar com os espectros e assumi-los como a realidade que são. Agarrados, como a uma fina corda, a uma noção de Portugal cada vez mais esvaziada de sentido — de que um sintoma ironicamente trágico foi a comoção do Presidente pelo número de bandeirinhas portuguesas, afinal “made in China”, que o país ostentou nas janelas e varandas durante o Campeonato Europeu de futebol — nós portugueses deveremos, segundo esta doutrina estatal-presidencial, ficar assim, pendurados até à última, para que o bolo não amargue. É esta a “consciência aguda” da História que o Presidente nos pede. Quando a corda rebentar de vez, a sua esperança, imagino, será a de que ao menos ele já cá não esteja para ver...

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IMPASSES e desafios Hélio J. S. Alves Universidade de Évora

A chuva sobre a infância (…) Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre, isto depois de o Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois são infelizes até que se separam. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância, lá na Gabela, durante as férias grandes,

enquanto tentava construir uma cabana nos troncos de uma acácia. Fui feliz para sempre nas margens de um riacho, uma corrente de água tão humilde que dispensava o luxo de um nome, embora orgulhoso o suficiente para que o achássemos mais do que simples riacho - era o Rio. Corria entre lavras de milho e mandioca, e íamos para lá caçar girinos, passear improvisados barcos a vapor, e também, à tardinha, espreitar as lavadeiras a tomar banho. Fui feliz com o meu cão, o Cabiri, fomos os dois felizes para sempre, perseguindo rolas e coelhos através das tardes longas, jogando às escondidas em meio ao capim alto. Fui feliz no convés do Prín-

cipe Perfeito, numa viagem eterna entre Luanda e Lisboa, lançando ao mar garrafas com mensagens ingénuas. A quem encontrar esta garrafa agradeço que me escreva. Nunca ninguém me escreveu. Nas aulas de catequese um velho padre de voz sumida e olhar cansado tentou, sem convicção, explicar-me em que consistia a Eternidade. Eu achava que era um outro nome para as férias grandes. O padre falava em anjos e eu via galinhas. Até hoje, aliás, as galinhas são o que conheço mais aparentado aos anjos. Ele falavanos na bem-aventurança e eu via as galinhas ciscando ao sol, escavando ninhos na areia, revirando os pequenos olhos

de vidro, num puro êxtase místico. Não consigo imaginar o Paraíso sem galinhas. Nem sequer consigo imaginar o Bom Deus, estendido preguiçosamente numa fofa cama de nuvens, sem que o rodeie uma mansa legião de galinhas. Aliás, nunca conheci uma galinha má - você conheceu? As galinhas, como os salalés, como as borboletas, são imunes ao mal.» A chuva redobra de intensidade. É raro chover assim em Luanda. Félix Ventura limpa o rosto a um lenço. Ele ainda usa lenços de algodão, enormes, em padrões clássicos, com o nome bordado a um canto. Invejo a infância dele. Pode ser falsa. Ainda assim a invejo.

CARTAS na mesa José Eduardo Agualusa O vendedor de passados: Dom Quixote, 2004, p. 116/118.


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À LUPA José Paulo Serralheiro

TRABALHO INFANTIL

O drama do trabalho infantil na América Latina Na América Latina e no Caribe, 17 milhões de crianças, vítimas da pobreza e da exploração, não têm tempo para brincar, estudar e muito menos receber afecto. As suas pequenas mãos estão muito ocupadas tentando ganhar o «pão nosso de cada dia», trabalhando em minas, fabricando explosivos, administrando tarefas domésticas ou pegando em armas, entre muitas outras actividades perigosas. Quando são pagas, as crianças recebem até 80% menos do que os adultos, trabalham sem as mais elementares condições de segurança e com frequência cumprem jornadas de 12 horas. Os acordos internacionais condenam o trabalho dos menores de 15 anos quando a tarefa ameaça a sua saúde, moralidade ou estudos. Porém, nem todo o trabalho infantil é ilegal. A ONU e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) toleram que nos países pobres as crianças entre os 12 e os 14 anos desempenhem tarefas leves, com um máximo de 14 horas semanais. Na tímida linguagem das convenções internacionais, a exploração sexual da criança também faz parte do universo do «trabalho infantil», apesar de admitir que se trata de “uma das suas formas mais aterradoras”. A escravidão, a servidão por dívidas, o recrutamento forçado em conflitos armados, a pornografia e o narcotráfico são contas do mesmo rosário. De um total de 246 milhões de crianças obrigadas a trabalhar no planeta, 17 milhões são latino-americanas menores de 15 anos. A esses números, é preciso acrescentar outros dois milhões de crianças entre os 5 e os 17 anos que são sexualmente exploradas, segundo a OIT. Porém, para os especialistas esses dados representam apenas a ponta do iceberg. Curiosamente, todo o mundo concorda em combater o trabalho infantil. Porém, na prática, a tragédia não pára de aumentar. Vinte e seis países da América Latina ratificaram a Convenção da OIT de 1999 para a erradicação das piores formas de trabalho infantil. “Porém, em 2004 a situação na região é desastrosa”, afirma Bruce Harris, director para a América Latina da organização não governamental Casa Aliança, que defende os direitos da criança. O problema não se explica apenas pela pobreza. O factor cultural aumen-

ta o drama e torna-o invisível para uma sociedade que o aceita como parte da formação e do desenvolvimento de aptidões para a vida adulta. “Há uma estreita relação entre pobreza e trabalho infantil, mas o factor cultural não é o menos importante. Se todas as crianças de famílias pobres trabalhassem, a quantidade de menores trabalhadores no mundo seria quatro vezes maior”, afirma Carmen Moreno. Em algumas famílias de poucos recursos, explica, existe a ideia arraigada de que entrar mais cedo para o mercado de trabalho melhorará as oportunidades futuras da criança. “Se a família não valorizar a educação e considerar que precisa da mão-de-obra do seu filho, vai contrapôr o trabalho à educação”, afirma. Para Harris, a sociedade latinoamericana aceita que as crianças pobres trabalhem como remédio para as suas carências: “Os países sentem que o trabalho infantil é algo inevitável. Como sociedade decidimos aceitar que é natural que uma criança pobre trabalhe quando deveria estar na escola”. Porém, se o custo social de uma criança não educada é alto, o custo económico de mandá-las para a escola pode exceder o orçamento de uma família pobre. “O conceito de gratuidade da educação é muito flexível, a educação tem custos indirectos muito altos”, reconhece Moreno. “Existem estudos suficientes que demonstram que uma criança que passa mais tempo na educação formal produz mais rendimentos durante a sua vida, mais riqueza para o país e para si mesma”, afirma Harris. “Uma criança que trabalha conspira contra o seu desenvolvimento, será um adulto pouco qualificado que não poderá cobrir as necessidades básicas da sua família e os seus filhos terão que trabalhar, num círculo de pobreza que se repete”, diz Patrício Cue-

vas, da sede chilena da «World Vision Internacional». “Nem todas as crianças trabalham por necessidade económica, mas à medida que o desemprego dos pais se torna significativo, a família busca outras formas de sobrevivência, como explorar a imagem infantil. Na rua, uma criança inspira mais pena que um adulto”, destaca Moreno. Do lado de quem contrata a mãode-obra infantil, a principal motivação é poupar dinheiro. Não existem estimativas sobre o deslocamento do emprego do mundo adulto para o infantil. “Porém, se na América Latina se fala de 18 milhões de adultos desempregados, como é possível que existam 17,4 milhões de crianças entre os 5 e os 14 anos produzindo riqueza?”, pergunta Moreno. Em muitos países latino-americanos, o emprego de crianças no serviço doméstico é considerado um alívio para as famílias menos favorecidas, que as entregam como afilhados, sob promessas de garantia de escolaridade, sustento e afecto. Porém, na maioria dos casos estas crianças são vítimas de maus tratos psicológicos, castigos corporais e humilhações. São consideradas um «bem» do lar, trabalham isoladas e, às vezes, perdem todo o contacto com o seu grupo familiar. No total, dois milhões de crianças trabalham no serviço doméstico na América Latina e quase 90% são meninas. Quase 300.000 meninos soldados participam de mais de 30 conflitos armados no mundo, segundo o Unicef. Apesar de nem sempre empunharem armas, são utilizados como mensageiros, sentinelas, cozinheiros e como servos sexuais de outros soldados. Alguns foram sequestrados ou forçados a unir-se às tropas, outros chegam pelo caminho da pobreza, da discriminação ou pelo desejo de vingar a morte de algum parente por parte de grupos rivais. A falta de oportunidades

e as fantasias de poder despertadas pelo manejo das armas são as principais causas do alistamento voluntário das crianças. No Brasil, Costa Rica, República Dominicana ou no Peru, centenas de meninos e meninas com idades entre os 10 e os 17 anos vendem o seu corpo para poder sobreviver ou levar algum alimento para as suas famílias. Em muitos casos, os aliciadores das redes de prostituição infantil seduzem as famílias pobres com a promessa de altos salários para os seus filhos como funcionários de hotéis e restaurantes inexistentes. A ONG «Save The Children» negase a denunciar apenas os traficantes de crianças e aponta uma acção mais ampla. A organização argumenta que o aumento da prostituição infantil tem como principal responsável o cliente. Por isso, Harris afirma que “a prioridade é educar os homens de que não é correcto ter sexo com uma menina de 14 anos ou assobiar para as meninas à saída dos colégios. “É preciso uma mudança na sociedade”. Porém, a prostituição infantil atinge outras dimensões e organiza-se como um subproduto vinculado ao turismo. “Pela internet, cada vez mais se oferece este tipo de turismo sexual”, afirma Carmen Moreno. Na América Latina, os clientes vêm fundamentalmente da América do Norte e da Europa. Na sua maioria são homens adultos, de bom nível económico, que acham mais fácil cometer este crime em países com vigilância menos apertada. Cerca de 20% das viagens internacionais são feitas com objectivos sexuais e 3% delas são protagonizadas por pedófilos, segundo dados apresentados no I Congresso Mundial sobre Exploração Sexual Infantil, realizado há alguns anos em Estocolmo. Fonte: AFP

TRABALHO INFANTIL

Os direitos das crianças segundo as organizações internacionais

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A Organização das Nações Unidas (ONU), através do seu Fundo para a infância (Unicef) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estabeleceram os direitos das crianças e as linhas básicas para protegêlas de qualquer forma de exploração. A Convenção sobre os Direitos da infância, adoptada pelas Nações Unidas em 1989, reconhece o direito de todo o menor de 18 anos a estar protegido contra a exploração económica e contra o desempenho de qualquer trabalho peri-

goso que comprometa a sua educação ou possa ser nocivo para a sua saúde e desenvolvimento físico, mental ou moral. A Convenção Internacional 138 da OIT, de 1973, estabelece a idade mínima de admissão ao emprego de acordo com a conclusão da escolaridade obrigatória ou em qualquer caso aos 15 anos, mas permite baixar esse limite para os 14 anos em países com um sistema educacional ou económico de desenvolvimento insuficiente. Dentro dessa excepção e para per-

mitir uma ratificação mais ampla da convenção, a OIT deixou aberta a possibilidade de os Estados Unidos estabelecerem uma idade mínima de 12 anos para os trabalhos leves, entendidos como aqueles que não comprometam a saúde, a educação ou a moralidade da criança e que não excedam as 14 horas semanais. Em 1999, a adopção da Convenção 182 sobre as piores formas de trabalho infantil foi um marco fundamental para a proteção dos direitos da infância.

O texto, ratificado por três de cada quatro Estados-membro da organização, centrou a atenção mundial na necessidade de adopção de medidas urgentes para erradicar aquelas formas de trabalho infantil que põem as crianças em risco. Entre elas está a exploração sexual comercial, a pornografia infantil, a escravidão, o tráfico de crianças, o seu recrutamento como combatentes em conflitos armados e o trabalho infantil doméstico. Fonte: AFP


O lazer é uma necessidade e uma manifestação humana

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O lazer sempre esteve presente na vida do ser humano. As necessidades e os valores do lazer, no entanto, são alterados de acordo com os contextos sociais e históricos. Na visão do sociólogo Nelson Carvalho Marcelino, (Lazer e Humanização.2a. ed. Campinas. Papirus, 1995) estudioso do tema, existem, atualmente, duas correntes antagônicas que orientam a vivência do lazer. A primeira corrente enxerga o lazer como mercadoria, um entretenimento a ser consumido e que tem como finalidade contribuir para que as pessoas suportem as frustrações e as insatisfações crescentes geradas pelo tipo de vida que levam na sociedade. A segunda corrente concebe o lazer como prática social, historicamente gerada e que pode, na sua vivência, questionar os valores dominantes no nosso modelo de sociedade. O lazer como mercadoria, proposto pela primeira corrente, é oferecido de maneira bastante sedutora pela mídia, pelas pessoas e por diversas instâncias sociais e nos induz ao modismo, à padronização, ao consumismo e, em muitos casos, à agressividade. Diversas atividades podem ser analisadas dentro dessa perspectiva, tais como: passeios, festas,

saídas para compras, orgias, pichações, rachas e aventuras perigosas, vivenciadas de maneira individual ou grupal, que podem deixar marcas de vazio, insatisfação e, até mesmo, de medo, angústia, fracasso, vergonha e tristeza. Exemplos têm mostrado que esse tipo de lazer tem conduzido o ser humano ao individualismo, à violência e à barbárie. Para ilustrar esse modelo, citaríamos apenas duas tragédias, a primeira é o caso dos jovens de Brasília, que resolveram “brincar” de queimar um índio que dormia num banco de ponto de ônibus; a segunda referese ao rapaz que adorava jogos de videogame e resolveu ir a um Shopping Center “jogar” de matar pessoas. A sociedade precisa estar atenta a essas questões, pois, ganhamos em rigor, cientificidade e tecnologia, mas, por outro lado, perdemos em espontaneidade, simplicidade, solidariedade e humanização. Por isso, a questão da promoção da humanização continua a ser um dos desafios de homens e mulheres que podem edificar o seu contexto histórico, resgatando

O DESENVOLVIMENTO de uma cultura do lazer consciente e crítica pode contribuir para questionar e superar valores já cristalizados, entre outros, a competição exacerbada, o individualismo, a prepotência e o cinismo. e apontando atitudes, comportamentos e valores comprometidos com uma sociedade mais digna e humana. É pensando nesse desafio, portanto, que o desenvolvimento de uma cultura do lazer consciente e crítica pode contribuir para questionar e superar valores já cristalizados, entre outros, a competição exacerbada, o individualismo, a prepotência e o cinismo. Por essas razões, defendemos o lazer apontado pela segunda corrente e que é concebido como uma dimensão humana, cujas características são: a alegria, a diversão, o respeito ao outro, a solidariedade, o prazer e a busca por uma qualidade de vida melhor. Pais, professores e instituições educacionais devem se preocupar

em educar as crianças e os jovens para o lazer. É preciso, desde cedo, despertar para a beleza do brincar, ensinar a usufruir o divertimento das atividades lúdicas e a experenciar aventuras sem riscos e perigos. Quanto aos conteúdos, estes devem ser abrangentes e não considerar apenas o esporte e a recreação, mas outros tipos que são: o físicodesportivo, o artístico, o manual, o intelectual, o social e o turístico. Não podemos vivenciar qualquer atividade de lazer, mas optar por aquela que promova a convivencialidade, a inclusão, a humanização e que desenvolva intensamente todas as dimensões humanas, em todas as situações vividas. É imprescindível tornar prioritário, na nossa sociedade, que os seres humanos se eduquem para a vivência de um lazer crítico, lúdico, solidário e que possa, inclusive, influenciar as nossas relações interpessoais e possibilitar contatos sociais, convívio fraterno, criatividade e ludicidade, melhorando dessa forma a nossa existência humana.

OPINIÃO José Milton de Lima Departamento de Educação. Chefe de Departamento da Faculdade de Educação Física.

Márcia Regina Canhoto de Lima Departamento de Educação Física Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente - S.P., Brasil

A instabilidade à espera de resultados O ambiente de instabilidade, incerteza, ansiedade, desespero e desmotivação que se vive em muitas escolas neste início de ano lectivo, e que decorre da colocação tardia dos professores, leva-nos a reflectir sobre alguns aspectos. Questionamos em que condições poderão decorrer as aprendizagens dos alunos quando a totalidade dos professores não está colocada e quando a maioria dos que pertencem aos quadros aguarda, ansiosamente, uma colocação que os poderá fazer mudar de escola. Indagamos de que forma se pode-

rão concretizar práticas de gestão flexível do currículo quando, contrariamente ao que já era prática habitual em muitas escolas, não há tempo nem espaço para, previamente, reunir, trabalhar em equipa, partilhar experiências, reflectir, fazer formação contextualizada. Toda a programação inerente às diferentes estruturas de gestão intermédia da escola, e que antecedia as actividades lectivas, está irremediavelmente desajustada e comprometida no tempo. Nalgumas escolas nada pode avançar, não há professores, há que esperar o resultado dos concur-

sos. Torna-se prioritário que os professores cheguem às escolas e comecem a dar aulas. O atraso significativo com que se começa e a pressão que se antevê com os exames nacionais, e que exigem o cumprimento dos programas, poderão sobrepor-se à filosofia da reorganização curricular e a todo um conjunto de práticas inerentes à mesma, o que certamente é de lamentar. Ainda que este cenário possa ser minimizado, questionamos até quando vamos prosseguir com um processo de recrutamento e selecção de professores

centralizado e comprometedor da vida escolar. Será este o processo mais vantajoso para a escola ou seria melhor para todos, em particular para os alunos, que cada escola, no quadro da sua autonomia, pudesse seleccionar e manter os professores que melhor se adequam à concretização do seu Projecto Educativo? Não sendo uma questão pacífica, defendemos que as escolas deveriam ser responsabilizadas pelo recrutamento e selecção dos seus professores de forma a assegurarem um ensino de maior qualidade.

E AGORA professor? Adélia Lopes Professora Presidente do Agrupamento Rainha Santa Isabel, Leiria


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A escola como centro recriador da memória e da cultura local

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Num tempo veloz e fugaz, em que a alienação, o isolamento e o silenciamento das experiências, nos forçam a perder nossa memória coletiva, rememorar e compartilhar memórias é uma ação rebelde que adquire um caráter de resistência política: a memória compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o tempo acelerado da vida social nos impõe.

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AFINAL onde está a escola? Carmen Lúcia Pérez Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, USP. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, UFF, Rio de Janeiro Investigadora do GRUPALFA

A contemporaneidade produziu uma política de narrativas que engendra representações de mundo e agencia a realidade social, construindo assim, sistemas de conhecimento e estruturas de inteligibilidade que organizam a vida cotidiana. Num tempo veloz e fugaz, em que a alienação, o isolamento e o silenciamento das experiências, nos forçam a perder nossa memória coletiva, rememorar e compartilhar memórias é uma ação rebelde que adquire um caráter de resistência política: a memória compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o tempo acelerado da vida social nos impõe. Resgatar, memórias e narrativas no cotidiano da escola, afirmando-a como lugar de pertencimento, é reatualizar oportunidades preexistentes e desenvolver possibilidades latentes de recriar, através da prática educativa, a história local a partir do lugar: realidade social experimentada diretamente e oportunidade de realização de uma história diferente. Resgatar a memória coletiva de

uma comunidade local é desvelar a tória local, busca reinventar a escola tessitura das redes de saberes que como ‘um espaço de sociabilidade e dão sentido as nossas ações cotide práticas culturais diversas“. Resdianas, compartilhando-as coletigatar acontecimentos e processos vamente, através de um processo vividos, narrar experiências, comeducativo que tem como ponto de partilhar memórias e saberes, é repartida e como ponto de chegada, significar a prática educativa como a reinvenção da um espaço-tempo escola como um RESGATAR A MEMÓRIA de autoconhecilugar apto a acocoletiva de uma comunidade mento e a escola lher o passado e a local é desvelar a tessitura das como um lócus de criar o futuro. redes de saberes que dão sentido as conscientização É nesta persnossas ações cotidianas… política e cultural. pectiva que vejo Tendo como a escola como um centro recriador princípio que o ato educativo é um da memória e da cultura local: como ato político (Freire,1997), acredito parte do desafio contemporâneo de que a tarefa da educação é desenprojetar a escola como um lócus de volver e consolidar novas práticas preservação e socialização de marde convivência e solidariedade, cacas culturais e a prática educativa, pazes de enfrentar o desafio de recomo um espaço plural de memória cuperar a diferença como relação e narração. de alteridade: relação efetivamente Pensar a escola como um centro construída, que tem na solidariedade recriador da memória, da história e o fundamento para a construção de da cultura local, significa dar conseuma postura educativa que não vê qüência a uma prática educativa que, o outro, a outra cultura como deficiao procurar articular saberes vividos ência ou como mera diferença, mas e praticados com o conhecimento o reconhece como legítimo outro. O escolar, com a memória e com a hisque implica pensar a sala de aula e a

escola, como espaço plural que congrega diferentes sujeitos e diferentes culturas, que traduzem diferentes formas de organizar o real e responder aos desafios da vida cotidiana. Uma educação fundada na lógica da diferença tem como ponto de partida e como horizonte à inclusão — aqui entendida como abertura ao outro, como esforço de descentração. No sentido epistêmico, tal postura coloca a diferença como relação, como alteridade, como possibilidade de cooperação e reciprocidade, que se traduz em atitudes de solidariedade. Pensar a escola como centro recriador da memória, da história e da cultura local é produzir novos sentidos para a ação educativa escolar e se traduz numa ação rebelde, instituinte de novas práticas tanto no que se refere à organização curricular e as ações pedagógicas desenvolvidas cotidianamente na sala de aula, quanto na formação de professores, ou ainda no âmbito das relações escola-comunidade e com o contexto sociocultural mais amplo.

NOBEL ALTERNATIVO

Prémio Nobel “alternativo” divulga nomeados

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O prémio “Right Livelihood” 2004, conhecido como o Nobel da Paz “alternativo”, foi atribuído recentemente ao cientista argentino Raúl Montenegro, à militante pró-direitos humanos Bianca Jagger e a um grupo russo que investiga os abusos praticados durante a era soviética. O prémio, criado em 1980, foi anunciado na cidade indiana de Hyderabad, para onde se mudou da Suiça, onde teve origem, para estar mais perto dos países em desenvolvimento. Dotado de dois milhões de coroas suecas (268 mil euros), o

prémio será compartilhado por Montenegro, Jagger e pela Sociedade do Memorial Histórico, Educativo e Caritativo de Moscovo, anunciou o fundador do “Right Livelihood”, Jakob von Uexkull, ex-deputado do Parlamento europeu. O biólogo Raúl Montenegro é uma pedra no sapato do lobby nuclear latinoamericano, lutando nos tribunais e meios comunitários para divulgar os riscos que representam as centrais nucleares. Nascida na Nicarágua, Bianca, exmulher do Rolling Stone Mick Jagger,

com quem foi casada oito anos, é uma conhecida defensora dos direitos humanos que milita em particular contra a pena de morte. O Memorial Histórico, Educativo e Caritativo de Moscovo foi fundado por dirigentes democráticos russos em 1988, com a finalidade de documentar os crimes cometidos nos gulag e dar apoio aos sobreviventes e seus familiares. Von Uexhull acrescentou que os “Right Livelihood” honorários foram concedidos a dois indianos, Asghar Ali Engi-

neer, um veterano activista contra a violência inter-religiosa, e Swami Agnivesh, que, em 1974, escreveu um tratado sobre o “Socialismo védico” para as classes indianas mais desfavorecidas. “Estes dois reformistas sociais foram premiados pelo seu compromisso e cooperação no sntido de promover os valores de coexistência, tolerância e entendimento entre os países do Sul da Ásia”, disse. Fonte: AFP


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A Cidade Maravilhosa: paisagem, colonização e resistência cultural

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De volta ao Rio, penso na minha experiência em Coimbra. Oito meses nos quais percebi e aprendi um pouco mais sobre o “velho continente”, suas formas de criar e de preservar, e suas formas de destruir e de negar. O último “grande” evento que presenciei, o acidente na costa da Galícia, escandalizou-me, tanto pelas conseqüências ambientais, como pela atitude das autoridades, mais preocupadas com suas próprias posições de força do que com as populações ou a gravidade do acidente. Descubro a mesma preocupação na criação e manutenção das posições de força na história da “grandiosidade europeia”. De passagem pela Normandia, estive em Bayeux, uma pequena cidade cujos prédios impecavelmente preservados e as ruas enfeitadas servem de moldura à grande atracção do lugar, sua tapeçaria. Um bordado sobre tela de linho que, em 70 metros, conta a saga de “Guilherme, o conquistador” na Inglaterra. Tecida/bordada em princípios do século XII, a peça ainda está quase perfeita e sua beleza é extraordinária. Exposta no Centro Guilherme o Conquistador, recebe os visitantes maravilhados, expondo-lhes a grandiosidade da história do país e preserva, com isso, a obra e a auto-estima dos habitantes locais, a posição de força francesa perante os “outros”, ingleses ou turistas, conquistados, pelo poder da força ou da beleza e de sua preservação. Em Lisboa, o grandioso e belo mapa mundi que cobre o chão em frente à Torre dos Descobrimentos, com sua estética primorosa, mostra aos visitantes, Portugal, a grande potência dos séculos XV e XVI, “descobrindo” lugares onde já viviam populações que, sem força para resistir às velas e armas portuguesas, descobriram-se subalternas. A posição de força do país perante os “selvagens” permitiu-lhe destruir o que não interessava manter, preservar a ideia das grandes descobertas e, com is-

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Em Lisboa, o grandioso e belo mapa mundi que cobre o chão em frente à Torre dos Descobrimentos, com sua estética primorosa, mostra aos visitantes, Portugal, a grande potência dos séculos XV e XVI, “descobrindo” lugares onde já viviam populações que, sem força para resistir às velas e armas portuguesas, descobriram-se subalternas.

No seio da contradição entre a riqueza branca e europeia e os seus “outros” existem muitos Rios de Janeiro.

so, ampliar essa mesma força. No Rio de Janeiro, as marcas dessa contraditória acção de criação/destruição, preservação/aniquilamento se espalham pelos principais pontos da cidade, em prédios monumentais e em formas culturais que resultaram desse processo, no qual a resistência dos subalternizados desempenhou um papel fundamental. Das Igrejas e Mosteiros aos “nossos” museus, as culturas portuguesa e francesa, se erguem e se exibem nos lembrando que nossa história foi traçada pela força de uma europeidade marcada na nossa paisagem urbana e na nossa identidade. Depois de visitar a “sede” de

nossa erudição, as marcas parecemme ainda mais evidentes. Por outro lado, essa mesma europeidade se encontra com aqueles que, não tendo sido “preservados”, insistem em estar aqui. No seio da contradição entre a riqueza branca e europeia e os seus “outros” existem muitos Rios de Janeiro. Na nossa sociabilidade alegre e informal, no colorido das nossas gentes, está o modo próprio de estar no mundo do carioca. Junto com a estética privilegiada da paisagem, essa alegria quase natural e as contradições sociais fazem do Rio de Janeiro um lugar de força única, uma Cidade Maravilhosa.

FORA DA ESCOLA também se aprende Solange Castellano Fernandes Monteiro Grupo ALPHA. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

PATRIMÓNIO

Muralha da China A Grande Muralha da China já não é o que era. Com algumas das suas secções derrubadas para abrir caminho a estradas e outras partes retocadas para atrair turistas, aquele que é considerado o mais emblemático monumento do país e um dos mais importantes do mundo sofre os efeitos do desenvolvimento que tem marcado a China moderna. Na área mais visitada, em Badaling, a noroeste de Pequim, corredores e muros sumptuosos recém construídos recebem multidões de turistas, enquanto vendedo-

res, usando auto-falantes oferecem água mineral e massa instantânea. “Em algumas partes ficou tão desfigurada que já não sabemos ao certo o que é ou não a Grande Muralha”, diz He Shuzhong, porta-voz da Administração Estatal de Herança Cultural. A muralha foi incluída na Lista de Património da Humanidade da Unesco em 1987, mas as autoridades chinesas estão longe de garantir a sua preservação. A tarefa cabe à jurisdição dos governos locais, mais interessados em capitalizar o turismo do que em proteger o património.

No condado de Dingbian, na província de Shaanxi, um empresário foi multado o ano passado em 1,5 milhões de iuanes (cerca de 200 mil euros) por derrubar três partes do muro para construir estradas, mas o governo local, que aprovou o projecto, não sofreu qualquer admoestação. Como resultado desta crescente voragem, dos 6.300 quilómetros da estrutura original, construída durante a Dinastia Qin (221-206 a.C.) e reconstruída na Dinastia Ming (1368-1644), restam actualmente menos de 2.500 quilómetros.

Mercê das queixas crescentes dos especialistas em arte antiga, o governo chinês começa a acordar para o facto de que a forma como lida com o caso não está a resultar e que não pode continuar a ignorar a sua deterioração. Dong Yaohui, secretário-geral do grupo consultivo do governo Sociedade da Grande Muralha da China, garante que este aprovará regulamentações específicas para proteger a estrutura até ao final do ano. Fonte: AFP

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Os emigrantes

RETRATOS Andreia Lobo

Estudava, mas não conseguia marrar. Mesmo assim, Joana chegara ao 12º ano sem chumbos. Pensava em ir para a faculdade, ainda que não soubesse bem para quê. Mas tarde descobriu que o sacrifício para entrar na universidade pública, a mais barata, devia ter começado logo no 10º ano. Menos namoro, menos discoteca. Enfim, menos com menos daria mais. Mas a bela matemática não era o forte da “cachopa”. E não podendo os pais pagar a sua transferência para o externato no secundário, Joana deveria ter marrado. O pai bem avisara Joana que se queria ser “alguém na vida” – alguém como ele nunca havia sido – “tinha de comer a relva” e dar o “tudo por tudo no sprint final”. Mas Joana – que todos os anos convencia a mãe a pedir ao médico o atestado de dispensa da educação física – nunca entendera muito bem o alcance das palavras do pai. Pelo menos, até ver que a média conseguida era curta demais para “atingir o objectivo” de

poder estudar para ter alguma das profissões dos seus sonhos. Por isso, a ideia de andar pelo mundo fora a salvar a vida às vítimas da guerra e da fome ficara de lado. Bem ao lado da vontade de lutar pela defesa dos direitos dos mais desfavorecidos. Sem saber que rumo dar aos estudos, Joana acabara por escolher um dos muitos cursos, de mensalidade acessível, que vira anunciado num desdobrável de uma universidade privada. A euforia de ser caloira fê-la esquecer que detestava o curso, mas chegado o fim do ano Joana não aguentou e desistiu. “A pagar por pagar”, explicara aos pais, pagaria um curso de “jeito”. Bastava mais algum dinheiro e já poderia frequentar um curso de Medicina ou de Direito numa faculdade privada de qualidade. O dinheiro extra seria ganho com o seu suor. Os pais aprovaram a ideia e Joana foi trabalhar para um supermercado. Os primeiros 200 euros de salá-

rio serviram a Joana de desforra pelo que nunca pudera comprar. Depois de umas quantas roupas novas, e de marca, os restantes salários foram poupados a um máximo de 100 euros/mês. Mais era impossível. Um ano passado sobre o começo da “jorna”, o saldo da conta poupança jovem de Joana era de 1200 euros. Uma quantia que os pais sabiam resultar de um bom esforço do qual se orgulhavam bastante. Mas que um comum administrador de uma faculdade privada de qualidade diria servir apenas para pagar três meses de aulas. Sem dramatismos, Joana continuou a sua escalada pelo mundo laboral. Conseguiu subir até ao patamar do telemarketing. Horas e horas de auscultador colado ao ouvido e 300 euros no fim do mês. “Nada mau” pensou Joana por uns momentos até que a avisaram de dois senãos mensais. Segurança Social e IRS. O seu primeiro ano de isenção tinha acabado pelo

que teria agora obrigatoriamente de pagar 92.86 euros para a “reforma” e deixar “retidos na fonte” 30 euros para as finanças. Ao todo, 122.86 “vicissitudes” do trabalho independente. “Um escândalo”, bradou o pai de Joana, sem saber a quem insultar por tal despautério. O panorama estava longe de ser animador quando João, a cara-metade de Joana, surgiu em casa da rapariga com a proposta de emigrarem para a Suíça. Um primo seu, de férias em Portugal depois de uma jornada de seis meses de trabalho nos Alpes, prometia arranjar emprego para o casal num hotel na montanha. Trabalhariam nove horas diárias e ganhariam 1500 euros por mês. Hospedagem em quartos para o efeito na estância balnear onde o hotel estava localizado e refeições feitas lá mesmo, sem custos acrescidos. Não foi preciso fazer muitas contas. Com o dinheiro poupado Joana pagou a viagem de avião. E trocou os sonhos pelo ramo hoteleiro.

SUICIDOLOGIA

Suicídio mata mais do que guerras e assassinatos somados

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O suicídio está na origem de cerca de um milhão de mortes anuais, quase metade das mortes violentas no mundo, fazendo inclusivamente mais vítimas do que as guerras e os homicídios somados, revela a Organização Mundial de Saúde (OMS), estimando que este número possa ascender a 1,5 milhões até 2020. De acordo com estimativas da OMS, entre 10 a 20 milhões de pessoas tenta o suicídio anualmente. As mulheres fazemno com maior frequência, mas os homens são mais eficazes. “Os homens geralmente recorrem a meios mais radicais do que

as mulheres”, explica Lars Mehlum, presidente da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP, em inglês) e professor de psiquiatria e suicidologia da Universidade de Oslo, na Noruega. “Os números tendem a aumentar com a idade, mas tem havido um crescimento alarmante de comportamentos suicidas de jovens entre os 15 e os 25 anos”, diz este investigador, explicando que tal se deve ao facto de as expectativas de sucesso da juventude serem hoje maiores por comparação a períodos anteriores e de muitos jovens não suportarem o con-

fronto com a realidade. Em geral, as principais causas associadas ao suicídio são a pobreza, o desemprego, a perda de um ente querido, discussões e problemas legais ou profissionais. “Uma história familiar de suicídio, bem como o abuso de álcool e drogas e abuso sexual na infância, isolamento social e alguns problemas mentais, incluindo depressão e esquizofrenia, também podem contribuir para o elevado número de suicídios”, lembra a OMS. Actualmente a maior incidência de suicídio situa-se no Leste Europeu - sobre-

tudo na Rússia e na Ucrânia – e as taxas mais baixas na América Latina, nos países muçulmanos e em alguns países asiáticos. Entre as formas de prevenção, a OMS refere uma recente decisão das companhias farmacêuticas de embalar os analgésicos em envelopes em substituição dos frascos, que, de acordo com a organização, teve um impacto significativo no seu uso como forma de suicídio. As atenções voltam-se para o controlo do acesso a pesticidas – uma técnica disseminada na China rural – e para as armas de fogo. Fonte: AFP


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A Cidadania dos Quantis Por razões históricas, sociais e culturais muito diferenciadas, muitos Estados-nação ainda continuam agarrados a uma concepção restrita de cidadania, muito longe, portanto, de uma concepção avançada que signifique não apenas o reconhecimento de direitos cívicos e políticos mas também a realização efectiva de direitos (sociais, económicos, culturais, educacionais…) Em recente viagem ao Brasil para, entre outras coisas, atender a compromissos académicos e participar em alguns congressos de educação — o mais importante dos quais foi, sem dúvida, o Fórum Mundial de Educação (III edição), realizado em Porto Alegre entre 28 e 31 de Julho —, aproveitei o facto de estar mais a Sul para ir conhecer o Parque Nacional de Iguaçu e as suas famosas cataratas, declarados Património Natural da Humanidade pela UNESCO em 1986. A experiência foi muito estimulante e será certamente inesquecível, como não poderia deixar de ser, sobretudo porque, depois de um primeiro dia nebuloso e com persistente garoa (chuva miudinha) — permitindo, mesmo assim, um ambiente envolvente e propício a estranhas sensações de (des)ocultação e encantamento — pude, no dia seguinte, já com um sol radiante e um céu límpido, atrever-me a sobrevoar as Cataratas de helicóptero, confirmando assim, com outros ângulos de visão, a

imensidão e beleza da paisagem preservada e o prodígio da Natureza. Estando eu num país (quase um continente) repleto de riquezas naturais e dotado de um povo criador, alegre, inteligente e imaginativo, mas, ao mesmo tempo, num país cheio de grandes e, muitas vezes, chocantes contrastes e injustiças sociais, voltei a sentir, de forma mais concreta, a importância das lutas (nacionais e transnacionais) por um mundo com maior igualdade e justiça, onde todos os seres humanos possam viver e concretizar os valores da liberdade e da responsabilidade, sendo portadores efectivos de direitos fundamentais, juridicamente consagrados e efectivamente praticados. Continuo, por isso também, a acreditar, de forma cada vez mais convicta, que a melhoria da Educação (simultânea e articuladamente comprometida com a qualidade científica, pedagógica e democrática) nunca foi tão urgente como hoje em todos os países, onde certamente incluo Portugal e Brasil, on-

de muitos dos Direitos Humanos Básicos ainda não foram completamente interiorizados como direitos fundamentais e onde, por isso mesmo, o refluxo da democracia é mais fácil de ocorrer perante o avanço inescrutável e insidioso de um capitalismo cada vez mais obsessivo na procura de processos fáceis de acumulação, a nível nacional e mundial. Por razões históricas, sociais e culturais muito diferenciadas, muitos Estados-nação ainda continuam agarrados a uma concepção restrita de cidadania, muito longe, portanto, de uma concepção avançada que signifique não apenas o reconhecimento de direitos cívicos e políticos mas também a realização efectiva de direitos (sociais, económicos, culturais, educacionais…) ou, mais longe ainda, que nos predisponha para a imaginação política de outras cidadanias (transnacionais, mundiais ou globais) onde, com os Estados-nação e para além deles, se reinventem outras possibilidades e outros espaços de emancipação.

Retomando o início deste texto, na minha recente visita ao Sul do Brasil conheci uns simpáticos seres chamados Quatis (palavra derivada do étimo tupi kwa’ti), simpáticos mamíferos de focinho longo e cauda com anéis escuros, que são uma espécie de ex-libris do Parque Nacional de Iguaçu e nos quais reconheci (partilhando a sugestiva imaginação crítica de um jurista brasileiro, amigo e companheiro de viagem), serem eles próprios seres portadores de direitos (como o direito à liberdade e à identidade) que, infelizmente, não são ainda

A MELHORIA DA EDUCAÇÃO (simultânea e articuladamente comprometida com a qualidade científica, pedagógica e democrática) nunca foi tão urgente como hoje em todos os países, onde certamente incluo Portugal e Brasil, onde muitos dos Direitos Humanos Básicos ainda não foram completamente interiorizados como direitos fundamentais…

direitos elementares reconhecidos a milhões de seres humanos. Passeando livremente por entre os visitantes, sendo respeitados nos seus hábitos alimentares e na sua forma de agir, os Quatis partilham um espaço que é um exemplo concreto do que pode significar a defesa e preservação do “património comum da humanidade”. Por iniciativa de outros seres, politicamente comprometidos com o aprofundamento da democracia, a liberdade e identidade dos Quatis podem agora beneficiar da consagração de uma nova geração de direitos: os direitos da terceira geração, ou seja, os direitos ecológicos que são direitos não apenas nossos, enquanto seres humanos, mas, sobretudo, direitos de todos os seres vivos que existem e que ainda hão-de vir para habitar a Terra. Sem o saberem, e ao contrário de muitos seres humanos, os Quatis não deixam de vivenciar e de anunciar formas de transição entre concepções de mundo e de cidadania.

LUGARES da educação Almerindo Janela Afonso Universidade do Minho ajafonso@iep.uminho.pt

APRESENTADO NA UNESCO

Anteprojecto de convenção sobre diversidade cultural O anteprojecto da Convenção Internacional sobre a Protecção da Diversidade dos Conteúdos Culturais e Expressões Artísticas, elaborado pela UNESCO, foi recentemente apresentado em Paris, na sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que espera poder adoptá-lo já em 2005 na Conferência Geral da UNESCO. O objectivo desta Convenção é elaborar um dispositivo

jurídico que permita aos Estados apoiar a criação e a circulação nacional e internacional de obras para evitar que a globalização ameace a diversidade artística e cultural. “O compromisso da UNESCO de promover a diversidade cultural está de acordo com seu mandato constitucional de garantir a fértil diversidade das suas culturas”, sublinha a Organização. O texto foi apresentado durante um seminário de informa-

ção, organizado pela Coligação francesa pela Diversidade Cultural. Na ocasião, as principais disposições da convenção foram explicadas por especialistas que participarão na sua redacção, entre os quais o conselheiro de Estado francês Jean Musitelli, o professor de Direito de origem canadiana Ivan Bernier e o professor de Economia australiano David Throsby. Jean Musitelli reforçou a legitimidade deste projecto afirmando que “a

cultura merece muito mais do que o estatuto de subproduto comercial”, numa referência indirecta à intenção dos Estados Unidos de incluir a cultura nas negociações da Organização Mundial de Comércio. “Um filme é uma obra de arte, não um saco de batatas”, disse recentemente, durante o Festival Internacional de Cinema de Veneza, a comissária europeia da Cultura, Viviane Reding, que reforçou a ideia de

que “o cinema é um dos mais importantes elementos” da diversidade cultural. Os artistas que participaram no seminário da UNESCO insistiram na urgência da adopção da Convenção. Os principais pontos de polémica nas negociações serão a relação da Convenção com outros tratados internacionais e a sua condição de instrumento vinculante. Fonte: AFP

Solta


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EDUCAÇÃO MULTICULTURAL

“A escola é discriminadora”

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Um estudo conduzido por uma professora auxiliar do departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa mostra que alguns professores têm ainda uma imagem estereotipada dos alunos provenientes de grupos étnicos minoritários. Maria do Carmo Vieira da Silva, autora de “Discriminatio subtilis: estudo de três classes multiculturais”, conta em entrevista à PÁGINA as razões que a levaram a realizar este trabalho e revela algumas das conclusões surpreendentes a que chegou. Qual o motivo que a levou a conduzir este trabalho? Esta investigação – que na prática é composta por um conjunto de sete estudos – faz parte da minha tese de doutoramento e surge como continuidade do trabalho que desenvolvi para a tese de mestrado, na qual tinha feito uma análise das necessidades educativas de crianças pertencentes a minorias étnicas e desfavorecidas do bairro da Bela Vista, em Setúbal. Ao longo da minha vida profissional trabalhei muito de perto com a formação de professores do 1º ciclo – um nível de ensino que sempre considerei fundamental para a formação dos alunos – e quis, de alguma maneira, manter essa abordagem através desta investigação. Qual foi o objecto de estudo e a metodologia utilizada? Ela foi centrada em três classes multiculturais, que eu acompanhei do segundo ao quarto ano de escolaridade, na qual procurei, em contexto de sala de aula, saber que imagem tinham os professores dos alunos pertencentes a minorias étni-

cas – foram estudados dois grandes grupos de alunos, africanos (na sua maioria cabo-verdianos) e ciganos –, que aceitação tinham os alunos dos professores, que aceitação tinham os alunos entre si, como se processava a comunicação com os alunos dos diferentes grupos e, finalmente, que representação faziam da sala de aula. Os professores consideravam que os alunos das minorias étnicas tinham dificuldades de aprendizagem, insucesso e falta de domínio da língua portuguesa. Ora, embora não dominassem a língua portuguesa, ou a dominassem mal, a finalidade do 1º ciclo é exactamente trabalhar a língua. Portanto, havia qualquer coisa de errado e eu quis saber as razões que ajudavam a compreender esse insucesso escolar. A que conclusões chegou? Cheguei à conclusão que os professores funcionam em sala de aula encarando os alunos como se eles fossem todos iguais e de uma forma estereotipada: o do aluno branco, pontual, inteligente, cumpridor, que tem o apoio da família, que é limpo – por

mais estranho que isto pareça –, enfim, uma série de características que obedecem à imagem do seu grupo de pertença, que é o da maioria. Adjectivos como inteligente, criativo, crítico, perspicaz, entre outros, nunca são referenciados para alunos negros nem ciganos. Esta atitude leva a questionar a formação de professores e as expectativas que eles transmitem aos alunos, que, neste caso, são extremamente penalizadoras para os cabo-verdianos e ciganos, pondo igualmente em causa o conceito de “bom aluno”, sobretudo num momento em que a escola tem uma grande diversidade de origens.

dianos, angolanos e ciganos – curiosamente em menor grau em relação a estes últimos, afirmando abertamente que eles não são pontuais, que estão desatentos, etc… – e, de uma forma geral, atribuem muitos menos adjectivos positivos do que seria de esperar. Pelo contrário, atribuem mais adjectivos positivos aos alunos brancos em relação à minha expectativa, controlando a sua negatividade e valorizando altamente a sua positividade.

Referiu na sua comunicação [proferida no IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire “Caminhando para uma Cidadania Multicultural”, que decorreu em Setembro na cidade do Porto] que este estudo teve, de algum modo, resultados imprevistos. Em que medida? Imprevistos na medida em que os professores que participaram neste estudo controlam muito a negatividade em relação aos alunos cabo-ver-

Um dos estudos incluídos nesta investigação foi conduzido junto de um grupo de alunos da formação inicial de professores. Porque razão decidiu inclui-lo? Porque em função destes resultados achei que seria importante saber se existiria um estereótipo social que, de alguma maneira, pudesse estar associado a esta imagem que os professores têm dos seus alunos. Nesse sentido, decidi auscultar um

Formação de professores deveria apostar mais na multiculturalidade


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“(…) os professores funcionam em sala de aula encarando os alunos como se eles fossem todos iguais e de uma forma estereotipada: o do aluno branco, pontual, inteligente, cumpridor, que tem o apoio da família, que é limpo – por mais estranho que isto pareça –, enfim, uma série de características que obedecem à imagem do seu grupo de pertença, que é o da maioria.”

grupo de cinquenta alunos da formação inicial de professores da área das ciências da educação, e verifiquei, de forma dramática, que chegam a ser mais penalizadores do que os elementos dos outros dois grupos que faziam também parte da amostra: 50 professores do 1º ciclo e 50 elementos da sociedade civil, escolhidos aleatoriamente. Encontra alguma razão para esse facto? Não posso apontar motivos porque não foi esse o meu objecto de estudo. De qualquer forma, foi uma surpresa constatar que alunos que se dirigem ao ensino e que, à partida, terão uma sensibilidade maior para estas problemáticas, terem estereótipos sociais negativos tão fortes em relação aos seus futuros alunos. De que forma é possível inverter estes estereótipos na sociedade quando, como é este o caso, são os próprios educadores a construir essas representações sociais? Eu penso que é muito importante apostar-se fortemente numa formação inicial de professores que inclua uma abordagem das questões da multiculturalidade. Não são questões de moda, como já tenho ouvido dizer, são questões fundamentais que passam por estratégias de questionamento pessoal, incluindo

o professor que oriente uma cadeira com estas características, e por todo um trabalho que leve à reflexão e à discussão entre os próprios alunos. Não considera estranho que a escola, que à partida deveria ser um lugar de debate, se mantenha fechada em relação a estas e outras questões consideradas incómodas? Penso que a questão do diálogo na escola levar-nos-ia a outras questões extremamente pertinentes que, no entanto, talvez não tenham lugar no âmbito desta entrevista. Mas julgo que essa atitude se relacionará essencialmente com dois factores. Em primeiro lugar, com a inexistência de um espaço onde possam reunir informalmente e falar com privacidade – a sala de professores é, na minha opinião, um espaço demasiado aberto e impessoal para que se possa estabelecer esse diálogo. Por outro lado, penso que também se deverá, de certa forma, à imagem que qualquer professor gosta que os outros tenham de si, em especial os seus pares. Ou seja, é uma questão que passa igualmente pela auto-estima. Os professores não gostam que se saiba que eles têm problemas, dificuldades, e muitas vezes retraem-se e colocam as questões na terceira pessoa de forma a sentirem-se protegidos.

De que forma espera que o seu trabalho contribua para a compreensão desta problemática? Em primeiro lugar espero que sirva para percebermos que a escola discrimina. E é preciso não esquecermos que a imagem da escola é dada por quem lá trabalha e sobretudo pelos seus professores. Claro que todos nós, de alguma maneira, discriminamos, mas é importante termos consciência disso, porque ao fazê-lo podemos alterar atitudes e comportamentos discriminatórios. O outro elemento que me parece importante analisar a partir destes resultados é que em contexto de sala de aula nem todos os alunos são iguais, ou seja, a escola tem diferentes sentidos para quem a utiliza. Crianças que estão mais ligadas ao espaço exterior, por exemplo, têm maiores dificuldades em permanecer concentradas na sala de aula em relação a outras, levando a questionar se os próprios tempos lectivos não devam ser repensados. Por outro lado, penso que a formação de professores deverá ser reformulada e ter em conta que já não podemos funcionar com base num modelo único de aluno e que eles têm de encontrar nas nossas salas de aula respostas adequadas para desenvolver as suas potencialidades e só assim se assumirem como cidadãos plenos.

FACE A FACE Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


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reportagem

À espera de uma colocação Prevista por uns. Surpresa para outros. Os atrasos nas colocações de professores trouxeram à ordem do dia o drama anual dos contratados, de uma forma nunca vista. Quando tudo estiver resolvido, a contar pela última data anunciada a 30 de Setembro, outros dramas se seguirão. “Às vezes estou em casa e não sei o que fazer, nem tenho vontade de fazer seja o que for”. É com impotência que Arlete Gomes, 28 anos, professora de Ciências Naturais do 3º ciclo e secundário, tem acompanhado os sucessivos adiamentos da colocação de professores. Horas perdidas em zappings frenéticos pelos vários canais de televisão. Jornais com poucas notícias para tanta avidez de informação. Cliques desesperados na Internet. Numa rotina semelhante à dos 50 mil professores que aguardam por saber onde vão leccionar no ano lectivo de 2004/05. A sua história poderia ser a de muitos outros. Com seis anos de serviço, Arlete quis esperar por alguma estabilidade. Prolongou a estadia em casa dos pais ao máximo. Foi adiando o casamento. Até simplesmente se cansar de “adiar a vida”. Marcou a data da cerimónia para o ano. Decidiu “arriscar”. Não sabe em que escola vai trabalhar este ano, mas o namorado irá tentar arranjar emprego no sítio onde ela ficar colocada. A experiência mostrou-lhe que é mais comum na sua área conseguir entrar no Quadro de Zona Pedagógica em regiões como o Alentejo. Arlete está preparada para efectivar longe de Braga, onde actualmente vive. “Sei que uma aproximação à residência pode levar anos!” Por isso diz-se preparada para fazer a vida por “lá”. Onde quer que esse “lá” seja.

Sem vontade de trabalhar Prefere que não divulguemos o seu verdadeiro nome. Há dois anos conseguiu colocação através dos mini-concursos. Com as mudanças nas regras dos concursos do ano passado Cristina (nome fictício) não ficou colocada. Teve a sorte de conseguir dar aulas de Inglês numa escola profissional. Não deixou, contudo de concorrer ao ensino público. Mas desde o anúncio dos sucessivos erros das listas, que esta professora de 27 anos, três anos de serviço, olha para o concurso com “desconfiança”. “Está tudo muito confuso e, sinceramente, já não sei o que é que vai sair nestas listas…” desabafa. Sentimentos como estes serão difíceis de dissipar. Mesmo com garantias de fiabilidade no que toca às listas verdadeiramente definitivas, as realizadas manualmente. Há ainda um cansaço e uma insegurança que, dizem os professores, vai ter reflexo no seu desempenho profissional. Arlete partilha dessas opiniões. “Sinto-me sem aquela vontade de trabalhar …”

Gerir a confusão Contrariar angústias é uma tarefa que Fernanda Mendonça, presidente do Conselho Executivo da Escola Básica 2+3 e do agrupamento vertical de Alfena, Valongo, terá de abraçar. Angústia dos professores que pertencem aos quadros e que já estão a trabalhar nas escolas. Dos que pediram afectação e não sabem se vão conseguir e dos que pediram destacamento. Pois todos têm de se apresentar na escola onde leccionaram no ano lectivo passado até saírem as colocações. Neste cenário Fernanda Mendonça acredita que o seu papel na escola é o “de manter a calma e não fazer dramas”. A situação da EB 2+3 até não é das mais críticas, comparativamente à de outras escolas. Faltam apenas 4 professores, num total de 98 necessários para os 696 alunos. Porém, há que contar com os pedidos de destacamento, “com os professores para quem são feitos horários de 22h e que pedem reduções de 8h”, com a dificuldade de “casar os horários aos dois professores que leccionam a Área Projecto, no 2º ciclo” e outras tantas. Peças soltas que obrigarão a um reajustamento dos horários quando todos os docentes estiverem na escola. No Pré-escolar e no 1º ciclo o caso é mais problemático: faltam cinco educadoras e 20 professores para um total de 650 alunos. “É um panorama aborrecido”, analisa Fernanda Mendonça. Sobretudo em alguns casos o arranque das aulas está comprometido. Numa EB1 onde são necessários três professores não há nenhum, noutra onde devem ser cinco professores faltam dois, num Jardim de Infância simplesmente não há educadoras.

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Apresentações sem professores Ainda se esperava a divulgação das listas no dia 20 de Setembro e já José

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Gomes, presidente do Conselho Executivo da EB 2+3 e do agrupamento de escolas da Areosa, Porto, admitia a hipótese de, após o início das aulas, poder “fazer um interregno” no ano lectivo. Isto na eventualidade – dias depois confirmada – de as colocações de professores se poderem atrasar para lá da data marcada para o início das aulas.

reportagem

O tempo necessário até à chegada dos professores em falta: 18 num total de 70 para os 600 alunos da EB 2+3; nove num total de 11 para 300 alunos na única EB1 do agrupamento e um num total de duas educadoras para as 50 crianças inscritas no Pré-escolar. A justificação para tal medida não poderia ser mais óbvia: “Não temos condições para ter alunos sem aulas nas escolas.” Na Escola Secundária D. Afonso Henriques, Santo Tirso, minimizam-se os danos. Marcaram-se as apresentações do 10º ano para o dia 23 de Setembro sem que a maioria dos directores de turma estivessem colocados. A escola terá de esperar por 28 professores num total de 64 para 538 alunos. Por ser um ciclo crucial para quem aspira ao ingresso no Ensino Superior a angústia suscitada pelos atrasos nas colocações dos professores atinge também os alunos. “Estão constantemente a telefonar para a escola para saber quando começam as aulas”, diz Zeverina Fontes, vice-presidente do Conselho Executivo. “A situação é péssima, estamos bastante preocupados”, repete. A falta de professores está a condicionar as reuniões e isso prejudica a planificação das actividades escolares. “Este ano lectivo vai ser muito afectado por este atraso”, conclui Zeverina Fontes.

E depois da colocação Não restam dúvidas. Ainda que as listas das colocações sejam divulgadas na data prevista, 30 de Setembro, há quem aponte meados de Outubro como o período provável para que tudo nas escolas esteja a funcionar “na normalidade”. E mesmo assim já se adivinham outros dramas. “Os alunos vão sair prejudicados com estes atrasos se a escola ou o Ministério da Educação (ME) exigirem que o programa seja dado até ao fim”, alerta Cristina. E ainda que as escolas possam, de acordo com as instruções do ME, atrasar o fim do ano lectivo uma semana, Cristina não acredita que seja suficiente “para compensar o tempo perdido”. Não apenas o tempo que já se perdeu mas o que ainda se vai perder depois da divulgação das listas. Com os deslocados a ter de arranjar alojamento e a reorganizar a vida. “Os três dias para me apresentar numa escola não são suficientes se tiver de ir do Porto para o Algarve”, desabafa Cristina.

O que falhou O programa informático, diz o ME. Mas há quem tenha outras teorias. “Não quero pensar que haja tanta irresponsabilidade e tanta ignorância sobre os procedimentos dos concursos, é menos triste acreditar que tenha havido um boicote”, diz Fernanda Mendonça. Os professores contactados pela PÁGINA apontaram o facto do recrutamento e selecção de docentes ter englobado todos os níveis de ensino num único momento de candidatura como a causa provável para a confusão instalada com as colocações. Para José Gomes seria preferível que “o concurso continuasse a ser compartimentado”. Tal como sucedia com o sistema antecessor onde só “na 1ª parte do concurso ficavam resolvidas 40% das colocações”. Aureliano Bessa, presidente da Federação das Associações de Pais da Maia, não está preocupado em saber o que falhou em todo o processo. Limita-se a fazer um reparo. Não entende, por exemplo, “que haja docentes efectivos nas escolas sem que nunca lá tenham dado aulas pois todos os anos pedem destacamento”. E acredita que deveria ser encontrada uma solução que resolvesse esta questão. O que realmente preocupa Aureliano Bessa é o facto de o Estado não considerar o ensino e a educação “como áreas prioritárias para o desenvolviFoto: Adriano Rangel

mento do país”. “Não é compreensível que a cada nova legislatura haja mais do que um ministro da Educação que chega ao ministério com vontade de ‘inovar’ adaptando tudo aos seus pontos de vista”, critica. E para concluir deixa um conselho tantas vezes repetido como ignorado: “Sigamos o exemplo da Irlanda”.

Andreia Lobo


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A metafísica dos amuletos

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Quando se lê, na revista “Focus”, que existem, em Portugal, 321 bruxos de porta aberta e que num breve período de vinte anos um português oriundo de Moçambique já conseguiu reunir, à volta de uma nova Igreja de inspiração cristã, dois milhões de crentes distribuídos por diversos países da Europa, África e América, designadamente nos de língua oficial portuguesa; quando se vê, na televisão, que, para ter sorte, o actual Primeiro-Ministo de Portugal usa uma certa puseira como talismã e o seu antecessor usou a mesma gravata para assistir aos jogos de futebol em que participava a equipa nacional no Euro-2004; que o respectivo seleccionador tinha trazido do Brasil uma imagem de Nossa Senhora de Caravaggio (introduzida pelos primeiros emigrantes italianos), e não outra, como a negrinha Nossa Senhora da Aparecida, por exemplo, que é a patrona do Brasil); enquanto o primeiro responsável pela Federação se recolhia no balneário, para não dar azar aos jogos - logo ocorre aquela reflexão de George Steiner (“Errata:Revisões de Uma Vida”), a propósito da necessidade que o ser humano tem de sentir (pensar) que não está “desacompanhado” nem votado a uma existência aleatória na imponderável imensidão de uma qualquer galáxia: “Há ainda na psique humana imenso espaço para o infantilismo, a irracionalidade, o pânico e ataques de culpa. No Ocidente científico-tecnológico há milhões de pessoas que conduzem os seus negócios quotidianos com base na astrologia. Não saem da cama no dia treze do mês sem recorrerem a alguma forma de exorcismo. Acreditam que os gatos pretos são vagamente infernais e tremem quando ouvem as trovoadas. Encontramo-nos ainda no jardim infantil da potencial evolução.” Isto não é “literatura”: há anos, conhecemos um director de departamento que regou com gasolina e chegou um fósforo a um gato preto que lhe procurara dengosamente o colo, quando estava sentado à secretária, justificando: “O porco-sujo mandou-o vir ter comigo!”; na mesma época, um chefe políticomilitar nunca se separava de um amuleto (pau ou osso deformados pelo uso) para se “defender” dos azares, afirmando, convicto: “Com “este” nada me toca”!”; e ainda hoje há muita gente que diz quando há trovoada: “Valha-nos Santa Bárbara!”, não se senta à mesa com treze convivas, não passa debaixo de um escadote e põe um raminho de flores de giesta em cada porta e janela da sua casa, na noite do primeiro dia de Maio, para não entrar o diabo e o “mau olhado”. Seja qual for a variante das crenças no sobrenatural, desde o momento em que o primeiro “homo sapiens sapiens” olhou para o céu e em derredor e perguntou “quem me pôs aqui”, “porquê” e “para quê” e o primeiro “homo philosophicus” concluiu que quanto mais se sabe mais longe fica o que ainda falta saber (no rasto do Big Bang ou do Criador Incriado), os mais acérrimos crentes de que a Razão é a única luz que não se apagará têm de aceitar, compassivamente, que as “perplexidades” (o termo é de Maimónides) da mente humana tanto se exprimem através de uma pulseira, ícone ou gravata, como dos mukixis de Angola, das carrancas de Pernambuco ou dos orixás da Bahia. E por três espécies de “razões”: a de Wittgenstein, “quando filosofamos, temos que mergulhar no caos primordial e que nos faz sentir nele como em nossa casa”; a de Eça de Queirós (por extrapolação de uma passagem da sua crónica sobre o “Francesismo”), “a alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis [crenças, deuses e mitos] que ela escolhe para amar e cercar de lenda.”; a de Eduardo Prado, que Eça efabula, numa crónica intitulada “Espiritismo”, a propósito de uma visita dos dois amigos, em Paris, a um Centro Espírita, onde conheceram um destacado membro da confraria: “A minha alma, segundo afirma aquele homem diabólico, jaz enterrada sob densas camadas de materialidade. Acredito. Mas ela está lá muito quieta, muito confortável, muito feliz. Para que hei-de eu desbastar, adelgaçar, e furar essas abóbadas de matéria, para que a minha alma se escape para as regiões tormentosas e aterradoras da espiritualidade? É uma coisa perigosa, uma alma assim solta pelos ares, em companhia de espíritos... (...) Nada! A minha rica almazinha continuará cá dentro muito quieta. E o mais que farei, para a entreter, é carregar nas doses de Descartes e de Espinosa.” Nesse momento, Eça, que começara a visita por conjecturar que os “centros sérios do sobrenatural” se instalavam, hoje, em escritório com tabuleta à porta, campainha e capacho” e que “todas as religiões nascentes se alojam burguêsmente” - não respondeu que sim nem que não.

andarilho

EM PORTUGUÊS Leonel Cosme

ERRATA: Nas últimas linhas do meu artigo anterior, o leitor reparou certamente numa “gralha”: onde está escrito Euro-94 deveria

Investigador, Porto

estar, obviamente, Euro-2004.

Filosofia para Crianças Noémia Rolla Porto Editora pp. 223 Trata-se de um trabalho de grande interesse, pioneiro em Portugal quanto a esta temática, constituindo, mesmo, uma bússola refrescante que permitirá aos ulisses pedagógico-didáticos, que afinal são todos os que vivem mergulhados nas correntes (e nas torrentes) do ensino e da aprendizagem, o orientarem-se nas encapeladas ondas educacionais. (Retirado do prefácio de Álvaro Gomes) A Força da Palavra | Álvaro Gomes Porto Editora | pp. 112 O Homem, a Ciência e a Sociedade Boris Cyrulnik Instituto Piaget pp. 91 Uma entrevista a Boris Cirulnik, neurologista, psiquiatra, psicanalista e etólogo, e ao seu universo, onde a animalidade e a magia, a infância vítima da violência e do amor adulto, o medo e o desejo formam os nossos sentimentos e os nossos afectos ao abriremnos para o mundo simbólico. A Complexidade Vertigens e Promessas Histórias da ciência | Réda Benkirane Instituto Piaget | pp. 345 A Criança e o Animal As emoções que libertam a inteligência Baseado em anos de pesquisa, este trabalho descreve tudo aquilo que a interacção com um animal pode favorecer na criança: apaziguamento, segurança afectiva, comunicação, socialização, inteligência e auto-estima. A tal ponto que o animal pode revelar-se uma grande ajuda para libertar a criança das suas perturbações do desenvolvimento, do comportamento e do afeiçoamento. Direitos do Homem Uma agenda para o século XXI Angela Hegarthy Siobhan Leonard Este livro junta estudiosos, profissionais e activistas reconhecidos e emergentes, para propor uma agenda radical de direitos do Homem para o século XXI. Fundindo sólida investigação académica, conhecimento especializado e experiência prática das questões e problemas de direitos do Homem, apresenta uma exposição coerente e provocadora do pensar dos novos e emergentes temas desta área. Melhorar a Eficácia das Escolas Jaap Scheerens Edições Asa pp. 128 Esta obra analisa as conclusões extraídas de diferentes modelos de investigações levadas a cabo em países desenvolvidos e em países em vias de desenvolvimento. São apresentados exemplos de sistemas de indicadores nacionais da educação e de auto-avaliação da escola.

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Educação, Justiça e Autonomia Os lugares da escola e o bem educativo Carlos V. Estevão Edições Asa | pp. 127

De Darwin a Piaget Para uma história da psicologia da criança DominiqueOttavi Instituto Piaget Em “De Darwin a Piaget” afirma-se o poder dessa nova concepção da infância de mudar, não apenas os métodos pedagógicos, mas também as finalidades da educação. Superando as clivagens dos domínios respectivos da história da pedagogia e da instituição escolar, da filosofia da educação e da epistemologia, esta obra suscita aproximações inéditas. A Nova Filosofia do Corpo | Bernard Andrieu Instituto Piaget | pp. 179 Clenardo e o Príncipe Serafim Ferreira Editorial Escritor pp. 214 Clenardo e o Príncipe é uma narrativa que enaltece ou traz à luz aspectos particulares da nossa História, como o estabelecimento da Inquisição em Portugal, a batalha de Alcácer-Quibir ou a escravatura, sem deixar de reflectir, através de uma escrita poética e depurada, as questões e analogias que se podem fazer nas imediatas referências a personalidades como dom João III, André de Resende, Damião de Góis, frei Diogo de Murça e outros. Como Pensam as Instituições Mary Douglas Instituto Piaget pp. 179 Usando os trabalhos de Emile Durkheim e Ludwik Fleck como base, Como Pensam as Instituições tenciona clarificar até que ponto o próprio pensamento depende das instituições. Diferentes tipos de instituições permitem que os indivíduos tenham diferentes tipos de pensamento e respondam a emoções diferentes. A Família Recomposta Entre o desafio e a incerteza Chantal Van Cutsem Instituto Piaget | pp. 198 A Transfiguração do Político A tribalização do Mundo Pós-Moderno Michel Maffesoli Instituto Piaget pp. 256 A Transfiguração do Político empreende a análise daquilo que convém chamar a cultura do sentimento, cuja vivacidade das emoções e o desejo do inútil são os dois componentes essenciais. desta forma, inaugura uma leitura estimulante do espaço de vida e de pensamentos novos que estruturam daqui em diante a sociabilidade pós-moderna. Desertificação Sinais, dinâmicas e sociedade Coordenação de Vítor Louro Insttuto Piaget | pp. 265 Escritos da Nova Economia As melhores obras sobre os negócios electrónicos John Middleton Instituto Piaget pp. 303 Este livro reúne sinteses dos 50 melhores livros sobre a nova economia. John Middleton extrai as ideias principais de cada um deles e avalia o seu impacto e validade a longo prazo. Escritos da Nova Economia é um guia completo das melhores reflexões acerca dos negócios electrónicos produzidos em todo o mundo, uma súmula única das obras que estão a revolucionar o mundo do trabalho.


Novo curso: tempo para a esperanza

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olhares de fora

En memoria das vítimas da Escola nº 1 de Beslán, Osetia do Norte, Rusia. Comezamos un novo curso e con él o ritual do reencontro, das tarefas pendientes, das ilusións que se depositan nun novo ano de traballo. Como profisionais da educación, e a pesar de todos os problemas laborais e de política educativa que poidamos ter ou prever, é o gran momento de renovar as nosas posibilidades de dar esperanza: esperanza nos novos estudantes que imos coñecer, esperanza nas súas e nas nosas posibilidades de aprendizaxe, esperanza nas diferentes situacións que viviremos e compartiremos, esperanza nas alternativas pedagóxicas que ensaiaremos, esperanza nas vidas que se están a formar, etc. Esperanza en que, tal vez, co noso traballo ganaremos a máis persoas para o mundo da cultura, para o pensamento racional, para o disfrute respetuoso das diferentes posibilidades que da a vida, para a democracia e a paz. Esperanza mesmo na incertidume do que acontecerá, das novos personalidades coas que interatuaremos, nas experiencias que nos deparará o futuro. Todo elo, sen dúbida, non exento de conflitos, porque na esperanza como na vida

a relación conflitual sempre está presente e non ter por que ser necesariamente negativa. Vivir a profisión con esperanza e dar esperanza aos nosos estudantes son sen dúbida dous aspectos clave na función educadora, tal como desenvolvemos no libro “Educar para la verdad y la esperanza. En tiempos de globalización, guerra preventiva y terrorismos” (Paidós, Barcelona, 2004), que en breve publicará en Portugal Ediçoes ASA. En primeiro lugar, porque a esperanza forma parte da xenuina natureza da educación. En efecto, a educación é por definición un proxecto de futuro e unha entrega aos demáis para construir e reconstruir camiños e posibilidades. A esperanza de mellora que ten o educador ou educadora cara os seus educandos é unha característica intrínseca ao acto de educar. Tamén é un requisito profisional: os profesores e profesoras debemos ter confianza e esperanza nos nosos estudantes, nas súas posibilidades de aprendizaxe como unha condición inherente ao noso traballo. Entregamonos a eles coa esperanza de que crezan como persoas, que se desenvolvan en todas as súas facetas, que melloren en todos os sentidos, que contemplen e descubran novos horizontes. Nese proceso crecemos

como persoas e como profisionais, e nese proceso e nos seus resultados obtemos a nosa mellor recompensa, a nosa maior alegría. En segundo lugar, porque dar esperanza, ademáis dun acto supremo de solidariedade, é unha función que ennoblece e da sentido a nosa función educadora e tamén as nosas vidas. Levamos demasiados anos soportando no ámbito educativo a presión da desesperanza e da desilusión, que na nosa profisión ten efectos devastadores. Comprendemos a desesperanza dunha parte do colectivo docente que ten que afrontar experiencias educativas moi duras, e sabemos en carne propia do desgaste psíquico do noso traballo. Pero en modo algún somos o colectivo profisional que soporta piores condicións laborais ou con maiores tasas de desgaste psíquico, tal como se está a dicir en determinados foros. Todas as profisións ligadas ao ámbito das relacións humanas teñen un alto custe en pago psicolóxico, pero mesmo en situacións difíciles, dar esperanza é unha das nosas funcións máis fermosas e inaparazabeis. Por outro lado, afrontar a profisión con esperanza non significa caer na complacencia ou na inxenuidade. É evidente que temos moitas reivin-

dicacións pendientes polas que loitar e, tamén neste ámbito, debe estar presente a esperanza: para conseguir melloras laborais, unha mellor formación do profesorado, boas instalacións nos centros, materiais curriculares de calidade, etc. Pero, como dicimos, por moitas necesidades que teñamos non debemos cercenar a nosa capacidade de dar esperanza aos nosos estudantes que constituen o motivo do noso traballo e son o futuro do país e da humanidade. Nun novo comezo de curso é tamén tempo para alimentar a esperanza nas posibilidades da educación como factor de cohesión e xustiza social. A educación media nas nosas posibilidades de goce e de futuro, de aí a súa centralidade e a necesidade de que sexa unha aposta permanente ao longo da vida, moi especialmente na sociedade da información na que vivimos. Como temos manifestado, a educación por si sola non é suficiente para transformar a sociedade pero sen ela non hai posibilidade de cambio. A educación é unha das alternativas máis necesarias e prioritarias para acadar outro mundo máis xusto, nonviolento, plenamente democrático e respetuoso con todos e cada un dos dereitos humanos. Estamos diante dun novo curso, é tempo de esperanza.

EDUCAÇÃO e cidadania Xesús R. Jares Facultade de Ciências da Educación. Universidade da Coruña. Coordenador de Educadores/as pola Paz-Nova Escola Galega e presidente da Asociación Española de Investigación para a Paz (AIPAZ) jares@udc.es

BIOLOGIA

Nasce primeiro bebé após transplante de ovário congelado O nascimento de um bebé a partir um transplante de tecidos de ovário conservados sob congelação, numa mulher que passou por um processo de quimioterapia, foi recentemente anunciado por especialistas belgas num artigo da revista médica britânica “The Lancet”. A mãe, uma belga de 32 anos, deu à luz uma menina de 3,72 quilos, informa aquela publicação. “É o primeiro caso de um nascimento com vida após um bem-sucedido transplante de um fragmento de ovário tirado da paciente e depois congelado, antes do início

da quimioterapia, segundo um procedimento denominado autotransplante ortotópico (na cavidade pélvica) de tecidos de ovário criopreservados”, acrescenta o texto. De acordo com o seu principal autor, o professor Jacques Donnez, da Universidade Católica de Louvaine, este resultado “abre novas perspectivas para as jovens pacientes que enfrentam uma insuficiência ovariana precoce, ou menopausa precoce, produto de uma quimioterapia ou radioterapia, que anula qualquer possibilidade de gravidez”.

“A crioconservação deverá ser proposta a todas as mulheres jovens que receberem um diagnóstico de cancro, a par de outras opções para preservar a sua fertilidade (maturação in vitro de ovócitos imaturos, congelamento do embrião etc.)”, explica Donnez. Graças a esta técnica, a jovem pôde ter seu bebé sete anos após os tecidos do ovário terem sido congelados, antes do início do tratamento contra a doença de Hodgkin, uma variação do Linfoma. Apesar de a terapia a ter deixado estéril,

a jovem voltou a menstruar e ovular cinco meses após o transplante e ficou grávida por fecundação natural 11 meses depois. Em Março de 2004, especialistas americanos afirmaram na “Lancet” terem realizado uma experiência similar com uma mulher de 30 anos, que ficou estéril após uma quimioterapia para tratar um cancro da mama. Após recorrer à fertilização in vitro e a um implante de embrião, a gravidez não aconteceu. Fonte: AFP

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olhares de fora

Uma experiência pedagógica na cadeira de Ecologia Urbana Deixo à consideração dos leitores eventualmente interessados, notas sobre uma experiência pedagógica na cadeira de Ecologia Urbana. Pressupõe-se que o aluno tem que estar no projecto, participar, agir comunicativamente. Para isso tem que se engajar responsavelmente na actividade pedagógica e na formação dos outros que é também a sua própria formação. O educador é apenas co-construtor do processo de aprendizagem que desbloqueia as situações que impedem a participação, a comunicação e a responsabilização. A) Orientação Estratégica

C) Condições de Aprendizagem

A orientação estratégica desta disciplina baseia-se essencialmente na pedagogia conhecida como “trabalho de projecto” que assenta na auto-formação e no auto-desenvolvimento através de um processo auto-pilotado. Vamos tentar referir algumas linhas de força baseadas na auto-organização e autonomização dos alunos: 1. O trabalho de projecto é mais um processo criativo e menos um objectivo final previamente definido; 2. O trabalho de projecto é construção permanente, constantemente avaliada e pilotada; 3. Realiza-se através de uma estratégia planeada e não resulta de um plano-modelo rigidamente definido apriori; 4. É, no entanto, uma realização de prioridades dentro de uma prospectiva aberta e em busca de sentido prático onde a inovação é criação. Opõe-se a qualquer futurologia mecânica e pré-determinada; 5. Desenvolve-se entre o desejo estratégico e a prática realizada apontando conscientemente as dificuldades e relançando as potencialidades ; 6. Possui assim uma linha de acção mas susceptível de ser testada e modificada pelo processo de avaliação dessa acção concreta; 7. É um processo consciente, livre e assente numa estrutura flexível e dinâmica. Trata-se mais de fazer funcionar do que de explicar a partir de definições apriorísticas. É uma procura, um processo de compreender.

1. O aluno tem que estar no projecto, participar, agir comunicativamente. Para isso tem que se engajar responsavelmente na actividade pedagógica e na formação dos outros que é também a sua própria formação. O educador é apenas co-construtor do processo de aprendizagem que desbloqueia as situações que impedem a participação, a comunicação e a responsabilização. 2. O balanço dos prazos e a reflexão sobre as faltas ou ausências de participação, constituem um elemento decisivo para se testar o grau de participação e responsabilidade no trabalho que se assumiu intencionalmente com as escolhas feitas: o vocábulo e o autor investigado, o tema escolhido e o livro seleccionado. O papel do professor é o de assumir a construção de um projecto, através de uma permanente actividade de regulação e sobretudo de exigência para que os alunos realizem a aprendizagem de auto-formação e auto-desenvolvimento. Estimular aprendizagem contínua é o papel essencial do educador (a avaliação resulta como um processo de espelho do aluno para se rever no processo de aprendizagem).

B) Tempos Previstos de Auto-Aprendizagem 1. A música, o trabalho gestual e os trabalhos plásticos realizados no workshop ajudam a compreender a complementaridade entre hemisfério direito e hemisfério esquerdo, revelando a especificidade da actividade criadora.

2. O resumo das aulas, as fichas de leitura críticas, contribuem para o desenvolvimento do espírito crítico.

SOCIEDADE & território Jacinto Rodrigues Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

3. As intervenções teóricas ligadas a esta actividade prática de exercícios e jogos pedagógicos ajudam a reformar o pensamento através das noções veiculadas nomeadamente por Edgar Morin sobre a complexidade, a sistémica e a transdisciplinariedade. 4. Os filmes: Ecodesign, Biosfera II, Findhorn, Paolo Soleri, etc. são exemplos de explicitação da problemática tratada ao longo das aulas e permitem a visualização dos temas tratados.

D) Aprender a Aprender Metodologia prática e organizativa a) O “conhecimento de si” e o “conhecimento do outro”. O conhecimento pessoal faz parte do percurso pedagógico. O aluno apresenta-se e é apresentado. Mas vai aprofundando o auto-conhecimento por exercícios e provas que lhe fornecem um olhar reflectido sobre si e sobre os outros. A ficha com uma série de exercícios permite um processo de auto-análise, um retrato subjectivo e objectivo. b) Os exercícios de expressão: os desenhos de forma, os trabalhos em barro e a expressão gestual constituem elementos de criação, comparação e auto-observação. Expressam a descoberta de linguagens primordiais, símbolos e referentes da cultura em que nos inserimos. Estes exercícios possibilitam nomeadamente a abordagem psico-social do meio envolvente (“Umwelt”) revelando as questões da proxémia (Eduard Hall), as questões do panóptico e os dispositivos topológicos de dominação e controle estudados nomeadamente por Foucault e ainda problemáticas ligadas às relações entre as pessoas e os lugares e sobretudo a relação produzida pelas formas de arquitectura e do urbanismo – espaços agarofobos, claustrofobos e sociofobos. c) A distribuição da informação: A importância atribuída à pesquisa e à construção de uma rede distributiva dos saberes do grupo, através do uso da informática, constituem o fio condutor da racionalidade pedagógica e da distribuição democratizada da informação.

Bibliografia: Antropologia do Projecto, Jean Pierre Boutinet, Ed. Instituto Piaget; Área de projecto-Percursos com sentido, Ariana Cosme; Rui Trindade, Ed. Asa, 2001; Ensinar e Aprender por projectos, Marília Mendonça, Ed. Asa, Julho 2002; Les Microsociologies, G. Lapassade, Ed. Anthropos, Paris, 1996; Teoria de la Acción Comunicativa, J. Habermas, Ed. Taurus, Madrid, 1987; Trabalho de Projecto – um manual para professores e formadores, L. B. Castro, M. M. C. Ricardo, Texto Editora, Lisboa, 1993

MEDICINA

Estimulação cerebral beneficia doentes de Parkinson

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Reencontrar o prazer de tocar piano ou simplesmente voltar a dar um passeio são alguns dos benefícios do tratamento de estimulação cerebral que tem vindo a ser aplicado, desde 1995, a cerca de 30 mil doentes vítimas de Parkinson no mundo inteiro – 15 mil deles só na Europa –, revelaram especialistas reunidos em Paris no VIII Congresso da Federação Europeia de Sociedades de Neurologia. Calcula-se que a Doença de Parkinson afecte cerca de 1,5 milhões de pessoas na Europa, com 150 mil novos casos diagnosticados anualmente, geralmente acima dos 60 anos, apesar de 10% serem registados antes dos 40. Embora os especialistas estimem que esta terapia poderá vir a beneficiar, num futuro próximo, cerca de 250 mil pessoas, ela incide actualmente apenas numa pequena minoria dos portadores da doença, entre 5 e 10%. O tratamento, que foi descoberto entre 1987 e 1990, melhora de forma significativa os tremores e a rigidez que caracterizam a doença, possibilitando a redução da inges-

tão de outros medicamentos cujos efeitos secundários provocam a descoordenação de movimentos. “Apesar destes inconvenientes”, explica Mary Baker, presidente da Associação Europeia contra a Doença de Parkinson, “o tratamento diminui a necessidade de medicamentos e a dependência, gerando uma economia significativa para os sistemas de saúde”. Desenvolvido na cidade de Grenoble, em França, pela equipa do professor AlimLouis Benabid, o tratamento consiste na transmissão de impulsos em alta frequência por intermédio de elétrodos implantados numa área do cérebro ligada ao sistema nervoso central e associada aos movimentos. O neuroestimulador que gera impulsos elétricos é implantado sobre o peito, tal como acontece com os estimuladores cardíacos. Fonte: AFP


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Fritjof Capra e a extinção da cultura Lições da alfabetização ecológica

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Capra é mundialmente conhecido por suas preocupações com a complexidade do meio ambiente e da mente humana, mas sua abordagem anti-reducionista da alfabetização ecológica é profundamente reducionista, já que, ao ignorar a cultura, apregoa sua extinção.

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O físico Fritjof Capra esteve recentemente no II Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Nesta ocasião, defendeu a idéia de uma alfabetização ecológica. Segundo o autor, cujas idéias são amplamente difundidas no Brasil e no mundo, a situação da crise ambiental é tão grave que fez com que ele deixasse de lado suas preocupações com a física quântica para trabalhar no que denomina de “alfabetização ecológica”. Em seu livro A Teia da Vida, Capra descreve a alfabetização ecológica através de seis princípios: Interdependência, Ciclagem, Parceria, Cooperação, Flexibilidade e Diversidade. Para Capra (1996), a sabedoria da natureza é a essência da eco-alfabetização. “Reconectar-se com a teia da vida significa construir, nutrir e educar comunidades sustentáveis, nas quais podemos satisfazer nossas aspirações e nossas necessidades sem

diminuir as chances das gerações futuras.”(p.231) Até aqui, a proposta de Capra parece não ter muitos problemas, pelo contrário, é bastante instigante e até bonita. Mas vejamos o que ocorre quando entramos no campo da ética. Em primeiro lugar, Capra esquece que, como nos diz Foucault, o mundo adquire sentido pela linguagem, pela nomeação, e a alfabetização ecológica é apenas uma dentre inúmeras formas de classificação e nomeação possíveis. Mas este ainda não é o maior problema, afinal, toda ciência implica em uma certa redução. O que é ampla e indiscutivelmente criticável é que Capra reduz toda diversidade, incluindo a diversidade cultural, aos seis princípios da alfabetização ecológica e alega ser esse o modo “correto” através do qual poderíamos conceber a natureza e a nós mesmos.

O maior problema está na ética da alfabetização ecológica. Para Capra (2002), somos moradores da casa terra e devemos nos comportar como se comportam os outros moradores dessa casa – as plantas, os animais, e os microorganismos que constituem a vasta rede de relações que chamamos “teia da vida”. Dito de outro modo, nós devemos, observar como se comporta o mundo natural, para daí extrair princípios morais para os comportamentos humanos. Esse naturalismo ético nos leva à extinção da cultura. Por essa razão, decidi começar este comentário com uma provocação, dizendo que uma das lições da alfabetização ecológica é a da extinção da cultura. Capra quer reduzir a política, a ética, a estética, enfim, a cultura, aos princípios de sua alfabetização ecológica. Capra é mundialmente conhecido por suas preocupações com a

complexidade do meio ambiente e da mente humana, mas sua abordagem anti-reducionista da alfabetização ecológica é profundamente reducionista, já que, ao ignorar a cultura, apregoa sua extinção. Uma das lições que podemos tirar disto é que precisamos estar permanentemente vigilantes em relação a discursos que tratam de soluções abrangentes e universais. Todos eles estão contaminados por uma superioridade que impede a consideração da contingência, da pluralidade, daquilo que, como nos ensinou Nietszche, é “demasiadamente humano”.

CULTURA e pedagogia Mauro Grün Professor do Programa

Bibliografia:

de Pós-graduação

CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2000.

em Educação da

_____. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002.

Universidade Luterana do

GRÜN, Mauro. As Teias da Aprendizagem: as relações entre na-

Brasil e da Universidade

tureza e cultura na Educação Ambiental. In: Resumos da Reu-

de Caxias do Sul.

nião Regional da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso

Pesquisador da área de

da Ciência) realizada em Canoas, 23 a 26 de maio de 2004.

Educação Ambiental.

SIDA

Sida é considerada uma ameaça à segurança mundial A sida passou a ser considerada uma ameaça à segurança mundial pelo seu potencial em provocar conflitos e guerras em países devastados pela doença, afirmaram especialistas numa conferência sobre o tema que teve lugar em Londres no passado mês de Setembro. Alguns participantes disseram inclusivamente temer pelo futuro de vários países do sul da África, onde milhões de

cionais, pode propiciar revoltas sociais e conflitos entre países vizinhos. “A sida em si não causa guerras e levantamentos populares, mas pode desestabilizar”, disse Joep Lange, um professor da Universidade de Amsterdão. Segundo ele, 12,3 milhões de crianças africanas órfãs poderão ser a longo prazo uma fonte de turbulência, crime e prostituição. “África do Sul, Botswana e Suazilân-

taxa de adultos infectados na Suazilândia é de 38.8%, a mais alta do mundo, ao passo que o Botswana regista 37.3%, segundo estatísticas da OnuSida. Em sete países subsaarianos - Zâmbia, Zimbabwe, Suazilândia, República Centro-Africana, Lesoto, Moçambique e Malawi - a expectativa média de vida é de 40 anos. Já o professor de economia da Universidade de Kwazulu-Natal, na África do

país em que a proliferação da sida estimulou a existência de um governo autocrático e arruinou a economia, sendo que o Malawi, Suazilândia e Botswana estarão no mesmo caminho. Em contrapartida, Whiteside disse que a luta contra a sida pode unificar países, desde que bem liderados, e citou o caso do Uganda, onde a taxa de adultos contaminados caiu de uma pe-

adultos estão infectados pelo vírus HIV e não têm acesso a um tratamento adequado. A morte prematura destes adultos, além de ser nociva às economias na-

dia são países onde o surgimento de conflitos é potencial. No caso do Botswana, e se nada for feito, o país pode mesmo deixar de existir”, acrescentou Lange. A

Sul, Alan Whiteside, citou a Somália como o exemplo de um país que praticamente só existe no papel. Whiteside deu ainda o exemplo do Zimbabwe como um

centagem de dois dígitos para 5% em apenas 15 anos. Fonte: AFP

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DA CRIANÇA Raúl Iurra ISCTE/CEAS/UTAD Miranda do Douro

A criança, esse valor de câmbio Para a Escola de Beslan Temos hábitos. Hábitos de conceitos. Hábitos de significados. Hábitos emotivos. Os primeiros, são de grande facilidade de definir: um conceito diz o que uma coisa é, uma actividade ou um facto. O significado, diznos a abstracção dessa realidade. Como valor, o tempo usado em fabricar uma mercadoria. Como câmbio, a utilidade de trocar um bem que eu faço por um bem que não tenho, intermediado pela abstracção dinheiro ou capital. E fica assim, rapidamente tudo definido e no seu sítio racional. Os emotivos, nem conseguem ser hábitos. Ou, por outra, temos o hábito de ter emoções e sentimentos, como referi no jornal de Julho deste ano. Texto que referia conceitos abstractos de sentimentos. E, como refere a dedicatória, bom para o que eu costumo denominar processo de ensino e aprendizagem. Mas, no dia em que sabemos de forma pública da existência de crianças trocadas no mercado humano, o que para Freud em 1895 era apenas denominado prazer, em 1905, passa a ser o prazer sexual de adultos que abusam de crianças. Lendo o texto, dedicado ao facto conceptualizado de pedofilia, crime, hoje, para dois anos de prisão, passou a ser de praça pública, sem outro castigo que não seja deter preventivamente por um número de dias, que até parecem poucos, mesmo que ainda o crime não esteja provado. Existe prisão preventiva de apenas um dia, o direito de habeas corpus, não usado entre nós: mais um castigo ao crime. Não é o nosso caso, não parece que venha a ser mudado em breve, nem tampouco é esperada uma modificação ao Código Penal até ser resolvida a pedofilia não ritual que costumamos ter; não ritual, insisto, porque a ritual faz parte de um sentimento emotivo partilhado por adulto e criança, dentro de uma genealogia definida com anos de antecedência e entre pessoas que passam a desempenhar outros papeis entre eles, como é o caso de um dos parceiros passar a ser o pai dos sobrinhos do outro, como manda a lei costumeira. Este crime é hediondo, faz anos que existe. Tenho-o denunciado aos gritos neste jornal e nos meus livros. Mais hediondo ainda, sem nome e sem qualificação, é o outro crime que não tem conceito: usar as crianças como escudo para uma luta po-

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lítica. Escudo material, esse que coloca um pequeno ou pequena numa janela para prevenir disparos de um exército mandado para defender os interesses de um país imperialista que apenas deseja, cobiça diria melhor, os portos de um país autónomo e independente para o seu comércio

colonial. Devido as mortes causadas durante longo tempo, o povo invadido e cercado resolve tomar vingança e prepara, com antecedência, um ataque atroz, a ser realizado no dia da abertura das aulas. O dia de andar com os melhores fatos, com cara de maior alegria, de mães que

acompanham os seus pequenos para a festa. E, sem saber como e qual o minuto, uma bomba estala e mata os primeiros... pequenos. Mais de 265 funerais foram realizados ao longo de três dias no país colonialista, esse país que todos respeitámos um dia porque lutou pela igualdade, pelo cuidado das pessoas, as fontes de trabalho certas, os salários com mais valia…Os países, nesse tempo dominados, eram tratados com prisão, perseguição, ausência de segurança, ignorância para os pequenos, até o sistema, pensado por Bukhanin, Lenin, Trotsky, Marx, Durkheim, Mauss, Kerensky e outros, derrubase e entra a ditadura que hoje choramos e que nos faz chorar. Nunca teriam pensado os pais fundadores que as crianças também seriam, moeda de câmbio! Seres para a troca, eles já o eram: trabalhavam nas indústrias que precisavam de mão-de-obra de pequeno tamanho para complementar um bem. Mas eram pagos, tinham aulas, tinham escolas, tinham horário, tinham o orgulho do contributo à Pátria. Até ao dia da vingança, da morte de centenas, faz apenas três semanas. Com um povo que deseja tomar as armas e entrar a saque no colonizador e matar não apenas assassínios, bem como autoridades responsáveis pelo sacrifício de morte na cruz da troca de câmbio sem valor de esse futuro humano da História. E o tribunal internacional da Der Hägen ou La Haia? Porquê apenas Nüremberg? Porquê apenas Bósnia? Porque não o Chile? E que foi feito da Argentina e das mães da Praça de Maio? E os assassínios livres ainda e com o Prémio Nobel da Paz nas mãos? Ou os imunes, acusados, sujeitos de delito, que andam pela rua? Ou a ganhar uma eleição em breve? Em nome do quê? Da defesa do terrorismo, que mata ninhadas de crianças e rapta adultos como mais um escudo que entra nas casas em nome da defesa de um conceito de horror definido pelos Estados colonialistas? Esse que adia, porque sim, o começo das aulas, tal como autoriza ao exército torturar prisioneiros de guerra. E a Convenção de Genebra? E os colonizadores? E os barcos – hospitais corridos por fragatas ao mar internacional? E a Convenção? E Beslan? A mudança de hábitos? 18 de Setembro, dia da denominada Independência do Chile da coroa da Monarquia da Espanha, mas não de Washington DC

Breve História da Grécia

QUOTIDIANOS Maria Gabriel Cruz UTAD, Vila Real

De 1821 a 1827, deu-se a Guerra da Independência da Grécia. Personalidades como Lord Byron animaram os governos da França, Inglaterra e Rússia a atacar os turcos, retirando-lhes o domínio do território da antiga “Grécia Continental”. Ioannis Capodistrias (1776-1831), um líder nacional tornou-se o primeiro governador da Grécia (1830-31). Seria assassinado, iniciando-se um processo complicado.

Eleftherios Venizelos (1864 - 1936) foi mais tarde primeiro-ministro, tendo-se verificado a Guerra Greco-Turca de 1919 a 1922. Os gregos receberam a promessa de ajuda militar, em particular do primeiroministro britânico David Lloyd George, tendo atacado a Turquia. Ocuparam Esmirna e chegaram a 100Km de Ankara. Porém foram derrotados e os Aliados Grã-Bretanha, França e Itália decidiram não os ajudar.

(Coisas que a “História” não diz)

(Mais coisas que a “História” não diz)

Uma “pequena Grécia” continuou a existir até que – outro pormenor curioso – nos últimos anos do Século XX e no começo do Século XXI a Grécia foi transformada num Estado forte e moderno, como “contrapartida” do desmembramento da Jugoslávia.

Contando os habitantes das “ilhas de felicidade”, as zonas onde habitam os Canadianos e Norte-Americanos, a União Europeia, o Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia comparem-se com os 6000 milhões, total aproximado de habitantes do planeta…


A info-exclusão e os desafios educativos

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…A importância das tecnologias de informação nas sociedades actuais, nomeadamente, ao nível do trabalho, lazer e acesso ao conhecimento, tem vindo a evidenciar o problema da info-exclusão – um conjunto de regiões do planeta, de bairros pobres e comunidades rurais que, sistematematicamente, estão fora do acesso às tecnologias de informação e comunicação. Volvidos alguns anos, e contrariamente às visões mais optimistas que, ontem, tal como hoje, argumentam que a equidade e o bem estar social passa pela difusão das tecnologias de informação e comunicação, o cansaço da questão tecnológica que não altera um quotidiano repleto de desigualdades sociais, vai deixando rastos que apagam esperanças. De facto, a importância das tecnologias de informação nas sociedades actuais, nomeadamente, ao nível do trabalho, lazer e acesso ao conhecimento, tem vindo a evidenciar o problema da info-exclusão – um conjunto de regiões do planeta, de bairros pobres e comunidades rurais que, sistematematicamente, estão fora do acesso às tecnologias de informação e comunicação. A evidência dos dados empíricos vem mostrando que não só o desemprego aumentará entre os info-excluídos, como a sua esmagadora maioria se encontra entre aqueles que têm menor educação formal. As estatísti-

cas também nos mostram que Portugal, apesar de se localizar numa das áreas económico-políticas de maior expressão tecnológica, a União Europeia, é um dos países onde a taxa de penetração das novas tecnologias digitais é menor, nomeadamente, o número da população on-line. Tendo em conta que o significado geral da tecnologia inclui aspectos técnicos, mas também organizativos e culturais, é fácil de concluir que, se é vital para o país a existência de um conjunto de profissionais altamente qualificados e criativos neste domínio, não menos importante é a familiarização de todos os cidadãos com as tecnologias digitais, uma vez que são estes que, ao consolidarem práticas tecnológicas no seu quotidiano, irão construir, a médio e longo prazo, o interesse em novos mercados, novos saberes e novos artefactos tecnológicos. Mais recentemente, foi criada a disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação ao nível do En-

sino Secundário. Independentemente dos problemas e questões que a inclusão desta disciplina no plano curricular do Ensino Básico nos possa sugerir (eventualmente a abordar num próximo texto), os estudos têm mostrado que equipar as escolas e desenvolver cursos de computadores, apesar de ajudar a atenuar as divisões digitais e contribuir para a difusão e educação tecnológica, não resolve o problema da info-exclusão.

PORTUGAL, apesar de se localizar numa das áreas económico-políticas de maior expressão tecnológica, a União Europeia, é um dos países onde a taxa de penetração das novas tecnologias digitais é menor, nomeadamente, o número da população on-line. Assim, as pessoas que vivem em bairros urbanos pobres e zonas rurais isoladas podem até ter contactos com os computadores e navegar na “Net”, nas escolas, nos organismos públicos

ou mesmo em cyber cafés, mas continuam sem possibilidades de acesso imediato aos computadores de alta velocidade e às suas necessidades constantes de actualização, para realizar os downloads e permitir o uso criativo da tecnologia digital na autoeducação. Seria por isso desejável que, pelo menos para não se agravar o foço tecnológico entre países da mesma “família política” sob pena de, neste caso Portugal, ficar fora da matriz económico-política-social da União Europeia, existisse ao nível das políticas educativas um esforço para que famílias e comunidades pobres dispusessem de meios de acesso à tecnologia digital, nomeadamente, criando centros tecnológicos comunitários em bairros pobres, à semelhança do que se vai fazendo em vários países que consideram seriamente o problema da info-exclusão. Em Novembro, os Textos Bissextos continuam com “Quem quer saber?” por Elisa Costa.

TEXTOS bissextos Darlinda Moreira Universidade Aberta darmore@univ-ab.pt

POBREZA

Presidente brasileiro afirma que “a pior arma de destruição maciça é a miséria” O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva apelou recentemente a dezenas de chefes de Estado e de governo, reunidos na sede da ONU, em Nova Iorque, para a formação de uma frente global contra a pobreza e a fome no mundo. “O maior escândalo não é a existência da fome, mas o facto de ela ainda não ter sido erradicada quando dispomos dos meios para fazê-lo. O tempo de agir chegou”, afirmou Lula na “Declaração de Nova Iorque contra a fome e a pobreza”, documento assinado por 113 países. Antes da intervenção de Lula da Sil-

va, o presidente francês Jacques Chirac afirmou que “uma globalização que tolere a depredação e que os seus frutos sejam dominados por uma minoria não tem futuro”. O encontro foi organizado pelos chefes de Estado do Brasil, Chile, França e Espanha e realizou-se um dia antes da abertura da 59ª Assembleia Geral da ONU. No encontro foi analisado um relatório técnico sobre as medidas necessárias para o cumprimento dos Objectivos do Milénio, celebrado em 2000, entre os quais o de reduzir para metade a pobreza

no mundo até 2015. Este objetivo poderá não vir a concretizar-se por falta de vontade política, disse Lula. Entre as sugestões citadas pelo relatório técnico está a criação de um imposto internacional contra a pobreza. “A meta de uma globalização mais justa só pode ser alcançada se os recursos estiverem disponíveis em grande escala”, refere o documento. O relatório dos especialistas admite que a proposta do imposto é polémica e politicamente inviável no momento, mas pede que a comunidade internacional comece a discutir seria-

mente a criação do imposto. “Os desafios e dilemas de nossa sociedade planetária exigem soluções integradas e vontade comum. Precisamos de globalizar os valores da democracia, do desenvolvimento e da justiça social para dar resposta ao preocupante déficit de governação mundial. São esses valores que contribuirão para dar outro sentido à segurança colectiva, reduzindo a ameaça do terrorismo e das armas de destruição maciça”, afirmou Lula na ocasião. Fonte: AFP

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Falta de Educação! A máquina do Ministério da Educação é colossal, enorme, tenaz e burocrática, ou seja, propícia à estagnação e retrocesso de uma área que, cada vez mais, devia ser encarada numa perspectiva séria, a longo prazo, pois não se podem obter bons resultados, nomeadamente no que se refere ao insucesso e ao abandono escolar - dois problemas que afligem os responsáveis das escolas e os professores – sem decisões concretas e certeiras.

PÁGINA solta Filinto Lima Professor. Oliveira do Douro, Vila Nova de Gaia

O ex-Ministro da Educação, quebrou o silêncio que mantinha há algum tempo. Em entrevista recente, David Justino aponta o dedo da não colocação dos professores à “negligência, desorganização e incompetência”, aliada a “informações incorrectas” que foram transmitidas aos serviços, não esquecendo a “falha de coordenação entre quem sabe de concursos e quem tinha de fazer a programação”, repartindo assim as culpas pelo caos. Toda a longa entrevista é focada na lista de colocação de professores, admitindo o ex-responsável pela Educação do nosso país que o Ministério da Educação não sendo “uma espécie de monstro” é “claramente demolidor”, tendo mágoa que “a Educação continue a ser uma sucessão

de falhanços políticos.” E, David Justino, tocou em dois pontos que, mais que a falta das listas de colocação dos professores, atormentam a Educação Nacional: máquina exorbitantemente enorme e burocrática, e constantes mudanças políticas nesta área, com novas reformas e contra-reformas, sem serem testados os resultados anteriores. Na verdade, todos reconhecem, há muitos anos, que a máquina do Ministério da Educação é colossal, enorme, tenaz e burocrática, ou seja, propícia à estagnação e retrocesso de uma área que, cada vez mais, devia ser encarada numa perspectiva séria, a longo prazo, pois não se podem obter bons resultados, nomeadamente no que se refere ao insucesso e ao abando-

no escolar - dois problemas que afligem os responsáveis das escolas e os professores – sem decisões concretas e certeiras. Mas, nada disto foi feito; pelo contrário: a centralização dos serviços e departamentos do Ministério da Educação na capital, a retirada de competências às Direcções Regionais de Educação, a tentativa (conseguida!) de extinção dos CAE’s (Centros da Área Educativa) e o facto de cada vez mais as escolas serem “fantoches” telecomandados pelo centralismo atroz, relegando a tão apregoada autonomia para um plano de subserviência, levam a que se possa falar, usando um termo futebolístico, do sistema. Sistema que, nesta área, é feito pelos decretoslei, despachos, circulares, ofícios e outros diplomas

O PROBLEMA da Educação Nacional é muito mais que o fiasco da (não) colocação dos professores nas escolas… são as brincadeiras constantes que os diversos governos têm feito com ela, faltando-lhe ao respeito, sem educação. mais ou menos legislativos que só trazem complicações às nossas escolas. Cada vez mais, as escolas precisam de uma autonomia efectiva e real, que possa ser praticada diariamente no campo, ou seja, no palco da Educação, que não é o gabinete do Ministério, mas antes as nossas escolas e as respectivas salas de aula. Por outro lado, David Justino acha que a Educação é uma sucessão de falhanços políticos. Nem mais! Sempre que um grupo de

pessoas (Governo) chega ao poder, tem necessidade (necessidade que eles sentem, e não a Educação!) de pôr em prática reformas sem avaliar as que estão em curso. Mudam e confundem os actores principais da Educação: professores, alunos e pais. Grave erro em que todos caem, até o próprio ex- Ministro. Jamais poderemos continuar a “brincar às escolinhas”. Jamais o partido que estiver no poder, poderá “reformar por reformar” ou “alterar por alterar”. O problema da Educação Nacional é muito mais que o fiasco da (não) colocação dos professores nas escolas; o problema da nossa Educação são as brincadeiras constantes que os diversos governos têm feito com ela, faltando-lhe ao respeito, sem educação.

MEDICINA

Médica britânica elogia produto indiano que faz “milagres” contra o cancro

Solta

Uma médica britânica, ex-chefe do Centro de Luta contra o Cancro da cidade de Bristol, acredita que um medicamento tradicional indiano, preparado a partir de oito plantas medicinais, terá efeitos terâpeuticos inéditos no tratamento contra o cancro. Rosy Daniel afirmou ao jornal Daily Telegraph que “pela primeira vez em 20 anos existe um medicamento que pode fa-

zer a diferença”, referindo-se ao Carctol, um medicamento indiano que contém extratos de oito plantas, entre elas cinco catalogadas como plantas medicinais segundo a classificação em vigor na Grã-Bretanha. “Durante anos vi várias pessoas recuperarem de forma significativa do cancro, mas desde que prescrevo o Carctol assisti a autênticos milagres e

os resultados multiplicam-se”, afirmou Rosy Daniel. Elaborado por um médico de Rajasthan, Nandlal Tiwari, que usa o medicamento desde há 25 anos, o Carctol já foi prescrito a cerca de 860 pacientes na Grã-Bretanha. Baseando-se em resultados observados num quarto dos doentes com os quais mantém contacto, a médica inglesa assegura que, em geral, o cancro

não avança, retrocede ou desaparece completamente. O Carctol não é um medicamento simples e deve ser ingerido sob um regime não-ácido, acompanhado de uma enzima que ajuda a digestão e com grandes quantidades de água (3 a 5 litros por dia). “Tudo o que é científico começa com a observação. Eu não faço a apologia ao Carctol, apenas relato um fenó-

meno”, disse a médica ao jornal. “Não aconselharia ninguém a tomar esse medicamento”, declarou por sua vez ao ‘Daily Telegraph’ Edzard Ernst, professor na Universidade de Medicina de Exeter e Plymouth, no sul da Inglaterra, para quem as informações na internet em relação ao Carctol constituem um “discurso enganoso”. Fonte: AFP


Ficha Técnica Director e Coordenador editorial: José Paulo Serralheiro | Editor João Rita | Editor Gráfico Adriano Rangel | Redacção: Andreia Lobo e Ricardo Costa | Secretaria da redacção: Lúcia Manadelo | Paginação-Digitalização: Ricardo Eirado e Susana Lima | Fotografia: João Rangel (Editor) | Ana Alvim.

CENTRALIZAR OU DESCENTRALIZAR O QUÊ?

A cunha e a amizade como formas de contratação de educadores e professores

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a página

da educação outubro 2004

Rubricas e colaboradores À LUPA — Ana Maria Braga da Cruz, Jurista, Porto. António Brotas, Instituto Superior Técnico, IST, Lisboa. Manuela Coelho, Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto. Patronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Universidade Federal de São Carlos e Conselho Nacional de Educação do Brasil. | À FLOR da pele — Cristina Mesquita Pires, Escola Superior de Educação de Bragança. | AFINAL onde está a escola? — Coordenação: Regina Leite Garcia, Colaboração: Grupalfa—pesquisa em alfabetização das classes populares, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. | ANDARILHO — Discos: Andreia Lobo, Em Português: Leonel Cosme, investigador, Porto. Livros: Ricardo Costa. O Espírito e a Letra: Serafim Ferreira, escritor e critico literário. Cinema: Paulo Teixeira de Sousa, Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto. | APONTAMENTOS de José

Existe entre nós uma boa dose de provincianismo. Muito boa alma está convencida que o prestígio da sua cidade, vila ou aldeia, não passa pelo que é capaz de produzir, organizar e viver, mas por ter entre portas um organismozito do Estado. É nesse sentido que não há problema que não se resolva com uma reivindicação de descentralização. O país não tem consciência da sua pequenina dimensão, ainda se julga um império. E que tal descentralizar o Brasil, os EUA, a Rússia, a Índia, a China… à portuguesa? Esta coisa da regionalização tem que se lhe diga. Qualquer dia há mais organismos do Estado do que portugueses em idade de trabalhar. Agora oiço amigos de conselhos executivos reivindicarem a contratação dos professores por cada escola. Descentralizar, dizem. Não há dúvida, na alma de cada português há sempre um patrãozinho escondido.

Ferreira Alves, Universidade do Minho. | CIDADE educadora — Isabel Baptista, Universidade Católica, Porto e Adalberto Dias de Carvalho, Faculdade de Letras da Universidade do Porto | CULTURA e pedagogia — Coordenação: Marisa Vorraber Costa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil | DA CIÊNCIA e da vida — Francisco Silva, Portugal Telecom. Margarida Gama Carvalho, Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular. Rui Namorado Rosa, Universidade de Évora. | DA CRIANÇA — Raúl Iturra, ISCTE Universidade de Lisboa. | DISCURSO Directo — Ariana Cosme e Rui Trindade, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. | DO PRIMÁRIO — José Pacheco, Escola da Ponte, Vila das Aves. | DO SUPERIOR — Adalberto Dias de Carvalho, Faculdade de Letras daUniversidade do Porto. Alberto Amaral, Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior, Universidade do Porto. Ana Maria Seixas, Universidade de Coimbra. Bártolo Paiva Campos, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Manuel Pereira dos Santos, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa | E AGORA professor? — José Maria dos Santos Trindade, Pedro Silva, Ricardo Vieira, Susana Faria da Escola Superior de Educação de Leiria. Rui Santiago, Universidade de Aveiro | EDUCAÇÃO desportiva — Gustavo Pires e Manuel Sérgio, Universidade Técnica de Lisboa. André Escórcio, Escola B+S Gonçalves Zarco, Funchal. | EDUCAÇÃO e Cidadania — Américo Nunes Peres, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves. Miguel Ángel Santos Guerra, Universidade de Málaga, Espanha. Otília Monteiro Fernandes, Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro, Chaves. Xesús R. Jares, Universidade da Corunha, Galiza. Xurjo Torres Santomé, Universidade da Corunha, Galiza. | ÉTICA e Profissão Docente — Adalberto Dias de Carvalho, Universidade do Porto. Isabel Baptista, Universidade Católica, Porto. José António Caride Gomez, Universidade de Santiago de Compostela, Galiza. | FORA da escola também se aprende — Coordenação: Nilda Alves, Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Brasil. Colaboração: Grupo de pesquisa Redes de Conhecimento em Educação e Comunicação: questão de cidadania | FORMAÇÃO e Desempenho — Carlos Cardoso, Escola Superior de Educação de Lisboa. | FORMAÇÃO e Trabalho — Manuel Matos, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. | IMPASSES e desafíos — Agostinho Santos Silva, Eng. Mecânico CTT. António Teodoro, Universiade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa. João Barroso, Faculdade de Psicologfia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. João Teixeira Lopes, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. José Alberto Correia, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Pablo Gentili, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. | LUGARES da Educação — Almerindo Janela Afonso, Licínio C. Lima, Manuel António Ferreira da Silva e Maria Emília Vilarinho, Universidade do Minho. | OBSERVATÓRIO de políticas educativas — Ana Benavente, deputada do Partido Socialista. João Teixeira Lopes, deputado do Bloco de Esquerda. Luísa Mesquita, deputada do Partido Comunista Português | OLHARES — Fernando Bessa, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. José Miguel Lopes, Universidade do Leste de Minas Gerais, Brasil. Maria Antónia Lopes, Universidade Mondlane, Moçambique. | QUOTIDIANOS —Carlos Mota e Gabriela Cruz, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. | RECONFIGURAÇÕES — Coordenação: Stephen R. Stoer e António Magalhães, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Colaboram: Fátima Antunes, Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho. Fernanda Rodrigues, Instituto de Solidariedade e Segurança Social e CIIE da FPCE Universidade do Porto. Roger Dale, e Susan Robertson, Universidade de Bristol, UK. Xavier Bonal, Universidade Autónoma de Barcelona, Espanha | SOCIEDADE e território — Jacinto Rodrigues, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. | TECNOLOGIAS — Celso Oliveira, Escola José Macedo Fragateiro, Ovar. Ivonaldo Neres Leite, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil | TERRITÓRIOS & labirintos — António Mendes Lopes, Instituto Politécnico de Setúbal.| TEXTOS bissextos — coordenação: Luís Souta, Instituto Politécnico de Setúbal. Colaboram: Ana Laura Valadares Metelo, Escola Superior de Educação de Lisboa; Darlinda Moreira, Universidade Aberta, Lisboa; Elisa Costa, Historiadora, Lisboa; Paulo Raposo, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa-ISCTE, Lisboa; Telmo Caria, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,UTAD, Vila Real. Administração e Propriedade: Profedições. lda · Porto | Conselho de gerência: José Paulo Serralheiro. João Baldaia. Abel Macedo. | Registo Comercial: 49561 | Contribuinte: 502675837 | Depósito legal: 51935/91 | DGCS 116075 | Administração, redacção e publicidade: Rua D. Manuel II, 51 – C – 2º andar – sala 2.5b — 4050-345 PORTO | Tel. 226002790 | Fax 226070531 | Correio electrónico: redaccao@apagina.pt | Edição na Internet: www.apagina.pt/ | Impressão: Naveprinter, Maia | Distribuição: VASP - Sociedade de Transportes e distribuição, Embalagem: Notícias Direct, Maia | Serviços Agência France Press, AFP. | Membro da Associação Portuguesa de Imprensa – AIND

Portugal é conhecido por se colocar na parte cimeira das listas dos países onde existe mais corrupção. Possivelmente a corrupção em Portugal não é tanto a da compra de grandes favores, mas é sem dúvida a que resulta do pequeno favor, do compadrio, do afilhado, da cunha, da pequena influência. O caciquismo do final da monarquia e do início da República não desapareceu, só se refinou e adaptou às novas realidades. Nós não abandonámos há tanto tempo como se pensa uma sociedade de servos e senhores. Uma boa parte da população portuguesa continua a manter intactos alguns hábitos da sociedade servil. É isso que explica que muita gente do povo se não sinta bem se não oferecer umas garrafas de tinto, o whisky velho, o cabrito, a perdiz… ao médico que se limitou a tratá-lo com profissionalismo e respeito. As professoras e os professores, sobretudo os do primeiro ciclo a trabalhar em aldeias, conhecem bem esta realidade. Quanta quinquilharia pavorosa não têm os educadores e professores de aceitar com um sorriso de embaraço e simpatia. Na sociedade portuguesa a corrupção é particularmente pesada na esfera do emprego. Uma boa parte dos portugueses têm empregos adquiridos através do favor, da cunha, do amigo, do familiar, da pequena influência. Estudar a natureza das relações entre os trabalhadores dependentes de uma Câmara Municipal, por exemplo, ajuda a perceber o que somos e o que vai por aí. Somos bombeiros, maqueiros da ambulância, árbitros de futebol ou trabalhamos num centro de saúde porque temos um parente ou um amigalhaço bem colocado no meio. A direita passa o tempo a pregar a bondade do mercado e a lisura das relações de trabalho no sector privado. Dizem que o mercado é exigente e não contemporiza com os favores. Ou se é bom e singra-se na carreira ou o mercado elimina. Nada de mais errado. Pelo menos em Portugal não se arranja um emprego no sector privado por se demonstrarem especiais aptidões para a função. Os filhos, os sobrinhos, os enteados, as noras, os cunhados, a prima do amigo… e por aí adiante, estão à cabeça da lista de candidatos a qualquer emprego com algum interesse. Estas considerações foram-me ditadas por algumas reacções ao desastre dos concursos de professores e educadores. Não tem faltado quem aponte a descentralização dos concursos como remédio milagroso para a incapacidade de gerir a fácil colocação de professores. Ouvi amigos, membros de conselhos executivos, a defender a contratação dos professores por eles próprios. Em nome da autonomia, claro. Ora isto mostra que se tem discutido pouco o que é a autonomia profissional, a autonomia da escola, a contratação e a mobilidade profissional. Exige-se por isso que estes problemas sejam mais estudados e nos deixemos de navegar à superfície. Os «conselheiros de estado» da nossa praça, aproveitaram a ocasião para virem de roldão reafirmar a urgência de entregar a contratação de professores às Câmaras Municipais. Tudo isto, é bom de ver, em nome da democracia, da transparência,

da eficiência, da qualidade do ensino e até da autonomia. Mas que democracia, que transparência, que lisura, que eficiência, que competência, que qualidade de ensino? Querem os educadores e professores escolhidos e contratados pelos Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Narciso Miranda ou o impagável Avelino Ferreira Torres, entre outros também muito populares? E contratação de docentes pelas Câmaras Municipais em nome de que autonomia? Do exercício livre e responsável da profissão docente? Da garantia de que compete a cada docente individualmente, nalguns casos, e colectivamente noutros, assegurarem o exercício e o cumprimento de uma ética profissional comum? Em nome da autonomia dos docentes em gerirem a relação educador-aluno, educador-encarregado de educação ou educador-educador? De que democracia, lisura, transparência, competência e autonomia estão a falar os defensores da contratação municipalizada? Penso que a democracia e a autonomia são ainda o contrário do caciquismo e da subserviência. Uma coisa é a contratação dos docentes. Outra é o direito e o dever que eles têm em produzir projectos educativos próprios e em se engajarem neles em plenitude. Uma coisa é tratar da contratação de docentes outra da sua mobilidade. Ter emprego e o direito de escolher com quem se quer trabalhar é uma coisa. Dispor do privilégio de contratar e dar emprego àqueles com quem nos apetece trabalhar é outra coisa bem diferente. Uma das deficiências da nossa gestão educativa é a não separação clara da gestão administrativa da direcção e gestão pedagógica. Gestão pedagógica não é gestão administrativa, comercial ou fabril. Uma coisa é os professores e os órgãos de gestão pedagógica terem o direito de escolher, entre os seus pares, aqueles com quem querem desenvolver projectos educativos. Outra coisa é os órgãos de gestão pedagógica ou administrativa pensarem-se empregadores e contratadores de mão-de-obra. Os professores, como os médicos, juízes e outros, não são propriamente pessoal proletário. O exercício da profissão implica de facto autonomia e não as velhas formas de subordinação aplicadas aos proletários dos tempos da velha sociedade industrial. Salvaguardar a autonomia docente não passa, de certeza, por criar no ensino as velhas dependências, os empregos de favor, a avaliação do mérito através das relações de parentesco, amizade ou cunha. Não passa pelo caciquismo municipal ou escolar. Não passa por feudalizar as escolas e as relações entre docentes. Feudalismo já nos basta o que teima em subsistir no nosso ensino superior. A meu ver, o acto educativo e a produção de saber, já não são compatíveis com a existência de senhores e vassalos. Portugal é um país pequeno. Lisboa fica nos arredores do Porto. Ou será o contrário? Está tudo a dois passos de distância. Já temos courelas a mais e quintas a menos. Não se pode querer emparcelar o terreno agrícola e retalhar, ainda mais, o tecido social. Retalhar por retalhar fica-nos a todos muito caro.

PONTO de fuga José Paulo Serralheiro


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Uma carta inédita de Vergílio Ferreira Apresentação e notas de Serafim Ferreira

da educação outubro 2004

andarilho

Não interessa nesta breve apresentação fazer a história sobre a leitura de algumas dezenas de cartas que guardo de Vergílio Ferreira e as anotações que entendi introduzir para o seu mais claro entendimento na distância dos anos que correram. Mas importa acentuar que todas as cartas se revelam de facto importantes para a clarificação das atitudes assumidas pelo autor de Mudança em tempo de polémicas e comentários, tendo sempre merecido da minha parte a melhor compreensão e amizade no apoio e reforço das suas posições contra os ventos que sopravam de vários quadrantes, quando havia muita gente não perdoava ou tolerava que, arrancando a seu lado nos anos “heróicos” de 40, tivesse depois invertido noutro sentido a agulha da sua aventura literária. Mas afinal isso são contas de outro rosário que Vergílio Ferreira com toda a verdade esclareceu em muitas páginas de Conta-Corrente e agora não interessa repetir. Porém, o que sobreleva da leitura das Cartas de Vergílio Ferreira é esse sentido de companheirismo e de atenção para com os outros que, ao contrário de muitos dos seus detractores que mal o conheciam, se não cansaram de apregoar ser ele um homem de ódios antigos. E claro que não era verdade. Porque basta ler com atenção algumas das suas Cartas para se entender como essa generosidade se estendera, no meu caso, na troca aberta de ideias, confissão de projectos, sugestão de livros, leitura de alguns dos seus romances em primeira mão, enfim, hábitos e práticas de uma amizade e camaradagem literária que não se mostravam comuns entre nós, sobretudo em escritores já prestigiados e consagrados como no caso do autor de Alegria Breve. Por isso, julgo interessante que, em memória de Vergílio Ferreira, dê a conhecer duas dessas Cartas (uma hoje e a segunda no próximo núme-

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reconfortante, de que muito provavelmente esse livro encerra a minha aventura no romance. Deste modo, se ele estraga o que já está feito, será só ele a estragar. Aliás o meu propósit o não nasce daí: nasce de que o que tinha a dizer já o disse. Os meus romances não são um inventário, mas a expressão de um processo de mim, ou seja do que em problema em mim se processou. O romanceespectáculo assenta a objectiva para o que espectáculo lhe é e assim ele se pode desdobrar no 1+1. Não assim no meu caso. Por isso dificilmente imagino que um novo problema, ou um seu aspecto, se me imponha ainda depois do extremo a que “Alegria” me levou. Escrevi ao Costa Dias para casa dele, por supor que assim mais depressa ele receberia a carta. Mas como não obtive resposta, receio que esteja em férias. Está? Escreva e conte coisas. Abraços para os amigos e para si do Vergílio Ferreira.

ro) das muitas que guardo comigo: no fundo, oferecem uma outra imagem e revelam-se como o gesto e o modo de ser de um dos mais excepcionais criadores literários do nosso tempo. Ainda e sempre na memória destas palavras de Garcia de Resende numa carta a dom Francisco de Castelo-Branco, camareiro-mor de el-rei dom João III, datada de Évora, Novembro de1535:“Se cartas não fossem cartas, muitas vezes escreveria a V. M., como desejo, mas porque o são o não ouso de fazer, pois as não leva o vento, como palavras e plumas, antes se guardam tão bem, que a todo o tempo se pode pedir razão de como se escreveram e por que as escreveram”.

. Carta datada da Praia das Maçãs-Fontanelas, 10. Agosto.1965.

1

. Refere-se ao meu artigo de crítica a Espaço do Invisível 1, no

2

Suplemento Literário do Jornal de Notícias, 29. Julho. 1965. . Talvez estas palavras se justificassem pelo tom do meu artigo

3

ou dissessem respeito à atenção que dispensava aos seus livros no que dependia de mim dentro da “Portugália Editora”.

Meu caro Serafim:1 Recebi e muito lhe agradeço a página do “Jornal de Notícias”2.No acaso dos dias, os desencontros são a sorte dos encontros e às vezes, sim, o inverso. Eis porque o encontrar-se V. ainda comigo, a despeito dos dias e seu acaso, não deixa de me impressionar. Devo agradecer-lhe isso também?3 Mas creio que a espontaneidade se não agradece, porque escapa à nossa deliberação. Já o dizê-lo publicamente procede do deliberar e por isso é de agradecer. Todos os dias aguardo notícias de “Alegria Breve” - em provas, sobretudo.Já o leu todo? E chegou a fazer as pazes com ele? A sua opinião desfavorável sobre o livro tem-me preocupado bastante4. Vale-me um pouco a ideia, assim

. Confesso que na primeira leitura Alegria Breve me não

4

agradou muito. E daí este reparo que faz à opinião que lhe exprimi sobre o livro, já em fase de edição, que contrariava de alguma forma o entusiasmo que nele colocava. Mas, na sua releitura, acabei por ser um dos leitores mais calorosos desse romance e disso dei conta num longo texto crítico no suplemento “Vida Literária” do Diário de Lisboa, 9. Dezembro.1965. . Breve referência ao livro de Urbano Tavares Rodrigues, Os

5

Dias Lamacentos, então publicado na “Portugália”.

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P.S. - Que tal o livro do Urbano? E porque foi ele fazer um filhoà “Portugália”? Divorciou-se da “Bertrand”? Ou é filho extra--matrimónio? Folheei o livro aí e pareceu-me com interesse. Leu?5

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ANO LECTIVO 2004 – 2005

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Afinal o que faz falta?

da educação outubro 2004

Prioridades para a educação em Portugal

Foto: isto é

dossier

No início de mais um ano escolar, que, pela primeira vez em muitos anos, começou de forma invulgarmente atribulada, a PÁGINA recolheu quase três dezenas de depoimentos junto de um painel que inclui colaboradores do jornal, professores, estudantes, sindicalistas e sociedade civil sobre as prioridades e as medidas que cada um destes grupos julga ser importante implementar no sector educativo em Portugal. Como seria de esperar, as opiniões são díspares, mas alguns temas parecem reunir algum consenso junto dos inquiridos: o combate ao analfabetismo e ao insucesso escolar, a melhoria da qualidade do ensino e a aposta nas novas tecnologias. Algumas ideias soltas para reflectir sobre o futuro da educação em Portugal.

Professores repartem preocupações:

da erradicação do analfabetismo à aposta nas novas tecnologias passando pela modernização do ensino básico Erradicar o analfabetismo

Modernizar o ensino básico

Investir nas novas tecnologias

“Acho que a principal prioridade para a educação em Portugal seria afastar de vez os incompetentes que, governo após governo, ocupam as cadeiras do ministério da Educação. Excepto uma ou duas honrosas excepções, está mais do que provado que os responsáveis por esta área não têm sido capazes de implementar políticas que sirvam eficazmente o país.”

“Sem pretender simplificar uma questão que me parece complexa, julgo que a principal prioridade deveria ser dada ao ensino básico. A minha opinião pode parecer suspeita por ser professora deste nível de ensino, mas julgo que está mais do que provado que uma boa preparação precoce dos alunos pode ser um factor de sucesso educativo nos anos subsequentes. Para isso seria necessário modernizar os edifícios escolares, tornando-os agradáveis a alunos e professores, investir no equipamento e diminuir o rácio professor/ aluno.”

Gabriela Almeida, 38 anos,

Carla G.(nome fictício), 43 anos,

Maria do Carmo Gonçalves, 39 anos,

“Portugal deveria apostar mais no ensino técnico e científico porque esse é o futuro para qualquer país que se quer desenvolvido. Formar pessoas e trabalhadores com baixos índices de qualificação é uma ideia do passado. Para isso acontecer é preciso investir seriamente na formação inicial e na actualização dos saberes dos professores, sem esquecer o reequipamento das escolas e o investimento em novas tecnologias. Hoje em dia os alunos já não funcionam com papel e caneta, o que eles querem é computadores.”

professora do 2º e 3º ciclos

professora do ensino secundário

professora do ensino básico

Augusto Meireles, 44 anos,

“Na minha opinião a principal prioridade para a educação em Portugal passa pela erradicação do analfabetismo. É uma vergonha para o nosso país que 10% dos portugueses não saiba ler nem escrever, mas, acima de tudo, deve ser uma infelicidade para essas pessoas sentirem-se excluídas do mundo dos letrados. Para concretizar esta medida bastaria pegar nos professores que estão com horários zero nas escolas ou nos recém formados que não têm colocação para, à partida, resolver o problema. O que é preciso é vontade política.”

cie de salário em troca da frequência e de aproveitamento escolar.” Celestina Pereira, 32 anos, professora do 2º e 3º ciclos

Afastar os incompetentes

professor do 2º e 3º ciclos

Dar prioridade à escolaridade obrigatória

Apostar na formação de técnicos qualificados

Organização e vontade política

“Julgo que a principal prioridade educativa do nosso país deveria ser dar condições aos alunos que abandonam precocemente o sistema de, no mínimo, concluir a escolaridade básica obrigatória. É absurdo que já se pense em estender a escolaridade obrigatória até ao 12º ano quando ainda nem sequer conseguimos que todos os alunos concluam o 9º ano. Como a maior parte dos alunos que estão nestas condições abandonam a escola para se iniciarem na vida activa e ajudarem a família, acho que não seria nenhum absurdo pagar aos que têm menos meios uma espé-

“Portugal precisa de recuperar urgentemente o atraso educativo em relação aos outros países da União Europeia. Antigamente ainda nos vangloriávamos de termos a Grécia atrás de nós, hoje já nem isso podemos dizer. Para isso julgo que seria necessário implementar políticas de formação de adultos e de apostar mais no ensino técnico e profissional. Apesar de a nossa taxa de licenciados ainda não atingir os mesmos níveis de outros países, penso que a prioridade deveria ser dada à formação de técnicos qualificados para os sectores produtivos.”

“Penso que a principal prioridade para o ensino em Portugal é torná-lo prioritário na agenda política nacional. Os partidos dizem ano após ano que a sua “paixão” é a educação, mas pelo que se tem visto ela continua a ser um parente pobre dos investimentos no nosso país. Nem tudo está mal no sector e Portugal conta, na minha opinião, com um excelente quadro de professores. Por isso, penso que com um pouco mais de organização e de vontade política conseguiríamos dar a volta por cima e recuperar o atraso que nos caracteriza desde há décadas.”

Alberto Gomes, 37 anos,

Helena Silva Costa, 45 anos,

professor do ensino secundário

professora do ensino secundário

Revalorizar a profissão docente “Portugal deveria investir mais na preparação dos professores ao nível da formação inicial. Era importante voltar a fazer da docência uma área procurada por quem tivesse gosto por ensinar. Boa parte dos professores está na educação porque não consegue arranjar emprego em outras áreas. Além disso, é necessário voltar a revalorizar a profissão porque hoje em dia ela está desconsiderada na opinião pública. Claro que isto não será possível sem um investimento sério na educação, tanto ao nível das estruturas


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como das políticas educativas, que deveriam ser mais coerentes e não mudar ao sabor dos governos.”

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da educação outubro 2004

Teresa Gonçalves, 43 anos, professora do ensino secundário

Computadores, ciência e tecnologia

dossier

“Na minha opinião, a área de investimento prioritário da educação em Portugal é o sector das novas tecnologias. Basta olhar para o caso da Irlanda, que em vinte anos passou de um país essencialmente agrícola para um país produtor de tecnologia. Muitos alunos interessam-se seriamente pelas novas tecnologias a lidam facilmente com computadores, não têm é condições para desenvolver as suas aptidões. O Ministério da Educação deveria, por isso, pensar a longo prazo e instalar mais computadores e material tecnológico em todas as escolas, alargando, ao mesmo tempo, o quadro dos professores de ciências e tecnologias.” Mário Cerqueira, 39 anos, professor do ensino secundário

O regresso de Roberto Carneiro

Fernanda Sousa, 47 anos, professora do 2º e 3º ciclos

qualidade, onde diferentes projectos pessoais e escolares poderão ser desenvolvidos, estimulados e acreditados. As medidas a tomar terão necessariamente não só pelo debate participativo de todos os interessados, mas essencialmente pela passagem à prática de medidas anunciadas, mas quase sempre adiadas, como por exemplo, a avaliação formativa dos alunos e a avaliação do desempenho dos professores.” Cecília Santos Professora do ensino secundário

Educação para a Cidadania “A meu ver, a grande prioridade da educação, hoje, deveria privilegiar acima de tudo a criança, o adolescente e o jovem aluno enquanto pessoa em crescimento e em desenvolvimento afectivo, intelectual e social. Se assim fosse, existiria nas escolas uma efectiva educação para a cidadania democrática, onde a sabedoria dos valores clássicos - como, por exemplo, o respeito pelas diferenças sociais, culturais e étnicas -, seria uma realidade. Paulo Freire falava sabiamente na sua obra Pedagogia da Esperança da educação como «um ato criador, um ato crítico e não mecânico». Só neste sentido poderemos entender a educação e a escola pública de

Debater ideias

Apostar no Ensino Técnico e Profissional “É fundamental voltar a proporcionar aos jovens portugueses Ensino Técnico Profissional no âmbito do Ensino Secundário Estatal, não sob a responsabilidade de quaisquer outras entidades. Isto porque neste momento, não temos profissionais em número suficiente, que exerçam tarefas como canalizador, electricista, mecânico de automóvel, técnico de informática (hardware ou software). Pode dizer-se que não é fácil retomar este tipo de ensino, mas impossível não será. Se não se tentar, nunca se conseguirá.” Carlos Mota

“Na minha opinião, as grandes prioridades para a área da educação passam pela requalificação e reorganização da rede escolar do Ensino Básico e Pré-Escolar público; pela reconversão profissional dos professores desempregados; pela educação de adultos, animação e desenvolvimento comunitário, e pela Declaração de Bolonha e suas implicações nos Cursos de Formação de Professores. A implementação de medidas que dêem corpo a estas e outras prioridades na educação necessitam de ser discutidas num fórum permanente de ideias, artigos e colóquios.”

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Educação de qualidade para a primeira infância “É necessário que o Estado se preocupe com a Educação das crianças dos 0 aos 3 anos, reconhecendo ser preciso controlar a qualidade das instituições que as acolhem tornando obrigatória a presença de Educadores de Infância com os mesmos direitos e deveres de todos os outros docentes, nas instituições referidas.”

Américo Nunes Peres

Maria Gabriel Cruz

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Foto: isto é

“Penso que são várias as áreas prioritárias em Portugal, mas as três principais

talvez sejam a necessidade de investir mais no ensino pré-escolar e ensino básico, mudar a filosofia da formação contínua e nomear alguém competente para a pasta da educação. Pelo que temos visto nos últimos anos, há muito tempo que não há ninguém como o ministro Roberto Carneiro, que, embora mereça algumas críticas, foi o único que conseguiu dar um impulso sério à educação no nosso país.”

Doze cidadãos queixam-se do sistema, apontam objectivos e fazem exigências Escola de hoje ensina pouco

Rigor e qualidade

Acabar com o analfabetismo

Reforçar a segurança

“A educação vai tão mal que, sinceramente, não sei por onde se deva começar. Face aos resultados que costumam ser divulgados nos órgãos de comunicação social, um maior rigor e qualidade do ensino parecem ser as áreas prioritárias. Mas isso implica também melhores professores. Se os mais novos não têm lugar nas escolas, como é que se há-de renovar o ensino?”

“Considero que toda a gente deveria saber e ler e escrever, porque ser-se analfabeto é muito triste. Os meus pais não tiveram oportunidade de ir à escola mas puseram-me a mim na instrução primária. Um dos maiores sonhos da minha mãe é saber ler e escrever. Mas tenho de ser eu a tratar-lhe das cartas e da papelada.”

“Penso que se deveria reforçar a segurança nas escolas porque o nível de violência entre alunos está a chegar a proporções alarmantes. Pelo que vou lendo nos jornais a escola hoje já não é um lugar seguro. Além disso hoje aprende-se menos do que antigamente, talvez fruto de um menor rigor dos professores.”

Ricardo Gomes, 36 anos,

Eugénia Ribeiro, 28 anos,

Arlete Pinto, 54 anos,

João Gomes, 62 anos,

técnico de seguros

delegada de propaganda médica

pensionista

vigilante

“Acho que a principal prioridade para a educação em Portugal é ter escolas e professores que ensinem e um governo que saiba gerir a situação, o que infelizmente não acontece em nenhum dos casos. Apesar de hoje em dia as necessidades serem outras, nomeadamente na área das tecnologias, a escola no meu tempo ensinava mais.”


Educação para a cidadania “Penso que quando se fala de educação esquece-se que a escola deveria servir, acima de tudo, para criar regras de convivência e de solidariedade. Nesse sentido, julgo que se deveria dar prioridade à educação para a cidadania e para o respeito dos direitos humanos, que é, na minha opinião, o primeiro passo para criar cidadãos responsáveis.”

gal faltam técnicos qualificados em diversas áreas. Quando se quer um sapateiro, um técnico de reparação de electrodomésticos ou um canalizador normalmente não são qualificados. E apesar disso fazem-se pagar bem. Todos querem ir para a universidade, mas depois não têm emprego.” António Costa, 42 anos, repositor comercial

Elisa Fernandes, 27 anos, trabalhadora-estudante

Investir seriamente na educação

Qualidade no ensino

novas tecnologias da informação. Não é por acaso que os países mais desenvolvidos são os que apostam mais na aprendizagem das novas tecnologias. Portugal tem feito algum esforço nesse domínio, mas julgo que ele deveria ser mais sério e continuado. Claro que para acompanhar essa evolução a formação de professores teria de ser redesenhada, porque actualmente ela não privilegia essa componente.” Pedro Soares, 24 anos, estudante

37

Arrumar a casa “Não acompanho muito de perto o tema da educação, mas pelo que vou lendo e ouvindo a desorganização interna parece reinar no ensino. O recente episódio da colocação de professores mostra bem como este governo está desorientado e não parece merecer a confiança dos portugueses. Assim, julgo que a prioridade passaria por “arrumar a casa” e dar meios às escolas para recuperarmos o atraso que nos distancia cada vez mais dos outros países europeus.”

a página

da educação outubro 2004

dossier

António Figueiredo, 45 anos,

“A principal prioridade deveria ser dada à qualidade do ensino, porque os resultados dos estudantes portugueses deixam muito a desejar. Nem penso que a culpa seja dos professores, porque os alunos hoje em dia são mais indisciplinados e não dão tanto valor à escola. Não sei que medidas podem ser tomadas, mas alguma coisa tem de ser feita porque por este caminho não vamos a lado nenhum.”

“Na minha opinião, os governos deveriam apostar seriamente na educação em Portugal porque essa é a única forma de podermos fazer face aos outros países da União Europeia. Mas os governos, seja à esquerda ou à direita, não parecem fazer caso disso. Não só temos uma população activa desqualificada como nos damos ao luxo de gastarmos dinheiro em eventos internacionais como o Euro 2004 que pouco ou nada trazem ao país.”

Conceição Ferreira, 38 anos,

Antonieta Cabral, 34 anos,

auxiliar de análises laboratoriais

técnica administrativa

Mais tecnologias da informação

“Deveria apostar-se no ensino técnico e profissional, porque em Portu-

“A prioridade do investimento educativo deveria estar centrado nas

“Penso que a principal prioridade deveria ser dar melhores condições a quem trabalha nas escolas. Só quem aqui está sabe o quanto passam professores e funcionários. Por vezes falta até dinheiro para pôr papel higiénico nas casas de banho… Acho, por isso, que o governo deveria despender uma verba maior para o funcionamento das escolas e aumentar os salários dos funcionários não docentes, porque são eles quem acabam por ter de desempenhar as piores tarefas.”

Ensino superior e investigação “Apesar de já termos uma boa taxa de licenciados em Portugal, penso que a prioridade na educação passa por um maior investimento no ensino superior e na investigação. Portugal tem bons técnicos que só não são melhor aproveitados porque o país vê a ciência como uma realidade longínqua. Para isso seria também necessário que os alunos do ensino secundário fossem mais incentivados, mas para tal é preciso investir em mais e melhores equipamentos.”

Ana T.(nome fictício), 42 anos,

Rafael Macedo, 26 anos,

auxiliar de acção educativa

estudante

Foto: isto é

Reforçar o ensino técnico e profissional

gestor bancário

Melhores condições de trabalho nas escolas

Dois professores sindicalistas preocupados com professores e alunos Estabilidade do corpo docente é fundamental “As prioridades para a educação podem ser distinguidas no plano educativo e no plano profissional. No primeiro há problemas estruturais que têm de ser resolvidos: abandono e insucesso escolar, analfabetismo e qualidade do ensino. A escola pública está a ser alvo de um conjunto de ameaças que começa a pô-la em causa e são ne-

cessárias medidas que a dignifiquem. A estabilidade do corpo docente parece-me talvez a mais importante, já que a qualidade da educação está muito ligada a esta questão. Depois há medidas ao nível da organização que me parecem igualmente importantes, como o reforço dos processos democráticos no interior das escolas, que estão cada vez mais ameaçados.” Adriano Teixeira de Sousa, professor e sindicalista

Contrariar o abandono escolar “A prioridade deveria ser dada ao combate do abandono escolar. Na minha opinião, a escola pública não está a responder convenientemente às expectativas dos alunos nesta situação. Para isso seria indispensável melhorar as condições materiais das escolas e colocar professores em áreas multidisciplinares, atenden-

do a necessidades específicas que nem sempre são respondidas pelas escolas. Outra medida fundamental seria garantir a existência daquilo a que chamo “escola paralela”, ou seja, uma forma de permitir aos alunos certificarem competências de conhecimentos que adquiriram mas que não foram reconhecidas pelo sistema.” João Paulo Silva, dirigente do Sindicato dos Professores do Norte

Recolha de depoimentos Ricardo Jorge Costa


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a página

da educação outubro 2004

Foto: isto é

na contra capa

A matemática dos furos Com os horários impressos a computador um grupo de raparigas conta os “furos” do dia. Uma operação fácil de fazer ao contrário: só têm dois professores: Matemática e Educação Visual e Tecnológica.

A COR das escolas Andreia Lobo

Três pessoas atravessam o átrio da escola, uma espécie de sala de convívio repleta de mesas e bancos semelhantes aos dos jardins. Numa dessas mesas um amontoado de jovens joga às cartas. Até que uma das raparigas vê no trio alguém conhecido: “Oh stôra, oh stôra, estamos aqui!” Num impulso os bancos ficam vazios. Os jogadores precipitam-se eufóricos. “Oh stôra!” Afogada num turbilhão de beijos e abraços a “stôra” muda de identidade no meio de tanta agitação. A alegria, o modo de vestir e uns centímetros a menos, pouco a distinguem dos seus alunos. Momentos depois, a “stôra” Sónia Sousa está de visita na sala dos professores da Escola Básica 2,3 André Soares, em Braga. No ano passado cumpriu lá o seu ano de estágio, deu aulas de Ciências da Natureza. Nada mais. Não fosse o entusiasmo com que foi acalorada pelos seus “antigos” alunos, quando passava no átrio. São estas reacções que deixam Sónia orgulhosa do seu trabalho. Um orgulho que este ano não sentirá. Ficou impedida de entrar no concurso de colocação de professores relativo ao ano lectivo que agora começa. Por antecipação do ministério, o processo ocorreu em Janeiro de 2004 e nessa altura Sónia e os outros estagiários ainda não possuíam a licenciatura, que iria ser concluída apenas em Maio. Assim, ficaram de fora do concurso público. “Um absurdo que ninguém conseguiu impedir”, lamenta Sónia. Resta-lhe agora a probabilidade de ficar colocada no ano lectivo de 2005/06. Entretanto espera-a o desemprego. “É uma pena, ver a vontade de trabalhar acumulada no estágio ser depois refreada pelo ministério da Educação. Sobretudo quando há uma necessidade de tornar o ensino mais jovem”, lamenta a professora. Os alunos também: “Oh stôra por que

não fica connosco este ano, nós ainda não temos stôra de Ciências?” Com a cena do átrio bem presente, Sónia arrisca a imodéstia para dizer que o seu grande mérito durante o estágio foi o de “conseguir lidar com os alunos de uma maneira mais informal”. A “pouca diferença de idade” entre ela e os seus alunos fê-la “compreender melhor a forma de ser e de estar deles”. À luz dessa empatia o entusiasmo manifestado no átrio ganha mais cor. Só não conta para efeitos de graduação.

Jogar à defesa Hermelinda Miranda entra na Sala dos Directores de Turma. Não está de visita. Com 10 anos de serviço pertence ao Quadro de Zona Pedagógica de Braga. Deu aulas de Inglês na EB 2,3 André Soares, no ano lectivo passado, mas agora não terá essa “sorte”. Está na escola de passagem. Apesar de já ter dado aulas de apresentação e fazer tenção de “seguir com a matéria” até a situação com o atraso na publicação das listas de colocação estar resolvida. Aos alunos, Hermelinda Miranda não explicou que seria uma professora “provisória”. Confessa que “achou melhor assim”. É que “as primeiras aulas são as mais complicadas pois são aquelas em que o professor costuma medir forças com os alunos”. Se os alunos soubessem da vinda de uma nova professora, Hermelinda suspeita que o seu trabalho seria ainda mais difícil. “Não é muito correcto para eles, mas é uma defesa mental para mim…”

Férias forçadas Com os horários impressos a computador um grupo de raparigas con-

ta os “furos” do dia. Uma operação fácil de fazer ao contrário: só têm dois professores: Matemática e Educação Visual e Tecnológica. Por 45 minutos de aula de Educação Visual e Tecnológica, Cláudia, Joana, Bárbara e Alda, passam o resto da manhã à conversa na escola. Esperam pelo toque que as autorizará a sair para o almoço. Quando saírem rumarão a casa de Joana. De tarde não têm aulas. No dia seguinte estarão de volta. Uma aula de Matemática no último tempo. São as férias forçadas pela não divulgação da lista de colocação de professores. “Estar este tempo à espera das aulas sem fazer nada é muito cansativo.” O lamento de Joana é partilhado pelas amigas. Esgotadas as conversas sobre as férias e os “amores” de Verão, urge mudar de assuntos. Falar dos tiques dos “stôres”, da forma como se vestem, reclamar das matérias difíceis... Tudo menos “a seca” que estão a passar. Mas antes fosse só a monotonia a incomodar os “furos” das jovens. Este ano, é a primeira vez que a reorganização do Ensino Básico chega ao 9º ano, que frequentam. Vêem aí os Exames. E as preocupações estão voltadas para “Eles”. Se a situação se mantiver por mais tempo Bárbara prevê dificuldades no cumprimento dos programas. “Não vamos ter tanto tempo para dar a matéria e rever a dos anos anteriores e isso vai-nos afectar, sobretudo a Português”. O Português, começa Cláudia, “essa disciplina tão…” o grupo acena afirmativamente com a cabeça ainda a frase nem terminou. Não se sentem “muito preparadas” nesta matéria. Bárbara tem de recuar na memória ao 7º ano para encontrar um professor de Português que considera ter sido um “bom professor”: divertido e cujas aulas não eram “uma seca”. À custa das dificuldades com a ortografia, Joana

fez questão de pegar logo no livro de Português para “ler algumas coisas”. Por escrever “à moda dos SMS” já sentia algumas dúvidas quando queria escrever fora do ecrã do telemóvel. E quis pôr os acentos no sítio.

Reuniões em duplicado Dario Ribeiro, professor de Educação Visual e Tecnológica, faz parte do “corpo de bombeiros”, dos que há alguns anos - no seu caso há mais de 20 - estão efectivos na escola. Tal posição permite-lhe ver o problema do atraso nas colocações de um outro prisma. O das reuniões em duplicado a que irá obrigar. “Participei num conselho de turma onde só estavam presentes professores de três disciplinas”, desabafa. Este é outro dos problemas que o Conselho Executivo terá de resolver quando estiver completo o corpo docente do agrupamento, de cuja sede é a EB 2+3 André Soares. “Já pedi aos professores que estão na escola para assim que chegarem os que faltam fazerem reuniões extraordinárias para os integrar “, refere Maria da Graça Moura, presidente. E as reuniões com os pais. Assim que a futura professora de Português de Joana chegar à escola vai ter muitas dúvidas para esclarecer. Quanto às preocupações dos alunos com “os atrasos nas matérias”, Maria da Graça Moura garante que o Conselho Executivo irá avaliar os danos causados pelos atrasos nas colocações e, caso se justifique, “definir estratégias de recuperação”, sobretudo nos 9º anos. Mas essa tarefa só poderá ser realizada “quando tudo voltar à normalidade”. Sem “furos”, nem faltas. Depois resta fazer o mesmo que Cláudia, Joana, Bárbara e Alda tencionam fazer nas aulas: “dar o máximo”.


De um lado para o outro

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Universidade Popular do Porto UPP

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da educação outubro 2004

na contra capa Tatiana tem seis anos. E “anda de

Ano lectivo 2004—2005 Horário diurno

um lado para o outro”. Ora com as tias ora com a avó. Maria Gabriela foi com a neta até à Escola Básica 2,3 André Soares, em Braga. Procu-

Cursos

rava saber na sede do agrupamento da escola que Tatiana vai frequentar

HISTÓRIA DE PORTUGAL

quando começarão as aulas. “Ainda

QUESTÕES DA LINGUAGEM

por cima o ATL só abre quando co-

GRANDES QUESTÕES DA ACTUALIDADE

meçarem as aulas…”, queixa-se. O 1º ano da Escola Básica de

HISTORIA CONTEMPORÂNEA

1º ciclo de São Lázaro ainda não

SOCIOLOGIA

arrancou por falta de professores.

VIAGENS E ROTEIROS

Para ocupar esses lugares ainda va-

LITERATURA PORTUGUESA

gos foram chamados à escola, por

VIVER EM FORMA

uma circular enviada pelo Ministério

HISTÓRIA DO CINEMA

da Educação (ME), todos os professores que nela leccionaram no ano

DESENHO E PINTURA

lectivo anterior para darem aulas às

FRANCÊS - Através da imprensa periódica francesa

“suas” turmas. Na solução encontrada parece

INGLÊS (3 níveis)

estar o problema. Num ciclo onde se

PATRIMÓNIO ARTISTICO E CULTURAL

criam laços afectivos estreitos com

O DIREITO NA VIDA DE TODOS NÓS

os professores torna-se difícil es-

ASTRONOMIA

“Tenho o caso de um professor que

ALEMÃO

não quer ficar com a turma que tinha

ÁFRICA (História e actualidade)

porque lhe custou deixar os alunos

FÍSICA

to dias com eles e ir embora”, conta

COMUNICAÇÃO SOCIAL

Maria da Graça Carvalho, presidente

INTERNET E ACESSO À INFORMAÇÃO

do agrupamento André Soares, Bra-

te reencontro antes da despedida.

no fim do ano e não quer estar oi-

ga. Uma situação que confessa ser “complicada em termos afectivos mas também pedagógicos”.

Inscrições: Sede da UPP, Rua de Augusto Luso,167 - 1º, Porto Segunda a sexta-feira, das 10 às 12h.30 e das 14h.30 às 17h.30

balha em grupo de ano. Para realizar

Início das aulas: 11 de Outubro

professores das EB1 que compõem

É que no 1º ciclo o professor trao projecto de turma e as planificações é necessário reunir todos os o agrupamento. “E é esse trabalho

Mais Informações e Contactos: Sede da UPP, www.upp.pt, Telefone 226098641, Email: upporto@mail.telepac.pt

que já não se vai fazer com a mesma eficácia”, lamenta Maria da Graça Carvalho. O cenário no Pré-Escolar é idêntico. Segundo Gina Esteves, Educadora destacada no Conselho Executivo, “os Jardins de Infância que estão a funcionar estão a fazê-lo de modo precário”, graças à demora com a colocação de educadores. Tudo fruto de “uma grande irresponsabilidade do ministério”. À qual não está alheia a “acomodação dos pais” critica a educadora. “Deveriam mostrar a sua insatisfação ao ministério Foto: isto é

A participação nos cursos não se restringe a um conjunto de aulas teóricas mas abre um espaço de participação em cursos, debates, visitas de estudo e actividades diversas, de acordo com os interesses e motivação de cada um. A UPP é um espaço cultural e de convívio aberto a todos quantos, independentemente da idade, profissão e formação escolar, desejam a valorização pessoal, aprofundar os seus conhecimentos, partilhar experiências, colaborar na concretização de diferentes projectos culturais.

da Educação e não só aos professo-

PROTAGONISTAS

res e educadores”, conclui.

Andreia Lobo


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Notícias do Superior

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da educação outubro 2004

Aumento de vagas em Medicina A ministra da Ciência e do Ensino Superior, Maria da Graça Carvalho anunciou que “pelo menos nos próximos três anos” a tutela pretende manter uma subida do número de lugares nas escolas de Medicina semelhante à registada este ano - para o ano lectivo 2004/05, foram criadas mais 170 vagas. Com a disponibilização destes novos lugares, as médias de entrada para aquele curso desceram ligeiramente, situando-se, pela primeira vez em oito anos, abaixo da barreira dos 18 valores. Maria da Graça Carvalho admitiu ainda a hipótese de, a partir do próximo ano, o aumento de vagas nesta área poder ser suportado pelas faculdades privadas que já apresentaram projectos para a criação de cursos de Medicina.

na contra capa

Último colocado em Medicina com menos de 18 Valores Desde 1996 que a barreira dos 18 valores a Medicina não era quebrada. Este ano, depois de o Ministério da Ciência e do Ensino Superior (MCES)

a qualidade das instituições. Para avaliar a qualidade, a tutela definiu dois critérios: a quantidade de professores doutorados e mestrados, respectivamente nas universidades e nos politécnicos, e a classificação de mérito dos centros de investigação de cada escola, já certificados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Estes dois indicadores têm um peso de dez por cento na fórmula de financiamento. No futuro, o ministério quer introduzir outros factores de qualidade.

Plano de reconversão de licenciados O Ministério da Ciência e do Ensino Superior (MCES) autorizou a abertura de 800 vagas, em oito instituições de ensino superior, para licenciados que estejam desempregados e que queiram reconverter as suas habilitações. As áreas propostas são algumas das mais carenciadas e os cursos começam já no início do novo ano lectivo. A medida surge no âmbito do plano de recuperação de licenciados - anunciado pela ministra da Ciência e do Ensino Superior, Maria da Graça Carvalho.

Inquérito em linha A sua expectativa, face à nova equipa dirigente do Ministério da Educação, é: Muito elevada 00% Elevada 00% Mediana 01% Baixa 07% Muito baixa 89% TOTAL RESPOSTAS: 852 Classifique os primeiros dois anos de governo, na área da educação da coligação PSD / CDS: 1 Minimo 91% 2 07% 3 00% 4 00% 5 Máximo 00% TOTAL RESPOSTAS: 843 Em 2005, o ajustamento salarial dos professores vai ser:

Foto: isto é

Menos de 1% 08%

ter aberto o curso em mais duas universidades, a média desceu ligeiramente, em todas as escolas, e em duas chegou aos 17,80. Nas universidades dos Açores e Madeira, que vão inaugurar o curso este ano lectivo, os últimos colocados entraram com 17,80. Também nas instituições de Lisboa, as notas desceram dos 18 valores: para 17,93, na Nova; na Clássica, o último candidato teve apenas mais duas centésimas (17,95). Em todas as outras universidades, as notas mantiveram-se acima dos 18, mas baixaram em relação ao ano passado.

Universidade de Coimbra quer reaver propinas em atraso Os cerca de 1200 estudantes que devem mais de 200 euros de propinas à Universidade de Coimbra (UC), referentes ao ano lectivo 2002/03 e anteriores, têm agora possibilidade de regularizar a situação de forma faseada, através de um plano de pagamento apresentado pelo reitor, Seabra Santos. Caso não o façam, ver-se-ão impossibilitados de efectuar a matrícula do próximo ano lectivo. Há casos em que o atraso no pagamento ascende ao milhar de euros e chega a referir-se a sete anos de incumprimento.

Nova fórmula de financiamento O ministério de Maria da Graça Carvalho propôs às universidades e institutos politécnicos públicos uma fórmula que, pela primeira vez tem em conta

O MCES fez um levantamento dos licenciados desempregados (cerca de 30 mil), das áreas de formação onde faltam recursos humanos e da disponibilidade das instituições de ensino para leccionar esses cursos - trata-se de universidades e politécnicos que viram o número de alunos descer.

Seis em dez candidatos ao Superior ficaram colocados na primeira opção

Entre 1 e 2% 47% De 2 a 3% 42% Mais de 3% 01% TOTAL RESPOSTAS: 860

Desde o virar do século que sobram vagas no ensino superior público e que a maior parte dos candidatos ficam colocados nas suas primeiras opções. Este ano, tal como em 2003, nove em cada dez alunos conseguiram entrar na universidade ou no politécnico. Dos 42.595 candidatos, ficaram colocados 37.568. Seis em cada dez conseguiram um lugar na sua primeira opção.

Como primeiro-ministro, o desempenho de Santana Lopes vai ser:

Universidade do Porto é a mais procurada

Razoável 01%

A Universidade do Porto (UP) voltou este ano lectivo a ser a instituição universitária mais procurada do país, conseguindo preencher 3.623 vagas (93,6 por cento) logo na primeira fase de acesso ao ensino superior. Segundo os dados disponibilizados pelo Ministério da Educação, a UP foi também a mais procurada pelos melhores alunos, já que registou a mais elevada média ponderada do último colocado (14,35).

Mau 08%

Muito bom 01% Bom 00%

Muito mau 87% TOTAL RESPOSTAS: 868


O Plano de Prevenção do Abandono Escolar (III)

a página

da educação outubro 2004

na contra capa

Foto: isto é

Este PNPAE, para além de ser contraditório com muitas das iniciativas que a coligação de direita tem vindo a assumir (a aprovação da Lei de Bases da Educação, a reabilitação da cultura pedagógica que os exames exponenciam ou a criação dos «apartheid» pedagógicos que os CASE’s estimulam), exige ideias claras, empenho político, uma visão estratégica e honestidade de propósitos que nenhuma política de carácter neo-liberal consegue assegurar.

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Nos dois artigos anteriores que subscrevemos acerca do Plano Nacional de Prevenção do Abandono Escolar (PNAPAE) enunciamos quatro dos seus defeitos estruturais. A desfaçatez de uma proposta que anuncia iniciativas para as quais não há vontade política de mobilizar os meios que permitam assegurar a sua concretização é um desses defeitos. Os restantes dizem respeito ao centralismo do Plano, ao seu vocacionalismo e, finalmente, à sua natureza assistencialista que, no seu conjunto, exprimem a impossibilidade de realizar através de um plano o que, afinal, a uma política educativa democrática e inclusiva diz respeito. Isto é, mais do que um Plano necessitamos de respostas estruturantes que assegurem um conjunto de medidas que nenhum PNAPAE contempla nem, como temos vindo a defender, pode contemplar. A primeira dessas medidas tem a ver com a necessidade de manter o actual esquema de ciclos de escolaridade que o governo PSD / PP pretende subverter através da aprovação e da implementação da nova Lei de Bases da Educação,

MAIS DO QUE UM PLANO necessitamos de respostas estruturantes que assegurem um conjunto de medidas que nenhum PNAPAE contempla nem, como temos vindo a defender, pode contemplar. admitindo-se, contudo, que as escolas possam experimentar outras soluções capazes de apoiar melhor os alunos a completar a escolaridade obrigatória. A segunda das medidas diz respeito à necessidade de se promover uma revisão curricular do Ensino Secundário cujo objectivo estratégico se defina em função da necessidade de reabilitar os Cursos Tecnológicos como etapa prévia de uma reflexão a fazer acerca dos Cursos ditos Gerais e do processo de subordinação funcional do Ensino Secundário face ao Ensino Superior. A terceira medida relaciona-se com o propósito de apoiar políticas locais e efectivas de educação que permitam a adopção de iniciativas contextualizadas e adequadas no domínio da educação escolar, permitindo-se, assim, que cada um possa assumir as responsabilidades políticas, sociais e educativas que, a este nível, lhes competem. A quarta medida afirma-se em função da possibilidade de se adoptarem medidas discri-

minatórias positivas sempre que estas se afigurem como necessárias, em domínios como o da colocação de professores, do desenvolvimento de projectos específicos ou da mobilização de recursos humanos e materiais excepcionais. A quinta medida passa pelo desenvolvimento, a cargo das escolas, de um sistema de monitorização e pilotagem inteligente e contextualizada das acções de intervenção educativa que essas mesmas escolas possam protagonizar. É este sistema que poderá estimular o desenvolvimento e a implementação da sexta medida, relacionada com iniciativas tendentes a promover a inclusão escolar, de forma a que as acções a desenvolver não se confinem, somente, a acções de carácter compensatório. Isto é, que não se confinem a acções que se promovem para resolver, apenas, os problemas pedagógicos que as próprias escolas geraram. A sétima medida, finalmente, tem a ver com o investimento por parte do Ministé-

rio da Educação na criação de estruturas de intervenção educativa, constituídas por um outro tipo de profissonais, que possam ser responsabilizadas pelo desenvolvimento de iniciativas que não compete aos professores assumir, em domínios da acção social, psicológica e da educação não-formal. Em suma, este PNPAE, para além de ser contraditório com muitas das iniciativas que a coligação de direita tem vindo a assumir (a aprovação da Lei de Bases da Educação, a reabilitação da cultura pedagógica que os exames exponenciam ou a criação dos «apartheid» pedagógicos que os CASE’s estimulam), exige ideias claras, empenho político, uma visão estratégica e honestidade de propósitos que nenhuma política de carácter neo-liberal consegue assegurar. Exige, também, uma ambição que manifestamente lhe falta, como se comprova pela comparação entre os resultados nele previstos e os resultados obtidos através das iniciativas que, neste país, entre 1991 e 2001 contribuíram, apesar de tudo, para enfrentar e fazer decrescer os índices do abandono escolar.

DISCURSO directo Ariana Cosme Rui Trindade Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto


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da educação outubro 2004

«O primeiro dia de escola é um mar de lágrimas» Ricardo França Jardim

na contra capa

Nasceu no Funchal, em 1946. Reside em Lisboa, onde trabalha como médico psiquiatra, desde 1979, no Hospital Júlio de Matos. Nestas duas cidades, frequentou o pré-escolar, a primária e o liceu, em estabelecimentos privados e públicos. Estudou Medicina na Universidade de Coimbra até 1969, tendo participado no movimento estudantil, mas veio a concluir a licenciatura em Lisboa. Actualmente, é Chefe de Serviço de Psiquiatria e Director do Serviço de Reabilitação do Hospital Júlio de Matos. Foi, entretanto, Assessor da Direcção clínica e co-responsável pelo Internato complementar de psiquiatria. Pertenceu ao primeiro colégio de psiquiatria eleito, mas demitiu-se na sequência de uma polémica sobre a ética das relações entre médicos e indústria farmacêutica. Exerceu a vice-presidência da Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Teve uma curta experiência docente, entre 1984 e 1990, no Curso de Terapia Ocupacional da Escola de Medicina Física de Alcoitão e na Escola de Enfermagem das Franciscanas Missionárias de Maria. No campo da escrita, foi redactor do Comércio do Funchal (1968-74), colaborador do Público (1990-2000) e autor de três livros – Inventário dos Mundos (1995), Arsénio e Rendas Velhas (1996), Tristes ilhas e outras conversas… (2002).

Aí com textos mais de intervenção política e de análise social? Nessa altura escrevia sobre temas de economia, saúde e história regional. Uma secção que me divertia imenso, era o “Lusitaníssimo”, de fait divers inspirada num trabalho parecido de uma revista espanhola de então, a Triunfo. O Comércio do Funchal chegou a atingir uma tiragem de 14-15 mil exemplares e só mil ficavam na Madeira. E a maioria eram assinaturas. Era um verdadeiro produto de exportação: tinha mais assinantes em Angola ou Moçambique do que na Madeira. Como vê a imprensa dos nossos dias? Nos anos da minha juventude tínhamos uma grande unidade contra o regime. Hoje vivemos num registo diferente, de liberdade, embora possam existir outras amarguras. Há dois anos, ao abrir a porta do meu gabinete, deparei-me com um major, antigo censor do Comércio do Funchal, com quem compartilhávamos uma certa cumplicidade num jogo do gato e do rato. O homem fez-me uma festa e, depois, diz-me esta frase extraordinária: «Então lembra-se dos momentos em que você e o Vicente me chateavam porque lhes cortava uns textos? Veja lá se agora eram capazes de publicar um jornal daqueles!» De facto. É mais difícil hoje a edição independente na Madeira? Sem dúvida. Nessa altura houve uma série de factores absolutamente casuais: a censura não estava organizada para impedir um fenómeno periférico, como o Comércio do Funchal. Lembro-me de uma altura em que veio uma ordem para que todas as edições fossem censuradas em

Lisboa, num tempo em que nem telexes existiam, era tudo por correio, publicámos o jornal com quatro páginas, «por razões estranhas à nossa vontade» o que provocou um incómodo nos censores, que não queriam dar aquela imagem… Mas hoje em dia temos órgãos de comunicação, de um modo geral, melhores do que naquela altura. Mas a Madeira continua a se um caso muito peculiar… É um microcosmos. E num espaço tão pequeno também estabelecemos uma relação muito especial nas amizades e nos ódio. Há duas décadas a Madeira dependia essencialmente da monocultura da banana, do vinho e de uma coisa que pouco se fala, a “exportação” de emigrantes. Vivíamos dos “invisíveis correntes”, ou seja, das remessas dos emigrantes. Hoje a realidade é diferente. Desapareceu a emigração. O turismo tem uma dimensão paquidermica, funciona como uma nova monocultura. E há a perversão do poder, que me incomoda. As pessoas perderam o sentido da crítica, há uma banalização do mal, no sentido de Hanah Arendt. O totalitarismo moderno tem a ver com uma certa apatia, com a incapacidade de estabelecermos crítica. Uma ilha é um excelente balão de ensaio para o novo tipo de totalitarismo pósmoderno, porquanto funciona como um “pool” geneticamente fechado. Vivem na Madeira 250 mil pessoas, 80% do investimento depende do governo regional, um poder público que à sua conta tem qualquer coisa como 25 mil funcionários. O governo é o grande investidor e empregador da região. Enfim, há endividamentos constantes, vive-se numa subsídiodependência sem nada produzir. E a lei é a ordem do patrão, do führer lá do sítio, o presidente populista e vitalício Dr. Alberto João Jardim. Homem sempre presente numa conversa de madeirenses… É uma obsessão nossa. De facto, se se encontram dois madeirenses, daí a pouco estamos a falar dos nossos fantasmas.

Num dos textos de Tristes Ilhas, há alguém que lhe pergunta «E sobre medicina, escreve?» e a resposta é pronta «Ah, isso nunca. Basta o dia-a-dia.» Mas há sempre uma excepção… Escrevi um texto que originou uma polémica terrível, sobre a ética da relação entre os médicos e a indústria farma-

Em que acusava o ministro Marçal Grilo de ter inventado «uma nova licenciatura: “Educador(a) Infantil”. Com cadeiras práticas em técnicas de mudar de fraldas, suponho.» Levantei uma polémica desgraçada por causa das educadoras de infância. Ficaram ofendidíssimas.

cêutica. Levei muita pancada, mas continuo a achar que tinha razão. Levantei uma questão que está hoje no nosso quotidiano e se prende com a prescrição de genéricos. Sabia que estava a suscitar um problema incómodo mas não calculei a sua dimensão.

Também aconteceu algo de semelhante quando escrevi um fait divers sobre um curso de aeronáutica da Universidade da Beira Interior que tinha uma série de professores, vindos da ex-União Soviética, que davam aulas em mau inglês a alunos que mal sabiam Português.

Foto: Luis Souta

A sua experiência de escrita está ligada à imprensa. Os três livros publicados reúnem crónicas saídas na revista do Público. A minha aventura jornalística começa antes, no final da década de sessenta, no Comércio do Funchal, com muitos colaboradores daquele semanário, sobretudo com o Vicente Jorge Silva, com quem mantenho uma profunda amizade.

A imprensa amplifica o “ruído”. Não tive ideia das resistências que ia levantar. Lembro-me de, quando saiu o artigo, em Junho de 1994, ter ido almoçar com o José Cardoso Pires e de ele me ter dito «você meteuse com o Diabo e está tramado.» Foi uma premonição. Outra vez publiquei uma crónica chamada “Pastel de nata?”…

Escreveu muitas crónicas para o jornal (130 as editadas em livro), num trabalho regular e disciplinado. Nos primeiros anos do Público, escrevi todas as semanas, depois, não aguentei aquele ritmo, procurando manter uma certa qualidade. Tenho a ideia que qualquer texto precisa de repousar uns dias e voltar a ser lido e retocado.


Na contracapa do seu terceiro livro, transcrevem-se extractos de algumas cartas, enviadas por leitores, muito favoráveis às suas crónicas. Senti esse carinho particularmente no momento em que abandonei o jornal. Durante esses anos recebi imensas cartas. Na altura, conforme me diziam, o António Lobo Antunes recebia algumas, e o José Cardoso Pires, disse-me ele próprio, nunca recebeu nenhuma carta de leitores do jornal. E o meu amigo Vicente [Jorge Silva], no momento em que abandonou a direcção, teve poucas cartas, ele, o “pai” do Público, com um trabalho notável e primordial naquele jornal… Provavelmente estabeleci maior empatia… Em “Afectos”, alguém lhe pergunta «Você é escritor?» e responde «Recuso esse estatuto. Com mágoa, confesso. Disse-lhe que fazia crónicas, short stories, coisas assim.» Não sou propriamente um escritor, não vivo disto, não faço da escrita a ocupação principal. Gostava, mas nunca tive oportunidade. Muitas são as referências à escola nos seus livros, do pré-escolar à universidade. Descreve algumas

ve calcular, o psiquiatra é um voyeur por excelência; as pessoas contamnos histórias fabulosas, tenho pena de não as poder elaborar, por questões éticas e de confidencialidade. Quando descreve as várias escolas que frequentou, há nesses textos grande rigor etnográfico. Uma memória cheia de pormenores? Não sei. Mas a evocação da memória é uma fabricação, uma recriação do que imaginamos e do que nos contam. Em relação à escola, era um sítio onde íamos todos os dias, mas por vezes há uma grande distorção em relação à realidade. “A memória imaginada” foi o primeiro texto que encontrei que fala de um recreio – no “Ninho dos Pequeninos”, o tal «Tarrafal das Criancinhas» – fundamentalmente ocupado por raparigas e não por rapazes. Era uma escola religiosa só para raparigas, onde os rapazes eram admitidos a prazo, até aos 7 anos. Éramos meia dúzia de meninos da infantil. Havia uma espécie de linha de separação no recreio, e o lado onde ficavam os baloiços era-nos inacessível. As freiras eram muito segregacionistas, impunham uma separação de sexos.

faziam escola numa parte da casa onde residiam, uma sala onde coexistiam meninos da 1ª à 4ª classes. Escola típica da época que não faria muita diferença das escolas públicas: tinha aquelas carteiras com tinteiros onde colocávamos a pena e atirávamos a tinta para o gajo da frente. Era ao mesmo tempo um local de transgressão. Havia alguma severidade nos deveres mas era um lugar simpático… E a sua experiência no Colégio Lisbonense, onde um dia também resolveu tornar-se cábula? Na minha altura havia o liceu, uma escola comercial e industrial e dois colégios particulares, o Lisbonense e o Colégio Nuno Álvares, mais conhecido pelo “Caroço”. O Dr. Caroço, seu proprietário e director, era um homem de disciplina férrea e castigos corporais; o aluno cábula ia para o “Caroço”. Se não fosse aí endireitado, era exportado para uns colégios do Continente, com muita fama. Se o jovem não era “consertado” no colégio de Tomar, então passava para o Lisbonense, uma espécie de última paragem antes do deserto. Tem ideia de quantos colegas vie-

ciedade estava estratificada, havia o mundo dos estudantes e o mundo fora da academia, os “futricas”. E havia os rituais de iniciação, as praxes, que sempre considerei absurdas e que culminavam na “Queima das Fitas”… Pertence a uma geração que «mandou as praxes às urtigas». Coimbra era realmente um sítio especial. Havia em Coimbra um grande provincianismo impossível de acontecer em Lisboa ou no Porto. O movimento de 69 abalou a estrutura das praxes em Coimbra.

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na contra capa

Na época, podia-se entender todo esse ritual académico face a um corpo discente muito restrito, desejoso de vincar o seu elitismo. E com a crescente massificação do superior? Tenho alguma perplexidade quando vejo a praxe ressurgir nos locais mais periféricos. Não sei explicar o fenómeno, mas penso que o acesso à universidade continua a ser bastante restrito. Terá a ver com importância que se atribui, em algumas classes sociais, ao facto de haver um licenciado na família, deve ser importante em termos de posicionamento social. Em Lisboa nos anos 70, era impensável haver uma missa campal na Alameda da Universidade com o senhor Cardeal Patriarca a benzer as pastas e, no entanto, em termos ideológicos e políticos esse cenário seria mais plausível que hoje…

Foto: Luis Souta

A formação dos médicos escapou à voracidade dos privados, mantendo-se um exclusivo do ensino público. Por alguma razão as universidades privadas nunca investiram na formação médica. É um curso que exige mais do que papel e lápis. Em Medicina tem de haver um suporte hospitalar, que é caro, não dá lucro, é deficitário. O nosso “material didáctico”, ao fim e ao cabo, são os doentes, e para isso tem de haver uma “patologia” razoavelmente variada. Nos anos 70, quando concluí o curso, formaram-se 700 médicos por ano, 350 em Lisboa, 350 em Coimbra e no Porto.

situações que, mesmo para nós, do campo da educação, são pouco conhecidas… Estou como Celine, que dividia o mundo entre “actores” e “espectadores”, exibicionistas e voyeurs. A minha posição é assumidamente voyeur. E é essa distanciação que possibilita uma outra leitura. Provavelmente, se estivesse na área da educação não falava na educação. Tenho certa dificuldade em escrever sobre a realidade mais próxima, como a medicina. É preciso criarmos uma certa distanciação para falar sobre as coisas. Como de-

Como foram os primeiros tempos de escola? O primeiro dia é um mar de lágrimas. É o princípio da realidade em confronto com o do prazer… É o corte com a família. Exacto, estávamos no aconchego. É como no parto, estávamos ali no líquido amniótico e fomos expulsos para este mundo cruel… Gostou de andar na escola primária da Dona Egídia? Uma professora de uma certa severidade. Era uma escola particular de uma daquelas professoras que

ram consigo para Medicina? Uns 5 ou 6. Quando acabei o 7º ano éramos poucos, 80 alunos, desses, 20 ou 30 vieram para a Universidade; para um ilhéu, tirar um curso superior era caro, subentendia algum suporte financeiro. Estive em Coimbra numa República, éramos 10, todos ilhéus, 8 estudantes de medicina e filhos de médicos. A amostra não é significativa mas define um padrão. Dá uma ideia da Universidade nessa altura. Como era a vida académica de Coimbra? Coimbra nos anos 60 era uma cidade muito arcaica. Em Coimbra, a so-

Entretanto abriram novas escolas de Medicina. Passados 20 anos, temos 5 faculdades de medicina com 300 formados/ano em todo o país. Penso que os problemas da medicina não passam pelo aumento do número das faculdades, mas pela qualidade do ensino. De acordo com os dados internacionais, deve existir uma faculdade de medicina para 2 milhões de habitantes. Tendo em conta que somos 10 milhões, 5 faculdades de medicina chegam e sobram… Mas, neste momento, já há 7. Candidaturas não faltam. Pelos vistos, ter uma faculdade de Medicina dá prestígio à cidade e aos autarcas. Provavelmente. Antigamente eram os quartéis agora são as universidades.

UM ESCRITOR no divã entrevista por Luís Souta colaboração de Andreia Lobo


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Euro 2004 – O desporto escolar está de parabéns? Quais os efeitos dos resultados obtidos pela selecção portuguesa no Euro 2004 no desporto escolar? Será possível estabelecer uma relação causal entre os resultados de alto nível e o trabalho realizado no desporto escolar?

OPINIÃO dos leitores Miguel Pinto Professor

Sempre que o país se faz representar numa competição desportiva internacional (Jogos Olímpicos, Campeonatos da Europa e do Mundo) e as classificações alcançadas não correspondem às expectativas dos órgãos de comunicação social, os peritos do espectáculo desportivo dirigem os seus olhares para a escola, procurando encontrar as causas mais profundas do pretenso insucesso desportivo. O passado tem sido fértil em debates televisivos com painéis de especialistas em adeptos (é assim que muitos deles se auto designam), com um estatuto de “residentes”, que se entretêm a dissecar(?) o fenómeno desportivo. A posição destes

adeptos é extremamente cómoda. Afinal, o que é que se pode esperar de uma adepto? Aquilo que o próprio conceito encerra: que seja um admirador, um apaixonado, que simpatize com a coisa desportiva. A substância da sua opinião no quadro em que ela se desenvolve poderá conduzir, facilmente, à irracionalidade. Ora, sendo certo que o clima em que decorrem as conversas acerca do futebol garante a audiência, ele poderá não conduzir à sapiência. Como o critério formativo não tem sido adoptado pela comunicação social nas discussões sobre o desporto, o esclarecimento terá de ser procurado noutros locais. Mas, voltando à questão inicial, será

que após o Euro 2004 se falará do desporto escolar? Sim, se se considerar o desporto escolar como um dos pilares do modelo de desenvolvimento desportivo nacional. Nesta perspectiva, seria legitimo que o desporto escolar agregasse créditos pelos sucessos e descrédito pelos insucessos do desporto nacional. No momento em que a selecção nacional de futebol está na elite do futebol mundial, será que não existem motivos para enaltecer o trabalho que se realiza nas escolas portuguesas? Não, se se considerar que à escola não compete a formação desportiva de base ou concorrendo para essa

formação desportiva não a realiza convenientemente e que por essa razão não tem qualquer responsabilidade nos resultados desportivos nacionais. Este olhar espontâneo não representa a complexidade da relação entre os resultados desportivos e os modelos de prática que lhes subjazem. Esta questão requer uma análise mais profunda e alargada porque o nosso modelo de prática do desporto escolar encerra um conjunto de equívocos e paradoxos. Mas é um olhar que serve para provocarmos os comentadores desportivos, exigindo que sejam congruentes nas análises.

Diário de um professor contratado Setúbal, 31 de Agosto de 2004 Querido Diário,

OPINIÃO dos leitores Pedro Silva Professor do Ensino Básico 1º Ciclo

Hoje terminou o meu contrato administrativo de serviço docente, mas estou confiante para o futuro, ou melhor, estava. Apesar da verdadeira odisseia em que se transformou o concurso de docentes, acalentava muitas esperanças de vir a ser colocado antes do final do primeiro período, mas em pouco segundos a minha vida deu uma volta de 180º. Enquanto tomava o pequenoalmoço, chamou-me a atenção uma notícia que figurava na capa de um jornal diário de grande tiragem. O assunto dizia-me indirectamente respeito, expondo o caso de uma professora contratada que foi excluída no decorrer do concurso. Não consegui ficar indiferente ao discurso da colega, e sai de casa algo taciturno. No correio encontrei uma

carta proveniente da D.G.R.H.E., ao abrir o envelope constatei que se tratava da notificação do recurso que apresentei no dia 18 de Junho de 2004, em virtude de um erro no verbete. Acedi sem demora ao sítio da D.G.R.H.E. e verifiquei que as listas definitivas tinham acabado de ser publicadas e eu permanecia, erradamente, numa posição perto da cauda da lista. Ciente do absurdo da situação, «corri» para Lisboa. Chegado à D.R.E.L., enviaram-me para a D.G.R.H.E. argumentando que não dispunham de informação sobre a minha situação. Na D.G.R.H.E. não passei da portaria e enviaramme para o C.I.D.E.P. No C.I.D.E.P. as funcionárias de serviço também não disponham de qualquer informação, aconselhando-me a apresentar recurso hierárquico junto da Exma. Sra. Ministra da Educação, não adiantando, contudo, informa-

ções sobre como elaborar o recurso e sobre o prazo para uma possível resposta. Preocupado, juntei em pouco mais de 24 horas toda a informação sobre a minha situação profissional nas escolas de ensino público onde estive colocado nos dois últimos anos que antecederam o concurso, cerca de 15 documentos oficiais, para demonstrar o erro e a injustiça da minha posição na lista definitiva. Querido Diário, após alguma pesquisa, verifiquei também que o conteúdo desta lista está eivado de ilegalidades, bem sei que não tens formação jurídica, mas eu creio que segundo o art. 17º do Decreto-lei 35 de 2003 que regulamenta os concursos, as reclamações que não são indeferidas no prazo de 30 dias após o final do período de reclamação, são consideradas deferidas e que conforme o art. 18º do mesmo Decreto-

lei, após este período de 30 dias, as listas provisórias são consideradas definitivas incluindo os dados contidos nas reclamações. Logo, se recebi a notificação quase 70 dias depois do final do prazo do período de reclamações não te parece que estou a ser prejudicado e que também por este motivo a minha posição na lista deveria ter sido rectificada? Agora, o meu futuro pessoal e profissional encontra-se depositado num envelope que enviei registado com aviso de recepção sem qualquer noção do tempo de resposta. Neste momento, só me resta e(xas)sperar e informarme sobre outras medidas a tomar para tentar resolver esta situação. Querido Diário, continuarei a manter-te informado da minha situação, mas agora não a partir de casa, mas sim do Centro de Emprego junto da colega que conheci no artigo e com muitos outros colegas.


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Universalização do ensino fundamental no Brasil

A falácia da aprendizagem - II Em nosso entendimento, é imperioso que os intelectuais de esquerda se proponham a revisar, de maneira menos idealista e numa perspectiva mais concreta, os seus projetos; tantos os que foram apropriados pela direita quanto os que ainda estão sendo gestados. Pois, reconhecendo os primeiros como efetivamente seus, terão a oportunidade de redimensioná-los numa proposta política, possibilitando o redirecionamento daqueles que ainda não foram colocados em prática. Se num passado recente as bandeiras defendidas pela esquerda, tais como: participação, autonomia, liberdade e cidadania foram incorporadas ao discurso (neo)liberal, implicando no esvaziamento do conceito de democracia; no presente, podemos observar que algumas dessas “novas” bandeiras ideológicas da esquerda, como por exemplo a defesa da qualidade da educação, já estão sendo encampadas e praticadas pelos (neo)liberais sob a ótica capistalista-mercantil. Assim é que, podemos encontrar em GENTILLI (1994 a), “(...) Também enfatizamos que tal discurso tem-se caracterizado por adotar o conteúdo definido pelos debates sobre qualidade no universo produtivo. Identificamos este como um duplo processo de transposição, mostrando como sua aplicação, em alguns casos concretos (p.ex: Chile, Brasil e Argen-

tina), conduz ao aprofundamento das diferenças sociais instituídas na sociedade de classes, ao mesmo tempo em que intensifica o privilégio e as ações políticas dualizantes”. Dentro desse contexto, o discurso (neo)liberal atrela o conceito de qualidade ao conceito de propriedade, instaurando propositadamente a falsa compreensão que se deva ter entre um e outro; logo, nessa perspectiva, a qualidade não se consubstancia em elemento qualificador do direito à educação, mas tão somente como um produto a ser “adquirível no mercado dos bens educacionais”. É por este viés (neo)liberal que o capitalismo vem fomentando a necessidade de expansão da educação, sobretudo, aquela que se deve buscar no mercado e não aquela que, por força legal, tem que se ofertada pelo Estado, pois, na ótica capitalista, esta não oferece qualidade. Isso reforça a proposição de que, ao defenderem a categoria “qualidade” na educação, os educadores de esquerda poderão estar corroborando as propostas de “gestão” sugeridas pelos (neo)liberais. A resistência a essa investida deve ocorrer, à medida em que os representantes dos movimentos dos educadores de esquerda se proponham a discutir e a assumir de fato que estiveram ao longo da história recente do país, ratificando

uma forma escamoteada de democracia, em cuja fundamentação está o direito à representatividade e à “igualdade” jurídica. Compreender, portanto, que as “velhas bandeiras” pelas quais lutaram, são as mesmas que os (neo)liberais e os (neo)conservadores resignificaram e estão oferecendo nos dias de hoje. É imperioso que procedam, segundo assinalou LIMA (2001), “(...) Sem dúvida, a descentralização, a autonomia e a participação constituem-se em categorias fundamentais para se concretizar uma gestão democrática.Entretanto, precisamos fazer uma análise crítica desses conceitos, visto que, estes podem encobrir os propósitos da ofensiva (neo)liberal de diminuição do papel do Estado de mantenedor das políticas sociais”. Essa revisão crítica dos conceitos acima apresentados,pode ajudar a desvelar o porque da “continuidade do projeto societário do Regime Militar para a Nova República, apesar da instauração da democracia representativa”(NOGUEIRA E BORGES, 2002, p.13); remetendo os educadores de esquerda engajados nos movimentos sócio-político e educacionais do país, a um exercício dialético que os possibilite denunciar cada vez mais a falácia que se constitui a universalização do ensino fundamental no Brasil.

Considerações finais Numa tentativa de fechar esta reflexão, porém, não o assunto, visto que este se insere na pauta dos debates atuais, sobretudo, nos meios acadêmicos; importa nesse momento, reforçar o papel dos educadores de esquerda junto à sociedade civil, a fim de que esta reúna condições para pressionar a sociedade política no que diz respeito à construção e à aplicação da política educacional, porque é efetivamente nessa esfera que se dá a formulação, a imposição e a fiscalização da legislação que regula o ensino no Brasil. Para tanto, a revisão histórica de como o processo de (des)construção do ensino público vem sendo arquitetado pelo Estado (neo)liberal e em boa parte, endossado pelos educadores, é condição sine qua non para que estes possam, no plano real, redefinirem o conceito de democracia dentro de uma perspectiva de transformação social. O desafio a ser encarado pelos educadores de esquerda e pelos representantes das classes subalternas, é justamente o de oferecer aos seus representados, o maior nível de conhecimento crítico possível, a fim de que passem a participar ativamente das decisões políticas que determinam a condução das políticas sociais do país, dentre elas, a política educacional.

OPINIÃO dos leitores Francisco Leonardo dos Santos Cavalcante Graduado em pedagogia e pós-graduado em Fundamentos

Nota: A primeira parte deste ensaio foi publicada em a PÁGINA

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de Agosto-Setembro, p. 44

UNOESTE - PR, Brasil

Abertura do ano lectivo 2004/2005 Recepção aos Encarregados de Educação Depois de uma manhã numa sala de aula vazia de risos Depois de uma manhã numa sala de aula vazia de risos, observando os rostos tranquilos das questões nunca postas dos encarregados de educação, fica-se com o aperto no peito da preocupação e a ruga na testa da incredulidade. Os últimos governos de direita conseguiram o que almejavam: tornar dóceis e conformistas os homens e mulheres desta geração!

O “para quê reclamar?”, “Eles é que mandam”, “ assim, como assim, ainda estamos vivos e de boa saúde”. Parece ter voltado a ser o refrão do cântico de uma massa anónima que perdeu a esperança e a garra. Já nada fere! As feridas sucessivas criaram uma crosta de protecção, a insensibilidade! A auto-censura, tal como a auto-medicação, encobre o cancro si-

lencioso que alastra neste mundo de tão poucos. Perverteram-se palavras como: liberal, liberdade, democracia. Sujaram-se as palavras: liberdade, solidariedade e justiça. Colocaram-se no andor de novo a esmola, a pobreza. As palavras agora servem para apertar os freios, amordaçar aqueles cujos ideais passam pela valorização individual no colectivo.

Quase se torna proíbido pensar hoje no “nós”. O “eu” dos egos importantíssimos impõem-se cada dia nos mais pequenos pormenores da vida quotidiana. E, quem como eu, que já não tem necessidade de se considerar ajuizada, assistir a isto, fica com a testa enrugada, e uma dor, uma dor imensa no coração!

OPINIÃO dos leitores Luísa Vinagre Professora


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A gestão de conflitos em sala de aula

OPINIÃO dos leitores Laila Aninger Pedagoga Empresarial e MBA em Gestão Empresarial. Pós-graduada em Metodologia do Ensino Superior e Planejamento e Gestão. Consultora do Projeto Linha Direta em Educação e Gestão de Desempenho. Consultora e Diretora da A & B Consultoria e Desenvolvimento e do site www.vaganaescola.com.br. laila.aninger@taskmail.com.br

Toda a história da humanidade foi, e é, marcada por uma série de conflitos: políticos, econômicos, sociais, religiosos... O conflito é uma realidade sempre presente nas relações humanas e nas relações de trabalho. Os conflitos originam-se na diversidade de pontos de vista entre pessoas, na pluralidade de interesses, necessidades e expectativas, na diferença entre as formas de agir e de pensar de cada um dos envolvidos. Os espaços onde ocorrem maior número de conflitos entre pessoas, são os ambientes de convivência diária, entre eles as salas de aula. O conflito se soluciona pela negociação. Negociar é a arte de compreender a pluralidade de opiniões e saber acordar entre as partes, de maneira

que todos saiam ganhando. Em sala de aula, os conflitos são inerentes à própria natureza das atividades e, principalmente da convivência diária. A escola é uma organização social. Conflitos sempre geram tensão que precisam ser administradas. Situações de conflito trazem sempre uma mensagem que nem sempre é decodificada, por isso, nós professores, devemos tentar ler nas entrelinhas. A Gestão de conflitos refere-se ao gerenciamento de problemas disciplinares e comportamentais e das relações intra e interpessoais. A gestão do conflito em sala de aula deve ter sempre valor educativo. O professor gestor do conflito deve aproveitar o momento para trabalhar a percepção de direitos e deveres e também do limite – “o meu termina

quando começa o do outro”. E é importante que o educando receba em sua formação a noção de respeito ao outro, às opiniões do outro, de saber ouvir, de tolerância e saber como aplicar esses conceitos no dia-a-dia para seu crescimento como ser integral. A escola é o lugar onde devemos aprender a tomar decisões conjuntas, a formar regras, analisar e entender a cultura. Educação é saber conviver. Isso não quer dizer que é importante tentarmos excluir os conflitos. Os conflitos fazem parte da vida. Devemos sim, tirar proveito e transformá-los em ricos momentos de aprendizagem. Existem conteúdos que não podem ser teorizados em sala de aula: afetividade, solidariedade, sensibilidade. Esses conceitos devem e tem de ser vividos, presenciados. O

crescimento sadio deve ser baseado na racionalidade e na afetividade, em igual valor: crie um ambiente instigante; incite os alunos a discutir ou avaliar o que estão aprendendo; promova ações que descentre o indivíduo, tornando-o solidário. Nota Uma sugestão simples: Dividir a aula em 3 momentos para trabalhar: 1º. Conteúdos Conceituais: Fatos, conceitos, princípios – Trabalhos individuais; momentos reflexivos; aulas expositivas. 2º. Conteúdos Procedimentais: Procedimentos, técnicas, métodos – Trabalhos e dinâmicas em grupo. 3º. Conteúdos Atitudinais: valores, atitudes, normas – Seminários, plenários, etc.

Uma ideia lúcida de democracia

OPINIÃO dos leitores Paulo Frederico F. Gonçalves E B 2.3 de S. Torcato Guimarães

“Ensaio sobre a lucidez” de José Saramago não é um manifesto contra o sistema democrático. Pelo contrário, enaltece a sua sinceridade enquanto ideia de sociedade, desde que depurada do exercício subjectivo do poder. A este nível, Saramago assume-se argutamente subversivo, ao minar os mecanismos pelos quais as famílias politicas e partidárias se perpetuam, tacitamente, no poder. O voto em branco surge como um pretexto para questionar o funcionamento de uma democracia e, simultaneamente, o instrumento responsável através do qual o cidadão exerce o seu dever cívico de intervir na vida pública, sem se alhear abstendo-se, e não se comprometendo com um sistema viciado ao alinhar por um determinado partido. A democracia actual sabe lidar com grevistas, manifestações, interrupções de estradas, protestos no parlamento, bastando mandar investir contra estes as cargas policiais q.b., e

ameaçar com posteriores processos judiciais os infractores à legalidade. No romance em questão, o protesto é pacífico, responsável, eficaz e dentro de toda a legalidade: o voto em branco de quase noventa por cento da população da capital. O statu quo percebe que está perante uma forma tremendamente eficaz de atingir os alicerces de um sistema que a pretexto da democracia, acaba por ceder a interesses instalados, privilegiar grupos e discriminar grande parte da população. É a ordem estabelecida que está em causa. Mas que ordem? A ordem democrática, obviamente, responderam de imediato os elementos do governo, os coniventes com o sistema e todos que de uma maneira geral dele tiram proveito. E face aos “brancosos” (termo depreciativo com que o governo passou a denominar todos aqueles que votaram em branco), urde-se uma teoria da conspiração, a legitimar medidas radicais: concre-

tamente estados de sítio e outros paroxismos de abuso de poder. No “Ensaio sobre a lucidez” a democracia ocidental (chamar-lhe-emos assim) assume-se como uma ditadura terrível, sempre em nome da defesa dos cidadãos. O voto em branco foi o único instrumento que o cidadão encontrou para se fazer ouvir, dado que as outras formas de protesto não surtem efeito pois, ou são insuficientes, ou ilegais. Note-se a passagem sobre a manifestação silenciosa da população em direcção às residências do Primeiro - Ministro e do Presidente da República; quando se esperavam todo o tipo de protestos, nem uma palavra se ouviu. Só uma multidão silenciosa mas resoluta, um silêncio ensurdecedor e que se concretizara já no massivo voto em branco. Estas formas de manifestação e de reivindicação não vêm no manual dos governos democraticamente eleitos, desorientando os burocratas e os

que só jogam no politicamente correcto e na margem, determinada pelos próprios, do incorrecto aceitável. O voto em branco levanta a questão complexa da relação entre representado e representante, a responsabilidade destes últimos no exercício do poder e da governação. Quando usado em doses maciças, obriga a que se encontrem soluções, se renove o sistema, se criem mecanismos para que a reprodução de elites partidárias, sociais e económicas não se verifique. Os “brancosos” põem o regime democrático entre a espada e a parede. Mas com Saramago, nem tudo o que parece, é. Porque neste lúcido romance, os verdadeiros democratas são aqueles que a democracia pretende atingir. Uma pretensa democracia, de amigos, de recompensas, de vingançazinhas pessoais, uma democracia para meninos mimados brincarem aos governos. Uma democracia que até podia ser a nossa.


Células, embriões e clonagem O ovo fertilizado, a célula primordial que dá origem a todas as outras, bem como as células dos primeiros estádios do desenvolvimento embrionário, são ditas totipotentes. À medida que o processo de diferenciação avança, é bloqueado de forma permanente o acesso a determinada informação genética, conduzindo a célula e os seus descendentes por uma espécie de estrada sem regresso, que culmina nas células diferenciadas dos diversos tecidos, que perderam até a capacidade de proliferar. As diferentes células de um organismo partilham a mesma informação genética que, ao exprimir-se de diferentes maneiras, origina uma diversidade de formas e funções absolutamente admirável. O mesmo pacote informativo permite, por exemplo, criar uma célula muscular, especializada na contracção muscular, ou um neurónio, especializado na recepção e condução de informação. Os manuais de histologia reconhecem a existência de mais de uma centena de tipos celulares morfologicamente distintos. Se cada uma destas células possui exactamente a mesma informação base, o que a impede de se transformar noutro tipo celular? É evidente que o bom funcionamento do organismo não é compatível com um processo de diferenciação celular relaxado, em que, a qualquer momento, uma dada célula pudesse “arrepiar caminho”. O que seria de nós se as células cardíacas de repente perdessem a capacidade de se contrair ritmicamente? É assim que se entende a existência no organismo de vários patamares de diferenciação celular. O ovo fertilizado, a célula primordial que dá origem a todas as outras, bem como as células dos primeiros estádios do desenvolvimento embrionário, são ditas totipotentes. À medida que o processo de diferenciação avança, é bloqueado de forma permanente o acesso a determinada informação genética, conduzindo a célula e os seus descendentes por uma espécie de estrada sem regresso, que culmina nas células diferenciadas dos diversos tecidos, que perderam até a capacidade de proliferar. Num pata-

CONSEGUIR INTRODUZIR no organismo novas células estaminais pode ter consequências extraordinárias. mar intermédio, encontramos as células ditas estaminais, pluripotentes, que se multiplicam e têm a capacidade de dar origem a um número limitado de tipos celulares. Esta população de células, embora mais rara, existe no organismo adulto, sendo responsável pela reposição de algumas células que se perdem ao longo do tempo. Um exemplo são as células estaminais da medula óssea, que têm a capacidade de originar os vários tipos de células sanguíneas. É fácil compreender o valor médico de poder controlar a diferenciação celular. É o facto de muitos tipos celulares não se poderem voltar a formar no estado adulto que faz com que certas lesões sejam irreparáveis. Conseguir introduzir no organismo novas células estaminais pode ter consequências extraordinárias. Por exemplo, as lesões da medula espinal, tão frequentes nos acidentes de viação, poderiam ser reparadas pela formação de novos neurónios que substituam os lesados. Da mesma forma poderíamos reparar os danos de um enfarte do miocárdio. Ou li-

bertar os doentes com leucemia do fardo aleatório de encontrar um dador de medula compatível. Durante muito tempo julgou-se que o processo de diferenciação celular fazia com que o acesso à informação contida no património genético da célula ficasse condicionado de maneira irreversível, de tal forma que uma célula diferenciada nunca poderia modificar a sua actividade de forma a tornar-se pluripotente. A famosa experiência da clonagem da ovelha Dolly veio mostrar que isto não é verdade. Para fazer nascer a Dolly os investigadores introduziram o núcleo de uma célula da glândula mamária de uma ovelha adulta dentro de um óvulo a que previamente retiraram o núcleo. A estimulação deste óvulo conseguiu o que era até aí considerado impossível: reprogramar o acesso à informação genética contida no núcleo da célula adulta, de tal forma que esta se tornou totipotente e, após implantação num útero, levou a cabo um programa completo de desenvolvimento embrionário. A reprogramação para o

estado de totipotência claramente não foi perfeita e este e outros animais gerados desta forma apresentam problemas de saúde significativos. O processo caracteriza-se por uma eficiência baixíssima e uma total falta de controlo da forma como a reprogramação acontece. É por esta razão que não se pode seriamente advogar a utilização desta via para gerar seres humanos. Mas não é isso que os investigadores que defendem a importância de se continuar a trabalhar nesta área pretendem. O que os investigadores vêem nesta técnica é a possibilidade de eliminar a programação que restringe a utilização da informação genética de uma célula diferenciada, gerando células indiferenciadas que podem ser utilizadas em inúmeras aplicações médicas. É disso que se fala quando se fala de clonagem terapêutica, e não da produção de embriões. No actual momento do conhecimento científico, a única forma prática (ainda assim extremamente pouco eficiente) de reprogramar células envolve o recurso a óvulos. Mas não é exagerado prever que, caso a investigação continue a bom ritmo, os avanços na compreensão dos mecanismos que regulam este processo permitirão, num futuro próximo, que a reprogramação seja obtida por via química, sem recurso a óvulos. Será então possível uma aplicação mais generalizada daquilo que muitos acreditam ter um potencial revolucionário - a terapia celular. Importa por isso desmistificar a clonagem terapêutica, para que se possa reflectir e decidir livremente sobre o valor deste tipo de investigação.

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a página

da educação outubro 2004

na contra capa

DA CIÊNCIA e da vida Margarida Gama Carvalho Faculdade de Medicina de Lisboa eInstituto de Medicina Molecular

Bolha Cósmica

Foto: ESA/NASA (Outubro, 2004)

Esta imagem, obtida pelo Telescópio Espacial Hubble, mostra um pormenor da Grande Nuvem de Magalhães – assim designada em homenagem ao navegador português do mesmo nome. Aquele corpo celeste é uma pequena galáxia vizinha, apenas visível do hemisfério sul. Aqui, do lado esquerdo da imagem, surge uma espécie de “bolha” cósmica esculpida por ventos – correntes de partículas energéticas e uma forte emissão de ultravioletas – emitidos por uma estrela brilhante localizada no centro daquela estrutura esférica. Originalmente a estrela encontravase rodeada pela nuvem densa e fria de gases e poeiras. Este curioso objecto é designado N44F pelos astrónomos, tem 35 anos-luz de diâmetro e encontra-se a 160 mil anos-luz da Terra.

FOTO ciência com legenda Luis Tirapicos


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Na Gaveta

a página

da educação outubro 2004

última

UM CONTO Mrozeck

“Caminante, no hay camino, el camino se hace al andar”, ensinou-me o grande poeta António Machado.

FOTOGRAFIA com legenda Adriano Rangel

Esta manhã, quando procurava os meus óculos, puxei a gaveta do meio da secretária e reparei nos pequenos seres que lá viviam. Entre o estojo dos óculos e o maço de fotografias, havia um simpático e jovem casal de minúsculas personagens. Ele, cerca do tamanho do meu polegar, tinha olhos claros e estava a sorrir. Ela, não maior que o meu dedo mínimo, aparentava ser muito aprumada mas ágil. O cabelo dourado preso atrás caía-lhe sobre os ombros. Olhavam um para o outro quando eu abri a gaveta e ambos se voltaram para mim ao mesmo tempo. Para eles devo ter parecido tão grande como Deus, imenso e poderoso. Sorri-lhes. O sorriso foi equivalente a uma mudança atmosférica. Todavia não mostraram medo algum. Dando as mãos, avançaram alguns passos para a borda da gaveta que estava encostada à camisola que eu usava. O jornal com que a gaveta tinha sido forrada estalou sob os

seus pés. Baixei a cabeça devagar, ciente de que os meus movimentos podiam ser como tremores de terra para eles. Não pude distinguir a expressão dos seus olhos; eram do tamanho de cabeças de alfinete. Muito claramente explicaram que estavam em dificuldades; a mãe dela não concordava com o casamento. Soava como um apelo. Tendo acabado de tomar o pequeno almoço, estava particularmente bem disposto. Na gaveta havia todo um mundo. Emoções. Problemas. Foi por puro acaso que dei primeiro com aqueles dois. Descobri que eles tinham muitos, muitos parentes, vivendo também na gaveta, nas suas casinhas. Havia uma rua dessas casas, talvez mesmo uma cidade inteira. Fiquei surpreso por encontrar a minha gaveta cheia de lares, amor e ódio... Com uma estranha mas não desagradável sensação, compreendi que as minhas mãos e a mi-

nha voz tinham subitamente ficado envolvidas com as vidas daqueles minúsculos seres. Inesperadamente, tornara-me uma grande força que, tendo acidentalmente entrado em contacto com os seus assuntos, podia agora influenciá-los de modo decisivo. Eles eram tão pequenos que nada significavam para mim, embora eu pudesse ser tudo para eles. Repito que estava de muito boa disposição, e fiquei imediatamente interessado pelos problemas deles. Prometi interceder junto da mãe da rapariga. Encheu-me de prazer antecipar acena; que grande autoridade eu seria aos olhos da mulher! Olhando mais de perto a gaveta, distingui nela um horizonte, a existência do que nunca suspeitara. Senti-me amistoso e magnânimo. O dia de Agosto prometia ser um belo dia. Gracejei com eles, ri e cheguei mesmo a ir ao espelho para observar os meus olhos cinzento-esverdeados e obscenamente grandes com-

parados com os pontinhos minúsculos deles. Por fim, dando a entender delicadamente que tinha de me ir embora, saí. No café encontrei um homem que tinha estranhas ideias acerca de mim. O céu enevoou-se e começou a chover. A chuva já tinha parado quando regressei a casa, mas a superfície desigual da estrada estava coberta de poças de água. Um camião ao passar salpicou o passeio de lama. Tentei saltar para o lado, mas foi em vão: as minhas preciosas calças claras, novinhas em folha, ficaram salpicadas de lama. De volta a casa, abri a gaveta à procura de uma escova. Quando me avistou, o homenzinho fez sinal de querer falar-me. Com tímido sorriso, explicou-me que havia chegado o momento preciso para a minha intervenção, no caso de querer ajudá-los... Com um movimento impaciente, varri-os a todos com a mão.


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