Miscellanea APAV #6

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MISCELLANEA

DEZEMBRO 2018 NÚMERO 6

APAV

Programa Hora de SER Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos uma proposta inovadora para a prevenção da violência doméstica e de género Madalena Conde, Mafalda Magalhães, Manuela Santos, Rosa Saavedra

Projeto CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual Carla Ferreira

Os crimes de ódio da invisibilidade à agenda Europeia e nacional Marta Carmo, Mafalda Valério

Gabinete de Apoio à Vítima® do Alto Alentejo Oeste O GAV® itinerante da APAV Alexandra Gaio

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EDITORIAL O número 6 da Miscellanea APAV é, assumidamente, uma edição diferente das anteriores: não pela diversidade das temáticas que acolhe, uma vez que mantemos a diversidade como apanágio desta publicação, mas porque optamos por reunir, nesta edição, os contributos de respostas inovadoras de intervenção, prevenção e produção de conhecimento que têm sido promovidas pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, em parceria com outras entidades e estruturas. Planeamos, desta forma, abrir as hostes para a publicação de artigos que descrevam a implementação de práticas que estão a ser executadas no terreno e que, não obstante a sua relevância, muitas vezes ficam fechadas e ocultas no interior das estruturas que as promovem, perdendo-se a possibilidade de as ver replicadas e disseminadas noutros contextos. Optou-se pela disseminação de iniciativas cuja avaliação realizada valida o impacto positivo do trabalho desenvolvido. Todavia, a informação sobre experiências que tendo sido implementadas não foram bem-sucedidas e que necessitam de ser ajustadas não será de somenos importância. Não procuramos criar aqui um ponto de rutura com o passado e com futuro da revista, mas pareceu-nos que este também poderia ser o espaço adequado para dar visibilidade a abordagens em torno de temáticas que, não sendo inteiramente novas, exigiram respostas inovadoras. No primeiro artigo, intitulado Projeto SER – Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos, da autoria de Madalena Conde, Mafalda Magalhães, Manuela Santos e, também, com o meu contributo, damos a conhecer as principais características de um projeto de prevenção da violência doméstica e de género, que tem como principais destinatários crianças entre os 6 e os 10 anos que frequentam contextos escolares e comunitários e que está a ser promovido e implementado pela APAV na NUTS Norte. Neste artigo, são também apresentados os resultados preliminares da avaliação de impacto social do programa, desenvolvido no âmbito do referido projeto, realizada pela SincLAB – Social Inclusion Laboratory, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Os resultados do primeiro ano de implementação apontam para algumas mudanças que, face à metodologia experimental utilizada (abordagem quasi-experimental), se acredita que possam ser resultado da implementação: as crianças diminuíram a sua estereotipia sobre os papéis de género e as crenças sobre a violência; aumentaram o grau de intolerância a formas mais subtis de violência e o sentimento de empatia relativamente à figura da vítima de crime e de violência. No artigo seguinte, que nos é apresentado por Carla Ferreira, gestora técnica do Projeto CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, mantemos um enfoque nas crianças e jovens.

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Um dos pontos de partida para a criação desta iniciativa foi a noção clara de que, perante a ausência de um apoio especializado que ajude a criança ou jovem e a sua família a lidar com a vitimação de que foram alvo, o risco de esta continuar a ser agredida sexualmente no presente ou de o voltar a ser no futuro, assim como também a vulnerabilidade a outras formas de vitimação seria potencialmente maior. Mas então o que faz este projeto de diferente? Pois bem, no artigo encontrará resposta a esta e outras questões. A descrição realizada permite ao/à leitor/a conhecer a sua estrutura, a sua evolução, a sua rede de parcerias, a intervenção preconizada e algumas das estratégias que têm sido utilizadas para disseminar a intervenção realizada, designadamente, o Manual CARE- apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, a formação dirigida a profissionais, as ações informação e sensibilização mais direcionadas para as crianças e as campanhas publicitárias com um enfoque muito particular na questão “o abuso sexual de crianças não tem de ser um segredo”. No artigo intitulado “Os crimes de ódio: da invisibilidade à agenda Europeia e nacional”, Marta Carmo e Mafalda Valério apresentam os conhecimentos e reflexões acerca dos crimes de ódio, enquanto resultados da pesquisa e sistematização realizada no âmbito do projeto europeu Ódio nunca mais (nome original “Hate no More”). Apresentam ainda os principais produtos desenvolvidos: um Manual de Procedimentos para Profissionais, um Manual de Formação, uma campanha pública sobre os crimes de ódio. Sublinham também as implicações práticas do conhecimento adquirido na intervenção junto de vítimas de crimes de ódio, seus/suas familiares e amigos/as, no reforço das competências das/dos profissionais que trabalham nesta área, bem como nos esforços de sensibilização com vista ao reconhecimento do fenómeno e do seu impacto nas suas vítimas, familiares e amigos/as. Terminam com a referência ao facto de este ser um primeiro passo da APAV no combate ao fenómeno dos crimes de ódio, conscientes que, neste domínio, há ainda um longo caminho a percorrer na sensibilização, formação e advocacia. Para terminar, Alexandra Gaio, Gestora do Gabinete de Apoio à Vítima do Alto Alentejo, apresenta-nos o trabalho desenvolvido por esta estrutura e explica por que se distingue, não apenas pela premência da sua localização mas, também, pela sua itinerância. O desenho deste projeto visa responder “à dimensão e dispersão geográfica do Alto Alentejo, ao isolamento da população e à fraca ou inexistente rede de transportes públicos que sirva as necessidades da população”. O artigo descreve também o esforço desenvolvido na instalação deste serviço num território com estas particularidades e a importância da rede de parceiros estratégicos e dos protocolos desenvolvidos que possibilitaram esta concretização. O nosso agradecimento ao Sérgio Aires, por conceder um rosto especial às nossas páginas e por abrir esta revista ao exterior. Um reconhecimento especial às colegas da APAV que aceitaram o desafio de colaborar com este número. Para terminar, fica o convite dirigido a todas e todos para participarem nos próximos números e para perceberem a Miscellanea como um espaço para partilha, não só de conhecimento científico e de reflexão, como também de práticas de intervenção e de prevenção relacionadas com as vítimas de crime ou com o apoio que lhes é prestado. Boas leituras!

Rosa Saavedra miscellanea APAV 3


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CONTEÚDO

Programa Hora de SER Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos uma proposta inovadora para a prevenção da violência doméstica e de género Madalena Conde, Mafalda Magalhães, Manuela Santos, Rosa Saavedra

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Projeto CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual

Os crimes de ódio da invisibilidade à agenda Europeia e nacional

Gabinete de Apoio à Vítima® do Alto Alentejo Oeste O GAV® itinerante da APAV

Carla Ferreira

Marta Carmo, Mafalda Valério

Alexandra Gaio

P 13

P 19

P 26

ISBN 978-972-8852-79-5

Fotografias de Sérgio Aires

MISCELLANEA APAV

Licenciado em Sociologia pela Universidade do Porto (1994). Consultor e perito nas áreas da pobreza, exclusão e políticas sociais. Entre 1994 e 1998 integrou o gabinete de investigação da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza, organização de quem viria a ser o coordenador nacional entre 1998 e 2006. Desde 2006 trabalha como consultor independente. Entre Novembro de 2006 e Setembro de 2018, exerceu as funções de Director do Observatório de luta contra a Pobreza na cidade de Lisboa, uma iniciativa da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza. Como voluntário, exerce ainda actualmente, e entre outras, as funções de Delegado Português no Comité Executivo da European Anti-Poverty Network (EAPN); Presidente da Assembleia-Geral da Associação Slow Movement Portugal, Vogal do Centro Social e Paroquial de São Nicolau (Porto) e Vice-Presidente da Associação Gentopia - Associação para a Diversidade e Igualdade de Género.

2018 © APAV Associação Portuguesa de Apoio à Vítima APAV Rua José Estevão 135 A 1150 201 Lisboa 351 21 358 79 00 apav.sede@apav.pt www.apav.pt

Enquanto fotógrafo, actividade a que se dedica desde a mais tenra idade, e que exerce em paralelo, tem publicados vários trabalhos, em diferentes meios, tais como: Revista Rediteia, Revista Focus Social, Revista Impulso Positivo, Cadernos RedAção, Edições Hacer (Espanha), Amnistia Internacional, Observatório de luta contra a pobreza na cidade de Lisboa, várias publicações da European Anti-Poverty Network, Website do Slow Movement Portugal, entre outras. Participou ainda com trabalhos da sua autoria em campanhas anti-discriminação e promoção de vários artistas e espectáculos. miscellanea APAV 5


Programa Hora de SER - Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos uma proposta inovadora para a prevenção da violência doméstica e de género Madalena Conde, Mafalda Magalhães, Manuela Santos, Rosa Saavedra

Resumo A APAV encontra-se a promover o Projeto SER, um projeto financiado pelo POISE, com a duração de 30 meses e cujo objetivo central é prevenir a violência doméstica e a violência de género. O Projeto integra o Programa de Prevenção Hora de SER, um programa de prevenção universal estruturado, destinado a crianças dos 6 aos 10 anos e com potencial de implementação em contexto escolar e comunitário. O Programa é composto por seis módulos independentes, num total de 18 sessões de carácter lúdico e pedagógico. Neste artigo descrever-se-á mais detalhadamente o Programa, bem como os resultados preliminares da medição de impacto social da primeira implementação-piloto, que decorreu entre junho de 2017 e julho de 2018, em oito escolas do 1º ciclo do ensino básico e em dois contextos comunitários. Palavras-chave: prevenção; violência doméstica; violência de género; medição de impacto social

Introdução A prevenção e combate à violência e a promoção da igualdade de género têm sido preocupações constantes nas políticas públicas, através da identificação de necessidades e definição de objetivos/ áreas estratégicas. A este respeito, o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014-2017 apontava a informação, a sensibilização e a educação como fundamentais para prevenir a violência doméstica e a violência de género. Atuar na

prevenção significa combater a violência na sua raíz e em toda a dimensão das suas causas. Foi, no âmbito deste Plano, que a APAV desenvolveu, em 2016, o Projeto SER – Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos – com o objetivo de prevenir a violência doméstica e a violência de género. Do Projeto, que ainda se mantém em vigor, resultou o Programa de Prevenção Hora de SER, que reflete também os objetivos da atual Estratégia Nacional para a Igualdade e a NãoDiscriminação 2018-2030, que identifica várias necessidades para que Portugal continue a afirmar-se como país promotor dos Direitos Humanos. Esta Estratégia assinala a necessidade de garantir as condições para uma educação e uma formação livres de estereótipos de género e promover a igualdade, bem como a necessidade de erradicar a tolerância social às várias manifestações da violência, conscientizar sobre o seu impacto e promover uma cultura de nãoviolência, de direitos humanos, de igualdade e de não discriminação. Em relação à prevenção, a APAV tem, através da sua experiência prática ao nível da prevenção e da sensibilização, verificado uma tendência generalizada para a adoção de: (a) respostas de carácter pontual e/ou remediativo, em detrimento de respostas sustentadas e compreensivas que apostem na prevenção precoce e continuada; ou (b) programas que não têm metodologias sustentadas de avaliação de impacto, que permitam determinar, de forma inequívoca, o potencial de mudança de comportamentos e atitudes e contribuir, desta forma, para um desenvolvimento individual e interpessoal/ social mais saudável.

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Considerando que a violência é um problema multicausal, a sua prevenção requer uma intervenção complexa, intensiva e centrada em múltiplas componentes (Wolfe, Jaffe, & Crooks, 2006). Não só a mudança de comportamentos não resulta de uma ação pontual e, consequentemente, limitada no tempo e nos conteúdos/ competências, como a capacidade de interagir de forma positiva com as outras pessoas não é inata. As competências, princípios e valores subjacentes à manutenção de relacionamentos saudáveis, pautados pela igualdade, tolerância e não-violência, devem ser aprendidos desde cedo e sedimentados ao longo da vida. Tendo por base estes pressupostos e a necessidade de criar respostas eficazes ao nível da prevenção da violência doméstica e da violência de género, a APAV desenvolveu o Programa de Prevenção Hora de SER, ao abrigo do Projeto SER – Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos, financiado pelo Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (PO ISE), do Portugal 2020, no âmbito da tipologia de apoio financeiro e técnico a organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. Neste artigo, procurar-se-á apresentar o enquadramento e estrutura do programa de prevenção desenvolvido, assim como explicar sumariamente os resultados preliminares da avaliação da primeira implementação-piloto realizada no ano letivo de 2017/2018.

Enquadramento do Programa de Prevenção A Hora de SER O Programa de Prevenção Hora de SER tem como objetivo central prevenir a violência doméstica e a violência de género, através da promoção de competências pessoais e do treino de competências interpessoais/sociais que permitam às crianças estabelecer relacionamentos mais positivos com os/as outros/as. Destina-se a crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos e tem potencial de implementação em contexto escolar e comunitário. Envolve ainda as famílias das crianças, através da realização de atividades conjuntas entre a criança e a respetiva família, e os/as profissionais escolares e de outras estruturas educativas da comunidade. A decisão relativamente ao target de idades das crianças e de outros grupos/contextos a abranger pelo Programa teve em consideração o conhecimento e a experiência da APAV na prevenção, bem como as principais linhas orientadoras da investigação neste âmbito (e.g., Matos, Machado, Caridade, & Silva, 2006; Saavedra & Machado, 2010; Wolfe, Jaffe, & Crooks, 2006). Sabe-se hoje que a prevenção da violência é tanto mais eficaz quanto mais precocemente tiver início. Paralelamente, a literatura indica que, de modo potenciar o sucesso dos programas de prevenção, estes devem não só ter início precoce, como também trabalhar a promoção de competências individuais e intervir sobre diferentes contextos em que as crianças se inserem e onde podem ocorrer dinâmicas de violência/agressão, designadamente a família, o grupo de pares, a escola e, se possível, a comunidade (Wolfe, Jaffe, & Crooks, 2006; Burt, 2002 cit. in Caridade, Saavedra, & Machado, 2012; Saavedra & Machado, 2010), numa abordagem ecológica de intervenção. Este modelo explora as relações entre os fatores individuais e os diferentes contextos da

criança, considerando a violência como um produto dos múltiplos níveis de influência sobre o comportamento (APAV, 2011). Hora de SER é, por isso, um programa de prevenção estruturado, que integra múltiplas componentes e que visa a atuar diretamente sobre alguns dos fatores identificados na literatura como suscetíveis de aumentar (fatores de risco) ou de diminuir (fatores protetores) a ocorrência da violência doméstica e da violência de género. Dos primeiros fazem parte, por exemplo, a existência de estereótipos de género e, dos segundos, aprender a resolver conflitos de forma assertiva e positiva. A promoção dos fatores protetores e do desenvolvimento saudável, em detrimento da intervenção focalizada exclusivamente na redução dos riscos, assume particular importância na prevenção da violência (Catalano, Hawkings, Berglund Pollard, & Arthur, 2002). Com vista a contribuir positivamente para a adoção de comportamentos e atitudes baseadas na igualdade e no princípio de não-violência, essenciais a um desenvolvimento individual e social/ relacional mais saudável, Hora de SER assenta a sua intervenção em oito valores essenciais, os quais são transversais à totalidade das sessões/atividades que constituem os módulos do Programa. Estes valores respeitam os Direitos Humanos e são determinantes no desenvolvimento individual saudável e no estabelecimento e manutenção de relações mais positivas, igualitárias, não-violentas e tolerantes com os/as outros/as. Assim, Hora de SER tem na sua base: Cooperação: consiste em trabalhar em conjunto para atingir um objetivo comum. O papel de cada pessoa do grupo é muito importante para atingir esse objetivo e a aprendizagem em grupo é mais enriquecedora e significativa. Respeito: é um valor essencial nos relacionamentos saudáveis e é central na prevenção da violência. Está subjacente à dignidade, um dos princípios fundamentais dos Direitos Humanos, que significa que todas as pessoas merecem ser respeitadas. Por outro lado, é indissociável do princípio de não-violência. Diversidade: diz respeito às diferenças naturais entre as pessoas e que as caracterizam (e valorizam). Individualidade: diz respeito às características de cada pessoa e que torna cada pessoa única. Tolerância: respeito, aceitação e valorização da diversidade, dos modos de expressão e das características interpessoais que caracterizam as pessoas, sem renunciar às próprias convicções nem tentar impô-las aos/às outros/as. Igualdade: é um dos princípios fundamentais dos Direitos Humanos; todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e oportunidades, reconhecimento e valorização. Inclusão: significa reconhecer que cada pessoa é membro do grupo e, como tal, deve ser respeitada e integrada, sendo-lhe dada a possibilidade de partilhar a sua opinião e experiências, sem receio de ser julgada ou rejeitada.

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Empatia: caracteriza-se pela capacidade de compreender a perspetiva da outra pessoa e de perceber o que esta está a sentir. A empatia, enquanto competência, assume especial relevância na prevenção da violência, na manutenção de relacionamentos interpessoais saudáveis e na adoção de comportamentos positivos.

Estrutura do Programa de Prevenção Hora de SER O Programa é constituído por 6 módulos independentes, dos quais 5 se destinam exclusivamente à implementação com as crianças, e 1 módulo destinado à realização conjunta de dinâmicas, entre a criança e a respetiva família. O módulo 0 – Sensibilizar e Educar para o Valor do Grupo é composto por duas sessões e constitui o único módulo de carácter obrigatório do Programa. Neste módulo são definidos os comportamentos considerados aceitáveis ao longo da intervenção, através da responsabilização individual e de grupo na definição dos mesmos. Paralelamente, é neste módulo que se procura desenvolver a inclusão e a consciência de grupo, através da partilha de experiências, da promoção de interações positivas entre as crianças e do reconhecimento do valor de cada um/a e de todos/as para o grupo. É, portanto, essencial para dar continuidade à intervenção em grupo, na medida em que contribui para a perceção do grupo como um contexto seguro de aprendizagem e partilha, em que cada criança pode manifestar livremente a sua opinião, experiências e emoções, sem receio de ser julgada ou criticada. Serve de base à implementação dos módulos seguintes e, através da premissa “cada criança é única e especial”, possibilita introduzir os conceitos de individualidade e diversidade. A apresentação de cada criança, que conduz a esta premissa, permite ainda fomentar a autoestima e o autoconceito – importantes fatores protetores de violência –, através da identificação e do reforço de características individuais positivas e de competências pessoais.

O módulo 3 – Sensibilizar e Educar para os Efeitos da Violência é constituído por 4 sessões e visa, sobretudo, promover a empatia das crianças em relação às vítimas, através do reconhecimento das consequências da violência e do impacto que estas podem assumir na vida da vítima. Com base na empatia, pretende-se desconstruir atitudes que legitimam quaisquer atos de violência, fomentando a não-tolerância a todas as suas formas, inclusive em relação às “menos graves” ou “mais subtis”. Neste módulo, as crianças são ainda sensibilizadas para a importância da testemunha nas situações de violência e é facilitada a tomada de decisão, através da aprendizagem de estratégias de segurança que auxiliem no apoio/defesa da vítima, sem se colocar em risco. O módulo 4 – Sensibilizar e Educar para a Segurança possui 3 sessões e assume como principais objetivos: dotar as crianças de estratégias de segurança adequadas, que lhes permitam saber o que fazer se experienciarem, direta ou indiretamente, uma situação de violência; ensinar as crianças a identificar a(s) sua(s) pessoa(s) adulta(s) de confiança e educar as crianças para os direitos das vítimas. Por fim, o módulo 5 – Sensibilizar e Educar para o Papel da Família na Prevenção – visa reforçar a partilha entre criança-família, através da realização conjunta de dinâmicas que permitam facilitar a generalização das aprendizagens e reforçar as competências adquiridas pela criança durante a participação na Hora de SER. Ao envolver as famílias, aumentase a probabilidade de sucesso da prevenção, na medida em que, nesta faixa etária, as crianças tendem a perspetivar as famílias como os principais modelos/figuras de referência e, consequentemente, a reproduzir os seus comportamentos – positivos e negativos. Assim, este módulo sistematiza os módulos anteriores, sendo constituído por 4 dinâmicas denominadas Tempo para SER em Família. As dinâmicas são independentes e apenas devem ser realizadas aquelas que correspondem aos módulos frequentados pelas crianças.

O módulo 1 – Sensibilizar e Educar para a Igualdade e Diversidade está organizado em 4 sessões e centra-se na promoção da igualdade de género e no reconhecimento da diversidade como algo natural e positivo. Neste módulo, são trabalhados valores subjacentes aos Direitos Humanos e as crianças são confrontadas com as desigualdades sociais em função do género, da idade e da deficiência. Para tal, são trabalhados os estereótipos e as suas consequências, fomentando pensamentos e comportamentos alternativos, com vista a uma sociedade mais justa e igualitária.

No total, o Programa é composto por 18 sessões, com uma duração aproximada de 60 minutos por sessão. As sessões são, por sua vez constituídas por 31 atividades de carácter lúdico e pedagógico para crianças e por 4 dinâmicas Tempo para SER em Família. As atividades que compõem as sessões da Hora de SER baseiam-se numa metodologia de aprendizagem não-formal, que privilegia a participação ativa das crianças na própria aprendizagem, potencia a cooperação e as interações positivas entre as crianças do grupo e reconhece/valoriza a experiência das crianças.

O módulo 2 – Sensibilizar e Educar para os Relacionamentos é composto por 5 sessões e foca-se na aprendizagem e treino de competências pessoais e sociais, essenciais ao estabelecimento de relacionamentos interpessoais positivos e a um desenvolvimento individual, social e relacional saudável. Em traços gerais, neste módulo as crianças aprendem a: (1) identificar as emoções e sentimentos e a expressar adequadamente as emoções/sentimentos negativos; (2) identificar diferentes estilos de comunicação e compreender as consequências da sua utilização; (3) utilizar e treinar a assertividade e (4) resolver conflitos de forma positiva e eficaz.

Salienta-se que o programa Hora de SER é passível de ser implementado de forma sequencial/completa, i.e., através da dinamização de todos os módulos e das respetivas sessões, ou de forma modular, através da dinamização de módulos específicos. Esta última opção implica a dinamização de, pelo menos, dois módulos, uma vez que a implementação do módulo 0 – Sensibilizar e Educar para o Valor do Grupo – é obrigatória em qualquer uma das opções tomadas. A implementação dos restantes módulos depende da avaliação prévia do/a dinamizador/a relativamente às necessidades do grupo-alvo em particular e às especificidades das crianças que o constituem. miscellanea APAV 8


Não obstante a possibilidade de os módulos serem dinamizados de forma autónoma e independente e, por conseguinte, de o programa poder ser implementado de forma modular, a APAV recomenda a sua implementação sequencial/completa, uma vez que esta contribui, de forma mais consistente, para a prossecução e sucesso dos objetivos definidos. O facto de o programa incluir várias componentes e potenciar a aquisição e treino de diversas competências, num contexto de aprendizagem seguro, aumenta a probabilidade de eficácia da prevenção. Por outro lado, ao estender a duração do programa, são aumentadas as oportunidades de aquisição e de treino de competências, assim como a possibilidade de observação da aplicação de comportamentos positivos pelos pares, maximizando a eficácia da prevenção e de replicação destes comportamentos positivos em outros contextos e/ou relações.

As Atividades do Programa Atendendo às especificidades/aquisições características das crianças na faixa etária a que o programa se destina, as atividades têm um carácter lúdico e pedagógico, com vista a aumentar a motivação para a participação, a facilitar o treino de competências e a participação ativa da criança no processo de aprendizagem de competências. As atividades organizam-se em várias tipologias, designadamente: quebra-gelo; chuva de ideias; leitura de histórias ou contos; técnicas de expressão corporal (e.g., mímica, representação); jogos de simulação; role-play; técnicas de organização de informação; jogos/ quizes e exercícios de afirmação. A maioria promove o trabalho em grupo cooperativo e respeita a experiência das crianças, reconhecendo a importância de ouvir o(s) seu(s) ponto(s) de vista.

Pressupostos que contribuem para a eficácia do Programa Hora de SER De modo a potenciar o sucesso do Programa de Prevenção Hora de SER, importa atentar sobre 5 pressupostos que contribuem para a sua eficácia, designadamente: execução, formato, integridade, dinamizadores/as e avaliação/monitorização. Relativamente à execução, salienta-se a existência de um manual de atividades, também desenvolvido ao abrigo do Projeto SER. Este manual pretende sustentar a implementação do programa de prevenção e possibilita a sua replicação em contextos semelhantes. Nesse sentido, este manual de atividades é estruturado, incluindo, para cada módulo, uma componente teórica e uma componente prática. A primeira permite ao/à dinamizador/a aprofundar os seus conhecimentos sobre os conteúdos/componentes a trabalhar nas sessões daquele módulo em particular e compreender a sua importância do ponto de vista da prevenção da violência e da promoção da igualdade de género. Na componente prática, as sessões e atividades estão descritas pormenorizadamente, possibilitando a sua dinamização e replicação. Após a leitura da componente teórica e da familiarização com as atividades, espera-se que o/a dinamizador/a estabeleça uma ligação entre os conteúdos/ componentes e os objetivos da sessão/atividade.

O formato prevê intervenções estruturadas, modulares ou sequenciais/completas, alinhadas com a literatura, com recurso a técnicas de facilitação de grupo. As atividades que compõem o Programa são maioritariamente de realização em grupo, uma vez que privilegiam a cooperação (em detrimento da competição) e permitem, desta forma, treinar competências individuais e sociais, que lhes permita manter relações mais positivas com os/as outros/ as. A integridade caracteriza-se pelo respeito pelo modelo de intervenção e integridade da sua aplicação. Desta forma, é importante que o/a dinamizador/a respeite a integridade dos conteúdos e que não opte, por exemplo, por inverter a ordem das sessões e/ou modificá-las, quer tenha optado pela implementação sequencial/completas ou modular. Os objetivos das sessões devem ser respeitados, bem como os passos subjacentes à dinamização das atividades, sob prejuízo de não contribuir para a eficácia da prevenção. Existem, contudo, pequenas adaptações que podem ser realizadas em algumas atividades (tal está previsto, quando aplicável, na descrição dos passos de cada atividade), atendendo às competências e especificidades das crianças que constituem o grupo e às aquisições características da faixa etária em que se encontram (e.g., domínio da leitura e da escrita). No que concerne aos/às dinamizadores/as, ressalva-se o seu papel essencial na aprendizagem, devendo assumir-se como um modelo positivo para as crianças. Os/As dinamizadores/as são centrais na criação de um contexto de aprendizagem seguro, onde as crianças podem adquirir e desenvolver/treinar, de forma divertida e significativa, competências essenciais a um desenvolvimento individual, social e relacional saudável (e.g., expressar adequadamente as suas emoções; compreender o seu valor e o valor do/a outro/a) e que lhes permita generalizar as aprendizagens adquiridas neste contexto seguro a outros contextos, situações e/ou relações. Com efeito, destaca-se o perfil e a importância da formação específica dos/ as dinamizadores/as, nomeadamente formação sobre o programa, de modo a possibilitar a sua implementação. Desta forma, só os/ as profissionais formados/as e certificados/as pela APAV poderão implementar o programa de prevenção A Hora de SER. Por fim, salienta-se a avaliação/monitorização. A Hora de SER inclui instrumento(s) de monitorização da implementação, que permite(m) ao/à dinamizador/a refletir sobre a dinamização de cada sessão e efetuar pequenos ajustes na dinamização das sessões subsequentes (e.g., alterar o horário das sessões). É, por isso, uma ferramenta importante para uma avaliação mais imediata e para a tomada de decisão relativamente a implementações posteriores. É esta monitorização mais imediata, baseada em vários fatores e, sobretudo, na perspetiva e experiência do/a dinamizador/a, que poderá facilitar a compreensão de resultados posteriores, obtidos pela avaliação de impacto. Por outro lado, importa destacar o facto de a implementação do Programa Hora de SER estar a ser alvo de uma medição do seu impacto social, realizada por uma entidade independente e com vasta experiência em avaliação de programas (SINCLAB – Social Inclusion Laboratory - da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto), baseada em metodologias sustentadas que permitem identificar e aferir as mudanças atingidas miscellanea APAV 9



nos grupos-alvo. É esta dimensão que distingue a Hora de SER de outros programas que estão a ser implementados a nível nacional.

A implementação-piloto do Programa de Prevenção A Hora de SER Entre junho de 2017 e julho de 2018, o programa de prevenção foi implementado pela APAV em diferentes contextos escolares e comunitários da região Norte, nomeadamente em oito escolas do 1º ciclo do ensino básico do concelho da Maia e de Valongo e em dois contextos comunitários. Com efeito, na primeira fase da implementação piloto foram intervencionadas 237 crianças, entre os 6 e os 10 anos de idade.

Medição de impacto social da primeira implementação-piloto do Programa Hora de SER A medição de impacto social do programa recorreu a uma abordagem quasi-experimental, tendo participado no estudo dois grupos de crianças: o Grupo Experimental, constituído por crianças e as respetivas famílias que participaram no programa; e o Grupo de Controlo, composto por crianças e respetivas famílias que não participaram no Programa e que provêm de contextos escolares equivalentes. As crianças dos dois grupos responderam a um conjunto de questões em dois momentos distintos: pré-teste e pós-teste. As famílias de ambos os grupos responderam a um inquérito no momento do pós-teste.

Resultados preliminares A avaliação do impacto, através de um conjunto de medidas que operacionalizam os conteúdos/componentes trabalhados na Hora de SER, incidiu sobre as dimensões nucleares do programa, tais como a aceitação da diversidade, os estereótipos e papéis de género, as crenças acerca da violência, a empatia face à vítima de violência ou às estratégias utilizadas face a situações de violência. Relativamente aos estereótipos e papéis de género, verificou-se que as crianças, no pré-teste, consideram que as meninas e os meninos ficam igualmente incomodadas/os quando são maltratadas/os por lhe dizerem que são “gordas/os”, “magras/os”, “altas/os”, “baixas/os”, “muito menos inteligentes”, “muito feias/os” e “muito bonitos/as”. Contudo, após a participação no Programa, as crianças passaram a atribuir um grau maior de incómodo relativamente a esta questão, sobretudo em relação às crianças maltratadas por serem magras e gordas. Mais concretamente, no pré-teste, as crianças consideravam que tanto as meninas como os meninos ficavam bastante incomodadas/os por lhe dizerem que são “muito gordas/ os” e, no pós-teste, consideraram que ficavam muito incomodadas/ os. No que respeita aos papéis de género, verificou-se ainda uma mudança entre o pré e o pós-teste relativamente a “ser sensível” e a “gostar de dançar”. Assim, no pós-teste, as crianças posicionaram-

se mais próximas do ponto médio da escala do questionário, que corresponde ao valor de “não estereotipia”, i.e., que algo é tanto de menina como de menino. O mesmo aconteceu com a atividade “gostar de jogar futebol”, que passou de muito mais de menino para mais de menino; com a característica “ser carinhosa/o”, passando a ser menos atribuída às meninas e com o gosto/interesse “gostar de super-heróis”, que passou a ser menos atribuída aos meninos. No que concerne à tolerância a diferentes formas de violência, salienta-se que, após a implementação do programa, as crianças aumentaram grau de gravidade atribuído a diferentes tipos de comportamentos, tais como: chamar nomes, puxar os cabelos, fazer de conta que não se conhece alguém ou ignorá-la de propósito e beijar outra pessoa sem autorização. Salienta-se ainda que as crianças que apenas participaram nos módulos 0 e 1, nos quais não são abordadas, de forma direta, as diferentes formas de violência e respetivas consequências, também passaram a considerar, no pósteste, mais grave comportamentos como “utilizar/ver o telemóvel de outra pessoa sem autorização” e “bater noutra pessoa”, passando a ser considerados comportamentos muitíssimo graves.

Conclusão É importante mencionar que esta primeira avaliação do impacto social do Programa Hora de SER, baseada na primeira implementaçãopiloto, enfrentou alguns constrangimentos operacionais, como, por exemplo, garantir a presença das crianças nos dois momentos de avaliação estabelecidos ou os níveis diferenciados de habilitações da família das crianças do grupo controlo e do grupo experimental, que inviabilizaram conceptualmente a comparação estatística entre os grupos. Não obstante, o Programa revelou ter impacto em diferentes medidas, designadamente: (1) as crianças diminuíram a sua estereotipia sobre os papéis de género; (2) diminuíram as crenças sobre a violência; (3) aumentaram o seu grau de intolerância (censura) em relação a formas mais subtis de violência e (4) passaram a sentir mais empatia pela vítima. O facto de os oito valores serem transversais a todos os módulos do Programa poderá explicar o facto de algumas crianças se terem tornado mais sensíveis/menos tolerantes a algumas questões específicas (e.g., violência interpessoal e desigualdade de género), mesmo que não tenham frequentado os módulos que trabalhavam especificamente essas questões. Em suma, em termos globais, os resultados preliminares obtidos deste estudo piloto de medição de impacto do Programa são promissores e consistentes com os objetivos que este se propõe. Além do mais, a implementação e avaliação do impacto do programa Hora de SER continuará a decorrer no ano letivo 2018/2019. Mais resultados e outras informações sobre a Hora de SER serão disponibilizadas em https://apav.pt/publiproj/index.php/74projeto-ser-sensibilizar-e-educar-para-os-relacionamentos.

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Referências Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (2011). Manual Crianças e Jovens Vítimas de Violência: compreender, intervir e prevenir. Lisboa: APAV. Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (no prelo). Manual de Atividades A Hora de SER. Lisboa: APAV. Caridade, S., Saavedra, R., & Machado, C. (2012). Práticas de Prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil: Orientações gerais. Análise Psicológica, 30, 131-142.

Catalano, R. F., Hawkins, J. D., Berglund, M. L., Pollard, J. A., & Arthur, M. W. (2002). Prevention science and positive youth development: Competitive or cooperative framework? Journal of Adolescent Health, 31, 230-239. Matos, M., Machado, C., Caridade, S., & Silva, M. J. (2006). Prevenção da violência nas relações de namoro: intervenção com jovens em contexto escolar. Psicologia: Teoria e Prática, 8, 55-75.

Saavedra, R. & Machado, C. (2010). Prevenção universal da violência em contexto escolar. In C. Machado (Coord.). Vitimologia, das novas abordagens teóricas às novas práticas de intervenção. Braga: Psiquilíbrios. Serra, A., Serôdio, R., & Lima, J. A. (no prelo). Medição de Impacto Social do Programa Hora de SER: Síntese de Resultados Globais. Wolfe, D. A., Jaffe, P. G., & Crooks, C. V. (2006). Adolescent Risk Behaviors: Why Teens Experiment and Strategies to Keep Them Safe. London: Yale University Press.

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Projeto CARE apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual Carla Ferreira

Projeto CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual Em 2015, as autoridades policiais e judiciais portuguesas registaram mais de 1000 crimes relativos a “abuso sexual de crianças/ adolescentes/menores dependentes”, de acordo com informações da Direção-Geral de Política de Justiça (DGPJ). Ainda que se considere que, nos últimos anos, este número venha a corporizar uma tendência crescente, não é de estranhar que os casos reportados sejam apenas uma pequena parte dos crimes e atos violentos que efetivamente ocorrem. De acordo com vários estudos – inclusive o de Machado (2003) – cerca de 30 a 40% dos crimes de natureza sexual contra crianças e jovens não são revelados nem comunicados às autoridades competentes. Em ultima ratio, tais números poderão levar-nos a pensar que apenas 60 a 70% das situações vêm a ser reveladas; destas, apenas uma parte ainda menor vem a ser investigada, caso haja denúncia. Dos factos denunciados e investigados, só uma parte chega a um potencial despacho de acusação e, desses, só alguns recebem uma decisão de condenação. A este fenómeno a Criminologia e a Sociologia deram o nome de cifras negras do crime, que pode ser representado sob a forma de uma pirâmide invertida, como a seguinte demonstra:

Imagem 1 - Pirâmide representativa das cifras negras

No caso dos crimes sexuais contra crianças e jovens, são diversos os fatores e obstáculos que podem estar subjacentes ao fenómeno das cifras negras. De entre estes, salientam-se alguns diretamente relacionados ao ato perpetrado e à vítima, como por exemplo: i) o facto de o/a agressor/a ser alguém próximo e/ou familiar da criança ou do/a jovem; ii) o medo que a criança ou o/a jovem tem do/a agressor/a; iii) a culpa ou vergonha da vítima pelo que lhe aconteceu; miscellanea APAV 13


iv) as estratégias adotadas pelo/a agressor/a para enganar, convencer e confundir a criança ou o/a jovem daquilo que realmente está a acontecer; v) o medo que a vítima pode ter em contar a situação e de que não venham a acreditar em si, ou; vi) a (presumida) falta de evidências/provas da violência sexual no corpo da criança ou do/a jovem. Além destes fatores que poderão ser aliados do silêncio que muitas vezes está ligado a estas dinâmicas violentas, é ainda de salientar que as vítimas e seus/suas familiares e amigos/as têm receio do próprio sistema judicial, de como este vai ver a situação de vitimação e como vai tratar a criança ou o/a jovem. Ou seja, poderá acontecer que a criança ou o/a jovem efetivamente revele o ato violento a alguém da sua confiança e que esta pessoa até tenha intenção de denunciar o crime às autoridades competentes; porém, pode não saber como o fazer da melhor forma ou recear o que acontecerá depois da denúncia. Ainda que, desde a sua génese, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tenha promovido o apoio a crianças e jovens vítimas de crime, é-nos claro que certamente existiam crianças e jovens que, no caso específico de serem alvos de violência sexual, pudessem não estar a aceder ao apoio especializado que a sua situação em concreto demandaria. Tal facto poderá ter entre as suas causas a forma como a violência sexual contra crianças e jovens é (re)tratada socialmente, nomeadamente pelo facto de ser tratada de forma superficial, dando perpetuação a alguns estereótipos, como por exemplo: “o abuso sexual é praticado por alguém com algum problema mental” ou “as crianças e os jovens que dizem ser vítimas estão a mentir/fantasiar/ confundir o que realmente aconteceu”.

Mais ainda, as crianças e os jovens vítimas de violência sexual que não recebem apoio ficam potencialmente ainda mais expostas e vulneráveis ao impacto destas consequências, que podem agravarse e continuar a manifestar-se na vida adulta. Sem o devido apoio, as crianças e os jovens vítimas apresentam ainda maior probabilidade do que as outras crianças de desenvolverem problemas de saúde mental na vida adulta, como consumo de substâncias, depressão, suicídio, ansiedade, bem como problemas relacionais e sociais e mesmo profissionais (ex.º: níveis mais elevados de absentismo, falta de produtividade, maior precariedade e menos oportunidades de qualificação e de formação). Por outro lado, na ausência de um apoio especializado que ajude a criança ou o/a jovem vítima e sua família a lidar com o que aconteceu, é de esperar um aumento do risco de aquela continuar a ser abusada ou agredida sexualmente e, mais ainda, de ser vítima de outras formas de abuso ou violência. Quando a violência sexual acontece no interior das famílias (o que sucede na maioria das situações reportadas) e não existe o referido apoio, é possível que aumente o risco de a violência sexual poder também ser praticada contra outras crianças ou jovens da família.

A criação da solução – Projeto CARE Tendo em conta todas estas preocupações, a APAV decidiu, em 2015, criar uma solução inovadora para esta problemática. Foi dessa vontade, da experiência da APAV e da colaboração com outras entidades que surgiu, em novembro de 2015, o Projeto CARE, de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. Este Projeto teve um período previsto de 24 meses de implementação (até outubro de 2017) e foi financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Outra das causas poderá ser a natureza privada ou íntima desta forma de violência, reforçada pelo facto de uma proporção significativa das situações ocorrerem no seio das famílias. Ainda mais uma das causas poderá ser a falta de políticas e planos específicos de prevenção e combate à violência sexual e consequentes respostas insuficientes e não articuladas entre estruturas/serviços. Ainda que em Portugal existam várias Entidades com Competência em Matéria de Infância e Juventude que fazem um trabalho importante e meritório na vida das crianças e/ou dos/as jovens, nenhuma destas se debruça especificamente sobre a temática da violência sexual, promovendo um apoio integrado e dirigido especificamente a estas vítimas. A violência sexual tem consequências diretas na criança ou jovem vítima, que poderão ir desde problemas de saúde física, a perturbações psicológicas (ex.º: ansiedade, stress pós-traumático, depressão) e dificuldades ao nível social (como isolamento ou redução do rendimento escolar). Imagem 2 - Logótipo do Projeto CARE (2015-2017) miscellanea APAV 14


Este Projeto teve como objetivos: 1) aumentar o conhecimento sobre violência sexual contra crianças e jovens, bem como procedimentar o apoio que se deve prestar a estas vítimas; 2) criar e implementar a rede CARE, de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual;

Além dos cartazes, foi produzido um spot vídeo e ainda um desdobrável com informações úteis para adultos/as (ex.: pais, profissionais) e uma monofolha para crianças e jovens. Em abril de 2017 foi lançado ainda o Manual CARE, produzido pela equipa com contribuições dos parceiros do Projeto e outros especialistas, que pretende ser um compêndio de informação sobre o fenómeno da violência sexual contra crianças e jovens e que procedimenta o apoio que deve ser prestado a estas vítimas.

3) ser um projeto que tivesse indicadores claros de qualidade, eficácia e performance, que permitissem, no final do Projeto, tornar inquestionável a necessidade da sua continuação. Sabendo da importância fulcral do trabalho em rede, este primeiro Projeto CARE assentou na parceria interinstitucional formal com a Polícia Judiciária, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., o Departamento de Medicina Legal e Ciências Forenses da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, a Casa Pia de Lisboa, a Associação Chão de Meninos, o Spin Project e a APDMF – Casa da Ameixoeira. O Projeto CARE teve início em novembro de 2015 para seleção, recrutamento e formação da equipa de técnicos/as que começou a desenvolver atividades de apoio a vítimas, produção de conhecimento e redação de procedimentos em janeiro de 2016. Essa equipa esteve assente numa gestão partilhada entre uma gestão técnica (Lisboa) e uma gestão operacional (Porto), com quatro técnicos distribuídos pelas regiões do Porto, Coimbra, Lisboa e Tavira e que contou com o apoio de voluntários/as dedicados/as a esta temática em específico – o voluntariado como força motriz da APAV não podia ficar arredado desta equipa. Contou, portanto, com o conhecimento de vários técnicos/as com formação superior em áreas do saber distintas, como a Psicologia, o Direito e a Criminologia. Se, em 2015, a APAV havia apoiado 100 crianças e jovens vítimas de violência sexual, esse número praticamente duplicou em 2016. No primeiro ano de atividade, a Rede CARE apoiou 195 crianças e jovens vítimas de violência sexual, o que equivale a cerca de 16 novos processos por mês e 3,75 novos processos por semana. Neste primeiro ano de atividade, o Projeto CARE desenvolveu a sua campanha de sensibilização, ligada ao mote “O abuso sexual de crianças e jovens não tem de ser um segredo”, concebida pela agência CARMEN (Young Network).

Imagem 6 - Capa do Manual CARE (APAV, 2017)

Como foi dito anteriormente, esperava-se e queria-se que este projeto fosse considerado de qualidade e que fosse inquestionável a sua continuação. Nesse sentido, foi desenvolvido um instrumento de avaliação para crianças e jovens e/ou familiares e amigos/as. As respostas conduziram à conclusão de que 98% dos inquiridos respondeu “concordo” ou “concordo totalmente” à pergunta “tenho a noção que a intervenção da APAV foi importante para recuperar a normalidade possível na minha vida”. A vontade de continuar a desenvolver e expandir este Projeto/ Rede fez com que a APAV obtivesse um novo financiamento para o desenvolvimento deste trabalho ainda antes do fim do Projeto que havia sido aprovado e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Assim, em junho de 2017 iniciou-se uma nova fase no Projeto CARE, que obteve o financiamento para as regiões do Norte, Centro e Alentejo, ao abrigo da iniciativa Portugal Inovação Social/PO ISE/ Portugal 2020/UE – Fundo Social Europeu, e com o investimento social da Fundação Calouste Gulbenkian.

Imagem 3 - Imagens da Campanha “O abuso sexual de crianças e jovens não tem de ser um segredo” (CARMEN | Young Network, 2016)

Imagem 7 - Logótipo do Projeto CARE (2017-2020) miscellanea APAV 15


Depois da instalação do Projeto na primeira fase, este segundo projeto, em curso até abril de 2020, tem o objetivo de maturar o conhecimento adquirido e melhorar a intervenção a realizar, não apenas numa perspetiva de apoio à vítima, mas também de disseminação de conhecimento e da realização de ações preventivas. Nesse sentido, este Projeto avança com: 1) a realização de ações de formação para profissionais que tenham intervenção com crianças e jovens; 2) a realização de ações de sensibilização numa perspetiva de prevenir a violência sexual, destinadas a crianças e jovens, sociedade civil e comunidade escolar; 3) a captação de mais parcerias estratégicas, local ou nacionalmente, para prolongar o trabalho em rede já iniciado; 4) a continuação da prestação de apoio especializado a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/ as; e 5) a realização da avaliação externa do impacto da intervenção do Projeto CARE não apenas junto dos/as utentes, mas também junto dos/as técnicos/as e dos parceiros. A equipa deste Projeto manteve a lógica de uma gestão bipartida (técnica e operacional, agora ambas no Porto), mas aumentou em número e em capacidade de resposta, sobretudo assente numa lógica de itinerância e de deslocação aos locais onde a sua presença é necessária e solicitada. Em 2017, além do apoio que foi sendo prestado a utentes de processos iniciados no ano de 2016, foram iniciados 251 novos processos de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual.

Imagem 8 - Mapa representativo do número de pessoas apoiadas por distrito de residência, em 2016 e 2017 (total: 446)

Tendo em conta que, com o financiamento promovido pela iniciativa Portugal Inovação Social, as regiões de Lisboa/Setúbal, Algarve, Região Autónoma dos Açores e Região Autónoma da Madeira ficavam menos cobertas pela intervenção da Rede CARE, foi conseguido um novo financiamento para estes locais, ao abrigo do Projeto CARE Plus, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, entre junho de 2018 e julho de 2020.

Assim, nos dois primeiros anos de atividade (2016 e 2017), o Projeto CARE permitiu abranger 446 crianças e jovens vítimas de violência sexual de todo o território nacional, e apoiou ainda alguns portugueses que nos contactaram a partir do estrangeiro.

plus

AÇORES | MADEIRA | ALGARVE Imagem 9 - Logótipo do Projeto CARE Plus (2018-2020) miscellanea APAV 16


O que faz de diferente este Projeto? Depois deste enquadramento, é importante esclarecer que atuação concreta tem este Projeto/Rede na vida das crianças e jovens vítimas de violência sexual. A equipa multidisciplinar da Rede CARE está preparada para ouvir e perceber as necessidades daquelas que são as vítimas, os familiares e amigos/as, ajudando-os a lidar com as consequências provocadas pela violência sexual. Além disto, a equipa está disponível para prestar apoio emocional, jurídico, psicológico, social e prático baseado numa avaliação individual das necessidades de cada criança e/ou jovem e dos/as seus/suas cuidadores/as. Mais ainda, esta equipa prima por manter as vítimas e familiares informados, sob a premissa de que uma vítima informada será uma melhor participante no processo-crime: assim, destaca-se a informação sobre as etapas do processo-crime, os direitos que devem salvaguardar, e todos os apoios ao seu alcance, acompanhandoas nas várias diligências junto do sistema judicial, apoiando-as no exercício dos seus direitos e ajudando-as a minimizar o impacto do crime. A atividade desta equipa está igualmente assente num conjunto de boas práticas, que se passam a apresentar.

Sistema de referenciação como meio de acesso aos serviços de apoio às vítimas Está estabelecido pela Diretiva 2011/93/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro de 2011 relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, que as crianças e jovens vítimas de violência sexual tenham apoio adequado às suas problemáticas e necessidades. Este apoio pode ser prestado antes, durante e, por um período de tempo adequado, após o fim dos procedimentos criminais. A Diretiva também procura promover proteção para as crianças que denunciem crimes de natureza sexual praticados dentro da família. Também é dito nesta Diretiva que o apoio e a assistência não dependem diretamente da vontade de a criança cooperar na investigação criminal, na ação penal ou no julgamento. Isto é particularmente importante porque algumas vítimas, quando contactam serviços de apoio, referem que têm medo de cooperar com o Sistema de Justiça Criminal porque temem eventuais retaliações pelo/a agressor/a, ou porque acham que essa colaboração/denúncia poderá destruir a união da família, ou colocar a criança ou o/a jovem num sofrimento desnecessário, porque aquela vai ter de contactar com as autoridades.

Um sistema de referenciação é mais do que um sistema de encaminhamento. No caso de a vítima se deslocar a uma autoridade policial ou judicial, pode ser encaminhada para um serviço de apoio, se lhe for indicado qual é o serviço e quais os contactos e localização do mesmo. Por outro lado, a mesma deslocação a uma autoridade pode fazer com que a vítima seja referenciada para um serviço de apoio. Essa referenciação consiste na prestação da informação à vítima de que existe um serviço especializado de apoio que a pode ajudar. Caso a vítima pretenda beneficiar do mesmo, a vítima (ou o/a seu representante legal/cuidador) presta o seu consentimento informado para que a entidade referenciadora forneça os seus contactos ao serviço de apoio (neste caso, à APAV). Depois, cabe ao serviço de apoio contactar diretamente a vítima (ou o/a seu representante legal/cuidador) e promover as diligências que sejam necessárias para colmatar as suas necessidades decorrentes da situação de violência. Esta articulação é fulcral para o apoio prestado: promove o efetivo contacto interinstitucional e a colaboração com base no respeito mútuo pela individualidade da intervenção de cada uma das entidades e dá à vítima a perceção (efetiva) de que as entidades trabalham em conjunto para a ajudarem e ajudarem à descoberta da verdade material e não apenas cada uma para o seu fim.

Parar o ciclo de silêncio Não obstante a confidencialidade do apoio que presta, a APAV – e, por conseguinte, a Rede CARE – está obrigada à denúncia dos crimes de natureza sexual contra menores de que tenha conhecimento. Apesar de compreendermos os motivos que muitas vezes estão intrinsecamente conexionados com o silêncio tipicamente caracterizador desta problemática, e de estarmos alerta para diferentes dinâmicas violentas idiossincráticas, a denúncia e posterior investigação é efetivamente o único e o meio mais eficaz para cessar aquela situação e prevenir a existência de futuras vítimas. Por outro lado, no que respeita à potencial vitimação secundária decorrente do contacto das vítimas com o Sistema de Justiça Criminal, importa salientar que as entidades que investigam os crimes (ex. Polícia Judiciária, Ministério Público) têm cada vez mais sensibilidade e conhecimento sobre as formas de melhor atuar com as vítimas, e uma maior consciencialização acerca da importância de agir de acordo com os direitos daquelas para garantir a sua segurança, proteção e bem-estar físico e psicológico. Adicionalmente, esta maior sensibilidade e conhecimento de quem investiga é complementada pela intervenção dos serviços de apoio, que se mantêm numa postura de regular esclarecimento e acompanhamento das vítimas.

Assim, além de as vítimas poderem recorrer diretamente aos serviços da APAV e da Rede CARE, por sua iniciativa ou de familiares/amigos, as mesmas podem beneficiar de um sistema de referenciação. miscellanea APAV 17


Com efeito, o Projeto CARE promove o acompanhamento dos/ as utentes por um/a técnico/a especialmente habilitado nas diligências que se sucederem no âmbito do processo-crime e o cabal esclarecimento do objetivo e da forma de realizar daquelas. Este acompanhamento e esclarecimento das vítimas, seus familiares e amigos, é promotor de uma participação mais confiante e plena no processo-crime que lhes diz respeito, e, em última instância, de ações que conduzirão de forma efetiva à descoberta da verdade material, fim último da ação da Justiça.

Com a realização de eventos formativos, este Projeto capacitará mais profissionais para a prestação de apoio especializado a crianças e jovens vítimas de violência sexual, suas famílias e amigos/as, e tornálos-á mais conscientes e dotados para o exercício dessa missão que desenvolvem no âmbito das mais variadas Entidades com Competência em Matéria de Infância e Juventude. Bem assim – e também tal já se vem verificando – espera-se que este Projeto permita que mais crianças e jovens vítimas de violência sexual acedam a serviços de apoio especializado e qualificado, o mais cedo possível, de forma articulada e integrada com as mais diversas instituições e por um período adequado às suas necessidades.

Esclarecimento dos direitos das vítimas de crime Aquando da realização de uma denúncia às autoridades judiciárias é entregue à vítima (ou a quem a representa) o seu Estatuto de Vítima, que contém, de forma sumária, os direitos e deveres da vítima, nos termos da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro.

Com efeito, se este apoio se verificar, é expectável que as crianças, jovens e famílias lidem de forma mais positiva e integradora com o facto de terem experienciado uma situação de violência sexual e que estejam, logo, mais protegidos face a esta ou outras formas de violência.

Está igualmente previsto que, aquando dessa entrega, ocorra subsequentemente o esclarecimento sobre o que aquele Estatuto significa e a forma de exercer alguns dos direitos ali prestados (como previsto, por exemplo, no Art.º 11.º n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro).

Pretende-se ainda que esta progressiva consciencialização conduza a uma diminuição da vitimação secundária, particularmente temida nestes casos, e a uma participação mais ativa e esclarecida de todos os intervenientes processuais, e, sobretudo, das vítimas diretas – as crianças e os/as jovens.

Todavia, apesar de tal ser realizado, em regra, pelas autoridades que recebem a denúncia, não nos podemos olvidar que o/a recetor/a da informação está, não raras vezes, em choque, originado por tudo aquilo que acabou de acontecer/revelar, pelo que poderá não compreender toda a informação que lhe esteja a ser transmitida naquele momento.

Não menos importante, espera-se, ainda, que as comunidades alvo das ações de sensibilização e informação estejam progressivamente mais alerta e sensibilizadas relativamente a esta temática. Comunidades esclarecidas sobre o fenómeno e mais intolerantes à sua existência poderão estar mais alerta e mais conscientes para a importância da denúncia. Nesse sentido, poderá esperar-se que, confrontados com uma potencial situação de violência sexual, a denunciem de imediato e ajudem a cessar o ciclo de silêncio que tantas vezes está associado a esta temática, e contribuindo para a diminuição das cifras negras. Adicionalmente, estarão também mais capazes, enquanto sociedade civil, para agir no sentido de proteger a criança ou o/a jovem e o/a encaminhar para quem, de forma adequada e especializada, poderá presatar apoio àquela vítima.

A posteriori, a pessoa que recebe o Estatuto poderá relê-lo, mas, tendo em consideração a linguagem técnico-jurídica a ele associada, é compreensível e normal que, ainda assim, a vítima/representante legal não consiga entender toda a informação de forma a ficar totalmente esclarecida. Nesse sentido, e não raras vezes, a Rede CARE é abordada pelos/as utentes para solicitar esclarecimentos sobre os direitos contidos no Estatuto de Vítima, mas, e sobretudo, para serem ajudados a exercêlos.

Mudanças esperadas Sendo este um Projeto de iniciativa e mudança, com todas estas boas práticas e atividades associadas, prevemos a realização de um conjunto de resultados e mudanças. Desde logo, espera-se (e já se verifica) a cooperação interinstitucional em prol de um mesmo objetivo, que é o trabalho junto de crianças e jovens e que, em última instância, culmina na celebração de protocolos formais entre a Rede CARE e outras entidades. Além dos protocolos formais, espera-se a cooperação, ainda que informal, entre a Rede CARE e outras entidades.

Em suma, acreditamos que a concretização dos objetivos e atividades associadas ao Projeto/Rede CARE contribuirá para que, a longo prazo, crianças e jovens vítimas de violência sexual se tornem jovens e adultos/as que superaram a experiência de violência sexual, não permitindo que esta afete ou comprometa o seu desenvolvimento futuro, numa ótica multidimensional – desde a sua personalidade, às suas relações interpessoais, e até ao seu desenvolvimento profissional. Mais ainda, estas atividades serão geradoras de cidadãos mais esclarecidos, e, portanto, mais capazes de colaborar com o Sistema de Justiça Criminal ante uma potencial situação de crime. Bibliografia APAV (2017). Manual CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. Lisboa: APAV Direção-Geral de Política da Justiça – Estatísticas oficiais. Disponível em http:// www.dgpj.mj.pt/sections/estatisticas-da-justica. Consultado em 15/11/2018. Machado, C. & Gonçalves, R. A. (2003). Violência e vítimas de crimes. Vol. 2 – Crianças. Coimbra: Quarteto Editora. miscellanea APAV 18


Os crimes de ódio da invisibilidade à agenda Europeia e nacional Mar ta Carmo, Mafalda Valério

Apesar de cada vez mais estudados, os crimes de ódio são, ainda, um fenómeno cuja real dimensão é desconhecida. Concorre para tal o fraco registo sistemático de dados (inexistente em vários países da UE, de entre os quais Portugal) sobre os crimes motivados pelo ódio; a inexistência de uma definição única; o baixo número de denúncias quer perante as autoridades competentes quer junto dos serviços de apoio; a dificuldade de identificação do motivo de ódio/ preconceito/discriminatório que subjaz a prática do ato de violência ou do crime, ou de prova que o consubstancie. Não obstante, estatísticas oficiais e alguns inquéritos de larga escala realizados nos últimos anos na Europa sobre intolerância ou qualquer tipo de violência ou atos discriminatórios, como os crimes de ódio ou o discurso de ódio, revelam níveis preocupantes destes fenómenos. Um dos questionários mais abrangentes realizados pela FRA, destinado a recolher dados sobre as experiências das pessoas LGBT relativamente a discriminação, assédio e violência, mostrou que um quarto (26%) dos inquiridos experienciou uma situação de violência física ou sexual no ano anterior ao inquérito e que, destes, 59% acredita que o incidente ocorreu por terem sido percebidos pelo/a agressor/a como LGBT. Outro exemplo são os comportamentos xenófobos e racistas que, como mencionado, têm aumentado nos últimos anos na maioria dos Estados-Membros da UE, como é, aliás, o caso de Portugal. Vejam-se os recentes dados divulgados pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial no seu Relatório Anual de 2017, que recebeu 179 participações, queixas e denúncias consoante tenham sido remetidas por outras entidades, pelas vítimas, ou por terceiros, o que constitui um aumento significativo por relação ao ano anterior, na ordem dos 50%.

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Estes dados, aliados ao facto de muitos episódios de crimes de ódio não serem identificados por parte dos profissionais que mais diretamente contatam com vítimas destes crimes, quer sejam órgãos de polícia criminal ou autoridades judiciárias quer os serviços de apoio à vítima, remetem estes fenómenos criminais à invisibilidade, sem investigação e prossecução criminal, ficando as suas vítimas relegadas ao silêncio e impedidas de acesso aos seus direitos ou a serviços de apoio especializados. A APAV, reconhecendo a premente necessidade de desenvolver procedimentos específicos e especializados de apoio às vítimas de crimes de ódio, bem como de contribuir para suprir a notável falta de informação e formação sobre o tema entre os profissionais do sistema de justiça penal e dos serviços de apoio, mas também do público em geral e, em particular, das vítimas e potenciais vítimas miscellanea APAV 19


de crimes de ódio e violência discriminatória, vem desenvolver o projeto Ódio Nunca Mais: formação e sensibilização para o combate aos crimes de ódio e discurso de ódio.

O que são crimes de ódio e o que os diferencia? Num primeiro momento, o estudo aprofundado sobre o fenómeno criminológico e todas as dinâmicas sociopolíticas que subjazem aos crimes de ódio e à violência discriminatória conduziu a APAV a uma investigação sobre as várias terminologias ou concetualizações académicas e legais sobre o que constitui ou poderá constituir um crime de ódio. Na verdade, não existe uma definição única e universalmente aceite, nem à luz do direito penal e processual penal nem por parte da academia. Crime de ódio sugere imediatamente que o termo se refere a um crime motivado pelo ódio, numa manifestação de intolerância com grande impacto não apenas na vítima direta mas também para o grupo social com o qual a vítima se identifica. O termo “crime de ódio” é, de certa forma, redutor, pois estes crimes não são necessariamente infrações penais ou atos de violência em que o/a autor/a “odeia” a vítima. O conceito de “ódio” encerra um sentimento associado a manifestações de extrema violência, hostilidade ou abuso contra a identidade social de um individuo. Contudo, e segundo a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE/ODIHR, 2009), esta conotação emocional que o termo adquire em contexto penal revela-se de difícil prova, o que dificulta todo o processo judicial. De acordo com Gerstenfeld (2013), os crimes não precisam de ser motivados pelo ódio para serem classificados como tal. Com efeito, o/a autor/a do crime pode agir motivado/a por ciúme, desejo de aprovação pelos pares, ressentimento, e não necessariamente por ódio. Os sentimentos e/ou pensamentos hostis do/a autor/a do crime podem não ser dirigidos à pessoa vítima, mas sim ao grupo social de pertença percebida da mesma e que difere daquele a que o/a autor/a pertence ou sente pertencer (OSCE/ODIHR, 2009). Sheffield (1995), por seu turno, julga importante considerar-se não apenas aspetos individuais da vítima selecionada e a pertença (real ou percecionada) da vítima a um determinado grupo social, mas também aspetos relacionados com as dinâmicas sociais e políticas, históricas ou contemporâneas, dinâmicas de poder dentro da sociedade que atribuem privilégios, direitos e prestígio de acordo com os grupos biológicos ou sociais. A OSCE (OSCE,ODIR, 2006) apresenta uma definição para estes crimes que não encerra em si as limitações do recurso à palavra “ódio”: “Qualquer ato criminoso, nomeadamente contra pessoas ou bens, no qual as vítimas ou o alvo do crime são selecionados em razão da sua ligação (real ou percecionada), laços, afiliação, apoio ou associação reais ou supostas a um determinado grupo”. No entendimento da OSCE, para que se configure um crime de ódio, a ofensa deverá então corresponder: um crime à luz do enquadramento legal do país onde este teve lugar; o/a autor/a atuou motivado/a por/com base em preconceitos, isto é, escolheu intencionalmente a vítima devido a uma característica pessoal

que a associa a um grupo social, tendencialmente que não o do/a autor/a (habitualmente com menos poder e em menor número na sociedade). Esta motivação preconceituosa é, segundo a OSCE, “qualquer ideia pré-concebida negativa, assunções preconceituosas, intolerância ou ódio dirigidas a um grupo específico que partilha características comuns, como seja a raça, a etnia, a língua, a religião, a nacionalidade, o género, a orientação sexual, ou qualquer outra característica fundamental”. Os crimes de ódio são, portanto, definidos como crimes de identidade, uma vez que visam um aspeto da identidade do alvo, seja ele imutável (etnia, deficiência, orientação sexual, género, etc.) ou fundamental (religião, hábitos culturais, etc.) (OSCE, ODIHR, 2009). Autores como Chakraborti e Garland destacam ainda a necessidade de compreender que os crimes de ódio são essencialmente ataques ao que é percebido como “diferente” e vulnerável, considerando que não é a identidade da vítima por si que a torna vulnerável na perspetiva do/a agressor/a, mas sim a forma como a sua identidade se relaciona com outros fatores situacionais e de contexto. Face ao exposto, é facilmente compreensível o que distingue os crimes de ódio dos demais: a motivação que lhe subjaz, fundada no preconceito e viés social. Decorre ainda do crime de ódio envolver um ataque a características de identidade social da vítima (e/ou da sua comunidade de pertença), violando o princípio de igualdade e afetando severamente a sua autoimagem (Ray, 2002). A agressão motivada pelo ódio encerra uma função simbólica, veiculada por uma mensagem de ódio que, por meio de um ato dirigido a uma determinada vítima, é comunicada a uma comunidade ou grupo. Esta carga simbólica que acarreta o crime de ódio produz profundos impactos na vítima, na sua identidade singular e social e, logo, a todos(as) os que partilhem semelhantes características identitárias – a família, os(as) amigos(as), a comunidade de pertença. Foi, por este motivo, imperativo para a APAV compreender de forma sistemática este impacto nas vítimas diretas e comunidade, por forma a melhor poder aferir as necessidades concretas destas vítimas, suas famílias e amigos(as), principalmente ao nível de procedimentos de apoio especializado a desenvolver.

O impacto dos crimes de ódio nas vítimas diretas e na comunidade de pertença Não existe e não podemos falar de um impacto-padrão dos crimes de ódio, já que podem afetar cada vítima de forma distinta. Contudo, regra geral, os níveis de impacto socioemocional e psicológico sobre vítimas diretas de crimes de ódio são comparativamente mais elevados do que os sentidos por vítimas de crimes não motivados pelo ódio ou preconceito (Kees, 2016). Estas vítimas, por se verem atacadas nos seus direitos mais fundamentais, estão mais predispostas a sofrer distúrbios e mal-estar psicológico do que, inclusive, outras vítimas de crimes violentos (e.g. Herek, Gillis, & Cogan, 1999). Já ao nível psicológico, vários estudos apontam para consequências físicas e psicológicas tendencialmente mais graves (Iganski & miscellanea APAV 20


Lagou, 2015), sintomas mais prolongados (Kees, 2016) e aumento da probabilidade de manifestação de alguns sintomas como: níveis superiores de sintomatologia ansiosa e nervosismo (McDevitt et al., 2001); perda de confiança e sentimento de vulnerabilidade (Ehrlich, 1992); dificuldades de concentração (McDevitt et al., 2001); raiva; medo e diminuição do sentimento de segurança (McDevitt et al., 2001), a par de sentimentos de falta de controlo. No que ao impacto dos crimes de ódio na comunidade diz respeito e em virtude da mensagem simbólica que lhe está associada, é reconhecida a diminuição do sentimento de proteção e segurança junto da comunidade de pertença das vítimas destes crimes (Boeckmann & Turpin-Petrosino, 2002). É de especial relevo para a APAV o reconhecimento deste especial impacto que os crimes de ódio e a violência discriminatória têm nas suas vítimas, a fim de garantir um sistema de justiça centrado na vítima, na sua especial vulnerabilidade e nas suas necessidades de informação, proteção e exercício efetivo e informado dos direitos consagrados no ordenamento jurídico. Com efeito, são variados os grupos sociais particularmente vulneráveis aos crimes de ódio e violência discriminatória, cada um com as suas especificidades e necessidades.

Crimes de ódio contra grupos selecionados A APAV revê, em Portugal, os grupos mais comumente vulneráveis aos crimes de ódio na Europa, sendo certo que com uma diferente expressão, fruto do contexto jurídico-político-social - considerando que, apesar das discussões terminológicas, “grupos minoritários”, “grupos vulneráveis” ou “grupos selecionados” podem ser entendidos como sinónimos e definidos como grupos de indivíduos que, pela sua expressão numérica minoritária e/ou inferioridade de poder e controlo social, se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Estes grupos tornam-se, portanto, alvos preferenciais daqueles que praticam crimes motivados por intolerância, preconceito e ódio, frequentemente provenientes de grupos maioritários detentores de poder. Importa frisar que o contexto histórico ou problemas sociais de um dado país influenciam a inclusão ou exclusão/omissão de algumas características identitárias fundamentais e/ou imutáveis na definição legal de crime de ódio. Deste modo, algumas características aparecem com maior frequência (tais como etnia, “raça”, orientação sexual, identidade de género, sexo, idade, deficiência), enquanto outras (tais como filiação e ideologia política) aparecem com menor frequência. No contexto da UE, os grupos que se encontram protegidos pelos ordenamentos jurídicos e sobre os quais se regista a maior incidência de discriminação e crimes de ódio são: 1. Comunidade LGBTIQ+ De acordo com os dados recolhidos pela Agência Europeia dos Direitos Fundamentais (FRA) junto da comunidade LGBTIQ+ em 27 Estados-Membros, cerca de metade dos respondentes sentiu-se discriminado ou ameaçado em razão da sua orientação ou identidade de género. No caso das pessoas trans, o número de casos sobe para os 35%, que demonstra que a prevalência de crime de ódio sobre população trans é particularmente

elevada, com 3 em 4 pessoas anualmente vítimas de algum tipo de violência desse cariz (Jamel, 2018). 2. Minorias étnicas, culturais e religiosas Os crimes de ódio baseado na origem étnica e racial da vítima continuam os mais frequentemente registados e o os mais abordados no discurso público, político e académico. De acordo com o segundo Inquérito sobre Minorias e Discriminação na União Europeia (EU-MIDIS II, FRA, 2017) as pessoas entrevistadas sentiam que o principal motivo para a discriminação/violência sofrida era a sua origem étnica ou migrante, mas que os seus nomes, cor da pele e religião eram fatores adicionais que despoletavam esse tipo de fenómeno. Neste inquérito foram identificados como os grupos que mais sofreram crimes de ódio as comunidades Roma (30%) e imigrantes de origem norte africana (23%). Quanto a crimes de ódio contra minorias religiosas, são as comunidades muçulmanas as mais afetadas. As comunidades muçulmanas representam o segundo maior grupo religioso da UE e, mesmo assim, enfrentam discriminação a vários níveis – na procura de emprego, no emprego e no acesso a serviços públicos ou privados. Os níveis de violência anti-muçulmana aumentaram nos últimos anos, tanto ataques contra membros das comunidades muçulmanas ou locais de culto, como discurso de ódio expressos em redes-sociais. Para além da incidência nas comunidades muçulmanas, outras comunidades religiosas ou espirituais têm vindo a ser alvo de crimes de ódio, como é o caso das comunidades judaicas. O anti-semitismo continua a ser um problema significativo em muitos países Europeus, frequentemente motivados por ideologias e atividades de grupos organizados de extrema-direita. 3. Pessoas com deficiência São variados os preconceitos existentes em relação a pessoas com deficiência, como a ideia de que as pessoas com deficiência são dependentes, têm um baixo ou nenhum nível de educação, sem empregabilidade ou são improdutivas e que, por isso, necessitam de ser institucionalizadas e dependem de apoios sociais (OSCE, 2016). Quando se fala em crimes de ódio contra pessoas com deficiência, poderemos estar a falar de crimes perpetrados com base nalgum destes preconceitos, que se manifestam tanto nas expressões de hostilidade como no motivo de seleção das vítimas, por exemplo, a escolha da vítima por “ser um alvo fácil” é considerado preconceito e, como tal, constituirá um crime de ódio (OSCE, 2016). 4. Migrantes, requerentes de asilo e refugiados/as O discurso político-social acerca da situação migratória na Europa, especialmente após 2015, encontra-se polarizado, sendo possível encontrar um discurso positivo e de ajuda num dos espectros da discussão, bem como ideias de rejeição no outro. Este clima tem contribuído para o aumento do discurso e dos crimes de ódio contra migrantes, refugiados/as e requerentes de asilo. Para além do aumento dos crimes de ódio contra estes grupos, a perceção de grande parte da população europeia é de que a resposta a estes crimes é insuficiente (FRA, 2016).

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Estes grupos estão particularmente vulneráveis a crimes de ódio com motivação racista, discriminação étnica e religiosa. A falta de familiaridade com o sistema do país onde se encontram, as barreiras linguísticas, a frequente situação de exclusão e isolamento e a falta de acesso a informação são fatores que contribuem para que as vítimas pertencentes a estes grupos denunciem substancialmente menos os incidentes de que são alvo (FRA, 2016). 5. Outros grupos minoritários e vulneráveis Ao longo do tempo, tem-se assistido ao alargamento dos grupos sociais que, por partilharem de alguma forma os mesmos fatores de risco, são considerados mais vulneráveis aos crimes de ódio. Assim, podem considerar-se igualmente vulneráveis ao discurso e crimes de ódio grupos como as pessoas idosas, as pessoas sem-abrigo, as pessoas em contexto de prostituição, aqueles que partilham uma ideologia política diferente da maioria, entre outros. A necessidade de alargamento dos grupos protegidos pela legislação de crimes de ódio, tendo em conta a realidade atual, é uma das razões pelas quais vários autores defendem, como já mencionado, que a concetualização dos crimes de ódio como crimes contra a identidade da(s) vítima(s) deve ser substituída pela ideia de crimes contra a vulnerabilidade ou a diferença (Chakraborti, 2012).

A intersecionalidade

Breve resenha sobre o enquadramento jurídico dos crimes de ódio Considerando a necessidade de proteger as vítimas e salvaguardar os direitos fundamentais afetados pela prática de um crime de ódio, a regulação punitiva destas condutas assume, na ótica da APAV, uma grande importância. Assim, no decurso do projeto Ódio Nunca Mais, foi importante perceber o tratamento jurídico dos crimes de ódio difere de país para país, o que dificulta a uniformização de procedimentos e a troca de conhecimentos a nível europeu. Por esta razão tem existindo, por parte da União Europeia, um esforço na adoção de instrumentos legislativos que incentivem o alargamento e a uniformização de leis de combate à discriminação e direitos/ apoio às vítimas de crime. A nível europeu podem destacar-se a Diretiva 2000/78/CE de 27 de novembro, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional; a Diretiva 2004/43/CE do Conselho de 29 de junho, que aplica a igualdade de tratamento entre pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica; a Decisão-Quadro 2008/913/JAI relativa à luta, por via do direito penal, contra certas formas de racismo e xenofobia; e a Diretiva 2012/29/EU de 25 de outubro, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade, cuja redação se refere expressamente a vítimas de crimes de ódio, considerando que o tipo, a natureza e as características destes crimes, conferem às suas vítimas necessidades específicas de proteção.

Importa à APAV igualmente compreender, para além das características que determinam a maior vulnerabilidade de certas pessoas a crimes de ódio, o importante conceito de intersecionalidade. Este conceito refere-se à maneira complexa como os diferentes aspetos da identidade de um indivíduo interagem e como as diversas formas de discriminação se cruzam e constroem as experiências de indivíduos, particularmente dos grupos marginalizados (Kane, 2017).

Quanto ao enquadramento legal a dar às condutas criminosas cometidas com base em motivo(s) discriminatório(s) a nível nacional, afiguram-se duas hipóteses: a autonomização dos crimes de ódio, i.e. a consagração de uma norma penal própria que criminalize estas condutas, ou a consideração do ódio/motivo discriminatório como uma circunstância agravante da conduta.

Uma vítima pode ser alvo de um crime de ódio devido a mais do que um aspeto da sua identidade e o/a autor/a do crime pode apresentar vários preconceitos. Por exemplo, um homem muçulmano homossexual apresenta mais vulnerabilidades ou características diferentes da maioria da população que aumentam a probabilidade de ser alvo de crimes de ódio relativamente a outros homens muçulmanos heterossexuais.

O legislador português optou pela segunda via e, atualmente, certos atos criminosos – homicídio1, ofensa à integridade física2, ameaça, coação, perseguição e casamento forçado3 – são qualificados, sendo prevista uma pena mais elevada, se cometidos “por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima” (Artigo 132.º, n.º 2, alínea f ) do Código Penal).

Atualmente, muitos consideram que a legislação e as políticas relativas aos crimes de ódio simplificam as experiências da vítima por não reconhecer a natureza fluida da identidade dos indivíduos ou os motivos discriminatórios que podem sobrepor-se. O desenho de legislação e políticas adequadas à realidade da vitimação e da comissão dos atos criminosos baseados no preconceito não deve deixar de lado a ideia de intersecionalidade e a forma como a experiência da vítima pode ser agravada se estão presentes vários motivos de discriminação (Kane, 2017). O mesmo é verdade para a prestação de apoio às vítimas: um bom processo de apoio a vítimas de crimes de ódio deve partir de uma reflexão, por parte do/a técnico/a de apoio à vítima, acerca das diferentes características da(s) vítima(s) que podem ter despertado preconceito no/a autor/a.

No nosso ordenamento, ódio fundado no preconceito pode ainda ser valorado, nos termos do Artigo 71.º, n.º 2, al. c), do Código Penal, no momento em que o julgador procede à determinação concreta da medida da pena. Esta possibilidade não apresenta nenhuma especialidade legislativa relativa aos crimes de ódio, sendo um mecanismo de aplicação transversal a todo o direito penal, no entanto, não deixa de ser apta a fazer refletir nas penas uma especial preocupação com o fenómeno tratado.

1 Artigo 132.º, n.º 2, alínea f ) do Código Penal. 2 Artigo 145.º, n.º 2 do Código Penal. 3 Os crimes de ameaça, coação e casamento forçado são qualificados quando determinados por ódio por remissão operada pelo Artigo 155.º, n.º 1, alínea e) do Código Penal. miscellanea APAV 23


Relativamente à atual discussão acerca das vantagens e desvantagens da opção legislativa pautada pela autonomização dos crimes de ódio, a posição da APAV é a de que a solução que de forma mais eficaz protege os interesses das vítimas, e que trará maior visibilidade ao fenómeno, é a criação de um tipo autónomo, que englobe as condutas mais frequentemente praticadas tendo o ódio como motivação – como sejam ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, dano, ou outras – e que as puna de forma mais severa do que se fossem praticadas sem essa motivação. Este tipo autónomo deve ser complementado através de uma circunstância agravante geral, que preveja um aumento da moldura penal relativamente a todos os crimes em que a motivação de ódio fique provada.

Formação De suma importância para uma resposta adequada às necessidades das vítimas de crimes de ódio, quer por parte do sistema de justiça penal quer por parte dos serviços de apoio, é o reforço dos conhecimentos e das competências dos vários profissionais. Para tal, os conhecimentos adquiridos ao longo da implementação do projeto Ódio Nunca Mais, nomeadamente através de pesquisa e revisão de literatura e de reuniões de parceria e com os vários stakeholders envolvidos, foram reunidos para criar um manual de procedimentos e um manual de formação. O manual de procedimentos, destinado aos profissionais acima mencionados, encontra-se dividido em duas partes (Parte 1 – Compreender e Parte 2 – Proceder) com o objetivo de informar diretamente os profissionais e de fundamentar a formação resultante do projeto. Por sua vez, o manual de formação compila os todos os materiais e indicações necessárias para a dinamização de ações de formação específica para cada um dos grupos-alvo: técnicos/as de apoio à vítima; membros dos órgãos de polícia criminal; magistrados/as do Ministério Público. O pacote formativo resultante do projeto Ódio Nunca Mais tem vários módulos, existindo um tronco comum a todos os profissionais. Estes módulos trabalham os tópicos da definição de crimes de ódio e conceitos associados, os grupos vulneráveis a este fenómeno e o impacto que este tem nas vítimas, nas suas famílias e amigos, bem como na comunidade. Os restantes módulos são distintos e lecionados de acordo com o grupo em formação. Para os/as técnicos/as de apoio à vítima, a formação inclui um módulo com considerações gerais acerca do enquadramento legal dos crimes de ódio e um módulo com informação detalhada sobre o apoio especializado a vítimas de crimes de ódio. Quanto aos membros dos órgãos de polícia criminal e magistrados/as, o pacote formativo foi desenhado em consulta com representantes dos mesmos, e tendo em conta as necessidades específicas sentidas. Assim, os módulos destinados a estes profissionais têm como principal objetivo capacitar os profissionais na comunicação com as vítimas e na correta identificação e investigação do motivo discriminatório subjacente à prática do crime.

É entendimento da APAV que o conhecimento vertido nos manuais e na formação desenhada de acordo com os âmbitos de atuação dos diferentes stakeholders constitui apenas um ponto de partida. É extremamente importante que se continuem a empreender esforços no sentido de formar e informar os profissionais do sistema de justiça penal e dos serviços de apoio à vítima, quer ao nível da renovação de conhecimentos quer ao nível do número de profissionais a beneficiar desta formação. Informação e conhecimento acerca de discurso e crimes de ódio não deve ser, todavia, limitada aos profissionais. Também o público em geral, em particular as pessoas mais vulneráveis a estes crimes, deve ser sensibilizado sobre o que são os crimes de ódio, a violência discriminatória e o discurso de ódio, bem como sobre quais as estruturas de apoio disponíveis, onde e como podem recorrer em caso de vitimação. Por ser profundamente enraizada na sua cultura organizacional e comunicacional, a par de uma necessidade sobejamente identificada na academia, e na prática, no que à sensibilização da comunidade diz respeito, a APAV previu igualmente a realização de ações de sensibilização e uma campanha de comunicação sobre os crimes de ódio.

Campanha Respect Battles: combate o ódio com respeito Um dos pontos altos na sensibilização pública da APAV sobre os crimes de ódio foi, sem dúvida, o sucesso da campanha Respect Battles: combate o ódio com respeito. Com conceito criativo da agência de comunicação CARMEN (Young Network Group), a campanha baseia-se nas conhecidas rap battles nas quais os músicos trocam insultos sob a forma de rimas musicais. Vários rappers portugueses foram convidados para participar na elaboração da campanha e foilhes lançado o desafio de escrever a letra para uma battle na qual iriam estar frente-a-frente não com outro músico mas com pessoas representantes de alguns dos grupos vulneráveis aos crimes de ódio e, ao contrário do que acontece nas originais rap battles, teriam que cantar palavras de respeito e aceitação. Os rappers Malabá, Ace, M7, Papillon e Estraca aceitaram o desafio e o resultado foi cinco vídeos, quatro deles focando um tipo específico de crimes de ódio (crimes contra pessoas LGBTQI+, crimes motivados por ódio étnico e racial, crimes contra migrantes e refugiados e crimes motivados por discriminação religiosa) e um deles com uma letra sobre as várias perceções negativas que despertam o ódio e que podem conduzir à prática de crimes de ódio. A campanha tem sido bem recebida pelos meios de comunicação social que endereçaram à APAV vários pedidos de entrevistas, uma boa oportunidade para fazer chegar a mais pessoas a mensagem que a campanha tem por objetivo transmitir. Para além dos meios de comunicação social, destaca-se, claro, a visibilidade que a campanha tem nas redes sociais, como Youtube, Facebook e Instagram. No conjunto destas três plataformas, os cinco vídeos da campanha tiveram uma projeção que chegou a mais de um milhão de pessoas, sendo esta a campanha mais visualizada da APAV até hoje – o que é quer um reconhecimento de todo o trabalho envolvido neste projeto quer um incentivo para continuar a investir em projetos como este, que tratam um tópico ainda invisível e que possibilitam a disseminação pública dos serviços da APAV. miscellanea APAV 24


Conclusão Depois de dois anos de trabalho e dedicação, a equipa da APAV envolvida no projeto tem não só orgulho no resultado final como também a certeza de que o projeto tem o potencial de atingir resultados positivos a longo prazo, nomeadamente um maior conhecimento dos profissionais e do público acerca dos crimes de ódio, uma melhor investigação dos mesmos e, claro, um cada vez melhor e mais especializado às vítimas de crime de ódio. Consideramos para isso fundamental que se continue o trabalho aqui encetado no sentido de promover uma avaliação adequada das necessidades das vítimas de crimes de ódio, discurso de ódio e violência discriminatória; o reconhecimento de que o sistema de justiça não consegue suprir todas as necessidades da vítima, o que implica a referenciação para serviços especializados de apoio e que permita minimizar o risco de vitimação secundária; uma adequada avaliação de risco que permita a adopção de medidas de proteção. Com a consciência de que falta ainda percorrer um longo caminho de sensibilização, formação e advocacia relativo aos crimes de ódio, está, assim, concluído o primeiro passo da APAV no combate ao fenómeno e reforçado o nosso compromisso na melhoria do apoio às suas vítimas.

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Gabinete de Apoio à Vítima® do Alto Alentejo Oeste O GAV® itinerante da APAV Alexandra Gaio

A origem do GAV®AAO A APAV é, em Portugal, a maior organização privada sem fins lucrativos de prestação de serviços de apoio às vítimas de crime, fazendo-o com qualidade e dedicação, munindo-se da sua experiência e criatividade na procura de novas respostas para os novos desafios sempre emergentes. No exercício da sua missão, a APAV posiciona-se de forma independente em relação ao Estado, prestando os seus serviços especializados de apoio às vítimas de crime (gratuitos, confidenciais, qualificados, humanizados) em parceria, em complemento ou mesmo em substituição daquele. A intenção de alargar os serviços de apoio às vítimas de crime à região do Alto Alentejo constituiu, durante largos anos, uma intenção da APAV, desde logo expressa no seu Plano de Manutenção e Expansão dos Serviços de Apoio à Vítima e que foi concretizada em 2017 com a implementação da Estratégia de Combate à Violência Doméstica e de Género, iniciativa pública central de âmbito nacional.

Foto 1 Cerimónia de assinatura do Protocolo em Portalegre a 24/1/2017 (Da esquerda para a direita: João Lázaro (Presidente da APAV), Joaquim Mourato (Presidente do Instituto Politécnico de Portalegre), Catarina Marcelino (Secretária de Estado Para a Cidadania e Igualdade), Nuno Mocinha (Presidente da Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo); Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara Municipal de Portalegre) e Victor Bucho (Presidente da Delegação de Portalegre da Cruz Vermelha Portuguesa)

Entendeu o XXI Governo Constitucional implementar a nível nacional uma Estratégia de Combate à Violência Doméstica e de Género formalizada através de Protocolos que evidenciassem o trabalho em rede e em parceria coordenado pelas organizações da sociedade civil com intervenção direta no apoio às vítimas de violência doméstica e de género. Contando com o alto apoio da Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, é assinado, em 24 de janeiro de 2017, o Protocolo para uma Estratégia de Combate à Violência Doméstica e de Género visando “(…) uma territorialização das respostas na área da violência, enfatizando as ações de formação, sensibilização e aprofundamento do conhecimento, devidamente articulado, designadamente com as forças de segurança, as entidades com competência em matéria de proteção social e as organizações não-governamentais, tendo em vista uma cobertura nacional progressiva dos serviços de apoio e proteção à vítima” (p.1).

Foto 2 Momento da assinatura do Protocolo pela Sra. Presidente da CIG, Teresa Fragoso miscellanea APAV 26


Neste documento surge refletido o compromisso da APAV, enquanto entidade não-governamental e de mais 29 entidades parceiras signatárias , maioritariamente de natureza pública, visando, no período 20172019, a efetiva prevenção, proteção e apoio às vítimas de violência de género e violência doméstica nos concelhos de Alter do Chão, Avis, Crato, Fronteira, Gavião, Nisa, Ponte de Sor e Sousel.

oeste do Alto Alentejo (Alter do Chão, Avis, Crato, Fronteira, Gavião, Nisa, Ponte de Sor e Sousel), e os serviços do NAVVD aos concelhos situados mais a este (Arronches, Campo Maior, Castelo de Vide, Elvas, Marvão, Monforte e Portalegre).

A 10 de maio de 2017 é inaugurado, na cidade de Ponte de Sor, a sede do Gabinete de Apoio à Vítima® do Alto Alentejo Oeste, o 16º GAV da APAV que marcou o início da 3º geração de GAV que se lhe seguiram (Paços de Ferreira e Oeiras).

Atendendo à elevada dimensão e dispersão geográfica do território Alto Alentejo, ao isolamento da população, à fraca ou mesmo inexistente rede de transportes públicos que sirva as reais necessidades da população aqui residente, o GAV AAO está dotado de uma componente de itinerância que lhe permite ganhar presença em cada um dos municípios protocolados.

A diferenciação do GAV pela designação “Oeste” não revela a emergência de uma sub-região no Alto Alentejo, mas antes a referência à localização da sua sede e dos municípios protocolados.

Serviços de Apoio à Vítima em Itinerância

As vantagens de um GAV móvel não se esgotam apenas na promoção do acesso da população a este tipo de resposta, enquanto metodologia que concorre para uma real igualdade de oportunidades no acesso a serviços promotores dos direitos dos cidadãos e cidadãs vítimas de crime, por norma, concentrados nas capitais de distrito ou localidades de maior densidade populacional. Atendendo ao próprio direito das vítimas de crime de aceder a serviços de apoio à vítima, gratuitos e confidenciais, antes, durante e após o processo-crime, um GAV itinerante permite ao Técnico de Apoio à Vítima (TAV) em conjunto com a própria vítima, identificar o local para a realização do atendimento/processo de apoio que melhor garanta a segurança e privacidade da vítima.

Foto 3 Sede do GAVAAO em Ponte de Sor

Um GAV móvel é parte de uma resposta que promove a construção de comunidades mais justas, seguras e protetoras dos seus habitantes. Esta equipa móvel desloca-se uma vez por semana a cada um dos municípios protocolados, prestando assim um apoio em itinerância às vítimas de crime. Mas o GAV AAO não serve exclusivamente os/as munícipes destes concelhos. Qualquer pessoa, de qualquer idade, de qualquer parte do país pode procurar o apoio do GAV AAO.

Trabalho em Rede e em Parceria Foto 4 Inauguração do GAVAAO por João Lázaro (Presidente da APAV) e Hugo Hilário (Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Sor)

Se até então e desde 2009 o distrito de Portalegre (do qual fazem parte 15 municípios) contava apenas com uma estrutura de apoio às vítimas de violência doméstica – Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Portalegre, coordenada pela Delegação de Portalegre da Cruz Vermelha Portuguesa (NAVVD) –, a partir de 2017, com a entrada da APAV no território, as cidadãs e cidadãos contam com uma nova estrutura de atendimento - o GAV AAO. Assim, com a assinatura do Protocolo para Uma Estratégia de Combate à Violência Doméstica e de Género, os serviços do GAV AAO (informação, atendimento e apoio às vítimas de violência doméstica e de género) passam a ser prestados nos concelhos situados mais a

O carácter itinerante da estrutura de atendimento potencia o trabalho em rede de nível local, aproximando física e institucionalmente o GAV da rede de entidades públicas, privadas e da economia social que direta ou indiretamente intervêm em matéria de apoio às vítimas de crime e da própria realidade local. Adicionalmente, favorece o reforço da (cultura de) parceria em que cada parte coloca as suas capacidades e competências à disposição de uma solução comum assim como potencia também o desenvolvimento de novas formas de cooperação estratégicas, fundamentais no cumprimento da missão da APAV. Além das entidades parceiras signatárias anteriormente mencionadas, o GAV AAO tem, ainda, assento no Conselho Local de Ação Social de Ponte de Sor, bem como nos Conselhos Municipais de Segurança de Alter do Chão e Avis. miscellanea APAV 27


Equipa O staff do GAV é composto por Técnicos/as de Apoio à Vítima com formação superior nas áreas da Psicologia e do Direito, contando, também, com um equipa de Técnicos/as de Apoio à Vítima Voluntários/as que, de forma desinteressada, se associam à missão da APAV multiplicando a capacidade de apoio do GAV AAO às vítimas de crime no Alto Alentejo Oeste.

Rede CARE Foto 5 - Sinalética APAV em Fronteira

O GAV AAO acolhe desde outubro de 2017 a Rede CARE, uma das sub-redes especializadas da APAV, vocacionada para o apoio gratuito e confidencial a crianças e jovens vítimas de violência sexual e cuja intervenção se estende a toda a região Alentejo.

O apoio dos Municípios também se traduziu na divulgação dos serviços do GAV AAO através de uma multiplicidade de canais visando a maior abrangência possível: Mobiliário Urbano para Informação, páginas WEB, redes sociais, distribuição de cartazes e flyers.

Trabalho de implementação da APAV no Alto Alentejo Oeste A notoriedade da APAV entre a população residente em Portugal, que a vê, de uma forma geral, como uma organização credível e honesta, tem reflexos importantes no reconhecimento do trabalho que desenvolve junto das vítimas de crime, percebido amplamente, com qualidade e importância. Ainda assim, a entrada da APAV no Alto Alentejo Oeste implicou o desenho de uma estratégia de implementação assente num real esforço de comunicação e difusão de imagem junto da população e organizações parceiras que favorecesse a rápida identificação da APAV como uma (nova) entidade no terreno. Mas mais ainda, que facilitasse a integração do GAV AAO no trabalho em rede junto das organizações de 1ª, 2ª e 3ª linha que já intervinham junto de vítimas de violência doméstica e de violência de género.

Foto 6 - MUPI digital em Ponte de Sor

Imagem 1 - Divulgação no website da Câmara Municipal de Sousel

Uma das formas criativas e bastante eficientes de comunicação, disponível em alguns municípios, consistiu, por exemplo, na divulgação dos serviços do GAV AAO nas faturas da água, documento que chega a todas as habitações sem exceção. Figura 1 Cartaz de divulgação do GAVAAO

Foi, por isso, imprescindível o apoio dos oito municípios signatários na cedência dos espaços destinados aos serviços do GAV, muitos deles contando já com a sinalética da APAV.

Destaque ainda para o apoio da comunicação social (jornais, rádios, canais de televisão), particularmente a nível local, que têm apoiado este trabalho de divulgação.

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Foto 7 – Divulgação em carrinha da Alentejo TV

Foto 9 Ação de sensibilização junto da comunidade escolar

Foto 10 – Ação de sensibilização junto de profissionais Foto 8 - Divulgação em carrinha da Alentejo TV

Deu-se primazia às temáticas da violência doméstica (e violência no namoro) e igualdade de género, pelo seu papel de charneira neste Protocolo, mas procurou-se igualmente dar resposta a outras problemáticas e necessidades das organizações e do próprio território, como, por exemplo, a violência contra idosos, o bullying e o cyberbullying. Outro dos instrumentos que veio consolidar a presença e a articulação do GAV AAO com a rede de parceiros (formais e não formais), foi o Plano Intermunicipal para a Igualdade do Alto Alentejo Oeste 2018-2021, coconstruído com as entidades parceiras (com especial destaque para os 8 municípios signatários) sob coordenação da APAV e acompanhamento técnico da CIG. Este instrumento reflete o compromisso de cooperação mútua entre as entidades parceiras, visando a efetiva prevenção, proteção e apoio às vítimas de violência de género e violência doméstica no território correspondente aos municípios protocolados.

Imagem 2 - Notícia no website da Rádio Portalegre

Paralelamente à comunicação e difusão da imagem da APAV/GAV AAO, a equipa procurou promover a informação e sensibilização de públicos estratégicos sobre violência, vários tipos de crime e vitimação, iniciando esse trabalho primeiramente junto das Câmaras Municipais do território protocolado, avançando progressivamente para outras entidades parceiras formais e não formais, com particular destaque, para os agrupamentos de escola e organizações de solidariedade social com múltiplas respostas sociais vocacionadas para diversos segmentos da população.

A sua construção obedeceu a uma metodologia de trabalho que se traduziu em sessões de trabalho presenciais e à distância com dois grupos de trabalho: um grupo de trabalho restrito (o qual integraram os 8 municípios signatários e a Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo) e um grupo de trabalho alargado (extensível a todas as entidades parceiras signatárias). No dia 6 de novembro de 2018 decorreu a sessão pública de apresentação do Plano Intermunicipal para a Igualdade do Alto Alentejo Oeste e do Plano Intermunicipal para a Igualdade do Alto Alentejo Este (coordenado pela Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Portalegre) no auditório dos serviços centrais do miscellanea APAV 30


Instituto Politécnico de Portalegre, numa sessão dirigida às entidades parceiras, contando com o apoio da CIMAA e da CIG.

O GAVAAO apoiou 61 vítimas diretas de crime e outras formas de violência (não tipificadas como crime) e realizou 441 atendimentos. Dos diversos tipos de apoio prestados pelo GAV AAO, o apoio jurídico foi o mais assinalado, com mais de 35% dos registos. Os meios de contacto mais comuns com o GAVAAO foram o contacto presencial (53%), seguido do telefónico (32,5%), realidade que se diferencia da média da APAV a nível nacional, registando-se uma preferência pelo contacto telefónico (56,6%), seguido do contacto presencial (32%). Se a nível nacional a APAV registou uma maior percentagem de encaminhamento de utentes por parte de amigos/as e através da publicidade (28,5%), a realidade local do GAV AAO realça a força da parceria e o real reconhecimento da missão da APAV no Alto Alentejo, dando destaque à GNR, às autarquias e às CPCJ na maior percentagem de encaminhamentos realizados.

Foto 11 - Sessão Pública de Apresentação dos Planos Intermunicipais para a Igualdade Da esquerda para a direita: Carla Batista (Diretora Técnica do NAVVD) e Daniel Cotrim (Assessor Técnico da Direção da APAV)

Muito em linha com uma estratégia que visa o reforço da territorialização das respostas na área da violência, destacou-se um forte trabalho de cooperação e multidisciplinaridade com outras entidades, colocando em destaque a GNR, órgão de polícia criminal que intervém diretamente no território protocolado (26,7%), seguida das CPCJ (6,7%) e unidades de saúde (6,7%). Se a maioria dos processos de apoio que chegaram ao GAV AAO já registavam a existência de queixa/denúncia, tal facto é reflexo, por um lado, do encaminhamento por parte da GNR e, por outro, do apoio da APAV às vítimas de crime. Em linha com a realidade da APAV a nível nacional, destaca-se a residência comum à vítima e ao autor/a do crime como o local do crime mais referenciado.

Foto 12 - Sessão pública de apresentação dos Planos Intermunicipais para a Igualdade

O apoio às vítimas de crime pelo GAV®AAO em 2017 De acordo com as Estatísticas APAV - Relatório Anual 2016, foram apoiadas em 2016, 33 vítimas residentes no distrito de Portalegre, correspondendo a 0,4% das vítimas apoiadas pela APAV a nível nacional, sendo este o distrito com menor número de vítimas apoiadas pela APAV. Com a implementação do GAV AAO em 2017, e tendo como período de referência maio a dezembro, o número de processos de apoio mais que duplicou (n=70), indicador claro da necessidade desta estrutura de atendimento no Alto Alentejo. Em 87% das situações sinalizadas verificou-se a existência de crime, tendo sido identificados 219 crimes e outras formas de violência, com particular destaque para a categoria dos crimes contra as pessoas (com uma dimensão de cerca de 88,1% face ao total) e em particular para o crime de violência doméstica, na forma de maus tratos físicos e de maus tratos psíquicos (87,6%).

A existência ainda significativa de uma percentagem de processos de apoio sem queixa-crime/denúncia (26%) é também reflexo do contexto de vulnerabilidade e de insegurança em que a vítima se encontra muitas das vezes. Quando a residência comum à vítima e ao autor/a do crime deixa de ser um espaço de proteção e segurança, importa aos TAV acautelar a segurança da vítima perante o momento da denúncia/queixa e desenvolver todo um processo de apoio que vise a formalização da queixa/denuncia garantindo o mais possível a segurança da(s) vítima(s), construindo com elas o seu próprio plano de segurança. Das 91 vítimas diretas apoiadas pelo GAV AAO, 92% eram do sexo feminino, possuíam como escolaridade o 1º ciclo (9,8%) ou 3º ciclo (13,1%), eram casadas (39,3%) e pertenciam a uma família do tipo nuclear com filhos (41%) e encontravam-se a trabalhar (19,4%) ou em situação de pensão/reforma (19,4%). Se ao nível nacional a APAV verifica um maior número de pedidos de apoio por parte de vítimas integradas em escalões etários mais baixos (35-44 [15,7%]; 45-54 [12,6%]; 25-34 [10,6%]), a realidade do GAVAAO revela uma procura significativa de vítimas acima dos 55 anos (32,8%).

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Dos/as autores/as de crime registados/as, 80% eram do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 35 e os 44 anos (20,3%), eram casados (30,4%) e estavam empregados (23%).

Avaliação Externa do GAV®AAO referente ao trabalho realizado em 2017 e implicações para o trabalho futuro O ponto de partida para uma ação eficaz no apoio às vítimas de crime e violência passa pela promoção de respostas profissionais e solidárias, que coloquem as vítimas em contacto com os recursos disponíveis no terreno. Atendendo ao primeiro ano de trabalho do GAV AAO, às especificidades desta estrutura de atendimento (itinerância, rede de parceria formal, ao período de vigência do protocolo, e até a evidência de uma preferência de contacto presencial por parte das vítimas, que o distinguem da média da realidade nacional), seria fundamental, numa lógica de compromisso com a melhoria dos serviços prestados, proceder-se a uma avaliação do trabalho realizado. Através da contratação de serviços externos, foi avaliado o trabalho do GAV AAO no período de maio a dezembro de 2017 (Logframe, 2018). Nessa avaliação, a Logframe procedeu a uma análise comparada das perceções dos TAV e das vítimas em três dimensões: perceções das vítimas sobre o impacto do crime, perceções dos TAV sobre o serviço prestado e as perceções das vítimas sobre o impacto do apoio do GAV AAO. Adicionalmente, foi realizada uma análise exploratória visando identificar fatores críticos para o sucesso do trabalho desenvolvido pelo GAV AAO. Os principais resultados desta avaliação (presentes no Relatório de Avaliação Gabinete de Apoio à Vítima do Alto Alentejo Oeste) revelam que, na perspetiva das vítimas, o crime tem um impacto multidimensional nas suas vidas - e, desde logo, na perceção da segurança das vítimas, porque as impele a alterar as suas rotinas e os seus ritmos de vida.

Tabela 1 - Perceções das vítimas sobre o impacto do crime

Mas o crime tem também impacta negativamente a auto-imagem, perspetivas de futuro, condição económica e vida laboral das vítimas.

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Tabela 2 - Perceções das vítimas sobre o impacto do crime

Relativamente às perceções dos TAV sobre o serviço prestado, todos os inquiridos consideram que os serviços prestados são adequados às necessidades de quem procura o GAV AAO, assim como os recursos humanos possuem a qualificação adequada para prestar o apoio necessário. Todos os inquiridos consideram que na esmagadora maioria das vezes o seu trabalho faz a diferença na vida das vítimas e que os processos de apoio existentes são os mais adequados para ajudar as vítimas. Finalmente todos os TAV inquiridos defendem ter as orientações técnicas que necessitam para fazer o seu trabalho.

Tabela 3 - Perceções dos TAV sobre o serviço prestado

No que respeita às perceções das vítimas sobre o impacto do apoio do GAV AAO, os resultados mais relevantes indicam que, através do apoio prestado, as vítimas inquiridas conseguiram recuperar as suas rotinas, assim como conseguiram, também, recuperar a confiança nos serviços/estruturas de apoio e no próprio sistema de justiça.

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Os resultados desta avaliação permitem-nos retirar algumas ilações importantes para o trabalho dos TAV e dinâmica das estruturas de atendimento. Cerca de 80% das vítimas inquiridas considera que o crime afetou de forma impactante a sua vida e sabemos que esse impacto é profundo e multidimensional. Sabemos, também, que o crime é uma experiência traumática que afeta auto-imagem da vítima e a sua perceção de um futuro positivo. A existência dos serviços de apoio pelo GAV AAO contribuem não só para a minoração deste impacto negativo como, inclusivamente, melhoram a confiança nos serviços de apoio e no próprio sistema de justiça. Tais resultados permitem-nos afirmar que existir um atendimento presencial às vítimas de crime é o fator relevante para o sucesso dos processos de apoio à vítima no Alto Alentejo Oeste. Importa, pois, acautelar a qualidade do serviço e a correta gestão dos processos, “para que esta resposta seja mais um elemento potenciador da ultrapassagem dos impactos pessoais e sociais na vida das vítimas que são potencialmente devastadores quer no presente quer para o futuro destas pessoas” (p.3)

Bibliografia Alves, M. (2015). 25 Anos APAV 1990-2015. Lisboa: APAV

APAV (2016). Relatório Anual de Estatísticas. Lisboa. APAV (Disponível em www.apav.pt)

Logframe (2018). Relatório de Avaliação – Gabinete de Apoio à Vítima do Alto Alentejo Oeste

APAV (2016). Plano de Manutenção e Expansão dos Serviços de Apoio à Vítima.

APAV (2017). Estatísticas do Gabinete de Apoio à Vítima Alto Alentejo Oeste (Disponível em www.apav. pt)

Plano Intermunicipal para a Igualdade do Alto Alentejo Oeste 2018-2021 (Disponível em www.apav. pt miscellanea APAV 34


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