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Arquitetura
CAN RAN ARQUITECTURA 2002 / 2022
por Catarina Almada Negreiros e Rita Almada Negreiros, Can Ran
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Depois de várias experiências em escolas e ateliers de arquitectura no estrangeiro, Catarina por Veneza, Londres e Boston; Rita por Paris e Barcelona. regressaram a Lisboa, onde fundaram os Ateliers de Santa Catarina, um centro criativo que promove trabalhos interdisciplinares entre arquitectos, artistas e designers. O trabalho em parceria das arquitectas CAN RAN arquitectura inicia-se em 2002 e, neste contexto, as propostas de renovação arquitectónica destacam-se pela utilização do azulejo, enquanto elemento transformador dos espaços em que se insere. A cidade de Lisboa e o seu espaço público têm sido o principal receptor dos projectos can ran. A Câmara Municipal de Lisboa, o Metropolitano de Lisboa, tal como diversos gabinetes de Arquitectura têm sido os principais impulsionadores dos seus projectos em azulejaria.
O azulejo, resulta de um encontro com o material em 2002, após o qual foi necessário um período de afastamento e a oportunidade de regressar a Lisboa, para que, então, fosse criada uma distância com maior perspectiva para que o reencontro fosse possível. Voltar a olhar para o azulejo e as suas enormes potencialidades: Um pequeno objecto de barro vidrado que associa o acto singular e arcaico de conjugar num só artefacto os quatro elementos: TERRA; FOGO; ÁGUA e AR e, simultaneamente, através da sua função, de material de revestimento modular, vinculá-lo ao ESPAÇO onde o transforma de forma revolucionária. O longo percurso da história do azulejo em Portugal tem-se revelado também uma sólida base de trabalho para as intervenções cerâmicas desenvolvidas pelo atelier que, de certo modo, pretendem assimilá-lo e adicionar-lhe um novo tempo, um tempo contemporâneo onde existem novas imagens e linguagens, que evocam vários imaginários, desde o mundo digital ao universo das imagens em movimento. Nos cinco séculos de história do azulejo em Portugal as diferentes técnicas foram permitindo diversos resultados. Estas superfícies foram-se sucessivamente adaptando aos diferentes momentos da história. É precisamente neste movimento contínuo do uso do azulejo, que se insere o trabalho do atelier.
Espacialidade e movimento
A espacialidade e o movimento são característicos do trabalho desenvolvido pelo atelier. A formação em arquitectura faz com que o espaço seja fundamental e indissociável do resultado final de cada obra. Características que são enfatizadas em alguns projectos em espaço público, tal como Cota Zero e os projectos que utilizam o Azulejo Cinético, onde é possível reconhecer a importância do espaço e do movimento do transeunte como partes fundamentais para a sua apreensão. A intervenção Cota Zero (2010) para o novo átrio da Estação Sul e Sueste integra-se no projecto de ampliação e remodelação da Estação Fluvial do Sul e Sueste em Lisboa, projecto que data de 1932 da autoria de Cottinelli Telmo. Esta ampliação, da autoria do Atelier Daciano da Costa, teve como objectivo transformar a
estação Fluvial em Interface, criando neste edifício a ligação entre o metropolitano e os navios da Transtejo. O suporte desta intervenção cerâmica é o conjunto do tecto e colunas do novo átrio do Interface. Pretendeu-se que esta se desenvolvesse de forma indissociável do espaço, fundindo-a com a arquitectura mas, em simultâneo, enaltecendo-a. O tecto, com as dimensões de 17m por 23m, destaca-se das paredes e assume um pé direito de 5.6m, suportado por 8 colunas de 0.60m de diâmetro. Sob este tecto emergem as escadas de acesso ao metropolitano. Neste espaço coexistem dois movimentos: a chegada de barco à cota pela superfície da água e a chegada de metropolitano a uma cota negativa. A ligação entre esses dois movimentos é feita ao nível da superfície da água. A união entre estes dois fluxos acontece aqui e é desta especificidade do lugar que surge a ideia-base desta intervenção: uma reflexão sobre a Cota Zero. É sobre a superfície de cerâmica do tecto que surge o desenho que induz uma imagem da superfície da água que é tocada. As formas de aparência circular sugerem os pontos de toque que interceptam as colunas e é precisamente aqui que é enfatizada esta relação entre a superfície plana e brilhante do tecto e as colunas. Desta relação/reflexão, nasce um espaço virtual colocando o espectador num novo lugar que, através da experiência reforça o seu significado simbólico. A passagem dos utilizadores enquanto expectadores, a variação da luz no espaço torna-se fundamental para a apreensão deste lugar.
O azulejo cinético foi a primeira criação em cerâmica do atelier can ran, resulta de uma pesquisa elaborada na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego com o seu administrador, em 2002, Duarte Garcia — altura em que a Arte Cinética do século XX assumia um papel fundamental. Desde a sua criação foram desenvolvidos vários projectos da autoria do atelier que usam este azulejo. Em cada um destes projectos, a sua utilização é específica, precisa e pensada para o espaço público, já que este é por excelênciao seu lugar de exposição. Este objecto cerâmico com as dimensões tradicionais do azulejo português (14cm x 14cm) tem um perfil em ziguezague, podendo ser bicromático, o que permite percepções diferentes consoante o posicionamento do observador. Com este módulo podem-se criar painéis e transmitir reflexões. As imagens produzidas podem ser infindáveis, justapostas e comunicar ideias através da cor, da forma, ou da palavra. Estas leituras revelam-se com o movimento do observador no espaço, através de uma sucessão de imagens que se transformam e se expõem. Essa percepção tanto é feita pelo ângulo de visão em relação ao plano da superfície, como também é influenciada pela própria distância. A leitura dos painéis ou murais pode ser efectuada de várias formas, consoante o que se quer transmitir. Por exemplo, podem-se criar superfícies que têm apenas uma leitura frontal, tal com o painel Presente, exposto e actualmante parte do espólio do Museu do Azulejo, perdendo a leitura com a perspectiva, assim como criando dualidades entre duas imagens que apenas têm leitura em perspectiva, tornando-se frontalmente imperceptíveis.
Azulejo cinético desenvolvido para a estação de Metro de São Sebastião II No projecto de revestimento cerâmico da Estação de Metropolitano de São Sebastião II, em Lisboa (20042009), foi utilizado também o azulejo cinético, aqui quase
sem aplicação de cor, dando-se ênfase à sua textura. Este projecto tem o trabalho de Maria Keil (1914-2012) como referência e foi desenvolvido com a participação da autora.
Neste projecto,a partir do azulejo cinético, foram desenvolvidos uma série de outros azulejos tridimensionais, com a finalidade de implementar ritmos diferentes nas superfícies, trabalhando o binómio da sensação de ‘acelerar’ e ‘desacelerar’. A intervenção cerâmica Vai Vem de 2013, localizada no Largo de Santo Antoninho, faz parte integranteda Reabilitação do Bairro Histórico da Bica em Lisboa, a cargo de Teresa Nunes da Ponte Arquitectura e é outro exemplo da utilização do azulejo cinético. A intenção desta intervenção, foi de acentuar o movimento do elevador através de signo da seta. Nestes dois painéis, simétricos entre si, pretendeu-se evidenciar esse movimento num gesto simbolicamente representado com duas direcções. Nos painéis, que têm múltiplas visões, utilizam-se duas imagens distintas que se compreendem apenas quando observadas em perspectiva, uma com setas no sentido descendente e outra ascendente, respectivamente.
Usando as cores branco e preto, que são também as cores da cidade de Lisboa e o signo mencionado (a seta), o azulejo adquire a função de sinalética aludindo, graças às suas características mutáveis, à sinalética digital, aqui, alusivo ao mundo contemporâneo, parte intrínseca desta obra que está em contínua interacção e mutação.
Reconciliar e transformar
Reconciliar e transformar é mais um dos centrais temas explorados e trabalhados neste atelier. Aqui a história e o património azulejar português, nas suas diferentes expressões e técnicas, servem de ponto de partida para os projectos. No caso da Avenida da Índia e no 5pm exploram-se e revelam-se técnicas com base em imagens existentes que são trabalhadas e devolvidas para o espaço público.
O Projecto de Alçados em Azulejo Avenida da Índia de 2016 é inserido no projecto de remodelação e ampliação de um conjunto de edifícios na Avenida da Índia em Lisboa, projecto de arquitectura de Appleton & Domingos, que adaptou este edifício, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, a um equipamento público que alberga dois centros culturais. O projecto azulejar pretendeu assumir-se como um projecto de continuidade e não de rotura, seguindo a linha traçada pelo projecto de arquitectura. As fachadas do edifício principal foram integralmente revestidas de azulejo, reutilizando os originais (azulejo padrão do séc. XIX) e foi criado um novo tipo de azulejo para o revestimento das restantes áreas. É da decomposição do desenho, constituído pela sobreposição de vários desenhos, a que correspondem outras tantas estampilhas do azulejo original, que surge o novo conjunto. Neste exercício de decomposição do azulejo original pretendemos revelar, e sublinhar, não só os diferentes desenhos mas também a técnica utilizada, a técnica da estampilha. A composição proposta para estes alçados pretende criar um efeito de diluição, na vertical, do padrão do azulejo original. Utilizou-se à cota mais baixa do azulejo existente, mais denso, e à medida que a intervenção sobe em altura o desenho foi sendo simplificado, pouco a pouco, através do uso dos diferentes azulejos até chegar ao topo completamente branco. A intervenção plástica 5pm localiza-se no Paço da Rainha, em duas grandes superfícies laterais que limitam os arruamentos desnivelados da via central da rua e também numa pequena área junto a uma escada de pedra existente. Neste local destaca-se ainda, pela sua forte
Painel II Imagem do Relatório - Conservação e Restauro da GPCR, 2020
Painel II Fotomontagem com proposta de preenchimento de lacu na com desenho a preto e branco,
Avenida da India Fernando Guerra
presença, o Palácio de Bemposta, que marca o regresso de Inglaterra da Rainha Catarina de Bragança a Portugal, em 1693. A proposta, teve como principal objectivo estabelecer uma relação entre um azulejo de padrão do séc. XVII aplicado de forma tradicional (AP 198 tradicional ainda em produção na Fábrica Viúva Lamego), que preenchia de uma forma económica e eficaz as grandes superfícies interiores (palácios, igrejas e conventos) e um azulejo com o mesmo padrão aplicado com uma nova lógica (AP 198 contemporâneo).
Deste modo, surgem cinco azulejos distintos, o primeiro consiste na réplica do padrão tradicional (AP 198) e os restantes surgem a partir de uma ampliação/ /variação deste. A sua utilização em simultâneo nos grandes planos, permitem criar a composição final. Relativamente ao troço lateral das escadas existentes, este é preenchido com azulejo de fundo “azul inglês”, destacando um poema a branco de homenagem à Rainha (Edmund Waller 1606–1687). A designação 5pm, inspira-se na teoria de que terá sido a Rainha a responsável pela introdução do ritual do chá na corte inglesa. Simultaneamente o atelier tem desenvolvido projectos para espaços interiores onde explora técnicas menos comuns, tal como a técnica dos enxaquetados, e desenvolvendo murais para diferentes locais. NY.NY. é um exemplo de um projecto desenvolvido para a recepção de um edifício co-living em Montclair nos EUA. Ainda dentro do tema Reconciliar e Transformar, atelier tem trabalhado em parceria com outros ateliers de arquitectura, em projectos, onde desenvolve o tema da reabilitação, nomeadamente em edifícios históricos e classificados com grandes espólios azulejar, vitimas de furto e vandalismo, onde o desafio é, como reutilizar o azulejo remanescente e como colmatar a lacuna, sendo que recorrer à réplica, por si só, não será o nosso modo de resposta. O projecto da Esperança, com Gabinete de Arquitectura Appleton & Domingos, é um bom exemplo disso. Aqui, perante o furto de Azulejo (do Séc. XVIII), propõem-se para o preenchimento das lacunas a criação de novo azulejo, utilizando as mesmas técnicas utilizadas no azulejo original: pintura à mão sobre uma chacota (base de azulejo) artesanal. Deste modo, é recuperada a continuidade do desenho original do painel. No entanto, não se pretende colmatar a lacuna com uma cópia exacta, mas antes revelando e expondo essa diferença. Assim, propõe-se que o desenho (sustentado em fotografias de arquivo de 2004 - antes do furto) seja contínuo mas que a cor seja diferente (preto e branco), revelando, claramente, que se trata de um outro momento, agora contemporâneo.
Biografias
Catarina Almada Negreiros (CAN) Licenciada em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em 1996, com Programa Erasmus no Istituto Universitario di Architettura di Venezia, Veneza em Itália (1995). Catarina Almada Negreiros estagiou no atelier londrino MUF: ART/ARCHITECTURE entre 1997 e 1999. Em 2002 concluiu o mestrado em arquitectura na G.S.D. Universidade de Harvard, em 2011, o mestrado em Comunicação e Artes, na F.C.S.H., Universidade Nova de Lisboa. Anos antes, em 2000, tinha fundado, com a sua irmã Rita Almada Negreiros, os ateliers de Santa Catarina, em Lisboa e em 2002 can ran arquitectura.. Rita Almada Negreiros (RAN) Licenciada em Arquitectura pela Universidade Lusíada de Lisboa, em 1994, Rita Almada Negreiros estagiou nos ateliers Wilmotte&Associés, em Paris (1994-1997) e BCQ Arquitectes (1997-1998) e ainda no atelier do arquitecto Jordi Castel (1998-1999), estes últimos em Barcelona. Anos antes, em 2000, tinha fundado, com a sua irmã Catarina Almada Negreiros, os ateliers de Santa Catarina, em Lisboa e em 2002 can ran arquitectura.