Victor Vargas Ilustraçþes de
Vagner Vargas
Isidora
Copyright do texto © Victor Franch Vargas Copyright da arte da capa e ilustrações internas © Vagner Vargas Publicação independente de fantasia. Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem prévia autorização dos responsáveis.
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Opiniões e e-mails deixarão Isidora muito feliz.
“Se deixássemos as crianças crescerem como são, teríamos apenas gênios.” Johann Wolfgang von Goethe
I
sidora pisou na delegacia com a cabeça erguida. Foi com passos firmes que marchou em direção ao balcão de atendimento, deixando no caminho um rastro de curiosos que se perguntavam o que ela estaria fazendo ali. — Preciso tirar uma dúvida — anunciou Isidora. A policial recepcionista olhou para frente e para os lados. Sem localizar a dona da vozinha aguda que falara consigo, voltou a preencher as fichas de ponto no computador. — Ei, moça polícia, preciso tirar uma dúvida. Novamente a atendente sondou as redondezas. Ela conhecia a cartilha informal dos empregos e sabia que atrapalhar ou provocar um novato constituía um ritual necessário. Bufando, redobrou sua atenção ao monitor. Quando Isidora notou que a mulher não a enxergava — talvez porque a altura da menina fosse menor do que a altura do balcão e todo seu corpo se encontrasse oculto sob o vasto chapéu florido —, decidiu agir. Colocou no chão a mala rosada que carregava. A policial se sobressaltou ao ver o rosto mal encarado de uma criança surgir gradualmente a sua frente como um crocodilo emergindo da água. — Preciso tirar uma dúvida! — exclamou Isidora. — Desculpe, minha querida. Não vi você aí. Cadê seus pais, por acaso se perdeu? Isidora torceu os lábios num muxoxo. Todos os adultos lhe perguntavam a mesma coisa quando a viam. O que os seus pais poderiam ter de tão extraordinário afinal, para que o interesse das pessoas sempre fosse dirigido a eles e não a ela? — Papai e mamãe continuam em casa. Cheguei aqui sozinha — disse Isidora. — Só que tive problemas em pegar táxis e trens e alugar carros e agora necessito de uma informação. — Que gracinha! Onde exatamente você mora, benzinho? — Na mansão a beira do penhasco, mas isso não vem ao caso, a questão é que... Tentando ajudar, a policial estendeu o telefone. — Aposto que se perdeu e está com problemas em ir para casa — disse. — Quer falar com seus pais para que venham lhe buscar, não é? A menina rangeu os dentes. Suas conversas com gente grande geralmente começavam nesse jogo de mímica verbal em que Isidora dizia muito claramente 4
o que queria enquanto aguardava que os outros compreendessem. — Nada disso. Preciso comprar um adulto — disse ela. — Comprar? — Sim, pois careço de um para empreender diversas tarefas arriscadas e odiaria emprestar um adulto e devolve-lo todo quebrado. Foi então que a policial por trás do balcão observou Isidora de verdade, sem aquela máscara de ingenuidade e ternura que na maioria das vezes é dispensada as crianças, e isso causou-lhe um arrepio que percorreu sua espinha. Pois uma garotinha não deveria ter olhos escaldantes como aqueles, tampouco bochechas sólidas despidas de qualquer carinho ou lábios tão perfeitamente rígidos. Traços assim seriam adequados a criaturas abomináveis, e se tornavam ainda mais assustadores quando carregados por uma criança. Pela testa da policial escorreu uma solitária e assustada gota de suor. — A-aguarde só um minutinho, q-querida — disse ela. Então tratou de procurar seu superior, já que não recebia o suficiente para lidar com alguma coisa assim. No ínterim, Isidora admirou a efusiva população da delegacia. Homens alcoolizados eram arrastados para bancos plásticos enquanto gritavam palavras esquisitas na língua obscura dos bêbados. Vestida de cinza, com um sorriso extremamente torto e olhos escondidos nos fundos do crânio, uma mulher discutia com um oficial da lei a respeito do porte ilegal de um suspeito jogo de talismãs. Um grupinho de empolados advogados continha a fúria de seu cliente, um homem alto de traços animalescos e caninos afiados. Próximo a Isidora, um criminoso algemado passou a encará-la com olhares malignos. — Aqui não é local pra menina — disse ele. — Algum psicopata poderia surtar e faze-la refém. Seus dentes imundos lembravam tampas de bueiro. Os braços estavam cobertos de coisas pegajosas que poderiam ser tatuagens ou apenas o resultado de diversos dias passados sem banho. Uma família de pombos poderia viver em seus cabelos, se não se importasse com a péssima higiene do lugar. Com manejo profissional da garganta, o homem cuspiu ruidosamente em uma lata de lixo. — É surpreendente que os policiais tenham a coragem de te prender aqui — disse Isidora. — Daqui algumas horas o cheiro estará insuportável. O homem grunhiu. — Este cheiro é o cheiro do perigo. — Sério? Para mim parece o odor — fedor, aliás — de alguma coisa morta há muito tempo em um terreno baldio usado como depósito de lixo químico. Você deveria ser considerado tóxico. Traços raivosos se espalharam pelo rosto do criminoso conforme ele repetia 5
para si as palavras de Isidora. — Então você é uma moleca sabichona que passa o dia com a cara em revistinhas e aprende uma ou duas palavras inteligentes, não é? Tóxico, há. Conheço bem o seu tipo. — Duvido muito. Sou única. Foi a insolência presente na afirmação da menina que fez o sangue do bandido ferver. Sendo o sujeito das ruas que era, seu organismo desenvolveu uma aversão natural a esse tipo aristocrático de insolência. Já não gostava de crianças, mas aquela menina, com seu bichinho de pelúcia firme nas mãos e o largo chapéu florido sobre a cabeça, conseguira a proeza de atingir um novo patamar de ódio em sua mente. Se suas mãos se encontrassem soltas, adoraria distribuirlhe umas belas palmadas. No entanto, com os pulsos algemados, só poderia recorrer ao velho recurso de aterrorizar. O bandido inflou o peito e ergueu o queixo, deixando a mostra uma impressionante cicatriz esbranquiçada que descia em ziguezague até desaparecer por baixo da gola de sua camisa. Cicatrizes como essa quase deixam a vítima satisfeita em ser retalhada. — Veja só isso aqui — disse. — Briga de faca em que eu levei a melhor. Se você visse o estado do outro cara jamais tocaria em um bife novamente. Orgulhoso, o bandido observou enquanto Isidora lentamente lhe apresentava seu joelho direito. Nele havia uma casquinha escura que prenunciava a cicatrização de um machucado — Sabe como ganhei isto aqui? — a menina fuzilou o bandido com um olhar capaz de esfriar todo o Carnaval. — Correndo com alguns monstros. Tem ideia de como estávamos correndo? O homem negou com a cabeça. — Eles corriam de mim, eu corria atrás deles. Sabe o que aconteceu quando os alcancei?
O delegado Oliveira passava por um dia péssimo que piorava progressivamente. Logo pela manhã teve de prender um herói. Todos os vinte policiais que participaram da ação ficaram apreensivos com a possibilidade do acusado resistir à prisão, pois o herói possuía a constituição física de todo um torneio de luta-livre e mais ou menos a mesma força dos seus participantes. No entanto, Oliveira surpreendeu-se quando este se entregou sem causar qualquer estardalhaço. Na realidade, o homem foi muito polido e educado com o grupo de policiais que arrombou sua porta. Ofereceu café e biscoitos a eles que, confusos, acaba6
ram aceitando. Depois foi algemado e levado tranquilamente para a viatura. No caminho até fez comentários como “puxa, está armando uma baita chuva”, desejou bom-dia aos vizinhos curiosos e contou meia dúzia de anedotas interessantes sobre sua profissão (“como daquela vez que me vi obrigado a sair no tapa com um orangotango, pobrezinho”). Ao ser acomodado na prisão, o herói requisitou um balde e um pouco de cloro para remover as manchas pestilentas que se instalaram de maneira asquerosa nas paredes. Toda essa serenidade perturbou o delegado, deixando-o com a impressão de que havia praticado algo terrivelmente errado ao colocar aquele homem atrás das grades. Após concluída a captura do herói, Oliveira realizou uma geral nas ruas atrás de gente que tivesse passado da conta na bebedeira. Esse é um dos delitos corriqueiros mais praticados em uma cidade pequena como a do delegado. Qualquer pessoa que descubra como operar uma rolha pode se embriagar com eficácia. Nenhum talento é necessário, e os beberrões até ganham certos dons após ingerir grandes quantidades de álcool. Ficam inclinados a dança e perigosamente pirofóricos, por exemplo. Ao voltar à delegacia Oliveira tinha a viatura cheia de pessoas alegres que cantavam versões variadas da música O Mago Caipira Tinha uma Galinha. Um dos bêbados vomitou pela janela do automóvel sem se lembrar de abri-la, o que não melhorou em nada o estado de espírito do delegado. Quando achou que finalmente conseguiria se refugiar em sua sala, tomar uma boa xícara de café e filosofar um monólogo sobre as condições precárias da sociedade que via através da persiana, o delegado foi interpelado pela nova policial-recruta. Era uma moça afoita transferida diretamente da Polícia Militar Fronteiriça, considerada a mais perigosa divisão do exército, pois tinham de lidar com todas aquelas coisas estrangeiras e mesmo o mais ingênuo cadete tem noção do perigo que os forasteiros encerram. Os únicos estrangeiros bons nascem desse lado da fronteira, muito obrigado. Transferiram a moça para a tutela de Oliveira após perceberem que ela teria na fronteira a mesma expectativa de vida de um peixe no Saara. Afinal, ela não possuía alguns dos atributos corporais comuns aos soldados da PMF. Na realidade, apresentava mais atributos físicos que metade do seu regimento. A moça tinha o dobro de braços do soldado comum, por exemplo, e o fato de ainda ser dona do seu nariz — literalmente — incomodava muito seu capitão, um homem cujo espirro assombrava os pesadelos dos recrutas. O lema não-oficial da Polícia Militar Fronteiriça era “Um Homem, Uma Perna”. — O que pode ter acontecido de tão importante no atendimento ao público para que precise falar comigo? — esbravejou Oliveira. — Senhor! — a cadete prestava continência enquanto acompanhava o supe7
rior, causando a estranha impressão de estar sapateando ao lado do delegado. — Um caso gravíssimo. — Antes de qualquer coisa, policial-recruta Gomes, abaixe a mão, sim? Aqui não é o exército, esqueça esse adereçamento tão militar. Quem ver sua atitude pode acreditar que obrigo meus subordinados a me tratarem dessa forma. — Desculpe, senhor. Digo, delegado. O suor típico do nervosismo — que é igual ao suor convencional, na verdade — escorria abundantemente pela testa da mulher, empapando suas bochechas e pingando da ponta do nariz achatado. Oliveira olhou-a nos olhos dilatados, e em seguida nas mãos, que tremulavam ao lado da cintura como se tocassem pandeiros invisíveis. Esses indícios só poderiam significar uma coisa: medo; e a lei do bom senso ensinava a temer aquilo que um ex-policial da fronteira temia. — Recomponha-se, policial-recruta — disse ele, aproximando da novata o rosto bigodudo. — Por acaso algum jornalista entrou aqui? — Senhor, não, delegado, é alguém ainda mais estranho e perigoso do que um jornalista. É uma... — a cadete Gomes engoliu em seco. — Talvez seja mais rápido explicar dizendo para o senhor apenas olhar para trás, delegado senhor. Oliveira se virou e em seguida arrependeu-se. Muito tempo depois do ocorrido, nas altas madrugadas de noites mal dormidas, o delegado se pegaria pensando a respeito daquilo que viu. Os detalhes fluiriam para sua mente conforme ele tentava esquece-los, e era certeza que passaria a noite em claro bebendo doses generosas de cachaça enquanto tentava reunir coragem para apagar a luz. O que Oliveira viu foi o seguinte: um daqueles criminosos de gangue, exalando terror urbano com seus piercings e tatuagens tribais, se debatia insanamente, com a boca se movendo sem emitir som algum, enquanto se jogava sobre os policiais e tentava se afastar de alguma coisa pequena coberta com um chapéu florido e agarrada a um bichinho de pelúcia. O que petrificou o delegado, que já tinha visto muita coisa feia em sua carreira, foram os olhos do bandido. Aqueles olhos acovardados de um homem que descobriu a existência de algo mil vezes pior do que seu mais terrível pesadelo e sabe que a partir desse momento toda a sombra esconderá uma parcela desse terror. — Policial-recruta Gomes, o homem não está falando, está? — Não, senhor. — Mas os seus lábios estão se mexendo, não estão? — Sim, senhor. O delegado não gostaria de perguntar, mas precisava fazê-lo: — Ele por acaso está dizendo “socorro, me arremessem na solitária mais profunda, mas me tirem de perto dessa monstra”? A policial Gomes engoliu em seco e concordou com a cabeça. — Eu supunha que sim — disse o delegado. 8
Isidora identificou-o logo que o viu. Era o policial mais alto, com o bigode mais farto, vestindo o casaco mais elegante e ostentando o rosto mais quadrado. Se o dicionário fosse composto de imagens, aquele homem ilustraria perfeitamente o verbete xerife. Ele veio andando em direção à menina com ares preocupados, um sentimento compartilhado por muitos dos policiais e criminosos dentro da delegacia. A cena envolvendo o meliante que ficava cuspindo no lixo pareceu chocar-lhes, embora tudo que Isidora tivesse feito fora ensinar alguns bons modos ao detestável bandido. A menina esperou que o Xerife chegasse até o balcão para que conversassem. Manteve o queixo erguido o tempo todo, deixando bem claro que estava ali com um propósito e que só iria embora quando conseguisse o que queria. — Acho que alguém aqui se perdeu dos pais, não é? — disse Oliveira retoricamente. — Xerife — cumprimentou Isidora. — Delegado. Sou o delegado daqui. — Tanto faz — e os policiais que estavam ao redor deles olharam para Oliveira com sorrisinhos enviesados, que logo foram desaparecendo conforme esse enrugava a testa. — Vim aqui com um problema terrível. Vidas estão em jogo e... Oliveira descruzou os braços e apoiou as mãos na cintura, puxando para trás seu casaco marrom. O efeito desse gesto foi garantir-lhe instantaneamente um ar repreendedor. — Veja bem, o único problema aqui é ter você perambulando sozinha pela minha delegacia. Alguma coisa ruim pode acontecer — disse Oliveira. — Se está se referindo aquele homem desprezível, relaxe. Ele ficará bem. Peguei leve desta vez. O delegado piscou sob a força do olhar de Isidora. A menina não parecia estar brincando, em nenhuma das muitas interpretações da palavra, e encarava o delegado da mesma maneira que um rinoceronte sedento disposto a atropelar quantas gazelas fosse necessário para chegar logo ao lago. E pela primeira vez em toda sua vida, Oliveira, o delegado que construiu uma fama sólida na metrópole de Salto ao prender todo um cartel de alquimistas insanos, que fora baleado mais de uma vez no cumprimento do dever e uma por acidente, ao qual condecoraram à Cerquilha Prateada (uma honraria que é, na maioria dos casos, póstuma), sentiu-se como uma gazela. Em seu íntimo cresceu a necessidade de se livrar de Isidora. — De qualquer forma, aqui não é lugar para meninas — disse ele, recorrendo a uma das mais antigas desculpas masculinas. 9
— Mas ela é uma menina! A atendente Gomes recuou ao ver o indicador de Isidora apontado em sua direção. — Isso não vem ao caso. O fato é que estamos trabalhando com coisas importantes — disse Oliveira. — Meu problema é importante — retorquiu Isidora. — Olha, se você não for capaz de me ouvir de forma apropriada, sinto muito, mas procurarei alguém capacitado para fazê-lo em vez de ficar por aqui perdendo meu precioso tempo. Ao redor deles os policiais abriram espaço. Oliveira tremia dos pés a cabeça. Se um de seus filhos falasse assim com ele, logo receberia uma aula de braile ministrada pelo cinto do pai. O homem resmungou algumas palavras raivosas, mas o único efeito que isso teve sobre Isidora foi o de fazer a menina cravar-lhe um olhar que carregava a potência dos raios. Oliveira respondeu olhando fundo nos olhinhos castanhos da menina. Isidora comprimiu as sobrancelhas e estufou as maçãs do rosto. O delegado crispou os lábios, e começou a suar. Num micro movimento, a menina enrugou toda sua testa. Os bigodes do homem vibravam. Isidora contraiu ainda mais os lábios, emprestando a expressão de todas as mulheres contrariadas do universo. Os olhos do delegado começaram a lacrimejar. Então, com o rosto vermelho e suado, ele ofegou: — Argh! Depois foi carregado para longe por policiais atônitos, que o sentaram próximo a um bebedouro e começaram a lhe abanar com folhas de papel. Entediada pela atitude sempre aborrecível dos adultos, Isidora decidiu resolver tudo ela mesma. Começou a andar pela delegacia na tentativa de abordar outro policial, mas esses fugiam aos saltos quando ela se aproximava questionando se o sujeito estaria ou não disponível a venda. — Ei, você, preciso comprar um adulto, volte aqui! Você! Irritada, andou sem rumo até encontrar uma placa que indicava “Cárcere”. Os policiais até poderiam ignorá-la e fugir, já os detentos não teriam o mesmo luxo.
Havia dois prisioneiros ali. Um deles era magricelo e barbado, tão coberto de sujeira que seria capaz de poluir o oceano de maneira muito pior do que um derramamento de petróleo. Jogado contra as grades, o rosto encoberto nas sombras, ele roncava. O outro prisioneiro se encontrava escorado em sua cama, folheando o livro que uma das policiais havia atirado pelas grades com seu número de telefone devidamente escrito a batom na contracapa. A cada virada de página ouvia-se o som de músculos rangendo. 10
O livro se intitulava A Arte da Guerra em Quadrinhos e alegava ser a adaptação de um clássico da literatura mundial. No entanto, o homem tinha suas dúvidas quanto à credibilidade da obra. Podia jurar que o livro não deveria conter tantas cenas de batalhas. E zumbis. Tinha certeza que não havia zumbis na Arte da Guerra que lera há anos, quando não passava de um jovem cadete sardento na Academia Preparatória de Heróis. Com o dedão úmido virou mais uma página. Seu companheiro de cela resmungou algo em um sonho intranquilo, pendendo a cabeça para o lado com a boca aberta. O herói fitou-o com pena, depois voltou à atenção para sua leitura. Nesse movimento o canto de seus olhos registrou alguma coisa pequena — que aparentava ser uma criança emburrada — no corredor. Cautelosamente virou o pescoço, fazendo o olhar dos dois se cruzarem. Arrependeu-se imediatamente e desviou o rosto, mas tinha certeza do que havia visto: era uma menina de rosto inquisitivo, carregando em uma mão uma mala rosada e na outra... E na outra... Olhou novamente para ela durante menos de um segundo apenas para se certificar. Era uma morsa. De pelúcia. O herói ergueu o livro até que cobrisse todo seu rosto, então se esforçou em retornar à atenção para as páginas. Porém, a presença da menina o incomodava. Ela não se movia nem dava sinais de estar respirando, apenas ficando ali em silêncio como se aguardasse algo explodir. Antes que os pelos de sua nuca se eriçassem mais, o herói decidiu perguntar: — O que você está fazendo aí? Isidora trocou o peso do corpo de uma perna para a outra sem emitir qualquer ruído. — De maneira geral, salvando meu avô. No específico, procuro um adulto disponível para servir-me em uma importante e perigosa missão. No momento, estou qualificando vocês para a vaga. O herói abaixou lentamente o livro, as sobrancelhas erguidas. Certas palavras ditas pela menina acionaram alguns dos seus mais sensíveis dispositivos biológicos para detecção de problemas. Ele farejou Isidora, e o odor que sentiu era semelhante ao cheiro de nitroglicerina em chamas. — Creio não ter compreendido tudo que falou — disse o herói. — Poderia explicar com mais calma? — Basta saber que vim aqui atrás de 11
ajuda. — Talvez devesse tentar no andar de cima. Há uma delegacia ali. Isidora olhou friamente para o homem. — O que quero dizer — apressou-se o herói — é que uma prisão é um péssimo local para se procurar qualquer outra coisa que não criminosos. Dos ruins ainda, já que os bons evitam o lugar. — Valia a pena tentar — Isidora deu uma volta pelo corredor, examinando as duas celas. — Mas você tem razão. Ninguém aqui é minimamente interessante nem parece capacitado o suficiente para os perigos que tenho em mente. Com o orgulho um pouco ferido, o herói se levantou. Existem certas pessoas cujos movimentos são considerados élficos, cheios de sutilezas e delicadezas. Quando um narrador empolgado discursa a respeito deles, costuma grifar que seus passos são leves e os gestos suaves. Quem se locomove em itálico flutua. O herói conseguia o extremo oposto: ele se movimenta em negrito. Observá-lo se levantar era como assistir uma ilha ficar em pé. Músculos rolavam por sobre outros músculos com a graça de uma avalanche, se assentando em sua posição com sons similares aos de pistões em pleno funcionamento. Seu tronco parecia não ter fim e possuía mais colinas que o Himalaia. Um exército de lavadeiras poderia usá-lo para bater a roupa de uma nação inteira. E no topo desse obelisco humano untado em testosterona descansava o rosto mais sincero que alguém poderia ter. Ele sorria. — Bem — disse o herói flexionando um monte de músculos cujos nomes terminavam em ceps —, tenho certeza que nem todos aqui são assim desinteressantes... Aonde você vai? Isidora já se encontrava na porta. Infelizmente ela perdera o espetáculo que era o herói se levantando. — Procurar por aí quem conheça uma loja em que vendam adultos — respondeu a menina. — Ah, espere só um pouco. É que ouvi rumores a respeito de um herói estar preso aqui, sabe? Capturado injustamente, é o que dizem. Ele só queria ajudar, porém suas ações foram incompreendidas. Como ia saber que poderia se configurar crime impedir os monstros de fazerem maldades? Isidora deu um passo em direção à cela, parecendo um pouco surpresa. Um herói?, sussurrou, as palavras enchendo sua boca enquanto cenas épicas se desenrolavam em sua mente. — Pregar adesivos antifumo naquele Saci-Pererê parecia uma ideia muito melhor do que cravar um machado nas suas costas — continuou o herói. Tap tap tap, e a boca de Isidora se abriu um pouco com a perspectiva de esbarrar em um adulto desse calibre por ali. 12
— Quanto à gangue de curupiras, não enxergo o problema em colar seus pés em calçados velhos com os cadarços amarrados, ao invés de bater neles com um porrete. Disseram que era vandalismo, uma afronta aos direitos das criaturas e tudo o mais — concluiu o homem. Isidora segurou as grades da cela. — Então há um herói aqui? O herói afirmou com a cabeça e estufou o peito. — Mas onde? Porque ele não me parece muito heroico — disse Isidora cutucando com o pé o bandido que dormia. — Além de estar bem sujo. Será algum tipo de armadura feita de craca, ou quem sabe uma espécie de truque para envenenar os oponentes? Algum poder especial, talvez, como controle sobre as pulgas ou a habilidade de bafejar pestilências? — Erhm, acredito que não seja ele o herói preso por aqui. A menina olhou ao redor. — Tirando ele, quem mais poderia... Você? O homenzarrão tentou parecer, ao mesmo tempo, descolado e envergonhado, o que é bastante difícil para alguém que precisava virar os ombros de lado para atravessar uma porta. — Se eu contasse pensaria que estava me gabando — disse ele. — Mas já que adivinhou, sou sim. E você? — Aposentei-me dessa coisa de heroísmo, só forneço consultoria agora. Chamo-me Isidora. — Bento Teodorico, encantado em conhecer a dama. Então o herói apanhou a enluvada mão de Isidora — que desaparecia em meio a sua — e deu-lhe em suas costas um cordial beijo digno dos mais ilustres cavalheiros. Ele era justamente esse tipo de pessoa, Bento. — Você mencionou perigos — disse ele. — Se você está com problemas, eu posso ter a solução. Isidora cerrou os olhos. — Suponho que os heróis são confiáveis — disse ela. — E está certa em pensar isso. Bento abaixou sua cabeça alguns andares, ficando no mesmo nível do rosto altivo de Isidora. — Pois bem, é melhor estar preparado — disse a menina. — Minha história não é para qualquer um. Após tomar fôlego, Isidora contou.
Quando iluminada, a biblioteca era apenas um lugar com muitos livros. Mas no escuro da calada da noite, com suas prateleiras rangendo enquanto algumas 13
obras sussurravam e outras tentavam fugir, a biblioteca poderia ser qualquer coisa que quisesse. No centro das trevas estava Isidora — uma Isidora mais jovem por uma margem de duas semanas, e por isso deve-se entender que era uma Isidora menor, como uma miniatura em escala. Embora possa parecer pouco, duas semanas para quem ainda não completou dez anos é tão significativo quanto o inverso. Todos os traços fortes da menina se encontravam presentes: os dentes de cima levemente empurrados para frente, com uma fenda entre os incisivos, o olhar radioativo, o queixo empertigado. Essa Isidora tinha um livro aberto sobre o colo e uma lanterna atrás da orelha. Em sua lombada o livro carregava o título O Sr. Tamanduá Explica Para as Crianças Os Maravilhosos Mistérios da Ciência Quântica. A leitura da menina era tão compenetrada que ela conseguia ignorar completamente os trovões que estouravam as nuvens no céu, por mais que esses se esforçassem em chamar atenção. Os relâmpagos que tinham coragem de perfurar a escuridão da biblioteca — apenas para se assustar em seguida frente ao celulósico sorriso dos livros — delineavam diversos objetos espalhados ao redor de Isidora: um tabuleiro de xadrez que possuía apenas cavalos (ela achava ridículo um jogo com bispos e associava peões àqueles homens esquisitos que montavam bois), um álbum de figurinhas de dinossauros (onde colava todas as figurinhas das embalagens de chocolate, mesmo que fossem repetidas, porque segundo a menina nunca se tem dinossauros o suficiente), um aquário oval pequeno, contendo um par de golfinhos em miniatura (vítimas de quaisquer brincadeiras que Isidora inventasse) e um belo estojo de canetas coloridas (mágicas). Um trovão especialmente sonoro retumbou. — Sabe — disse uma voz vinda das trevas — existe algo muito poderoso nesta biblioteca. Isidora olhou ao redor antes de responder: — Claro, eu. A voz hesitou. — Não, Isidora, estou falando dos livros. A silhueta de seu avô surgiu próxima a uma janela. O reflexo no vidro molhado borrava-se por conta das gotas de chuva, dificultando para 14
Isidora distinguir qual era sua expressão. No entanto, a maneira que arqueava os ombros com um quê de apreensão preocupou a menina. Pois Érico Boretti não era alguém que demonstrava inquietação facilmente. Muito pelo contrário, o avô de Isidora possuía a calma destilada dos homens sábios que aparentavam ter vivido o dobro do que sua idade sugeria sofrendo apenas metade das chagas do tempo. Isidora colocou o livro de lado e se aproximou do avô. — Sei que está pensando que fui eu quem bagunçou sua estufa. Mas não importa o que os criados-alados disseram pra você, as ferramentas já estavam todas reviradas quando cheguei. Acreditando que seria prudente, Isidora acrescentou: — E aquele vaso ia acabar se quebrando uma hora ou outra, mesmo que eu não o tivesse acertado com a bola, o que eu certamente não fiz. Um sorriso distante percorreu os lábios de Érico. Quando ele falou, sua voz carregava a apatia de um copo de leite morno. — Está tudo bem, minha criança. O avô se enchia de criatividade nessa coisa de apelidos carinhosos. Isidora já foi uma pitanguinha, o doce de baunilha, a florzinha ensolarada, o pudim amendoado e, embora fosse vergonhoso admitir, a titubilu do vovô. Ninguém mais poderia sequer sonhar em trata-la assim, mas Érico era da família e a família tinha direito a certas regalias. Ser chamada apenas de criança era um indício claro de que algo estava extraordinariamente errado. Isidora capengou com o peso do livro até a mesa e subiu sobre ela. — Qual é o problema, vovô? — perguntou. — Está precisando de algum conselho? Ele não falou de imediato. Em vez disso, respirou fundo mais de uma vez, como se escolhesse a forma mais suave de depositar no chão um fardo que carregava sobre as costas. Isidora seguiu o olhar do avô através da janela. Lá fora, no pomar encharcado, grupos de pequeninas criaturas cheias de pernas corriam pelo gramado apanhando maçãs derrubadas pela forte ventania da tempestade. Elas espirravam água para os lados ao rolarem os frutos até suas tocas. Quando se enfiavam nos buracos feitos no pé da árvore, às vezes entalavam a maçã, agitando desesperadamente as muitas perninhas na tentativa de forçar o fruto. — Preciso viajar — anunciou Érico, sobressaltando Isidora. — Uma longa viagem que estive postergando ao máximo de minha capacidade. Érico continuou encarando a mesma janela que a neta, mas a menina sentia que ambos enxergavam coisas completamente diferentes. — Uma viagem para onde? — perguntou ela. — Para muito longe daqui — e o braço do avô foi subindo, apontando para além da janela, além do pomar, além dos muros de pedra da mansão. — Tão longe que seria impossível me ver mesmo que acertasse a direção correta no 15
telescópio da torre. — Por que agora? Digo, daqui a alguns meses, quando eu completar dez anos, tenho certeza que mamãe e papai me deixarão viajar com o senhor. Então não precisarei de telescópios ou de histórias para acompanha-lo. Poderei estar presente, poderei ajudar a derrotar alguns vilões e terei as minhas próprias histórias para contar. Seu avô sempre ria de uma maneira peculiar. Era um riso livre de chacota, mas carregado de diversão. — A ideia muito me agrada. No entanto, disse-lhe que atrasei muito essa viagem... — Disse? — perguntou Isidora com descrença. — Sim. Contei-lhe que posterguei a viagem até que não conseguisse mais. Isidora coçou a nuca. — Postergar é atrasar? Imaginei que tinha algo a ver com trombar em um poste — disse ela. — De qualquer forma, minha criança — novamente, a forma com que fora chamada arranhou os ouvidos de Isidora. — Atrasei-me unicamente para ter o prazer de ver você crescer e se tornar essa grande senhorita. Mas agora não posso esperar mais tempo, pois o tempo já não espera mais por mim. Isidora balançou as pernas. — Será perigoso? — perguntou. — Lembra-se quando lhe contei a respeito do rajá de Istambul, que organizou uma competição de nado no Corno de Ouro? — O rajá foi engando por um mago que transformou a água em barro, prendendo os heróis no rio enquanto sequestrava a filha do governante — recitou Isidora. Érico sorriu. — Mas você escapou, pois antes surpreendera Obá ao vencer a pororoca, ganhando dela o dom de desafiar o lamaçal e as águas traiçoeiras. Assim voltou correndo para a cidade por terra firme e conseguiu parar o rapto bem a tempo e quebrou o cajado do mago, impedindo-o de escapar. O rajá arranjou para que ele fosse preso em uma lâmpada, obrigado a atender desejos até que toda sua magia se esgotasse — Isidora deu batidinhas na testa para se lembrar. — Então o rajá perguntou a você o que queria, imaginando que cobraria metade de seu governo ou a mão de sua filha, e se surpreendeu quando respondeu: já tenho tudo o que preciso, mas ficaria muito contente se pudesse levar uma ou duas dessas maravilhosas mudas de cedro-do-líbano. Daí o rajá ficou muito feliz e organizou uma grande festa em seu nome, e presenteou-lhe com o trio de árvores que estão no quintal, além de inventar um feriado no dia do seu aniversário. A menina respirou fundo para recuperar o fôlego. — O que essa história tem a ver com sua viagem? 16
— Perguntou-me sobre o perigo — disse Érico. — A viagem que farei será muito mais perigosa do que ter enfrentado aquele mago. Eu diria que muito mais perigosa do que qualquer outra que já fiz até hoje. — Mais perigosa que as Guerras Andinas? — Mais perigosa que as Guerras Andinas. No rosto do avô, o sorriso torceu-se em um sombrio monte de dentes e lábios. Ele odiava guerras, e não havia guerras que odiasse mais do que aquelas em que participou. — Como o perigo de uma viagem pode ser maior do que toda uma guerra? — perguntou Isidora. — O inimigo dessa vez é invisível e sempre estará a apenas um passo de saltar sobre mim — Isidora reparou que o avô se tornou subitamente muito cansado, murchando gradualmente frente aos pensamentos que transitavam em sua mente. Seu corpo retraiu-se como gelo numa frigideira quente e cada um de seus olhos fitava um desfile de horrores diferentes. A imagem enfraquecida foi empurrada para um canto quando Érico acariciou os cabelos despenteados da neta. — Você vai levar alguma coisa para se defender, vovô? — Apenas meu cérebro já basta. — Mas será uma viagem perigosa. — Sinto muito ter de concordar, Isidora. Porém, o meu cérebro também é perigoso. Você acredita que preciso de alguma espécie de arma além da que se encontra atrás dos meus olhos? — Sim — disse a neta. — Da arma que está em frente aos seus olhos. — Minha pequena valente guerreira — e por um bom tempo eles ficaram em silêncio: a menina porque sabia que o avô partiria sozinho, correndo riscos incalculáveis nas garras de monstros perversos e pessoas malignas; e Érico, por sua vez, mantinha-se quieto para que as palavras não traíssem seus verdadeiros sentimentos. — Quando o senhor viaja? — perguntou Isidora. — Tão logo eu deixe a biblioteca. Já preparei minhas malas. Foi estudando seu joelho que Isidora indagou: — Pode pelo menos me contar aonde vai? — Oh, mas é claro — e o avô desenhou um mapa no ar com o indicador enrugado. — Primeiro irei até a cidade mais próxima e de lá rumo à Salto. Buscarei um velho amigo chamado Caramuru. Somente ele possui a sabedoria para esclarecer minhas dúvidas e guiar meus passos. Érico ergueu o rosto de Isidora com o dedo em seu queixo. A menina viu a face do avô como se esculpida em uma rocha muito antiga, as marcas de rugas se espalhando por sua testa e por baixo dos seus olhos claros. Foi com seriedade absoluta que ele falou: 17
— Enquanto isso, você terá obrigações muito importantes. Prometa-me que ficará em casa, fingindo que respeita seu pai e sua mãe, dando a devida atenção à tia África e tomando conta do tio Eufrásio. Jure que alimentará as plantas do meu jardim e continuará mantendo os monstros sob rédeas curtas. E o mais importante de tudo, e digo isso com meu coração preocupado, prometa-me com todas as palavras e por tudo aquilo que mais preza que não tentará ir atrás de mim. Porque eu te conheço, Isidora. Jovem, com a cabeça cheia de aventuras, fábulas e histórias, querendo desvendar o mundo e colocá-lo no bolso! Fará tudo isso por mim? Isidora virou de costas para ele com os braços cruzados. — Talvez deva se apressar vovô, ou alguém pode acordar e fazer mais perguntas do que o senhor gostaria de responder. Érico suspirou — e Isidora poderia jurar que ouviu um riso abafado no fim do suspiro. — Sem promessas para um velho tolo, entendo. Ah, minha doce Isidora, fiel a si mesma frente a qualquer coisa, verdadeira a qualquer um, independente da razão. O avô lhe afagou a cabeça uma última vez. Depois, desapareceu.
A mansão Boretti situava-se a beira de um penhasco. Para chegar até ela seria necessário galgar a tortuosa estrada que ladeava os rochedos. As únicas companheiras durante a empreitada seriam as esquisitas aves que sobrevoavam aquela região, e a cerca, pichada com diversos nomes de pessoas corajosas que apostavam quem seria capaz de se aproximar mais daquele lugar aterrorizante. Por esses motivos o correio raramente chegava até lá, e a mansão Boretti poderia entrar em um livro de recordes por ser a única moradia no planeta que jamais fora incomodada por vendedores de quinquilharias durante a manhã de um dia de fim de semana. Tampouco os ladrões arriscaram visitar a mansão. Se o fizessem descobririam que o sistema de alarmes era tão bom que não só impediria que furtassem qualquer coisa, como também os enviariam de volta para casa em bonitos envelopes timbrados “aos cuidados de Algum Parente, com nossos pêsames”. Era difícil se olhar para a mansão Boretti e deixar de imaginar quem fora seu arquiteto. Provavelmente um profissional que gostava bastante de gárgulas — elas estavam em todos os lugares: nas calhas, nas quinas do telhado e enfiadas entre outros adornos acima do terceiro andar da mansão — e que sentia certo 18
prazer em adicionar colunas decoradas com carrancas onde fosse possível. Também apreciava cores em tonalidades góticas e detalhes que causavam arrepios nas pessoas. Em suma, um arquiteto que projetava casas onde as pessoas apenas habitariam depois de mortas. No entanto, se a mansão era tão bela e mórbida quanto um buquê de lavandas, a propriedade que a cercava só poderia ser descrita como exuberante. Em todas as direções se estendia um jardim de flores coloridas e variadas, pontuado aqui e ali com lagos suspensos e fontes — embora as estátuas meio-anjo meiogárgula que espirravam água pra cima fizessem isso de uma maneira um tanto depressiva. Estufas envidraçadas ocultavam orquidários capazes de manter um botânico entretido durante anos. Caminhos de pedra assentados na grama circundavam os dois parquinhos destinados às crianças, a lagoa que servia de residência a Besta Ululante, o apiário onde abelhas-democráticas criavam a si próprias sem a intervenção monárquica de uma rainha e os tanques de pedra, que eram quatro — dois para peixes cinzentos invisíveis sob o luar, um para a água-viva gigante que batizaram de Paulágua-Viva e outro tanque que, no passado, abrigou uma sereia dos rios salva da devastação do seu lar. À distância havia um bosque onde, durante o verão, as folhas se tingiam de um verde viçoso, enquanto no outono as árvores balançavam ao vento como um grande dente-de-leão dourado. Entre aquelas árvores, escondidos sob suas raízes ou pendurados sobre os galhos, diversas sociedades bem organizadas de criaturas mágicas evoluíam. Não seria encontrada tamanha variedade de espécies coexistindo dessa maneira em um raio de muitos quilômetros. O barulho de todos eles vivendo e curtindo a vida enchia o ar com sons animados e descontraídos e... No momento reina o silêncio sobre o bosque, toda forma de vida levemente consciente preocupada apenas e de maneira fervorosa em se esconder, se camuflar ou se proteger de algum modo. Pois o predador mais visceral da cadeia alimentar rondava a região furiosamente. Todos viram o que acontecia com alguém quando era lento demais para sair do caminho dessa fera. O exemplo foi dado pelo coelho capturado por ela e obrigado a usar um fraque e carregar um relógio durante uma brincadeira. O pobre animal jamais se recuperou completamente da experiência, passando a berrar constantemente que estava atrasado. As criaturas mágicas só se sentiam seguras quando Isidora deixava o bosque.
Isidora estava irritadíssima. 19
Duas semanas se arrastaram desde que Érico viajara, e durante todos esses dias a menina temeu pelo destino do avô. No passado, quando ele saia em viagem, mandava recados com regularidade para a família através de seus pomboscorreios. Mas mesmo passando duas noites em claro no pombal, esperando pacientemente no interior de uma tenda plástica, Isidora foi incapaz de interceptar qualquer mensagem de seu avô. Toda vez que o telefone tocava a menina corria para atendê-lo, apenas para se frustrar em seguida e descontar sua raiva em uma pobre operadora de telemarketing desavisada que precisaria de longas sessões de terapia no futuro. Todo esse silêncio só indicava com mais força que seu avô corria perigo, e agora Isidora estava decidida a fazer outras pessoas enxergarem que Érico precisava de ajuda. Primeiro tentou falar com Sofia, que além de ser psicóloga com um doutorado no exterior do país a respeito do interior das pessoas, também praticava o arriscado hobby de ser mãe. — Mamãe, o vovô Érico está em perigo! — Mnh. — Eu falo sério! — Isidora, estou trabalhando em um artigo. A menina pendurou o beiço e bateu o pé repetidas vezes, com diferentes graus de violência. No entanto, sabia por experiência própria que não adiantava. As psicólogas, ou talvez as mães, criaram anticorpos à birra infantil. — Seu avô está bem — disse Sofia. — Ele foi viajar, o que é perfeitamente normal para alguém que passou a vida toda em movimento. Ficar encostado em algum tipo de marasmo não é do seu feitio. — A viagem é uma aventura. Eu sei, porque vovô Érico me contou a respeito antes de sair. Ele estava assustado e tem um inimigo invisível que ninguém vai ver e... Sofia tirou os olhos do livro, revelando seu austero rosto materno. Era fácil perceber os traços que Isidora herdara dela: o queixo imponente que se projetava para cima; o cabelo cor de madeira, caído sobre os ombros, que parecia não ter decidido ainda se era uma boa ideia permanecer enrolado; e o nariz, num formato de saca-rolhas, capaz de tremer de uma maneira bem mais ameaçadora que o chocalho de uma cascavel. — Seu avô levou uma vida recheada de perigos — disse Sofia. — Só que esses dias acabaram com a chegada da aposentadoria. Sem mais aventuras, sem mais riscos. — Mas ele me disse... — Érico está velho, Isidora — e a voz da mãe soou metálica. — Se te contou que iria para uma grande aventura foi apenas para impressioná-la, e nada mais. 20
Acredito que seria insuportável para ele deixar de ser esse herói aos seus olhos. Eu mesma comprei as passagens para suas férias: um mês de descanso no Hotel Solemar, sendo que o maior risco que correrá lá é o de se intoxicar com filtro solar. Agora se acalme e vá fazer a lição de álgebra. — Vovô não mentiria para mim — afirmou Isidora, mais para si do que para a mãe. — A matemática também não, então trate de terminar suas tarefas. Erguendo novamente o livro, Sofia murmurou: — Além disso, um dia você aprenderá que as pessoas às vezes mentem para o bem dos que amam. As palavras da mãe ecoaram na mente de Isidora enquanto ela percorria sem rumo os corredores da mansão. Andava sem prestar atenção onde seus pés a levavam, um tipo de locomoção bastante comum a grandes pensadores e crianças. Topou com diversas estátuas no caminho, que reclamaram quanto à falta de educação destes jovens de hoje em dia. Isidora julgava inconcebível seu avô ter mentido aquela história para ela. Érico aparentava genuíno desespero enquanto contava, com os ombros caídos, os pormenores da viagem para a neta. Teria mentido apenas para que continuasse a admirá-lo? Ora, se fez isso, aí sim perderá meu respeito, pensou a menina. Mas esse pensamento doía, de qualquer forma. Ser enganada pelo avô era semelhante a ser traída por um braço ou perna. Sem se dar conta, chegara até o terceiro andar da mansão. Ali no corredor um criado-alado cuidava de seus assuntos mecânicos, polindo com habilidade matemática a moldura de dois grandes quadros (Persistência Noturna, com dedicatória a “alguém que conquistou o magnífico respeito do grande Salvador Dali”, assinado em punho pelo artista; e A Virgem das Ondas, um dos incontáveis retratos perdidos atribuídos a Da Vinci). O criado-alado avistou Isidora e trocou com ela um olhar enferrujado. Munido de muito cuidado o servo mecânico jogou o pano sobre o ombro abaulado, partindo para o outro lado do corredor emitindo bips alucinados. Sozinha, Isidora colou o ouvido na maciça porta envernizada do quarto do avô. Ouviu-se um clique. E um baque. Isidora se levantou massageando os cotovelos. Não previu que a porta estaria aberta. Nos gibis de detetive que lia, as portas sempre estavam trancadas quando o quarto continha Pistas. Encontrá-la destrancada foi um golpe poético. Enquanto o resto da mansão Boretti era impressionante, o quarto de Érico possuía uma simplicidade desconcertante. O chão era de tábuas nuas, muitas soltas e a maioria sustentando a vida de gerações pré-históricas de cupins. A cama poderia ter pertencido a um animal que gostava muito de manter as garras afiadas, enquanto o guarda-roupa tombava para o lado ameaçando cair sobre a mesa, essa, por sua vez, tão queimada e cheia de riscos feitos a faca que só seria 21
adequada a um bar de motoqueiros. A única coisa nova ali — além de Isidora — era a estante de aço instalada ao lado da grande janela redonda. Mesmo assim, os livros que ela suportava estavam em condições deploráveis. Bibliotecários sofreriam derrames só de imaginar pobres textos em situação igual a essa. Um vento frio entrou pelas frestas das paredes e desarrumou ainda mais os cabelos de Isidora. Ela esquadrinhou o ambiente roboticamente, remexendo em gavetas, bagunçando o conteúdo do guarda-roupa e procurando por baixo do colchão. A única coisa que encontrou foi uma meia particularmente suja onde um simpático casal de besouros decidiu acampar. Frustrada, sentou sobre a mesa com um retrato que encontrou em uma das gavetas seguro entre os dedos. A foto mostrava seu avô e Isidora abraçados a um terço do continental corpo de tia África. Passou o dedão pela foto. Olhou bem para ela. Esfregou-a novamente. — ! — exclamou, assustando toda uma colônia de aranhas. Com a calma de um esquadrão de bombas prestes a descobrir se o fio vermelho é de fato o certo, Isidora retirou o vidro do retrato e puxou a foto. Atrás dela havia duas passagens — uma de trem, outra de barco — e um bonito convite rosado, encabeçado por um pomposo selo onde se lia Hotel Solemar em letras azuladas. — ! — repetiu. Seu avô havia de fato mentido, mas não para Isidora. Utilizando esta dissimulação das férias, Érico despistara os pais da menina, de maneira que o deixassem em paz enquanto resolvia quaisquer assuntos perigosos que tinha a resolver. Mais do que isso, seu avô também poderia ter certeza que todos estariam protegidos na mansão enquanto ele se arriscava. Era realmente um homem nobre. Como pudera sequer duvidar dele? Embora agora estivesse munida de Pistas, Isidora achou melhor deixar a mãe para lá. Seria terrível se contasse a Sofia que o avô fingira uma falsa viagem. Conforme a mãe dissera antes as pessoas às vezes mentem para o bem dos que amam. O mais sensato seria falar com o tio Eufrásio, um verdadeiro especialista em mentiras. Todas as famílias possuem tios nos moldes do tio Eufrásio: homens criativos, inteligentes e preguiçosos, que descobriram cedo o que significava escambo, trambique e contrabando, sempre orbitando a margem da lei com seus esquemas para enriquecer rápido. Tentar corrigir um homem desses é tão simples quanto drenar todo o oceano com um canudinho furado. No entanto, tio Eufrásio era o único que entendia completamente Isidora, afinal, os dois tinham muito em comum, já que tanto ele quanto a menina viviam levando sermões ou sendo postos de castigo trancafiados em algum lugar. Con22
versar com o tio Eufrásio era o mais próximo que Isidora chegava de conversar com outra pessoa de idade mental semelhante a sua. O quarto dele situava-se no primeiro andar da mansão, no corredor onde todas as tábuas rangiam, logo acima do jardim, de maneira que a janela permanecia parelha a uma frondosa árvore cheia de galhos emergenciais. Isidora colou o ouvido na porta após bater. Os barulhos que vinham do outro lado subitamente silenciaram, bem como a voz conspiratória que seguia seu monólogo. Ouviu-se o arrastar de alguns móveis e o som de papel sendo enrolado. Só então tio Eufrásio abriu a porta. Depois olhou para baixo e viu Isidora. — Sobrinha! — e sua voz soava como ufa, é só você. — Titio, preciso de ajuda. — Que coincidência, que coincidência. Tio Eufrásio se abaixou até estar a dois palmos do ouvido da menina. Sussurrou: — Caso algum homem uniformizado venha até aqui perguntando a meu respeito, diga-lhe que viajei para um lugar bem distante, sim? A negócios. Estritamente legais, não se esqueça de frisar. Faça aquela sua cara de poucos amigos caso ele comece a perguntar muito, por favor? — Esta? Isidora fez a cara. — S-sim, essa mesmo, agora pare — pediu o tio massageando o peito. — Conte comigo, titio. — Boa menina, boa menina — ele colocou uma mão no ombro dela, o que era o mais próximo de um abraço que se podia extrair de Isidora. — Se me abençoassem com outras duas sobrinhas como você teríamos uma quadrilha e tanto! Isidora cerrou os olhos. — Quadrilha? — repetiu ela. — Como aquelas de festas juninas? Foi a vez de o tio cerrar os olhos. Então abriu um sorriso rasgado, como se entendesse um trocadilho astuto. — Festa junina! Há há há. Você é demais, sem dúvida. Ela não é demais, rapazes? Os rapazes acenaram a cabeça afirmativamente da escrivaninha 23
em que se encontravam sentados, segurando cartas de baralho como manequins de alguma loja de jogos. Os rapazes eram três, mas havia testosterona suficiente neles para dividir entre quatro homens. Se músculos fossem capazes de falar os deles cantariam ópera. O tipo de convivência que o tio Eufrásio tinha com os rapazes era mutualista. Os rapazes tinham a língua petrificada, ao passo que o tio de Isidora poderia roubar as calças de uma pessoa usando apenas metade do alfabeto — a metade mais sem graça, ainda. Talvez ele possuísse um pouco de magia correndo no sangue, assim como a mãe de Isidora e tia África, irmã de sua mãe. Era engraçado ouvir as duas falando do irmão. Geralmente usavam algum adjetivo dispensado a televisores quebrados quando se referiam a ele, como imprestável ou inútil. Em dias mais alegres, se limitavam a dizer que tio Eufrásio era apenas um bom jovem parasita que ladeava o Mau Caminho — o que para Isidora era perfeitamente compreensível, visto que o Mau Caminho era muito melhor sinalizado que o Bom Caminho. — O que gostaria de me pedir, sobrinha predileta? — perguntou tio Eufrásio, correndo o dedo indicador pelo fino bigode que ele provavelmente furtara de algum cavalheiro francês. — Vovô desapareceu. Sei que falará que ele tirou férias — adiantou Isidora —, mas antes de sair me contou coisas terríveis. Tenho provas que vovô está em risco e... — Não duvido nada que tenha. O velho pai-do-meu-cunhado se envolveu com chumbo bem grosso no passado — disse tio Eufrásio. — Sei disso, mas... Espera um pouco, acredita em mim? — Claro que acredito. Vamos, me conte mais: de que tipo de perigo estamos falando, exatamente? — Do tipo perigoso. Antes de sair, vovô me disse que essa seria a mais temível aventura em que embarcaria. Isidora pensou se deveria mencionar o tal inimigo invisível, mas acreditou que alarmar o tio Eufrásio com coisas que não podiam ser vistas apenas o desanimaria, em vez de incitá-lo a partir rumo à aventura. — Essas palavras soam como vindo de alguém que está em maus lençóis e precisa de muita ajuda — tio Eufrásio coçou o queixo. — Imagino que queira encontra-lo, não é? — Sim! — E os seus pais não lhe deram ouvidos? — Não! — Então decidiu recorrer ao seu mais incrível tio? — Sim! — Seria um ótimo momento juntos, eu, você, os rapazes, não acha? — Não! Quer dizer, sim! Olha, você me ajudaria? 24
— Minha sobrinha preferida? Aquela que aponta os melhores locais para se esconder, e despista todos aqueles fiscais incapazes de reconhecer um artefatolegalizado-não-contrabandeado mesmo quando esse morde suas canelas — embora a culpa desse incidente não tenha sido minha (nem minha, nem minha, nem minha, disseram os rapazes)? Está brincando, não existe nada que me peça com esse rostinho... Ah, esse rostinho extremamente bem expressivo! Nada que me peça com esse rostinho extremamente bem expressivo que eu não vá fazer com um largo sorriso congelado de pavor no rosto. — Finalmente alguém disposto a me ouvir! — Isidora cedeu uma rara demonstração de afeto ao tio, na forma de um tapinha fraternal em seu joelho. — Temos de ajuda-lo, titio. Aposto que eu, você e os rapazes, naquele seu carro conversível preto, seremos um páreo duro pra qualquer maldade que tente encostar seus tentáculos espinhosos no nosso vovô... No andar de baixo, precisamente na porta de entrada da mansão, duas pancadas pesadas indicaram visitas. O flap flap das asinhas de um criado-alado foi ouvido, então o ranger da porta. — Boa ta... — a voz grossa hesitou. — Oh, um servo mecânico. Outra voz, tão autoritária quanto à primeira, comentou: — Considerando os tipos que os ricaços contratam como mordomos, fico tranquilo em ver que esse é só uma máquina. Bem estranha, por sinal. Tipo, o que é isto? — Uma gravata? — Não, isto. Para que ele está usando? — O avental? Bem, acho que é para não sujar a gravata. Afinal, é uma gravata de muito bom gosto. Ele nos entende? Gravata maneira. — Você não precisa falar devagar, a cachola dessa coisa é muito mais rápida que a nossa — e com um pigarro, a voz acrescentou: — Precisamos falar com os responsáveis da casa, temos um mandado para vasculhar a propriedade... Tio Eufrásio possuía sonares biológicos para palavras como mandado e vasculhar. Ele começou a mexer os braços como se fosse levantar voo, sinalizando o andar de baixo para os rapazes. — Os tiras! — ganiu tio Eufrásio. — Se arrumem, precisamos dar o fora daqui. Pelos fundos! — então se virou para Isidora enquanto vestia um casaco. — Sinto muito, mas tenho de resolver assuntos urgentes, ah, no outro lado da fronteira. Realmente adoraria ajudar, e me ver incapaz traz grande peso ao meu coração. Não deveria ser um peso assim tão grande, visto a velocidade com que o tio Eufrásio arrumou uma mala com os instrumentos necessários para qualquer charlatão — roupas limpas, óculos escuros, perfume e um livrinho de frases prontas. Com a eficiência habitual, os rapazes esquadrinhavam as redondezas através da janela, já vestidos com chapéu e paletó. — Antes que eu me esqueça — disse tio Eufrásio, em seguida remexeu os 25
bolsos e puxou um embrulho surrado. — Comprei para seu aniversário, mas acho improvável estar por perto nos próximos meses. Feliz aniversário. Adiantado. Ah, e se perguntarem, não fui eu quem lhe deu isso. Isidora foi rapidamente abraçada — uma mão no ombro, outra na testa, e uma distância respeitosa de meio metro — pelo tio Eufrásio, que meteu-lhe o embrulho nas mãos. Logo em seguida, ele e os rapazes já estavam saltando pela janela. — Se cuida, minha sobrinha predileta — disse o tio, antes de escorregar pelo batente. — E boa sorte. Estática no vão da porta, Isidora imaginou se seria prudente ter lembrado ao tio que a mansão fora construída num penhasco, portanto a saída dos fundos incluía uma série de exercícios radicais. Em vez de fazer alarde sobre algo que o tio logo descobriria, a menina esquivou-se tanto dos policiais quanto de sua mãe, que subiam aos berros atrás de Eufrásio. Segura em seu quarto, desembrulhou o presente. Um objeto dourado e brilhante, no mesmo formato e tamanho de uma pinha, rolou para o colo da menina. Em uma das extremidades havia um pino. Na outra, um bilhete. Após traduzir os garranchos do tio Eufrásio, Isidora leu: “Minha cara inestimável querida sobrinha, sei que ao completar nove oito dez anos de idade entrará em uma nova etapa de sua vida. Toda uma década se estenderá a sua frente. Era meu desejo lhe presentear com coisas brinquedos novos, móveis novos e um quarto novo, mas como você sabe o tio é pobre embora elegante. Por isso, estou lhe dando essa bombinha. Use-a no seu quarto e o seguro imobiliário lhe dará brinquedos novos, móveis novos e um quarto novo. Com afeto e medo, Eufrásio. PS.: Corra bastante após puxar o pino.” Admirou o presente por algum tempo e tratou de escondê-lo em seguida, visto que os pais de Isidora possuíam uma regra muito clara quanto a aparatos explosivos nas mãozinhas da filha. E a regra era “nunca”. Ao pensar nos pais, a menina lembrou-se que havia apenas uma última esperança: o homem chamado Gregório, um físico e inventor cujo coração era tomado por três amores — sua filha Isidora, sua esposa Sofia e sua coleção de motocicletas. Ao ser questionado quais dentre os três itens eram os dois mais importantes em sua vida, o pai de Isidora prontamente se punha a gargalhar freneticamente e gaguejar. Nesses casos, respondia é óbvio quais são, e em seguida todos riam e se davam pancadinhas nos ombros e tragavam seus charutos. No entanto, Gregório torturava-se com a pergunta ao se enfurnar na garagem, tentando decidir se tinha mais afeto pela filha ou pela esposa. Foi na garagem que Isidora o encontrou, debruçado sobre uma antiquada moto que comprara de um colecionador e agora restaurava. Isidora nunca com26
preendeu totalmente a linha de raciocínio do pai em relação ao seu passatempo. Ele comprava motos velhas pagando caríssimo exatamente por serem velhas e depois as reformava para que ficassem iguais as motos novas. Não sabia que tipo de doença era essa, mas esperava que não fosse nada genético. — Papai, papai! O físico foi girado por Isidora, que passou por ele em alta velocidade. — Ei, o que você está fazendo? Gregório quase foi derrubado quando Isidora jogou a jaqueta de couro sobre seus ombros, encaixando o capacete de motociclista ao contrário na cabeça do pai. Enquanto tentava recuperar o fôlego, o físico ouviu a porta da garagem sendo aberta. — I-isi... — Temos de ser mais rápidos, papai! Os monstros já podem ter pegado o vovô e comido os sapatos dele! Tentando remover o capacete que lhe impedia de ver, Gregório sentiu algo se aninhando à sua frente, na moto. Então o ronco estrondoso do motor encheu a garagem, fazendo o físico passar do estado de confusão letárgica para o de pânico absoluto, com direito a um rápido pit stop na aflição completa. Ouviu-se o engate de uma marcha. Depois o som de uma mão pequena girando o acelerador. Ouviu-se o cantar de pneus, seguido do rugido raivoso de cento e cinquenta cavalos presos em um motor e lutando para escapar. — Isidooooooooooooooooooora.
Pararam a moto antes que ela atingisse a cidade. Para isso foram necessárias duas viaturas, nove policiais, um mago e a ajuda de todo Corpo de Bombeiros — que, em uma cidade pequena, geralmente não chega a ser um Corpo propriamente dito, estando mais para algo como Tronco de Bombeiros. As pessoas envolvidas na ação respiraram tão aliviadas quanto os sobreviventes de uma catástrofe, satisfeitas após terem impedido que setecentos quilos de metal viajando a cento e setenta quilômetros por hora invadissem o perímetro urbano de uma cidade cujo padrão máximo de agitação era um espetáculo de circo. Depois do atendimento local recomendaram a Sofia que levasse o marido ao hospital, pois ele balbuciava palavras ininteligíveis e saudava todas as árvores e postes que encontrava pela rua. Os médicos garantiram que as sequelas não seriam permanentes. Foi prometido à Isidora um castigo. 27
Um castigo terrível.
A palavra castigo ganha significados inteiramente novos quando seus pais entendem um pouquinho de magia. Por isso, quando Isidora foi arrastada para o quarto pela mão férrea de Sofia, soube que estava prestes a receber uma punição indesejada. A mulher dizia: — Você poderia ter se acidentado, machucado a si mesma e ao seu pai ou uma pessoa qualquer na rua. Agora ele está lá, com uma enorme enxaqueca e dores nas mãos por conta do nervoso. Dirigindo sem autorização! Quem te ensinou isso, por acaso é o tipo de educação que recebemos nessa casa? Foi o Eufrásio, não foi? Enchendo sua cabeça de caraminholas, aquele traste! Enquanto a mãe fazia um paralelo na bronca para discursar a respeito do completo mau exemplo que Eufrásio era, Isidora pensou que a ideia tinha lá seus defeitos, afinal. No entanto, admitiu em seu íntimo que o arrependimento seria mais amargo se deixasse de tentar. Acreditara que o pai pegaria no tranco com essa súbita injeção de energia. Sofia estava tão brava que de nada adiantou o berreiro da filha. A mãe não freou sua marcha nem quando Isidora se agarrou aos móveis, depois ao corrimão da escada, em seguida a um criado-alado — que, em pânico, acionou sua rotina de auto-desligamento — e, por fim, ao batente da porta do seu quarto. Sofia rebocava a menina sem dó, esbravejando os termos do castigo imposto a ela: — Sem televisão, sem biblioteca, sem passeios no bosque, sem brincadeiras com os monstros, sem sala de música, sem telescópio, sem telefone, sem patinar no celeiro... Conforme sua mãe continuava a interminável lista, os itens proibidos desapareciam. Quando disse que Isidora ficaria sem televisão, plim, o aparelho do quarto da menina simplesmente sumiu — e ela bem sabia que todos os outros que ela poderia acessar também haviam ido embora. O bosque encolheu (zuóim) até ficar do tamanho de um vaso, quando Sofia proibiu-a de andar nele; 28
e a biblioteca, plaft!, se tornou um cartão-postal pregado na parede; os telefones viraram aparelhos de código Morse e os monstros foram coagidos a voltarem aos locais inomináveis que habitam. Tudo isso acompanhado pela sonoplastia de baixo orçamento característica da magia. Satisfeita, Sofia cruzou os braços. — Agora fique aqui pensando bem nos seus atos. Ainda teremos uma séria conversa a respeito de limites. Então sua mãe saiu, batendo a porta daquela maneira profissional que apenas as mães conhecem como fazer. — Eu não converso sobre o que não acredito! — berrou Isidora de volta, após calcular que a mãe já estava fora do alcance da sua voz. Deitada em sua cama, de cabeça para baixo, Isidora atirava uma bolinha de borracha na parede do quarto. — Todo mundo é — a menina pensou com força em uma palavra que sintetizasse tudo aquilo que os adultos representavam para ela — bobo. Só quero ir atrás do vovô, salvá-lo dos perigos, me aventurar em meio aos índios e aos espanhóis, nomear uma montanha como Monte Isidora e descobrir o fóssil de um dinossauro gigante. Sua fértil imaginação concebeu um réptil enorme, cheio de dentes, com asas nas costas e lançadores de mísseis nos ombros. — Isidorossauros borettilys. Eu seria nomeada presidenta se conseguisse algo assim, daí faria o que bem entendesse sem que ninguém se intrometesse. A porta do quarto se abriu e com grande cautela um criado-alado entrou carregando uma bandeja. O servo mecânico manteve as duas lâmpadas que tinha como olhos voltadas para Isidora o tempo todo, pois, ao contrário do que se pensa, diversas máquinas possuem receios e temores. O criado-alado soltou a bandeja sobre a cômoda de Isidora e dardejou para fora batendo as asinhas freneticamente. A menina nem reagiu. Em dias mais animados saltaria sobre o robô ou tentaria apanhá-lo com uma rede de caçar borboletas. No entanto, a vontade de fazer algo assim simplesmente minguou. Não hoje, duas semanas após o sumiço do avô, catorze dias enfatuados comprimidos em um punhado de horas descoloridas. Ela poderia fechar os olhos e dormir ali mesmo. Dormiria por anos. E nesse tempo envelheceria tanto que quando se levantasse seria tão adulta quanto seus pais, e iria para uma escola esquecendo totalmente do seu avô. Andaria sempre atrasada e jamais ouviria os mais jovens. Com a mão mole, Isidora atirou a bola para o outro lado do quarto, atingindo a casa de bonecas que Érico havia montado. Diversos gnomos pequenos e barbados que se encontravam presos ali há tempos aproveitaram a chance para fugir, rasgando os vestidos que a menina obrigara-os a usar. — Isso mesmo, me abandonem como todos os outros estão abandonando 29
vovô. O sangue se acumulava em sua cabeça produzindo uma anestésica sensação de tontura. Embora se envergonhasse em admitir, a menina achou aquela zonzeira boa. Assim esquecia-se do avô, que com certeza a essa altura escalava picos escarpados, solitário, fugindo de uma figura invisível de contornos aterrorizantes. Com a boca aberta, Isidora girou a cabeça e os braços diversas vezes, envolvendo cada vez mais seu cérebro num líquido pastoso que a impedia de pensar em certas coisas. Como por exemplo no avô caído na beirada de um precipício, abraçado aos joelhos, enquanto uma coisa feita de asas e caudas vinha flutuando em sua direção. Isidora dobrou mais o pescoço, vendo pontinhos coloridos brilharem na frente dos olhos, e seu avô mergulhava num oceano escuro, rodeado de seres meio-peixe meio-mãe que o colocavam de castigo e o impediam de ver televisão. Isidora piscou várias vezes para multiplicar as luzinhas que via, mas a imagem de Érico ferido e acuado em um beco cresceu além de seus olhos e tomou toda sua mente. A menina fez um movimento mais expansivo, estendendo os braços para os lados e balançando a cabeça com força. Então, com a lentidão dos planetas, escorregou pelo edredom em direção ao piso. Ouviu-se um ploft. Isidora passou os dedinhos pela nuca e sentiu um galo se formando. As luzinhas que via na frente dos seus olhos se apagaram subitamente, substituídas por uma dor latejante que ardia por trás deles. Muitas crianças chorariam e gritariam pelos pais. Outras ficariam sentadas, em silêncio, com os olhinhos marejados e os soluços engolidos. Um terceiro tipo se encheria de raiva, apanhando uma tesoura e picotando completamente a coberta responsável pela queda. No entanto, a menina não teve nenhuma reação infantil dessas, em partes porque não se considerava criança, em partes porque quando Isidora caía tudo que Isidora fazia era se levantar. Por isso ela se colocou de pé sem dizer palavra, bateu o pó metafórico das roupas e se olhou no espelho gigantesco afixado ao lado da lareira. O reflexo mostrava uma menininha de cabelos embaraçados e rosto obstinado. Os punhos cerrados. Olhos que fariam ursos sapatearem. Joelhos ralados e ossudos. Separados esses pedaços tinham tanto sentido quanto uma bazuca desmontada. Juntos, os efeitos eram devastadores. — Vovô está em perigo. Isidora abriu o guarda-roupa e puxou sua elegante mala de viagem. Colocou-a abaixo das gavetas de roupas e começou a esvaziá-las sem realizar escolhas. Em seguida avançou para divisão de acessórios que tinha no móvel, jogando tudo que encontrava para dentro da mala. 30
— Sei que ele está encrencado. Escancarou seu baú de brinquedos. Apanhou o estilingue, o Kit de Primeiros Socorros da Boneca Kelly Miranda, um dicionário e o jogo de ferramentas do jovem mecânico. Depois, por via das dúvidas, despejou todo resto na mala. — Só eu posso salvá-lo. A mala foi fechada com um clique. Afastando os cabelos do rosto suado, Isidora colocou o chapéu sobre a cabeça e desfilou dramaticamente até a porta. Virou-se quando colocou a mão sobre a maçaneta, atirando um olhar cheio de sentimento para seu quarto. — Não esperem por mim — disse, para ninguém em especial —, pois quando voltar será impossível me reconhecer. Depois se aprumou e girou a maçaneta.
Plantada frente à porta do seu quarto, Isidora arriscou girar a maçaneta mais uma vez, apenas para ouvi-la dizer: — Sua mãe trancou a porta e me enfeitiçou. Que garotinha levada você deve ter sido! Os dentes da menina rangeram conforme ela extravasava a raiva. Em seguida dirigiu-se até a janela. O quarto de Isidora ficava no segundo andar da mansão Boretti. Mesmo que conseguisse saltar para uma das árvores próximas, a descida seria complicada pela ventania e por galhos nada amistosos. Poderia ser dona de uma bravura indomável, mas isso não a tornava estúpida e nem lhe garantia imunidade a quedas. Estava prestes a ficar muito zangada quando viu um pássaro espalhafatoso e colorido descendo dos céus, rasgando o ar com a graça de um ralador de queijo. A ave voava em direção à mansão, e só quando ela estava bem próxima que Isidora reconheceu-a: Tornepé, o pássaro-mascote de sua tia África. — Ei, Tornepé! — berrou a menina. — Venha já aqui se não quiser virar frango frito! O pássaro planou até perto de sua janela, sem se preocupar em manter uma distância segura de Isidora, pois, como bem sabia, não existia nenhuma distância segura o suficiente quando se tratava de Isidora. Tornepé era dono de um corpo semelhante a um guarda-sol fechado. Suas penas iam do vermelho-berrante até um tipo de azul-bebê-chorando capaz de causar espasmos em pessoas sensíveis a mudanças bruscas de cor. No futuro, quando toda sua espécie entrar em extinção, amostras empalhadas da família de Tornepé serão dispostas em museus na seção Arte Moderna. Dentre suas poucas qualidades existe uma que merece nota: a capacidade admirável de voar para trás, fazendo inveja a diversos daqueles convencidos 31
beija-flores que dardejam por aí na marcha ré. O mérito de Tornepé em realizar a manobra é ainda maior, pois enquanto os beija-flores chegam da fábrica da natureza já equipados com a vantagem desse aerodinamismo aprimorado, o pássaro carnavalesco teve de treinar com afinco para dominá-lo. E tudo por culpa de Isidora, pois perto dela ou se desenvolvia uma maneira de esquivar para todos os lados, ou não se viveria outro dia para amargurar o arrependimento. — Izizdora — grasnou ele. — Escuta aqui, preciso de ajuda. Você vai me obedecer. Não era uma pergunta, tampouco parecia haver opções. — I-izizdora? — Palerma, claro que não vou tentar montar em você de novo se já sei que não presta pra me carregar. Preciso que me traga a vassoura do quarto de tia África, e preciso agora. A ave bateu as asas pensativamente. Estava julgando se deveria ter mais medo de África, que era uma bruxa e poderia muito bem transformá-lo em alguma criatura abominável, como um humano; ou de Isidora, que certa vez o enfiou dentro de um terno e usou-o como garçom numa festa de bonecas. — Covarde, tia África foi pra uma reunião lá nas Europas, a barra está limpa. É só entrar no quarto dela e apanhar a vassoura. — Izizdora. — Vai logo! Movido pelo medo — o combustível das máquinas de teletransporte — Tornepé mergulhou por uma das janelas da mansão, emergindo em seguida com aquela coisa segura entre as garras. Muitas décadas se passaram desde a última vez que tia África usou uma vassoura para voar, e mesmo naquela época ela escolhia os veículos segundo os mesmos padrões de alguém que gostaria de adquirir um iate. Por isso, a vassoura que Tornepé esforçava-se para trazer poderia ser confundida com uma porção de coisas, como por exemplo o cruzamento entre um ônibus espacial e um daqueles aparelhos que possuem Quarenta e Cinco Mil Funções e Nenhuma Utilidade, geralmente vendidos em suspeitos canais de televisão. Era cheia de penduricalhos tecnológicos, que iam desde um bom som estéreo até um arrojado frigobar. Isidora nunca se interessou em pegar o chamado jeito da vassoura, mesmo após a insistência de sua mãe beirar o suborno. Havia sim uma graça toda especial em voar: a liberdade do vento no cabelo; a sensação eufórica de poder ir para qualquer lugar; o mundo todo a seus pés, etc. No entanto, vassouras eram associadas às bruxas, e isso não agradava em nada Isidora, que para assombro familiar tinha outros planos de carreira. Afinal, toda a família de sua mãe acreditava que bruxaria era a única profis32
são respeitável para uma dama Boretti. Era algo tão hereditário quanto dívidas federais. Todas as mulheres da família tinham algum envolvimento com magia — sua avó e tia África eram bruxas das antigas, do tipo que enfeitiça pessoas e engarrafa sentimentos — ou engarrafa pessoas e enfeitiça sentimentos — ou personaliza sentimentos e enfeitiça engarrafamentos; sua mãe, sendo psicóloga, era uma bruxa moderna, usando a magia para arrancar aquilo que se escondia dentro de seus pacientes, e Isidora conhecia a história de diversas primas que enveredavam pelos caminhos sabáticos das mais criativas formas. Tia África tentou ensinar-lhe o ofício aos poucos, acreditando que poderia despertar o interesse de Isidora se mostrasse o quão útil e divertida a magia poderia ser. Levou a sobrinha para um grande número de encontros entre bruxas, ao redor de fogueiras ou em salas cheias de cadeiras plásticas, onde senhoras de idade discutiam as vantagens de usarem caldeirões em vez de fornos para o preparo de certas poções. Ao perceber que tudo que Isidora gostava nos encontros era a parte em que serviam o lanchinho, tia África partiu para uma abordagem diferente. Nos dias seguintes a menina foi bombardeada com diversos panfletos de escolas especializadas no ensino de magia para aqueles que possuíam certa inclinação ao assunto. Geralmente eram instituições pequenas que avaliavam bem os candidatos, bradando selecionar apenas os melhores. Sendo uma Boretti, Isidora era automaticamente a melhor, mas Tia África achava que o simples desafio estimularia Isidora, e ficou novamente desapontada quando se deu conta que a sobrinha continuava a demonstrar completo descaso com o arcano. Como última opção, resolveu questionar Isidora. A menina contraiu os ombros e respondeu, com sinceridade: — Não quero ser bruxa. Levou algum tempo para que tia África processasse a ideia. Então indagou perplexa a sobrinha: — O que pretende ser quando crescer? E depois de muito pensar, Isidora respondeu: — Sei lá, astronauta?
O vento que soprava dos rochedos úmidos eriçava os pelos de dois animais compridos. Estavam deitados sobre um quadrado de grama a alguns metros da mansão Boretti fazendo tudo àquilo que os mamíferos gostam de fazer em dias ensolarados. Ou seja, nada. Foi o que mantinha a barriga para cima que avistou primeiro o esquisito 33
objeto voador. Observou-o por alguns segundos até ter certeza, então cutucou o companheiro nas costelas. — Veja só — apontou. A segunda criatura cortou seu bocejo no meio do caminho, encarando o trambolho que flutuava precariamente. De repente, se colocou em pé. — Meu deus, aquela menina abominável agora voa! E nos calendários de todas as coisas vivas que habitavam a propriedade da mansão Boretti este foi o dia em que o Apocalipse Começou.
Sem demonstrar qualquer emoção, Isidora guiou a vassoura até a janela da tia África. Pretendia devolver o veículo, pois sabia que era extrema falta de tato surrupiar um objeto de uma bruxa. Manobrar a vassoura pela janela foi um desafio e tanto. Isidora bateu duas vezes as cerdas endurecidas na parede e quando finalmente conseguiu atravessála o fez rápido demais, fincando o cabo no tapete empoeirado e rolando por cima dele. Exalando dignidade, a menina se colocou em pé como se nada tivesse acontecido. Localizou Tornepé sobre um armário, empoleirado em sua gaiola feita de corais. Ele parecia completamente apavorado, então a menina cedeu-lhe um tranquilizador sinal de aprovação com a cabeça. Isidora se abaixou, apanhou a vassoura e a encostou em uma parede, que subitamente se mexeu. A menina observou o fenômeno como um alpinista indefeso frente ao despertar de um vulcão. Aquela grande massa envolta na cor cinza não era uma parede, como Isidora imaginou a princípio, mas sim sua tia África. Ali, curvada sobre uma escrivaninha cheia de velas bruxuleantes, ela se entregava a algum trabalho mágico de inominável mistério. — Titia, pensei que estivesse em Veneza — disse Isidora, a guisa de desculpas. Em seu habitat natural, tia África respirou profundamente. Como muitas tias, África havia descoberto que a existência apenas seria monótona se ela assim quisesse. Pode-se dizer que enquanto as pessoas normais passam pelos rios da vida tentando de alguma forma evitar as pedras e, ainda assim, deixar uma espécie de marco, gente como a tia África descia as cataratas da existência em um barril, socando tudo quanto é pedra, berrando muito alto e cantando uma música tipo O Mago Caipira Tinha uma Galinha enquanto gira uma peça de roupa por cima da cabeça. Sobre a tia Isidora sabia duas coisas: ela partia, em média, um coração por 34
semana — ou pelo menos foi isso que a menina ouviu certa vez, embora o significado exato dessas palavras escapasse de seus conhecimentos cardiológicos —, tendo diversos homens aos seus pés (mais uma vez um mistério indecifrável para Isidora, já que a tia sempre aparentava ter apenas sapatos aos seus pés); além disso, sabia que tia África detestava completamente a vida doméstica, de maneira que ia e vinha quando bem entendia, mudando-se constantemente para casas de amigos ou parentes quer eles quisessem ou não. A colossal mulher moveu-se até ficar completamente visível para a sobrinha. Hoje a tia prendia os cabelos num coque tão firme que nele poderiam atracar navios, o que significava que ela deveria estar trabalhando em alguma poção. Todo cuidado era pouco quando se mexia com magia, afinal, o bruxo apressado termina colado no teto e nas paredes. Contra o que todos poderiam acreditar, as unhas esmaltadas da bruxa estavam perfeitamente cortadas, a pele tão limpa quanto um comercial de pasta de dente e a armação triangular dos óculos que quase sumiam em seu rosto largo não era feita de ossos. O tempo correu mais lentamente no momento que ela abriu a boca para falar: — Ora menina, sente-se. — Não era uma oferta. — Tivemos um problema com o aluguel do retroprojetor, portanto a reunião foi cancelada. A voz de tia África estapeava o rosto de quem a ouvisse. Isidora já havia se acostumado a limpar a testa depois que ela falava. — Que pena — disse a menina. — De qualquer forma, estou só de passagem. Considere-se beijada na bochecha. Isidora agarrou a mala e caminhou em direção à porta. Ou pelo menos tentou, pois apesar de seus pés se moverem o corpo não avançava. Ela olhou para baixo. Estava flutuando alguns centímetros acima do tapete. — Pensando melhor, titia, acho que posso sentar um bocadinho. Isidora sentiu o chão sob os pés novamente e se jogou num pufe, que gemeu. Tia África girou, por magia, sua enorme poltrona para que ela e a sobrinha ficassem frente a frente. — Você está tentando fugir de casa — disparou tia África, com a mesma delicadeza de um destroier abrindo fogo contra um barquinho de papel. A menina fechou a cara. Sentia-se desconfortável quando alguém da sua árvore genealógica — que, metaforicamente, era uma sequoia — usava magia para ler sua mente. — Não gosto que vasculhem minha cabeça com feitiçaria — resmungou. — Eu poderia fazer isso, já que sou uma bruxa. Usar da enxada mental para arar os campos da 35
sua mente seria tão simples quanto identificar nos seus olhos o que pretende fazer. Pois não é necessário magia alguma para deduzir que está tentando escapulir. Sua mala a delata. Eu mesma saí muito pela janela quando jovem e sei bem o que isso significa. Isidora nem conseguia imaginar como era a época em que tia África foi mais nova. Naqueles dias as janelas precisavam ser bem reforçadas para repelir o ataque de mastodontes, provavelmente. — Talvez fosse mesmo meu plano dar uma fugidinha rápida de casa — admitiu a menina. — Se essa fosse minha intenção, a senhora tentaria me impedir? Tia África riu uma gargalhada que possuía a mesma força de impacto que um meteorito. — Te impedir? Quando saí de casa tinha apenas um pouco mais de idade do que você, Isidora. Havia decidido tudo o que queria para mim e parti em busca do meu destino, como é o certo a se fazer. — Isso quer dizer que posso ir? — indagou a menina. — Oras, mas é claro que não. As duas ficaram em silêncio. Tia África, com muita calma, depositou uma colher de madeira em seu caldeirão fumegante e revirou o conteúdo gosmento que gorgolejava ali. Algo muito parecido com um olho de vez em quando aflorava a superfície alaranjada do caldo, mas a bruxa afundava o troço com a colher rapidamente. — Não entendi — disse Isidora. — É simples — explicou tia África —, prezo muito a liberdade de escolha de todas as pessoas e as estimulo a tomarem suas próprias decisões, mesmo que sejam profundamente arriscadas, muito bem. — Então qual o problema? — Vontade é inútil sem força. Uma vez que tenha decidido o que quer, precisa me provar que é capaz de conseguir. Um bico enorme formou-se nos lábios de Isidora. Ela era boa nisso. Um diplomata que aprendesse a técnica por trás desses bicos poderia usá-los para dominar o mundo. — Tá, eu provo — disse ela. — Provo o que quiser. Não tenho medo de nada. Posso fazer qualquer coisa. — Minhas dúvidas estão mais em seus métodos do que em sua determinação. Por exemplo, me diga uma coisa: como pretende ajudar Érico quando encontralo? A menina piscou bruscamente. Em nenhum momento dissera à tia o que planejava, então a bruxa provavelmente havia escorregado entre seus pensamentos. Enrugando completamente a testa, Isidora forçou seu cérebro a se fechar como uma ostra. — Bem, sei que vovô é conhecido por todo mundo, porque ele foi famoso, 36
uma cebelidrade querida. Assim todos sabem bastante a respeito dele, da maneira como ele age, da forma como pensa. Isidora balançou-se para frente e para trás. — No meu caso, desconheço o mundo e o mundo não me conhece. Tenho o elemento surpresa que vovô não tem. É assim que vou ajuda-lo — concluiu. Era difícil saber se a lógica de Isidora agradava o suficiente a tia África. A mulher permaneceu indiferente enquanto cozinhava sua poção alaranjada, encarando o líquido atentamente. — E como irá enfrentar todos os problemas que aparecerão em seu caminho? — perguntou. — Um de cada vez — respondeu Isidora sem pestanejar. Tia África fitou-a dos cachos até os sapatos. Muitos reis pereceriam sob o peso desse olhar. — Preciso confessar algo, Isidora — disse a bruxa. — Desde o momento que Érico lançou-se a essa aventura eu soube que você o seguiria. Isso não me foi dito pela bola de cristal ou por qualquer consulta ao futuro. Simplesmente tive a consciência que a viagem do seu avô era, na verdade, o início da sua viagem. “Em geral essa sensação não me surpreenderia, pois sei que todos caminhamos, de uma forma ou de outra, nas trilhas que nossos antepassados desbravaram. É natural que o próximo passo seja continuação do anterior. Mas minha premonição alertou-me que o seu destino seria ainda mais complexo. Você teria a possibilidade de percorrer o caminho para trás e pavimenta-lo no lugar onde Érico falhou.” Isidora disfarçou um bocejo de tédio com algumas tossidas. Sabia que tia África tinha a mania de filosofar de uma maneira mística sempre que conseguia uma oportunidade, e a menina desenvolveu o costume de interromper a parenta com pedidos vigorosos e sem aviso, como “explode aquilo ali tia!” ou “transforma o criado-alado num esquilo!”. Mas como hoje sua chance de escapar dependia do bom humor da tia, Isidora se manteve em silêncio enquanto África debruçava-se sobre sua poltrona, movendo algumas placas tectônicas no processo. — Isso faz da próxima pergunta a mais importante de todas. Responda-me com toda a sinceridade do seu coração: é isso mesmo o que você quer? Isidora fixou em sua tia aqueles olhos que pareciam brocas. — Sim — disse. — Pois bem. A bruxa ergueu as mãos para o ar, elevando os dedos em complexos movimentos diagonais. Um cheiro de folhas molhadas se espalhou pelo aposento, e Isidora sentiu-se cercada pela pressão do trabalho mágico. O caldeirão atirou colunas borbulhantes para cima, como se um gigante muito furioso assoprasse um canudo dentro de uma bacia. 37
— Jamais poderia impedi-la, Isidora, porque a sua determinação gera a fé e a fé é o pilar central da magia. Se existe algo que não cabe a ninguém desafiar é a própria magia. Ela age pelas pessoas enquanto as pessoas agem por meio dela. Tia África mergulhou a mão direita na coluna alaranjada e fumegante. Retirou-a com uma massa disforme a escorrer por entre os dedos. Isidora esperou. — Existem criaturas mais antigas e esquivas do que homens ou monstros. — Tia África assoprou o objeto, que brilhou por uma mísera fração de segundo. — Muitos destes possuem um débito para com nossa família. Esse em especial irá protegê-la, pois será muito perigoso ir sozinha de encontro ao seu destino. Tia África passou com solenidade o artefato à menina. Era definitivamente felpudo, obviamente macio e terrivelmente fofo. — Uma morsa de pelúcia! — surpreendeu-se Isidora. Embora o bicho tivesse todo um charme, amplificado pelo bigode frondoso de onde brotava um par de presas esbranquiçadas, dificilmente parecia capaz de defender a menina de algo mais perigo do que uma noite de pesadelos. Mesmo assim era prudente agradecer: — Muito obrigada, tia África. Você sabe que é minha tia com nome de continente predileta, não é? A gigantesca mulher se aproximou de Isidora causando um pequeno eclipse doméstico. A menina tragou o caríssimo perfume de África juntamente com suas palavras: — Apenas lembre-se disso: você encontrará adversidades e obstáculos, inimigos e companheiros, estradas tortuosas e recantos pacíficos. Por vezes, sua coragem e determinação serão testadas, assim como sua força de vontade e seu caráter. Esse não será um caminho fácil, e as adversidades ganharão novas formas a cada dia e crescerão em seu coração. Isidora segurou a morsa de pelúcia em uma das mãos e a mala na outra. — E não é isso que chamam de vida, titia?
O silêncio reinou imponente sobre Bento e Isidora. Após narrar sua jornada, a menina apoiou a morsa de pelúcia sobre o colo e brincou com suas nadadeiras, dizendo coisas como “onde está a criatura antiga que irá fulminar meus inimigos?”, e em seguida, abrindo as nadadeiras do animal e revelando sua carranca, “achou”. Por sua vez, o herói digeria lentamente tudo que ouvira. É claro que estava familiarizado com o nome Boretti. Todo herói que se preze já cruzou com histórias sobre essa família. Desconhecê-la era o mesmo que ser um dobrador de balões e nunca ter ouvido falar do Magnífico Palhaço Rançoso — que certa vez, 38
enquanto estava entediado, fez uma escultura de balões baseado na sua esposa e passou a viver com ela ao invés da original sem que ninguém, inclusive seus filhos, notasse a diferença. O último grande expoente da família Boretti fora Érico Boretti, considerado o maior herói do último século. Bento leu diversos ensaios acadêmicos escritos por ele, artigos interessantes que exploravam aspectos incomuns para a sociedade heroica dos dias de hoje. Como altruísmo, por exemplo. E ali, a sua frente, sentada sobre uma mala e brincando com um bichinho de pelúcia estava a neta de Érico Boretti. Que segredos familiares ela havia aprendido? Será que o avô ensinara a Isidora aquele mítico golpe inventado por ele, tão poderoso que ao ser aplicado atinge o inimigo no passado? Ou talvez tenha lhe contado a história verdadeira por trás das Guerras Andinas, e revelado a neta o destino da cidade de Jericoacoara e suas insuperáveis riquezas? Isidora surpreendeu o olhar bobo que Bento fixou nela e ergueu as sobrancelhas. — Que foi? — perguntou rispidamente. — Só estou pensando o que a trouxe até a cadeia. Dentre todas as outras possibilidades, como acabou parando aqui? — Eu teria ido diretamente ao encontro do vovô, se não tivessem criado tanto caso. É que tentei comprar uma passagem de trem, mas me disseram que eu precisava de um adulto comigo. Fui alugar um carro, mas me disseram que eu precisava de um adulto comigo. Até os taxistas me disseram que eu precisava de um adulto comigo, embora eu não saiba o porquê disso — contou Isidora. — Talvez você não tenha dinheiro — sugeriu o herói. A menina direcionou a ele aquele olhar gélido de uma criança que ganhou meias no aniversário. Era tão frio que chegou a queimar as retinas do herói. — É claro que eu tenho dinheiro. Veja — e abriu a maleta, retirando um bolo de notas presas com um elástico. Bento as apanhou. Examinou as notas com cuidado. — Onde você conseguiu essas cédulas? — perguntou ele. — No Banco. Isidora puxou uma caixa retangular de dentro da mala. Nela estava escrito Banco, ao lado direito da palavra Jogo e esquerdo de Imobiliário. — Acho que compreendi o problema — Bento devolveu as notas. — Então veio até a delegacia atrás de ajuda. A menina afirmou com a cabeça. — Sempre que confundiam meu tio Eufrásio com algum criminoso (o que, pensando bem, acontecia muitas vezes), mamãe ia até a delegacia pagar uns trocados por ele. Então pensei, tenho uns trocados, preciso de um adulto, para onde irei? Ela suspirou. 39
— É uma pena que não vendam adultos aqui, como acreditei que fizessem. Detesto quando meu amplo intelecto superior dá uma mancada dessas. Mas e você, herói? Por acaso não está do lado errado das grades? Desconfortável, Bento se apoiou no chão com o cotovelo. — Na verdade sou inocente. O outro criminoso que se encontrava na prisão, ainda babando nas grades, riu em seu sono. Esse fenômeno foi um espasmo metafísico, visto que sempre que alguém em qualquer prisão do universo anuncia que é na realidade inocente, todos os outros presos rapidamente ecoam um risinho esganado enquanto os guardas empurram o autor da frase cela adentro. — Parece que os policiais acham o contrário — disse Isidora. — Não seria a primeira vez que estão errados. O caso é que fui preso por uma ideia. — Isso é lógico. Todo mundo é preso por causa de uma ideia. Os assassinos são presos porque tem a ideia de assassinar, os ladrões porque tem a ideia de ladrar, os banqueiros porque tem a ideia de fazer greve, o tio Eufrásio porque tem ideias, e assim por diante. Bento passou a mão pelos cabelos. Conversar com uma criança era um conceito totalmente novo para ele. — Você está certa, sim — e Isidora resmungou é claro que estou. — O que quis dizer é que fui preso por uma ideia não criminosa. Antes que a menina pudesse interrompê-lo, Bento explicou: — Cresci em uma academia que me treinou para ser exatamente aquilo que os monstros mais temem. Por muito tempo eu os persegui, os intimidei e, às vezes, os combati até que um de nós não aguentasse mais ficar em pé. Mas chega um determinado ponto em que você se questiona — ou pelo menos, eu me questionei — qual era o motivo disso tudo. Quer dizer, percebi que os heróis e os monstros se enfrentam há séculos, como se isso fosse uma tradição. “E como continuarmos a praticar uma tradição que se sustenta apenas pela violência? Quer dizer, ninguém sabe onde a rixa começou. É certo que existem monstros perigosos no mundo, desses que não passam de animais grandes e brutais vivendo em cavernas isoladas, mas a esmagadora maioria dos monstros é inteligente o suficiente para, você sabe, serem tão civilizados quanto uma pessoa comum. Para mim é um completo atestado de ignorância utilizar a força como principal recurso contra eles, uma vez que poderíamos estar raciocinando juntos em busca de um futuro benéfico tanto aos homens quanto aos monstros. Quem sabe até possamos descobrir que, na verdade, os monstros querem o mesmo que nós. Talvez pudéssemos nos 40
ajudar.” Os olhos de Bento brilhavam ao observar algo maravilhoso que apenas ele via, em sua cabeça, enfiado em seus sonhos. — Até aí tudo bem — disse Isidora. — Nenhum crime praticado. Qual foi o problema? A visão magnífica desapareceu da mente de Bento, sendo massacrada a pauladas pela realidade. — Veja bem, para os heróis é vital que os monstros existam e sejam monstruosos — disse ele. — Sem isso, seriamos apenas pessoas comuns com alguns conhecimentos atléticos e ótimo manejo de armas, mas ainda assim comuns. E para os monstros... O herói suspirou, como se uma criança muito malvada tivesse chutado seu castelinho de areia. — Para os monstros esse tipo de pensamento é uma afronta aos seus direitos. Em especial ao direito de serem livres, e com isso praticarem a maldade. Ficaram particularmente irritados com as minhas tentativas de comunicação. Por isso, passei a impedi-los de fazerem coisas ruins, como os exemplos que lhe dei — o saci, aqueles curupiras, e tal. Aparei o cabelo de medusas, brinquei de cabra-cega com mulas-sem-cabeça e golpeei boitatás com extintores de incêndio. “Eles não ficaram nada contentes com isso”. Perdido em pensamentos, Bento riscou o chão com a unha. — Aí os monstros contrataram advogados, já que esses estão mesmo muito acostumados a tratar com monstros. E os heróis ficaram particularmente alarmados quando os jovens passaram a me dar apoio. Mas os jovens apoiam qualquer coisa, contanto que seja contrária a lei vigente — suspirou. — Então a Associação de Heróis acionou seus próprios advogados. E cá estou eu, processado pelos dois grupos que tentei ajudar. Isidora observou Bento com um olhar mais incisivo que diversos aparelhos de raios-X. Por trás daqueles redondos olhos de cachorro abandonado que o herói carregava no rosto, a menina pode ver uma mente afiada e, principalmente, diferenciada. Afinal, ela não se importava tanto assim com aquele papo de monstros — para Isidora, monstro ou homem, todos deveriam se dobrar frente a suas vontades e isso era a única coisa que realmente importava. O que chamou sua atenção foi que Bento abriu-se para ela sem julgá-la previamente como criança. Ele lhe deu atenção pelo que a menina era e não porque queria se livrar dela. Se existia um adulto minimamente adequado para ajuda-la, seria esse. — Tenho uma proposta para você — disse Isidora. Bento livrou-se dos pensamentos nublados e ergueu o rosto. — Que tipo de proposta? — Meu avô foi um grande herói. Duvido que as pessoas te atirassem numa cela se estivesse ao lado dele. Portanto, minha oferta é bem simples: você me 41
ajuda em minha viagem, sendo o adulto que eu vou precisar e, em troca, posso prometer que meu avô irá ajuda-lo. Bento pensou por um tempo. — Ele faria isso? — perguntou. — Para o homem que auxiliou sua neta meu avô seria incapaz de negar qualquer coisa. Bento pensou por mais um tempo. — Tem certeza? — perguntou. — Sim. O herói pensou ainda por mais tempo. — Puxa. Quer dizer, seu avô é o meu ídolo. Estou sem palavras. — Com ou sem palavras, precisa dizer se aceita ou não. Pode só mexer a cabeça para os lados ou pra cima e pra baixo que eu irei entender. Prestes a aceitar, Bento pensou mais um pouquinho. Encontrou um problema que estava bem na sua frente. Bateu nas grades. — O problema é que eu estou meio preso, sabe? Isidora deu de ombros. — Isto é facilmente resolvido, sair da cadeia é moleza, segundo o tio Eufrásio. Você já tem advogado? — Na realidade, não. — Pois bem, eu serei sua advogada. Seria difícil levar a sério qualquer criança que dissesse tal coisa, mas a obstinação de Isidora ardia em uma chama que queimava toda e qualquer incerteza. Bento até tentou duvidar da menina, sem sucesso. — Bem, você precisará de certas coisas se pretende me defender no tribunal — o herói listou-as. — Um certificado de advocacia assinado por um representante do próprio tribunal, assinaturas dos jurados indicando que a aceitam para defender minha causa, e acho que os advogados possuem a obrigação de se vestir a rigor. — Certificado, assinaturas e disfarce. Posso conseguir tudo isso, fácil. Isidora cuspiu em sua mão e a estendeu em direção a Bento. — Temos um trato? — indagou. Muito tempo depois, Bento imaginaria o que aconteceria se, naquele fatídico dia, tivesse simplesmente se encolhido no fundo de sua cela e tirado uma boa soneca. Uma coisa era certa: sua vida teria sido muito mais simples, provavelmente recheada de trabalhos comunitários que reduziriam sua pena até que fosse solto e se colocasse a praticar novamente o heroísmo convencional. Talvez sua vida tivesse sido, inclusive, mais saudável. 42
Mas nesse exato momento, com a mão de Isidora pairando cheia de saliva próxima a sua cela, o herói só pensava em uma coisa: o que podia perder depois de ter perdido tudo o que podia? — Certamente — e após cuspir em sua própria mão apertou a de Isidora.
O tribunal da cidade ficava anexo a Câmara dos Vereadores, na ala leste do edifício esbranquiçado de estilo colonial que cobria toda uma esquina. As paredes internas haviam sido pintadas de um tom azul escolar que automaticamente fazia as pessoas pensarem em dever de casa. O carpete preto era exorcizado pela fumegante luz do sol de verão, já que nessa estação abriam-se todas as janelas do prédio na esperança que os móveis antigos perdessem um pouco aquele cheiro característico de madeira úmida. Mesmo para aqueles não tenham feito nada de errado, ou, pelo menos, nada de errado que alguém tenha descoberto, um tribunal inspira o incômodo. O desconforto das pessoas era aparente. Também era aparente o enorme número delas ali: gente que se espremia em gente na tentativa de observar o espetáculo que ia acontecer lá na frente. A expectativa se apresentava no rosto de cada um dos espectadores, pois a última vez que alguém foi julgado na cidade ainda se aplicava a pena das chibatadas (que durou pouquíssimo na região e fez ainda menos sucesso, uma vez que o carrasco era um sujeitinho simpático que concordava em errar a maioria dos golpes). Para muitos jovens aquela poderia ser a primeira oportunidade de assistir o Longo Braço da Lei castigando um criminoso. Havia uma boa parcela de desconforto também entre os jurados, funcionários da Prefeitura e dos Correios que já se arrependiam em ter assumido essa incumbência. Não valia a pena ganhar um dia de folga se você fosse interpelado na rua por uma menina medonha balançando furiosamente um papel na frente dos seus olhos exigindo assinaturas. Não valia a pena mesmo. Por sua vez, o Juiz demonstrava a calma e serenidade esperada de alguém nessa posição. Ele passava a mão, sonhador, sobre o martelo de madeira que descansava no púlpito. Antes que o homem que vendia pipoca conseguisse chegar até as pessoas mais próximas ao tablado central, um rapazinho de terno entrou por uma porta lateral e começou a fazer diversos anúncios. Os dois primeiros foram só uma baboseira sobre como proceder em caso de incêndio e como as mentiras ficavam do lado de fora, e ali dentro reinaria a verdade somente a verdade e nada mais que a verdade. Foi na terceira vez que ele falou, após limpar a garganta, que todos se aprumaram em seus lugares e passaram a ouvir com verdadeiro interesse. Eis o que 43
ele disse: — A corte está em sessão, todos de pé — e a única pessoa que estava sentada, no caso, o Juiz, virou para o rapaz indagando com os olhos se deveria ou não se levantar. — Hoje nos reunimos em solenidade para o julgamento do herói chamado Bento Teodorico, doravante referido como réu, que responde pelas acusações de, mas não somente de: a-dois-pontos denegrição da liberdade de monstros e-bê-dois pontos, ridicularização do estatuto dos heróis e dos bons costumes locais. Duas pessoas aplaudiram e uma tocou um apito, sendo rapidamente removidos do julgamento por policiais estrategicamente posicionados. Outra porta lateral se abriu e Bento adentrou o tribunal ladeado por dois guardas que tinham metade do seu tamanho. De forma inconsciente a mente do herói registrou que poderia derrubar ambos com um único movimento, retirar as chaves das algemas presas no cinto deles, saltar pela janela aberta e, uma vez na rua, esquivar-se pelo capô de alguns carros até encontrar um veículo estacionado em que pudesse fazer ligação direta, fugindo dali de maneira heroica. Talvez até tivesse feito tudo isso se a curiosidade pelo desenrolar do julgamento não fosse tão grande. Receber a defensoria de uma advogada que tinha a altura do seu joelho com certeza seria, no mínimo, interessante. Bento foi guiado até uma mesa, sentando-se em um desconfortável banco de madeira. — Que entre a defesa — anunciou o rapaz. As portas atrás da plateia se abriram dramaticamente e se fecharam com um estalo retumbante. Com tanta curiosidade quanto Bento, as pessoas se viraram para observar quem seria o advogado de defesa. Não enxergaram ninguém, embora ouvissem o estalo de passos que pisavam forte. Finalmente, um dos espectadores experimentou olhar para baixo e identificou o advogado de Bento passando em meio às pernas das pessoas. — Merenguíssimo — disse a figura. — Socorro! — berrou o delegado Oliveira, de algum lugar da plateia. Então a advogada sentou ao lado de Bento, apenas o topo de sua nuca visível acima do encosto da cadeira. Um dos membros do júri se virou para o companheiro. — Você viu o que eu vi? — Sim. Parece que estão se formando cada vez mais jovens, não é? — Não é disso que estou falando. É da morsa. Ela está segurando uma, ou estou enganado? O Juiz se recompôs. — Ahem. Vamos dar início à sessão. — Ele bateu o martelo em seu púlpito. — A defesa gostaria de começar? — Não! — berrou Isidora, mais alto do que o necessário. — Tudo que a defesa gostaria é de ganhar. 44
Ela já havia assistido a diversos filmes com julgamentos na televisão e, pelo que conseguira entender, o procedimento deles era igual a qualquer outra discussão entre crianças — quem gritava mais alto vencia —, só que no fim o perdedor acabava sendo enviado à cadeia. Confuso, o Juiz olhou ao redor buscando ajuda. — Tudo bem. — Disse ele, juntando as mãos em uma capelinha feita de dedos. — A acusação então, por favor. O advogado dos heróis — que por acaso também advogava para os monstros — era um rapaz elegante, bem apessoado, que tinha aquele dom nato de oratória. Ele sabia apontar o dedo para a direção certa, além de usar todas as palavras-chaves que um bom acusador deveria saber utilizar. Era um mestre e quando acabou sua preleção inicial até mesmo Bento se perguntava se de fato não merecia ser punido. — A defesa tem algo a dizer? Isidora surgiu novamente, escorregando da cadeira para o tablado central. Os olhinhos faiscantes da menina correram entre os jurados, o advogado de defesa e o Juiz como estática. Alguns deles sentiram uma vontade súbita de sair correndo. — Na verdade, não. Meu cliente é culpado — ela disse. — No entanto, será um desperdício enviar um homem desse calibre para a prisão, quando seus préstimos são necessários em outro lugar. Deixe-me explicar-lhes... Isidora contou-lhes sobre uma menina (“Pobrezinha!”, exclamou o júri) que precisava da guarda de um herói para empreender uma viagem em busca de seu avô (eles engoliram em seco quando Isidora contou os sofrimentos que o senhor poderia estar passando, sendo que dois rapazes de estômago mais sensível encaminharam-se para o pronto-socorro). Quando ambos fossem reunidos, menininha e avozinho, então Bento se tornaria livre de suas dívidas para com a lei, quitadas todas aquelas ações hediondas que praticou ao tentar ser bom. Os jurados votaram cheios de emoção. Vários jornalistas tiraram fotos que estampariam os jornais na manhã seguinte. (Na mansão Boretti, na manhã seguinte, tanto Gregório quanto Sofia olhariam espantados para a foto da filha, disfarçada de advogada, na primeira página do jornal local. Então os pais se perguntariam como ela estava em dois lugares ao mesmo tempo, já que dormia pacificamente em seu quarto após ter sido colocada de castigo, e iriam checar como Isidora estava. É possível se imaginar o que aconteceu quando entraram no quarto da filha.) O advogado da acusação apertou a mão de Isidora e pediu alguns conselhos. Bento, mesmo depois que todos saíram, após terem dito para ele tratar muito bem a inocente e frágil mocinha, continuou plantado em sua cadeira. — O que exatamente aconteceu? — perguntou, aturdido. 45
— Os peguei de surpresa contando a verdade. Jamais poderiam esperar uma estratégia dessas em um tribunal — Isidora abriu um sorriso largo, que desapareceu quase que em seguida. — Agora vamos, temos uma longa e perigosa viagem pela frente. Ela saltou da cadeira, apanhou sua mala e começou a sair do edifício, com Bento em seus calcanhares. — Para onde? — perguntou o herói. Quando respondeu, os olhos de Isidora eram rubis flamejantes cintilando em um deserto escaldante. — Em direção a um glorioso destino — disse ela. — Isso fica geograficamente perto da onde? — Vovô falou sobre Caramuru, em Salto. Bento gemeu. — Você o conhece? — indagou a menina. — Infelizmente, sim. Você já ouviu falar da beleza desmedida de suas filhas e das tolas tentativas de diversos rapazes em, erhm, sequestra-las?
E bem ao longe dali uma bruxa corpulenta, com uma ave de cores espalhafatosas encarrapitada em seu ombro, observava o herói e a menina através de sua bola de cristal. — Izizdora? Tia África suspirou. — Sua ave estúpida, minha preocupação não é pela segurança dela, mas sim do resto do mundo.
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Sobre o ilustrador Com mais de 20 anos de experiência no mercado editorial, Vagner Vargas é um ilustrador apaixonado por ficção científica e fantasia. Atualmente trabalha em parceria com a Devir Editora, assinando as capas de obras do Selo Pulsar e do Selo Quymera, enquanto divide o tempo em seus projetos de arte pessoal. E-mail: arte@vagnervargas.com.br Facebook: vagnervargas Site: www.vagnervargas.com.br/
Sobre o autor Leitor dedicado há mais de 16 anos, Victor Vargas já contava histórias antes mesmo de saber ler, o que ocorreu bem cedo. Hoje, alimenta o desejo de se tornar um escritor profissional. E-mail: victor@aquart.com.br Facebook: victorfvargas
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