02 Fractura: rumo a um paradigma novo na forma de ensino e aprendizado
65 construção da destruição. ruben ferreira alves
pedro providência 66 papel de parede. 07 editorial. 13 fractura mediada: wittgenstein e o «exemplo» de fontaine de duchamp.
vicente santos 67 capismo. rui silva
luís santiago batista 72 fotomontagem. 23 para além das ontologias fracturantes: espaço,
josé diogo borges
meditação e reencantamento. antónio carvalho
73 a cor do núcleo urbano histórico de coimbra. pedro providência
33 identidade, continuidades e descontinuidades da cultura urbana portuguesa, séculos xviii-xx. manuel teixeira 45 livros de artista.
79 fractura. álvaro domingues 86 obituário.
isabel baraona
ricardo castro
51 reconstructing the italian script
91 entrevista.
revealed in arte de escribir por reglas y con muestras. dino dos santos
96 cita. rúben correia
58 uma escola de música. soledad jimenez
99 um novo banco. inês lima rodrigues, com fotografias de
60 adega. joel cabral
beatriz esperança, carlos caetano, diana soares, frederico castanheira, joão cruz, josé diogo borges, meggy da silva e ruben alves.
64 meggy. fotografia de carlos caetano
Fractura: rumo a um paradigma novo na forma de ensino e aprendizado
novas formações e que estejam certificadas na licenciatura e no mestrado integrado. Atendendo à vasta oferta de cursos de arquitectura e design, em instituições de ensino público e privado, é importante promover medidas que respondam aos interesses profissionais e às restrições económicas dos alunos, tendo em conta, designadamente, os requisitos de avaliação das instituições do ensino superior da A3ES e DGES. Neste contexto, de forma a tornar a EUAC mais competitiva e consequentemente apresentando-se como uma alternativa consistente, afigura-se-nos importante reflectir sobre alguns pontos, a saber:
Pedro Providência, Director
1. Ensino: Cursos livres, Especializações e Pós-graduações: A Escola Universitária das Artes de Coimbra (EUAC) foi
Os “cursos livres” correspondem a unidades curriculares
criada em 1989, tendo surgido a par da Escola de Artes de
que podem ser administrados a alunos e formandos. Os
Coimbra (ECA), ambas integradas na Associação Recrea-
participantes obterão a respectiva acreditação em ECTS,
tiva de Coimbra Artística (ARCA), a qual fora fundada em
por cada curso livre, que poderão ser utilizados posterior-
1971. A EUAC está a ser objecto de profunda reestrutura-
mente na conclusão da licenciatura da EUAC em Arquite-
ção. A estrutura dos cursos do ensino superior, arquitec-
tura, Design e, oportunamente, em Belas Artes, quando a
tura e design, está a ser revista, de acordo com os novos
reestruturação do curso estiver devidamente certificada, à
paradigmas da educação e do mercado de trabalho. Analo-
luz do enquadramento legal do processo de Bolonha. Aos
gamente, alguns dos princípios que estiveram na génese
cursos livres propostos em desenho, plástica, fotografia,
da ARCA, como a oferta de Cursos Livres Artísticos, estão
técnicas de impressão e tecnologias aplicadas, entre ou-
a ser recuperados. Assim, a formação na EUAC congrega
tros, corresponderão dois níveis: básico e avançado, per-
a tecnologia com a arte, proporcionando aos seus alunos/
mitindo perfazer um total de créditos com equivalência
formandos um contacto com as principais disciplinas das
ao ano zero, de acordo com a área científica. O ano zero
artes, nomeadamente desenho, pintura, escultura, cerâmi-
possibilita, aos formandos que não preencham os requisi-
ca, fotografia, video, técnicas de impressão (tipografia, se-
tos obrigatórios para se candidatarem à universidade, no-
rigrafia, offset, etc.), e, simultaneamente, com a indústria.
meadamente por ainda não terem completado o 12º ano
A EUAC, para além da licenciatura em Design de Comu-
ou que ainda não realizaram as provas específicas e de
nicação e o Mestrado Integrado em Arquitectura, tem em
aptidão com aproveitamento, a frequência nas unidades
preparação uma oferta formativa variada, nomeadamen-
curriculares, num contexto de cursos livres, do primeiro
te Cursos Livres, Especializações e Pós-graduações. Esta
ano do curso de arquitectua e design. Assim, após a veri-
oferta formativa está articulada com a licenciatura e o
ficação dos requisitos, poderão inscrever-se no respectivo
mestrado integrado supra referenciados e contemplará o
curso e obter as equivalências às unidades curriculares
respectivo diploma. O diploma mencionará a certificação
que tenham programa idêntico e os mesmos ECTS que
em ECTS (EUROPEAN CREDIT TRANSFER SYSTEM) das
os cursos livres que frequentaram.As “Especializações”
unidades curriculares que constem nos programas destas
podem ser combinações de unidades curriculares do pri-
05
meiro e segundo ciclo, licenciatura e mestrado integrado
são realizados exercícios práticos que embora exequíveis
respectivamente, como também de unidades curricula-
correspondem a projectos simulados. A EUAC, em alter-
res que não integrem os planos de estudos dos cursos da
nativa, desenvolveu protocolos de parcerias com diversas
EUAC. As “Pós-graduações”, à semelhança do que sucede
instituições, designadamente autarquias, e a indústria, no
com as especializações, são formações com várias unida-
sentido de proporcionar aos alunos programas de pro-
des curriculares, as quais podem corresponder a unidades
jectos reais, que aquelas instituições tenham em carteira.
curriculares creditadas nos cursos da EUAC ou pertence-
Deste modo, os alunos passariam a desenvolver projectos
rem a outras instituições de ensino. No caso em que as es-
reais, o que constituiria um estímulo para os estudantes.
pecializações tenham uma unidade curricular creditada
Por outro lado, esta interacção da EUAC com estas insti-
nesta escola universitária, os alunos/formandos no final
tuições permite divulgar o trabalho dos alunos, partici-
do curso obtêm um diploma que contemple os respecti-
pando, deste modo, na sua inserção no mercado de tra-
vos créditos. As pós-graduações podem corresponder ao
balho. No que respeita aos protocolos com a indústria, o
primeiro ano do segundo ciclo (mestrado) dos cursos da
contacto do aluno com o meio empresarial permite uma
EUAC, sendo que, neste caso, o aluno/formando realizan-
aprendizagem transversal, eficaz e pragmática. Por outro
do com aproveitamento a pós-graduação e prova final
lado, este contacto empresarial poderia criar oportunida-
desta escola, obterá o grau de mestre.
des aos alunos de realização de estágios.
2. Rácio de docente/discente nas unidades curriculares
A EUAC apresenta-se, assim, como uma alternativa de en-
teórico-práticas. A EUAC apresenta-se competitiva por
sino, aberta aos novos desafios da vida profissional e edu-
possuir um rácio de docentes/alunos bastante apelativo
cativa, congregando a arte com a indústria, dispondo de
em confronto com o existente, em geral, nas outras insti-
modernas instalações, adequadas à prática da investiga-
tuições de ensino superior.
ção e do ensino das artes, com um corpo docente especializado. Neste número da revista Baú, o primeiro, são apre-
3. Horários pós-laborais. Existem muitos estudantes que
sentados trabalhos científicos e académicos, bem como
são trabalhadores. O estatuto de trabalhador estudan-
uma entrevista que sugerem as linhas de orientação da
te permite que estes alunos não tenham que assistir ao
publicação que nos propomos lançar. O tema é a fractura,
número mínimo de aulas obrigatórias, nomeadamente
i.e. a mudança, rumo a um paradigma novo na forma de
das unidades curriculares teórico-práticas. Contudo, esta
ensino e aprendizado da EUAC, tendo em consideração
possibilidade “penaliza” o estudante que acaba por não
as perspectivas actuais e futuras da vida profissional dos
usufruir destas aulas. A EUAC é sensível a esta questão,
arquitectos, designers e de todos aqueles que recorrem às
pelo que tem previsto o ensino pós-laboral, não só para
disciplinas das Belas Artes para se realizarem pessoal ou
os cursos livres, especializações e pós-graduações, como
profissionalmente.
também, para o 1º ciclo (licenciaturas) e 2º ciclo (mestrado). 4. Laboratório de projecto. Em algumas unidades curriculares, nomeadamente projecto, dos cursos de arquitectura e design do ensino universitário publico e privado,
06
Editorial
Maria Rita Pais Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.1
Fractura é, aqui em José Saramago, um motivo
imaginário de ruptura múltipla: a fractura geográfica como motivação física de corte, mas igualmente fractura com o tempo, com a história, com a política, com a cultura e com a língua. No próprio texto, o autor desprende-se, assim como a jangada, da escrita tradicional, rompendo com a língua ao apresentar quase todo o livro sem pontuação, com a excepção de vírgulas e pontos finais. Os longuíssimos parágrafos de Saramago promovem, na sua “desformatação” premeditada, uma ruptura no pensamento do leitor. O pensamento em continuum vai levando o leitor numa aventura, menos canónica e mais próxima da oralidade. Ao descrever a sua escrita, o autor prefere chamar a pontuação de pausas, marcando a frase com um outro ritmo, dado pela cadência oral. Saramago subverteu a norma, fracturou a normalidade para deixar entrar o pensamento do leitor. A fractura imaginária de Jangada de Pedra reco-
mente nas diversas possibilidades da significação da palavra:
nhece a inocência nas mão de Joana Carda, criança que, com
na descontinuidade inerente, que pode ter origem casual ou
uma vara num jogo de rua, marca no chão uma fronteira
intencional; e no potencial do que vem a seguir. Tal como uma
real, uma fenda geológica entre dois mundos unidos por ro-
ferida na pele, no sentido médico do termo, o significado en-
cha. A Jangada ibérica flutua errante num oceano onde não
contra-se na ruptura dos tecidos moleculares. Numa leitura
se revela um objectivo concreto. Ela solta-se sem motivação
cirúrgica, a fractura admite a reconexão, a reestruturação dos
e continua errante, superando a fatalidade do seu prelúdio.
tecidos ou a recuperação. Obviamente, aqui surge outro mo-
Mas, o rompimento não está contido apenas na pos-
sibilidade do imprevisto, ele pode ser calculado, premeditado. A noção mais bela por detrás desta acção encontra-se exacta-
07
1 - Saramago, José (1986) Jangada de Pedra, Editorial Caminho, Alfragide, pp. 7
mento significante: a possibilidade do pós-fractura, seja esta
de xadrez. No contraponto destes dois textos reconhece-se
possibilidade, a continuidade da ruptura ou a sua própria su-
a amplitude e potencial emanante contido na palavra “frac-
peração.
tura”. Mas, outras leituras possíveis são apresentadas nesta
Em Splitting (1974), Gordon Matta-Clark, ao contrá-
revista, e dão especificidade ao seu significado, nos vários
rio da Joana Carda, projecta o corte de uma casa americana de
apports e valências que a palavra pode ter no âmbito da ar-
subúrbios. O momento de projectar o corte reconhece a acção
quitectura, das artes visuais e do design.
da fractura como gesto intencional de possibilitar uma nova
leitura. Matta-Clark estudou arquitectura na Cornell Universi-
que, se se parte do princípio de que a acção altera o espaço
ty entre 1962 e 1968 e o seu trabalho remete para a experiência
existente, então será sempre uma fractura independente-
humana do espaço, revelando as estratificações e complexida-
mente se apresenta sinais de continuidade com a envolvente
des das estruturas existentes, apelando ao nosso sentido táctil
ou de corte espacial e programático. Arquitectura é fractura!
e reconhecendo, na separação em relação modelos existentes,
Pese embora, que o arquitecto lhe dê uma intencionalidade
a possibilidade do surgimento do novo.
de incorporação na envolvente ou mesmo de camuflagem.
Em arquitectura, fractura pode ser tudo. Tudo, por-
Neste primeiro número da revista Baú, apresentam-
Pedro Providência, no seu ensaio acerca da importância da
-se duas visões antagónicas, que descrevem bem as duas pos-
cor na paisagem histórica, revela a importância desta ca-
sibilidades de quebra e serzimento da realidade anterior. Por
muflagem em ambiente consolidado. Manuel Teixeira re-
um lado, Álvaro Domingues reconhece o caos da fractura em
conhece a fractura na evolução urbana e morfológica dos
percursos não lineares, alimentados de cortes e traumas mais
aglomerados como base de construção de nova cidade. Na
ou menos violentos, que permitem novos começos:
dinâmica gerada entre o homem e o espaço, António Car-
Anima-me, porém, a biodiversidade deste jardim, o
valho revela os momentos fracturantes que interferem nos
cheiro fresco dos eucaliptos, os ninhos dos pássaros nos bu-
estados meditativos: pequenas alterações de grande impacte
racos dos bidés e das retretes, os galhos e as folhas secas so-
na consciência zen.
bre as faianças, a toupeira a minar por baixo do lavatório,…
sei lá, o brilho da chuva nos vidrados e as pegas a beber nos
nhece a fractura numa proposta tipográfica nova, que, no
mictórios…
entanto, reconhece o fundamento da escrita no próprio de-
Há fracturas que vêm por bem. *(p.85)
senho caligráfico. A leitura facilitada prevalece em relação
Numa perspectiva de recuperação natural, Álvaro
às linhas simplificadas da letra, que surgem pela mecaniza-
reconhece a beleza do novo, nascido do caos, ao invés da
ção e digitalização do texto. A aproximação da sua proposta
ideia de cicatriz inestética ou de um novo tecido indeseja-
às bases caligráficas e tipográficas assegura, não a letra ima-
do. Numa lógica oposta, Luís Santiago Baptista, pegando no
gem (simplificada pela linguagem moderna), mas a letra
mesmo objecto, o mictório, dá o exemplo do urinol de Mar-
facilitadora (completada com acrescentos de ascendência
cel Duchamp e desmonta a estratégia escondida por detrás
originária).
da sua La Fontaine, que aparentemente, por uma pequena
alteração de posicionamento no espaço e pela assinatura,
sensível da relação com um livro objecto. O objecto aqui,
transforma o sítio do despejo, no lugar da água, fonte de
não é o livro de edição comercial, é uma proposta de explo-
vida. A afirmação de Duchamp (ou Richard Mutt) dá todas
ração dos sentidos, com matéria. Ricardo Castro, revisita a
a directrizes, para que o lixo se possa transformar em arte,
crueldade do Conde de Lautréamont nos Cantos de Maldo-
num processo minuciosamente planeado, como num jogo
ror, e ilustra, de forma pouco iconoclasta, a dureza das suas
08
Na aparente continuidade, Dino dos Santos reco-
O trabalho de Isabel Baraona sublinha o potencial
descrições, sem discorrer na imoralidade pura.
novo modelo que, muito embora ainda não esteja acabado,
revela seguramente o seu reconhecimento.
Pelo meio de especificidades mais teóricas, vários
alunos da ARCA apresentam os seus trabalhos em crescimento. Cada trabalho propõe uma pausa, para pensar na prática dos nossos alunos. Porque, é nesta prática, que o pensamento se quer reconhecer.
Fractura é um momento único, um momento que
se reconhece pela quebra com os cânones e tendências estabelecidas. Num mundo onde tudo é genérico, nada é fracturante. O mais fracturante, que se poderá fazer, será possivelmente, o aprofundar do pensamento sobre o objecto e não propriamente agir pela acção em si.
Ao invés de construir, sugerimos neste momento,
destruir! Poderíamos abrir uma empresa de demolições, mas para já, podemos reflectir e subverter o mundo como uma forma de colocar em evidência a própria fractura como justificativa de uma nova realidade. O primeiro número da revista Baú propõe uma revisitação à condição de fractura, como ideia de quebra. A reflexão acerca da própria condição, reconhece uma auto-avaliação da instituição e do ensino das artes, num cenário pós-Bolonha. A decorrida ruptura desta escola, possibilita agora o seu crescimento sobre algo. Aproveita a sua própria descontinuação, para construir um
Imagens: Gordon Matta Clark, Splitting Englewood, New Jersey, 1974
La Fontaine, Marcel Duchamp, 1917, Independents Show, fotografia de Alfred Stieglitz.
Fractura mediada: Wittgenstein e o «exemplo» de Fontaine de Duchamp
vam garantidas como condições inalienáveis dos participantes no Independents Show. A auto-proclamação do artista ganha assim um carácter institucional tendo em conta o acesso da obra ao espaço cultural e social da exposição, adquirindo assim, naturalmente, a sua legitimação como arte. Envolvido neste estranho «acontecimento» está Marcel Duchamp (1887-1968), o mais polémico e controverso artista da arte do século XX. Duchamp, além de pertencer à comissão organizadora da referida exposição de 1917 em Nova Iorque, como figura aclamada da arte
Luís Santiago Baptista
vanguardista moderna europeia, é igualmente o artista por trás do pseudónimo de R. Mutt. É inequívoco que este evento transformou a história da arte contemporânea.
“Os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo.”1
Mas em que sentido e de que forma? Thierry de Duve leNo ano de 1917 dá entrada no Independents Show em Nova
vanta bem a problemática lançada por Fontaine: “Was Du-
Iorque um estranho objecto assinado por um Sr. R. Mutt
champ urinal a joke or a test? Or was it both? Jokes and tests
para ser apresentado na exposição que decorreria a partir
certainly abound in the history of modern art, and they’re
e 10 de Abril desse mesmo ano. O objecto era nada mais
usually the two sides of one and the same coin. Every futurist
nada menos que um urinol invertido assinado e datado
prank, dadaist hoax, expressionist farce, or surrealist pun that
com o título de Fontaine. Naquilo que se opunha às for-
history as recorded was a way of scoffing at some authority
mas e metodologias da arte de tradição académica, o Inde-
whose liberalism, open-mindedness or resistance to ridicule it
pendents Show regia-se pela «regra» «no jury, no prizes», im-
put to a test. Duchamp urinal is no exception. But here the joke
posta pela comissão organizadora como forma de
was a test in more than one sense, for the testing device was
abertura em relação à prática artística e de democratiza-
obviously designed to be itself submitted to a test: if the han-
ção das possibilidades de exposição do trabalho. Na ver-
ging committee of the show at the Grand Central Palace con-
dade, esta foi a forma encontrada de fazer frente ao con-
sented to exhibit the gleaming object poking fun at them, they
servadorismo e elitismo dos júris das academias, que
would have to call it art. If they were to pass the test, so would
detinham todo o poder de juízo de valor sobre as obras
it. They didn’t, as we shall see. But it did, and that’s the irony of
apresentadas e, consequentemente, o papel de legitima-
the joke. Who would dare deny today, that Duchamp urinal is
ção dos artistas. As únicas «normas» a serem salvaguarda-
art?”2. Torna-se revelador que mais ou menos ao mesmo
das eram a inscrição na Society of Independent Artists, Inc. e
tempo que Wittgenstein desenvolve o seu Tratado Lógico-
o pagamento de uma taxa de 6$ (5$ de inscrição e 1$ para
-Filosófico (obra publicada originalmente em 1921, daqui-
a entrada da obra na exposição). Deste modo, quer a auto-
lo que se define como primeiro Wittgenstein), Duchamp
-afirmação do indivíduo como artista, quer a participação
protagoniza, ao nível da arte contemporânea, um dos
na exposição pública e a apresentação no catálogo esta-
exemplos mais claros e conscientes das propostas que o
1 - Ludwig Wittgenstein, «Tratado Lógico-Filosófico», in: Wittgenstein, Tratado-Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pg. 114;
2 - Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: Thierry de Duve, Kant after Duchamp, Cambridge-Massachusetts, London-England, MIT Press, 1997, p. 91.
13
filósofo defenderá mais tarde nas suas Investigações Filosó-
no objecto performativo Fontaine de Duchamp. No limite,
ficas (obra publicada originalmente em 1958, daquilo que
a confluência de ambos os pontos de vista pode abrir pos-
se define como segundo Wittgenstein). Não deixa de ser
sibilidades de percebê-los individualmente a uma nova
curiosa, por um lado, a situação que, no contexto do final
luz. Começaremos então por definir os conceitos em jogo
da primeira década do século XX, Wittgenstein produza a
no desafio radical de Duchamp, recorrendo às próprias
obra que será uma influência decisiva para as propostas
noções de Wittgenstein. No contexto do Independents
das neo-vanguardas dos anos 60 (principalmente a Arte
Show de 1917 em Nova Iorque, por um lado, o objecto apre-
Conceptual) , por outro lado, Duchamp em 1917 protago-
sentado como Fontaine representa o «novo», e como nos
nize um dos exemplos mais interessantes no domínio ar-
diz o filósofo “o novo (o espontâneo, e «específico») é
tístico daquilo que Wittgenstein trabalhará depois filoso-
sempre um jogo de linguagem”,4 por outro lado, quer a
ficamente em meados do século. Uma anacrónica
instituição Society of Independent Artists, quer por ex-
reversibilidade temporal fundamentada num paradoxal
tensão o próprio conceito de «arte», apresentam-se aqui
paralelismo entre a obra de Duchamp e o segundo Witt-
como o «postulado» ou «dado», querendo dizer que, mais
genstein, que se reverte surpreendentemente na poste-
uma vez nas suas palavras, “o que tem que ser postulado,
rior relação entre a Arte Conceptual e o primeiro Witt-
o que é dado, poderíamos dizer, são as formas de vida.”5
genstein, considerando que, no domínio da História da
Estes dois conceitos de Wittgenstein, a sua relação e inter-
Arte, tem precisamente o próprio Duchamp como refe-
penetração, permitirão compreender o paralelismo entre
rência histórica inaugural. Tentaremos neste ensaio de-
o seu pensamento e a actividade «exemplar» de Duchamp.
fender a «validade» deste paralelismo, salvaguardando as
Na verdade, o «teste» que Duchamp lança, no sentido es-
devidas diferenças de pressupostos e de objectivos, tendo
trito ao Independents Show e no sentido lato ao próprio
em conta os diferentes contextos culturais e campos dis-
conceito de «arte», pode assim definir-se como um «jogo
ciplinares. Portanto, não procuraremos defender uma
de linguagem». E este desafio remete para o papel instau-
pretensa anterioridade de Duchamp em relação ao pensa-
rador dado ao «jogo de linguagem»6, convocando o papel
mento de Wittgenstein, antes assumimos a distância e di-
da inovação protagonizada pela arte dita de vanguarda. A
ferença entre uma consciência adquirida pela vivência
premissa do «novo» na vanguarda, na sua recusa da tradi-
contingente da praxis artística e uma consciência humil-
ção e no seu confronto com as instituições, pode repre-
demente filosófica elaborada a partir de uma concepção
sentar no âmbito da arte o mesmo que Wittgenstein defi-
aberta da linguagem. Parece-nos no entanto lícito fazê-lo
ne no campo do pensamento respectivamente como
no contexto de abertura interdisciplinar dos cultural stu-
«jogo de linguagem» e «forma de vida». Neste sentido, a
dies, exponenciando a importância crucial do «exemplo»
obra de vanguarda apresenta um desafio, sob a figura de
como modo discursivo privilegiado de explanação por
um «jogo de linguagem», à tradição como agregadora de
parte do filósofo que, em nosso entender, se expressa con-
«formas de vida». Nas palavras do filósofo, “chamarei
vincentemente no evento artístico de 1917. Neste sentido,
também ao todo formado pela linguagem com as activi-
a construção conceptual do «exemplo» wittgensteinia no
dades com as quais ela está entrelaçada o «jogo de lingua-
3
manifesta-se, como vimos mesmo que anacronicamente, 3 - Cf. Hal Foster, «What’s Neo about the Neo-Avant-Garde?», in: The Duchamp Effect, Cambridge-Massachusetts, London-England, MIT Press, 1996.
4 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», in: Wittgenstein, Tratado-Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995 [1958], secção viii, ponto 229, p. 598. 5 - Idem, Ibidem, secção viii, ponto 238, pg. 601; 6 - Idem, Ibidem, ponto 7, p. 177;
14
gem».” Parece-nos importante o carácter dual do «jogo de
entrevistas com Pierre Cabanne em meados dos anos 60,
linguagem», pois ao mesmo tempo que legitima a tradi-
Duchamp afirma: “No xadrez, existem, sem dúvida, coisas
ção possibilita a inovação, isto é, simultaneamente man-
extremamente belas no domínio do movimento, mas não
tém e transforma, eventualmente num mesmo gesto, a
no domínio visual. Imaginar o movimento ou o gesto é
estrutura da «linguagem». Na verdade, para Wittgenstein
que faz a beleza, neste caso. Está completamente dentro
a «linguagem» é uma estrutura aberta e dinâmica, justa-
da massa cinzenta.”8 Duchamp vê no xadrez essencial-
mente pelo carácter processual do «jogo de linguagem» e
mente um campo de estratégia conceptual que potencia
pelo papel fundador das «formas de vida». Como refere, “a
«movimentos» dentro de uma estrutura regrada pré-esta-
expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de
belecida. Se o jogo de xadrez é convocado tanto por Witt-
que falar uma lingua é uma parte de uma actividade ou de
genstein, para definir as ideias de «jogo de linguagem» e
uma forma de vida.”7. A relação dialéctica entre o «jogo de
«forma de vida», como por Duchamp, para assinalar im-
linguagem» e as «formas de vida» torna-se determinante
plicitamente o campo da sua actividade artística, parece
para compreendermos a importância do pensamento de
no entanto que as suas concepções não se limitam às pos-
Wittgenstein na clarificação conceptual do «exemplo»
sibilidade efectivas das regras do jogo. Porém, a definição
lançado por Duchamp. É no entre-cruzamento de concei-
de «regra» de Wittgenstein, noção essa que significativa-
tos que surgem as possibilidades de sustentação do para-
mente medeia os conceitos de «jogo de linguagem» e de
lelismo aqui defendido. No entanto, estas possibilidades
«forma de vida», revela uma concepção mais aberta e di-
parecem só ser possíveis por existir uma ambiguidade
nâmica entre os dois conceitos referidos, que acreditamos
estrutural na definição dada pelo filósofo de ambos os
se expressa igualmente na prática de Duchamp. Na verda-
conceitos. No caso do «jogo de linguagem», associado nor-
de, para justificar o paralelismo entre o «acontecimento»
malmente ao exemplo do jogo de xadrez, é evidente o ca-
de Abril de 1917 e o pensamento do filósofo torna-se cru-
rácter duplo que refere em relação ao seguimento da «re-
cial a relativização desses conceitos, para além de uma
gra» e às possibilidades da sua transgressão, que diga-se se
mera concepção analítica da «linguagem» (expressa diría-
revela aparentemente difícil no exemplo do jogo de xa-
mos na própria passagem do primeiro para o segundo
drez. Já no caso da «forma de vida», entendida como as
Wittgenstein). Resumindo, temos que fundamentar, quer
possibilidades normativas dadas pelo tabuleiro de xadrez,
a não subordinação do «jogo de linguagem» à «regra»,
a sua definição parece ser estática, visto que as «regras»
quer a dinâmica das «formas de vida», com a consequente
parecem estar determinadas de modo fixo e limitado, im-
possibilidade de mutação dentro das «regras» do «jogo».
possibilitando a transgressão, que é todavia apresentada
No caso que aqui é apresentado, interessa-nos perceber
pelo filósofo como uma condição necessária. Por aqui se
não um sentido estrito e fechado da ideia de «jogo de lin-
nota as aparentes limitações do próprio exemplo dado
guagem», mas uma apropriação diferencial e aberta desse
por Wittgenstein, através do jogo de xadrez. Sabe-se, por
conceito9, ou seja, encontrar na «linguagem», como cre-
outro lado, o fascínio que Duchamp tem pelo xadrez, bem
mos que Wittgenstein a define, os seus elementos estrutu-
patente nas célebres fotografias do artista que o apresen-
rais de abertura e alteridade. E isto parece ser o que o filó-
tam a jogar, potenciando uma analogia da prática desse jogo com a sua própria actividade artística. De facto, nas 7 - Idem, Ibidem, ponto 23, p. 189;
15
8 - Marcel Duchamp, in Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990 [1966], p. 25. 9 - Remete-se para o conceito de differance de Derrida. Cf. Jacques Derrida, «A Diferença», in: Derrida, Margens da Filosofia, Porto, Rés, s.d. [1972].
sofo refere como «atrito» ou «resistência»: “Nós queremos
dida involuntária e inconscientemente, embora mante-
andar, por isso precisamos de atrito. Regressar à terra ás-
nhamos a liberdade de a seguir ou transgredir.
pera.”10 Acrescenta depois: “Os nossos simples e claros
Porém, o cerne da questão levantada pela triade concep-
jogos de linguagem não são estudos preliminares para
tual «jogo de linguagem»-«regra»-«forma de vida» está
uma regulamentação futura da linguagem – como se fos-
na própria concepção wittgensteiniana de «linguagem».
sem uma primeira aproximação, sem ter em conta o atri-
Diz-nos antes de mais o filósofo que “conceber uma lin-
to e a resistência do ar. Os jogos de linguagem são muito
guagem é conceber uma forma de vida.”15 A «linguagem»
mais objectos de comparação, que por semelhança ou dis-
é na verdade uma «forma de vida» (embora não esclare-
semelhança irão esclarecer os factos da nossa lingua-
cendo inteiramente as diferenças entre as suas dimen-
gem.” . A ideia de transparência da «linguagem», ou seja,
sões genéticas ou culturais, ou seja, inatas ou adquiridas),
uma concepção estritamente mediadora não é aquilo que
mas “a linguagem é um labirinto de caminhos.”16 A ideia
Wittgenstein procura com as suas Investigações Filosóficas,
de «labirinto» fundamenta bem a posição indefinida e
mas antes a incorporação dos aspectos de opacidade inul-
deslocada do sujeito perante a questão da «linguagem». É
trapassável das estruturas linguísticas, assumidas dora-
revelador que para Wittgenstein a «linguagem» se apre-
vante como abertamente constituintes. E isto parece estar
sente não como uma estrutura conceptual racionalizada,
expresso na própria ideia de «regra». Por um lado, a «re-
conferindo assim uma posição central ao sujeito, mas an-
gra» é algo que não passa por um acto subjectivo de von-
tes como horizonte de constituição que se qualifica pelo
tade, que Wittgenstein afirma ao referir que “quando eu
«uso»: “Diremos então apenas que a explicação lhe ensina
sigo a regra, não escolho”, acrescentando logo a seguir que
o uso quando o lugar está preparado. E, assim, não porque
“sigo a regra como se fosse cego.” Portanto, a «regra» pa-
aquele a quem damos a explicação já conhece as regras,
rece ser algo de subjacente e implícito, qualquer coisa de
mas porque, noutro sentido, já domina, um jogo.”17 Na-
estrutural além ou aquém do sujeito, da sua consciência
quilo que se opõe à «explicação», racional e normativa,
ou vontade. Desta forma, a «regra» não seria mais que a
Wittgenstein convoca o «uso», sendo que este é por na-
manifestação de uma enorme estrutura de determinação
tureza contingente, se quisermos, na inerência de uma
chamada linguagem, exterior ao poder e domínio do su-
contextualidade e historicidade inultrapassáveis. Acres-
jeito. Mas, por outro lado, a «regra» como actividade é si-
centa por fim que “nós falamos do fenómeno espacial e
multaneamente conciliação e contradição: “Se qualquer
temporal da linguagem, não de um fantasma a-espacial e
forma de acção é conciliável com a regra, então também
intemporal.”18 Num certo sentido, a linguagem joga-se no
qualquer forma de acção contradiz a regra. E por isso não
seu praticar. Por isso, a «linguagem» afirma-se de modo
existe aqui nem concordância nem contradição.” A «re-
dinâmico pela sua inerência a um «contexto» manifesta-
gra» não se apresenta aqui como mera repetição do mes-
do pelo «uso», o que impossibilita tanto a sua determina-
mo, mas antes como repetição diferencial. A «regra» está
ção transparente como a sua absolutização sistémica. A
instituída na sociedade e obedecêmos-lhe em grande me-
condição espacio-temporal funda o «acontecer» da «lin-
10 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 107, p. 256. 11 - Idem, Ibidem, ponto 130, p. 264. 12 - Idem, Ibidem, ponto 219, p. 329. 13 - Idem, Ibidem, ponto 201, p. 321. 14 - Remete-se para o conceito de répétition de Deleuze. Cf. Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, Lisboa, Relógio d’Água, 2000 [1968].
15 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 19, p. 183. 16 - Idem, Ibidem, ponto 203, p. 322. 19 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 583, pg. 462; 17 - Idem, Ibidem, ponto 31, p. 196. 18 - Idem, Ibidem, ponto 108, p. 256.
11
12
13
14
16
guagem»19, o que determina a sua abertura e, consequen-
em que se desenvolve e emerge, uma vez que “a intenção
temente, a impossibilidade da sua caracterização para lá
está imersa na situação, nos costumes e nas instituições
de um contexto e situação específicos: “O que acontece
dos homens.”26 Dá-se assim a relativização do domínio
agora tem sentido, neste contexto. É o contexto que lhe
do sujeito na interpretação e constituição da realidade.
dá a importância que tem.”20 Em suma, a qualificação da
Se existe uma racionalidade e normatividade na «lingua-
«linguagem» pelo «uso» situa e enquadra o sujeito, in-
gem» (esta compõe-se naturalmente de «regras», «nor-
corpora-o num contexto que determina o seu horizonte
mas» ou «ordens»), não há a possibilidade de uma «visão
de possibilidades: “Verdadeiro e falso é o que os homens
panorâmica» sobre o fenómeno da «linguagem»: “Umas
dizem; e é na linguagem que as pessoas concordam. Não
das fontes principais de incompreensão reside no facto
se trata de uma concordância de opiniões, mas de for-
de não termos uma visão panorâmica do uso das nossas
mas de vida.”21. Mas esta abertura existe naturalmente na
palavras. A nossa gramática não se deixa ver panoramica-
«linguagem», não é um acto de consciência por parte do
mente.”27 Efectivamente, a vinculação do «jogo de lingua-
sujeito. Na verdade, a «regra» não está sujeita ao acto de
gem» às «formas de vida» define os limites do que se pode
domínio racional, uma vez que subentende a “concepção
chamar «cultura», conceito que consideramos implícito
de uma regra que não é uma interpretação.”22 Neste sen-
na construção conceptual das Investigações Filosóficas de
tido, as «fronteiras» das «regras» da linguagem existem
Wittgenstein. Afirma-se assim a importância da ideia de
naturalmente, mas num certo sentido estão ocultas e são
«mediação» como horizonte fundamental na constitui-
mesmo inconscientes: “Mas isto não é ignorância. Não
ção da realidade através da «linguagem».28 É neste sentido
conhecemos fronteiras porque não traçámos quaisquer
que a concepção wittgensteiniana da «linguagem» pode
fronteiras.” E a ocultação aqui não se afirma no sentido
assumir a «mediação» como um campo «cultural», simul-
de uma possível futura revelação transcendente, mas sim-
taneamente espacial e temporal, determinado estrutural-
plesmente como relativização «cultural» de um sujeito,
mente pela sua contextualidade e historicidade inerentes.
circunscrito e limitado nas suas possibilidades pelo seu
Retomemos de novo o «acontecimento» do Independents
horizonte de expectativa, ou seja, pelo seu mundo. Como
Show de 1917 em Nova Iorque. Qual a sua relevância em
nos diz, “na linguagem, a expectativa e a satisfação tocam-
relação ao pensamento de Wittgenstein? De que forma
-se.” Neste sentido, a «intencionalidade» do sujeito é re-
este nos pode ajudar a perceber o desafio de Duchamp? É
lativizada pelas «formas de vida», está limitada pelas es-
nossa convicção que Duchamp tem consciência do «jogo
truturas conceptuais e linguísticas do contexto histórico
de linguagem» radical que dirige às «formas de vida» pre-
23
24
25
sentes nas instituições artísticas e culturais do seu tempo. 19 - Remete-se para o conceito de «ser-no-mundo» desenvolvido por Heidegger e por Merleau-Ponty. Cf. Martin Heidegger, Ser e Tempo, Petrópolis, Editora Vozes, 1998; Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção, S. Paulo, Martins Fontes, 1994 [1945]. 20 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 583, p. 462. 21 - Idem, Ibidem, ponto 241, p. 334. 22 - Idem, Ibidem, ponto 201, p. 321. 23 - Remete-se para a ideia de «esquecimento do ser como destino» de Heidegger. Martin Heidegger, Ser e Tempo, Petrópolis, Editora Vozes, 1998 [1927]. 24 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 69, p. 230. 25 - Idem, Ibidem, ponto 445, p. 418.
17
A relevância do «exemplo» estará nessa intencionalidade, se quisermos, nesse apelo a uma «visão panorâmica» que, quer queiramos quer não, tanto Wittgenstein como Duchamp paradoxalmente procuram, mesmo sabendo da sua impossibilidade efectiva. E por isso esta só pode 26 - Idem, Ibidem, ponto 337, p. 374. 27 - Idem, Ibidem, ponto 122, p. 261. 28 - Remete-se para o conceito de linguagem como questionamento do sujeito e do objecto como tendo «naturezas intrínsecas». Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade, Lisboa, Presença, 1992 [1989].
emergir e manifestar-se como «jogo de linguagem» lan-
menos que «ni récompense, ni jury». A mesma obra é apre-
çado às «formas de vida». Se as Investigações Filosóficas po-
sentada depois no Armory Show em Nova Iorque em 1913,
dem ser um «jogo de linguagem» no campo da filosofia,
sendo unanimemente aclamada. Esta experiência extre-
Fontaine é um «jogo de linguagem» no território da arte.
ma de recusa ilegítima (veja-se o mote da exposição) e
Trataremos de tentar fundamentá-lo de seguida.
aclamação acrítica (o que mudou não foi a obra mas o es-
A primeira interrogação que emerge está no porquê do
tatuto do artista), indiciam o questionamento radical que
desafio lançado por Duchamp através do objecto Fontai-
Duchamp operará depois através da obra Fontaine. Nestes
ne sob o pseudónimo de R. Mutt. A grande questão que
termos, a compreensão por trás do acto de Duchamp não
o «acontecimento» de 1917 levanta é, por um lado, a do
provém de uma ideia afastada do contexto real, suposta-
estatuto da obra de arte como objecto, por outro, a ca-
mente dos critérios universais do valor artístico, mas está
rácter institucional da sua legitimação. E o objectivo de
radicalmente implicada na experiência do problema da le-
Duchamp com Fontaine não está em produzir e legitimar
gitimação da arte pelo próprio artista. Daí a sua importân-
uma obra como arte. Se assim fosse, bastar-lhe-ia assinar
cia residir exactamente, em termos wittgensteinianos, na
a obra como Marcel Duchamp e esta estaria automati-
consciência do funcionamento das «formas de vida» e da
camente assinalada como obra de arte. Lembremos que
relatividade das «regras». A recusa do Nu Descendant L’Esca-
Duchamp não só era um artista consagrado na época no
lier nº2 no Paris Indépendants em 1912 será correspondida
contexto artístico norte-americano, mas igualmente de-
à recusa da Fontaine no Independents’ Show de Nova Ior-
tinha um papel de grande destaque na comissão organi-
que em 1917, através do processo de relativização inerente
zadora da exposição do Independents Show. Inclusive é um
à consciência adquirida através da consagração da mesma
dos comissários que introduz a «regra» «no jury, no prizes».
obra no Armory Show de Nova Iorque em 1913.29 Duchamp
Então porquê o anonimato? Duchamp com a obra Fontai-
percebe as contingências da legitimação artística através
ne não só lança um desafio às estruturas institucionais da
desse processo de recusa (Paris, 1912) e aclamação (Nova
arte, como através dela influenciará radicalmente o curso
Iorque, 1913) de uma mesma obra, simplesmente através
da história da arte contemporânea. O próprio conceito
da mudança do contexto físico e cultural. No Armory Show
de arte sai profundamente abalado do desmascaramento
a experiência torna-se consciência e, de seguida, esta far-
produzido em acto pelo «acontecimento». A transforma-
-se-à manifesto no Independents Show. Isto implica que Du-
ção do conceito de arte torna-se a partir daí inevitável e
champ saberia qual o destino da sua obra em 1917. Não só
irreversível. Mas é muito importante o facto de Duchamp
saberia, como o desejaria «in advance».30 A obra Fontaine
não utilizar este estratagema fora de um contexto históri-
apresentada será simplesmente o seu dispositivo irónico
co específico, isto é, o artista conhece bem as limitações
de estrategicamente praticar o jogo da arte. Como salien-
e limites das estruturas de legitimação da arte. De facto,
ta Hal Foster, “For the most acute avant-garde artists such as
conhece-as de modo directo através da sua própria expe-
Duchamp, the aim is neither an abstract negation of art nor a
riência. Duchamp confrontou-se através de uma mesma
romantic reconciliation with life but a perpetual testing of the
obra com os dois lados extremos da legitimação da arte,
conventions of both.”31. A genialidade do acto de Duchamp
a violência da recusa e a glória da aclamação. Na verdade, quando produz Nu Descendant L’Escalier nº2, esta é recusada no Paris Indépendants em 1912, exposição da Paris Société des Artistes Indépendants cujo mote é nada mais nada
29 - Cf. Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: op. cit., p. 91. 30 - Remete-se aqui para a ideia da obra de Duchamp In Advance of the Broken Arm de 1915. 31 - Hal Foster, «What’s Neo about the Neo-Avant-Garde?», in: op. cit., p. 18.
18
reside, por um lado, na consciência da relatividade da
múltiplas reproduções quase rituais autorizadas pelo ar-
«regra» (os 6$ não serão suficientes), por outro, nas limi-
tista). Como assinala Thierry de Duve: “The reality is that
tações inerentes às «formas de vida» (um urinol naque-
art is legitimated only through comparison and that compari-
le «contexto» não poderia ser aceite como obra de arte).
son can be made only with what is already legitimate. Legiti-
Tanto as «regras» existem para serem transgredidas (a
mation comes from the past alone. (…) Making avant-garde of
recusa da exposição pública) como as «formas de vida»
true significance means anticipating a verdict that can only be
são dinâmicas (rapidamente Fontaine tornar-se-á uma das
retrospective. It means delivering the unexpected in the lieu of
obras fundamentais da história da arte contemporânea).
the expected in such a way that betrayed and disappointed ex-
E este é o carácter determinante do «jogo de linguagem»
pectations show themselves, in the end, to have been fulfilled.”34
que é “objecto de comparação – como, por assim dizer, um padrão de medida, e não como um preconceito ao qual
Com o The Richard Mutt Case produz-se uma verdadeira
a realidade tem que corresponder.” Como Wittgenstein
revolução no campo da arte. A partir daqui a arte tenderá
afirma, “quando se diz que uma frase é destituída de sen-
a afastar-se das análises puramente formais e estéticas do
tido não se diz que é o seu sentido que é destituído de
objecto, enveredando por um novo caminho onde o acto
sentido. Diz-se, antes, que uma combinação de palavras
(dito por alguns conceptual) concentra as atenções. Com
32
é excluída da linguagem, retirada da circulação.” Neste
Marcel Duchamp fotografado para a revista Life por Eliot Elisofon, LIFE Magazine March 1952.
33
caso, substituindo o termo «frase» por objecto, a lógica é a mesma do destino de Fontaine em 1917. A obra permanece na invisibilidade, remetida para um canto da exposição por detrás de uns tapumes (recusando a exposição da obra e a publicação no catálogo a que tinha direito). Mas a ironia da situação é que a exclusão da obra fundamentará exponencialmente a sua inscrição no mundo da arte, provocando com isso a inevitável (e neste caso consciente) mutação das «formas de vida», ou seja, do «contexto» artístico e da «linguagem» da arte. Na verdade, Duchamp armará mais uma das suas inteligentes estratégias para concretizar a divulgação pública da obra recusada pelos Independents (dos quais se demite logo a seguir ao acto de censura), projectando paradoxalmente para o domínio da arte um objecto ausente, mas definitivamente não inexistente (por um lado, do original restará apenas uma fotografia de Stieglitz publicada no manifesto The Richard Mutt Case na revista The Blind Man editada pelo próprio Duchamp, por outro, a obra será alvo posteriormente de 32 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 131, p. 264. 33 - Idem, Ibidem, ponto 500, p. 434.
19
34 - Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: op. cit., p. 141.
isto é afirmado que o objecto até aí autónomo e auto-sufi-
linguagem» e «formas de vida». A consciência do artista
ciente se apresenta mais como «objecto de comparação»,
revela-se portanto nessa concepção extremada do «jogo
devido ao «jogo de linguagem» que este instaura e ins-
de linguagem». Na verdade, só pelo apelo do limite Du-
creve. Afirma, com toda a sua força irónica, o «contexto»
champ pode expôr as falhas do sistema cultural e institu-
institucional e cultural onde se candidata a figurar como
cional onde se move. É neste sentido que o «acontecimen-
obra de arte e assim potencia radicalmente a dinâmica das
to» de 1917 pode apresentar-se como um desafio radical
«formas de vida». Isto é, a obra de arte não vale por si, pela
aos conceitos desenvolvidos mais tarde por Wittgenstein
sua objectualidade, mas acima de tudo pela mediação que
nas suas Investigações Filosóficas. São um «teste» «in ad-
se produz através do seu «uso», activadando no processo
vance», um exemplo prático prévio que manifesta uma
as «formas de vida» do «contexto». Daí a sua importância
teoria posterior. A consciência do problema da mediação
fundamental em todo o campo da arte contemporânea.
representa aqui a tentativa de uma «visão panorâmica»
Diz-nos Duchamp acerca do readymade do qual Fontai-
do horizonte da «linguagem», que Wittgenstein investiga
ne será uma das manifestações mais significativas: “It was
filosoficamente e que Duchamp concretiza artisticamen-
around that time that the word «readymade» come to mind to
te. A diferença entre ambos estará, acima de tudo, no facto
designate a form of manifestation. A point which I want very
de Duchamp através da ironia revelar as fraquezas da le-
much to establish is that the choice of these «readymades» was
gitimação artística do seu tempo, enquanto Wittgenstein
never dictated by esthetic delectation. This choice was based on
lhe pretende acentuar a positividade filosófica de um pro-
a reaction of visual indifference with at the same time a total
cesso de relativização. Se o artista revela negativamente
absence of good or bad taste… in fact a complete anesthesia.”35
as limitações de um extremo «jogo de linguagem», o filó-
O evento duchampiano representa em acto uma cons-
sofo afirma positivamente a operacionalidade dos «jogos
ciência latente no tempo, em que a mediação não é um
de linguagem». No ponto fulcral cremos que concordam,
fenómeno transparente e isolado dos contextos históri-
isto é, quanto à abertura dos «jogos de linguagem» e a sua
cos, afirmando em acto a consciência da pluralidade e
inerência à dinâmica das «formas de vida». Ambos per-
heterogeneidade dos paradigmas culturais. As pesquisas
cebem que a «linguagem» é um horizonte determinado
da arte tenderão assim a abandonar os estudos centra-
espacial e temporalmente. Daí a sua inerente contextua-
dos unicamente no estudo dos objectos para afirmarem
lidade e historicidade. Nas palavras de Wittgenstein: “O
a questão da mediação inerente à determinação caracte-
nosso erro consiste em procurar uma explicação onde de-
rística das estruturas culturais (passagem das vanguardas
vemos ver os factos como «o fenómeno primordial». Isto
históricas do inicio do século às neo-vanguardas dos anos
é, onde deveríamos dizer: este jogo joga-se.”36
60). A partir deste evento, a arte pode ser o «jogo» que se produz entre uma obra e o «contexto» que simultanea-
“Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em
mente limita e potencia a dialéctica entre a inovação e
silêncio.”37
a tradição. Neste sentido, o «acontecimento» produzido por Duchamp revela a problematicidade dos laços mediadores que afirmam a inerência mútua entre «jogos de 35 - Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», in: Theories and Documents of Contemporary Art, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 1996 [1961], p. 819.
36 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 654, p. 488. 37 - Ludwig Wittgenstein, «Tratado Lógico-Filosófico», in: op. cit., p. 142.
20
no fundo, no fundo, bem lรก no fundo, a gente gostaria de ver os nossos problemas resolvidos por decreto. paul leminsky
Para além das ontologias fracturantes: espaço, meditação e reencantamento
que o ímpeto da modernidade é essencialmente extrativista (Klein, 2014), reduzindo a natureza e os humanos ao estatuto de Bestand ou reserva passiva (Heidegger, 1976), tem existido uma progressiva tendência em torno de modelos analíticos, tecnológicos e políticos que favorecem uma relação simétrica entre humanos e não-humanos, promovendo aquilo que Andrew Pickering designa como uma dança de agência (Pickering, 1995) entre todas as entidades existentes.Esta transição em torno de uma política ontológica (Mol, 1999) menos destrutiva aplica-se
António Carvalho
também àquilo que Michel Foucault designava como as tecnologias do sujeito, um conjunto de práticas que per-
resumo
mitem aos sujeitos humanos uma transformação do seu
No seguimento de etnografia levada a cabo em retiros no
Foucault, o modelo de subjetivação disciplinar – enquan-
Reino Unido, França e Portugal, junto das comunidades
to exemplo clássico da modernidade – visava a produção
Vipassana (na tradição de S. N. Goenka) e Zen (segundo
de corpos dóceis, eficientes e normalizados (Foucault,
os ensinamentos de Thich Nhat Hanh), neste trabalho
1995), ao serviço de um modelo capitalista da exploração
argumento que uma dimensão fundamental dos disposi-
de recursos naturais e humanos, a subjetivação não-mo-
tivos de subjetivação meditativa diz respeito à reconfigu-
derna ambiciona a construção de arquipélagos de subje-
ração ambiental, às associações que os participantes esta-
tividade que visam a exploração da consciência, a iden-
belecem com novos objetos, às condições arquitetónicas a
tificação com não-humanos e uma experiência integral
que estão sujeitos e a uma série de regras que determinam
do corpo e das emoções (Stengers, 2008; Carvalho, 2014).
os movimentos, as interações e as espacialidades. Através
As práticas meditativas podem ser consideradas tecnolo-
de uma análise suportada pela teoria do ator rede e por li-
gias não-modernas do sujeito. Neste artigo, a análise recai
teratura pós-humanista no âmbito dos estudos de ciência
sobre as práticas Zen de Thich Nhat Hanh e a meditação
e tecnologia, o artigo irá estabelecer uma leitura política
Vipassana de S. N. Goenka. Thich Nhat Hanh nasceu no
e ontológica do espaço, atentando nas várias camadas de
Vietname em 1926 e atualmente reside em Plum Village,
subjetivação recrutadas pelas heterotopias meditativas e
um mosteiro localizado no Sul de França, na região da
no seu potencial em reverter os dualismos modernos.
Dordogne. É mundialmente conhecido pela sua abor-
estatuto contemplativo, físico e mental. Se, de acordo com
dagem engajada à meditação, que favorece não só uma
introdução
aplicação da meditação a questões políticas e sociais mas
No âmbito dos Estudos de Ciência e Tecnologia (ECT)
-a-dia. A técnica disseminada por esta linhagem é desig-
tem-se registado uma crescente tendência em explorar
nada por mindfulness, traduzida por plena consciência
ontologias não-modernas, isto é, configurações que sus-
ou atenção plena. S. N. Goenka (1924-2013) era um profes-
pendem o dualismo moderno entre corpo e mente, natu-
sor birmanês de meditação Vipassana, que habitualmente
reza e cultura, humanos e não-humanos. Reconhecendo
se traduz por ver as coisas tal como elas são. Goenka foi
também a associação entre meditação e as práticas do dia-
23
o grande disseminador de meditação Vipassana fora da
de literatura relevante. O objetivo deste artigo é analisar
Birmânia a partir dos anos 70 do século XX, e hoje em
de que forma o espaço é reconfigurado para promover a
dia existem centros de meditação Vipassana espalhados
emergência de subjetividades meditativas, explorando, à
por todo o mundo. Os cursos de meditação de 10 dias da
luz dos Estudos de Ciência e Tecnologia, as ramificações
linhagem de Goenka são já clássicos e considerados exce-
espaciais das ontologias contemplativas enquanto tecno-
lentes introduções à meditação devido à sua clareza e sis-
logias não fraturantes.
tematicidade. Estas práticas meditativas visam uma profunda transformação da mente, alinhada com a tentativa de minimizar o sofrimento humano. No caso da meditação Zen de Thich Nhat Hanh, levam-se a cabo uma série
o retiro e a reconfiguração do espaço
de práticas de atenção plena – como meditação sentada, a
O retiro é uma suspensão da vida moderna e das redes
caminhar, a lavar a louça – que visam reforçar o estatuto
de subjetivação habituais. Simmel argumentou que a ci-
contemplativo do indivíduo, permitindo-lhe a transição
dade moderna gera um número de efeitos subjetivos,
de uma subjetividade dualista para um estado mental de
levando à constituição de um novo tipo de homem, que
total imersão no momento presente, consciente das ações
designou como metropolitano. Este tipo de sujeito “rea-
do corpo, da mente e da relação com os outros. Uma di-
ge com a cabeça ao invés do coração” devido à lógica
mensão fundamental da linhagem de Thich Nhat Hanh
exercida pelo “poder esmagador da vida metropolitana”
é a noção de Inter-Ser, que diz respeito ao reconhecimen-
(Simmel, 1950: 411), ilustrando o poder das cidades na
to da inter-relação entre todas as entidades existentes. A
fabricação de certos tipos de pessoas (Certeau, 1984). O
contínua prática de meditação deve idealmente promo-
papel da materialidade na emergência de subjetividades
ver a consciência desta dança de agência entre todas as
é sublinhado pelas abordagens pós-humanistas dos ECT
entidades, promovendo um modo de estar no mundo
(Haraway, 1991; Pickering, 1995; Verbeek, 2011), e os reti-
descentrado e inter-relacional. No caso da meditação
ros recrutam dispositivos espaciais e institucionais para
Vipassana, existe um processo de des-identificação com
promover a emergência de sujeitos não-duais. Os retiros
as habituais sensações corporais. Através da prática me-
dependem de uma profunda reconfiguração psicogeográ-
ditativa os sujeitos aprendem a não reagir às sensações
fica como vetor de subjetivação. O termo psicogeografia
no corpo e a reconhecer que, para além das sensações co-
foi utilizado por Guy Debord para ilustrar a dimensão
muns – frio, comichão, calor, dor – existe uma sensação
subjetiva das cidades, paisagens e organizações espaciais
subtil, habitualmente caracterizada como um tremor, que
em geral: “A psicogeografia diz respeito ao estudo das leis
está presente ao longo do corpo. A prática contínua de
e efeitos específicos do ambiente geográfico, organizado
meditação pode fazer com que todo o corpo seja permea-
ou não de forma consciente, nas emoções e comporta-
do por esta sensação de tremor, que inevitavelmente leva
mento dos indivíduos. O vago adjetivo psicogeográfico
à dissolução do corpo e à incapacidade em o separar do
pode ser aplicado aos resultados deste tipo de investiga-
ambiente e dos outros. Este artigo resulta de investigação
ção, à sua influência nos sentimentos humanos, e mais
levada a cabo entre 2010 e 2013 em Inglaterra, França e
genericamente a qualquer situação ou conduta que pa-
Portugal. As metodologias utilizadas incluíram observa-
rece refletir o mesmo espírito de descoberta.” (Debord,
ção participante em retiros Vipassana e Zen, entrevistas
2006: 8). As psicogeografias meditativas dependem de
com praticantes de meditação, autoetnografia e a análise
uma variedade de dispositivos para alterar as associações
24
modernas, incluindo a reconfiguração do espaço, a ges-
sores; sala de refeições para tomar o pequeno-almoço, al-
tão das interações, a utilização de inscrições e são supor-
moço e jantar, para levar a cabo a inscrição no início do
tadas por conceções particulares do espaço – ontologias
retiro e para oferecer um donativo no final; dormitórios
espaciais situadas. Se, de acordo com Foucault (1995), o
para dormir, descansar e meditar; zonas de “caminhada”
Panóptico é um laboratório de poder para a fabricação de
para caminhar (isto inclui algumas árvores e jardins). Em
sujeitos disciplinados, as práticas Zen e Vipassana tam-
suma, o Vipassana recorda-nos das instituições totais de
bém dependem de formas de reconfiguração espacial e
Goffman (1968), que indicavam uma mudança radical
arquitetónica para suportar a meditação. Os Halls de me-
em relação à sociedade “exterior”, transformando as indi-
ditação são agenciamentos espaciais paradigmáticos – a
vidualidades num rebanho homogéneo que é mobilizado
iluminação é reduzida; a decoração é mínima para evitar
de um espaço para outro, de acordo com o horário. Isto
distrações e os sons da cidade são suspensos (em ambos
permite aos praticantes ficarem totalmente envolvidos na
os casos, os retiros são organizados em zonas rurais).Nos
meditação, não sendo obrigados a levar a cabo escolhas.
retiros Vipassana, os antigos estudantes sentam-se à fren-
Os participantes podem concentrar os seus esforços na
te, e os dois professores, homem e mulher, estão elevados,
prática da meditação: abdicam da sua liberdade espacial,
sentando-se numa plataforma, onde conseguem supervi-
a possibilidade de se moverem de um espaço para outro
sionar os estudantes. A organização do Hall significa que
de acordo com a sua vontade, de forma a implementarem
mais atrás, onde se sentam os novos estudantes, existe
modos meditativos de subjetividade. Em Plum Village,
muito mais barulho do que à frente, onde estão os prati-
apesar de diferentes edifícios terem funções específicas –
cantes mais antigos. Em Plum Village o principal Hall de
dormir, descansar, comer, meditar, etc. – não existe o mes-
meditação chama-se Still Water Meditation Hall. Existem
mo movimento relativamente homogéneo e previsível de
dois lados, direita e esquerda, e duas linhas de almofadas.
corpos humanos: o horário pode ser alterado, existem pe-
A linha exterior é para visitantes e a linha interior para
ríodos para descanso e prática pessoal e os participantes
monges. Habitualmente, quanto mais sénior é um prati-
podem ficar nos quartos se assim o desejarem. Existem
cante mais distante se encontra da entrada do Hall. Quan-
também vários dispositivos que se assemelham à vida do
do Thich Nhat Hanh medita, habitalmente senta-se no fi-
dia-a-dia – uma mesa de ping pong onde se pode jogar
nal da linha interior de almofadas. Os diferentes edifícios
com outros participantes e monges; um edifício, chama-
e dispositivos arquitetónicos têm objetivos relativamente
do Bamboo Hall, onde existe uma pequena biblioteca, um
claros, lembrando-nos da distribuição espacial dos indi-
piano e os participantes podem organizar workshops de
víduos em espaços disciplinares (Foucault, 1995). Nos re-
yoga ou tai chi. Isto significa que diferentes dispositivos
tiros Vipassana, todos estes edifícios têm funções especí-
arquitetónicos são utilizados para promover distintos pa-
ficas, permitindo circulações regulares entre espaços que
radigmas de meditação. Os isolamentos regimentados do
se ajustam ao horário – dos dormitórios para o Hall de
Vipassana contrastam com o Zen enquanto expressão do
meditação; do Hall de meditação para a sala de refeições;
mundo exterior e uma forma de Budismo engajado.
da sala de refeições para as casas de banho, etc.. O Dhama Dipa, o maior centro de meditação Vipassana na Europa, é um centro cuja propriedade foi adquirida em 1991 e cada
inscrições
espaço tem uma função clara – Hall de meditação para
Os agenciamentos Vipassana and Zen recorrem a um nú-
meditar, assistir a palestras e colocar questões aos profes-
mero de inscrições espaciais, mecanismos que marcam o
25
espaço do retiro com signos, elementos que devem supor-
-humanos que povoam o espaço do retiro e que podem
tar a prática da meditação. Nos retiros Vipassana, existem
recordar os participantes das regras ou que reforçam o
signos onde se pode ler “Male course boundary” ou “Fe-
estabelecimento de novas redes de associação, como no
male course boundary”, indicando as fronteiras do espaço
caso do Zen. Em ambos os casos, estas novas associações
de confinamento, reforçando a proibição de abandonar as
são positivas, fomentando a emergência de novos para-
fronteiras demarcadas. Existe também um quadro com al-
digmas de subjetividade.
gumas das regras, aspetos técnicos da prática e potenciais mudanças no horário ou regulamentos. Nos retiros Zen, existe um mecanismo ubíquo que infeta o espaço com o
materialidades
espírito da plena consciência e do Inter-Ser – a inscrição
Uma dimensão essencial destes retiros é a introdução de
física de versos, ou gathas. Por exemplo, na sala de refei-
dispositivos não-humanos que transformam e adaptam o
ções há um gatha que diz “This piece of bread is an ambas-
comportamento humano. Estes materiais, de acordo com
sador from the entire cosmos” e nas casas de banho um
Latour e a teoria do ator rede, podem ser entendidos en-
gatha que diz “Water flows over these hands. May I use
quanto actantes, entidades “cuja competência é deduzida
them skilfully// to preserve our precious planet” (Hanh,
das suas performances” (Latour, 2004: 237). As nossas vi-
1996: 20) – estes gathas estão praticamente em toda a par-
das são caracterizadas por uma proliferação de dispositi-
te e o seu objetivo é suportar um modo de ser meditativo
vos como televisões, computadores e telemóveis, perma-
através do estabelecimento de novas associações mentais.
nentemente interagindo connosco e modificando a nossa
Estes gathas funcionam como marcas legislativas ou co-
subjetividade. Como devemos analisar as redes materiais
dificações, ilustrando uma nova ontologia que deve ser
e tecnológicas dos retiros, o conjunto de elementos não-
atualizada na prática. Em ambos os casos, estas inscrições
-humanos que idealmente devem sustentar, maximizar e
visam gerar uma realidade espacial que associa o legisla-
suportar a meditação? Em primeiro lugar, se as pessoas
tivo ao performativo e ao ontológico, funcionado como
vão praticar meditação sentada, têm de se sentar. Nos reti-
tenentes (Latour, 1988: 94) da meditação – estes recor-
ros Vipassana existe um procedimento standard para
dam os participantes que estão no espaço de um retiro,
aqueles que se sentam pela primeira vez. Existe uma al-
convidando-os a ajustarem-se a novas modalidades espa-
mofada grande e triangular que repousa sobre o solo, e
ciais, institucionais e performativas, povoando o espaço
depois existe uma almofada mais pequena e fina no topo
com inscrições meditativas. Os gathas são dispositivos de
dessa. É possível adicionar outra almofada, mais pequena,
subjetivação linguística. O exemplo de Judith Butler, re-
ao conjunto, para elevar o corpo, facilitando o processo de
lativo ao médico que pronuncia o género da criança ao
sentar de pernas cruzadas ou na posição de lótus ou semi-
nascer (Butler, 1997), indica como este primeiro anúncio
-lótus. Em Plum Village, cada participante pode utilizar
produz uma cadeia de subjetivação para o resto da vida.
um dos vários Zafus disponíveis: estes também repousam
De acordo com Altusser, a ideologia transforma indiví-
no topo de uma almofada triangular maior que protege as
duos em sujeitos através de interpelações “que podem ser
pernas do contacto com o chão de madeira. A adaptação a
imaginadas através do exemplo quotidiana do polícia que
uma nova rede material gera várias resistências. Sentar-se
chama alguém à atenção: Hey, você aí!” (Althusser, 2008:
por longos períodos de tempo não é fácil para principian-
48). As inscrições, ao invés de interpelarem diretamente
tes, gerando um número de lutas de agência. Robert Ho-
os participantes (como o polícia de Althusser), são não-
ver, que aprendeu a meditar com U Ba Khin na Birmânia
26
(o professor de Goenka), recorda a sua experiência com
causar sofrimento físico. O seu “programa de ação” – a in-
almofadas da seguinte forma:“Eu era um homem de cin-
tenção de se vingar – é bloqueado. Esta pessoa, no entanto,
co almofadas”. Hover descreveu: “Uma para me sentar,
pode estabelecer uma relação com uma arma (actante 2).
uma debaixo de cada joelho, uma atrás das minhas costas
A arma medeia o programa de ação do actante 1, na base
contra a parede, e uma que trazia sempre comigo” e mo-
do seu próprio programa de ação – a “função” de disparar.
veu a sua mão no ar abanando uma almofada imaginária
Um novo actante emerge (actante 1 + actante 2), com um
dizendo “caso seja necessário”. Demonstrou a sua postu-
novo programa traduzido: a morte da pessoa contra a qual
ra inicial: ombros encolhidos, joelhos levantados e uma
o humano se quer vingar...O programa de ação original é
expressão de confusão no rosto” (Lerner, 1977: 61). Judith
por isso “traduzido” ou “transformado” num novo pro-
Toy, uma praticante de Zen, começou por utilizar um ban-
grama através da mediação técnica” (Verbeek, 2005: 156).
co, depois de muitos anos de meditação, para se conseguir
O programa de ação dos retiros Zen é promover a plena
sentar por longos períodos de tempo. Até chegou a coser
consciência. No entanto, os participantes lidam com uma
um pequeno colchão no topo do banco, reforçando a im-
série de resistências – estão distraídos, pensam sobre a
portância dos equipamentos no contexto das práticas
casa, o passado e o futuro, apesar de estarem rodeados por
contemplativas (Toy, 2011: 115-116). Dispositivos arquite-
um ambiente radicalmente diferente. Para que a plena
tónicos, ambientes, a distribuição do espaço e os não-hu-
consciência possa ser materializada, um novo dispositi-
manos criam associações que alteram a forma como as
vo, o sino, é utilizado para ajudar os participantes a voltar
pessoas utilizam os seus corpos e interagem com os ou-
ao momento presente. Este não-humano não é facilmente
tros, levando a uma transformação do seu habitus (Bour-
recrutado – os participantes humanos resistem ao agen-
dieu, 1977). Existe um exemplo que agora iremos explorar
ciamento e lutam para implementar um novo modo de
e que diz respeito aos sinos nos retiros Zen na tradição de
existência. Como um entrevistado me disse, o sino pode
Plum Village. Nos retiros Zen, os sinos são actantes com
até ter um efeito indesejado, ligado à expetativa que uma
uma presença quase ubíqua. São utilizados constante-
sessão de meditação irá chegar ao fim: “As pessoas podem
mente para anunciar o início de uma atividade (comer,
estar aborrecidas, ou impacientes, e podem apenas estar à
caminhar, sentar) e os praticantes são encorajados a pa-
espera do sino tocar…e depois, o que acontece quando o
rar aquilo que estão a fazer e a focarem-se na respiração.
sino toca? Certamente se sentem aliviadas…acontece-me
Idealmente, isto é feito ao longo de três ciclos de inspira-
isso por vezes, sento-me e estou à espera do sino tocar!”
ção e expiração. Como Thich Nhat Hanh afirma: “quando
(Entrevista, Plum Village, Fevereiro de 2011). A utiliza-
escutamos o som do sino, paramos de falar e de nos mo-
ção de sinos parece ser contraproducente: se a meditação
ver. Relaxamos o nosso corpo e tornarmo-nos conscientes
deve permitir o desenvolvimento de atenção através da
da respiração. Fazemo-lo naturalmente, com prazer, e sem
instalação de novos automatismos meditativos, o sino pa-
qualquer rigidez” (Hanh, 2009: 20). Os sinos, de acordo
rece levar a novos condicionamentos (Watson and Ray-
com a teoria do ator rede, são mediadores, e traduzem um
ner, 1920) que dificultam a prática da meditação. Para que
programa de ação (Akrich and Latour, 1992). Como Ver-
se possa apreciar o sino, é necessário praticar: em suma,
beek explica:“Quando uma tecnologia medeia, isso envol-
o sino apenas pode servir o programa de ação do retiro
ve a “tradução” de um “programa de ação”. Imaginemos
se aqueles que o escutam levarem a cabo um processo de
que uma pessoa (actante 1) está zangada e quer vingar-se
aprendizagem, transformando os seus automatismos e as-
de outra pessoa, mas não é suficientemente forte para lhe
sociando o seu som à plena consciência, ao invés de pro
28
(o professor de Goenka), recorda a sua experiência com
causar sofrimento físico. O seu “programa de ação” – a in-
almofadas da seguinte forma:“Eu era um homem de cin-
tenção de se vingar – é bloqueado. Esta pessoa, no entanto,
co almofadas”. Hover descreveu: “Uma para me sentar,
pode estabelecer uma relação com uma arma (actante 2).
uma debaixo de cada joelho, uma atrás das minhas costas
A arma medeia o programa de ação do actante 1, na base
contra a parede, e uma que trazia sempre comigo” e mo-
do seu próprio programa de ação – a “função” de disparar.
veu a sua mão no ar abanando uma almofada imaginária
Um novo actante emerge (actante 1 + actante 2), com um
dizendo “caso seja necessário”. Demonstrou a sua postura
novo programa traduzido: a morte da pessoa contra a qual
inicial: ombros encolhidos, joelhos levantados e uma ex-
o humano se quer vingar...O programa de ação original é
pressão de confusão no rosto” (Lerner, 1977: 61). Judith
por isso “traduzido” ou “transformado” num novo pro-
Toy, uma praticante de Zen, começou por utilizar um ban-
grama através da mediação técnica” (Verbeek, 2005: 156).
co, depois de muitos anos de meditação, para se conseguir
O programa de ação dos retiros Zen é promover a plena
sentar por longos períodos de tempo. Até chegou a coser
consciência. No entanto, os participantes lidam com uma
um pequeno colchão no topo do banco, reforçando a im-
série de resistências – estão distraídos, pensam sobre a
portância dos equipamentos no contexto das práticas
casa, o passado e o futuro, apesar de estarem rodeados por
contemplativas (Toy, 2011: 115-116). Dispositivos arquite-
um ambiente radicalmente diferente. Para que a plena
tónicos, ambientes, a distribuição do espaço e os não-hu-
consciência possa ser materializada, um novo dispositivo,
manos criam associações que alteram a forma como as
o sino, é utilizado para ajudar os participantes a voltar ao
pessoas utilizam os seus corpos e interagem com os ou-
momento presente. Este não-humano não é facilmente
tros, levando a uma transformação do seu habitus (Bour-
recrutado – os participantes humanos resistem ao agen-
dieu, 1977). Existe um exemplo que agora iremos explorar
ciamento e lutam para implementar um novo modo de
e que diz respeito aos sinos nos retiros Zen na tradição de
existência. Como um entrevistado me disse, o sino pode
Plum Village. Nos retiros Zen, os sinos são actantes com
até ter um efeito indesejado, ligado à expetativa que uma
uma presença quase ubíqua. São utilizados constante-
sessão de meditação irá chegar ao fim: “As pessoas podem
mente para anunciar o início de uma atividade (comer,
estar aborrecidas, ou impacientes, e podem apenas estar à
caminhar, sentar) e os praticantes são encorajados a parar
espera do sino tocar…e depois, o que acontece quando o
aquilo que estão a fazer e a focarem-se na respiração.
sino toca? Certamente se sentem aliviadas…acontece-me
Idealmente, isto é feito ao longo de três ciclos de inspira-
isso por vezes, sento-me e estou à espera do sino tocar!”
ção e expiração. Como Thich Nhat Hanh afirma: “quando
(Entrevista, Plum Village, Fevereiro de 2011). A utilização
escutamos o som do sino, paramos de falar e de nos mo-
de sinos parece ser contraproducente: se a meditação
ver. Relaxamos o nosso corpo e tornarmo-nos conscientes
deve permitir o desenvolvimento de atenção através da
da respiração. Fazemo-lo naturalmente, com prazer, e sem
instalação de novos automatismos meditativos, o sino pa-
qualquer rigidez” (Hanh, 2009: 20). Os sinos, de acordo
rece levar a novos condicionamentos (Watson and Ray-
com a teoria do ator rede, são mediadores, e traduzem um
ner, 1920) que dificultam a prática da meditação. Para que
programa de ação (Akrich and Latour, 1992). Como Ver-
se possa apreciar o sino, é necessário praticar: em suma, o
beek explica:“Quando uma tecnologia medeia, isso envol-
sino apenas pode servir o programa de ação do retiro se
ve a “tradução” de um “programa de ação”. Imaginemos
aqueles que o escutam levarem a cabo um processo de
que uma pessoa (actante 1) está zangada e quer vingar-se
aprendizagem, transformando os seus automatismos e as-
de outra pessoa, mas não é suficientemente forte para lhe
sociando o seu som à plena consciência, ao invés de pro-
29
jetarem no dispositivo um conjunto de expetativas (comi-
grafia contemplativa. Alteram e medeiam as ações huma-
da, descanso, sono, etc.). Se, de acordo com Latour (1991),
nas, solicitando aos humanos que adaptem os seus
não existe disciplina sem aço, também não podem existir
automatismos e que se associem a novos aparatos mate-
retiros Zen sem sinos. Recordo-me que numa ocasião, na
riais para praticar meditação.
primavera de 2012, eu estava a cargo de tocar o sino durante um dia de plena consciência em Devon, no sul de Inglaterra, para lembrar as pessoas a voltarem ao Hall de
conclusão
meditação durante um período de prática. Demorei um
Neste artigo analisaram-se os dispositivos espaciais e ma-
pouco mais de tempo para chamar toda a gente (tive de
teriais presentes em retiros de meditação à luz da teoria
tocar o sino várias vezes, dado que as pessoas estavam es-
pós-humanista dos ECT. As ontologias meditativas são
palhadas ao longo da propriedade) e quando regressei ao
consideradas não-fraturantes na medida em que visam
Hall de meditação cheguei à conclusão de que os organi-
uma suspensão dos dualismos modernos entre mente e
zadores do retiro estavam preocupados porque não ti-
corpo, eu e outros, humanos e não-humanos. O objetivo
nham sino para anunciar a atividade seguinte. Existem
deste artigo não era uma análise fenomenológica dos es-
várias técnicas e procedimentos para tocar o sino, depen-
tados mentais gerados pela prática meditativa (ver Carva-
dendo das circunstâncias. Pode ser utilizado durante ce-
lho, 2014b) mas sim uma exploração das reconfigurações
rimónias de ordenação, para anunciar uma nova ativida-
ambientais necessárias para que estas tecnologias do su-
de ou apenas para assegurar que todos os participantes
jeito possam ser aplicadas. Tendo como pano de fundo as
estão a praticar mindfulness. Ao invés de tocar o sino, di-
preocupações ontológicas e políticas dos ECT, podemos
z-se que este é convidado. Convidar o sino requer o de-
argumentar que estas reconfigurações reforçam o papel
senvolvimento de um estado de espírito particular. Isto
dos ambientes e associações na constituição de subjeti-
significa que, para ativar o sino, é preciso transformar os
vidades, e permitem-nos situar e contextualizar as redes
automatismos habituais. O sino e o praticante associam-
de subjetivação espacial da modernidade dualista. As ex-
-se para produzir o som que idealmente deve permitir a
periências de John C. Lilly e de Chris Salter sobre isola-
outros atingirem um estado de plena consciência: devem
mento e estados alterados de consciência demonstraram
escutá-lo, respirar três vezes e permanecer no momento
que a mente humana é profundamente afetada a partir do
presente.Sinos, almofadas e os dispositivos materiais pre-
momento em que os estímulos habituais são suspensos.
sentes nos retiros podem ser entendidos como mediado-
Reconhecendo que existe uma relação entre experiência
res que suportam a prática da meditação, convidando os
e ambiente, e que, de acordo com a ecologia profunda e
atores humanos a alterar a sua postura, afeto e como fa-
a cibernética (Bateson, 1972), a crise ecológica ambiental
zem sentido da sua experiência. Estes não-humanos são
está profundamente associada a um modelo psicológico
dispositivos de subjetivação material: as almofadas são
dualista, é fundamental criar e disseminar espaços que
utilizadas cuidadosamente para permitir a emergência
promovam a emergência de estados não-fraturantes. Es-
de uma postura correta; os sinos são mediadores de plena
tes espaços, reencantados através da disseminação de ins-
consciência – permitem a transição de uma atividade
crições, dispositivos materiais e arquitetónicos, facilitam
para outra e requerem aos participantes que se envolvam
a superação de ontologias extrativistas, promovendo uma
em novas performances. Estes diferentes materiais per-
maior consciência do corpo, da alteridade e dos não-hu-
mitem a emergência do retiro enquanto uma psicogeo-
manos. Reconhecendo que, no período do Antropoceno,
30
as crises ambientais estão profundamente interligadas
ley, California: Parallax Press.
com o comportamento humano, esta análise das psico-
Hanh, T. N. (2009). Happiness. Berkeley, California: Parallax
geografias meditativas pode ajudar-nos a refletir acerca
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do papel do espaço na emergência de ontologias simétri-
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31
Identidade, continuidades e descontinuidades da cultura urbana portuguesa, séculos XVIII-XX
muito menor capacidade de o plano se articular harmoniosamente com o sítio. Os planos de Ressano Garcia para a construção da Avenida da Liberdade e das Avenidas Novas, em Lisboa, são disso expressão. Embora antigas vias de penetração na cidade sejam aceites como limites do plano e outras importantes vias sejam integradas no traçado, como a antiga estrada da circunvalação, noutros casos há uma incapacidade de entender, e muito menos de tirar partido, das características topográficas do sítio. Isso observa-se, por exemplo, no local escolhido para a construção da Rotunda do Marquês de Pombal e no traçado das vias que aí convergem, ou na total desarticulação do
Manuel C. Teixeira
largo do Andaluz – até então, um nó importante da cidade – com o plano.
resumo
No século XX essa incapacidade de incorporar o sítio
Uma das principais características do urbanismo de ori-
natural no plano torna-se mais evidente. O plano de Al-
gem portuguesa consiste na adaptação do traçado às ca-
valade, embora ainda seja uma expressão do urbanismo
racterísticas morfológicas do sítio. Podemos observar as
clássico, baseia-se em referências internacionais, mais
estratégias de desenho utilizadas para levar a cabo essa
do que na cultura urbana portuguesa. Nenhuma das vias
adaptação em múltiplas fundações urbanas, de várias
pré-existentes foi tomada em consideração no novo traça-
épocas, quer em Portugal quer em territórios ultramari-
do e os antigos edifícios singulares que existiam na zona
nos. Essa característica constitui um dos principais facto-
foram deficientemente integradas no plano.
res identitários da cultura urbana portuguesa. Os planos modernistas, a partir dos anos 50, completaNos planos para a reconstrução de Lisboa após o terra-
ram a rotura com a cultura urbana portuguesa. Embora
moto de 1755 encontramos diversas expressões da síntese
atentos às condições ambientais, observa-se contudo um
da geometria, assumida como princípio regulador, com a
distanciamento das lógicas de estruturação do território
adequação ao sítio e às pré-existências. O plano elabora-
e das pré-existências construídas. Nalguns casos, a multi-
do por Eugénio dos Santos e António Carlos Andreas é
plicidade de vias desniveladas, túneis e viadutos eviden-
aquele que melhor traduz essa síntese. É um plano com
ciam a incapacidade de relação com o sítio, da mesma
uma estrutura de vias hierarquizada e com uma estrutu-
forma que raramente as vias ou as estruturas existentes
ra de vias bem definida que se ajusta aparentemente sem
são integradas ou tomadas como referência para a orga-
esforço à topografia e às pré-existências. Esta é contudo a
nização das novas malhas urbanas.
última situação em que se observam claros elos de continuidade com esta tradição urbana portuguesas.
Contrariamente ao que se observa no domínio da arquitectura, em que desde o século XIX existiu uma reflexão
Planos subsequentes, dos séculos XIX e XX mostram uma
33
continuada sobre a arquitectura tradicional portuguesa, o
mesmo não aconteceu no urbanismo. A tradição urbana
tegrar as influências teóricas, em contínua mutação e na
portuguesa não foi investigada, antes abandonada, abra-
sua origem muitas vezes estranhas à cultura local, na sua
çando-se modelos internacionais com resultados ques-
maneira específica de pensar e de construir a cidade, fun-
tionáveis. O resultado é que a identidade do urbanismo
dada nas suas próprias raízes culturais e civilizacionais.
de origem portuguesa se foi perdendo, tornando-se ur-
Isto significa que em cada momento essa componente
gente levar a cabo uma reflexão crítica sobre o urbanis-
erudita, em permanente evolução, se articulava com um
mo tradicional português. Tal reflexão deve fundamentar
fundo de permanência e de estabilidade, que se traduzia
quer a reabilitação dos tecidos urbanos históricos quer a
numa grande capacidade de entender as características
concepção de novos espaços urbanos, renovando os laços
físicas do sítio, numa predisposição para se moldar a esse
com a nossa identidade cultural.
território, construindo-se com ele e alterando a regulari-
1. continuidades e descontinuidades do urbanismo português.
dade original quando necessário. Ao longo dos tempos, em múltiplos contextos geográficos, em Portugal e no mundo, vemos diferentes expressões desta síntese, mas apesar desta diversidade o urba-
O urbanismo português caracteriza-se pela permanência,
nismo português soube construir uma identidade que se
ao longo do tempo, e numa grande diversidade de contex-
consubstancia num conjunto de invariantes que caracte-
tos geográficos, de um conjunto de características morfo-
rizam indelevelmente estas cidades. Dessas invariantes,
lógicas e de processos de concepção e construção que de-
uma das mais importantes é precisamente o modo como
finem a sua identidade. São estas características que dão
os traçados urbanos resultam sempre daquele processo
aos espaços portugueses, independentemente do tempo e
de síntese, através do qual um plano definido a partir de
do local em que foram construídos, e para além das suas
uma estrutura regular, de base geométrica, é subsequente-
óbvias diferenças, o sentido de familiaridade que lhes é
mente adaptado ao sítio, moldando-se às suas caracterís-
comum.
ticas físicas e às pré-existências construídas.
As cidades portuguesas são, por um lado, expressão de
Daqui resultava que as cidades portugueses raramente
princípios vernaculares de organização territorial, carac-
eram geometricamente regulares. Apercebemo-nos da
terizados por uma relação muito próxima com as carac-
sua lógica e da sua regularidade, mas estas eram a maior
terísticas físicas do sítio em que se constroem, e que re-
parte das vezes subvertidas para se adaptarem ao sítio,
sultavam habitualmente em traçados não geometrizados;
às pré-existências e às necessidades funcionais, formais
por outro lado, as cidades portuguesas são também ex-
e simbólicas. Contudo, esta plasticidade não significa-
pressão da cultura urbana erudita, que habitualmente se
va, nem se traduzia em traçados urbanos amorfos. Pelo
traduziam em traçados geometrizados que se impunham
contrário, as cidades portuguesas eram eminentemente
ao território. O urbanismo português resultou sempre da
estruturadas e hierarquizadas. Para além disso, eram fa-
síntese destas duas componentes: por um lado, a teoria, o
cilmente legíveis e paisagisticamente ricas.
plano idealizado, a geometria; por outro lado, a experiência prática e o confronto com a realidade (Teixeira, 2012).
Podemos observar em múltiplas fundações urbanas, de
O urbanismo português teve sempre a capacidade de in-
várias épocas, quer em Portugal quer em territórios ul-
34
tramarinos, as estratégias de desenho utilizadas para levar a cabo essa adaptação ao sítio. Através da construção das principais vias da cidade sobre as linhas de festo e as linhas de vale, da implantação de edifícios notáveis em pontos topograficamente dominantes, do desenvolvimento de praças nos pontos de articulação das grandes vias estruturantes, ou associadas àqueles edifícios notáveis localizados em pontos singulares, a cidade ajustava-se naturalmente à estrutura do território. As hierarquias e a estrutura fundamental da cidade reproduziam as hierarquias e a estrutura natural do sítio, tornando explícitas as relações entre sítio e plano urbano, entre linha natural e via estruturante, entre local dominante e arquitectura notável, entre ponto singular e praça. As formas de entendimento do território transformavam-se nos códigos de leitura do espaço urbano.
São Tomé, São Tomé. A estrutura das cidades portuguesas marítimas.
Destes processos, e das estratégias de desenho adoptadas, resultava uma cidade que não contrariava o sítio e as circunstâncias físicas em que se construía, antes tirava partido deles e se construía com eles. Uma cidade que não
Rio de Janeiro, Brasil. A cidade, baseada numa estrutura regular, adaptada ao sítio e às pré-existências
se cristalizava em modelos formais rígidos, que era generosamente aberta a integrar pré-existências, a adaptar-se Lisboa, Portugal. Edifícios singulares localizados em posições dominantes, ruas construídas sobre linhas de vale e ao longo da margem do rio, praças localizadas no cruzamento de vias estruturantes
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a novas condicionantes ambientais ou novas circunstâncias funcionais ou sociais. Se tanto na arquitectura como no desenho urbano, um elemento definidor da sua qua-
plano, adequando-o mais eficazmente à realidade física e às pré-existências construídas. Será este processo que esteve na base de inúmeros núcleos urbanos coloniais. Mesmo quando esta adaptação ao sítio não se verificava na fase de implantação, a realidade acabava inevitavelmente por se impôr ao plano. Características físicas do território ou pré-existências que não haviam sido tomadas em consideração, bem como a distância temporal entre a realização do plano e a sua efectiva concretização, mudanças de prioridades, de objectivos ou de recursos disponíveis, mudanças na estrutura de propriedade ou uma diferente cultura urbana e arquitectónica, implicavam alterações que iam sendo levadas a cabo ao longo do processo de implementação. Esta tradição urbana portuguesa, que combinava a capacidade de construir com o sítio com uma importante componente de geometria e de regularidade, foi sendo elaborada ao longo de séculos através da intensa prática de urbanização levada a cabo em múltiplos locais por enSalvador da Bahia, Brasil. A construção da principal via estruturante sobre a linha de cumeada. A localização de praças nos pontos de inflexão da linha de cumeada
genheiros militares que combinavam a formação teórica
lidade é a capacidade de acomodar futuras transforma-
urbanos a vários contextos geográficos e materiais, mol-
ções, as cidades portuguesas, evidenciando um grande
dando-os conforme as necessidades, foram determinantes
pragmatismo nas soluções adoptadas, eram exemplares
neste processo. O urbanismo português é o resultado de
na sua capacidade de se adaptarem a novas necessidades
inúmeras experiências, processos de troca e influências
urbanas.
recíprocas levados a cabo em Portugal, nas ilhas Atlânticas,
com os conhecimentos práticos acumulados por gerações. A experiência colonial, e a necessidade de adaptar modelos
no Brasil, em África, na Índia e no Oriente. Este modo português de construir cidades nunca foi explicitamente teorizado, mas encontramos algumas pistas
Até ao final do século XVIII tais características são cla-
no que se refere aos processos de concepção, de desenho
ramente legíveis nas cidades de origem portuguesa cons-
e de construção, em escritos teóricos de Serrão Pimentel
truídas pelo mundo, independentemente das sínteses
e de Manoel da Maia (Pimentel, 1680; Maia, 1755). Ambos
específicas que lhes haviam dado origem. Nos diferentes
consideravam uma componente essencial do processo de
planos pombalinos para a reconstrução da Baixa de Lis-
urbanização o confronto com o sítio, em consequência do
boa (Oliveira, 2007) temos o privilégio de ver, como al-
qual se deviam fazer todos os ajustamentos necessários ao
ternativas para um mesmo local, várias dessas sínteses,
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que iam desde planos que asseguravam uma quase total
e aqueles que pretendiam a modernização a partir dos
continuidade das pré-existências anteriores ao terramo-
ideais da Revolução Francesa e da violenta rejeição da-
to, em termos quer de arquitectura quer de traçado, até
queles valores tradicionais.
um plano que se regia por rígidos princípios geométricos, descurando muitas das preexistências locais.
A associação entre cultura tradicional e uma prática social e política de direita irá permanecer até hoje, com uma
Uma questão que se pode colocar é se este património de
expressão bastante acentuada no período do Estado Novo,
saber prático era reconhecido e acarinhado pelas elites
contagiando a prática e o discurso do urbanismo e da ar-
iluministas ou se, pelo contrário, começava a ser rejeitado.
quitectura. Em termos maniqueístas, que ainda prevale-
Planos da segunda metade de setecentos mostram-nos já
cem, a aceitação de valores culturais tradicionais expres-
uma quebra na sensibilidade que encontramos em ante-
saria uma atitude de direita, enquanto ser progressista
riores propostas: uma menor aproximação ao território,
implicaria necessariamente a rejeição da cultura tradi-
uma menor disposição para moldar o plano, deforman-
cional. A realização do Inquérito à Arquitectura Regional,
do-o se necessário, para melhor se ajustar à topografia e às
em meados do século XX, veio tornar este discurso um
perspectivas paisagisticamente interessantes. Vai prevale-
pouco menos linear, mas ainda pleno de ambiguidades e
cendo a geometria e a regularidade dos planos ortogonais,
contradições.
patentes na maior parte dos planos brasileiros deste período, no plano de Vila Real de Santo António ou no plano
A cidade mudou, no que se refere às suas exigências
seleccionado da Baixa de Lisboa.
funcionais, de conforto e de desempenho, aos critérios estéticos, aos agentes envolvidos no seu planeamento e
No século XIX verifica-se uma ruptura nos modos tra-
construção, ao próprio quadro legal existente. No entan-
dicionais de construção da cidade, com as consequentes
to, essas mudanças não são maiores do que as que se ve-
alterações morfológicas. Com Ressano Garcia, o urbanis-
rificaram entre a cidade medieval e a cidade quinhentista
mo português deixa de atender ao sítio e às pré-existên-
ou entre esta e a cidade barroca, que no entanto sempre
cias com a mesma atenção de anteriormente. Os modelos
souberam acomodar na sua diversidade de referências a
adoptados já não são os da cidade histórica e da cultura
continuidade da cultura urbana portuguesa.
urbana portuguesa, mas modelos estrangeiros, aceites acriticamente, não assimilados nem articulados com a cultura portuguesa autóctone, como sempre tinha acontecido até então.
2. os planos de eugénio dos santos e antónio carlos andreas
A rejeição, em múltiplos campos, dos valores tradicionais da cultura portuguesa que se verificou no início do século
Nos seis planos para a reconstrução da Baixa de Lisboa
XIX, veio a ter expressão também no modo como as nos-
após o terramoto de 1755 encontramos diversas expres-
sas cidades se passaram a construir. A luta entra facções
sões da síntese da geometria, assumida como princípio
políticas na primeira metade do século, foi também um
regulador, com a adequação ao sítio e às pré-existências.
confronto cultural entre aqueles que pretendiam assegu-
As várias propostas articulam, de diferentes modos, três
rar a continuidade das tradições e da cultura portuguesas,
características do urbanismo português: a resposta atenta
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às características físicas e às pré-existências do sítio em
encostas é feita de uma forma cuidadosa e subtil, através
que se constrói, o rigor geométrico que está sempre sub-
da acomodação gradual, sem roturas, dos quarteirões late-
jacente aos traçados, e as referências explícitas à tradição
rais à estrutura urbana pré-existente e à topografia das co-
urbana portuguesa. Cada uma das propostas evidencia
linas. Este plano é o resultado de uma síntese harmoniosa
mais um ou outra destas características, traduzindo de
das componentes vernaculares e eruditas do urbanismo
forma diferente a síntese de culturas urbanas que está
português, conseguindo articular de uma forma inteli-
sempre presente no urbanismo português.
gente o respeito pelas pré-existências, arquitectónicas e urbanas, com uma grande regularidade, que está clara-
O plano elaborado por Eugénio dos Santos e António
mente expressa na geometria e nas hierarquias do plano.
Carlos Andreas, em que, segundo cremos, este terá tido um papel determinante na sua concepção, é aquele que
Também no plano para a expansão de Lisboa assinado
traduz essa síntese de uma forma mais interessante. É
pelos mesmos Eugénio dos Santos e António Carlos An-
um plano de base ortogonal, com uma estrutura de vias hierarquizada, que se ajusta aparentemente sem esforço à topografia e às pré-existências. Estas preexistências são de dois tipos. Por um lado, a memória do traçado anterior ao terramoto, presente no plano através da permanência das praças do Rossio e do Terreiro do Paço como elementos polarizadores, no traçado das ruas longitudinais articulando as colinas, na hierarquia das ruas que percorrem o plano na direcção norte-sul e no modo como estas se relacionam com as duas praças. Este apelo à memória subentende-se, mas não se expressa literalmente no novo traçado. Por outro lado, as pré-existências construídas, que são fundamentalmente as igrejas de antes do terramoto que, reconstruídas nos mesmo locais e com as mesmas orientações, são integradas no plano como importantes elementos de referência, tornando-se os pontos fulcrais das perspectivas das ruas e elementos estruturantes fundamentais. A aceitação das anteriores localizações das igrejas não constituiu um obstáculo à elaboração do plano que, pelo contrário, tira partido dessa situação. O plano consegue explorar formalmente as perspectivas oferecidas pelas igrejas, orientando ruas na sua direcção, e ao mesmo tempo inscreve o traçado numa lógica geométrica muito definida e rigorosamente hierarquizada. A relação com as
Lisboa, Portugal Plano de reconstrução da Baixa de Lisboa de Eugénio dos Santos e António Carlos Andreas. A organização da malha urbana em função dos edifícios religiosos pré-existentes.
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dreas, juntamente com Carlos Mardel e Elias Sebastião
Estrada de Entrecampos, e outras são integradas no pla-
Poppe, é perceptível a mesma preocupação em integrar
no, como a antiga estrada da circunvalação, hoje avenida
estruturas urbanas existentes na nova lógica urbana. O
Duque de Ávila, outras são marginalizadas e ignorada a
plano consiste num conjunto de grandes praças – de for-
sua lógica urbana, como acontece com os eixos constituí-
ma octogonal, quadrada ou elíptica – onde convergem
dos pelas ruas das Portas de Santo Antão / São José / Santa
grandes eixos estruturantes da cidade. Estes grandes ei-
Marta / São Sebastião da Pedreira, ou pelas ruas dos Anjos
xos, que cruzam a cidade irradiando destas praças, por
/ Arroios.
sua vez articulam diversas malhas urbanas ortogonais que cobrem o território da cidade.
O mesmo acontece com a relação com o sítio, em que se observa uma incapacidade de entender, se adaptar e tirar
Se muitas dos antigos percursos desaparecem sob este
partido das características topográficas. Isso é perceptí-
novo traçado, houve contudo o cuidado de preservar e de
vel no local escolhido para a construção da rotunda do
integrar no plano as antigas vias de penetração na cidade.
Marquês de Pombal, no traçado das vias que aí conver-
Da mesma forma, enquanto as novas praças se localizam
gem, particularmente da avenida Fontes Pereira de Melo
em terrenos anteriormente não construídos, os princi-
construída numa situação topográfica particularmente
pais nós de articulação da antiga estrutura viária – como é
adversa, ou na total desarticulação de antigos nós impor-
o caso do largo do Rato, o largo do Andaluz, a Cruz do Ta-
tantes na organização urbana da cidade, como o largo do
boado, ou o campo dos Mártires da Pátria – são integrados
Andaluz.
na nova lógica urbana, nalguns casos permanecendo basicamente inalterados na sua forma, noutros casos sendo
A referência para estes planos já não é o urbanismo por-
regularizados. Estas são contudo praticamente as últimas
tuguês tradicional, nas suas múltiplas expressões, mas
instâncias em que se observam claros elos de continui-
o modelo francês das intervenções Haussmanianas que
dade com a tradição urbana portuguesa, numa simbiose
Ressano Garcia teve a possibilidade de observar. Aluno
bem sucedida.
do primeiro curso da Escola Politécnica de Lisboa, Ressa-
3. a expansão de lisboa de ressano garcia, o plano de alvalade de faria da costa
no Garcia frequenta de 1866 a 1869 a École Impériale dês Ponts et Chaussées, em Paris (Silva, 1989). Para além da sua formação académica, Ressano Garcia é testemunha directa das profundas transformações urbanas então em curso na cidade, e que vai tentar reproduzir em Lisboa, adaptadas às realidades económicas, sociais e legais locais. É isso que se
Planos subsequentes, dos séculos XIX e XX evidenciam
expressa na despreocupada fragmentação de malhas urba-
uma menor preocupação, ou uma menor capacidade, de
nas e de antigos percursos da cidade, ou nas preocupações
se articular harmoniosamente com o sítio e as pré-exis-
formalistas com a construção da rotunda do Marquês de
tências. Os planos de Ressano Garcia para a expansão de
Pombal, em que, contrariando a topografia do terreno, se
Lisboa nos finais do século XIX são disso expressão. Se,
investe na simetria das ruas que nela convergem.
nalguns casos, antigas vias de penetração na cidade foram aceites, nalguns troços do seu percurso, como limites do
No século XX, essa indisponibilidade para incorporar nos
plano, como é o caso do eixo da rua de Dona Estefânia /
planos o sítio natural e as pré-existências torna-se ainda
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situa-se num ponto topograficamente dominante, a praça do Areeiro situa-se noutro dominante, no final de uma linha que se inicia na Baixa e sobre a qual se implantou a avenida Almirante Reis, e o traçado da avenida Guerra Junqueiro coincide com um percurso já existente.
Lisboa, Portugal 1. Elementos estruturantes do território anteriores ao plano de Ressano Garcia. 2. Os elementos estruturantes pré-existentes e o plano de expansão da cidade.
mais evidente. O plano de Alvalade dos anos 40 é expressão dessa atitude. A influência francesa, já presente em Ressano Garcia, foi, também aqui, determinante. Faria da
Lisboa, Portugal 1. Elementos estruturantes do território anteriores ao plano de Faria da Costa. 2. Os elementos estruturantes pré-existentes e o plano de Alvalade.
Costa, autor do plano, concluído o seu curso de Arquitec-
Pelo contrário, o traçado das novas ruas de Alvalade não
tura em 1933, na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,
tem as mesmas preocupações e os pontos topografica-
foi completar a sua formação em Paris, onde frequentou,
mente dominantes existentes na área do plano não têm
até 1935, o Institut d’Urbanismo de l’Université de Paris
qualquer tradução na organização urbana. Nenhuma das
(Camarinhas, 2009). Embora ainda expressão do urba-
vias existentes foi tomada em consideração no novo tra-
nismo das ruas, das praças e dos quarteirões, que irão ser
çado. A via principal que atravessava todo a área do plano,
brevemente abandonados, o plano de Alvalade baseia-se
sensivelmente na direcção Sul-Norte, não foi considera-
fundamentalmente em referências internacionais – da ci-
da no novo traçado. O mesmo aconteceu com os muitos
dade-jardim Americana, a Amesterdão-Sul de Berlage, e às
caminhos existentes. As poucas quintas que foram pre-
influências francesas de Étienne De Groer – mais do que
servadas foram deficientemente integradas no plano. Por
na cultura urbana portuguesa, que no entanto teria sido
sua vez, os pontos topograficamente dominantes deste
fácil de articular.
território não foram seleccionados para a localização de quaisquer edifícios ou situações urbanas privilegiadas.
Na zona de expansão da cidade que antecede imediatamente a área do plano de Alvalade, entre a Alameda Afon-
Se nalguns casos os nós de articulação das principais vias
so Henriques e a linha de comboio de cintura, incluindo
têm ainda uma justificação do ponto de vista da estrutura
a praça do Areeiro e a praça de Londres, podemos ver ain-
natural do sítio, como é o caso do cruzamento da avenida
da as preocupações que houve na adaptação ao sítio e no
de Roma com a avenida dos Estado Unidos da América,
traçado dos novos arruamentos seguindo a topografia as
noutros casos estes nós situam-se em situações menos
linhas naturais do terreno. O Instituto Superior Técnico
justificáveis sob este ponto de vista, como é o cruzamento
40
da avenida da Igreja com a avenida de Roma. As pré-exis-
tuguesa, dando origem a tecidos urbanos desagregados,
tências foram largamente ignoradas e demolidas. Aque-
construídos sem continuidade com a cidade consolidada,
las que sobreviveram, a quinta dos Coruchéus e a quinta
sem uma estrutura coerente, não definindo hierarquias,
dos Lagares del Rei não foram aproveitadas como pontos
sem elementos de referência estruturantes, funcional-
fulcrais de percursos ou de perspectivas, como seria habi-
mente segregada e desarticulada, sem desenho dos espa-
tual nas estratégias do desenho urbano português, antes
ços públicos.
se situam anonimamente no interior de malhas urbanas. A sua inserção no plano é indiferente à lógica da organi-
O enquadramento é legal é também em grande medida
zação urbana ou parece contrariar essa organização.
responsável por esta situação, acompanhando e suportando estas transformações, ao permitir vastas extensões de
Noutros planos de urbanização da época de Duarte Pa-
terrenos urbanizáveis e ao substituir planos desenhados
checo podemos ainda aperceber a permanência da cul-
por conceitos abstractos e parâmetros urbanísticos como
tura urbanística portuguesa (Lobo, 1995), mas em breve,
instrumentos reguladores da organização do território
num novo ciclo político já de declínio ideológico do Es-
urbano. Nas últimas décadas, os instrumentos de planea-
tado Novo, esse urbanismo vai ser veemente rejeitado.
mento de larga escala vêm substituindo, na prática, os pla-
Os planos modernistas, concebidos a partir de meados
nos detalhados destinados a definir a forma e a estrutura
do século, completam a rotura com a cultura urbana tra-
da cidade. Aspectos como a forma, os tempos de concre-
dicional. Embora atentos às condições ambientais, o que
tização dos instrumentos de planeamento, e a conforma-
constituía um dos preceitos modernistas, observa-se um
ção do espaço público são em muitos casos deixados ao
distanciamento das lógicas de estruturação do território
critério do acaso ou casuísticamente resolvidos, sem arti-
e das pré-existências. O espaço urbano é concebido essen-
culação de uma forma coerente e desenhada, construindo
cialmente em função das suas exigências funcionais ou
a negação da cidade.
económicas, ou de uma lógica formal de inspiração modernista. As referências destas novas intervenções, de que
O edificado já não se relaciona com ruas ou praças. Os
os Olivais Norte ou os Olivais Sul, dos anos 50 e 60 são
espaços públicos, que eram desenhados e cenários privi-
expressão, para além dos preceitos teóricos da Carta de
legiados da vida urbana, são substituídos por um espaço
Atenas, são os múltiplos planos de reconstrução e de ex-
contínuo ou por espaços residuais entre edificações, sem
pansão de cidades Europeias no segundo pós-guerra que
forma nem desenho. A localização de funções urbanas
rejeitavam o vocabulário do urbanismo clássico.
centrais e de edifícios singulares é frequentemente alea-
4. a situação contemporânea. dez estratégias de desenho para retomar a tradição urbana portuguesa
tória, sem relação com a estrutura urbana e a relação entre a arquitectura e o plano urbano é deficiente. O papel destes edifícios singulares como elementos de referência do traçado urbano já não é compreendido. Em muitos casos, os novos tecidos urbanos não têm marcos de referência, nem uma estrutura, geométrica, ou outra, perceptível. As vias desniveladas, túneis e viadutos de algumas situações
Intervenções recentes, públicas e privadas, apenas têm
apenas evidenciam a incapacidade de relação com o sítio,
vindo a acentuar o negligenciar da cultura urbana por-
da mesma forma que raramente as vias ou as estruturas
41
existentes são integradas ou tomadas como referência
banos históricos e na concepção e desenho da cidade contempo-
para a organização das novas malhas urbanas. Nesta desar-
rânea.
ticulação com as estruturas territoriais e naturais que a suportam, a cidade perde continuidade e perde legibilidade.
i. Continuar a cidade existente, criar uma cidade compacta.
Se no domínio da arquitectura se foi fazendo uma reflexão
Os novos espaços urbanos devem ser desenhados e cons-
sobre a arquitectura popular portuguesa, ainda que com
truídos em continuidade com o tecido urbano existente,
inúmeros equívocos, posições extremadas e interpretações
sem espaços vazios ou terrenos expectantes entre eles. A
caricaturais, em que entra a habitual crítica a Raul Lino,
cidade deve ser compacta, assegurando a densidade de po-
a hagiografia do Inquérito à Arquitectura Tradicional,
pulação e de actividades que permitam a geração e a ma-
o Português Suave, o suposto esquerdismo dos heróis do
nutenção de uma vida urbana com diversidade de oferta e
Modernismo Português, esse debate nunca aconteceu no
de oportunidades.
urbanismo. A tradição urbana portuguesa não foi investigada de uma forma sistemática, foi simplesmente esque-
ii. Estabelecer fronteiras legíveis.
cida, abraçando-se modelos internacionais com resultados questionáveis.
Os limites entre os espaços urbanos e não-urbanos, bem como entre os diferentes bairros devem ser facilmente
É urgente levar a cabo uma reflexão crítica sobre o urbanis-
reconhecíveis. As diferentes unidades de crescimento da
mo tradicional português. Tal reflexão sobre os princípios
cidade devem ser claramente legíveis, e os conceitos de li-
que estiveram na base da estruturação das cidades tradicio-
mite e de porta traduzidos formalmente.
nais, entendidos e sistematizados, deve estar na base quer da reabilitação de tecidos urbanos históricos, de forma a
iii. Compreender o sítio, desenhar com o sítio.
não deturpar a sua lógica global, os seus elementos estruturantes, as suas hierarquias, os seus elementos de referência,
Os novos tecidos urbanos devem ser desenhados tendo em
quer da construção de novos espaços urbanos, renovando
consideração, e adaptando-se, às características físicas e
os laços com a nossa cultura urbana.
ambientais dos sítios em que são construídos, bem como a pré-existências construídas. As principais vias devem so-
O objectivo não é reproduzir, copiar ou mimetizar mor-
brepor-se às linhas naturais do terreno e estes eixos estru-
fologias urbanas tradicionais, mas tentar compreender
turantes devem articular-se em pontos fulcrais, de acordo
os seus princípios subjacentes e reinterpretá-los à luz das
com a topografia.
condições e das necessidades de hoje. É possível hoje, tal como o foi em todos os momentos históricos, conceber um
iv. Seleccionar locais privilegiados para a localização de funções
urbanismo português que esteja simultaneamente enrai-
e edifícios singulares.
zado na cultura urbana tradicional e dê resposta às necessidades do tempo.
Os sítios mais importantes, em termos da topografia ou da lógica geométrica subjacente ao plano, devem ser re-
Neste contexto, formula-se um conjunto de dez princípios que
servados para a localização de edifícios e de funções urba-
devem ser tidos em consideração na reabilitação de tecidos ur-
nas excepcionais, e para o desenvolvimento de espaços
42
urbanos singulares a eles associados. Estes edifícios e
ser reformuladas. Na cidade histórica tais escalas inter-
estes espaços urbanos devem constituir marcos na or-
médias são representadas pela agregação de edifícios em
ganização e na referenciação urbana.
quarteirões, em ruas, em unidades de vizinhança. Tal contribui para um maior sentido de pertença e organiza a ci-
v. Definir uma estrutura de suporte ao crescimento urbano.
dade em unidades distintas, com afinidades morfológicas.
O crescimento e a organização da cidade devem ser su-
ix. Desenhar os espaços públicos.
portados por uma estrutura geometrizada – uma estrutura de natureza conceptual ou traduzida materialmen-
Os espaços públicos, mais do que os edifícios, definem o
te – que seja claramente perceptível, na sua lógica e nas
carácter de uma cidade. Os espaços urbanos devem ser
suas hierarquias, e que organize o território urbano.
desenhados, reconhecíveis morfologicamente, terem fun-
Esta estrutura geometrizada deverá tornar-se o suporte de
ções associadas. Os espaços públicos não podem ser meros
todas as intervenções urbanas e arquitectónicas a realizar.
espaços intersticiais entre edifícios. As praças devem readquirir o seu papel como principais elementos ordenadores
vi. Definir elementos estruturantes, hierarquizar a cidade.
dos espaços urbanos, localizadas em pontos fulcrais, articulando as principais vias e as distintas unidades urbanas,
A hierarquia dos espaços urbanos da cidade é fundamen-
e como locais de implantação das principais funções urba-
tal para a definição da qualidade desses espaços. No plano
nas e de edifícios singulares.
urbano devem ser claramente legíveis os seus principais elementos estruturantes – derivados da topografia ou da
x. Re-estabelecer a relação entre a arquitectura e o plano urbano.
estrutura geométrica que lhe está subjacente – bem como as hierarquias funcionais, dos sistemas de percursos e dos
A relação entre o urbanismo e a arquitectura deve ser re-es-
nós de articulação da malha urbana. As hierarquias for-
tabelecida, quer adoptando o vocabulário clássico, definin-
mais e simbólicas devem consolidar as hierarquias funcio-
do hierarquias, eixos, perspectivas, pontos fulcrais, alinha-
nais da cidade.
mentos, quer reinventando-o, formulando um novo léxico e novas estratégias de desenho. As hierarquias de edifícios
vii. Recuperar a relação entre os espaços construídos e a rua.
e de espaços urbanos devem reforçar-se mutuamente.
As relações entre os espaços construídos e as vias de circulação, e entre os espaços públicos, semi-públicos e privados devem ser re-estabelecidas. Deverá ser possível representar a cidade através de qualquer dos seus diferentes componentes, evidenciando a articulação íntima dos vários sistemas que compõem a cidade.
4. a situação contemporânea. dez estratégias de desenho para retomar a tradição urbana portuguesa Identidade, tradição e continuidade não significam estag-
viii. Reinventar as escalas intermédias da cidade.
nação. Pelo contrário, a contínua adaptação a novas situações, implicando um processo activo de permanente re-
As escalas intermédias entre o edifício e a cidade devem
43
novação e inovação, é uma condição para a permanência
da tradição e da identidade cultural expressa nos espaços
Silva, R.H. (1989). “Lisboa de Frederico Ressano Garcia,
urbanos. Mudança é a condição necessária da tradição,
1847-1909” in Silva, R.H. (dir.) Lisboa de Frederico Ressa-
através da qual ela pode permanecer viva e continuar a
no Garcia, 1847-1909. Lisboa: Câmara Municipal de Lis-
fazer sentido para o mundo contemporâneo.
boa.
A reflexão sobre o urbanismo português tem se situar
Teixeira, M. (2012). A forma da cidade de origem portu-
nestes parâmetros. Só através de um exercício permanen-
guesa. São Paulo: Editora UNESP.
te de reinterpretação das nossas raízes culturais, em que a inovação se apoia na tradição constantemente renovada, é possível assegurar uma continuidade de cultura que responda às realidades do nosso tempo e resista à massificação da civilização global.
referências Camarinhas, C.L.T.F. (2009). L’urbanisme de Lisbonne. Eléments de théorie urbaine appliquée, These de Doctorat, Université de Paris IV – Sorbonne. Lobo, M.S. (1995). Planos de urbanização. A época de Duarte Pacheco. Porto: FAUP Publicações. Maia, M. (1755). “1ª dissertação sobre a renovação da cidade de Lisboa por Manoel da Maya, Engenh.º mor do Rno”, in Ayres, C. (1910) Manuel da Maya e os engenheiros militares portugueses no terramoto de 1755. Lisboa: Imprensa Nacional. Oliveira, M.L.M.F. (2007). Eugénio dos Santos e Carvalho. Arquitecto e engenheiro militar (1711-1760): Cultura e prática de arquitectura, Tese de Doutoramento, FCSHUNL. Pimentel, L.S.(1680). Methodo lusitanico de desenhar as fortificaçoens das praças regulares & irregulares, fortes de campanha e outras obras pertencentes a architectura militar. Lisboa: Impressão de António Craesbeeck.
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Isabel Baraona
Livros de artista Sem título, co-editado em colaboração com o atelier O Homem do Saco em 2014. Trata-se de um livro com 40 exemplares impressos em tipografia de caracteres móveis sobre gravuras em papel japonês. As páginas com as gravuras são todas diferentes tornando cada exemplar único. Capa cosida e bordada pela autora.
Prière de Bonheur é uma edição de autor de 150 exemplares, cuja materialização foi apoiada pelo Ministério da Cultura, DGartes e Fundação Calouste Gulbenkian em 2010. Dedico esta edição ao escritor belga Henry Bauchau, autor de “Oedipe sur la route” (Bruxelas, Babel, 1992) e “Antigone” (Bruxelas, Babel, 1997). Bauchau possui, para mim, o raro dom de uma escrita límpida e consegue descrever alguns dos aspectos mais complexos – sagrados e profanos - da nossa frágil natureza humana.
Reconstructing the italian script revealed in Arte de Escribir por Reglas y con Muestras Dino dos Santos
this book, it’s full title being: Arte de escribir por reglas y con muestras, según la doctrina de los mejores autores antiguos y modernos, estrangeros y nacionales, acompañado de unos principios de Aritmética, Gramática y Ortografía Castellana, Urbanidad y varios sistemas para la formación y enseñanza de los principales caractéres que se usan en Europa, Madrid, en la imprenta de la viuda de don Joaquín Ibarra. ¶ The engravings for the book were undertaken in part by Josef Asencio, and Torio apologizes for any incongruities in the plates explaining that,“Engravers are like painters in that they always find a way to input their own style into the works they realize. Don Josef Asencio was indeed the most capable
torio de la riva was born D. Torquato Torio y Herrero
and talented engraver in our country and he reproduced my
on the 1 April 1759. He completed his elementary school-
originals in the best possible way, but the amount of work he
ing and a Latin course in Carrión de los Condes, after
had at the time did not allow him the peace or attention neces-
which the cost to his parents of such an education was too
sary for such labour.” ¶ This also helps to explain the unusu-
great and he left to become a farmer for almost a year. ¶
ally high number of other engravers mentioned in the
His uncle, Pedro de la Riva, a citizen of Valladolid, then
book including Ascencio, Gangoiti, J. Castro and B. Am-
became his tutor, taking him into his home and paying
etller. Yet, despite such circumstances, Arte de Escribir is
for his studies in Philosophy, Theology and Law. Follow-
one of most amazing books on calligraphy to have been
ing his uncle’s death, however, Torio left university and
published in the late eighteenth century. Undoubtedly, it
started working for Rafael Floranes, who was to offer him
is the most relevant work on the subject in Spain since the
guidance in the disciplines of History and Diplomacy. An
earlier contributions of Juan de Yciar and Pedro Diaz Mo-
interest in calligraphy was also to emerge during an in-
rante, although Torio’s offering is beyond comparison to
ternship with the Escolapios monks in Madrid. ¶ In his
those of any of his predecessors. ¶ Put simply Torio was a
later life Torio would go on to publish more than a dozen
reflexive artist with a great talent for writing beautiful let-
books on many subjects, also translating several classics
ters. He doesn’t claim to have been the inventor of any of
into Spanish, such as The Thought of Cicero (a selection
the scripts engraved on the plates he published. He was
of philosophic writings), Simon de Nantua’s Le Marchand
also not the creator of any particular style to be followed
Forain not to mention writing books on calligraphy. ¶
by modish students, yet his Arte de Escribir remains as
The first of his calligraphy books entitled Nueva Arte de
probably the most complete compendium on the art of
Escribir was actually very badly received becoming the fo-
writing from the whole of the Iberian Peninsula in the
cus for numerous discussions and criticisms concerning
period since the Renaissance until now. ¶ In Arte de Es-
his merit as a calligrapher, owing to some imperfections
cribir Torio draws together a perfect and comprehensive
in the plates he showed. ¶ In spite of this, almost fourteen
dissertation on the history of writing and calligraphy,
years later, Torio went on to publish what is now consid-
with the faithful reproduction of what he considers to
ered his most important work: Arte de Escribir por Reglas y
have been the best calligraphic models used in Europe,
con Muestras. Our studies are based on the 1802 edition of
from the sixteenth century to the final quarter of the
eighteenth century. ¶ With amazing cultural insight, he
These are taken from the chapter Enseñanza de la letra ital-
was able to capture the spirit of many well-known callig-
iana, y sus principales variaciones, autores, sistemas, &c.,
raphers, correcting those things he found inappropriate
which is dedicated to an analysis of the Italian Script. We
and useless, while simultaneously interpreting such
chose these few plates as they are the ones that do not re-
models to suit the stylistic tastes of his own era. ¶ Torio
fer either directly, or indirectly, to any one particular au-
was, in fact, an exceptionally talented man and highly cul-
thor. As such it is our belief that these plates truly reflect
tured too, an unusual quality at that time especially
the freedom of Torio’s own calligraphy. They are also
among Spanish calligraphers. He spoke several languag-
closely related to the calligraphic style that was such a suc-
es, enjoyed a deep knowledge of mathematics and science,
cess among Spanish calligraphers of the time: the Spanish
and perfectly understood the very best of writing practice
Bastarda. In the words of Torio: “The Italians deserve dis-
from the early calligraphers onwards. ¶ Arte de Escribir is
tinction over everyone, because as has been told in the fourth
divided into three main sections: history of writing;
and final chapter, we owe to them the invention of the Bastard
on theory (followed by an incredibly rich discourse con-
script, which is so easy, beautiful and fast to learn and adapt,
cerning the proper methods for the execution of the writ-
and which was used for more than three centuries across Eu-
ing hands used since the Renaissance) and on practice.
rope.” ¶ We began our own reconstruction process with a
The work ends with a foray into arithmetic, grammar and
careful selection of characters from the many variations
orthography. ¶ Torio’s work also brought together the
as shown in the plates and then decided to start drawing a
richly contended but widely divergent opinions of the so-
few glyphs. ¶ Our main intention was to stay close to the
called Palomaristas and the Anduagistas, two sides in a long
original forms, nevertheless introducing some minor
contested discussion in the calligraphic landscape of
changes, especially in glyphs less common in Spanish,
eighteenth century Spain. ¶ Santiago Palomares argued
such as the lower and uppercase ‘k’. ¶ We believe that this
that the establishment of rules in order to understand the
is also an important part in the reconstruction process. In
perfect path for written forms was completely absurd, be-
bringing these calligraphic models forwards to the twen-
cause the plates showing the visual examples should be
ty-first century, we need to ensure they will work with
enough to explain the process. In opposition, Don José de
many more languages than the calligraphers of their time
Anduaga y Garimberti, argued that it was the rules in-
were used to. ¶ Cotarelo y Mori, in his Diccionario Biograf-
forming the writing that were most important, more im-
ico de Caligrafos Españoles, Tomo ii, wrote a highly critical
portant even than any calligraphic samples. Arte de Es-
note about Arte de Escribir, especially as it concerns the
cribir por Reglas y con Muestras, uses both educational
drawing of certain letters: “Notwithstanding the unbeatable
systems, with all the plates reflecting, in a very precise way,
beauty of the plates, some critics soon warned about the bear-
the subjects of the text. ¶ In fact Arte de Escribir por Re-
ing of the author’s personal taste and a certain attachment to
glas y con Muestras was to be declared the official book
the calligraphic rules of old. While Torio respected some man-
for teaching calligraphy. On 31 January 1801 King D. Car-
nerisms of these older calligraphic methods he exaggerated
los iv demanded by royal appointment that copies of To-
others. The main issues regarded the use of the wide ‘long s’
rio’s book should be distributed to schools, universities
which resembles an ‘f ’ and effectively makes reading difficult;
and academies throughout Spain. ¶ Our main aim in de-
the unnecessary swashes in the ‘t’ and sometimes in the ‘p’; the
veloping this typeface was to reconstruct, as accurately as
old style ‘shoes’ in the letters ‘y, p, q’; the double shape of the
possible, the first twelve plates from Arte de Escribir.
letter ‘d’ and the strange letter ‘E’, so similar to an ‘F’; and the
exaggerated size of the letter ‘v’ when used at the start of words.
other more expressive characters. ¶ A sixth and seventh
These were the main defects of his cursive script, because when
version were then introduced to our system allowing for
Torio strictly followed the work of Palomares, no errors were
glyphs specifically designed to appear at the beginning
visible.” ¶ Understanding that these are actually the key el-
and ending of words. ¶ Finally an eighth version adds a
ements that make Torio’s work unique and exquisite we
final swash to select letters whenever they’re succeeded by
decided to leave all of these features completely un-
a period, a question mark or an exclamation point. ¶ All
touched.
of these versions are programmed under the OpenType feature of Contextual Alternates, which is on by default.
THE TECHNIQUE
A set of ligatures, including ligatures for letters separated by a space present in Torio’s original plates, were designed
from our research we were able to arrive at a type-
and programmed under an OpenType feature (Ligatures)
face with at least four versions of each letter, all designed
that is also on by default. ¶ This means that everything
to ensure perfect flow in connecting strokes and the
just works right from the start. We feel so strongly that
rich calligraphic variety representative of Torio’s orig-
all of these features are essential to this typeface and so
inal plates. ¶ These letter variations are all contextually
it makes sense they should be turned on all the time. ¶ A
programmed, so as to be determined by the letters that
feature titled Swashes provides the user with the option
succeed them. At dstype we joked that it was a dictato-
to swap all upper ascenders with swash versions. This fea-
rial script! The letter you’re going to type next is always
ture is off by default, requiring the user to turn it on when
going to determine the shape of the letter you’re typing
necessary. We felt that this was best since those swashes
now, and all without any intervention from you. ¶ In that
are an exception in the original plates. ¶ We have tried
sense the first variation of each letter will always appear
hard to maintain the key characteristics of those original
before every letter with a short stem on the left side, such
Torio plates, propelling them forwards from the eighteen
as the i, j, m, n, p, r, t, or u as well as heart-shaped letters
century into our digital world, all the while keeping
such as the v, w and y. The second version precedes letters
the fluid spirit of their construction and an
with round shapes on the left side such as the a, c, d, e, g,
essential sense of the composition
o and q. The third version was specially designed to con-
of their Spanish
nect with the letters s, x and z, and the fourth to precede
calligra-
letters with left ascenders such as the b, f, h, k or l. These
phy.
versions are available for every single letter, both in upper
‡
and lowercase, and vary not only in the form of the end stroke, to ensure perfect connections, but also in style. It’s this pseudo-random variation in style that gives the typeface its calligraphic flair. ¶ This four-version rotation system constitutes the basic inner workings of our typeface. However, we then went on to develop further systems on top of that. ¶ A fifth version was developed for select letters that shouldn’t always connect, and a few others that required more containment so as to avoid collisions with
The historical part of this specimen was written by dino dos santos and the technical part was written by pedro leal our research was based on the writings of don rufino blanco y sanchez “arte de la escritura y de la caligrafia”printed in madrid in 1924 and don emilio cotarelo y mori “diccionario biografico y bibliografico de caligrafos españoles” printed in madrid in 1913. we would like to thank catherine dixon for reviewing and editing the text.
56
entre a escola e a cidade. O primeiro piso abriga a administração da escola e a cafeteria, ligando a praça elevada com a entrada do auditório. Num nível enterrado situa-se a sala de ensaios que se abre ao exterior e funciona como um palco. No segundo piso encontram-se as salas de formação com um acesso directo para a sala de ensaio.
Soledad Jimenez
convertem-se num momento de transição
Uma escola de música
O edifício cria um espaço e os seus pátios
Imagética e sensação na Adega Vale da Lameira Joel Cabral
A visão imagética da arquitectura parece ser uma consequência natural de uma arquitectura que se tem vindo a desenvolver em torno da visão da imagem que dela se reconhece. No caso particular da arquitectura vínica, esta visão tem actuado como uma estratégia publicitária e de venda de um produto rotulado por uma arquitectura encomendada. Actualmente, a vulgarização e saturação da imagem na sociedade empurra o sujeito para uma hegemonia da visão sobre os outros sentidos, levando à inibição do potencial da adega para estimular os sentidos.
A arquitectura pode retirar partido dos vários sentidos e das suas interacções procurando através do olhar estimular o corpo, usando a imagem como mecanismo de exaltação dos sentidos, valorizando e intensificando a experiência vínica. A Quinta do Vale da Lameira situa-se sobre uma elevação do vale à beira de um barrocal, envolvido numa paisagem incólume: predominam o vinhedo e os aglomerados de granito.
Capismo Rui Silva Na tradição editorial francesa e alemã é muito popular a prática de um design para capas de livros chamado continental1, que as resume aos seus elementos compósitos indispensáveis – título, autor e chancela – sobre um fundo branco ou de cor. Esta visão ascética não se deve a uma eventual escassez de meios, mas a um posicionamento restritivo para com a actividade criativa, ao considerar que a natureza da matéria escrita não encontra paralelo no universo imagético. Esta iconoclastia gráfica rege-se pelo princípio de que toda a representação, ou é redutora, ou não passa de uma alusão fragmentária, incapaz de descrever toda a dimensão literária da obra, e que, invariavelmente, induz o leitor em erro. Do outro lado do espectro temos a edição idólatra, que considera que o trabalho gráfico se resume a uma não interferência do texto com uma imagem de fundo. Entende-se que a tipografia e a imagem existem em camadas separadas que são meramente justapostas por conveniência. O título limita-se a estar discretamente presente e a imagem presta-se a ser largamente descritiva, quer seja através de um registo fotográfico ou pictórico. Prescreve-se uma crença de que esta imagem possui poderes narrativos mediúnicos, uma espécie de comunicação empático-espirita, que é absorvida por mera contemplação.
ora de dissemelhança com os dois extremos. Porventura, será possível inventariar três casos tipo: o da tipografia
Os dois campos têm em comum uma tentativa de desper-
como imagem, o da imagem interligada com a tipografia,
sonalização da composição e do desenho tipográfico, que
e o da ausência total de texto. Na tipografia como imagem
se torna útil em colecções de livros, onde as duas estra-
entende-se que o desenho da letra e/ou a sua composição
tégias servem para gerar unidade, e vendas por atacado.
têm um valor expressivo muito para além da sua função
O espaço entre iconoclastas e idolatras não tem contornos
significante. No caso da imagem interligada com o texto,
muito definidos, pois possui uma relação ora de afinidade,
os dois elementos coexistem num mesmo plano comunicante, normalmente através de uma relação formal. Na ausência total de texto, o livro é visto como um objecto
1 - Ver as edições Gallimard, Paris, e parte das edições Suhrkamp, Berlim.
67
onde é suficiente a informação sobre título e autor figurar
Os plasticizantes optam por distanciar o leitor da matéria
em qualquer elemento seu constituinte que não a capa,
impressa, cobrindo-a com uma fina camada protectora de
seja a badana, a lombada, o frontispício, etc.
plástico, que não permite apreciar a natureza do papel e a expressão da tinta. Quando utilizada em conjunto com um
Outro factor relevante para a percepção que o leitor tem da
suporte não poroso proporciona uma aproximação fiel à
edição é o seu lado matérico, o papel, a impressão, e o aca-
matriz digital, um ecrã impresso. Tem ainda como maior
bamento. De um lado temos os plasticizantes, praticantes
qualidade garantir uma melhor conservação e menor
de um estoicismo pragmático e economicista, e do outro os
desgaste do objecto. Os naturalistas, em contraponto, são
naturalistas, seguidores de uma primazia estético-matérica.
seguidores do táctil, das pequenas subtilezas do tangível, e
68
valorizam todas as formas de impressão, do mimeógrafo
e idolatria, e sempre que possível, tento encontrar uma
ao offset. O livro é visto aqui como um objecto composto
solução que flutue algures no meio. Interessa-me nesta
por diversas matérias e acabamentos, que são combinados
relação representar uma narrativa que exista para além
dentro de toda a panóplia de opções das artes gráficas. São
da página impressa, como se a capa fosse um fotograma
por norma mais frágeis, estando mais expostos à sujidade e
de uma câmara em movimento. Torna-se portanto impor-
alterações de integridade, o que os torna menos rentáveis.
tante expressar o que não lá está, enunciar uma exterioridade ao enquadramento, seja pela secção da forma, pelo
O trabalho que tenho vindo a realizar com várias editoras
corte no colarinho, ou porque em boa verdade não há
tem-me posto em contacto com situações de iconoclastia
cabeça sem pescoço.
70
Em matéria de produção e acabamentos, tento ser mais
de qualidade. Limita-se assim a impressão a um mise en
naturalista do que plasticizante, pois existe um sem
abyme do processo de reprodução, de que são exemplo claro
número de relações possíveis entre tinta e papel, que
as capas dos livros de Marina Lewycka2 que imprimem a
estão muito para lá da sua simulação digital. Preocupa-me
textura do papel kraft sobre cartolina branca. Esta opção
o que advém do esforço tecnológico de aproximação do
está em directo contraste com os ensaios da Orfeu Negro,
ecrã à matéria impressa, que tenta forçar uma previsibili-
cujo projecto gráfico evidencia as propriedades do papel.
dade desta relação sobre o pretexto de uma suposta ideia 2 - https://en.wikipedia.org/wiki/A_Short_History_of_Tractors_in_Ukrainian
71
A cor do núcleo urbano histórico de Coimbra
cor para que depois possamos fazer uso desse conceito
Pedro Providência
edifícios era planificada. Quando se pintava um alçado
nas intervenções no Património Arquitectónico. O mesmo pode ser dito relativamente ao património em geral. Constatamos que os registos identificados nos revestimentos do CHC sugerem que a aplicação de cores nos de ocre vermelho, assegurava-se a existência de pigmento da mesma cor em quantidade suficiente para pintar as
resumo
fachadas e as carpintarias. Como as fachadas são pintadas
No decurso do século XX, os sistemas construtivos tra-
na cores menos intensas, e nas carpintarias o pigmento é
dicionais foram lenta e directamente substituídos por
diluído em óleo de linhaça, proporcionando cores mais
outros de natureza industrial. Como consequência, os sis-
intensas, conseguia-se obter contrastes de cor harmonio-
temas tradicionais de construção, particularmente as téc-
sos (PROVIDÊNCIA, 2012).
com o pigmento diluído em leite de cal, o que proporcio-
nicas de revestimentos e acabamentos históricos, foram aos poucos caindo no esquecimento. Por esse motivo, as
Relativamente aos diferentes tipos de tinta, as tintas
imagens urbanas dos centros históricos, têm vindo, nas
acrílicas são as que produzem superfícies de cor mais ho-
últimas décadas, a sofrer profunda e rápida descaracteri-
mogénea, seguindo-se as superfícies revestidas de tintas
zação. Isso mesmo aconteceu com o núcleo urbano histó-
de silicatos de potássio que apresentam ligeira heteroge-
rico de Coimbra.
neidade. No caso deste tipo de tintas existem velaturas, exemplificadas na Carta de Cor desenvolvida para o CHC, que produzem superfícies de cor heterogénea. As tintas
Segundo Cesare Brandi, o restauro termina onde a hipó-
de cal são as que se revelaram mais heterogéneas. No estu-
tese começa (BRANDI, 2006), isto é, deve-se restaurar
do (PROVIDÊNCIA, 2014), demonstramos a importância
atendendo escrupulosamente aos vestígios e documen-
das superfícies heterogéneas na imagem dos núcleos ur-
tação que sobreviveram, e sem introduzir quaisquer el-
banos históricos, nomeadamente em virtude dos ritmos
ementos novos. Assim, entendemos que orientações ob-
que essas superfícies vão produzindo ao longo do dia, de
jectivas para regulamentar a reintegração cromática de
acordo com a variação da intensidade e inclinação dos
Centros Históricos, por exemplo, a utilização de cores
raios solares. Verificamos que os materiais tradicionais
duma Carta de Cor desenvolvida para o Centro Históri-
(pré-industriais) são os que produzem superfícies mais
co de Coimbra (CHC), só devem ser aplicadas quando
heterogéneas.
não existam registos da estratigrafia dos revestimentos históricos que permitam determinar, pelo menos de
No contexto da produção de materiais tradicionais, des-
aproximadamente, a cor existente no passado, muito em-
de a extracção das matérias-primas até à sua transfor-
bora aquelas conclusões resultem de um estudo científico
mação, reconhecemos a importância destas dinâmicas na
rigoroso (FIGURA 1). Por outro lado, entendemos também
tradução da identidade de qualquer lugar do Património
que é necessário começar por descodificar o conceito de
Cultural, seja na vertente material, exemplificada pela
73
do edifício em questão. Esta tendência, embora legítima, deve ser controlada, especialmente por um Plano de Cor. Neste contexto as acções de sensibilização são importantíssimas para o sucesso da implementação de um Plano de Salvaguarda dos Revestimentos e Acabamentos Históricos. É importante que quer os habitantes, quer os turistas que percorrem os núcleos urbanos históricos reconheçam a identidade desse lugar plasmada nas várias superfícies que dão origem à imagem destes núcleos urbanos históricos: no caso do CHC a estrutura urbana medieval foi fortemente influenciada pela estrutura romana. tipologia da arquitectura dos edifícios, condicionada pelos materiais locais, seja na vertente imaterial, nomea-
A variação da iluminação resultante da deslocação do sol
damente as dinâmicas sociais que se desenvolvem na pro-
influencia a intensidade e a alteração das cores, não só pelo
dução dos materiais utilizados nas construções, tais como
efeito de reverberação, como também, pelo facto de ao lon-
as múltiplas especialidades de artesãos exigidas pelas
go do dia ir mudando a composição da luz solar. Ao na-
construções tradicionais, desde o pedreiro ao carpinteiro,
scer e ao pôr-do-sol, a atmosfera filtra mais intensamente
passando pelo serralheiro, etc., O estudo (PROVIDÊN-
determinados comprimentos de onda, pelo que a luz so-
CIA, 2014) revela a importância da implementação de
lar se apresenta então mais avermelhada. Deste modo,
metodologias rigorosas nas intervenções de conservação
poderá ser aconselhado no Plano de Cor do CHC que os
e restauro do Património Arquitectónico, baseadas numa
ocres amarelos e vermelhos mais intensos sejam aplica-
metodologia científica sistemática, que respeite as fases de
dos nos edifícios orientados a sul e a norte,. Nos edifícios
análise, diagnóstico, conclusão e solução, necessárias à boa
cujos alçados principais estejam orientados a nascente e a
concretização das intervenções. Só deste modo é possível
poente, tonalidades menos intensas destas cores podem
caracterizar os materiais e as técnicas utilizadas nos siste-
conduzir a um efeito semelhante. O azul é uma das cores
mas construtivos tradicionais, como também, identificar
menos comuns no CHC, e sendo a cor complementar dos
os agentes causadores de anomalias. Esta informação é
ocres amarelos, cor predominante, define certos ritmos na
importante para fundamentar as acções a desenvolver nas
imagem da cidade, e a sua utilização deverá ser feita com
intervenções de restauro em Património Arquitectónico.
cuidado. Tendo em conta que as cores complementares se compensam, poderíamos considerar que a aplicação de to-
Verificámos, em vários casos de reabilitação de núcleos
nalidades de azul a nascente e a poente teria um impacto
urbanos históricos, a apetência da população local pelo
menor na imagem da cidade, porque os raios solares com
seu envolvimento na reabilitação. Este aspecto é impor-
maior incidência com comprimentos de onda do vermel-
tante, visto que, quando a população local se envolve ac-
ho, laranja e amarelo, ao projectarem-se sobre fachadas
tivamente no processo de reabilitação, os proprietários e
pintadas de cores azuladas, são neutralizados por esta cor.
inquilinos tenderão também a participar na reabilitação dos edifícios. Contudo, pode surgir a vontade do propri-
Em todo o caso, na situação em concreto do CHC, é impor-
etário ou do inquilino querer participar na escolha da cor
tante ter em consideração a afirmação de Pablo Picasso
74
pequena amplitude. a constituição dos revestimentos têm de apresentar uma ductilidade que lhes permita acompanhar este movimento, de modo a não entrar em rotura, nomeadamente através da formação de fendas, típica dos revestimentos em argamassas de cimento Portland, como é o caso dos que foram executados no CHC em substituição das argamassas tradicionais. Neste contexto, deve ser estudada a adequação da constituição dos revestimentos ao tipo de estrutura a que se destinam ou destinavam. Independentemente da importância de todos os critérios a ponderar em intervenções cromáticas, há um que no Algumas imagens do registo fotográfico ao CHC, desde o nascer do dia ao pôr-do-sol;
caso do CHC é crucial, a importância que a iluminação solar tem na sua imagem. Quem observa o CHC a partir da
quando refere que “na realidade trabalha-se com poucas
margem esquerda, desde o nascer ao pôr-do-sol constata a
cores. O que dá a ilusão do seu número é serem postas no
força que os raios solares têm na variação da imagem. É im-
seu justo lugar”. O CHC apresenta, por si só, uma paleta
pressionante a importância que a variação de intensidade
rica em distintas tonalidades de cor creme, resultantes
dos comprimentos de onda, das diferentes cores que con-
dos vários tipos de calcários da região (FIGURA 2) uti-
stituem o espectro da luz branca, vai tendo ao longo do dia,
lizados nas construções que, em contraste com as super-
na criação de cenografias cromáticas diferentes. É como se
fícies dos panos de fachada caiadas de branco, despertam
as superfícies do CHC constituíssem uma tela que vai apre-
ritmos de claro-escuro, aparecendo o CHC com a mesma
sentando imagens que, sucessivamente, vão sendo substi-
presença com que se assume o símbolo da cidade, a torre
tuídas por novas imagens de tonalidades diferentes.
da Universidade de Coimbra, em calcário branco.
Neste contexto, em 2014, registámos fotograficamente o perfil do CHC desde o nascer ao pôr-do-sol, com uma pe-
No desenvolvimento do presente estudo fomos encon-
riodicidade de 5 minutos. O dia apresentava inicialmente
trando diferentes tipologias de estruturas das paredes,
alguma neblina, o que justifica alguma oscilação dos va-
cada uma delas com as suas características próprias, no-
lores de saturação (brilho) das cores recolhidas de um
meadamente mecânicas, consoante os materiais empreg-
conjunto de edifícios fotografados (seguindo a mesma
ues e a disposição e ligação destes (PINHO, 2000). Um
metodologia desenvolvida no capítulo III), selecciona-
exemplo é a tipologia da estrutura que encontramos em
dos de acordo com o material e a exposição solar. A partir
diferentes locais do Paço das Escolas e no Mosteiro de San-
das 10h00, o céu ficou sem nuvens. Partindo das referidas
ta Clara-a-Velha análoga à de estruturas de construções do
imagens produziu-se um filme de cerca de três minutos,
período romano. De facto, no estudo dos revestimentos,
para o qual seleccionámos apenas as fotografias em que
há que ter em consideração o comportamento mecâni-
a iluminação pública estava desligada, a partir das 06h15
co das construções. Ora, sendo a estrutura de uma con-
até às 18h50, de forma a que a luz artificial não fosse in-
strução um sistema em equilíbrio que é susceptível de
terferir nos valores das cores obtidas nas superfícies se-
apresentar permanentemente movimento, embora de
leccionadas para o estudo que foi efectuado sobre as fo-
75
incontornavelmente influenciada por inúmeros factores: as condições meteorológicas, o sol estar ou não descoberto, a bruma ou a humidade atmosférica, bem como pelas variações de luz de acordo com a hora do dia, desde o alvorecer até ao crepúsculo. A série de 50 pinturas da Catedral de Rouen (FIGURA 5) é representativa do modo como o artista ficou impressionado pela forma como a luz interfere na percepção de um objecto, de acordo com as condições atmosféricas e de luminusidade em diferentes momentos do dia ou do ano. Da referida série, seleccionámos três pinturas – ao nascerdo-sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol – que corroboram as nossas conclusões relativamente à influência da luz solar na percepção da cidade ao longo do dia. Como a caterdral tem a orientação canónica, e.g., o portal da entrada principal orientado a poente, o pintor representou aquela série numa posição sul/poente. Observando a FIGURA 6 a) identificamos a hora do dia, nascer do sol, pelos reflexos avermelhados nas empenas voltadas a sul, que contrastam com a penumbra do alçado poente. Na FIGURA 6 b) a catedral é iluminada por uma luz radiosa, constituída por todos os comprimentos de onda da luz solar ao meio-dia produzindo uma luz branca (neutra). Deste modo, esta imagem proporciona-nos o contraste dourado da pedra com 4 - Estudos de cor ao CHC resultantes da iluminação solar: a) superfícies seleccionadas; b) diagrama de variação das cores ao longo do dia, de acordo com a exposição solar e os materiais.
o azul do céu. Por fim, a FIGURA 6 c) apresenta uma maior intensidade dos comprimentos de onda na cor vermelha, a fachada oeste apresenta-se completamente avermelhada
tografias (PROVIDÊNCIA, 2014). O filme é demonstrativo
resultante da luz rasante que vem de poente, contrastando
da interferência que a luz solar produz na alteração da
com a penumbra das empenas voltadas a sul.
imagem do CHC, especialmente, quer ao nível das sombras que desencadeia, quer da variedade de tonalidades
Na ultima década ocorreram várias intervenções no CHC
que vai desencadeando nas cores das superfícies ao longo
que apresentam anomalias motivadas pela aplicação de
do dia, de acordo com a intensidade e orientação da in-
materiais incompatíveis com os sistemas construtivos
cidência dos raios solares sobre as superfícies.
tradicionais, o que veio tornar necessária a substituição destes materiais por materiais tradicionais. É importante
No conjunto de telas “a Catedral de Rouen”, Monet mos-
tirarmos as devidas ilações dos resultados dessas inter-
tra que a nossa percepção dum objecto arquitectónico, é
venções. Há que registar os bons e os maus resultados e
76
perceber a que se ficaram a dever tais situações no sentido
como a influência da cultura romana nas construções se
de corrigir o que correu mal e melhorar, se possível, o que
“moldava”/adaptava aos materiais locais.
correu bem. Alguns danos causados no Património Arquitectónico são irreversíveis. Não podemos refazer a intervenção de modo a repor os elementos que foram destruídos, mas podemos corrigir o que foi mal realizado. Considera Jorge Alarcão que se deviam recuperar e aproveitar o mais possível as técnicas antigas. “Não é uma questão de revivalismo ou de saudosismo, mas é uma questão de conservação dos próprios edifícios. Nesse sentido, advogo a restauração das técnicas antigas.”
referências BRANDI, Cesare - Teoria do Restauro. Lisboa: Oríon, 2006. ISBN: 972-8620-08-X. PINHO, Fernando F. S. - Paredes de Edifícios Antigos em Portugal. Edifícios, conservação e reabilitação. Lisboa. LNEC, 2000(8). PROVIDÊNCIA, Pedro - A cor do Centro Histórico de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0571-5.
Referimos neste estudo várias intervenções que ocorreram na última década apresentando anomalias motivadas pela aplicação de materiais incompatíveis com os sistemas construtivos tradicionais, o que veio tornar necessária a substituição destes materiais por materiais tradicionais. É importante tirarmos as devidas ilações dos resultados dessas intervenções registando os bons e os maus resultados, corrigindo/melhorando as intervenções que não correram bem e se a conservação dos edifícios o exigir reintroduzindo técnicas antigas, conforme proposto por Jorge Alarcão. A partir destas considerações deixamos em aberto para futuros estudos as seguintes questões: (i) no espaço urbano como é que a luz natural interfere na percepção das superfícies arquitectónicas; (ii) aprofundar de que modo a aplicação de barramentos/pinturas com propriedades translucidas em contraposição a materiais opacos poderão traduzir características essenciais na imagem do CH a ter em conta em estudos de recuperação de núcleos urbanos históricos e do património em geral.; (iii) estudo dos sistemas construtivos tradicionais de outras cidades de origem romana, na procura de identidades com os sistemas construtivos encontrados no CHC, e perceber
77
PROVIDÊNCIA, Pedro – Bases para um Plano de Acção da Salvaguarda dos Revestimentos e AcabamentosTradicionais em centros Históricos: o caso de estudo do Plano de Cor do Centro Histórico de Coimbra. Tese de Doutoramento em Arquitectura (Pré-Bolonha), especialidade de Arquitectura e Construção. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Coimbra: 2014.
Fractura
a fractura exposta – à discussão pelos pares e aos testes de objectividade -, é condição de inovação e não de risco
Álvaro Domingues
elevado de problemas, de gangrenas ou de solidificações incorrectas do material que se quebrou ou danificou.
Um conhecido epistemólogo, Thomas Khun, defende que
Na área disciplinar da arquitectura ou dos estudos sobre
a ciência progride por sequências de rupturas paradig-
o território, tal cenário é completamente impossível. As
máticas seguidas de períodos longos caracterizados pela
ciências “duras” partilham objectos de estudo, corpos
maior estabilidade das formas de produzir investigação.
de conhecimentos e metodologias quase universais e
A fractura seria, assim, uma condição necessária ao pro-
relativamente imunes à variabilidade das culturas e das
gresso do conhecimento. Resumidamente, uma conjuntu-
visões do mundo. As práticas de investigação usadas na
ra paradigmática corresponde a uma situação em que os
construção dos objectos científicos; os enunciados e os
resultados científicos são universalmente reconhecidos
procedimentos de verificação da verdade; os contextos
pela respectiva comunidade de investigadores. As teorias,
institucionais que organizam a difusão e a legitimação
conceitos, práticas de investigação, i.e., as modalidades de
dos resultados…; tudo isso segue protocolos, linguagens
construção do conhecimento científico correspondentes
partilhadas e regras de publicação/difusão bastante rí-
a um período de “ciência normal”, resultariam, assim, de
gidos. Os próprios objectos de estudo são mais claros na
um esforço comum de aprofundamento e afinação sem se
sua formulação e conteúdos. Segundo Pierre Bourdieu,
colocarem em causa as linhas mestras dessa construção.
os campos de conhecimento científico que organizam esses sistemas de conhecimento são mais estáveis na sua
À medida que esse aprofundamento se vai fazendo, é nor-
definição e visibilidade – conhecem-se as universidades,
mal que surjam cada vez mais questões a que o paradigma
institutos, revistas e laboratórios de referência, os autores
dominante não responde satisfatoriamente. O acumular
reconhecidos, os prémios, ou outro qualquer dispositivo
dessas situações atinge então graus crescentes de discor-
por onde, obrigatoriamente, circulam ideias, realizações
dância e desconforto, até que um novo paradigma emer-
e autores. Claro que existem poderes e contra-poderes, lu-
ge pondo em causa a validade do anterior. Abre-se assim
tas simbólicas, processos e estratégias de visibilidade mas,
um período de “ruptura paradigmática”, de “revolução
no fundo, tudo tem que passar por sistemas de filtragem e
científica” em que domina a turbulência e a discussão
de discussão bastante consensuais.
em torno da objectividade da nova forma de construir conhecimento, até que, de um modo mais ou menos claro as
Na arquitectura ou no território é todo o contrário:
coisas vão retomando os ritmos e os processos habituais,
- trata-se de campos de conhecimento mestiços e instá-
abrindo-se assim, outro período longo de ciência normal.
veis que vivem de um tráfego permanente de ideias que ora originam processos imprevisíveis de fertilização cru-
Este percurso não linear alimenta-se de fracturas e trau-
zada, ora se desfazem em polémicas e gasto de energia
mas mais ou menos violentos – o que outro filósofo, Karl
para obtenção da apreciação dos pares e/ou aniquilamen-
Popper denomina falsificação – sem os quais o conheci-
to dos não alinhados;
mento corre o risco de se enredar em longas discussões
- os mecanismos de produção, circulação e de legitima-
infrutíferas e paralisantes. Em linguagem traumatológica,
ção de resultados – verificação, critérios de objectividade,
79
argumentação, procedimentos de prova/falsificação, re-
Na primeira dominam os argumentos cuja construção
tóricas de validação, etc. -, são de natureza rizomática e
é próxima dos das ciências duras. Usam-se quadros teó-
difíceis de discernir em muitas das suas dimensões. Da
ricos de referência, conceitos, metodologias de investi-
estética ao gosto, da geometria à cibernética, das artes aos
gação empírica, procedimentos de verificação, cálculo,
artifícios, das fórmulas matemáticas à poesia, vai um sem
linguagens, etc. que permitem argumentar de forma mais
fim de situações de elevado espectro de variabilidade de
ou menos “isenta” do julgamento social. Assim sendo, é
conteúdos, argumentações e posições ideológicas;
mais claro o jogo do contraste entre a evidência e a suposta objectividade científicas, e o modo como isso é ar-
- como campo de conhecimento teórico e prático assumi-
gumentado social e politicamente. A tecnocracia seria a
damente culturais, cruzam-se nessa diversidade os mais
utopia perfeita para um mundo onde todo o saber, utili-
variados contextos que atravessam meios de difusão e
dade, racionalidade…, quem sabe até a própria felicidade,
exposição pública completamente díspares e, não raro,
pertenceriam à ciência e à técnica. A política seria substi-
contraditórios;
tuída por um conselho de sábios iluminados, ou por um executivo a quem competiria fazer cumprir as soluções e
- socialmente, recobrem-se aí âmbitos sociais muito di-
recomendações do oráculo científico.
versos, seja na investigação académica, nas práticas profissionais, nos grupos de interesse e influência sociais,
A retórica prescritiva trata de como as coisas “devem ser”
na distribuição dos capitais específicos – notoriedade,
e não de como são. À atitude analítica da primeira, contra-
poder, popularidade, respeito, reconhecimento, etc. Sem
põe-se aqui a evidência da norma e dos regulamentos. As
negarmos que isto existe também nas ciências duras, é fá-
leis, os manuais de boas práticas, a difusão de um deter-
cil reconhecer que nestas é mais clara a delimitação dos
minado resultado ou desempenho de referência, domi-
respectivos campos científicos e dos campos sociais e que
nam face a outro juízo ou modo de validação. A questão é
é mais fácil isolar a “verdade” científica e as suas razões
que a rigidificação de um dispositivo legal sobre uma de-
das outras verdades, razões e emoções. Na arquitectura os
terminada questão pode, com facilidade, redundar num
nas ditas ciências do território, as coisas podem-se até in-
desastre. Falando dos assuntos a que respeita este escrito,
verter – adquirido um determinado poder e visibilidade
a legislação sobre construção, património ou ordenamen-
sociais
to do território está cheia das mais variadas suposições, considerações e pressupostos que podem ir desde a mais
– nos círculos de que se faz parte e onde se joga o capital
pura ideologia, à formulação científica, ao gosto ou aos
social correspondente, ou noutros - o prestígio das reali-
interesses e formas de ver de determinados grupos so-
zações futuras está mais garantido.
ciais. As coisas sobre as quais se prescreve, elas próprias são assuntos instáveis e em permanente (re)formulação.
Defendi noutro lugar que a retórica acerca do território é
Abundam por isso os anacronismos e as formulações jul-
uma retórica compósita que se pode classificar em ,pelo
gadas independentes das circunstâncias e das prioridades
menos, três modalidades distintas:
sociais.
- a retórica científico-técnica - a retórica reguladora e prescritiva
A retórica narrativa é muito diferente das duas anteriores:
- a retórica narrativa
nem segue os procedimentos altamente normalizados do
80
saber científico-técnico, nem possui a mesma autoridade
ao cientista ou ao engenheiro) e do pensamento selvagem.
e legitimidade da regulação e dos reguladores. A máquina
Para o bricoleur, cada tema, facto, assunto, solução,…, repre-
narrativa é um jogo de sedução permanentemente aberto e
senta um conjunto diverso de propriedades e relações que
interactivo, entre quem defende e argumenta uma questão
ora remetem para universos confinados (um cálculo de
e o grupo social interessado no seu debate. Face à estandar-
construção, p.e., ou um modelo matemático de tráfego ur-
dização dos procedimentos técnicos ou à formalidade dos
bano), ora se combinam em função do que está a ser feito,
instrumentos legais, a retórica narrativa joga em todos os
dito, argumentado, defendido ou refutado.
tabuleiros, com todos os argumentos, procurando interes-
Pode-se voltar agora à questão central desta reflexão – o lu-
sar a audiência e convence-la do interesse e da adequação
gar da fractura e das polémicas fracturantes na trajectória
da ideia ou do procedimento em causa. O processo de legi-
do pensamento e da prática arquitectónicas ou urbanísti-
timação é “obra aberta”, exposto ao diálogo, à reflexividade,
cas.
à contradição e ao ajustamento. Num processo aberto e deliberativo, a assembleia estaria próxima daquilo que Bruno
Tomemos a fractura como expressão da vanguarda que
Latour defende nas suas ideias de organização das esferas
se destaca de uma ordem (re)conhecida. Quando Jacques
sociais de debate e acção. O “social, os actores sociais, a so-
Rancière discute as vanguardas no modernismo artístico,
ciedade, a comunidade” não seriam nada pré-definido à
parte de dois entendimentos distintos:
partida, mas, antes, algo que se iria explicitando à medida que a argumentação seguisse com as suas razões e contra-
- identifica-se a vanguarda em quem vai à frente de algo,
dições. Face a esse jogo, os actores em presença estabelece-
abrindo caminho para um determinado movimento, in-
riam relações, vínculos e redes, ou seja, constituir-se-iam
corporando as suas forças e determinando a direcção da
enquanto colectivo que delibera.
evolução e do decorrer das coisas, tomando atitudes políticas subjectivas para o fazer;
A razão pura de Kant iria uns tempos viajar enquanto não se discutissem estas impurezas advindas do excesso de
- noutro plano, referindo Schiller, vanguarda é a “antecipa-
tráfego cruzado entre visões do mundo tão díspares e tão
ção estética do futuro, a invenção das formas sensíveis e das es-
rebeldes a qualquer tentativa de legitimação e prova de ver-
truturas materiais de uma vida por realizar”.
dade que tivesse o condão de medir e avaliar a importância dos argumentos e que tivesse uma taxa de câmbio para tro-
As vanguardas, a primeira e a segunda, seriam então a
car um argumento por outro. Por isso é tão ilusório o ro-
fractura exposta sem a qual a inércia da ordem natural das
mantismo mágico que pretende encontrar na sustentabili-
coisas persistiria transformando-se numa espécie de tra-
dade o meta-critério ponderador de tudo ou nos gases com
tadística e repositório de referenciais canónicos para uso
efeito de estufa o critério absolutizante para argumentar e
de todos. Sem os vanguardismos, de natureza catastrófrica
regular isto ou aquilo.
e criativa, não se operam as necessárias rupturas para que algo de novo tenha condições de emergência e desenvol-
O conhecimento e a prática na arquitectura e nas discipli-
vimento.
nas do território é constituído por uma amálgama instável de retóricas e referenciais. Qualquer coisa pode ser útil, como
Considere-se a emergência do plano livre na arquitectu-
escreve Levi-Strauss a propósito do bricoleur (que ele opõe
ra segundo Corbusier ou Mies Van Der Rohe. A ruptura
81
no conceito de parede portante e a disjunção do concei-
As disciplinas da arquitectura e do território são indisci-
to enquanto elemento estrutural (suporte de cargas da
plinadas e parcialmente caóticas: são instáveis; evoluem
cobertura e pisos superiores) e elemento de separação
segundo padrões parcialmente indeterminados e impre-
espacial (que isola um espaço de outro), proporcionam
visíveis com origem em eventos aleatórios; organizam-se
formas radicais de pensamento e projecto. As fracturas
segundo composições de raciocínios causais e lineares,
tecnológicas (construção em aço, betão e vidro) existentes
com raciocínios complexos e multi-referenciados; com-
ou desenvolvidas para o efeito, fazem parte do sistema e
binam dinâmicas complexas; respondem a problemas
viabilizam essa fracturação no plano construtivo - uma
mal definidos, com finalidades múltiplas e soluções di-
verdadeira ruptura paradigmática.
versas; estão sujeitas a constantes escrutínios e polémicas sociais; a pesquisa teórica e a prática – o projecto - desen-
Num âmbito completamente diferente, escreve-se no
volve-se em conjunturas muito diversas do ponto de vista
anúncio do Prémio Pritzker de 2016 que “His (Alejandro
político, orçamental, construtivo, estético, etc.
Aravena) built work gives economic opportunity to the less privileged, mitigates the effects of natural disasters, reduces energy
Não se trata por isso da natural instabilidade que decor-
consumption, and provides welcoming public space. Innovative
re das áreas do saber muito interdisciplinares - na ver-
and inspiring, he shows how architecture at its best can improve
dade, são quase todas - que constantemente importam
people’s lives.” O prémio Pritzker é, como se sabe, uma distin-
e processam polémicas, rupturas, inovações, etc., e as
ção que funciona como poderosa legitimação da qualidade
incorporam em híbridos científico-técnicos, estético-
e do contributo dos autores premiados para a evolução da
-artísticos ou ideológicos, com toda a diversidade e con-
arquitectura. As considerações que aqui distinguem o au-
tradição em termos de produção de consenso (menos) e
tor e a sua arquitectura privilegiam o envolvimento social
debate (mais). Trata-se do carácter transgénico que pre-
do arquitecto e as populações de menores recursos. A frac-
side às qualidades e procedimentos que constroem os
tura é assumidamente política. Para Siza (Pritzker 1992), o
assuntos de que se fala quando se fala de arquitectura e
texto do anúncio do prémio valoriza a fractura que resulta
urbanismo, ora em modo excessivamente auto-referen-
da sua contribuição para o vocabulário arquitectónico “…a
cial quando isso convém, ora como verdadeiros buracos
joy to the senses and uplifts the spirit”.
negros a absorver matéria vinda de todo o lado e usada para qualquer finalidade que a justifique.
Podíamos continuar ad infinitum na pesquisa sobre os discursos e as práticas onde se detectam os elementos de rup-
Nestes universos hiper-ventilados, a fractura criativa
tura na arquitectura e no urbanismo – nos prémios, nas re-
pode vir de qualquer lado e ser muito ou pouco reco-
vistas de referência, na crítica especializada, nos trabalhos
nhecida, esquecida ou simplesmente processada nos di-
académicos ou, não menos importante, na opinião pública
ferentes sub-campos que se degladiam. É por isso que,
e publicada. Encontraríamos uma permanente instabilida-
contrariamente aos contextos paradigmáticos, é tão difí-
de na forma como se avalia o quê e porquê; constataríamos
cil avaliar estas dinâmicas. O que para uns é fracturante
o “ar do tempo” – as causas sociais de que se fala; a variação
e ameaçador, para outros é coisa depreciável; o que para
de princípios ideológicos; o uso alternativo de referências
uns é inovação, para outros é distracção; o que para uns
e padrões estéticos; determinados resultados e performan-
é oportuno, é para outros oportunista e assim sucessiva-
ces técnicas; a originalidade, a irreverência, o talento; etc.
mente. Só deslocando a máquina do tempo para o futuro
82
é que se poderá ver retrospectivamente o que ficou des-
O “realismo mágico”2 e o “romantismo revolucionário”3 são
se tumulto. Indo buscar inspiração ao Torcicologologista
duas atitudes frequentes próprias para gerir os impasses
de Gonçalo M Tavares, se se pudesse caminhar de costas
disciplinares da arquitectura e das disciplinas do territó-
para o futuro, olhando para o passado e para um espe-
rio:
lho retrovisor apontado para o que ainda não aconteceu, talvez se conseguisse uma posição mais favorável para
- o realismo mágico, como a própria literatura, desenvolve
equacionar o presente. Entretanto, vamos indo, como
uma capacidade de interrogação do real que ultrapassa a
diz o povo.
separação que a modernidade instituiu acerca das esferas da cognição, da estética e da moral (pelo menos). Ao
Na constelação móvel e plástica dos saberes e das suas
realismo racional de uma certa forma de construir uma
organizações, tudo se pode cruzar com tudo. A propósito
questão – a urbanidade e o espaço urbano, por exemplo -,
da teoria social, escreve João Ariscado Nunes “É cada vez
acrescenta-se a magia, não no sentido corrente do fantás-
mais visível que a topologia do território da teoria social cada
tico, do oculto ou do inexplicável, mas enquanto forma
vez menos assume a forma de regiões integradas, delimitadas e
de encantamento – tudo aquilo que permite encontrar
diferenciadas por referência a autores, correntes ou tradições, e
alternativas para um entendimento prosaico do mundo
que mesmo a tentativa de definir especialidades tende a perder
reduzido a dimensões utilitaristas, mercantis, abstractas,
terreno a favor de configurações em rede (organizadas em tor-
racionais ou mecânicas julgadas independentes dos con-
no de temas ou de constelações de temas) ou de espaços fluidos,
textos geográficos e políticos;
1
caracterizados por uma erosão ou negociação de fronteiras, por uma hibridação das formas de conhecimento e de activi-
- nesta mesma linha da fuga ao desencantamento (a ex-
dade social, e por um desenvolvimento activo da transposição
pressão literária é de Schiller e a sociológica é de Max
metafórica, da articulação de novas linguagens.” Substitua-se
Weber), o romantismo revolucionário deve ser menos
o “território da teoria social” pelo da arquitectura e do ur-
da nostalgia ou do delírio, e mais do voluntarismo e do
banismo e encontraremos o mesmo.
empenho na crítica ao poder do capital, do feitiço tecnológico, da burocracia, do pensamento único, da denúncia
Não se falará do planeamento e do urbanismo apenas en-
da alienação ou do enunciado de mundos possíveis. Vale
quanto quadros legais e práticas de regulação da constru-
a pena transcrever Henri Lefebvre (1957) a propósito do
ção e uso do solo porque teríamos que somar a crise das
romantismo revolucionário: “ todo o romantismo se baseia
democracias do Estado Social e as suas contradições, bem
na discórdia, nas fracturas, na ruptura. Neste sentido, o ro-
como o triunfo do capitalismo liberal a gerir a mercan-
mantismo revolucionário segue e até aprofunda as feridas do
tilização das infraestruturas e serviços (ex)públicos. Se
velho romantismo. Porém, estas rupturas assumem novos sig-
não se analisar em separado as crises científico-técnicas
nificados. Os de manter a distância certa em relação ao real, ao
e as da regulação, corremos riscos sérios de não entender
existente, ao presente garantindo-lhe uma visão do possível - o
o que se passa na forma como se argumenta, legitima e exerce o saber/poder dessas disciplinas. 1 - João Arriscado NUNES (1996), Transição Paradigmática, pós-modernismo crítico e teoria social, Oficina nº81, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/81.pdf
83
2 - Cf. Louis P. ZAMORA; Wendy B. FARIS (1995), Magical Realism: Theory, History and Community, Duhan and London, Duke University Press. 3 - Cf. Michael LOWY ; Robert SAYRE (1992), Révolte et Mélancolie - Le romantisme à contre-courant de la modernité, Payot, Paris.
contrário da nostalgia e do escapismo. Daqui poderão emergir novas formas de ironia. Não podemos por mais tempo opor
fractura programada
ficção aos factos estabelecidos, sonhos ou ironias. Ao contrá-
Por alturas da grande depressão dos anos 1930, Bernard
rio, as ficções, como as imagens, apresentam-se elas próprias,
London propunha que a crise se resolvesse através da “ob-
sobretudo, como meios de investigação, penetrando mais pro-
solescência programada” (1932). A receita parecia simples:
fundamente no real existente do que a descrição, permitindo
aquilo que não se desgasta, não é bom para os negócios.
discutir e exprimir essa realidade – para nos tornarmos livres
Como os alimentos, esgotando o seu ciclo de vida após a pas-
e rejeitarmos essa realidade.”
sagem pelos meandros digestivos e acabando num daqueles
4
artefactos brancos postos de cima para baixo e encastelados, Precisamos então de máquinas de ver coisas estilhaçadas
assim as mercadorias teriam o seu fim.
e instáveis, de recusar os simplismos e as racionalidades mistificadoras. Gaston Bachelard⁵ que conhecemos so-
Segundo B. London, o Estado, enquanto zelador pelo bem-
bretudo através da Poética do Espaço (do fogo, também)
-estar dos cidadãos e dos negócios (… coisa muito romântica
mas também do Novo Espírito Científico, de entre tantas
e difícil ao mesmo tempo), devia marcar previamente a data
obras, físico e filósofo pensando e escrevendo no tempo
da obsolescência dos artigos, retira-los e destrui-los, permi-
em que se consolidava a Teoria da Relatividade, socorria-
tindo assim um novo ciclo de produção/consumo e garan-
-se de Dostoïewski para dizer que “a razão conhece somente
tindo o emprego e o crescimento económico.
aquilo que conseguiu aprender”, nada mais. Com a obsolescência programada, a “destruição criadora” de Joseph Shumpeter (1942) teria o caminho mais desimpedido e passaria a ser o verdadeiro motor do capitalismo. Em versão acelerada, essa obsolescência atingiria a vertigem da sociedade de consumo e seria o paraíso…, como se vê. Todos os paraísos são jardins e porque não de eucaliptos que facilitam a manutenção e a contenção de despesas mesmo no jardim do paraíso (fiscal). Desligados dos seus moldes, os inertes cerâmicos jazem por entre o espaço verde da floresta sem que ninguém se lhes sente em cima aliviado. Que desolação esta brancura sustentável que me povoa a alma e me retorce os pensamentos; que dias incertos em que nem um matagal de retretes consegue acudir a esta diarreia de saber económico e loiça sanitária. 4 - Henri LEFEBRE (1957), “Vers un Romatisme révolutionaire, Nouvelle Revue Française, no. 58;
Por isso há muito quem pense que economia não é, verda-
5 - Gaston BACHELARD (1972), L’engagement rationaliste. Préface de Georges Canguilhem. Paris : Les Presses universitaires de France (escrito em 1949)
tafórico adequado a este ecossistema, flatulência discursiva.
deiramente, conhecimento mas, mantendo o ambiente meAnima-me, porém, a biodiversidade deste jardim, o cheiro
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fresco dos eucaliptos, os ninhos dos pássaros nos buracos dos bidés e das retretes, os galhos e as folhas secas sobre as faianças, a toupeira a minar por baixo do lavatório,… sei lá, o brilho da chuva nos vidrados e as pegas a beber nos mictórios… Há fracturas que vêm por bem.
85
Obituário
Em quase 150 anos de vida do livro, pouca gente se atreveu, e se algum vínculo descobrimos, foi o da linguagem
Ricardo Castro
directa, com que a riqueza textual se entreteve a definir a história das imagens que nos perseguem. Nada mais The sun hides not the ocean, which is the dark side of this earth. Herman Melville
I am a bad interpreter of other people´s dreams. I have too many myself. Léon Spilliaert ***
simples que um anúncio a máquinas de costura de um guia comercial de 1869, aparecido em Montevideu, estabeleceu o princípio da associação livre. E com isso fomos calmamente perdendo pelo caminho preceitos de qualquer ordem. Onde a linguagem era enciclopédica, o desenho deu o riso. Onde a linguagem era absurda, o desenho caminhou a passos torpes. Previsivelmente, alguns desenhos não quiseram referencial, e se algum desenho é possível para Lautréamont, é aquele que não reproduz o seu
A modéstia não existia e não existe na poesia de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, philosophe incompréhensibiliste. Ela alegra-se com a perversidade, porque sabe que isso faz parte dos nossos dias: preparai-vos para o bestiário que é a vida! E nós cumprimos, modestos, a custo, afoitos em tal missão, cientes da vidinha, não deixando escapar vícios negros em tempos negros, diabo nos livre, hipocrisias do homem, esse macaco sublime. Nestes desenhos para Ducasse - uruguaio auto-entitulado conde e poeta francês de sangue azul prússia com cianeto - foi deixada uma convulsão interior pequena, a nossa e a dele, entre o prazer, o desespero e a reticência. E também a viscosidade contemporânea - onde a paz é impossível - e a catarse ininterrupta da balança humana no seu deleite com a crueldade.
texto, mas que percebe a sua qualidade plástica e impura. Vivendo com as qualidades fatalistas do texto de Ducasse - o piolho não se deixa acariciar - não nos seduziu a tentação histórica de criar mais molduras pinturescas. A matéria lá vem da anti-técnica de então: do absurdo, do desvio e da violência, da concentricidade de todas as formas, e do plágio, esse catalisador de objectos banais em objectos curiosos, tudo isto hoje catalogado pelos compêndios. Nisto, o primeiro artista livre foi Ducasse, o único poeta sem biografia, o único artista sem obra. *** Fizeste o desenho rir e chorar, e sujaste-lhe também o caminho, mas ei-lo resplandecente como uma lata ferrugenta. A fuga para a frente dos desenhos - que ilustram por vezes cenas inteiras num canto, ou uma passagem
***
em detalhe, ou um membro torcido - respeitou ape-
Não havendo necessidade de lhe acrescentar mais versões ilustradas - a história do livro ilustrado provou que esse era um caminho errado, ou, se quisermos, a própria definição de livro ilustrado depois de Mallarmé - a resistência blindada dos Cantos à ilustração levou-nos ao caos organizado de Ducasse e à sua estranha beleza, desenvolta, centrífuga, agressiva, envolta em pontos sem retorno.
87
nas uma mínima sequência linear ao longo dos Cantos e das estrofes. Grande parte dos desenhos tiveram aparições desconexas, sem ordem nem norte. Tudo isso poderá ser livremente refutado, mas Maldoror foi reaparecendo nesses desenhos, como uma garra afiada, pronto a ferir, porque a sua intangibilidade é sobretudo visual. ***
Todos os estudos e todas as versões ilustradas dos Cantos
mos como aquele filósofo insensato que desatou a rir
conhecidas tentaram deixar até hoje intacto esse seu
quando viu um burro a comer um figo. São símbolos da
poder. Tentamos manter o desenho suficientemente
nossa identidade, ou da falta dela, mas que nos perten-
nervoso e incompleto - quem vier atrás que o tente ter-
cem.Como desprezamos mais aquilo que é absurdo do
minar. A hipérbole estilística de Lautréamont compro-
que aquilo que é real, é-nos difícil a síntese biológica de
meteu os desenhos a este jogo, na complexidade e ana-
Lautréamont, entre a fúria e o controlo: é a animalização
cronismo necessário: eles estão localizados no espaço
perfeita da nossa imaginação, e da sua anemia crescente.
físico dentro do livro, mas com a preguiça que era pre-
Quantos resignados vivem com isto em paz de espírito?
cisa. A construção linguística, a lógica e a retórica, o
Maldito sejas, Maldoror!
verbo e as imagens, tudo em Lautréamont é excesso em controlo -aquilo a que André Breton chamou de plasma germinativo - onde até a maldade pode ser inofensiva e bela. Tentou-nos a possibilidade de estudar o jogo criativo destes Cantos, um processo extenso de torções e convulsões que se atravessaram à frente. Deste sistema aberto de Ducasse, o método Lautréamont permitiu-nos descobrir o nosso próprio método - nunca um estilo - , e um sistema que foi expondo a consciência ao inatingível. Um sistema abundante quase utópico, um corpo impossível cheio de perturbações e excepções físicas e morais. Isidore Ducasse erige em Maldoror um corpo composto por partes, entre um Saturno devorando um filho e um Frankenstein, o animal dentro do homem, o homem dentro do desenho, o desenho dentro do animal. No auge da fusão do mundo natural com o industrial e o científico, Maldoror é a personificação do grotesco estético, do imaginário puro, da forma inconstante, da realidade à irrealidade, um movimento de sublimação. *** Os nossos monstros modernos são esta analogia moral começada em Maldoror: as imagens novas do quotidiano moderno que geram ilusão entre agressão e simulacro. Por isso, Maldoror torna o homem na sua própria caricatura, o demente pensando que é lúcido. Se tentamos perceber como olhamos as cabeças de Arcimboldo com admiração mas as de Géricault com repugnância, fica-
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Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont [Isidore Ducasse], publicado nas edições Momo, com tradução de Manuel de Freitas, desenhos de Ricardo Castro e texto de Silvina Rodrigues Lopes. 666 exemplares numerados, e capa impressa em tipografia e linogravura na oficina O Homem do Saco.
Entrevista
Arquitectura em moldar o ensino da Arquitectura a uma
Manuel Teixeira
a experiência das escolas privadas de Arquitectura, com
estrutura universitária, nunca inteiramente conseguido, os imensos recursos disponíveis nos anos 90 e a oportunidade perdida de se construir uma grande escola pri-
por inês lima rodrigues e maria rita pais
vada de arquitectura em Portugal, o grande desafio que foi o ISCTE, construindo uma nova área de ensino numa
Professor Catedrático na Faculdade de Arquitectura da Uni-
escola até então centrada noutros domínios, em que se
versidade de Lisboa e na Escola Universitária de Artes de
privilegiou um ensino da Arquitectura com uma grande
Coimbra, Manuel Teixeira entre estudar e ensinar, conhece
componente prática e simultaneamente uma grande base
pessoalmente cinco escolas de Arquitectura em Portugal e no
teórica, ligada à História e às Ciências Sociais, o retorno à
Reino Unido.
Faculdade de Arquitectura, já acomodada mas ainda não inteiramente assumida à sua vocação universitária, e fi-
será que nos poderia explicar como estas várias
nalmente a ARCA-EUAC. Uma conclusão que tiro deste
escolas, e diferentes maneiras de ensinar, influen-
percurso é que na aprendizagem da Arquitectura têm de
ciaram a sua forma de ver o ensino e a própria for-
estar envolvidos todos, alunos e professores, partilhando
ma de leccionar a arquitectura?
o mesmo entusiamo e o mesmo desejo de experimentar, de investigar e de aprender. A função da Escola é criar
As Escolas que refere são a Escola Superior de Belas Ar-
as condições e o ambiente propícios a esta permanente
tes de Lisboa, onde tirei o curso de Arquitectura, a Archi-
inquietação. Outra leitura que faço deste percurso é a pro-
tectural Association School of Architecture, onde tirei o
gressiva burocratização do ensino da arquitectura, cada
Mestrado e o Doutoramento, a Faculdade de Arquitectura
vez mais constrangido por regras, directivas, legislação,
de Lisboa, continuadora da Escola de Belas Artes, onde co-
entidades reguladoras e fiscalizadoras, que vão abafando
mecei a ensinar, a Universidade Lusíada, de Lisboa, onde
cada vez mais a possibilidade de desenvolver um ensi-
colaborei uns anos, o ISCTE, hoje Instituto Universitário
no criativo e inovador. Esta burocratização impede que
de Lisboa, onde montei de raiz um novo Departamento
se estabeleçam as necessárias condições para que todos,
de Arquitectura, e agora a ARCA-EUAC. São de facto Es-
alunos e professores, possam experimentar novos percur-
colas bastante distintas, com diferentes projectos de en-
sos, novas ideias, novas formas de fazer. (Num parêntesis,
sino, e um tempo longo, de mais de quarenta anos, que
a mesma burocratização reflecte-se nas actuais regras de
certamente me ajudaram, e me obrigaram, a ter uma pers-
avaliação de desempenho dos professores, em que estes
pectiva alargada do ensino da Arquitectura. Desde o curso
têm de produzir segundo parâmetros definidos e obter
que se tirava na Escola de Belas Artes e ao mesmo tem-
imperiosamente o beneplácito dos seus pares, que são
po nos ateliers onde se trabalhava, e que provavelmente
objectivamente incentivadores da falta de inovação e da
ainda é o melhor modelo de ensino, à imensa liberdade
estagnação). Com isto, a Universidade vai envelhecendo,
da estrutura de ensino da AA, a possibilidade de cada um
anquilosando-se, cada vez menos capaz de responder aos
explorar o seu caminho e a possibilidade extraordinária
desafios da sociedade, e tornando-se perigosamente irre-
de termos perante nós, e falarmos com, as grandes figu-
levante. Mas esse é o mundo e as regras segundo as quais
ras a Arquitectura mundial, o esforço da Faculdade de
uma instituição universitária tem actualmente de viver.
91
a escola universitária de artes de coimbra (arca)
truturação? reconhece alguma “fractura” com o
lançou-lhe o desafio de reestruturar a escola,
antigo modelo da escola?
no novo contexto pós-bolonha. como viu a escola quando chegou?
Não é apenas a Arquitectura e o Design que se podem completar mutuamente, mas também as Artes que podem
Quando iniciei a minha colaboração em Fevereiro de
participar nesta interdisciplinaridade e que, em conjunto,
2015, a ARCA-EUAC estava num momento de crise. A an-
constituem a matriz da ARCA. Existe um amplo espaço do
terior Direcção da Escola, de muitos anos, tinha acabado
conhecimento, no domínio da concepção dos espaços e das
de sair, a Direcção da Entidade Instituidora – a ARCA –
formas, que é comum a estas três áreas e que pode ser a sus-
tinha também mudado e continuava-se num período de
tentação de ciclos de formação comuns aos três. Este é um
alguma agitação, que ainda se prolongou até ao início des-
dos objectivos da reestruturação em curso, que consiste na
te ano lectivo. A ARCA foi durante muitos anos uma ins-
oferta de formações que sejam simultaneamente comuns
tituição respeitável mas nos últimos anos tinha entrado
à Arquitectura, ao Design e às Artes, sabendo-se que cada
num lento processo de declínio, motivado pelas mudan-
um destes domínios contém, por sua vez, dentro de si pró-
ças demográficas com incidência na população em idade
prio, múltiplas e diversas expressões. A par desta formação
escolar, que afectou todas as escolas privadas, e que con-
alargada, fundacional, propõe-se outras áreas de formação
duziram ao encerramento de cursos e a uma diminuição
mais especializadas ou, pelo contrário, que explorem ainda
significativa do número de alunos nos cursos em funcio-
mais fundo as suas raízes comuns, e que, segundo várias
namento. Era necessário proceder a uma reforma urgen-
geometrias, articulem de diferentes formas estes saberes.
te da instituição nos domínios institucional, académico,
Neste amplo universo da cultura dos espaços e das formas
científico, e também administrativo e financeiro, percur-
– que vai do território à cidade, ao edifício e aos objectos,
so que está a ser feito. Alguns dos primeiros passos deste
que vai da produção material às propostas conceptuais, e
processo de reestruturação consistiram na recomposição
às suas múltiplas expressões – a cultura formal portugue-
do corpo docente, bastante mais qualificado actualmente,
sa deve ser a referência fundamental. Só partindo da nossa
e na remodelação do plano de estudos, entretanto já apro-
especificidade cultural, só através da exploração da nossa
vada, que o adequou melhor aos requisitos de Bolonha,
própria cultura, e particularmente da nossa cultura popu-
e às necessidades actuais do ensino superior no quadro
lar, será possível atingirmos a universalidade e sermos re-
Europeu. A ARCA-EUAC tem de readquirir visibilidade,
levantes globalmente. Mais do que um projecto de ensino,
credibilidade e relevância, condições essenciais para que
este tem de ser um projecto de pesquisa, envolvendo pro-
o seu percurso possa prosseguir, e é esse o caminho que
fessores e alunos, em que o próprio caminho, nas palavras
estamos a fazer.
de Antonio Machado, se vai fazendo caminhando. Isto significa também que neste processo, a par da exploração de
a arca é conhecida pela interdisciplinaridade en-
conceitos, a prática seja essencial. Não uma prática abstrac-
tre cursos. pensa que esta ideia de incentivar a
ta, como a do projecto, traduzida em desenhos e maquetas,
colectividade entre pensamento e prática é uma
mas uma prática no sentido literal, de produzir, saber fazer,
aposta possível? neste sentido, a arquitectura e o
sujar as mãos, imergir na realidade. Com este objectivo é
design podem completar-se mutuamente? e, mais
necessário que a Escola se abra à sociedade e estabeleça
concretamente, qual é a grande proposta de res-
múltiplas relações com empresas, autarquias, instituições
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sociais. Por outro lado, será necessário incrementar a co-
hoje em dia já não é transmitir conhecimentos, mas antes
laboração com outras Escolas de Arquitectura, nacionais
a produção de conhecimento, através do próprio processo
e estrangeiras, do mundo da língua portuguesa e outras,
didáctico, que tem de ser criativo e ter por base a investiga-
incentivando o intercâmbio de professore e de alunos, co-
ção em que professores e alunos têm de estar envolvidos.
laborando em projectos internacionais, participando e or-
Outra das funções da Universidade é despertar os alunos
ganizando encontros científicos, fomentando a circulação
para áreas do saber, torná-los inquisitivos, questionadores
do conhecimento e a projecção da cultura e da arquitectura
e permanentemente insatisfeitos, fazê-los ir à raiz do co-
portuguesas. Se esta é uma fractura com o antigo modelo
nhecimento e às suas infinitas conexões. Finalmente, outra
de Escola, seria preciso sabermos de que Escola estamos
das funções essenciais da Universidade é ensinar os alunos
a falar, se a ARCA dos primeiros tempos ou dos anos re-
a investigar e a aprender por si próprios, a saber adquirir os
centes? De qualquer forma, a rotura é essencial na vida. A
conhecimentos necessários ao longo da vida, para as mui-
sociedade só evolui em momentos de tensão, e de fractura.
tas tarefas que terão de desempenhar.
Citando o personagem Harry Lime (Orson Wells) no filme “O Terceiro Homem”: “in Italy for 30 years under the Bor-
e a nível das infra-estruturas, que vantagens pode-
gias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but
mos esperar?
they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they
A ARCA-EUAC dispõe de óptimas infra-estruturas, em
had 500 years of democracy and peace, and what did that
termos de espaços de aulas, laboratórios, estúdios, equipa-
produce? The cuckoo clock”.
mentos, oficinas, maquinaria, que actualmente, nalguns casos, se encontram subaproveitados, mas que constituem
em termos pedagógicos, qual é a mais-valia?
uma mais-valia extremamente valiosa. Neste momento está-se a proceder à inventariação e recu-
A mais valia deste projecto reside na possibilidade de ar-
peração destes espaços e equipamentos para permitir a sua
ticulação de vários saberes, na miscigenação de conheci-
utilização plena nas actividades didácticas em curso e pro-
mentos, nas influências cruzadas que o contacto entre
gramadas. A par disso, há igualmente um imenso espólio,
alunos de diversas formações, percursos e objectivos pode
resultante da produção dos alunos ao longo dos anos nos
trazer, no enriquecimento comum que resulta deste pro-
vários domínios artísticos, que está a ser igualmente objec-
cesso. Vivemos num mundo em constante mudança, em
to de atenção.
que – em muitas áreas do saber - os conhecimentos adqui-
ridos ao longo de um ciclo de formação em muitos casos se
antes de aceitar o desafio de reestruturar a arca,
desactualizam antes mesmo da própria formação se con-
consolidou um percurso académico muito voltado
cluir, em que as actividades a desempenhar por cada um ao
para a investigação científica no âmbito da arqui-
longo da vida irão inevitavelmente mudar, e em que cada
tectura, cidade e território. de que modo é que esta
uma deverá saber, em cada momento da sua vida, articular
experiência pode contribuir neste modelo?
conhecimentos e competências de várias origens. A aquisição de uma base de conhecimento bastante alargada e arti-
Essa área que refere é a parte do meio do meu percurso aca-
culando diversos domínios do saber é uma ferramenta es-
démico, mas que foi precedida por outro área de trabalho
sencial neste processo. A principal função da Universidade
e de investigação, e que foi sucedida por outro domínio
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pesquisa que neste momento desenvolvo. A primeira
ordem aparente, dispersas pelo território, desperdiçando
área de investigação dizia respeito às questões da habita-
espaços e infra-estruturas. Muito desta situação se deve
ção, e particularmente da habitação popular, e as questões
à actuação do poder central e local, orientada para inte-
sociais que lhe estão associadas, e onde se incluíram entre
resses múltiplos, não necessariamente públicos, à falta
outras actividades neste domínio, a minha experiência de
deliberada de políticas ordenadoras, e a um quadro legal,
trabalho no velho SAAL, no Porto, e a minha investigação
que objectivamente favorece tais situações. Outra grande
de Doutoramento. Houve depois a área que refere, muito
fractura é aquela que se inicia no século XIX e se continua
centrada nas questões do desenho urbano, do urbanismo
pelo século XX, até hoje, em que se abandonaram as gran-
português e do urbanismo colonial. Finalmente, sem que
des referências do urbanismo português, que estiveram
as outras áreas tenham desaparecido do horizonte das
na base da construção de cidades em Portugal e nas mais
minhas preocupações, a minha mais actual área de inte-
diferentes partes do mundo ao longo dos séculos. Exis-
resse centra-se nas questões da Arquitectura popular e da
te, de facto, uma especificidade do urbanismo português,
cultura popular. Creio que estes diferentes domínios – as
que é uma componente fundamental da nossa cultura,
questões sociais associadas à Arquitectura, as questões ur-
mas que a partir do século XIX, foi sendo substituída por
banas, e a reflexão sobre a nossa cultura – são componen-
outras referências, estrangeiras, muitas vezes mal assimi-
tes essenciais da formação do Arquitecto e na actividade
ladas e sem ser feita a necessária síntese com os nossos
do Arquitecto. Mas a questão do urbanismo e da relação
próprios valores. A cultura portuguesa nunca viveu numa
da arquitectura com o espaço urbano são questões essen-
redoma, isolada do mundo. Pelo contrário, ela foi sempre
ciais muitas vezes descuradas no ensino da Arquitectura
activa participante na formação da cultura europeia, e
em Portugal e essa é uma vertente a que estamos particu-
dos muitos locais no mundo em que esteve presente, re-
larmente atentos. A arquitectura nunca é um objecto iso-
cebendo e dando, mas sendo sempre capaz de assimilar
lado, ele vive em permanente relação com o espaço envol-
as referências culturais, que lhe vinham de fora com os
vente, urbano ou não urbano, e só através desse diálogo,
seus próprios valores e, daí resultando – em cada época e
nesse círculo de compreensão hermenêutica, é possível
em cada local – sínteses específicas, extremamente ricas.
entendê-la.
Da mesma forma que a arquitectura portuguesa fez uma reflexão sobre as suas raízes e, explorando a sua especi-
Como especialista na arquitectura da cidade por-
ficidade cultural, atingiu uma projecção internacional, o
tuguesa, qual julga ser a grande “fractura” que
mesmo trabalho deve ser feito, em relação ao urbanismo.
caracteriza o território de Portugal continental? E na arquitectura de origem portuguesa além-fronEssa grande fractura pode ser encarada de duas formas.
teiras? Considera que existe uma ruptura entre as
Por um lado, a fractura que é claramente visível quando se
estratégias de ocupação em território continental
entra em Portugal de avião, vindo da Europa. A territórios
e nos territórios de presença portuguesa? E entre
organizados, estruturados, hierarquizados sucedem-se,
esses vastos e diferentes exemplos, encontram-se
mal se entra Portugal – e basta olhar pela janela do avião
diferenciações nas estratégias de ocupação?
para se perceber que se entrou – territórios caóticos, desorganizados, em que as mais diferentes funções – agricultu-
As estratégias de ocupação do território continental e
ra, habitação, indústria, equipamentos – se misturam, sem
dos territórios ultramarinos eram as mesmas, tendo em
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conta, naturalmente, as miscigenações culturais que ocorreram em cada local, e que tiveram a sua expressão na arquitectura e no urbanismo. Trata-se do velho diálogo entre o local e o global, que no nosso caso é extremamente rico. Mas, a mesma fractura, referida acima, verificou-se nos territórios de língua portuguesa onde tivemos uma presença de séculos. Aí, em muitos casos, essa fractura foi acentuada pela necessidade de afirmação após as independências, que levou à recusa de muitos valores da cultura portuguesa. E essa é uma tarefa urgente, o retomar dos contactos com esse mundo de expressão portuguesa e leva-los a reconhecer as suas raízes culturais, que também aqui se encontram. Creio que, para além da língua, a arquitectura e o urbanismo são expressões maiores dessa comunidade, e não será necessário acentuar os benefícios culturais e também económicos que adviriam do retomar deste diálogo. No que se refere ao ensino, que é o que aqui nos preocupa particularmente, há um imenso potencial a desenvolver neste campo com África, e a África mediterrânica, o Brasil, os países do Golfo, e outras regiões da Ásia.
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Rúben Correia
CITA
CITA é uma pequena “vila de saúde”, inserida em Tentúgal, que através do retirar de massa, abrindo praças e ruas, origina uma série de volumes de igual forma dispersos e distintos, que albergam todo o programa destinado a um centro de investigação e tratamento da doença de Alzheimer. O projecto visa então que através da arquitectura, se possa contribuir com alguns benefícios para um possível tratamento da doença, funcionando como forma de terapia e reinserção de pessoas com demência numa sociedade que aos olhos deles seja normal.
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UM NOVO BANCO
A diferença está no recurso a técnicas e procedimentos
Workshop
a experiência, mais interessante. Projectar, num caso ou
Sentemo-nos lá fora. Não! (pausa) A escola não tem ban-
Conseguimos de algum modo dar resposta às seis propos-
cos.
tas para o próximo milénio apresentadas por Italo Calvino2
metodológicos diferentes o que nesta situação, só torna noutro é, ao fim ao cabo, determinar a forma adequada.
e resumidas em: Leveza (dos objectos concretizados), RaA consciência da falta de mobiliário urbano na nossa Es-
pidez (1 dia de trabalho), Exactidão (rigor dos detalhes de
cola deu o impulso necessário para a organização de um
execução), Visibilidade (os novos bancos da ARCA), Mul-
workshop sobre o tema. A proposta pretendia provocar
tiplicidade (originalidade e diferenças entre os objetos
um momento de suspensão, uma pausa nos projectos
realizados), Começar e Acabar (das ideias à concretização
principais em curso, com a participação de um dia de jor-
até a implantação das peças de mobiliário urbano).
nadas intensas para o desenho e produção de bancos para a Escola.
A dualidade desta iniciativa, repõe questões ideológicas e teórico-práticas. Resta enaltecer e divulgar a experiência
Demos então corpo a um exercício teórico-prático – des-
gratificante no âmbito pedagógico, resultado do entusias-
de a ideia à materialização - a decorrer nas instalações da
mo e partilha, revelado no espírito de trabalho de grupo.
ARCA-EUAC, juntando alunos dos cursos de Arquitectura
Uma experiência nova, partilhada por nós, professores,
e Design, criando-lés condições de enquadramento técni-
que não nos desprendemos ainda dos vestígios da forma-
co e a oportunidade de participar activamente na trans-
ção artística, permitindo que os alunos encontrassem esta
formação do espaço vivido da Escola. Em concordância
nossa realidade objectiva e, mais do que isso, contribuís-
com a própria evolução do conceito de metodologias dos
sem para a transformação da Escola.
cursos de Arquitectura e Design, com a necessidade de gerar espaços de colectividade social e cultural, juntamos todos os alunos da ARCA numa acção comum e em grupo. A conjectura da mudança é agora a dada pelo experimentalismo inovador, estruturada pela acção crítica e a oportunidade de concretizar os modelos reais, impondo novas dinâmicas de projecto que se vão afirmando com um crescente interesse e entusiasmo. De facto, o “acto de projecto” é o da passagem para a realidade física de uma ideia. Ideia que é em si própria uma maneira de interpretar o imaginário colectivo. Este modo de pensar um objecto, seja qual for a sua escala e programa de necessidades, é comum a arquitectos e designers.1
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1- Costa, Daciano (1998). Design e mal-estar. Porto: Centro Português de Design, p. 92. 2- Calvino, Italo (1998). Seis propostas para o próximo milénio. Lisboa: Teorema.
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