Revista Baú

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02 Fractura: rumo a um paradigma novo na forma de ensino e aprendizado

65 construção da destruição. ruben ferreira alves

pedro providência 66 papel de parede. 07 editorial. 13 fractura mediada: wittgenstein e o «exemplo» de fontaine de duchamp.

vicente santos 67 capismo. rui silva

luís santiago batista 72 fotomontagem. 23 para além das ontologias fracturantes: espaço,

josé diogo borges

meditação e reencantamento. antónio carvalho

73 a cor do núcleo urbano histórico de coimbra. pedro providência

33 identidade, continuidades e descontinuidades da cultura urbana portuguesa, séculos xviii-xx. manuel teixeira 45 livros de artista.

79 fractura. álvaro domingues 86 obituário.

isabel baraona

ricardo castro

51 reconstructing the italian script

91 entrevista.

revealed in arte de escribir por reglas y con muestras. dino dos santos

96 cita. rúben correia

58 uma escola de música. soledad jimenez

99 um novo banco. inês lima rodrigues, com fotografias de

60 adega. joel cabral

beatriz esperança, carlos caetano, diana soares, frederico castanheira, joão cruz, josé diogo borges, meggy da silva e ruben alves.

64 meggy. fotografia de carlos caetano



Fractura: rumo a um paradigma novo na forma de ensino e aprendizado

novas formações e que estejam certificadas na licenciatura e no mestrado integrado. Atendendo à vasta oferta de cursos de arquitectura e design, em instituições de ensino público e privado, é importante promover medidas que respondam aos interesses profissionais e às restrições económicas dos alunos, tendo em conta, designadamente, os requisitos de avaliação das instituições do ensino superior da A3ES e DGES. Neste contexto, de forma a tornar a EUAC mais competitiva e consequentemente apresentando-se como uma alternativa consistente, afigura-se-nos importante reflectir sobre alguns pontos, a saber:

Pedro Providência, Director

1. Ensino: Cursos livres, Especializações e Pós-graduações: A Escola Universitária das Artes de Coimbra (EUAC) foi

Os “cursos livres” correspondem a unidades curriculares

criada em 1989, tendo surgido a par da Escola de Artes de

que podem ser administrados a alunos e formandos. Os

Coimbra (ECA), ambas integradas na Associação Recrea-

participantes obterão a respectiva acreditação em ECTS,

tiva de Coimbra Artística (ARCA), a qual fora fundada em

por cada curso livre, que poderão ser utilizados posterior-

1971. A EUAC está a ser objecto de profunda reestrutura-

mente na conclusão da licenciatura da EUAC em Arquite-

ção. A estrutura dos cursos do ensino superior, arquitec-

tura, Design e, oportunamente, em Belas Artes, quando a

tura e design, está a ser revista, de acordo com os novos

reestruturação do curso estiver devidamente certificada, à

paradigmas da educação e do mercado de trabalho. Analo-

luz do enquadramento legal do processo de Bolonha. Aos

gamente, alguns dos princípios que estiveram na génese

cursos livres propostos em desenho, plástica, fotografia,

da ARCA, como a oferta de Cursos Livres Artísticos, estão

técnicas de impressão e tecnologias aplicadas, entre ou-

a ser recuperados. Assim, a formação na EUAC congrega

tros, corresponderão dois níveis: básico e avançado, per-

a tecnologia com a arte, proporcionando aos seus alunos/

mitindo perfazer um total de créditos com equivalência

formandos um contacto com as principais disciplinas das

ao ano zero, de acordo com a área científica. O ano zero

artes, nomeadamente desenho, pintura, escultura, cerâmi-

possibilita, aos formandos que não preencham os requisi-

ca, fotografia, video, técnicas de impressão (tipografia, se-

tos obrigatórios para se candidatarem à universidade, no-

rigrafia, offset, etc.), e, simultaneamente, com a indústria.

meadamente por ainda não terem completado o 12º ano

A EUAC, para além da licenciatura em Design de Comu-

ou que ainda não realizaram as provas específicas e de

nicação e o Mestrado Integrado em Arquitectura, tem em

aptidão com aproveitamento, a frequência nas unidades

preparação uma oferta formativa variada, nomeadamen-

curriculares, num contexto de cursos livres, do primeiro

te Cursos Livres, Especializações e Pós-graduações. Esta

ano do curso de arquitectua e design. Assim, após a veri-

oferta formativa está articulada com a licenciatura e o

ficação dos requisitos, poderão inscrever-se no respectivo

mestrado integrado supra referenciados e contemplará o

curso e obter as equivalências às unidades curriculares

respectivo diploma. O diploma mencionará a certificação

que tenham programa idêntico e os mesmos ECTS que

em ECTS (EUROPEAN CREDIT TRANSFER SYSTEM) das

os cursos livres que frequentaram.As “Especializações”

unidades curriculares que constem nos programas destas

podem ser combinações de unidades curriculares do pri-

05


meiro e segundo ciclo, licenciatura e mestrado integrado

são realizados exercícios práticos que embora exequíveis

respectivamente, como também de unidades curricula-

correspondem a projectos simulados. A EUAC, em alter-

res que não integrem os planos de estudos dos cursos da

nativa, desenvolveu protocolos de parcerias com diversas

EUAC. As “Pós-graduações”, à semelhança do que sucede

instituições, designadamente autarquias, e a indústria, no

com as especializações, são formações com várias unida-

sentido de proporcionar aos alunos programas de pro-

des curriculares, as quais podem corresponder a unidades

jectos reais, que aquelas instituições tenham em carteira.

curriculares creditadas nos cursos da EUAC ou pertence-

Deste modo, os alunos passariam a desenvolver projectos

rem a outras instituições de ensino. No caso em que as es-

reais, o que constituiria um estímulo para os estudantes.

pecializações tenham uma unidade curricular creditada

Por outro lado, esta interacção da EUAC com estas insti-

nesta escola universitária, os alunos/formandos no final

tuições permite divulgar o trabalho dos alunos, partici-

do curso obtêm um diploma que contemple os respecti-

pando, deste modo, na sua inserção no mercado de tra-

vos créditos. As pós-graduações podem corresponder ao

balho. No que respeita aos protocolos com a indústria, o

primeiro ano do segundo ciclo (mestrado) dos cursos da

contacto do aluno com o meio empresarial permite uma

EUAC, sendo que, neste caso, o aluno/formando realizan-

aprendizagem transversal, eficaz e pragmática. Por outro

do com aproveitamento a pós-graduação e prova final

lado, este contacto empresarial poderia criar oportunida-

desta escola, obterá o grau de mestre.

des aos alunos de realização de estágios.

2. Rácio de docente/discente nas unidades curriculares

A EUAC apresenta-se, assim, como uma alternativa de en-

teórico-práticas. A EUAC apresenta-se competitiva por

sino, aberta aos novos desafios da vida profissional e edu-

possuir um rácio de docentes/alunos bastante apelativo

cativa, congregando a arte com a indústria, dispondo de

em confronto com o existente, em geral, nas outras insti-

modernas instalações, adequadas à prática da investiga-

tuições de ensino superior.

ção e do ensino das artes, com um corpo docente especializado. Neste número da revista Baú, o primeiro, são apre-

3. Horários pós-laborais. Existem muitos estudantes que

sentados trabalhos científicos e académicos, bem como

são trabalhadores. O estatuto de trabalhador estudan-

uma entrevista que sugerem as linhas de orientação da

te permite que estes alunos não tenham que assistir ao

publicação que nos propomos lançar. O tema é a fractura,

número mínimo de aulas obrigatórias, nomeadamente

i.e. a mudança, rumo a um paradigma novo na forma de

das unidades curriculares teórico-práticas. Contudo, esta

ensino e aprendizado da EUAC, tendo em consideração

possibilidade “penaliza” o estudante que acaba por não

as perspectivas actuais e futuras da vida profissional dos

usufruir destas aulas. A EUAC é sensível a esta questão,

arquitectos, designers e de todos aqueles que recorrem às

pelo que tem previsto o ensino pós-laboral, não só para

disciplinas das Belas Artes para se realizarem pessoal ou

os cursos livres, especializações e pós-graduações, como

profissionalmente.

também, para o 1º ciclo (licenciaturas) e 2º ciclo (mestrado). 4. Laboratório de projecto. Em algumas unidades curriculares, nomeadamente projecto, dos cursos de arquitectura e design do ensino universitário publico e privado,

06


Editorial

Maria Rita Pais Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.1

Fractura é, aqui em José Saramago, um motivo

imaginário de ruptura múltipla: a fractura geográfica como motivação física de corte, mas igualmente fractura com o tempo, com a história, com a política, com a cultura e com a língua. No próprio texto, o autor desprende-se, assim como a jangada, da escrita tradicional, rompendo com a língua ao apresentar quase todo o livro sem pontuação, com a excepção de vírgulas e pontos finais. Os longuíssimos parágrafos de Saramago promovem, na sua “desformatação” premeditada, uma ruptura no pensamento do leitor. O pensamento em continuum vai levando o leitor numa aventura, menos canónica e mais próxima da oralidade. Ao descrever a sua escrita, o autor prefere chamar a pontuação de pausas, marcando a frase com um outro ritmo, dado pela cadência oral. Saramago subverteu a norma, fracturou a normalidade para deixar entrar o pensamento do leitor. A fractura imaginária de Jangada de Pedra reco-

mente nas diversas possibilidades da significação da palavra:

nhece a inocência nas mão de Joana Carda, criança que, com

na descontinuidade inerente, que pode ter origem casual ou

uma vara num jogo de rua, marca no chão uma fronteira

intencional; e no potencial do que vem a seguir. Tal como uma

real, uma fenda geológica entre dois mundos unidos por ro-

ferida na pele, no sentido médico do termo, o significado en-

cha. A Jangada ibérica flutua errante num oceano onde não

contra-se na ruptura dos tecidos moleculares. Numa leitura

se revela um objectivo concreto. Ela solta-se sem motivação

cirúrgica, a fractura admite a reconexão, a reestruturação dos

e continua errante, superando a fatalidade do seu prelúdio.

tecidos ou a recuperação. Obviamente, aqui surge outro mo-

Mas, o rompimento não está contido apenas na pos-

sibilidade do imprevisto, ele pode ser calculado, premeditado. A noção mais bela por detrás desta acção encontra-se exacta-

07

1 - Saramago, José (1986) Jangada de Pedra, Editorial Caminho, Alfragide, pp. 7


mento significante: a possibilidade do pós-fractura, seja esta

de xadrez. No contraponto destes dois textos reconhece-se

possibilidade, a continuidade da ruptura ou a sua própria su-

a amplitude e potencial emanante contido na palavra “frac-

peração.

tura”. Mas, outras leituras possíveis são apresentadas nesta

Em Splitting (1974), Gordon Matta-Clark, ao contrá-

revista, e dão especificidade ao seu significado, nos vários

rio da Joana Carda, projecta o corte de uma casa americana de

apports e valências que a palavra pode ter no âmbito da ar-

subúrbios. O momento de projectar o corte reconhece a acção

quitectura, das artes visuais e do design.

da fractura como gesto intencional de possibilitar uma nova

leitura. Matta-Clark estudou arquitectura na Cornell Universi-

que, se se parte do princípio de que a acção altera o espaço

ty entre 1962 e 1968 e o seu trabalho remete para a experiência

existente, então será sempre uma fractura independente-

humana do espaço, revelando as estratificações e complexida-

mente se apresenta sinais de continuidade com a envolvente

des das estruturas existentes, apelando ao nosso sentido táctil

ou de corte espacial e programático. Arquitectura é fractura!

e reconhecendo, na separação em relação modelos existentes,

Pese embora, que o arquitecto lhe dê uma intencionalidade

a possibilidade do surgimento do novo.

de incorporação na envolvente ou mesmo de camuflagem.

Em arquitectura, fractura pode ser tudo. Tudo, por-

Neste primeiro número da revista Baú, apresentam-

Pedro Providência, no seu ensaio acerca da importância da

-se duas visões antagónicas, que descrevem bem as duas pos-

cor na paisagem histórica, revela a importância desta ca-

sibilidades de quebra e serzimento da realidade anterior. Por

muflagem em ambiente consolidado. Manuel Teixeira re-

um lado, Álvaro Domingues reconhece o caos da fractura em

conhece a fractura na evolução urbana e morfológica dos

percursos não lineares, alimentados de cortes e traumas mais

aglomerados como base de construção de nova cidade. Na

ou menos violentos, que permitem novos começos:

dinâmica gerada entre o homem e o espaço, António Car-

Anima-me, porém, a biodiversidade deste jardim, o

valho revela os momentos fracturantes que interferem nos

cheiro fresco dos eucaliptos, os ninhos dos pássaros nos bu-

estados meditativos: pequenas alterações de grande impacte

racos dos bidés e das retretes, os galhos e as folhas secas so-

na consciência zen.

bre as faianças, a toupeira a minar por baixo do lavatório,…

sei lá, o brilho da chuva nos vidrados e as pegas a beber nos

nhece a fractura numa proposta tipográfica nova, que, no

mictórios…

entanto, reconhece o fundamento da escrita no próprio de-

Há fracturas que vêm por bem. *(p.85)

senho caligráfico. A leitura facilitada prevalece em relação

Numa perspectiva de recuperação natural, Álvaro

às linhas simplificadas da letra, que surgem pela mecaniza-

reconhece a beleza do novo, nascido do caos, ao invés da

ção e digitalização do texto. A aproximação da sua proposta

ideia de cicatriz inestética ou de um novo tecido indeseja-

às bases caligráficas e tipográficas assegura, não a letra ima-

do. Numa lógica oposta, Luís Santiago Baptista, pegando no

gem (simplificada pela linguagem moderna), mas a letra

mesmo objecto, o mictório, dá o exemplo do urinol de Mar-

facilitadora (completada com acrescentos de ascendência

cel Duchamp e desmonta a estratégia escondida por detrás

originária).

da sua La Fontaine, que aparentemente, por uma pequena

alteração de posicionamento no espaço e pela assinatura,

sensível da relação com um livro objecto. O objecto aqui,

transforma o sítio do despejo, no lugar da água, fonte de

não é o livro de edição comercial, é uma proposta de explo-

vida. A afirmação de Duchamp (ou Richard Mutt) dá todas

ração dos sentidos, com matéria. Ricardo Castro, revisita a

a directrizes, para que o lixo se possa transformar em arte,

crueldade do Conde de Lautréamont nos Cantos de Maldo-

num processo minuciosamente planeado, como num jogo

ror, e ilustra, de forma pouco iconoclasta, a dureza das suas

08

Na aparente continuidade, Dino dos Santos reco-

O trabalho de Isabel Baraona sublinha o potencial


descrições, sem discorrer na imoralidade pura.

novo modelo que, muito embora ainda não esteja acabado,

revela seguramente o seu reconhecimento.

Pelo meio de especificidades mais teóricas, vários

alunos da ARCA apresentam os seus trabalhos em crescimento. Cada trabalho propõe uma pausa, para pensar na prática dos nossos alunos. Porque, é nesta prática, que o pensamento se quer reconhecer.

Fractura é um momento único, um momento que

se reconhece pela quebra com os cânones e tendências estabelecidas. Num mundo onde tudo é genérico, nada é fracturante. O mais fracturante, que se poderá fazer, será possivelmente, o aprofundar do pensamento sobre o objecto e não propriamente agir pela acção em si.

Ao invés de construir, sugerimos neste momento,

destruir! Poderíamos abrir uma empresa de demolições, mas para já, podemos reflectir e subverter o mundo como uma forma de colocar em evidência a própria fractura como justificativa de uma nova realidade. O primeiro número da revista Baú propõe uma revisitação à condição de fractura, como ideia de quebra. A reflexão acerca da própria condição, reconhece uma auto-avaliação da instituição e do ensino das artes, num cenário pós-Bolonha. A decorrida ruptura desta escola, possibilita agora o seu crescimento sobre algo. Aproveita a sua própria descontinuação, para construir um

Imagens: Gordon Matta Clark, Splitting Englewood, New Jersey, 1974




La Fontaine, Marcel Duchamp, 1917, Independents Show, fotografia de Alfred Stieglitz.


Fractura mediada: Wittgenstein e o «exemplo» de Fontaine de Duchamp

vam garantidas como condições inalienáveis dos participantes no Independents Show. A auto-proclamação do artista ganha assim um carácter institucional tendo em conta o acesso da obra ao espaço cultural e social da exposição, adquirindo assim, naturalmente, a sua legitimação como arte. Envolvido neste estranho «acontecimento» está Marcel Duchamp (1887-1968), o mais polémico e controverso artista da arte do século XX. Duchamp, além de pertencer à comissão organizadora da referida exposição de 1917 em Nova Iorque, como figura aclamada da arte

Luís Santiago Baptista

vanguardista moderna europeia, é igualmente o artista por trás do pseudónimo de R. Mutt. É inequívoco que este evento transformou a história da arte contemporânea.

“Os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo.”1

Mas em que sentido e de que forma? Thierry de Duve leNo ano de 1917 dá entrada no Independents Show em Nova

vanta bem a problemática lançada por Fontaine: “Was Du-

Iorque um estranho objecto assinado por um Sr. R. Mutt

champ urinal a joke or a test? Or was it both? Jokes and tests

para ser apresentado na exposição que decorreria a partir

certainly abound in the history of modern art, and they’re

e 10 de Abril desse mesmo ano. O objecto era nada mais

usually the two sides of one and the same coin. Every futurist

nada menos que um urinol invertido assinado e datado

prank, dadaist hoax, expressionist farce, or surrealist pun that

com o título de Fontaine. Naquilo que se opunha às for-

history as recorded was a way of scoffing at some authority

mas e metodologias da arte de tradição académica, o Inde-

whose liberalism, open-mindedness or resistance to ridicule it

pendents Show regia-se pela «regra» «no jury, no prizes», im-

put to a test. Duchamp urinal is no exception. But here the joke

posta pela comissão organizadora como forma de

was a test in more than one sense, for the testing device was

abertura em relação à prática artística e de democratiza-

obviously designed to be itself submitted to a test: if the han-

ção das possibilidades de exposição do trabalho. Na ver-

ging committee of the show at the Grand Central Palace con-

dade, esta foi a forma encontrada de fazer frente ao con-

sented to exhibit the gleaming object poking fun at them, they

servadorismo e elitismo dos júris das academias, que

would have to call it art. If they were to pass the test, so would

detinham todo o poder de juízo de valor sobre as obras

it. They didn’t, as we shall see. But it did, and that’s the irony of

apresentadas e, consequentemente, o papel de legitima-

the joke. Who would dare deny today, that Duchamp urinal is

ção dos artistas. As únicas «normas» a serem salvaguarda-

art?”2. Torna-se revelador que mais ou menos ao mesmo

das eram a inscrição na Society of Independent Artists, Inc. e

tempo que Wittgenstein desenvolve o seu Tratado Lógico-

o pagamento de uma taxa de 6$ (5$ de inscrição e 1$ para

-Filosófico (obra publicada originalmente em 1921, daqui-

a entrada da obra na exposição). Deste modo, quer a auto-

lo que se define como primeiro Wittgenstein), Duchamp

-afirmação do indivíduo como artista, quer a participação

protagoniza, ao nível da arte contemporânea, um dos

na exposição pública e a apresentação no catálogo esta-

exemplos mais claros e conscientes das propostas que o

1 - Ludwig Wittgenstein, «Tratado Lógico-Filosófico», in: Wittgenstein, Tratado-Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pg. 114;

2 - Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: Thierry de Duve, Kant after Duchamp, Cambridge-Massachusetts, London-England, MIT Press, 1997, p. 91.

13


filósofo defenderá mais tarde nas suas Investigações Filosó-

no objecto performativo Fontaine de Duchamp. No limite,

ficas (obra publicada originalmente em 1958, daquilo que

a confluência de ambos os pontos de vista pode abrir pos-

se define como segundo Wittgenstein). Não deixa de ser

sibilidades de percebê-los individualmente a uma nova

curiosa, por um lado, a situação que, no contexto do final

luz. Começaremos então por definir os conceitos em jogo

da primeira década do século XX, Wittgenstein produza a

no desafio radical de Duchamp, recorrendo às próprias

obra que será uma influência decisiva para as propostas

noções de Wittgenstein. No contexto do Independents

das neo-vanguardas dos anos 60 (principalmente a Arte

Show de 1917 em Nova Iorque, por um lado, o objecto apre-

Conceptual) , por outro lado, Duchamp em 1917 protago-

sentado como Fontaine representa o «novo», e como nos

nize um dos exemplos mais interessantes no domínio ar-

diz o filósofo “o novo (o espontâneo, e «específico») é

tístico daquilo que Wittgenstein trabalhará depois filoso-

sempre um jogo de linguagem”,4 por outro lado, quer a

ficamente em meados do século. Uma anacrónica

instituição Society of Independent Artists, quer por ex-

reversibilidade temporal fundamentada num paradoxal

tensão o próprio conceito de «arte», apresentam-se aqui

paralelismo entre a obra de Duchamp e o segundo Witt-

como o «postulado» ou «dado», querendo dizer que, mais

genstein, que se reverte surpreendentemente na poste-

uma vez nas suas palavras, “o que tem que ser postulado,

rior relação entre a Arte Conceptual e o primeiro Witt-

o que é dado, poderíamos dizer, são as formas de vida.”5

genstein, considerando que, no domínio da História da

Estes dois conceitos de Wittgenstein, a sua relação e inter-

Arte, tem precisamente o próprio Duchamp como refe-

penetração, permitirão compreender o paralelismo entre

rência histórica inaugural. Tentaremos neste ensaio de-

o seu pensamento e a actividade «exemplar» de Duchamp.

fender a «validade» deste paralelismo, salvaguardando as

Na verdade, o «teste» que Duchamp lança, no sentido es-

devidas diferenças de pressupostos e de objectivos, tendo

trito ao Independents Show e no sentido lato ao próprio

em conta os diferentes contextos culturais e campos dis-

conceito de «arte», pode assim definir-se como um «jogo

ciplinares. Portanto, não procuraremos defender uma

de linguagem». E este desafio remete para o papel instau-

pretensa anterioridade de Duchamp em relação ao pensa-

rador dado ao «jogo de linguagem»6, convocando o papel

mento de Wittgenstein, antes assumimos a distância e di-

da inovação protagonizada pela arte dita de vanguarda. A

ferença entre uma consciência adquirida pela vivência

premissa do «novo» na vanguarda, na sua recusa da tradi-

contingente da praxis artística e uma consciência humil-

ção e no seu confronto com as instituições, pode repre-

demente filosófica elaborada a partir de uma concepção

sentar no âmbito da arte o mesmo que Wittgenstein defi-

aberta da linguagem. Parece-nos no entanto lícito fazê-lo

ne no campo do pensamento respectivamente como

no contexto de abertura interdisciplinar dos cultural stu-

«jogo de linguagem» e «forma de vida». Neste sentido, a

dies, exponenciando a importância crucial do «exemplo»

obra de vanguarda apresenta um desafio, sob a figura de

como modo discursivo privilegiado de explanação por

um «jogo de linguagem», à tradição como agregadora de

parte do filósofo que, em nosso entender, se expressa con-

«formas de vida». Nas palavras do filósofo, “chamarei

vincentemente no evento artístico de 1917. Neste sentido,

também ao todo formado pela linguagem com as activi-

a construção conceptual do «exemplo» wittgensteinia no

dades com as quais ela está entrelaçada o «jogo de lingua-

3

manifesta-se, como vimos mesmo que anacronicamente, 3 - Cf. Hal Foster, «What’s Neo about the Neo-Avant-Garde?», in: The Duchamp Effect, Cambridge-Massachusetts, London-England, MIT Press, 1996.

4 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», in: Wittgenstein, Tratado-Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995 [1958], secção viii, ponto 229, p. 598. 5 - Idem, Ibidem, secção viii, ponto 238, pg. 601; 6 - Idem, Ibidem, ponto 7, p. 177;

14


gem».” Parece-nos importante o carácter dual do «jogo de

entrevistas com Pierre Cabanne em meados dos anos 60,

linguagem», pois ao mesmo tempo que legitima a tradi-

Duchamp afirma: “No xadrez, existem, sem dúvida, coisas

ção possibilita a inovação, isto é, simultaneamente man-

extremamente belas no domínio do movimento, mas não

tém e transforma, eventualmente num mesmo gesto, a

no domínio visual. Imaginar o movimento ou o gesto é

estrutura da «linguagem». Na verdade, para Wittgenstein

que faz a beleza, neste caso. Está completamente dentro

a «linguagem» é uma estrutura aberta e dinâmica, justa-

da massa cinzenta.”8 Duchamp vê no xadrez essencial-

mente pelo carácter processual do «jogo de linguagem» e

mente um campo de estratégia conceptual que potencia

pelo papel fundador das «formas de vida». Como refere, “a

«movimentos» dentro de uma estrutura regrada pré-esta-

expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de

belecida. Se o jogo de xadrez é convocado tanto por Witt-

que falar uma lingua é uma parte de uma actividade ou de

genstein, para definir as ideias de «jogo de linguagem» e

uma forma de vida.”7. A relação dialéctica entre o «jogo de

«forma de vida», como por Duchamp, para assinalar im-

linguagem» e as «formas de vida» torna-se determinante

plicitamente o campo da sua actividade artística, parece

para compreendermos a importância do pensamento de

no entanto que as suas concepções não se limitam às pos-

Wittgenstein na clarificação conceptual do «exemplo»

sibilidade efectivas das regras do jogo. Porém, a definição

lançado por Duchamp. É no entre-cruzamento de concei-

de «regra» de Wittgenstein, noção essa que significativa-

tos que surgem as possibilidades de sustentação do para-

mente medeia os conceitos de «jogo de linguagem» e de

lelismo aqui defendido. No entanto, estas possibilidades

«forma de vida», revela uma concepção mais aberta e di-

parecem só ser possíveis por existir uma ambiguidade

nâmica entre os dois conceitos referidos, que acreditamos

estrutural na definição dada pelo filósofo de ambos os

se expressa igualmente na prática de Duchamp. Na verda-

conceitos. No caso do «jogo de linguagem», associado nor-

de, para justificar o paralelismo entre o «acontecimento»

malmente ao exemplo do jogo de xadrez, é evidente o ca-

de Abril de 1917 e o pensamento do filósofo torna-se cru-

rácter duplo que refere em relação ao seguimento da «re-

cial a relativização desses conceitos, para além de uma

gra» e às possibilidades da sua transgressão, que diga-se se

mera concepção analítica da «linguagem» (expressa diría-

revela aparentemente difícil no exemplo do jogo de xa-

mos na própria passagem do primeiro para o segundo

drez. Já no caso da «forma de vida», entendida como as

Wittgenstein). Resumindo, temos que fundamentar, quer

possibilidades normativas dadas pelo tabuleiro de xadrez,

a não subordinação do «jogo de linguagem» à «regra»,

a sua definição parece ser estática, visto que as «regras»

quer a dinâmica das «formas de vida», com a consequente

parecem estar determinadas de modo fixo e limitado, im-

possibilidade de mutação dentro das «regras» do «jogo».

possibilitando a transgressão, que é todavia apresentada

No caso que aqui é apresentado, interessa-nos perceber

pelo filósofo como uma condição necessária. Por aqui se

não um sentido estrito e fechado da ideia de «jogo de lin-

nota as aparentes limitações do próprio exemplo dado

guagem», mas uma apropriação diferencial e aberta desse

por Wittgenstein, através do jogo de xadrez. Sabe-se, por

conceito9, ou seja, encontrar na «linguagem», como cre-

outro lado, o fascínio que Duchamp tem pelo xadrez, bem

mos que Wittgenstein a define, os seus elementos estrutu-

patente nas célebres fotografias do artista que o apresen-

rais de abertura e alteridade. E isto parece ser o que o filó-

tam a jogar, potenciando uma analogia da prática desse jogo com a sua própria actividade artística. De facto, nas 7 - Idem, Ibidem, ponto 23, p. 189;

15

8 - Marcel Duchamp, in Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990 [1966], p. 25. 9 - Remete-se para o conceito de differance de Derrida. Cf. Jacques Derrida, «A Diferença», in: Derrida, Margens da Filosofia, Porto, Rés, s.d. [1972].


sofo refere como «atrito» ou «resistência»: “Nós queremos

dida involuntária e inconscientemente, embora mante-

andar, por isso precisamos de atrito. Regressar à terra ás-

nhamos a liberdade de a seguir ou transgredir.

pera.”10 Acrescenta depois: “Os nossos simples e claros

Porém, o cerne da questão levantada pela triade concep-

jogos de linguagem não são estudos preliminares para

tual «jogo de linguagem»-«regra»-«forma de vida» está

uma regulamentação futura da linguagem – como se fos-

na própria concepção wittgensteiniana de «linguagem».

sem uma primeira aproximação, sem ter em conta o atri-

Diz-nos antes de mais o filósofo que “conceber uma lin-

to e a resistência do ar. Os jogos de linguagem são muito

guagem é conceber uma forma de vida.”15 A «linguagem»

mais objectos de comparação, que por semelhança ou dis-

é na verdade uma «forma de vida» (embora não esclare-

semelhança irão esclarecer os factos da nossa lingua-

cendo inteiramente as diferenças entre as suas dimen-

gem.” . A ideia de transparência da «linguagem», ou seja,

sões genéticas ou culturais, ou seja, inatas ou adquiridas),

uma concepção estritamente mediadora não é aquilo que

mas “a linguagem é um labirinto de caminhos.”16 A ideia

Wittgenstein procura com as suas Investigações Filosóficas,

de «labirinto» fundamenta bem a posição indefinida e

mas antes a incorporação dos aspectos de opacidade inul-

deslocada do sujeito perante a questão da «linguagem». É

trapassável das estruturas linguísticas, assumidas dora-

revelador que para Wittgenstein a «linguagem» se apre-

vante como abertamente constituintes. E isto parece estar

sente não como uma estrutura conceptual racionalizada,

expresso na própria ideia de «regra». Por um lado, a «re-

conferindo assim uma posição central ao sujeito, mas an-

gra» é algo que não passa por um acto subjectivo de von-

tes como horizonte de constituição que se qualifica pelo

tade, que Wittgenstein afirma ao referir que “quando eu

«uso»: “Diremos então apenas que a explicação lhe ensina

sigo a regra, não escolho”, acrescentando logo a seguir que

o uso quando o lugar está preparado. E, assim, não porque

“sigo a regra como se fosse cego.” Portanto, a «regra» pa-

aquele a quem damos a explicação já conhece as regras,

rece ser algo de subjacente e implícito, qualquer coisa de

mas porque, noutro sentido, já domina, um jogo.”17 Na-

estrutural além ou aquém do sujeito, da sua consciência

quilo que se opõe à «explicação», racional e normativa,

ou vontade. Desta forma, a «regra» não seria mais que a

Wittgenstein convoca o «uso», sendo que este é por na-

manifestação de uma enorme estrutura de determinação

tureza contingente, se quisermos, na inerência de uma

chamada linguagem, exterior ao poder e domínio do su-

contextualidade e historicidade inultrapassáveis. Acres-

jeito. Mas, por outro lado, a «regra» como actividade é si-

centa por fim que “nós falamos do fenómeno espacial e

multaneamente conciliação e contradição: “Se qualquer

temporal da linguagem, não de um fantasma a-espacial e

forma de acção é conciliável com a regra, então também

intemporal.”18 Num certo sentido, a linguagem joga-se no

qualquer forma de acção contradiz a regra. E por isso não

seu praticar. Por isso, a «linguagem» afirma-se de modo

existe aqui nem concordância nem contradição.” A «re-

dinâmico pela sua inerência a um «contexto» manifesta-

gra» não se apresenta aqui como mera repetição do mes-

do pelo «uso», o que impossibilita tanto a sua determina-

mo, mas antes como repetição diferencial. A «regra» está

ção transparente como a sua absolutização sistémica. A

instituída na sociedade e obedecêmos-lhe em grande me-

condição espacio-temporal funda o «acontecer» da «lin-

10 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 107, p. 256. 11 - Idem, Ibidem, ponto 130, p. 264. 12 - Idem, Ibidem, ponto 219, p. 329. 13 - Idem, Ibidem, ponto 201, p. 321. 14 - Remete-se para o conceito de répétition de Deleuze. Cf. Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, Lisboa, Relógio d’Água, 2000 [1968].

15 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 19, p. 183. 16 - Idem, Ibidem, ponto 203, p. 322. 19 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 583, pg. 462; 17 - Idem, Ibidem, ponto 31, p. 196. 18 - Idem, Ibidem, ponto 108, p. 256.

11

12

13

14

16


guagem»19, o que determina a sua abertura e, consequen-

em que se desenvolve e emerge, uma vez que “a intenção

temente, a impossibilidade da sua caracterização para lá

está imersa na situação, nos costumes e nas instituições

de um contexto e situação específicos: “O que acontece

dos homens.”26 Dá-se assim a relativização do domínio

agora tem sentido, neste contexto. É o contexto que lhe

do sujeito na interpretação e constituição da realidade.

dá a importância que tem.”20 Em suma, a qualificação da

Se existe uma racionalidade e normatividade na «lingua-

«linguagem» pelo «uso» situa e enquadra o sujeito, in-

gem» (esta compõe-se naturalmente de «regras», «nor-

corpora-o num contexto que determina o seu horizonte

mas» ou «ordens»), não há a possibilidade de uma «visão

de possibilidades: “Verdadeiro e falso é o que os homens

panorâmica» sobre o fenómeno da «linguagem»: “Umas

dizem; e é na linguagem que as pessoas concordam. Não

das fontes principais de incompreensão reside no facto

se trata de uma concordância de opiniões, mas de for-

de não termos uma visão panorâmica do uso das nossas

mas de vida.”21. Mas esta abertura existe naturalmente na

palavras. A nossa gramática não se deixa ver panoramica-

«linguagem», não é um acto de consciência por parte do

mente.”27 Efectivamente, a vinculação do «jogo de lingua-

sujeito. Na verdade, a «regra» não está sujeita ao acto de

gem» às «formas de vida» define os limites do que se pode

domínio racional, uma vez que subentende a “concepção

chamar «cultura», conceito que consideramos implícito

de uma regra que não é uma interpretação.”22 Neste sen-

na construção conceptual das Investigações Filosóficas de

tido, as «fronteiras» das «regras» da linguagem existem

Wittgenstein. Afirma-se assim a importância da ideia de

naturalmente, mas num certo sentido estão ocultas e são

«mediação» como horizonte fundamental na constitui-

mesmo inconscientes: “Mas isto não é ignorância. Não

ção da realidade através da «linguagem».28 É neste sentido

conhecemos fronteiras porque não traçámos quaisquer

que a concepção wittgensteiniana da «linguagem» pode

fronteiras.” E a ocultação aqui não se afirma no sentido

assumir a «mediação» como um campo «cultural», simul-

de uma possível futura revelação transcendente, mas sim-

taneamente espacial e temporal, determinado estrutural-

plesmente como relativização «cultural» de um sujeito,

mente pela sua contextualidade e historicidade inerentes.

circunscrito e limitado nas suas possibilidades pelo seu

Retomemos de novo o «acontecimento» do Independents

horizonte de expectativa, ou seja, pelo seu mundo. Como

Show de 1917 em Nova Iorque. Qual a sua relevância em

nos diz, “na linguagem, a expectativa e a satisfação tocam-

relação ao pensamento de Wittgenstein? De que forma

-se.” Neste sentido, a «intencionalidade» do sujeito é re-

este nos pode ajudar a perceber o desafio de Duchamp? É

lativizada pelas «formas de vida», está limitada pelas es-

nossa convicção que Duchamp tem consciência do «jogo

truturas conceptuais e linguísticas do contexto histórico

de linguagem» radical que dirige às «formas de vida» pre-

23

24

25

sentes nas instituições artísticas e culturais do seu tempo. 19 - Remete-se para o conceito de «ser-no-mundo» desenvolvido por Heidegger e por Merleau-Ponty. Cf. Martin Heidegger, Ser e Tempo, Petrópolis, Editora Vozes, 1998; Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção, S. Paulo, Martins Fontes, 1994 [1945]. 20 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 583, p. 462. 21 - Idem, Ibidem, ponto 241, p. 334. 22 - Idem, Ibidem, ponto 201, p. 321. 23 - Remete-se para a ideia de «esquecimento do ser como destino» de Heidegger. Martin Heidegger, Ser e Tempo, Petrópolis, Editora Vozes, 1998 [1927]. 24 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 69, p. 230. 25 - Idem, Ibidem, ponto 445, p. 418.

17

A relevância do «exemplo» estará nessa intencionalidade, se quisermos, nesse apelo a uma «visão panorâmica» que, quer queiramos quer não, tanto Wittgenstein como Duchamp paradoxalmente procuram, mesmo sabendo da sua impossibilidade efectiva. E por isso esta só pode 26 - Idem, Ibidem, ponto 337, p. 374. 27 - Idem, Ibidem, ponto 122, p. 261. 28 - Remete-se para o conceito de linguagem como questionamento do sujeito e do objecto como tendo «naturezas intrínsecas». Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade, Lisboa, Presença, 1992 [1989].


emergir e manifestar-se como «jogo de linguagem» lan-

menos que «ni récompense, ni jury». A mesma obra é apre-

çado às «formas de vida». Se as Investigações Filosóficas po-

sentada depois no Armory Show em Nova Iorque em 1913,

dem ser um «jogo de linguagem» no campo da filosofia,

sendo unanimemente aclamada. Esta experiência extre-

Fontaine é um «jogo de linguagem» no território da arte.

ma de recusa ilegítima (veja-se o mote da exposição) e

Trataremos de tentar fundamentá-lo de seguida.

aclamação acrítica (o que mudou não foi a obra mas o es-

A primeira interrogação que emerge está no porquê do

tatuto do artista), indiciam o questionamento radical que

desafio lançado por Duchamp através do objecto Fontai-

Duchamp operará depois através da obra Fontaine. Nestes

ne sob o pseudónimo de R. Mutt. A grande questão que

termos, a compreensão por trás do acto de Duchamp não

o «acontecimento» de 1917 levanta é, por um lado, a do

provém de uma ideia afastada do contexto real, suposta-

estatuto da obra de arte como objecto, por outro, a ca-

mente dos critérios universais do valor artístico, mas está

rácter institucional da sua legitimação. E o objectivo de

radicalmente implicada na experiência do problema da le-

Duchamp com Fontaine não está em produzir e legitimar

gitimação da arte pelo próprio artista. Daí a sua importân-

uma obra como arte. Se assim fosse, bastar-lhe-ia assinar

cia residir exactamente, em termos wittgensteinianos, na

a obra como Marcel Duchamp e esta estaria automati-

consciência do funcionamento das «formas de vida» e da

camente assinalada como obra de arte. Lembremos que

relatividade das «regras». A recusa do Nu Descendant L’Esca-

Duchamp não só era um artista consagrado na época no

lier nº2 no Paris Indépendants em 1912 será correspondida

contexto artístico norte-americano, mas igualmente de-

à recusa da Fontaine no Independents’ Show de Nova Ior-

tinha um papel de grande destaque na comissão organi-

que em 1917, através do processo de relativização inerente

zadora da exposição do Independents Show. Inclusive é um

à consciência adquirida através da consagração da mesma

dos comissários que introduz a «regra» «no jury, no prizes».

obra no Armory Show de Nova Iorque em 1913.29 Duchamp

Então porquê o anonimato? Duchamp com a obra Fontai-

percebe as contingências da legitimação artística através

ne não só lança um desafio às estruturas institucionais da

desse processo de recusa (Paris, 1912) e aclamação (Nova

arte, como através dela influenciará radicalmente o curso

Iorque, 1913) de uma mesma obra, simplesmente através

da história da arte contemporânea. O próprio conceito

da mudança do contexto físico e cultural. No Armory Show

de arte sai profundamente abalado do desmascaramento

a experiência torna-se consciência e, de seguida, esta far-

produzido em acto pelo «acontecimento». A transforma-

-se-à manifesto no Independents Show. Isto implica que Du-

ção do conceito de arte torna-se a partir daí inevitável e

champ saberia qual o destino da sua obra em 1917. Não só

irreversível. Mas é muito importante o facto de Duchamp

saberia, como o desejaria «in advance».30 A obra Fontaine

não utilizar este estratagema fora de um contexto históri-

apresentada será simplesmente o seu dispositivo irónico

co específico, isto é, o artista conhece bem as limitações

de estrategicamente praticar o jogo da arte. Como salien-

e limites das estruturas de legitimação da arte. De facto,

ta Hal Foster, “For the most acute avant-garde artists such as

conhece-as de modo directo através da sua própria expe-

Duchamp, the aim is neither an abstract negation of art nor a

riência. Duchamp confrontou-se através de uma mesma

romantic reconciliation with life but a perpetual testing of the

obra com os dois lados extremos da legitimação da arte,

conventions of both.”31. A genialidade do acto de Duchamp

a violência da recusa e a glória da aclamação. Na verdade, quando produz Nu Descendant L’Escalier nº2, esta é recusada no Paris Indépendants em 1912, exposição da Paris Société des Artistes Indépendants cujo mote é nada mais nada

29 - Cf. Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: op. cit., p. 91. 30 - Remete-se aqui para a ideia da obra de Duchamp In Advance of the Broken Arm de 1915. 31 - Hal Foster, «What’s Neo about the Neo-Avant-Garde?», in: op. cit., p. 18.

18


reside, por um lado, na consciência da relatividade da

múltiplas reproduções quase rituais autorizadas pelo ar-

«regra» (os 6$ não serão suficientes), por outro, nas limi-

tista). Como assinala Thierry de Duve: “The reality is that

tações inerentes às «formas de vida» (um urinol naque-

art is legitimated only through comparison and that compari-

le «contexto» não poderia ser aceite como obra de arte).

son can be made only with what is already legitimate. Legiti-

Tanto as «regras» existem para serem transgredidas (a

mation comes from the past alone. (…) Making avant-garde of

recusa da exposição pública) como as «formas de vida»

true significance means anticipating a verdict that can only be

são dinâmicas (rapidamente Fontaine tornar-se-á uma das

retrospective. It means delivering the unexpected in the lieu of

obras fundamentais da história da arte contemporânea).

the expected in such a way that betrayed and disappointed ex-

E este é o carácter determinante do «jogo de linguagem»

pectations show themselves, in the end, to have been fulfilled.”34

que é “objecto de comparação – como, por assim dizer, um padrão de medida, e não como um preconceito ao qual

Com o The Richard Mutt Case produz-se uma verdadeira

a realidade tem que corresponder.” Como Wittgenstein

revolução no campo da arte. A partir daqui a arte tenderá

afirma, “quando se diz que uma frase é destituída de sen-

a afastar-se das análises puramente formais e estéticas do

tido não se diz que é o seu sentido que é destituído de

objecto, enveredando por um novo caminho onde o acto

sentido. Diz-se, antes, que uma combinação de palavras

(dito por alguns conceptual) concentra as atenções. Com

32

é excluída da linguagem, retirada da circulação.” Neste

Marcel Duchamp fotografado para a revista Life por Eliot Elisofon, LIFE Magazine March 1952.

33

caso, substituindo o termo «frase» por objecto, a lógica é a mesma do destino de Fontaine em 1917. A obra permanece na invisibilidade, remetida para um canto da exposição por detrás de uns tapumes (recusando a exposição da obra e a publicação no catálogo a que tinha direito). Mas a ironia da situação é que a exclusão da obra fundamentará exponencialmente a sua inscrição no mundo da arte, provocando com isso a inevitável (e neste caso consciente) mutação das «formas de vida», ou seja, do «contexto» artístico e da «linguagem» da arte. Na verdade, Duchamp armará mais uma das suas inteligentes estratégias para concretizar a divulgação pública da obra recusada pelos Independents (dos quais se demite logo a seguir ao acto de censura), projectando paradoxalmente para o domínio da arte um objecto ausente, mas definitivamente não inexistente (por um lado, do original restará apenas uma fotografia de Stieglitz publicada no manifesto The Richard Mutt Case na revista The Blind Man editada pelo próprio Duchamp, por outro, a obra será alvo posteriormente de 32 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 131, p. 264. 33 - Idem, Ibidem, ponto 500, p. 434.

19

34 - Thierry de Duve, «Given the Richard Mutt Case», in: op. cit., p. 141.


isto é afirmado que o objecto até aí autónomo e auto-sufi-

linguagem» e «formas de vida». A consciência do artista

ciente se apresenta mais como «objecto de comparação»,

revela-se portanto nessa concepção extremada do «jogo

devido ao «jogo de linguagem» que este instaura e ins-

de linguagem». Na verdade, só pelo apelo do limite Du-

creve. Afirma, com toda a sua força irónica, o «contexto»

champ pode expôr as falhas do sistema cultural e institu-

institucional e cultural onde se candidata a figurar como

cional onde se move. É neste sentido que o «acontecimen-

obra de arte e assim potencia radicalmente a dinâmica das

to» de 1917 pode apresentar-se como um desafio radical

«formas de vida». Isto é, a obra de arte não vale por si, pela

aos conceitos desenvolvidos mais tarde por Wittgenstein

sua objectualidade, mas acima de tudo pela mediação que

nas suas Investigações Filosóficas. São um «teste» «in ad-

se produz através do seu «uso», activadando no processo

vance», um exemplo prático prévio que manifesta uma

as «formas de vida» do «contexto». Daí a sua importância

teoria posterior. A consciência do problema da mediação

fundamental em todo o campo da arte contemporânea.

representa aqui a tentativa de uma «visão panorâmica»

Diz-nos Duchamp acerca do readymade do qual Fontai-

do horizonte da «linguagem», que Wittgenstein investiga

ne será uma das manifestações mais significativas: “It was

filosoficamente e que Duchamp concretiza artisticamen-

around that time that the word «readymade» come to mind to

te. A diferença entre ambos estará, acima de tudo, no facto

designate a form of manifestation. A point which I want very

de Duchamp através da ironia revelar as fraquezas da le-

much to establish is that the choice of these «readymades» was

gitimação artística do seu tempo, enquanto Wittgenstein

never dictated by esthetic delectation. This choice was based on

lhe pretende acentuar a positividade filosófica de um pro-

a reaction of visual indifference with at the same time a total

cesso de relativização. Se o artista revela negativamente

absence of good or bad taste… in fact a complete anesthesia.”35

as limitações de um extremo «jogo de linguagem», o filó-

O evento duchampiano representa em acto uma cons-

sofo afirma positivamente a operacionalidade dos «jogos

ciência latente no tempo, em que a mediação não é um

de linguagem». No ponto fulcral cremos que concordam,

fenómeno transparente e isolado dos contextos históri-

isto é, quanto à abertura dos «jogos de linguagem» e a sua

cos, afirmando em acto a consciência da pluralidade e

inerência à dinâmica das «formas de vida». Ambos per-

heterogeneidade dos paradigmas culturais. As pesquisas

cebem que a «linguagem» é um horizonte determinado

da arte tenderão assim a abandonar os estudos centra-

espacial e temporalmente. Daí a sua inerente contextua-

dos unicamente no estudo dos objectos para afirmarem

lidade e historicidade. Nas palavras de Wittgenstein: “O

a questão da mediação inerente à determinação caracte-

nosso erro consiste em procurar uma explicação onde de-

rística das estruturas culturais (passagem das vanguardas

vemos ver os factos como «o fenómeno primordial». Isto

históricas do inicio do século às neo-vanguardas dos anos

é, onde deveríamos dizer: este jogo joga-se.”36

60). A partir deste evento, a arte pode ser o «jogo» que se produz entre uma obra e o «contexto» que simultanea-

“Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em

mente limita e potencia a dialéctica entre a inovação e

silêncio.”37

a tradição. Neste sentido, o «acontecimento» produzido por Duchamp revela a problematicidade dos laços mediadores que afirmam a inerência mútua entre «jogos de 35 - Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», in: Theories and Documents of Contemporary Art, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 1996 [1961], p. 819.

36 - Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas», op. cit., ponto 654, p. 488. 37 - Ludwig Wittgenstein, «Tratado Lógico-Filosófico», in: op. cit., p. 142.

20


no fundo, no fundo, bem lรก no fundo, a gente gostaria de ver os nossos problemas resolvidos por decreto. paul leminsky



Para além das ontologias fracturantes: espaço, meditação e reencantamento

que o ímpeto da modernidade é essencialmente extrativista (Klein, 2014), reduzindo a natureza e os humanos ao estatuto de Bestand ou reserva passiva (Heidegger, 1976), tem existido uma progressiva tendência em torno de modelos analíticos, tecnológicos e políticos que favorecem uma relação simétrica entre humanos e não-humanos, promovendo aquilo que Andrew Pickering designa como uma dança de agência (Pickering, 1995) entre todas as entidades existentes.Esta transição em torno de uma política ontológica (Mol, 1999) menos destrutiva aplica-se

António Carvalho

também àquilo que Michel Foucault designava como as tecnologias do sujeito, um conjunto de práticas que per-

resumo

mitem aos sujeitos humanos uma transformação do seu

No seguimento de etnografia levada a cabo em retiros no

Foucault, o modelo de subjetivação disciplinar – enquan-

Reino Unido, França e Portugal, junto das comunidades

to exemplo clássico da modernidade – visava a produção

Vipassana (na tradição de S. N. Goenka) e Zen (segundo

de corpos dóceis, eficientes e normalizados (Foucault,

os ensinamentos de Thich Nhat Hanh), neste trabalho

1995), ao serviço de um modelo capitalista da exploração

argumento que uma dimensão fundamental dos disposi-

de recursos naturais e humanos, a subjetivação não-mo-

tivos de subjetivação meditativa diz respeito à reconfigu-

derna ambiciona a construção de arquipélagos de subje-

ração ambiental, às associações que os participantes esta-

tividade que visam a exploração da consciência, a iden-

belecem com novos objetos, às condições arquitetónicas a

tificação com não-humanos e uma experiência integral

que estão sujeitos e a uma série de regras que determinam

do corpo e das emoções (Stengers, 2008; Carvalho, 2014).

os movimentos, as interações e as espacialidades. Através

As práticas meditativas podem ser consideradas tecnolo-

de uma análise suportada pela teoria do ator rede e por li-

gias não-modernas do sujeito. Neste artigo, a análise recai

teratura pós-humanista no âmbito dos estudos de ciência

sobre as práticas Zen de Thich Nhat Hanh e a meditação

e tecnologia, o artigo irá estabelecer uma leitura política

Vipassana de S. N. Goenka. Thich Nhat Hanh nasceu no

e ontológica do espaço, atentando nas várias camadas de

Vietname em 1926 e atualmente reside em Plum Village,

subjetivação recrutadas pelas heterotopias meditativas e

um mosteiro localizado no Sul de França, na região da

no seu potencial em reverter os dualismos modernos.

Dordogne. É mundialmente conhecido pela sua abor-

estatuto contemplativo, físico e mental. Se, de acordo com

dagem engajada à meditação, que favorece não só uma

introdução

aplicação da meditação a questões políticas e sociais mas

No âmbito dos Estudos de Ciência e Tecnologia (ECT)

-a-dia. A técnica disseminada por esta linhagem é desig-

tem-se registado uma crescente tendência em explorar

nada por mindfulness, traduzida por plena consciência

ontologias não-modernas, isto é, configurações que sus-

ou atenção plena. S. N. Goenka (1924-2013) era um profes-

pendem o dualismo moderno entre corpo e mente, natu-

sor birmanês de meditação Vipassana, que habitualmente

reza e cultura, humanos e não-humanos. Reconhecendo

se traduz por ver as coisas tal como elas são. Goenka foi

também a associação entre meditação e as práticas do dia-

23


o grande disseminador de meditação Vipassana fora da

de literatura relevante. O objetivo deste artigo é analisar

Birmânia a partir dos anos 70 do século XX, e hoje em

de que forma o espaço é reconfigurado para promover a

dia existem centros de meditação Vipassana espalhados

emergência de subjetividades meditativas, explorando, à

por todo o mundo. Os cursos de meditação de 10 dias da

luz dos Estudos de Ciência e Tecnologia, as ramificações

linhagem de Goenka são já clássicos e considerados exce-

espaciais das ontologias contemplativas enquanto tecno-

lentes introduções à meditação devido à sua clareza e sis-

logias não fraturantes.

tematicidade. Estas práticas meditativas visam uma profunda transformação da mente, alinhada com a tentativa de minimizar o sofrimento humano. No caso da meditação Zen de Thich Nhat Hanh, levam-se a cabo uma série

o retiro e a reconfiguração do espaço

de práticas de atenção plena – como meditação sentada, a

O retiro é uma suspensão da vida moderna e das redes

caminhar, a lavar a louça – que visam reforçar o estatuto

de subjetivação habituais. Simmel argumentou que a ci-

contemplativo do indivíduo, permitindo-lhe a transição

dade moderna gera um número de efeitos subjetivos,

de uma subjetividade dualista para um estado mental de

levando à constituição de um novo tipo de homem, que

total imersão no momento presente, consciente das ações

designou como metropolitano. Este tipo de sujeito “rea-

do corpo, da mente e da relação com os outros. Uma di-

ge com a cabeça ao invés do coração” devido à lógica

mensão fundamental da linhagem de Thich Nhat Hanh

exercida pelo “poder esmagador da vida metropolitana”

é a noção de Inter-Ser, que diz respeito ao reconhecimen-

(Simmel, 1950: 411), ilustrando o poder das cidades na

to da inter-relação entre todas as entidades existentes. A

fabricação de certos tipos de pessoas (Certeau, 1984). O

contínua prática de meditação deve idealmente promo-

papel da materialidade na emergência de subjetividades

ver a consciência desta dança de agência entre todas as

é sublinhado pelas abordagens pós-humanistas dos ECT

entidades, promovendo um modo de estar no mundo

(Haraway, 1991; Pickering, 1995; Verbeek, 2011), e os reti-

descentrado e inter-relacional. No caso da meditação

ros recrutam dispositivos espaciais e institucionais para

Vipassana, existe um processo de des-identificação com

promover a emergência de sujeitos não-duais. Os retiros

as habituais sensações corporais. Através da prática me-

dependem de uma profunda reconfiguração psicogeográ-

ditativa os sujeitos aprendem a não reagir às sensações

fica como vetor de subjetivação. O termo psicogeografia

no corpo e a reconhecer que, para além das sensações co-

foi utilizado por Guy Debord para ilustrar a dimensão

muns – frio, comichão, calor, dor – existe uma sensação

subjetiva das cidades, paisagens e organizações espaciais

subtil, habitualmente caracterizada como um tremor, que

em geral: “A psicogeografia diz respeito ao estudo das leis

está presente ao longo do corpo. A prática contínua de

e efeitos específicos do ambiente geográfico, organizado

meditação pode fazer com que todo o corpo seja permea-

ou não de forma consciente, nas emoções e comporta-

do por esta sensação de tremor, que inevitavelmente leva

mento dos indivíduos. O vago adjetivo psicogeográfico

à dissolução do corpo e à incapacidade em o separar do

pode ser aplicado aos resultados deste tipo de investiga-

ambiente e dos outros. Este artigo resulta de investigação

ção, à sua influência nos sentimentos humanos, e mais

levada a cabo entre 2010 e 2013 em Inglaterra, França e

genericamente a qualquer situação ou conduta que pa-

Portugal. As metodologias utilizadas incluíram observa-

rece refletir o mesmo espírito de descoberta.” (Debord,

ção participante em retiros Vipassana e Zen, entrevistas

2006: 8). As psicogeografias meditativas dependem de

com praticantes de meditação, autoetnografia e a análise

uma variedade de dispositivos para alterar as associações

24


modernas, incluindo a reconfiguração do espaço, a ges-

sores; sala de refeições para tomar o pequeno-almoço, al-

tão das interações, a utilização de inscrições e são supor-

moço e jantar, para levar a cabo a inscrição no início do

tadas por conceções particulares do espaço – ontologias

retiro e para oferecer um donativo no final; dormitórios

espaciais situadas. Se, de acordo com Foucault (1995), o

para dormir, descansar e meditar; zonas de “caminhada”

Panóptico é um laboratório de poder para a fabricação de

para caminhar (isto inclui algumas árvores e jardins). Em

sujeitos disciplinados, as práticas Zen e Vipassana tam-

suma, o Vipassana recorda-nos das instituições totais de

bém dependem de formas de reconfiguração espacial e

Goffman (1968), que indicavam uma mudança radical

arquitetónica para suportar a meditação. Os Halls de me-

em relação à sociedade “exterior”, transformando as indi-

ditação são agenciamentos espaciais paradigmáticos – a

vidualidades num rebanho homogéneo que é mobilizado

iluminação é reduzida; a decoração é mínima para evitar

de um espaço para outro, de acordo com o horário. Isto

distrações e os sons da cidade são suspensos (em ambos

permite aos praticantes ficarem totalmente envolvidos na

os casos, os retiros são organizados em zonas rurais).Nos

meditação, não sendo obrigados a levar a cabo escolhas.

retiros Vipassana, os antigos estudantes sentam-se à fren-

Os participantes podem concentrar os seus esforços na

te, e os dois professores, homem e mulher, estão elevados,

prática da meditação: abdicam da sua liberdade espacial,

sentando-se numa plataforma, onde conseguem supervi-

a possibilidade de se moverem de um espaço para outro

sionar os estudantes. A organização do Hall significa que

de acordo com a sua vontade, de forma a implementarem

mais atrás, onde se sentam os novos estudantes, existe

modos meditativos de subjetividade. Em Plum Village,

muito mais barulho do que à frente, onde estão os prati-

apesar de diferentes edifícios terem funções específicas –

cantes mais antigos. Em Plum Village o principal Hall de

dormir, descansar, comer, meditar, etc. – não existe o mes-

meditação chama-se Still Water Meditation Hall. Existem

mo movimento relativamente homogéneo e previsível de

dois lados, direita e esquerda, e duas linhas de almofadas.

corpos humanos: o horário pode ser alterado, existem pe-

A linha exterior é para visitantes e a linha interior para

ríodos para descanso e prática pessoal e os participantes

monges. Habitualmente, quanto mais sénior é um prati-

podem ficar nos quartos se assim o desejarem. Existem

cante mais distante se encontra da entrada do Hall. Quan-

também vários dispositivos que se assemelham à vida do

do Thich Nhat Hanh medita, habitalmente senta-se no fi-

dia-a-dia – uma mesa de ping pong onde se pode jogar

nal da linha interior de almofadas. Os diferentes edifícios

com outros participantes e monges; um edifício, chama-

e dispositivos arquitetónicos têm objetivos relativamente

do Bamboo Hall, onde existe uma pequena biblioteca, um

claros, lembrando-nos da distribuição espacial dos indi-

piano e os participantes podem organizar workshops de

víduos em espaços disciplinares (Foucault, 1995). Nos re-

yoga ou tai chi. Isto significa que diferentes dispositivos

tiros Vipassana, todos estes edifícios têm funções especí-

arquitetónicos são utilizados para promover distintos pa-

ficas, permitindo circulações regulares entre espaços que

radigmas de meditação. Os isolamentos regimentados do

se ajustam ao horário – dos dormitórios para o Hall de

Vipassana contrastam com o Zen enquanto expressão do

meditação; do Hall de meditação para a sala de refeições;

mundo exterior e uma forma de Budismo engajado.

da sala de refeições para as casas de banho, etc.. O Dhama Dipa, o maior centro de meditação Vipassana na Europa, é um centro cuja propriedade foi adquirida em 1991 e cada

inscrições

espaço tem uma função clara – Hall de meditação para

Os agenciamentos Vipassana and Zen recorrem a um nú-

meditar, assistir a palestras e colocar questões aos profes-

mero de inscrições espaciais, mecanismos que marcam o

25


espaço do retiro com signos, elementos que devem supor-

-humanos que povoam o espaço do retiro e que podem

tar a prática da meditação. Nos retiros Vipassana, existem

recordar os participantes das regras ou que reforçam o

signos onde se pode ler “Male course boundary” ou “Fe-

estabelecimento de novas redes de associação, como no

male course boundary”, indicando as fronteiras do espaço

caso do Zen. Em ambos os casos, estas novas associações

de confinamento, reforçando a proibição de abandonar as

são positivas, fomentando a emergência de novos para-

fronteiras demarcadas. Existe também um quadro com al-

digmas de subjetividade.

gumas das regras, aspetos técnicos da prática e potenciais mudanças no horário ou regulamentos. Nos retiros Zen, existe um mecanismo ubíquo que infeta o espaço com o

materialidades

espírito da plena consciência e do Inter-Ser – a inscrição

Uma dimensão essencial destes retiros é a introdução de

física de versos, ou gathas. Por exemplo, na sala de refei-

dispositivos não-humanos que transformam e adaptam o

ções há um gatha que diz “This piece of bread is an ambas-

comportamento humano. Estes materiais, de acordo com

sador from the entire cosmos” e nas casas de banho um

Latour e a teoria do ator rede, podem ser entendidos en-

gatha que diz “Water flows over these hands. May I use

quanto actantes, entidades “cuja competência é deduzida

them skilfully// to preserve our precious planet” (Hanh,

das suas performances” (Latour, 2004: 237). As nossas vi-

1996: 20) – estes gathas estão praticamente em toda a par-

das são caracterizadas por uma proliferação de dispositi-

te e o seu objetivo é suportar um modo de ser meditativo

vos como televisões, computadores e telemóveis, perma-

através do estabelecimento de novas associações mentais.

nentemente interagindo connosco e modificando a nossa

Estes gathas funcionam como marcas legislativas ou co-

subjetividade. Como devemos analisar as redes materiais

dificações, ilustrando uma nova ontologia que deve ser

e tecnológicas dos retiros, o conjunto de elementos não-

atualizada na prática. Em ambos os casos, estas inscrições

-humanos que idealmente devem sustentar, maximizar e

visam gerar uma realidade espacial que associa o legisla-

suportar a meditação? Em primeiro lugar, se as pessoas

tivo ao performativo e ao ontológico, funcionado como

vão praticar meditação sentada, têm de se sentar. Nos reti-

tenentes (Latour, 1988: 94) da meditação – estes recor-

ros Vipassana existe um procedimento standard para

dam os participantes que estão no espaço de um retiro,

aqueles que se sentam pela primeira vez. Existe uma al-

convidando-os a ajustarem-se a novas modalidades espa-

mofada grande e triangular que repousa sobre o solo, e

ciais, institucionais e performativas, povoando o espaço

depois existe uma almofada mais pequena e fina no topo

com inscrições meditativas. Os gathas são dispositivos de

dessa. É possível adicionar outra almofada, mais pequena,

subjetivação linguística. O exemplo de Judith Butler, re-

ao conjunto, para elevar o corpo, facilitando o processo de

lativo ao médico que pronuncia o género da criança ao

sentar de pernas cruzadas ou na posição de lótus ou semi-

nascer (Butler, 1997), indica como este primeiro anúncio

-lótus. Em Plum Village, cada participante pode utilizar

produz uma cadeia de subjetivação para o resto da vida.

um dos vários Zafus disponíveis: estes também repousam

De acordo com Altusser, a ideologia transforma indiví-

no topo de uma almofada triangular maior que protege as

duos em sujeitos através de interpelações “que podem ser

pernas do contacto com o chão de madeira. A adaptação a

imaginadas através do exemplo quotidiana do polícia que

uma nova rede material gera várias resistências. Sentar-se

chama alguém à atenção: Hey, você aí!” (Althusser, 2008:

por longos períodos de tempo não é fácil para principian-

48). As inscrições, ao invés de interpelarem diretamente

tes, gerando um número de lutas de agência. Robert Ho-

os participantes (como o polícia de Althusser), são não-

ver, que aprendeu a meditar com U Ba Khin na Birmânia

26



(o professor de Goenka), recorda a sua experiência com

causar sofrimento físico. O seu “programa de ação” – a in-

almofadas da seguinte forma:“Eu era um homem de cin-

tenção de se vingar – é bloqueado. Esta pessoa, no entanto,

co almofadas”. Hover descreveu: “Uma para me sentar,

pode estabelecer uma relação com uma arma (actante 2).

uma debaixo de cada joelho, uma atrás das minhas costas

A arma medeia o programa de ação do actante 1, na base

contra a parede, e uma que trazia sempre comigo” e mo-

do seu próprio programa de ação – a “função” de disparar.

veu a sua mão no ar abanando uma almofada imaginária

Um novo actante emerge (actante 1 + actante 2), com um

dizendo “caso seja necessário”. Demonstrou a sua postu-

novo programa traduzido: a morte da pessoa contra a qual

ra inicial: ombros encolhidos, joelhos levantados e uma

o humano se quer vingar...O programa de ação original é

expressão de confusão no rosto” (Lerner, 1977: 61). Judith

por isso “traduzido” ou “transformado” num novo pro-

Toy, uma praticante de Zen, começou por utilizar um ban-

grama através da mediação técnica” (Verbeek, 2005: 156).

co, depois de muitos anos de meditação, para se conseguir

O programa de ação dos retiros Zen é promover a plena

sentar por longos períodos de tempo. Até chegou a coser

consciência. No entanto, os participantes lidam com uma

um pequeno colchão no topo do banco, reforçando a im-

série de resistências – estão distraídos, pensam sobre a

portância dos equipamentos no contexto das práticas

casa, o passado e o futuro, apesar de estarem rodeados por

contemplativas (Toy, 2011: 115-116). Dispositivos arquite-

um ambiente radicalmente diferente. Para que a plena

tónicos, ambientes, a distribuição do espaço e os não-hu-

consciência possa ser materializada, um novo dispositi-

manos criam associações que alteram a forma como as

vo, o sino, é utilizado para ajudar os participantes a voltar

pessoas utilizam os seus corpos e interagem com os ou-

ao momento presente. Este não-humano não é facilmente

tros, levando a uma transformação do seu habitus (Bour-

recrutado – os participantes humanos resistem ao agen-

dieu, 1977). Existe um exemplo que agora iremos explorar

ciamento e lutam para implementar um novo modo de

e que diz respeito aos sinos nos retiros Zen na tradição de

existência. Como um entrevistado me disse, o sino pode

Plum Village. Nos retiros Zen, os sinos são actantes com

até ter um efeito indesejado, ligado à expetativa que uma

uma presença quase ubíqua. São utilizados constante-

sessão de meditação irá chegar ao fim: “As pessoas podem

mente para anunciar o início de uma atividade (comer,

estar aborrecidas, ou impacientes, e podem apenas estar à

caminhar, sentar) e os praticantes são encorajados a pa-

espera do sino tocar…e depois, o que acontece quando o

rar aquilo que estão a fazer e a focarem-se na respiração.

sino toca? Certamente se sentem aliviadas…acontece-me

Idealmente, isto é feito ao longo de três ciclos de inspira-

isso por vezes, sento-me e estou à espera do sino tocar!”

ção e expiração. Como Thich Nhat Hanh afirma: “quando

(Entrevista, Plum Village, Fevereiro de 2011). A utiliza-

escutamos o som do sino, paramos de falar e de nos mo-

ção de sinos parece ser contraproducente: se a meditação

ver. Relaxamos o nosso corpo e tornarmo-nos conscientes

deve permitir o desenvolvimento de atenção através da

da respiração. Fazemo-lo naturalmente, com prazer, e sem

instalação de novos automatismos meditativos, o sino pa-

qualquer rigidez” (Hanh, 2009: 20). Os sinos, de acordo

rece levar a novos condicionamentos (Watson and Ray-

com a teoria do ator rede, são mediadores, e traduzem um

ner, 1920) que dificultam a prática da meditação. Para que

programa de ação (Akrich and Latour, 1992). Como Ver-

se possa apreciar o sino, é necessário praticar: em suma,

beek explica:“Quando uma tecnologia medeia, isso envol-

o sino apenas pode servir o programa de ação do retiro

ve a “tradução” de um “programa de ação”. Imaginemos

se aqueles que o escutam levarem a cabo um processo de

que uma pessoa (actante 1) está zangada e quer vingar-se

aprendizagem, transformando os seus automatismos e as-

de outra pessoa, mas não é suficientemente forte para lhe

sociando o seu som à plena consciência, ao invés de pro

28


(o professor de Goenka), recorda a sua experiência com

causar sofrimento físico. O seu “programa de ação” – a in-

almofadas da seguinte forma:“Eu era um homem de cin-

tenção de se vingar – é bloqueado. Esta pessoa, no entanto,

co almofadas”. Hover descreveu: “Uma para me sentar,

pode estabelecer uma relação com uma arma (actante 2).

uma debaixo de cada joelho, uma atrás das minhas costas

A arma medeia o programa de ação do actante 1, na base

contra a parede, e uma que trazia sempre comigo” e mo-

do seu próprio programa de ação – a “função” de disparar.

veu a sua mão no ar abanando uma almofada imaginária

Um novo actante emerge (actante 1 + actante 2), com um

dizendo “caso seja necessário”. Demonstrou a sua postura

novo programa traduzido: a morte da pessoa contra a qual

inicial: ombros encolhidos, joelhos levantados e uma ex-

o humano se quer vingar...O programa de ação original é

pressão de confusão no rosto” (Lerner, 1977: 61). Judith

por isso “traduzido” ou “transformado” num novo pro-

Toy, uma praticante de Zen, começou por utilizar um ban-

grama através da mediação técnica” (Verbeek, 2005: 156).

co, depois de muitos anos de meditação, para se conseguir

O programa de ação dos retiros Zen é promover a plena

sentar por longos períodos de tempo. Até chegou a coser

consciência. No entanto, os participantes lidam com uma

um pequeno colchão no topo do banco, reforçando a im-

série de resistências – estão distraídos, pensam sobre a

portância dos equipamentos no contexto das práticas

casa, o passado e o futuro, apesar de estarem rodeados por

contemplativas (Toy, 2011: 115-116). Dispositivos arquite-

um ambiente radicalmente diferente. Para que a plena

tónicos, ambientes, a distribuição do espaço e os não-hu-

consciência possa ser materializada, um novo dispositivo,

manos criam associações que alteram a forma como as

o sino, é utilizado para ajudar os participantes a voltar ao

pessoas utilizam os seus corpos e interagem com os ou-

momento presente. Este não-humano não é facilmente

tros, levando a uma transformação do seu habitus (Bour-

recrutado – os participantes humanos resistem ao agen-

dieu, 1977). Existe um exemplo que agora iremos explorar

ciamento e lutam para implementar um novo modo de

e que diz respeito aos sinos nos retiros Zen na tradição de

existência. Como um entrevistado me disse, o sino pode

Plum Village. Nos retiros Zen, os sinos são actantes com

até ter um efeito indesejado, ligado à expetativa que uma

uma presença quase ubíqua. São utilizados constante-

sessão de meditação irá chegar ao fim: “As pessoas podem

mente para anunciar o início de uma atividade (comer,

estar aborrecidas, ou impacientes, e podem apenas estar à

caminhar, sentar) e os praticantes são encorajados a parar

espera do sino tocar…e depois, o que acontece quando o

aquilo que estão a fazer e a focarem-se na respiração.

sino toca? Certamente se sentem aliviadas…acontece-me

Idealmente, isto é feito ao longo de três ciclos de inspira-

isso por vezes, sento-me e estou à espera do sino tocar!”

ção e expiração. Como Thich Nhat Hanh afirma: “quando

(Entrevista, Plum Village, Fevereiro de 2011). A utilização

escutamos o som do sino, paramos de falar e de nos mo-

de sinos parece ser contraproducente: se a meditação

ver. Relaxamos o nosso corpo e tornarmo-nos conscientes

deve permitir o desenvolvimento de atenção através da

da respiração. Fazemo-lo naturalmente, com prazer, e sem

instalação de novos automatismos meditativos, o sino pa-

qualquer rigidez” (Hanh, 2009: 20). Os sinos, de acordo

rece levar a novos condicionamentos (Watson and Ray-

com a teoria do ator rede, são mediadores, e traduzem um

ner, 1920) que dificultam a prática da meditação. Para que

programa de ação (Akrich and Latour, 1992). Como Ver-

se possa apreciar o sino, é necessário praticar: em suma, o

beek explica:“Quando uma tecnologia medeia, isso envol-

sino apenas pode servir o programa de ação do retiro se

ve a “tradução” de um “programa de ação”. Imaginemos

aqueles que o escutam levarem a cabo um processo de

que uma pessoa (actante 1) está zangada e quer vingar-se

aprendizagem, transformando os seus automatismos e as-

de outra pessoa, mas não é suficientemente forte para lhe

sociando o seu som à plena consciência, ao invés de pro-

29


jetarem no dispositivo um conjunto de expetativas (comi-

grafia contemplativa. Alteram e medeiam as ações huma-

da, descanso, sono, etc.). Se, de acordo com Latour (1991),

nas, solicitando aos humanos que adaptem os seus

não existe disciplina sem aço, também não podem existir

automatismos e que se associem a novos aparatos mate-

retiros Zen sem sinos. Recordo-me que numa ocasião, na

riais para praticar meditação.

primavera de 2012, eu estava a cargo de tocar o sino durante um dia de plena consciência em Devon, no sul de Inglaterra, para lembrar as pessoas a voltarem ao Hall de

conclusão

meditação durante um período de prática. Demorei um

Neste artigo analisaram-se os dispositivos espaciais e ma-

pouco mais de tempo para chamar toda a gente (tive de

teriais presentes em retiros de meditação à luz da teoria

tocar o sino várias vezes, dado que as pessoas estavam es-

pós-humanista dos ECT. As ontologias meditativas são

palhadas ao longo da propriedade) e quando regressei ao

consideradas não-fraturantes na medida em que visam

Hall de meditação cheguei à conclusão de que os organi-

uma suspensão dos dualismos modernos entre mente e

zadores do retiro estavam preocupados porque não ti-

corpo, eu e outros, humanos e não-humanos. O objetivo

nham sino para anunciar a atividade seguinte. Existem

deste artigo não era uma análise fenomenológica dos es-

várias técnicas e procedimentos para tocar o sino, depen-

tados mentais gerados pela prática meditativa (ver Carva-

dendo das circunstâncias. Pode ser utilizado durante ce-

lho, 2014b) mas sim uma exploração das reconfigurações

rimónias de ordenação, para anunciar uma nova ativida-

ambientais necessárias para que estas tecnologias do su-

de ou apenas para assegurar que todos os participantes

jeito possam ser aplicadas. Tendo como pano de fundo as

estão a praticar mindfulness. Ao invés de tocar o sino, di-

preocupações ontológicas e políticas dos ECT, podemos

z-se que este é convidado. Convidar o sino requer o de-

argumentar que estas reconfigurações reforçam o papel

senvolvimento de um estado de espírito particular. Isto

dos ambientes e associações na constituição de subjeti-

significa que, para ativar o sino, é preciso transformar os

vidades, e permitem-nos situar e contextualizar as redes

automatismos habituais. O sino e o praticante associam-

de subjetivação espacial da modernidade dualista. As ex-

-se para produzir o som que idealmente deve permitir a

periências de John C. Lilly e de Chris Salter sobre isola-

outros atingirem um estado de plena consciência: devem

mento e estados alterados de consciência demonstraram

escutá-lo, respirar três vezes e permanecer no momento

que a mente humana é profundamente afetada a partir do

presente.Sinos, almofadas e os dispositivos materiais pre-

momento em que os estímulos habituais são suspensos.

sentes nos retiros podem ser entendidos como mediado-

Reconhecendo que existe uma relação entre experiência

res que suportam a prática da meditação, convidando os

e ambiente, e que, de acordo com a ecologia profunda e

atores humanos a alterar a sua postura, afeto e como fa-

a cibernética (Bateson, 1972), a crise ecológica ambiental

zem sentido da sua experiência. Estes não-humanos são

está profundamente associada a um modelo psicológico

dispositivos de subjetivação material: as almofadas são

dualista, é fundamental criar e disseminar espaços que

utilizadas cuidadosamente para permitir a emergência

promovam a emergência de estados não-fraturantes. Es-

de uma postura correta; os sinos são mediadores de plena

tes espaços, reencantados através da disseminação de ins-

consciência – permitem a transição de uma atividade

crições, dispositivos materiais e arquitetónicos, facilitam

para outra e requerem aos participantes que se envolvam

a superação de ontologias extrativistas, promovendo uma

em novas performances. Estes diferentes materiais per-

maior consciência do corpo, da alteridade e dos não-hu-

mitem a emergência do retiro enquanto uma psicogeo-

manos. Reconhecendo que, no período do Antropoceno,

30


as crises ambientais estão profundamente interligadas

ley, California: Parallax Press.

com o comportamento humano, esta análise das psico-

Hanh, T. N. (2009). Happiness. Berkeley, California: Parallax

geografias meditativas pode ajudar-nos a refletir acerca

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do papel do espaço na emergência de ontologias simétri-

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31



Identidade, continuidades e descontinuidades da cultura urbana portuguesa, séculos XVIII-XX

muito menor capacidade de o plano se articular harmoniosamente com o sítio. Os planos de Ressano Garcia para a construção da Avenida da Liberdade e das Avenidas Novas, em Lisboa, são disso expressão. Embora antigas vias de penetração na cidade sejam aceites como limites do plano e outras importantes vias sejam integradas no traçado, como a antiga estrada da circunvalação, noutros casos há uma incapacidade de entender, e muito menos de tirar partido, das características topográficas do sítio. Isso observa-se, por exemplo, no local escolhido para a construção da Rotunda do Marquês de Pombal e no traçado das vias que aí convergem, ou na total desarticulação do

Manuel C. Teixeira

largo do Andaluz – até então, um nó importante da cidade – com o plano.

resumo

No século XX essa incapacidade de incorporar o sítio

Uma das principais características do urbanismo de ori-

natural no plano torna-se mais evidente. O plano de Al-

gem portuguesa consiste na adaptação do traçado às ca-

valade, embora ainda seja uma expressão do urbanismo

racterísticas morfológicas do sítio. Podemos observar as

clássico, baseia-se em referências internacionais, mais

estratégias de desenho utilizadas para levar a cabo essa

do que na cultura urbana portuguesa. Nenhuma das vias

adaptação em múltiplas fundações urbanas, de várias

pré-existentes foi tomada em consideração no novo traça-

épocas, quer em Portugal quer em territórios ultramari-

do e os antigos edifícios singulares que existiam na zona

nos. Essa característica constitui um dos principais facto-

foram deficientemente integradas no plano.

res identitários da cultura urbana portuguesa. Os planos modernistas, a partir dos anos 50, completaNos planos para a reconstrução de Lisboa após o terra-

ram a rotura com a cultura urbana portuguesa. Embora

moto de 1755 encontramos diversas expressões da síntese

atentos às condições ambientais, observa-se contudo um

da geometria, assumida como princípio regulador, com a

distanciamento das lógicas de estruturação do território

adequação ao sítio e às pré-existências. O plano elabora-

e das pré-existências construídas. Nalguns casos, a multi-

do por Eugénio dos Santos e António Carlos Andreas é

plicidade de vias desniveladas, túneis e viadutos eviden-

aquele que melhor traduz essa síntese. É um plano com

ciam a incapacidade de relação com o sítio, da mesma

uma estrutura de vias hierarquizada e com uma estrutu-

forma que raramente as vias ou as estruturas existentes

ra de vias bem definida que se ajusta aparentemente sem

são integradas ou tomadas como referência para a orga-

esforço à topografia e às pré-existências. Esta é contudo a

nização das novas malhas urbanas.

última situação em que se observam claros elos de continuidade com esta tradição urbana portuguesas.

Contrariamente ao que se observa no domínio da arquitectura, em que desde o século XIX existiu uma reflexão

Planos subsequentes, dos séculos XIX e XX mostram uma

33

continuada sobre a arquitectura tradicional portuguesa, o


mesmo não aconteceu no urbanismo. A tradição urbana

tegrar as influências teóricas, em contínua mutação e na

portuguesa não foi investigada, antes abandonada, abra-

sua origem muitas vezes estranhas à cultura local, na sua

çando-se modelos internacionais com resultados ques-

maneira específica de pensar e de construir a cidade, fun-

tionáveis. O resultado é que a identidade do urbanismo

dada nas suas próprias raízes culturais e civilizacionais.

de origem portuguesa se foi perdendo, tornando-se ur-

Isto significa que em cada momento essa componente

gente levar a cabo uma reflexão crítica sobre o urbanis-

erudita, em permanente evolução, se articulava com um

mo tradicional português. Tal reflexão deve fundamentar

fundo de permanência e de estabilidade, que se traduzia

quer a reabilitação dos tecidos urbanos históricos quer a

numa grande capacidade de entender as características

concepção de novos espaços urbanos, renovando os laços

físicas do sítio, numa predisposição para se moldar a esse

com a nossa identidade cultural.

território, construindo-se com ele e alterando a regulari-

1. continuidades e descontinuidades do urbanismo português.

dade original quando necessário. Ao longo dos tempos, em múltiplos contextos geográficos, em Portugal e no mundo, vemos diferentes expressões desta síntese, mas apesar desta diversidade o urba-

O urbanismo português caracteriza-se pela permanência,

nismo português soube construir uma identidade que se

ao longo do tempo, e numa grande diversidade de contex-

consubstancia num conjunto de invariantes que caracte-

tos geográficos, de um conjunto de características morfo-

rizam indelevelmente estas cidades. Dessas invariantes,

lógicas e de processos de concepção e construção que de-

uma das mais importantes é precisamente o modo como

finem a sua identidade. São estas características que dão

os traçados urbanos resultam sempre daquele processo

aos espaços portugueses, independentemente do tempo e

de síntese, através do qual um plano definido a partir de

do local em que foram construídos, e para além das suas

uma estrutura regular, de base geométrica, é subsequente-

óbvias diferenças, o sentido de familiaridade que lhes é

mente adaptado ao sítio, moldando-se às suas caracterís-

comum.

ticas físicas e às pré-existências construídas.

As cidades portuguesas são, por um lado, expressão de

Daqui resultava que as cidades portugueses raramente

princípios vernaculares de organização territorial, carac-

eram geometricamente regulares. Apercebemo-nos da

terizados por uma relação muito próxima com as carac-

sua lógica e da sua regularidade, mas estas eram a maior

terísticas físicas do sítio em que se constroem, e que re-

parte das vezes subvertidas para se adaptarem ao sítio,

sultavam habitualmente em traçados não geometrizados;

às pré-existências e às necessidades funcionais, formais

por outro lado, as cidades portuguesas são também ex-

e simbólicas. Contudo, esta plasticidade não significa-

pressão da cultura urbana erudita, que habitualmente se

va, nem se traduzia em traçados urbanos amorfos. Pelo

traduziam em traçados geometrizados que se impunham

contrário, as cidades portuguesas eram eminentemente

ao território. O urbanismo português resultou sempre da

estruturadas e hierarquizadas. Para além disso, eram fa-

síntese destas duas componentes: por um lado, a teoria, o

cilmente legíveis e paisagisticamente ricas.

plano idealizado, a geometria; por outro lado, a experiência prática e o confronto com a realidade (Teixeira, 2012).

Podemos observar em múltiplas fundações urbanas, de

O urbanismo português teve sempre a capacidade de in-

várias épocas, quer em Portugal quer em territórios ul-

34


tramarinos, as estratégias de desenho utilizadas para levar a cabo essa adaptação ao sítio. Através da construção das principais vias da cidade sobre as linhas de festo e as linhas de vale, da implantação de edifícios notáveis em pontos topograficamente dominantes, do desenvolvimento de praças nos pontos de articulação das grandes vias estruturantes, ou associadas àqueles edifícios notáveis localizados em pontos singulares, a cidade ajustava-se naturalmente à estrutura do território. As hierarquias e a estrutura fundamental da cidade reproduziam as hierarquias e a estrutura natural do sítio, tornando explícitas as relações entre sítio e plano urbano, entre linha natural e via estruturante, entre local dominante e arquitectura notável, entre ponto singular e praça. As formas de entendimento do território transformavam-se nos códigos de leitura do espaço urbano.

São Tomé, São Tomé. A estrutura das cidades portuguesas marítimas.

Destes processos, e das estratégias de desenho adoptadas, resultava uma cidade que não contrariava o sítio e as circunstâncias físicas em que se construía, antes tirava partido deles e se construía com eles. Uma cidade que não

Rio de Janeiro, Brasil. A cidade, baseada numa estrutura regular, adaptada ao sítio e às pré-existências

se cristalizava em modelos formais rígidos, que era generosamente aberta a integrar pré-existências, a adaptar-se Lisboa, Portugal. Edifícios singulares localizados em posições dominantes, ruas construídas sobre linhas de vale e ao longo da margem do rio, praças localizadas no cruzamento de vias estruturantes

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a novas condicionantes ambientais ou novas circunstâncias funcionais ou sociais. Se tanto na arquitectura como no desenho urbano, um elemento definidor da sua qua-


plano, adequando-o mais eficazmente à realidade física e às pré-existências construídas. Será este processo que esteve na base de inúmeros núcleos urbanos coloniais. Mesmo quando esta adaptação ao sítio não se verificava na fase de implantação, a realidade acabava inevitavelmente por se impôr ao plano. Características físicas do território ou pré-existências que não haviam sido tomadas em consideração, bem como a distância temporal entre a realização do plano e a sua efectiva concretização, mudanças de prioridades, de objectivos ou de recursos disponíveis, mudanças na estrutura de propriedade ou uma diferente cultura urbana e arquitectónica, implicavam alterações que iam sendo levadas a cabo ao longo do processo de implementação. Esta tradição urbana portuguesa, que combinava a capacidade de construir com o sítio com uma importante componente de geometria e de regularidade, foi sendo elaborada ao longo de séculos através da intensa prática de urbanização levada a cabo em múltiplos locais por enSalvador da Bahia, Brasil. A construção da principal via estruturante sobre a linha de cumeada. A localização de praças nos pontos de inflexão da linha de cumeada

genheiros militares que combinavam a formação teórica

lidade é a capacidade de acomodar futuras transforma-

urbanos a vários contextos geográficos e materiais, mol-

ções, as cidades portuguesas, evidenciando um grande

dando-os conforme as necessidades, foram determinantes

pragmatismo nas soluções adoptadas, eram exemplares

neste processo. O urbanismo português é o resultado de

na sua capacidade de se adaptarem a novas necessidades

inúmeras experiências, processos de troca e influências

urbanas.

recíprocas levados a cabo em Portugal, nas ilhas Atlânticas,

com os conhecimentos práticos acumulados por gerações. A experiência colonial, e a necessidade de adaptar modelos

no Brasil, em África, na Índia e no Oriente. Este modo português de construir cidades nunca foi explicitamente teorizado, mas encontramos algumas pistas

Até ao final do século XVIII tais características são cla-

no que se refere aos processos de concepção, de desenho

ramente legíveis nas cidades de origem portuguesa cons-

e de construção, em escritos teóricos de Serrão Pimentel

truídas pelo mundo, independentemente das sínteses

e de Manoel da Maia (Pimentel, 1680; Maia, 1755). Ambos

específicas que lhes haviam dado origem. Nos diferentes

consideravam uma componente essencial do processo de

planos pombalinos para a reconstrução da Baixa de Lis-

urbanização o confronto com o sítio, em consequência do

boa (Oliveira, 2007) temos o privilégio de ver, como al-

qual se deviam fazer todos os ajustamentos necessários ao

ternativas para um mesmo local, várias dessas sínteses,

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que iam desde planos que asseguravam uma quase total

e aqueles que pretendiam a modernização a partir dos

continuidade das pré-existências anteriores ao terramo-

ideais da Revolução Francesa e da violenta rejeição da-

to, em termos quer de arquitectura quer de traçado, até

queles valores tradicionais.

um plano que se regia por rígidos princípios geométricos, descurando muitas das preexistências locais.

A associação entre cultura tradicional e uma prática social e política de direita irá permanecer até hoje, com uma

Uma questão que se pode colocar é se este património de

expressão bastante acentuada no período do Estado Novo,

saber prático era reconhecido e acarinhado pelas elites

contagiando a prática e o discurso do urbanismo e da ar-

iluministas ou se, pelo contrário, começava a ser rejeitado.

quitectura. Em termos maniqueístas, que ainda prevale-

Planos da segunda metade de setecentos mostram-nos já

cem, a aceitação de valores culturais tradicionais expres-

uma quebra na sensibilidade que encontramos em ante-

saria uma atitude de direita, enquanto ser progressista

riores propostas: uma menor aproximação ao território,

implicaria necessariamente a rejeição da cultura tradi-

uma menor disposição para moldar o plano, deforman-

cional. A realização do Inquérito à Arquitectura Regional,

do-o se necessário, para melhor se ajustar à topografia e às

em meados do século XX, veio tornar este discurso um

perspectivas paisagisticamente interessantes. Vai prevale-

pouco menos linear, mas ainda pleno de ambiguidades e

cendo a geometria e a regularidade dos planos ortogonais,

contradições.

patentes na maior parte dos planos brasileiros deste período, no plano de Vila Real de Santo António ou no plano

A cidade mudou, no que se refere às suas exigências

seleccionado da Baixa de Lisboa.

funcionais, de conforto e de desempenho, aos critérios estéticos, aos agentes envolvidos no seu planeamento e

No século XIX verifica-se uma ruptura nos modos tra-

construção, ao próprio quadro legal existente. No entan-

dicionais de construção da cidade, com as consequentes

to, essas mudanças não são maiores do que as que se ve-

alterações morfológicas. Com Ressano Garcia, o urbanis-

rificaram entre a cidade medieval e a cidade quinhentista

mo português deixa de atender ao sítio e às pré-existên-

ou entre esta e a cidade barroca, que no entanto sempre

cias com a mesma atenção de anteriormente. Os modelos

souberam acomodar na sua diversidade de referências a

adoptados já não são os da cidade histórica e da cultura

continuidade da cultura urbana portuguesa.

urbana portuguesa, mas modelos estrangeiros, aceites acriticamente, não assimilados nem articulados com a cultura portuguesa autóctone, como sempre tinha acontecido até então.

2. os planos de eugénio dos santos e antónio carlos andreas

A rejeição, em múltiplos campos, dos valores tradicionais da cultura portuguesa que se verificou no início do século

Nos seis planos para a reconstrução da Baixa de Lisboa

XIX, veio a ter expressão também no modo como as nos-

após o terramoto de 1755 encontramos diversas expres-

sas cidades se passaram a construir. A luta entra facções

sões da síntese da geometria, assumida como princípio

políticas na primeira metade do século, foi também um

regulador, com a adequação ao sítio e às pré-existências.

confronto cultural entre aqueles que pretendiam assegu-

As várias propostas articulam, de diferentes modos, três

rar a continuidade das tradições e da cultura portuguesas,

características do urbanismo português: a resposta atenta

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às características físicas e às pré-existências do sítio em

encostas é feita de uma forma cuidadosa e subtil, através

que se constrói, o rigor geométrico que está sempre sub-

da acomodação gradual, sem roturas, dos quarteirões late-

jacente aos traçados, e as referências explícitas à tradição

rais à estrutura urbana pré-existente e à topografia das co-

urbana portuguesa. Cada uma das propostas evidencia

linas. Este plano é o resultado de uma síntese harmoniosa

mais um ou outra destas características, traduzindo de

das componentes vernaculares e eruditas do urbanismo

forma diferente a síntese de culturas urbanas que está

português, conseguindo articular de uma forma inteli-

sempre presente no urbanismo português.

gente o respeito pelas pré-existências, arquitectónicas e urbanas, com uma grande regularidade, que está clara-

O plano elaborado por Eugénio dos Santos e António

mente expressa na geometria e nas hierarquias do plano.

Carlos Andreas, em que, segundo cremos, este terá tido um papel determinante na sua concepção, é aquele que

Também no plano para a expansão de Lisboa assinado

traduz essa síntese de uma forma mais interessante. É

pelos mesmos Eugénio dos Santos e António Carlos An-

um plano de base ortogonal, com uma estrutura de vias hierarquizada, que se ajusta aparentemente sem esforço à topografia e às pré-existências. Estas preexistências são de dois tipos. Por um lado, a memória do traçado anterior ao terramoto, presente no plano através da permanência das praças do Rossio e do Terreiro do Paço como elementos polarizadores, no traçado das ruas longitudinais articulando as colinas, na hierarquia das ruas que percorrem o plano na direcção norte-sul e no modo como estas se relacionam com as duas praças. Este apelo à memória subentende-se, mas não se expressa literalmente no novo traçado. Por outro lado, as pré-existências construídas, que são fundamentalmente as igrejas de antes do terramoto que, reconstruídas nos mesmo locais e com as mesmas orientações, são integradas no plano como importantes elementos de referência, tornando-se os pontos fulcrais das perspectivas das ruas e elementos estruturantes fundamentais. A aceitação das anteriores localizações das igrejas não constituiu um obstáculo à elaboração do plano que, pelo contrário, tira partido dessa situação. O plano consegue explorar formalmente as perspectivas oferecidas pelas igrejas, orientando ruas na sua direcção, e ao mesmo tempo inscreve o traçado numa lógica geométrica muito definida e rigorosamente hierarquizada. A relação com as

Lisboa, Portugal Plano de reconstrução da Baixa de Lisboa de Eugénio dos Santos e António Carlos Andreas. A organização da malha urbana em função dos edifícios religiosos pré-existentes.

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dreas, juntamente com Carlos Mardel e Elias Sebastião

Estrada de Entrecampos, e outras são integradas no pla-

Poppe, é perceptível a mesma preocupação em integrar

no, como a antiga estrada da circunvalação, hoje avenida

estruturas urbanas existentes na nova lógica urbana. O

Duque de Ávila, outras são marginalizadas e ignorada a

plano consiste num conjunto de grandes praças – de for-

sua lógica urbana, como acontece com os eixos constituí-

ma octogonal, quadrada ou elíptica – onde convergem

dos pelas ruas das Portas de Santo Antão / São José / Santa

grandes eixos estruturantes da cidade. Estes grandes ei-

Marta / São Sebastião da Pedreira, ou pelas ruas dos Anjos

xos, que cruzam a cidade irradiando destas praças, por

/ Arroios.

sua vez articulam diversas malhas urbanas ortogonais que cobrem o território da cidade.

O mesmo acontece com a relação com o sítio, em que se observa uma incapacidade de entender, se adaptar e tirar

Se muitas dos antigos percursos desaparecem sob este

partido das características topográficas. Isso é perceptí-

novo traçado, houve contudo o cuidado de preservar e de

vel no local escolhido para a construção da rotunda do

integrar no plano as antigas vias de penetração na cidade.

Marquês de Pombal, no traçado das vias que aí conver-

Da mesma forma, enquanto as novas praças se localizam

gem, particularmente da avenida Fontes Pereira de Melo

em terrenos anteriormente não construídos, os princi-

construída numa situação topográfica particularmente

pais nós de articulação da antiga estrutura viária – como é

adversa, ou na total desarticulação de antigos nós impor-

o caso do largo do Rato, o largo do Andaluz, a Cruz do Ta-

tantes na organização urbana da cidade, como o largo do

boado, ou o campo dos Mártires da Pátria – são integrados

Andaluz.

na nova lógica urbana, nalguns casos permanecendo basicamente inalterados na sua forma, noutros casos sendo

A referência para estes planos já não é o urbanismo por-

regularizados. Estas são contudo praticamente as últimas

tuguês tradicional, nas suas múltiplas expressões, mas

instâncias em que se observam claros elos de continui-

o modelo francês das intervenções Haussmanianas que

dade com a tradição urbana portuguesa, numa simbiose

Ressano Garcia teve a possibilidade de observar. Aluno

bem sucedida.

do primeiro curso da Escola Politécnica de Lisboa, Ressa-

3. a expansão de lisboa de ressano garcia, o plano de alvalade de faria da costa

no Garcia frequenta de 1866 a 1869 a École Impériale dês Ponts et Chaussées, em Paris (Silva, 1989). Para além da sua formação académica, Ressano Garcia é testemunha directa das profundas transformações urbanas então em curso na cidade, e que vai tentar reproduzir em Lisboa, adaptadas às realidades económicas, sociais e legais locais. É isso que se

Planos subsequentes, dos séculos XIX e XX evidenciam

expressa na despreocupada fragmentação de malhas urba-

uma menor preocupação, ou uma menor capacidade, de

nas e de antigos percursos da cidade, ou nas preocupações

se articular harmoniosamente com o sítio e as pré-exis-

formalistas com a construção da rotunda do Marquês de

tências. Os planos de Ressano Garcia para a expansão de

Pombal, em que, contrariando a topografia do terreno, se

Lisboa nos finais do século XIX são disso expressão. Se,

investe na simetria das ruas que nela convergem.

nalguns casos, antigas vias de penetração na cidade foram aceites, nalguns troços do seu percurso, como limites do

No século XX, essa indisponibilidade para incorporar nos

plano, como é o caso do eixo da rua de Dona Estefânia /

planos o sítio natural e as pré-existências torna-se ainda

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situa-se num ponto topograficamente dominante, a praça do Areeiro situa-se noutro dominante, no final de uma linha que se inicia na Baixa e sobre a qual se implantou a avenida Almirante Reis, e o traçado da avenida Guerra Junqueiro coincide com um percurso já existente.

Lisboa, Portugal 1. Elementos estruturantes do território anteriores ao plano de Ressano Garcia. 2. Os elementos estruturantes pré-existentes e o plano de expansão da cidade.

mais evidente. O plano de Alvalade dos anos 40 é expressão dessa atitude. A influência francesa, já presente em Ressano Garcia, foi, também aqui, determinante. Faria da

Lisboa, Portugal 1. Elementos estruturantes do território anteriores ao plano de Faria da Costa. 2. Os elementos estruturantes pré-existentes e o plano de Alvalade.

Costa, autor do plano, concluído o seu curso de Arquitec-

Pelo contrário, o traçado das novas ruas de Alvalade não

tura em 1933, na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,

tem as mesmas preocupações e os pontos topografica-

foi completar a sua formação em Paris, onde frequentou,

mente dominantes existentes na área do plano não têm

até 1935, o Institut d’Urbanismo de l’Université de Paris

qualquer tradução na organização urbana. Nenhuma das

(Camarinhas, 2009). Embora ainda expressão do urba-

vias existentes foi tomada em consideração no novo tra-

nismo das ruas, das praças e dos quarteirões, que irão ser

çado. A via principal que atravessava todo a área do plano,

brevemente abandonados, o plano de Alvalade baseia-se

sensivelmente na direcção Sul-Norte, não foi considera-

fundamentalmente em referências internacionais – da ci-

da no novo traçado. O mesmo aconteceu com os muitos

dade-jardim Americana, a Amesterdão-Sul de Berlage, e às

caminhos existentes. As poucas quintas que foram pre-

influências francesas de Étienne De Groer – mais do que

servadas foram deficientemente integradas no plano. Por

na cultura urbana portuguesa, que no entanto teria sido

sua vez, os pontos topograficamente dominantes deste

fácil de articular.

território não foram seleccionados para a localização de quaisquer edifícios ou situações urbanas privilegiadas.

Na zona de expansão da cidade que antecede imediatamente a área do plano de Alvalade, entre a Alameda Afon-

Se nalguns casos os nós de articulação das principais vias

so Henriques e a linha de comboio de cintura, incluindo

têm ainda uma justificação do ponto de vista da estrutura

a praça do Areeiro e a praça de Londres, podemos ver ain-

natural do sítio, como é o caso do cruzamento da avenida

da as preocupações que houve na adaptação ao sítio e no

de Roma com a avenida dos Estado Unidos da América,

traçado dos novos arruamentos seguindo a topografia as

noutros casos estes nós situam-se em situações menos

linhas naturais do terreno. O Instituto Superior Técnico

justificáveis sob este ponto de vista, como é o cruzamento

40


da avenida da Igreja com a avenida de Roma. As pré-exis-

tuguesa, dando origem a tecidos urbanos desagregados,

tências foram largamente ignoradas e demolidas. Aque-

construídos sem continuidade com a cidade consolidada,

las que sobreviveram, a quinta dos Coruchéus e a quinta

sem uma estrutura coerente, não definindo hierarquias,

dos Lagares del Rei não foram aproveitadas como pontos

sem elementos de referência estruturantes, funcional-

fulcrais de percursos ou de perspectivas, como seria habi-

mente segregada e desarticulada, sem desenho dos espa-

tual nas estratégias do desenho urbano português, antes

ços públicos.

se situam anonimamente no interior de malhas urbanas. A sua inserção no plano é indiferente à lógica da organi-

O enquadramento é legal é também em grande medida

zação urbana ou parece contrariar essa organização.

responsável por esta situação, acompanhando e suportando estas transformações, ao permitir vastas extensões de

Noutros planos de urbanização da época de Duarte Pa-

terrenos urbanizáveis e ao substituir planos desenhados

checo podemos ainda aperceber a permanência da cul-

por conceitos abstractos e parâmetros urbanísticos como

tura urbanística portuguesa (Lobo, 1995), mas em breve,

instrumentos reguladores da organização do território

num novo ciclo político já de declínio ideológico do Es-

urbano. Nas últimas décadas, os instrumentos de planea-

tado Novo, esse urbanismo vai ser veemente rejeitado.

mento de larga escala vêm substituindo, na prática, os pla-

Os planos modernistas, concebidos a partir de meados

nos detalhados destinados a definir a forma e a estrutura

do século, completam a rotura com a cultura urbana tra-

da cidade. Aspectos como a forma, os tempos de concre-

dicional. Embora atentos às condições ambientais, o que

tização dos instrumentos de planeamento, e a conforma-

constituía um dos preceitos modernistas, observa-se um

ção do espaço público são em muitos casos deixados ao

distanciamento das lógicas de estruturação do território

critério do acaso ou casuísticamente resolvidos, sem arti-

e das pré-existências. O espaço urbano é concebido essen-

culação de uma forma coerente e desenhada, construindo

cialmente em função das suas exigências funcionais ou

a negação da cidade.

económicas, ou de uma lógica formal de inspiração modernista. As referências destas novas intervenções, de que

O edificado já não se relaciona com ruas ou praças. Os

os Olivais Norte ou os Olivais Sul, dos anos 50 e 60 são

espaços públicos, que eram desenhados e cenários privi-

expressão, para além dos preceitos teóricos da Carta de

legiados da vida urbana, são substituídos por um espaço

Atenas, são os múltiplos planos de reconstrução e de ex-

contínuo ou por espaços residuais entre edificações, sem

pansão de cidades Europeias no segundo pós-guerra que

forma nem desenho. A localização de funções urbanas

rejeitavam o vocabulário do urbanismo clássico.

centrais e de edifícios singulares é frequentemente alea-

4. a situação contemporânea. dez estratégias de desenho para retomar a tradição urbana portuguesa

tória, sem relação com a estrutura urbana e a relação entre a arquitectura e o plano urbano é deficiente. O papel destes edifícios singulares como elementos de referência do traçado urbano já não é compreendido. Em muitos casos, os novos tecidos urbanos não têm marcos de referência, nem uma estrutura, geométrica, ou outra, perceptível. As vias desniveladas, túneis e viadutos de algumas situações

Intervenções recentes, públicas e privadas, apenas têm

apenas evidenciam a incapacidade de relação com o sítio,

vindo a acentuar o negligenciar da cultura urbana por-

da mesma forma que raramente as vias ou as estruturas

41


existentes são integradas ou tomadas como referência

banos históricos e na concepção e desenho da cidade contempo-

para a organização das novas malhas urbanas. Nesta desar-

rânea.

ticulação com as estruturas territoriais e naturais que a suportam, a cidade perde continuidade e perde legibilidade.

i. Continuar a cidade existente, criar uma cidade compacta.

Se no domínio da arquitectura se foi fazendo uma reflexão

Os novos espaços urbanos devem ser desenhados e cons-

sobre a arquitectura popular portuguesa, ainda que com

truídos em continuidade com o tecido urbano existente,

inúmeros equívocos, posições extremadas e interpretações

sem espaços vazios ou terrenos expectantes entre eles. A

caricaturais, em que entra a habitual crítica a Raul Lino,

cidade deve ser compacta, assegurando a densidade de po-

a hagiografia do Inquérito à Arquitectura Tradicional,

pulação e de actividades que permitam a geração e a ma-

o Português Suave, o suposto esquerdismo dos heróis do

nutenção de uma vida urbana com diversidade de oferta e

Modernismo Português, esse debate nunca aconteceu no

de oportunidades.

urbanismo. A tradição urbana portuguesa não foi investigada de uma forma sistemática, foi simplesmente esque-

ii. Estabelecer fronteiras legíveis.

cida, abraçando-se modelos internacionais com resultados questionáveis.

Os limites entre os espaços urbanos e não-urbanos, bem como entre os diferentes bairros devem ser facilmente

É urgente levar a cabo uma reflexão crítica sobre o urbanis-

reconhecíveis. As diferentes unidades de crescimento da

mo tradicional português. Tal reflexão sobre os princípios

cidade devem ser claramente legíveis, e os conceitos de li-

que estiveram na base da estruturação das cidades tradicio-

mite e de porta traduzidos formalmente.

nais, entendidos e sistematizados, deve estar na base quer da reabilitação de tecidos urbanos históricos, de forma a

iii. Compreender o sítio, desenhar com o sítio.

não deturpar a sua lógica global, os seus elementos estruturantes, as suas hierarquias, os seus elementos de referência,

Os novos tecidos urbanos devem ser desenhados tendo em

quer da construção de novos espaços urbanos, renovando

consideração, e adaptando-se, às características físicas e

os laços com a nossa cultura urbana.

ambientais dos sítios em que são construídos, bem como a pré-existências construídas. As principais vias devem so-

O objectivo não é reproduzir, copiar ou mimetizar mor-

brepor-se às linhas naturais do terreno e estes eixos estru-

fologias urbanas tradicionais, mas tentar compreender

turantes devem articular-se em pontos fulcrais, de acordo

os seus princípios subjacentes e reinterpretá-los à luz das

com a topografia.

condições e das necessidades de hoje. É possível hoje, tal como o foi em todos os momentos históricos, conceber um

iv. Seleccionar locais privilegiados para a localização de funções

urbanismo português que esteja simultaneamente enrai-

e edifícios singulares.

zado na cultura urbana tradicional e dê resposta às necessidades do tempo.

Os sítios mais importantes, em termos da topografia ou da lógica geométrica subjacente ao plano, devem ser re-

Neste contexto, formula-se um conjunto de dez princípios que

servados para a localização de edifícios e de funções urba-

devem ser tidos em consideração na reabilitação de tecidos ur-

nas excepcionais, e para o desenvolvimento de espaços

42


urbanos singulares a eles associados. Estes edifícios e

ser reformuladas. Na cidade histórica tais escalas inter-

estes espaços urbanos devem constituir marcos na or-

médias são representadas pela agregação de edifícios em

ganização e na referenciação urbana.

quarteirões, em ruas, em unidades de vizinhança. Tal contribui para um maior sentido de pertença e organiza a ci-

v. Definir uma estrutura de suporte ao crescimento urbano.

dade em unidades distintas, com afinidades morfológicas.

O crescimento e a organização da cidade devem ser su-

ix. Desenhar os espaços públicos.

portados por uma estrutura geometrizada – uma estrutura de natureza conceptual ou traduzida materialmen-

Os espaços públicos, mais do que os edifícios, definem o

te – que seja claramente perceptível, na sua lógica e nas

carácter de uma cidade. Os espaços urbanos devem ser

suas hierarquias, e que organize o território urbano.

desenhados, reconhecíveis morfologicamente, terem fun-

Esta estrutura geometrizada deverá tornar-se o suporte de

ções associadas. Os espaços públicos não podem ser meros

todas as intervenções urbanas e arquitectónicas a realizar.

espaços intersticiais entre edifícios. As praças devem readquirir o seu papel como principais elementos ordenadores

vi. Definir elementos estruturantes, hierarquizar a cidade.

dos espaços urbanos, localizadas em pontos fulcrais, articulando as principais vias e as distintas unidades urbanas,

A hierarquia dos espaços urbanos da cidade é fundamen-

e como locais de implantação das principais funções urba-

tal para a definição da qualidade desses espaços. No plano

nas e de edifícios singulares.

urbano devem ser claramente legíveis os seus principais elementos estruturantes – derivados da topografia ou da

x. Re-estabelecer a relação entre a arquitectura e o plano urbano.

estrutura geométrica que lhe está subjacente – bem como as hierarquias funcionais, dos sistemas de percursos e dos

A relação entre o urbanismo e a arquitectura deve ser re-es-

nós de articulação da malha urbana. As hierarquias for-

tabelecida, quer adoptando o vocabulário clássico, definin-

mais e simbólicas devem consolidar as hierarquias funcio-

do hierarquias, eixos, perspectivas, pontos fulcrais, alinha-

nais da cidade.

mentos, quer reinventando-o, formulando um novo léxico e novas estratégias de desenho. As hierarquias de edifícios

vii. Recuperar a relação entre os espaços construídos e a rua.

e de espaços urbanos devem reforçar-se mutuamente.

As relações entre os espaços construídos e as vias de circulação, e entre os espaços públicos, semi-públicos e privados devem ser re-estabelecidas. Deverá ser possível representar a cidade através de qualquer dos seus diferentes componentes, evidenciando a articulação íntima dos vários sistemas que compõem a cidade.

4. a situação contemporânea. dez estratégias de desenho para retomar a tradição urbana portuguesa Identidade, tradição e continuidade não significam estag-

viii. Reinventar as escalas intermédias da cidade.

nação. Pelo contrário, a contínua adaptação a novas situações, implicando um processo activo de permanente re-

As escalas intermédias entre o edifício e a cidade devem

43

novação e inovação, é uma condição para a permanência


da tradição e da identidade cultural expressa nos espaços

Silva, R.H. (1989). “Lisboa de Frederico Ressano Garcia,

urbanos. Mudança é a condição necessária da tradição,

1847-1909” in Silva, R.H. (dir.) Lisboa de Frederico Ressa-

através da qual ela pode permanecer viva e continuar a

no Garcia, 1847-1909. Lisboa: Câmara Municipal de Lis-

fazer sentido para o mundo contemporâneo.

boa.

A reflexão sobre o urbanismo português tem se situar

Teixeira, M. (2012). A forma da cidade de origem portu-

nestes parâmetros. Só através de um exercício permanen-

guesa. São Paulo: Editora UNESP.

te de reinterpretação das nossas raízes culturais, em que a inovação se apoia na tradição constantemente renovada, é possível assegurar uma continuidade de cultura que responda às realidades do nosso tempo e resista à massificação da civilização global.

referências Camarinhas, C.L.T.F. (2009). L’urbanisme de Lisbonne. Eléments de théorie urbaine appliquée, These de Doctorat, Université de Paris IV – Sorbonne. Lobo, M.S. (1995). Planos de urbanização. A época de Duarte Pacheco. Porto: FAUP Publicações. Maia, M. (1755). “1ª dissertação sobre a renovação da cidade de Lisboa por Manoel da Maya, Engenh.º mor do Rno”, in Ayres, C. (1910) Manuel da Maya e os engenheiros militares portugueses no terramoto de 1755. Lisboa: Imprensa Nacional. Oliveira, M.L.M.F. (2007). Eugénio dos Santos e Carvalho. Arquitecto e engenheiro militar (1711-1760): Cultura e prática de arquitectura, Tese de Doutoramento, FCSHUNL. Pimentel, L.S.(1680). Methodo lusitanico de desenhar as fortificaçoens das praças regulares & irregulares, fortes de campanha e outras obras pertencentes a architectura militar. Lisboa: Impressão de António Craesbeeck.

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Isabel Baraona

Livros de artista Sem título, co-editado em colaboração com o atelier O Homem do Saco em 2014. Trata-se de um livro com 40 exemplares impressos em tipografia de caracteres móveis sobre gravuras em papel japonês. As páginas com as gravuras são todas diferentes tornando cada exemplar único. Capa cosida e bordada pela autora.




Prière de Bonheur é uma edição de autor de 150 exemplares, cuja materialização foi apoiada pelo Ministério da Cultura, DGartes e Fundação Calouste Gulbenkian em 2010. Dedico esta edição ao escritor belga Henry Bauchau, autor de “Oedipe sur la route” (Bruxelas, Babel, 1992) e “Antigone” (Bruxelas, Babel, 1997). Bauchau possui, para mim, o raro dom de uma escrita límpida e consegue descrever alguns dos aspectos mais complexos – sagrados e profanos - da nossa frágil natureza humana.






Reconstructing the italian script revealed in Arte de Escribir por Reglas y con Muestras Dino dos Santos

this book, it’s full title being: Arte de escribir por reglas y con muestras, según la doctrina de los mejores autores antiguos y modernos, estrangeros y nacionales, acompañado de unos principios de Aritmética, Gramática y Ortografía Castellana, Urbanidad y varios sistemas para la formación y enseñanza de los principales caractéres que se usan en Europa, Madrid, en la imprenta de la viuda de don Joaquín Ibarra. ¶ The engravings for the book were undertaken in part by Josef Asencio, and Torio apologizes for any incongruities in the plates explaining that,“Engravers are like painters in that they always find a way to input their own style into the works they realize. Don Josef Asencio was indeed the most capable

torio de la riva was born D. Torquato Torio y Herrero

and talented engraver in our country and he reproduced my

on the 1 April 1759. He completed his elementary school-

originals in the best possible way, but the amount of work he

ing and a Latin course in Carrión de los Condes, after

had at the time did not allow him the peace or attention neces-

which the cost to his parents of such an education was too

sary for such labour.” ¶ This also helps to explain the unusu-

great and he left to become a farmer for almost a year. ¶

ally high number of other engravers mentioned in the

His uncle, Pedro de la Riva, a citizen of Valladolid, then

book including Ascencio, Gangoiti, J. Castro and B. Am-

became his tutor, taking him into his home and paying

etller. Yet, despite such circumstances, Arte de Escribir is

for his studies in Philosophy, Theology and Law. Follow-

one of most amazing books on calligraphy to have been

ing his uncle’s death, however, Torio left university and

published in the late eighteenth century. Undoubtedly, it

started working for Rafael Floranes, who was to offer him

is the most relevant work on the subject in Spain since the

guidance in the disciplines of History and Diplomacy. An

earlier contributions of Juan de Yciar and Pedro Diaz Mo-

interest in calligraphy was also to emerge during an in-

rante, although Torio’s offering is beyond comparison to

ternship with the Escolapios monks in Madrid. ¶ In his

those of any of his predecessors. ¶ Put simply Torio was a

later life Torio would go on to publish more than a dozen

reflexive artist with a great talent for writing beautiful let-

books on many subjects, also translating several classics

ters. He doesn’t claim to have been the inventor of any of

into Spanish, such as The Thought of Cicero (a selection

the scripts engraved on the plates he published. He was

of philosophic writings), Simon de Nantua’s Le Marchand

also not the creator of any particular style to be followed

Forain not to mention writing books on calligraphy. ¶

by modish students, yet his Arte de Escribir remains as

The first of his calligraphy books entitled Nueva Arte de

probably the most complete compendium on the art of

Escribir was actually very badly received becoming the fo-

writing from the whole of the Iberian Peninsula in the

cus for numerous discussions and criticisms concerning

period since the Renaissance until now. ¶ In Arte de Es-

his merit as a calligrapher, owing to some imperfections

cribir Torio draws together a perfect and comprehensive

in the plates he showed. ¶ In spite of this, almost fourteen

dissertation on the history of writing and calligraphy,

years later, Torio went on to publish what is now consid-

with the faithful reproduction of what he considers to

ered his most important work: Arte de Escribir por Reglas y

have been the best calligraphic models used in Europe,

con Muestras. Our studies are based on the 1802 edition of

from the sixteenth century to the final quarter of the



eighteenth century. ¶ With amazing cultural insight, he

These are taken from the chapter Enseñanza de la letra ital-

was able to capture the spirit of many well-known callig-

iana, y sus principales variaciones, autores, sistemas, &c.,

raphers, correcting those things he found inappropriate

which is dedicated to an analysis of the Italian Script. We

and useless, while simultaneously interpreting such

chose these few plates as they are the ones that do not re-

models to suit the stylistic tastes of his own era. ¶ Torio

fer either directly, or indirectly, to any one particular au-

was, in fact, an exceptionally talented man and highly cul-

thor. As such it is our belief that these plates truly reflect

tured too, an unusual quality at that time especially

the freedom of Torio’s own calligraphy. They are also

among Spanish calligraphers. He spoke several languag-

closely related to the calligraphic style that was such a suc-

es, enjoyed a deep knowledge of mathematics and science,

cess among Spanish calligraphers of the time: the Spanish

and perfectly understood the very best of writing practice

Bastarda. In the words of Torio: “The Italians deserve dis-

from the early calligraphers onwards. ¶ Arte de Escribir is

tinction over everyone, because as has been told in the fourth

divided into three main sections: history of writing;

and final chapter, we owe to them the invention of the Bastard

on theory (followed by an incredibly rich discourse con-

script, which is so easy, beautiful and fast to learn and adapt,

cerning the proper methods for the execution of the writ-

and which was used for more than three centuries across Eu-

ing hands used since the Renaissance) and on practice.

rope.” ¶ We began our own reconstruction process with a

The work ends with a foray into arithmetic, grammar and

careful selection of characters from the many variations

orthography. ¶ Torio’s work also brought together the

as shown in the plates and then decided to start drawing a

richly contended but widely divergent opinions of the so-

few glyphs. ¶ Our main intention was to stay close to the

called Palomaristas and the Anduagistas, two sides in a long

original forms, nevertheless introducing some minor

contested discussion in the calligraphic landscape of

changes, especially in glyphs less common in Spanish,

eighteenth century Spain. ¶ Santiago Palomares argued

such as the lower and uppercase ‘k’. ¶ We believe that this

that the establishment of rules in order to understand the

is also an important part in the reconstruction process. In

perfect path for written forms was completely absurd, be-

bringing these calligraphic models forwards to the twen-

cause the plates showing the visual examples should be

ty-first century, we need to ensure they will work with

enough to explain the process. In opposition, Don José de

many more languages than the calligraphers of their time

Anduaga y Garimberti, argued that it was the rules in-

were used to. ¶ Cotarelo y Mori, in his Diccionario Biograf-

forming the writing that were most important, more im-

ico de Caligrafos Españoles, Tomo ii, wrote a highly critical

portant even than any calligraphic samples. Arte de Es-

note about Arte de Escribir, especially as it concerns the

cribir por Reglas y con Muestras, uses both educational

drawing of certain letters: “Notwithstanding the unbeatable

systems, with all the plates reflecting, in a very precise way,

beauty of the plates, some critics soon warned about the bear-

the subjects of the text. ¶ In fact Arte de Escribir por Re-

ing of the author’s personal taste and a certain attachment to

glas y con Muestras was to be declared the official book

the calligraphic rules of old. While Torio respected some man-

for teaching calligraphy. On 31 January 1801 King D. Car-

nerisms of these older calligraphic methods he exaggerated

los iv demanded by royal appointment that copies of To-

others. The main issues regarded the use of the wide ‘long s’

rio’s book should be distributed to schools, universities

which resembles an ‘f ’ and effectively makes reading difficult;

and academies throughout Spain. ¶ Our main aim in de-

the unnecessary swashes in the ‘t’ and sometimes in the ‘p’; the

veloping this typeface was to reconstruct, as accurately as

old style ‘shoes’ in the letters ‘y, p, q’; the double shape of the

possible, the first twelve plates from Arte de Escribir.

letter ‘d’ and the strange letter ‘E’, so similar to an ‘F’; and the


exaggerated size of the letter ‘v’ when used at the start of words.

other more expressive characters. ¶ A sixth and seventh

These were the main defects of his cursive script, because when

version were then introduced to our system allowing for

Torio strictly followed the work of Palomares, no errors were

glyphs specifically designed to appear at the beginning

visible.” ¶ Understanding that these are actually the key el-

and ending of words. ¶ Finally an eighth version adds a

ements that make Torio’s work unique and exquisite we

final swash to select letters whenever they’re succeeded by

decided to leave all of these features completely un-

a period, a question mark or an exclamation point. ¶ All

touched.

of these versions are programmed under the OpenType feature of Contextual Alternates, which is on by default.

THE TECHNIQUE

A set of ligatures, including ligatures for letters separated by a space present in Torio’s original plates, were designed

from our research we were able to arrive at a type-

and programmed under an OpenType feature (Ligatures)

face with at least four versions of each letter, all designed

that is also on by default. ¶ This means that everything

to ensure perfect flow in connecting strokes and the

just works right from the start. We feel so strongly that

rich calligraphic variety representative of Torio’s orig-

all of these features are essential to this typeface and so

inal plates. ¶ These letter variations are all contextually

it makes sense they should be turned on all the time. ¶ A

programmed, so as to be determined by the letters that

feature titled Swashes provides the user with the option

succeed them. At dstype we joked that it was a dictato-

to swap all upper ascenders with swash versions. This fea-

rial script! The letter you’re going to type next is always

ture is off by default, requiring the user to turn it on when

going to determine the shape of the letter you’re typing

necessary. We felt that this was best since those swashes

now, and all without any intervention from you. ¶ In that

are an exception in the original plates. ¶ We have tried

sense the first variation of each letter will always appear

hard to maintain the key characteristics of those original

before every letter with a short stem on the left side, such

Torio plates, propelling them forwards from the eighteen

as the i, j, m, n, p, r, t, or u as well as heart-shaped letters

century into our digital world, all the while keeping

such as the v, w and y. The second version precedes letters

the fluid spirit of their construction and an

with round shapes on the left side such as the a, c, d, e, g,

essential sense of the composition

o and q. The third version was specially designed to con-

of their Spanish

nect with the letters s, x and z, and the fourth to precede

calligra-

letters with left ascenders such as the b, f, h, k or l. These

phy.

versions are available for every single letter, both in upper

and lowercase, and vary not only in the form of the end stroke, to ensure perfect connections, but also in style. It’s this pseudo-random variation in style that gives the typeface its calligraphic flair. ¶ This four-version rotation system constitutes the basic inner workings of our typeface. However, we then went on to develop further systems on top of that. ¶ A fifth version was developed for select letters that shouldn’t always connect, and a few others that required more containment so as to avoid collisions with

The historical part of this specimen was written by dino dos santos and the technical part was written by pedro leal our research was based on the writings of don rufino blanco y sanchez “arte de la escritura y de la caligrafia”printed in madrid in 1924 and don emilio cotarelo y mori “diccionario biografico y bibliografico de caligrafos españoles” printed in madrid in 1913. we would like to thank catherine dixon for reviewing and editing the text.

56




entre a escola e a cidade. O primeiro piso abriga a administração da escola e a cafeteria, ligando a praça elevada com a entrada do auditório. Num nível enterrado situa-se a sala de ensaios que se abre ao exterior e funciona como um palco. No segundo piso encontram-se as salas de formação com um acesso directo para a sala de ensaio.

Soledad Jimenez

convertem-se num momento de transição

Uma escola de música

O edifício cria um espaço e os seus pátios


Imagética e sensação na Adega Vale da Lameira Joel Cabral

A visão imagética da arquitectura parece ser uma consequência natural de uma arquitectura que se tem vindo a desenvolver em torno da visão da imagem que dela se reconhece. No caso particular da arquitectura vínica, esta visão tem actuado como uma estratégia publicitária e de venda de um produto rotulado por uma arquitectura encomendada. Actualmente, a vulgarização e saturação da imagem na sociedade empurra o sujeito para uma hegemonia da visão sobre os outros sentidos, levando à inibição do potencial da adega para estimular os sentidos.


A arquitectura pode retirar partido dos vários sentidos e das suas interacções procurando através do olhar estimular o corpo, usando a imagem como mecanismo de exaltação dos sentidos, valorizando e intensificando a experiência vínica. A Quinta do Vale da Lameira situa-se sobre uma elevação do vale à beira de um barrocal, envolvido numa paisagem incólume: predominam o vinhedo e os aglomerados de granito.







Capismo Rui Silva Na tradição editorial francesa e alemã é muito popular a prática de um design para capas de livros chamado continental1, que as resume aos seus elementos compósitos indispensáveis – título, autor e chancela – sobre um fundo branco ou de cor. Esta visão ascética não se deve a uma eventual escassez de meios, mas a um posicionamento restritivo para com a actividade criativa, ao considerar que a natureza da matéria escrita não encontra paralelo no universo imagético. Esta iconoclastia gráfica rege-se pelo princípio de que toda a representação, ou é redutora, ou não passa de uma alusão fragmentária, incapaz de descrever toda a dimensão literária da obra, e que, invariavelmente, induz o leitor em erro. Do outro lado do espectro temos a edição idólatra, que considera que o trabalho gráfico se resume a uma não interferência do texto com uma imagem de fundo. Entende-se que a tipografia e a imagem existem em camadas separadas que são meramente justapostas por conveniência. O título limita-se a estar discretamente presente e a imagem presta-se a ser largamente descritiva, quer seja através de um registo fotográfico ou pictórico. Prescreve-se uma crença de que esta imagem possui poderes narrativos mediúnicos, uma espécie de comunicação empático-espirita, que é absorvida por mera contemplação.

ora de dissemelhança com os dois extremos. Porventura, será possível inventariar três casos tipo: o da tipografia

Os dois campos têm em comum uma tentativa de desper-

como imagem, o da imagem interligada com a tipografia,

sonalização da composição e do desenho tipográfico, que

e o da ausência total de texto. Na tipografia como imagem

se torna útil em colecções de livros, onde as duas estra-

entende-se que o desenho da letra e/ou a sua composição

tégias servem para gerar unidade, e vendas por atacado.

têm um valor expressivo muito para além da sua função

O espaço entre iconoclastas e idolatras não tem contornos

significante. No caso da imagem interligada com o texto,

muito definidos, pois possui uma relação ora de afinidade,

os dois elementos coexistem num mesmo plano comunicante, normalmente através de uma relação formal. Na ausência total de texto, o livro é visto como um objecto

1 - Ver as edições Gallimard, Paris, e parte das edições Suhrkamp, Berlim.

67


onde é suficiente a informação sobre título e autor figurar

Os plasticizantes optam por distanciar o leitor da matéria

em qualquer elemento seu constituinte que não a capa,

impressa, cobrindo-a com uma fina camada protectora de

seja a badana, a lombada, o frontispício, etc.

plástico, que não permite apreciar a natureza do papel e a expressão da tinta. Quando utilizada em conjunto com um

Outro factor relevante para a percepção que o leitor tem da

suporte não poroso proporciona uma aproximação fiel à

edição é o seu lado matérico, o papel, a impressão, e o aca-

matriz digital, um ecrã impresso. Tem ainda como maior

bamento. De um lado temos os plasticizantes, praticantes

qualidade garantir uma melhor conservação e menor

de um estoicismo pragmático e economicista, e do outro os

desgaste do objecto. Os naturalistas, em contraponto, são

naturalistas, seguidores de uma primazia estético-matérica.

seguidores do táctil, das pequenas subtilezas do tangível, e

68



valorizam todas as formas de impressão, do mimeógrafo

e idolatria, e sempre que possível, tento encontrar uma

ao offset. O livro é visto aqui como um objecto composto

solução que flutue algures no meio. Interessa-me nesta

por diversas matérias e acabamentos, que são combinados

relação representar uma narrativa que exista para além

dentro de toda a panóplia de opções das artes gráficas. São

da página impressa, como se a capa fosse um fotograma

por norma mais frágeis, estando mais expostos à sujidade e

de uma câmara em movimento. Torna-se portanto impor-

alterações de integridade, o que os torna menos rentáveis.

tante expressar o que não lá está, enunciar uma exterioridade ao enquadramento, seja pela secção da forma, pelo

O trabalho que tenho vindo a realizar com várias editoras

corte no colarinho, ou porque em boa verdade não há

tem-me posto em contacto com situações de iconoclastia

cabeça sem pescoço.

70


Em matéria de produção e acabamentos, tento ser mais

de qualidade. Limita-se assim a impressão a um mise en

naturalista do que plasticizante, pois existe um sem

abyme do processo de reprodução, de que são exemplo claro

número de relações possíveis entre tinta e papel, que

as capas dos livros de Marina Lewycka2 que imprimem a

estão muito para lá da sua simulação digital. Preocupa-me

textura do papel kraft sobre cartolina branca. Esta opção

o que advém do esforço tecnológico de aproximação do

está em directo contraste com os ensaios da Orfeu Negro,

ecrã à matéria impressa, que tenta forçar uma previsibili-

cujo projecto gráfico evidencia as propriedades do papel.

dade desta relação sobre o pretexto de uma suposta ideia 2 - https://en.wikipedia.org/wiki/A_Short_History_of_Tractors_in_Ukrainian

71



A cor do núcleo urbano histórico de Coimbra

cor para que depois possamos fazer uso desse conceito

Pedro Providência

edifícios era planificada. Quando se pintava um alçado

nas intervenções no Património Arquitectónico. O mesmo pode ser dito relativamente ao património em geral. Constatamos que os registos identificados nos revestimentos do CHC sugerem que a aplicação de cores nos de ocre vermelho, assegurava-se a existência de pigmento da mesma cor em quantidade suficiente para pintar as

resumo

fachadas e as carpintarias. Como as fachadas são pintadas

No decurso do século XX, os sistemas construtivos tra-

na cores menos intensas, e nas carpintarias o pigmento é

dicionais foram lenta e directamente substituídos por

diluído em óleo de linhaça, proporcionando cores mais

outros de natureza industrial. Como consequência, os sis-

intensas, conseguia-se obter contrastes de cor harmonio-

temas tradicionais de construção, particularmente as téc-

sos (PROVIDÊNCIA, 2012).

com o pigmento diluído em leite de cal, o que proporcio-

nicas de revestimentos e acabamentos históricos, foram aos poucos caindo no esquecimento. Por esse motivo, as

Relativamente aos diferentes tipos de tinta, as tintas

imagens urbanas dos centros históricos, têm vindo, nas

acrílicas são as que produzem superfícies de cor mais ho-

últimas décadas, a sofrer profunda e rápida descaracteri-

mogénea, seguindo-se as superfícies revestidas de tintas

zação. Isso mesmo aconteceu com o núcleo urbano histó-

de silicatos de potássio que apresentam ligeira heteroge-

rico de Coimbra.

neidade. No caso deste tipo de tintas existem velaturas, exemplificadas na Carta de Cor desenvolvida para o CHC, que produzem superfícies de cor heterogénea. As tintas

Segundo Cesare Brandi, o restauro termina onde a hipó-

de cal são as que se revelaram mais heterogéneas. No estu-

tese começa (BRANDI, 2006), isto é, deve-se restaurar

do (PROVIDÊNCIA, 2014), demonstramos a importância

atendendo escrupulosamente aos vestígios e documen-

das superfícies heterogéneas na imagem dos núcleos ur-

tação que sobreviveram, e sem introduzir quaisquer el-

banos históricos, nomeadamente em virtude dos ritmos

ementos novos. Assim, entendemos que orientações ob-

que essas superfícies vão produzindo ao longo do dia, de

jectivas para regulamentar a reintegração cromática de

acordo com a variação da intensidade e inclinação dos

Centros Históricos, por exemplo, a utilização de cores

raios solares. Verificamos que os materiais tradicionais

duma Carta de Cor desenvolvida para o Centro Históri-

(pré-industriais) são os que produzem superfícies mais

co de Coimbra (CHC), só devem ser aplicadas quando

heterogéneas.

não existam registos da estratigrafia dos revestimentos históricos que permitam determinar, pelo menos de

No contexto da produção de materiais tradicionais, des-

aproximadamente, a cor existente no passado, muito em-

de a extracção das matérias-primas até à sua transfor-

bora aquelas conclusões resultem de um estudo científico

mação, reconhecemos a importância destas dinâmicas na

rigoroso (FIGURA 1). Por outro lado, entendemos também

tradução da identidade de qualquer lugar do Património

que é necessário começar por descodificar o conceito de

Cultural, seja na vertente material, exemplificada pela

73


do edifício em questão. Esta tendência, embora legítima, deve ser controlada, especialmente por um Plano de Cor. Neste contexto as acções de sensibilização são importantíssimas para o sucesso da implementação de um Plano de Salvaguarda dos Revestimentos e Acabamentos Históricos. É importante que quer os habitantes, quer os turistas que percorrem os núcleos urbanos históricos reconheçam a identidade desse lugar plasmada nas várias superfícies que dão origem à imagem destes núcleos urbanos históricos: no caso do CHC a estrutura urbana medieval foi fortemente influenciada pela estrutura romana. tipologia da arquitectura dos edifícios, condicionada pelos materiais locais, seja na vertente imaterial, nomea-

A variação da iluminação resultante da deslocação do sol

damente as dinâmicas sociais que se desenvolvem na pro-

influencia a intensidade e a alteração das cores, não só pelo

dução dos materiais utilizados nas construções, tais como

efeito de reverberação, como também, pelo facto de ao lon-

as múltiplas especialidades de artesãos exigidas pelas

go do dia ir mudando a composição da luz solar. Ao na-

construções tradicionais, desde o pedreiro ao carpinteiro,

scer e ao pôr-do-sol, a atmosfera filtra mais intensamente

passando pelo serralheiro, etc., O estudo (PROVIDÊN-

determinados comprimentos de onda, pelo que a luz so-

CIA, 2014) revela a importância da implementação de

lar se apresenta então mais avermelhada. Deste modo,

metodologias rigorosas nas intervenções de conservação

poderá ser aconselhado no Plano de Cor do CHC que os

e restauro do Património Arquitectónico, baseadas numa

ocres amarelos e vermelhos mais intensos sejam aplica-

metodologia científica sistemática, que respeite as fases de

dos nos edifícios orientados a sul e a norte,. Nos edifícios

análise, diagnóstico, conclusão e solução, necessárias à boa

cujos alçados principais estejam orientados a nascente e a

concretização das intervenções. Só deste modo é possível

poente, tonalidades menos intensas destas cores podem

caracterizar os materiais e as técnicas utilizadas nos siste-

conduzir a um efeito semelhante. O azul é uma das cores

mas construtivos tradicionais, como também, identificar

menos comuns no CHC, e sendo a cor complementar dos

os agentes causadores de anomalias. Esta informação é

ocres amarelos, cor predominante, define certos ritmos na

importante para fundamentar as acções a desenvolver nas

imagem da cidade, e a sua utilização deverá ser feita com

intervenções de restauro em Património Arquitectónico.

cuidado. Tendo em conta que as cores complementares se compensam, poderíamos considerar que a aplicação de to-

Verificámos, em vários casos de reabilitação de núcleos

nalidades de azul a nascente e a poente teria um impacto

urbanos históricos, a apetência da população local pelo

menor na imagem da cidade, porque os raios solares com

seu envolvimento na reabilitação. Este aspecto é impor-

maior incidência com comprimentos de onda do vermel-

tante, visto que, quando a população local se envolve ac-

ho, laranja e amarelo, ao projectarem-se sobre fachadas

tivamente no processo de reabilitação, os proprietários e

pintadas de cores azuladas, são neutralizados por esta cor.

inquilinos tenderão também a participar na reabilitação dos edifícios. Contudo, pode surgir a vontade do propri-

Em todo o caso, na situação em concreto do CHC, é impor-

etário ou do inquilino querer participar na escolha da cor

tante ter em consideração a afirmação de Pablo Picasso

74


pequena amplitude. a constituição dos revestimentos têm de apresentar uma ductilidade que lhes permita acompanhar este movimento, de modo a não entrar em rotura, nomeadamente através da formação de fendas, típica dos revestimentos em argamassas de cimento Portland, como é o caso dos que foram executados no CHC em substituição das argamassas tradicionais. Neste contexto, deve ser estudada a adequação da constituição dos revestimentos ao tipo de estrutura a que se destinam ou destinavam. Independentemente da importância de todos os critérios a ponderar em intervenções cromáticas, há um que no Algumas imagens do registo fotográfico ao CHC, desde o nascer do dia ao pôr-do-sol;

caso do CHC é crucial, a importância que a iluminação solar tem na sua imagem. Quem observa o CHC a partir da

quando refere que “na realidade trabalha-se com poucas

margem esquerda, desde o nascer ao pôr-do-sol constata a

cores. O que dá a ilusão do seu número é serem postas no

força que os raios solares têm na variação da imagem. É im-

seu justo lugar”. O CHC apresenta, por si só, uma paleta

pressionante a importância que a variação de intensidade

rica em distintas tonalidades de cor creme, resultantes

dos comprimentos de onda, das diferentes cores que con-

dos vários tipos de calcários da região (FIGURA 2) uti-

stituem o espectro da luz branca, vai tendo ao longo do dia,

lizados nas construções que, em contraste com as super-

na criação de cenografias cromáticas diferentes. É como se

fícies dos panos de fachada caiadas de branco, despertam

as superfícies do CHC constituíssem uma tela que vai apre-

ritmos de claro-escuro, aparecendo o CHC com a mesma

sentando imagens que, sucessivamente, vão sendo substi-

presença com que se assume o símbolo da cidade, a torre

tuídas por novas imagens de tonalidades diferentes.

da Universidade de Coimbra, em calcário branco.

Neste contexto, em 2014, registámos fotograficamente o perfil do CHC desde o nascer ao pôr-do-sol, com uma pe-

No desenvolvimento do presente estudo fomos encon-

riodicidade de 5 minutos. O dia apresentava inicialmente

trando diferentes tipologias de estruturas das paredes,

alguma neblina, o que justifica alguma oscilação dos va-

cada uma delas com as suas características próprias, no-

lores de saturação (brilho) das cores recolhidas de um

meadamente mecânicas, consoante os materiais empreg-

conjunto de edifícios fotografados (seguindo a mesma

ues e a disposição e ligação destes (PINHO, 2000). Um

metodologia desenvolvida no capítulo III), selecciona-

exemplo é a tipologia da estrutura que encontramos em

dos de acordo com o material e a exposição solar. A partir

diferentes locais do Paço das Escolas e no Mosteiro de San-

das 10h00, o céu ficou sem nuvens. Partindo das referidas

ta Clara-a-Velha análoga à de estruturas de construções do

imagens produziu-se um filme de cerca de três minutos,

período romano. De facto, no estudo dos revestimentos,

para o qual seleccionámos apenas as fotografias em que

há que ter em consideração o comportamento mecâni-

a iluminação pública estava desligada, a partir das 06h15

co das construções. Ora, sendo a estrutura de uma con-

até às 18h50, de forma a que a luz artificial não fosse in-

strução um sistema em equilíbrio que é susceptível de

terferir nos valores das cores obtidas nas superfícies se-

apresentar permanentemente movimento, embora de

leccionadas para o estudo que foi efectuado sobre as fo-

75


incontornavelmente influenciada por inúmeros factores: as condições meteorológicas, o sol estar ou não descoberto, a bruma ou a humidade atmosférica, bem como pelas variações de luz de acordo com a hora do dia, desde o alvorecer até ao crepúsculo. A série de 50 pinturas da Catedral de Rouen (FIGURA 5) é representativa do modo como o artista ficou impressionado pela forma como a luz interfere na percepção de um objecto, de acordo com as condições atmosféricas e de luminusidade em diferentes momentos do dia ou do ano. Da referida série, seleccionámos três pinturas – ao nascerdo-sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol – que corroboram as nossas conclusões relativamente à influência da luz solar na percepção da cidade ao longo do dia. Como a caterdral tem a orientação canónica, e.g., o portal da entrada principal orientado a poente, o pintor representou aquela série numa posição sul/poente. Observando a FIGURA 6 a) identificamos a hora do dia, nascer do sol, pelos reflexos avermelhados nas empenas voltadas a sul, que contrastam com a penumbra do alçado poente. Na FIGURA 6 b) a catedral é iluminada por uma luz radiosa, constituída por todos os comprimentos de onda da luz solar ao meio-dia produzindo uma luz branca (neutra). Deste modo, esta imagem proporciona-nos o contraste dourado da pedra com 4 - Estudos de cor ao CHC resultantes da iluminação solar: a) superfícies seleccionadas; b) diagrama de variação das cores ao longo do dia, de acordo com a exposição solar e os materiais.

o azul do céu. Por fim, a FIGURA 6 c) apresenta uma maior intensidade dos comprimentos de onda na cor vermelha, a fachada oeste apresenta-se completamente avermelhada

tografias (PROVIDÊNCIA, 2014). O filme é demonstrativo

resultante da luz rasante que vem de poente, contrastando

da interferência que a luz solar produz na alteração da

com a penumbra das empenas voltadas a sul.

imagem do CHC, especialmente, quer ao nível das sombras que desencadeia, quer da variedade de tonalidades

Na ultima década ocorreram várias intervenções no CHC

que vai desencadeando nas cores das superfícies ao longo

que apresentam anomalias motivadas pela aplicação de

do dia, de acordo com a intensidade e orientação da in-

materiais incompatíveis com os sistemas construtivos

cidência dos raios solares sobre as superfícies.

tradicionais, o que veio tornar necessária a substituição destes materiais por materiais tradicionais. É importante

No conjunto de telas “a Catedral de Rouen”, Monet mos-

tirarmos as devidas ilações dos resultados dessas inter-

tra que a nossa percepção dum objecto arquitectónico, é

venções. Há que registar os bons e os maus resultados e

76


perceber a que se ficaram a dever tais situações no sentido

como a influência da cultura romana nas construções se

de corrigir o que correu mal e melhorar, se possível, o que

“moldava”/adaptava aos materiais locais.

correu bem. Alguns danos causados no Património Arquitectónico são irreversíveis. Não podemos refazer a intervenção de modo a repor os elementos que foram destruídos, mas podemos corrigir o que foi mal realizado. Considera Jorge Alarcão que se deviam recuperar e aproveitar o mais possível as técnicas antigas. “Não é uma questão de revivalismo ou de saudosismo, mas é uma questão de conservação dos próprios edifícios. Nesse sentido, advogo a restauração das técnicas antigas.”

referências BRANDI, Cesare - Teoria do Restauro. Lisboa: Oríon, 2006. ISBN: 972-8620-08-X. PINHO, Fernando F. S. - Paredes de Edifícios Antigos em Portugal. Edifícios, conservação e reabilitação. Lisboa. LNEC, 2000(8). PROVIDÊNCIA, Pedro - A cor do Centro Histórico de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0571-5.

Referimos neste estudo várias intervenções que ocorreram na última década apresentando anomalias motivadas pela aplicação de materiais incompatíveis com os sistemas construtivos tradicionais, o que veio tornar necessária a substituição destes materiais por materiais tradicionais. É importante tirarmos as devidas ilações dos resultados dessas intervenções registando os bons e os maus resultados, corrigindo/melhorando as intervenções que não correram bem e se a conservação dos edifícios o exigir reintroduzindo técnicas antigas, conforme proposto por Jorge Alarcão. A partir destas considerações deixamos em aberto para futuros estudos as seguintes questões: (i) no espaço urbano como é que a luz natural interfere na percepção das superfícies arquitectónicas; (ii) aprofundar de que modo a aplicação de barramentos/pinturas com propriedades translucidas em contraposição a materiais opacos poderão traduzir características essenciais na imagem do CH a ter em conta em estudos de recuperação de núcleos urbanos históricos e do património em geral.; (iii) estudo dos sistemas construtivos tradicionais de outras cidades de origem romana, na procura de identidades com os sistemas construtivos encontrados no CHC, e perceber

77

PROVIDÊNCIA, Pedro – Bases para um Plano de Acção da Salvaguarda dos Revestimentos e AcabamentosTradicionais em centros Históricos: o caso de estudo do Plano de Cor do Centro Histórico de Coimbra. Tese de Doutoramento em Arquitectura (Pré-Bolonha), especialidade de Arquitectura e Construção. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Coimbra: 2014.



Fractura

a fractura exposta – à discussão pelos pares e aos testes de objectividade -, é condição de inovação e não de risco

Álvaro Domingues

elevado de problemas, de gangrenas ou de solidificações incorrectas do material que se quebrou ou danificou.

Um conhecido epistemólogo, Thomas Khun, defende que

Na área disciplinar da arquitectura ou dos estudos sobre

a ciência progride por sequências de rupturas paradig-

o território, tal cenário é completamente impossível. As

máticas seguidas de períodos longos caracterizados pela

ciências “duras” partilham objectos de estudo, corpos

maior estabilidade das formas de produzir investigação.

de conhecimentos e metodologias quase universais e

A fractura seria, assim, uma condição necessária ao pro-

relativamente imunes à variabilidade das culturas e das

gresso do conhecimento. Resumidamente, uma conjuntu-

visões do mundo. As práticas de investigação usadas na

ra paradigmática corresponde a uma situação em que os

construção dos objectos científicos; os enunciados e os

resultados científicos são universalmente reconhecidos

procedimentos de verificação da verdade; os contextos

pela respectiva comunidade de investigadores. As teorias,

institucionais que organizam a difusão e a legitimação

conceitos, práticas de investigação, i.e., as modalidades de

dos resultados…; tudo isso segue protocolos, linguagens

construção do conhecimento científico correspondentes

partilhadas e regras de publicação/difusão bastante rí-

a um período de “ciência normal”, resultariam, assim, de

gidos. Os próprios objectos de estudo são mais claros na

um esforço comum de aprofundamento e afinação sem se

sua formulação e conteúdos. Segundo Pierre Bourdieu,

colocarem em causa as linhas mestras dessa construção.

os campos de conhecimento científico que organizam esses sistemas de conhecimento são mais estáveis na sua

À medida que esse aprofundamento se vai fazendo, é nor-

definição e visibilidade – conhecem-se as universidades,

mal que surjam cada vez mais questões a que o paradigma

institutos, revistas e laboratórios de referência, os autores

dominante não responde satisfatoriamente. O acumular

reconhecidos, os prémios, ou outro qualquer dispositivo

dessas situações atinge então graus crescentes de discor-

por onde, obrigatoriamente, circulam ideias, realizações

dância e desconforto, até que um novo paradigma emer-

e autores. Claro que existem poderes e contra-poderes, lu-

ge pondo em causa a validade do anterior. Abre-se assim

tas simbólicas, processos e estratégias de visibilidade mas,

um período de “ruptura paradigmática”, de “revolução

no fundo, tudo tem que passar por sistemas de filtragem e

científica” em que domina a turbulência e a discussão

de discussão bastante consensuais.

em torno da objectividade da nova forma de construir conhecimento, até que, de um modo mais ou menos claro as

Na arquitectura ou no território é todo o contrário:

coisas vão retomando os ritmos e os processos habituais,

- trata-se de campos de conhecimento mestiços e instá-

abrindo-se assim, outro período longo de ciência normal.

veis que vivem de um tráfego permanente de ideias que ora originam processos imprevisíveis de fertilização cru-

Este percurso não linear alimenta-se de fracturas e trau-

zada, ora se desfazem em polémicas e gasto de energia

mas mais ou menos violentos – o que outro filósofo, Karl

para obtenção da apreciação dos pares e/ou aniquilamen-

Popper denomina falsificação – sem os quais o conheci-

to dos não alinhados;

mento corre o risco de se enredar em longas discussões

- os mecanismos de produção, circulação e de legitima-

infrutíferas e paralisantes. Em linguagem traumatológica,

ção de resultados – verificação, critérios de objectividade,

79


argumentação, procedimentos de prova/falsificação, re-

Na primeira dominam os argumentos cuja construção

tóricas de validação, etc. -, são de natureza rizomática e

é próxima dos das ciências duras. Usam-se quadros teó-

difíceis de discernir em muitas das suas dimensões. Da

ricos de referência, conceitos, metodologias de investi-

estética ao gosto, da geometria à cibernética, das artes aos

gação empírica, procedimentos de verificação, cálculo,

artifícios, das fórmulas matemáticas à poesia, vai um sem

linguagens, etc. que permitem argumentar de forma mais

fim de situações de elevado espectro de variabilidade de

ou menos “isenta” do julgamento social. Assim sendo, é

conteúdos, argumentações e posições ideológicas;

mais claro o jogo do contraste entre a evidência e a suposta objectividade científicas, e o modo como isso é ar-

- como campo de conhecimento teórico e prático assumi-

gumentado social e politicamente. A tecnocracia seria a

damente culturais, cruzam-se nessa diversidade os mais

utopia perfeita para um mundo onde todo o saber, utili-

variados contextos que atravessam meios de difusão e

dade, racionalidade…, quem sabe até a própria felicidade,

exposição pública completamente díspares e, não raro,

pertenceriam à ciência e à técnica. A política seria substi-

contraditórios;

tuída por um conselho de sábios iluminados, ou por um executivo a quem competiria fazer cumprir as soluções e

- socialmente, recobrem-se aí âmbitos sociais muito di-

recomendações do oráculo científico.

versos, seja na investigação académica, nas práticas profissionais, nos grupos de interesse e influência sociais,

A retórica prescritiva trata de como as coisas “devem ser”

na distribuição dos capitais específicos – notoriedade,

e não de como são. À atitude analítica da primeira, contra-

poder, popularidade, respeito, reconhecimento, etc. Sem

põe-se aqui a evidência da norma e dos regulamentos. As

negarmos que isto existe também nas ciências duras, é fá-

leis, os manuais de boas práticas, a difusão de um deter-

cil reconhecer que nestas é mais clara a delimitação dos

minado resultado ou desempenho de referência, domi-

respectivos campos científicos e dos campos sociais e que

nam face a outro juízo ou modo de validação. A questão é

é mais fácil isolar a “verdade” científica e as suas razões

que a rigidificação de um dispositivo legal sobre uma de-

das outras verdades, razões e emoções. Na arquitectura os

terminada questão pode, com facilidade, redundar num

nas ditas ciências do território, as coisas podem-se até in-

desastre. Falando dos assuntos a que respeita este escrito,

verter – adquirido um determinado poder e visibilidade

a legislação sobre construção, património ou ordenamen-

sociais

to do território está cheia das mais variadas suposições, considerações e pressupostos que podem ir desde a mais

– nos círculos de que se faz parte e onde se joga o capital

pura ideologia, à formulação científica, ao gosto ou aos

social correspondente, ou noutros - o prestígio das reali-

interesses e formas de ver de determinados grupos so-

zações futuras está mais garantido.

ciais. As coisas sobre as quais se prescreve, elas próprias são assuntos instáveis e em permanente (re)formulação.

Defendi noutro lugar que a retórica acerca do território é

Abundam por isso os anacronismos e as formulações jul-

uma retórica compósita que se pode classificar em ,pelo

gadas independentes das circunstâncias e das prioridades

menos, três modalidades distintas:

sociais.

- a retórica científico-técnica - a retórica reguladora e prescritiva

A retórica narrativa é muito diferente das duas anteriores:

- a retórica narrativa

nem segue os procedimentos altamente normalizados do

80


saber científico-técnico, nem possui a mesma autoridade

ao cientista ou ao engenheiro) e do pensamento selvagem.

e legitimidade da regulação e dos reguladores. A máquina

Para o bricoleur, cada tema, facto, assunto, solução,…, repre-

narrativa é um jogo de sedução permanentemente aberto e

senta um conjunto diverso de propriedades e relações que

interactivo, entre quem defende e argumenta uma questão

ora remetem para universos confinados (um cálculo de

e o grupo social interessado no seu debate. Face à estandar-

construção, p.e., ou um modelo matemático de tráfego ur-

dização dos procedimentos técnicos ou à formalidade dos

bano), ora se combinam em função do que está a ser feito,

instrumentos legais, a retórica narrativa joga em todos os

dito, argumentado, defendido ou refutado.

tabuleiros, com todos os argumentos, procurando interes-

Pode-se voltar agora à questão central desta reflexão – o lu-

sar a audiência e convence-la do interesse e da adequação

gar da fractura e das polémicas fracturantes na trajectória

da ideia ou do procedimento em causa. O processo de legi-

do pensamento e da prática arquitectónicas ou urbanísti-

timação é “obra aberta”, exposto ao diálogo, à reflexividade,

cas.

à contradição e ao ajustamento. Num processo aberto e deliberativo, a assembleia estaria próxima daquilo que Bruno

Tomemos a fractura como expressão da vanguarda que

Latour defende nas suas ideias de organização das esferas

se destaca de uma ordem (re)conhecida. Quando Jacques

sociais de debate e acção. O “social, os actores sociais, a so-

Rancière discute as vanguardas no modernismo artístico,

ciedade, a comunidade” não seriam nada pré-definido à

parte de dois entendimentos distintos:

partida, mas, antes, algo que se iria explicitando à medida que a argumentação seguisse com as suas razões e contra-

- identifica-se a vanguarda em quem vai à frente de algo,

dições. Face a esse jogo, os actores em presença estabelece-

abrindo caminho para um determinado movimento, in-

riam relações, vínculos e redes, ou seja, constituir-se-iam

corporando as suas forças e determinando a direcção da

enquanto colectivo que delibera.

evolução e do decorrer das coisas, tomando atitudes políticas subjectivas para o fazer;

A razão pura de Kant iria uns tempos viajar enquanto não se discutissem estas impurezas advindas do excesso de

- noutro plano, referindo Schiller, vanguarda é a “antecipa-

tráfego cruzado entre visões do mundo tão díspares e tão

ção estética do futuro, a invenção das formas sensíveis e das es-

rebeldes a qualquer tentativa de legitimação e prova de ver-

truturas materiais de uma vida por realizar”.

dade que tivesse o condão de medir e avaliar a importância dos argumentos e que tivesse uma taxa de câmbio para tro-

As vanguardas, a primeira e a segunda, seriam então a

car um argumento por outro. Por isso é tão ilusório o ro-

fractura exposta sem a qual a inércia da ordem natural das

mantismo mágico que pretende encontrar na sustentabili-

coisas persistiria transformando-se numa espécie de tra-

dade o meta-critério ponderador de tudo ou nos gases com

tadística e repositório de referenciais canónicos para uso

efeito de estufa o critério absolutizante para argumentar e

de todos. Sem os vanguardismos, de natureza catastrófrica

regular isto ou aquilo.

e criativa, não se operam as necessárias rupturas para que algo de novo tenha condições de emergência e desenvol-

O conhecimento e a prática na arquitectura e nas discipli-

vimento.

nas do território é constituído por uma amálgama instável de retóricas e referenciais. Qualquer coisa pode ser útil, como

Considere-se a emergência do plano livre na arquitectu-

escreve Levi-Strauss a propósito do bricoleur (que ele opõe

ra segundo Corbusier ou Mies Van Der Rohe. A ruptura

81


no conceito de parede portante e a disjunção do concei-

As disciplinas da arquitectura e do território são indisci-

to enquanto elemento estrutural (suporte de cargas da

plinadas e parcialmente caóticas: são instáveis; evoluem

cobertura e pisos superiores) e elemento de separação

segundo padrões parcialmente indeterminados e impre-

espacial (que isola um espaço de outro), proporcionam

visíveis com origem em eventos aleatórios; organizam-se

formas radicais de pensamento e projecto. As fracturas

segundo composições de raciocínios causais e lineares,

tecnológicas (construção em aço, betão e vidro) existentes

com raciocínios complexos e multi-referenciados; com-

ou desenvolvidas para o efeito, fazem parte do sistema e

binam dinâmicas complexas; respondem a problemas

viabilizam essa fracturação no plano construtivo - uma

mal definidos, com finalidades múltiplas e soluções di-

verdadeira ruptura paradigmática.

versas; estão sujeitas a constantes escrutínios e polémicas sociais; a pesquisa teórica e a prática – o projecto - desen-

Num âmbito completamente diferente, escreve-se no

volve-se em conjunturas muito diversas do ponto de vista

anúncio do Prémio Pritzker de 2016 que “His (Alejandro

político, orçamental, construtivo, estético, etc.

Aravena) built work gives economic opportunity to the less privileged, mitigates the effects of natural disasters, reduces energy

Não se trata por isso da natural instabilidade que decor-

consumption, and provides welcoming public space. Innovative

re das áreas do saber muito interdisciplinares - na ver-

and inspiring, he shows how architecture at its best can improve

dade, são quase todas - que constantemente importam

people’s lives.” O prémio Pritzker é, como se sabe, uma distin-

e processam polémicas, rupturas, inovações, etc., e as

ção que funciona como poderosa legitimação da qualidade

incorporam em híbridos científico-técnicos, estético-

e do contributo dos autores premiados para a evolução da

-artísticos ou ideológicos, com toda a diversidade e con-

arquitectura. As considerações que aqui distinguem o au-

tradição em termos de produção de consenso (menos) e

tor e a sua arquitectura privilegiam o envolvimento social

debate (mais). Trata-se do carácter transgénico que pre-

do arquitecto e as populações de menores recursos. A frac-

side às qualidades e procedimentos que constroem os

tura é assumidamente política. Para Siza (Pritzker 1992), o

assuntos de que se fala quando se fala de arquitectura e

texto do anúncio do prémio valoriza a fractura que resulta

urbanismo, ora em modo excessivamente auto-referen-

da sua contribuição para o vocabulário arquitectónico “…a

cial quando isso convém, ora como verdadeiros buracos

joy to the senses and uplifts the spirit”.

negros a absorver matéria vinda de todo o lado e usada para qualquer finalidade que a justifique.

Podíamos continuar ad infinitum na pesquisa sobre os discursos e as práticas onde se detectam os elementos de rup-

Nestes universos hiper-ventilados, a fractura criativa

tura na arquitectura e no urbanismo – nos prémios, nas re-

pode vir de qualquer lado e ser muito ou pouco reco-

vistas de referência, na crítica especializada, nos trabalhos

nhecida, esquecida ou simplesmente processada nos di-

académicos ou, não menos importante, na opinião pública

ferentes sub-campos que se degladiam. É por isso que,

e publicada. Encontraríamos uma permanente instabilida-

contrariamente aos contextos paradigmáticos, é tão difí-

de na forma como se avalia o quê e porquê; constataríamos

cil avaliar estas dinâmicas. O que para uns é fracturante

o “ar do tempo” – as causas sociais de que se fala; a variação

e ameaçador, para outros é coisa depreciável; o que para

de princípios ideológicos; o uso alternativo de referências

uns é inovação, para outros é distracção; o que para uns

e padrões estéticos; determinados resultados e performan-

é oportuno, é para outros oportunista e assim sucessiva-

ces técnicas; a originalidade, a irreverência, o talento; etc.

mente. Só deslocando a máquina do tempo para o futuro

82


é que se poderá ver retrospectivamente o que ficou des-

O “realismo mágico”2 e o “romantismo revolucionário”3 são

se tumulto. Indo buscar inspiração ao Torcicologologista

duas atitudes frequentes próprias para gerir os impasses

de Gonçalo M Tavares, se se pudesse caminhar de costas

disciplinares da arquitectura e das disciplinas do territó-

para o futuro, olhando para o passado e para um espe-

rio:

lho retrovisor apontado para o que ainda não aconteceu, talvez se conseguisse uma posição mais favorável para

- o realismo mágico, como a própria literatura, desenvolve

equacionar o presente. Entretanto, vamos indo, como

uma capacidade de interrogação do real que ultrapassa a

diz o povo.

separação que a modernidade instituiu acerca das esferas da cognição, da estética e da moral (pelo menos). Ao

Na constelação móvel e plástica dos saberes e das suas

realismo racional de uma certa forma de construir uma

organizações, tudo se pode cruzar com tudo. A propósito

questão – a urbanidade e o espaço urbano, por exemplo -,

da teoria social, escreve João Ariscado Nunes “É cada vez

acrescenta-se a magia, não no sentido corrente do fantás-

mais visível que a topologia do território da teoria social cada

tico, do oculto ou do inexplicável, mas enquanto forma

vez menos assume a forma de regiões integradas, delimitadas e

de encantamento – tudo aquilo que permite encontrar

diferenciadas por referência a autores, correntes ou tradições, e

alternativas para um entendimento prosaico do mundo

que mesmo a tentativa de definir especialidades tende a perder

reduzido a dimensões utilitaristas, mercantis, abstractas,

terreno a favor de configurações em rede (organizadas em tor-

racionais ou mecânicas julgadas independentes dos con-

no de temas ou de constelações de temas) ou de espaços fluidos,

textos geográficos e políticos;

1

caracterizados por uma erosão ou negociação de fronteiras, por uma hibridação das formas de conhecimento e de activi-

- nesta mesma linha da fuga ao desencantamento (a ex-

dade social, e por um desenvolvimento activo da transposição

pressão literária é de Schiller e a sociológica é de Max

metafórica, da articulação de novas linguagens.” Substitua-se

Weber), o romantismo revolucionário deve ser menos

o “território da teoria social” pelo da arquitectura e do ur-

da nostalgia ou do delírio, e mais do voluntarismo e do

banismo e encontraremos o mesmo.

empenho na crítica ao poder do capital, do feitiço tecnológico, da burocracia, do pensamento único, da denúncia

Não se falará do planeamento e do urbanismo apenas en-

da alienação ou do enunciado de mundos possíveis. Vale

quanto quadros legais e práticas de regulação da constru-

a pena transcrever Henri Lefebvre (1957) a propósito do

ção e uso do solo porque teríamos que somar a crise das

romantismo revolucionário: “ todo o romantismo se baseia

democracias do Estado Social e as suas contradições, bem

na discórdia, nas fracturas, na ruptura. Neste sentido, o ro-

como o triunfo do capitalismo liberal a gerir a mercan-

mantismo revolucionário segue e até aprofunda as feridas do

tilização das infraestruturas e serviços (ex)públicos. Se

velho romantismo. Porém, estas rupturas assumem novos sig-

não se analisar em separado as crises científico-técnicas

nificados. Os de manter a distância certa em relação ao real, ao

e as da regulação, corremos riscos sérios de não entender

existente, ao presente garantindo-lhe uma visão do possível - o

o que se passa na forma como se argumenta, legitima e exerce o saber/poder dessas disciplinas. 1 - João Arriscado NUNES (1996), Transição Paradigmática, pós-modernismo crítico e teoria social, Oficina nº81, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/81.pdf

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2 - Cf. Louis P. ZAMORA; Wendy B. FARIS (1995), Magical Realism: Theory, History and Community, Duhan and London, Duke University Press. 3 - Cf. Michael LOWY ; Robert SAYRE (1992), Révolte et Mélancolie - Le romantisme à contre-courant de la modernité, Payot, Paris.


contrário da nostalgia e do escapismo. Daqui poderão emergir novas formas de ironia. Não podemos por mais tempo opor

fractura programada

ficção aos factos estabelecidos, sonhos ou ironias. Ao contrá-

Por alturas da grande depressão dos anos 1930, Bernard

rio, as ficções, como as imagens, apresentam-se elas próprias,

London propunha que a crise se resolvesse através da “ob-

sobretudo, como meios de investigação, penetrando mais pro-

solescência programada” (1932). A receita parecia simples:

fundamente no real existente do que a descrição, permitindo

aquilo que não se desgasta, não é bom para os negócios.

discutir e exprimir essa realidade – para nos tornarmos livres

Como os alimentos, esgotando o seu ciclo de vida após a pas-

e rejeitarmos essa realidade.”

sagem pelos meandros digestivos e acabando num daqueles

4

artefactos brancos postos de cima para baixo e encastelados, Precisamos então de máquinas de ver coisas estilhaçadas

assim as mercadorias teriam o seu fim.

e instáveis, de recusar os simplismos e as racionalidades mistificadoras. Gaston Bachelard⁵ que conhecemos so-

Segundo B. London, o Estado, enquanto zelador pelo bem-

bretudo através da Poética do Espaço (do fogo, também)

-estar dos cidadãos e dos negócios (… coisa muito romântica

mas também do Novo Espírito Científico, de entre tantas

e difícil ao mesmo tempo), devia marcar previamente a data

obras, físico e filósofo pensando e escrevendo no tempo

da obsolescência dos artigos, retira-los e destrui-los, permi-

em que se consolidava a Teoria da Relatividade, socorria-

tindo assim um novo ciclo de produção/consumo e garan-

-se de Dostoïewski para dizer que “a razão conhece somente

tindo o emprego e o crescimento económico.

aquilo que conseguiu aprender”, nada mais. Com a obsolescência programada, a “destruição criadora” de Joseph Shumpeter (1942) teria o caminho mais desimpedido e passaria a ser o verdadeiro motor do capitalismo. Em versão acelerada, essa obsolescência atingiria a vertigem da sociedade de consumo e seria o paraíso…, como se vê. Todos os paraísos são jardins e porque não de eucaliptos que facilitam a manutenção e a contenção de despesas mesmo no jardim do paraíso (fiscal). Desligados dos seus moldes, os inertes cerâmicos jazem por entre o espaço verde da floresta sem que ninguém se lhes sente em cima aliviado. Que desolação esta brancura sustentável que me povoa a alma e me retorce os pensamentos; que dias incertos em que nem um matagal de retretes consegue acudir a esta diarreia de saber económico e loiça sanitária. 4 - Henri LEFEBRE (1957), “Vers un Romatisme révolutionaire, Nouvelle Revue Française, no. 58;

Por isso há muito quem pense que economia não é, verda-

5 - Gaston BACHELARD (1972), L’engagement rationaliste. Préface de Georges Canguilhem. Paris : Les Presses universitaires de France (escrito em 1949)

tafórico adequado a este ecossistema, flatulência discursiva.

deiramente, conhecimento mas, mantendo o ambiente meAnima-me, porém, a biodiversidade deste jardim, o cheiro

84


fresco dos eucaliptos, os ninhos dos pássaros nos buracos dos bidés e das retretes, os galhos e as folhas secas sobre as faianças, a toupeira a minar por baixo do lavatório,… sei lá, o brilho da chuva nos vidrados e as pegas a beber nos mictórios… Há fracturas que vêm por bem.

85



Obituário

Em quase 150 anos de vida do livro, pouca gente se atreveu, e se algum vínculo descobrimos, foi o da linguagem

Ricardo Castro

directa, com que a riqueza textual se entreteve a definir a história das imagens que nos perseguem. Nada mais The sun hides not the ocean, which is the dark side of this earth. Herman Melville

I am a bad interpreter of other people´s dreams. I have too many myself. Léon Spilliaert ***

simples que um anúncio a máquinas de costura de um guia comercial de 1869, aparecido em Montevideu, estabeleceu o princípio da associação livre. E com isso fomos calmamente perdendo pelo caminho preceitos de qualquer ordem. Onde a linguagem era enciclopédica, o desenho deu o riso. Onde a linguagem era absurda, o desenho caminhou a passos torpes. Previsivelmente, alguns desenhos não quiseram referencial, e se algum desenho é possível para Lautréamont, é aquele que não reproduz o seu

A modéstia não existia e não existe na poesia de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, philosophe incompréhensibiliste. Ela alegra-se com a perversidade, porque sabe que isso faz parte dos nossos dias: preparai-vos para o bestiário que é a vida! E nós cumprimos, modestos, a custo, afoitos em tal missão, cientes da vidinha, não deixando escapar vícios negros em tempos negros, diabo nos livre, hipocrisias do homem, esse macaco sublime. Nestes desenhos para Ducasse - uruguaio auto-entitulado conde e poeta francês de sangue azul prússia com cianeto - foi deixada uma convulsão interior pequena, a nossa e a dele, entre o prazer, o desespero e a reticência. E também a viscosidade contemporânea - onde a paz é impossível - e a catarse ininterrupta da balança humana no seu deleite com a crueldade.

texto, mas que percebe a sua qualidade plástica e impura. Vivendo com as qualidades fatalistas do texto de Ducasse - o piolho não se deixa acariciar - não nos seduziu a tentação histórica de criar mais molduras pinturescas. A matéria lá vem da anti-técnica de então: do absurdo, do desvio e da violência, da concentricidade de todas as formas, e do plágio, esse catalisador de objectos banais em objectos curiosos, tudo isto hoje catalogado pelos compêndios. Nisto, o primeiro artista livre foi Ducasse, o único poeta sem biografia, o único artista sem obra. *** Fizeste o desenho rir e chorar, e sujaste-lhe também o caminho, mas ei-lo resplandecente como uma lata ferrugenta. A fuga para a frente dos desenhos - que ilustram por vezes cenas inteiras num canto, ou uma passagem

***

em detalhe, ou um membro torcido - respeitou ape-

Não havendo necessidade de lhe acrescentar mais versões ilustradas - a história do livro ilustrado provou que esse era um caminho errado, ou, se quisermos, a própria definição de livro ilustrado depois de Mallarmé - a resistência blindada dos Cantos à ilustração levou-nos ao caos organizado de Ducasse e à sua estranha beleza, desenvolta, centrífuga, agressiva, envolta em pontos sem retorno.

87

nas uma mínima sequência linear ao longo dos Cantos e das estrofes. Grande parte dos desenhos tiveram aparições desconexas, sem ordem nem norte. Tudo isso poderá ser livremente refutado, mas Maldoror foi reaparecendo nesses desenhos, como uma garra afiada, pronto a ferir, porque a sua intangibilidade é sobretudo visual. ***


Todos os estudos e todas as versões ilustradas dos Cantos

mos como aquele filósofo insensato que desatou a rir

conhecidas tentaram deixar até hoje intacto esse seu

quando viu um burro a comer um figo. São símbolos da

poder. Tentamos manter o desenho suficientemente

nossa identidade, ou da falta dela, mas que nos perten-

nervoso e incompleto - quem vier atrás que o tente ter-

cem.­Como desprezamos mais aquilo que é absurdo do

minar. A hipérbole estilística de Lautréamont compro-

que aquilo que é real, é-nos difícil a síntese biológica de

meteu os desenhos a este jogo, na complexidade e ana-

Lautréamont, entre a fúria e o controlo: é a animalização

cronismo necessário: eles estão localizados no espaço

perfeita da nossa imaginação, e da sua anemia crescente.

físico dentro do livro, mas com a preguiça que era pre-

Quantos resignados vivem com isto em paz de espírito?

cisa. A construção linguística, a lógica e a retórica, o

Maldito sejas, Maldoror!

verbo e as imagens, tudo em Lautréamont é excesso em controlo -­aquilo a que André Breton chamou de plasma germinativo -­ onde até a maldade pode ser inofensiva e bela. Tentou-­nos a possibilidade de estudar o jogo criativo destes Cantos, um processo extenso de torções e convulsões que se atravessaram à frente. Deste sistema aberto de Ducasse, o método Lautréamont permitiu-­nos descobrir o nosso próprio método - nunca um estilo - , e um sistema que foi expondo a consciência ao inatingível. Um sistema abundante quase utópico, um corpo impossível cheio de perturbações e excepções físicas e morais. Isidore Ducasse erige em Maldoror um corpo composto por partes, entre um Saturno devorando um filho e um Frankenstein, o animal dentro do homem, o homem dentro do desenho, o desenho dentro do animal. No auge da fusão do mundo natural com o industrial e o científico, Maldoror é a personificação do grotesco estético, do imaginário puro, da forma inconstante, da realidade à irrealidade, um movimento de sublimação. *** Os nossos monstros modernos são esta analogia moral começada em Maldoror: as imagens novas do quotidiano moderno que geram ilusão entre agressão e simulacro. Por isso, Maldoror torna o homem na sua própria caricatura, o demente pensando que é lúcido. Se tentamos perceber como olhamos as cabeças de Arcimboldo com admiração mas as de Géricault com repugnância, fica-

88


Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont [Isidore Ducasse], publicado nas edições Momo, com tradução de Manuel de Freitas, desenhos de Ricardo Castro e texto de Silvina Rodrigues Lopes. 666 exemplares numerados, e capa impressa em tipografia e linogravura na oficina O Homem do Saco.



Entrevista

Arquitectura em moldar o ensino da Arquitectura a uma

Manuel Teixeira

a experiência das escolas privadas de Arquitectura, com

estrutura universitária, nunca inteiramente conseguido, os imensos recursos disponíveis nos anos 90 e a oportunidade perdida de se construir uma grande escola pri-

por inês lima rodrigues e maria rita pais

vada de arquitectura em Portugal, o grande desafio que foi o ISCTE, construindo uma nova área de ensino numa

Professor Catedrático na Faculdade de Arquitectura da Uni-

escola até então centrada noutros domínios, em que se

versidade de Lisboa e na Escola Universitária de Artes de

privilegiou um ensino da Arquitectura com uma grande

Coimbra, Manuel Teixeira entre estudar e ensinar, conhece

componente prática e simultaneamente uma grande base

pessoalmente cinco escolas de Arquitectura em Portugal e no

teórica, ligada à História e às Ciências Sociais, o retorno à

Reino Unido.

Faculdade de Arquitectura, já acomodada mas ainda não inteiramente assumida à sua vocação universitária, e fi-

será que nos poderia explicar como estas várias

nalmente a ARCA-EUAC. Uma conclusão que tiro deste

escolas, e diferentes maneiras de ensinar, influen-

percurso é que na aprendizagem da Arquitectura têm de

ciaram a sua forma de ver o ensino e a própria for-

estar envolvidos todos, alunos e professores, partilhando

ma de leccionar a arquitectura?

o mesmo entusiamo e o mesmo desejo de experimentar, de investigar e de aprender. A função da Escola é criar

As Escolas que refere são a Escola Superior de Belas Ar-

as condições e o ambiente propícios a esta permanente

tes de Lisboa, onde tirei o curso de Arquitectura, a Archi-

inquietação. Outra leitura que faço deste percurso é a pro-

tectural Association School of Architecture, onde tirei o

gressiva burocratização do ensino da arquitectura, cada

Mestrado e o Doutoramento, a Faculdade de Arquitectura

vez mais constrangido por regras, directivas, legislação,

de Lisboa, continuadora da Escola de Belas Artes, onde co-

entidades reguladoras e fiscalizadoras, que vão abafando

mecei a ensinar, a Universidade Lusíada, de Lisboa, onde

cada vez mais a possibilidade de desenvolver um ensi-

colaborei uns anos, o ISCTE, hoje Instituto Universitário

no criativo e inovador. Esta burocratização impede que

de Lisboa, onde montei de raiz um novo Departamento

se estabeleçam as necessárias condições para que todos,

de Arquitectura, e agora a ARCA-EUAC. São de facto Es-

alunos e professores, possam experimentar novos percur-

colas bastante distintas, com diferentes projectos de en-

sos, novas ideias, novas formas de fazer. (Num parêntesis,

sino, e um tempo longo, de mais de quarenta anos, que

a mesma burocratização reflecte-se nas actuais regras de

certamente me ajudaram, e me obrigaram, a ter uma pers-

avaliação de desempenho dos professores, em que estes

pectiva alargada do ensino da Arquitectura. Desde o curso

têm de produzir segundo parâmetros definidos e obter

que se tirava na Escola de Belas Artes e ao mesmo tem-

imperiosamente o beneplácito dos seus pares, que são

po nos ateliers onde se trabalhava, e que provavelmente

objectivamente incentivadores da falta de inovação e da

ainda é o melhor modelo de ensino, à imensa liberdade

estagnação). Com isto, a Universidade vai envelhecendo,

da estrutura de ensino da AA, a possibilidade de cada um

anquilosando-se, cada vez menos capaz de responder aos

explorar o seu caminho e a possibilidade extraordinária

desafios da sociedade, e tornando-se perigosamente irre-

de termos perante nós, e falarmos com, as grandes figu-

levante. Mas esse é o mundo e as regras segundo as quais

ras a Arquitectura mundial, o esforço da Faculdade de

uma instituição universitária tem actualmente de viver.

91


a escola universitária de artes de coimbra (arca)

truturação? reconhece alguma “fractura” com o

lançou-lhe o desafio de reestruturar a escola,

antigo modelo da escola?

no novo contexto pós-bolonha. como viu a escola quando chegou?

Não é apenas a Arquitectura e o Design que se podem completar mutuamente, mas também as Artes que podem

Quando iniciei a minha colaboração em Fevereiro de

participar nesta interdisciplinaridade e que, em conjunto,

2015, a ARCA-EUAC estava num momento de crise. A an-

constituem a matriz da ARCA. Existe um amplo espaço do

terior Direcção da Escola, de muitos anos, tinha acabado

conhecimento, no domínio da concepção dos espaços e das

de sair, a Direcção da Entidade Instituidora – a ARCA –

formas, que é comum a estas três áreas e que pode ser a sus-

tinha também mudado e continuava-se num período de

tentação de ciclos de formação comuns aos três. Este é um

alguma agitação, que ainda se prolongou até ao início des-

dos objectivos da reestruturação em curso, que consiste na

te ano lectivo. A ARCA foi durante muitos anos uma ins-

oferta de formações que sejam simultaneamente comuns

tituição respeitável mas nos últimos anos tinha entrado

à Arquitectura, ao Design e às Artes, sabendo-se que cada

num lento processo de declínio, motivado pelas mudan-

um destes domínios contém, por sua vez, dentro de si pró-

ças demográficas com incidência na população em idade

prio, múltiplas e diversas expressões. A par desta formação

escolar, que afectou todas as escolas privadas, e que con-

alargada, fundacional, propõe-se outras áreas de formação

duziram ao encerramento de cursos e a uma diminuição

mais especializadas ou, pelo contrário, que explorem ainda

significativa do número de alunos nos cursos em funcio-

mais fundo as suas raízes comuns, e que, segundo várias

namento. Era necessário proceder a uma reforma urgen-

geometrias, articulem de diferentes formas estes saberes.

te da instituição nos domínios institucional, académico,

Neste amplo universo da cultura dos espaços e das formas

científico, e também administrativo e financeiro, percur-

– que vai do território à cidade, ao edifício e aos objectos,

so que está a ser feito. Alguns dos primeiros passos deste

que vai da produção material às propostas conceptuais, e

processo de reestruturação consistiram na recomposição

às suas múltiplas expressões – a cultura formal portugue-

do corpo docente, bastante mais qualificado actualmente,

sa deve ser a referência fundamental. Só partindo da nossa

e na remodelação do plano de estudos, entretanto já apro-

especificidade cultural, só através da exploração da nossa

vada, que o adequou melhor aos requisitos de Bolonha,

própria cultura, e particularmente da nossa cultura popu-

e às necessidades actuais do ensino superior no quadro

lar, será possível atingirmos a universalidade e sermos re-

Europeu. A ARCA-EUAC tem de readquirir visibilidade,

levantes globalmente. Mais do que um projecto de ensino,

credibilidade e relevância, condições essenciais para que

este tem de ser um projecto de pesquisa, envolvendo pro-

o seu percurso possa prosseguir, e é esse o caminho que

fessores e alunos, em que o próprio caminho, nas palavras

estamos a fazer.

de Antonio Machado, se vai fazendo caminhando. Isto significa também que neste processo, a par da exploração de

a arca é conhecida pela interdisciplinaridade en-

conceitos, a prática seja essencial. Não uma prática abstrac-

tre cursos. pensa que esta ideia de incentivar a

ta, como a do projecto, traduzida em desenhos e maquetas,

colectividade entre pensamento e prática é uma

mas uma prática no sentido literal, de produzir, saber fazer,

aposta possível? neste sentido, a arquitectura e o

sujar as mãos, imergir na realidade. Com este objectivo é

design podem completar-se mutuamente? e, mais

necessário que a Escola se abra à sociedade e estabeleça

concretamente, qual é a grande proposta de res-

múltiplas relações com empresas, autarquias, instituições

92


sociais. Por outro lado, será necessário incrementar a co-

hoje em dia já não é transmitir conhecimentos, mas antes

laboração com outras Escolas de Arquitectura, nacionais

a produção de conhecimento, através do próprio processo

e estrangeiras, do mundo da língua portuguesa e outras,

didáctico, que tem de ser criativo e ter por base a investiga-

incentivando o intercâmbio de professore e de alunos, co-

ção em que professores e alunos têm de estar envolvidos.

laborando em projectos internacionais, participando e or-

Outra das funções da Universidade é despertar os alunos

ganizando encontros científicos, fomentando a circulação

para áreas do saber, torná-los inquisitivos, questionadores

do conhecimento e a projecção da cultura e da arquitectura

e permanentemente insatisfeitos, fazê-los ir à raiz do co-

portuguesas. Se esta é uma fractura com o antigo modelo

nhecimento e às suas infinitas conexões. Finalmente, outra

de Escola, seria preciso sabermos de que Escola estamos

das funções essenciais da Universidade é ensinar os alunos

a falar, se a ARCA dos primeiros tempos ou dos anos re-

a investigar e a aprender por si próprios, a saber adquirir os

centes? De qualquer forma, a rotura é essencial na vida. A

conhecimentos necessários ao longo da vida, para as mui-

sociedade só evolui em momentos de tensão, e de fractura.

tas tarefas que terão de desempenhar.

Citando o personagem Harry Lime (Orson Wells) no filme “O Terceiro Homem”: “in Italy for 30 years under the Bor-

e a nível das infra-estruturas, que vantagens pode-

gias they had warfare, terror, murder, and bloodshed, but

mos esperar?

they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci, and the Renaissance. In Switzerland they had brotherly love - they

A ARCA-EUAC dispõe de óptimas infra-estruturas, em

had 500 years of democracy and peace, and what did that

termos de espaços de aulas, laboratórios, estúdios, equipa-

produce? The cuckoo clock”.

mentos, oficinas, maquinaria, que actualmente, nalguns casos, se encontram subaproveitados, mas que constituem

em termos pedagógicos, qual é a mais-valia?

uma mais-valia extremamente valiosa. Neste momento está-se a proceder à inventariação e recu-

A mais valia deste projecto reside na possibilidade de ar-

peração destes espaços e equipamentos para permitir a sua

ticulação de vários saberes, na miscigenação de conheci-

utilização plena nas actividades didácticas em curso e pro-

mentos, nas influências cruzadas que o contacto entre

gramadas. A par disso, há igualmente um imenso espólio,

alunos de diversas formações, percursos e objectivos pode

resultante da produção dos alunos ao longo dos anos nos

trazer, no enriquecimento comum que resulta deste pro-

vários domínios artísticos, que está a ser igualmente objec-

cesso. Vivemos num mundo em constante mudança, em

to de atenção.

que – em muitas áreas do saber - os conhecimentos adqui-

ridos ao longo de um ciclo de formação em muitos casos se

antes de aceitar o desafio de reestruturar a arca,

desactualizam antes mesmo da própria formação se con-

consolidou um percurso académico muito voltado

cluir, em que as actividades a desempenhar por cada um ao

para a investigação científica no âmbito da arqui-

longo da vida irão inevitavelmente mudar, e em que cada

tectura, cidade e território. de que modo é que esta

uma deverá saber, em cada momento da sua vida, articular

experiência pode contribuir neste modelo?

conhecimentos e competências de várias origens. A aquisição de uma base de conhecimento bastante alargada e arti-

Essa área que refere é a parte do meio do meu percurso aca-

culando diversos domínios do saber é uma ferramenta es-

démico, mas que foi precedida por outro área de trabalho

sencial neste processo. A principal função da Universidade

e de investigação, e que foi sucedida por outro domínio

93


pesquisa que neste momento desenvolvo. A primeira

ordem aparente, dispersas pelo território, desperdiçando

área de investigação dizia respeito às questões da habita-

espaços e infra-estruturas. Muito desta situação se deve

ção, e particularmente da habitação popular, e as questões

à actuação do poder central e local, orientada para inte-

sociais que lhe estão associadas, e onde se incluíram entre

resses múltiplos, não necessariamente públicos, à falta

outras actividades neste domínio, a minha experiência de

deliberada de políticas ordenadoras, e a um quadro legal,

trabalho no velho SAAL, no Porto, e a minha investigação

que objectivamente favorece tais situações. Outra grande

de Doutoramento. Houve depois a área que refere, muito

fractura é aquela que se inicia no século XIX e se continua

centrada nas questões do desenho urbano, do urbanismo

pelo século XX, até hoje, em que se abandonaram as gran-

português e do urbanismo colonial. Finalmente, sem que

des referências do urbanismo português, que estiveram

as outras áreas tenham desaparecido do horizonte das

na base da construção de cidades em Portugal e nas mais

minhas preocupações, a minha mais actual área de inte-

diferentes partes do mundo ao longo dos séculos. Exis-

resse centra-se nas questões da Arquitectura popular e da

te, de facto, uma especificidade do urbanismo português,

cultura popular. Creio que estes diferentes domínios – as

que é uma componente fundamental da nossa cultura,

questões sociais associadas à Arquitectura, as questões ur-

mas que a partir do século XIX, foi sendo substituída por

banas, e a reflexão sobre a nossa cultura – são componen-

outras referências, estrangeiras, muitas vezes mal assimi-

tes essenciais da formação do Arquitecto e na actividade

ladas e sem ser feita a necessária síntese com os nossos

do Arquitecto. Mas a questão do urbanismo e da relação

próprios valores. A cultura portuguesa nunca viveu numa

da arquitectura com o espaço urbano são questões essen-

redoma, isolada do mundo. Pelo contrário, ela foi sempre

ciais muitas vezes descuradas no ensino da Arquitectura

activa participante na formação da cultura europeia, e

em Portugal e essa é uma vertente a que estamos particu-

dos muitos locais no mundo em que esteve presente, re-

larmente atentos. A arquitectura nunca é um objecto iso-

cebendo e dando, mas sendo sempre capaz de assimilar

lado, ele vive em permanente relação com o espaço envol-

as referências culturais, que lhe vinham de fora com os

vente, urbano ou não urbano, e só através desse diálogo,

seus próprios valores e, daí resultando – em cada época e

nesse círculo de compreensão hermenêutica, é possível

em cada local – sínteses específicas, extremamente ricas.

entendê-la.

Da mesma forma que a arquitectura portuguesa fez uma reflexão sobre as suas raízes e, explorando a sua especi-

Como especialista na arquitectura da cidade por-

ficidade cultural, atingiu uma projecção internacional, o

tuguesa, qual julga ser a grande “fractura” que

mesmo trabalho deve ser feito, em relação ao urbanismo.

caracteriza o território de Portugal continental? E na arquitectura de origem portuguesa além-fronEssa grande fractura pode ser encarada de duas formas.

teiras? Considera que existe uma ruptura entre as

Por um lado, a fractura que é claramente visível quando se

estratégias de ocupação em território continental

entra em Portugal de avião, vindo da Europa. A territórios

e nos territórios de presença portuguesa? E entre

organizados, estruturados, hierarquizados sucedem-se,

esses vastos e diferentes exemplos, encontram-se

mal se entra Portugal – e basta olhar pela janela do avião

diferenciações nas estratégias de ocupação?

para se perceber que se entrou – territórios caóticos, desorganizados, em que as mais diferentes funções – agricultu-

As estratégias de ocupação do território continental e

ra, habitação, indústria, equipamentos – se misturam, sem

dos territórios ultramarinos eram as mesmas, tendo em

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conta, naturalmente, as miscigenações culturais que ocorreram em cada local, e que tiveram a sua expressão na arquitectura e no urbanismo. Trata-se do velho diálogo entre o local e o global, que no nosso caso é extremamente rico. Mas, a mesma fractura, referida acima, verificou-se nos territórios de língua portuguesa onde tivemos uma presença de séculos. Aí, em muitos casos, essa fractura foi acentuada pela necessidade de afirmação após as independências, que levou à recusa de muitos valores da cultura portuguesa. E essa é uma tarefa urgente, o retomar dos contactos com esse mundo de expressão portuguesa e leva-los a reconhecer as suas raízes culturais, que também aqui se encontram. Creio que, para além da língua, a arquitectura e o urbanismo são expressões maiores dessa comunidade, e não será necessário acentuar os benefícios culturais e também económicos que adviriam do retomar deste diálogo. No que se refere ao ensino, que é o que aqui nos preocupa particularmente, há um imenso potencial a desenvolver neste campo com África, e a África mediterrânica, o Brasil, os países do Golfo, e outras regiões da Ásia.

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Rúben Correia

CITA

CITA é uma pequena “vila de saúde”, inserida em Tentúgal, que através do retirar de massa, abrindo praças e ruas, origina uma série de volumes de igual forma dispersos e distintos, que albergam todo o programa destinado a um centro de investigação e tratamento da doença de Alzheimer. O projecto visa então que através da arquitectura, se possa contribuir com alguns benefícios para um possível tratamento da doença, funcionando como forma de terapia e reinserção de pessoas com demência numa sociedade que aos olhos deles seja normal.

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UM NOVO BANCO

A diferença está no recurso a técnicas e procedimentos

Workshop

a experiência, mais interessante. Projectar, num caso ou

Sentemo-nos lá fora. Não! (pausa) A escola não tem ban-

Conseguimos de algum modo dar resposta às seis propos-

cos.

tas para o próximo milénio apresentadas por Italo Calvino2

metodológicos diferentes o que nesta situação, só torna noutro é, ao fim ao cabo, determinar a forma adequada.

e resumidas em: Leveza (dos objectos concretizados), RaA consciência da falta de mobiliário urbano na nossa Es-

pidez (1 dia de trabalho), Exactidão (rigor dos detalhes de

cola deu o impulso necessário para a organização de um

execução), Visibilidade (os novos bancos da ARCA), Mul-

workshop sobre o tema. A proposta pretendia provocar

tiplicidade (originalidade e diferenças entre os objetos

um momento de suspensão, uma pausa nos projectos

realizados), Começar e Acabar (das ideias à concretização

principais em curso, com a participação de um dia de jor-

até a implantação das peças de mobiliário urbano).

nadas intensas para o desenho e produção de bancos para a Escola.

A dualidade desta iniciativa, repõe questões ideológicas e teórico-práticas. Resta enaltecer e divulgar a experiência

Demos então corpo a um exercício teórico-prático – des-

gratificante no âmbito pedagógico, resultado do entusias-

de a ideia à materialização - a decorrer nas instalações da

mo e partilha, revelado no espírito de trabalho de grupo.

ARCA-EUAC, juntando alunos dos cursos de Arquitectura

Uma experiência nova, partilhada por nós, professores,

e Design, criando-lés condições de enquadramento técni-

que não nos desprendemos ainda dos vestígios da forma-

co e a oportunidade de participar activamente na trans-

ção artística, permitindo que os alunos encontrassem esta

formação do espaço vivido da Escola. Em concordância

nossa realidade objectiva e, mais do que isso, contribuís-

com a própria evolução do conceito de metodologias dos

sem para a transformação da Escola.

cursos de Arquitectura e Design, com a necessidade de gerar espaços de colectividade social e cultural, juntamos todos os alunos da ARCA numa acção comum e em grupo. A conjectura da mudança é agora a dada pelo experimentalismo inovador, estruturada pela acção crítica e a oportunidade de concretizar os modelos reais, impondo novas dinâmicas de projecto que se vão afirmando com um crescente interesse e entusiasmo. De facto, o “acto de projecto” é o da passagem para a realidade física de uma ideia. Ideia que é em si própria uma maneira de interpretar o imaginário colectivo. Este modo de pensar um objecto, seja qual for a sua escala e programa de necessidades, é comum a arquitectos e designers.1

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1- Costa, Daciano (1998). Design e mal-estar. Porto: Centro Português de Design, p. 92. 2- Calvino, Italo (1998). Seis propostas para o próximo milénio. Lisboa: Teorema.



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patrocĂ­nio


baú #1 Impressa na Europress em Abril de 2016 com uma tiragem de 400 exemplares Os artigos e a sua formatação são da exclusiva responsabilidade dos autores.

edição e composição gráfica Inês Lima Rodrigues Maria Rita Pais Ricardo Castro

Proprietário: ARCA ISSN: 2183 - 7821 ERC: 126832 Depósito Legal: 408051/16

Todos os direitos reservados.



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