Arcádia n° 2 Revista de literatura e crítica literária
Arcádia Arcádia n°2n°2 / 2015 / 2015
ISSN 2446-9335
Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP
Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária é uma revistalaboratório do curso de Estudos Literários do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada anualmente pelos alunos de graduação do Departamento de Teoria Literária, mas aceita contribuições de toda a comunidade, independente de filiação institucional ou formação acadêmica. Arcádia publica textos de criação literária (prosa ou poesia), textos críticos (resenhas, artigos ou ensaios) sobre obras literárias ou relacionadas à teoria, à crítica e à história literária, e traduções em uma dessas áreas.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor: José Tadeu Jorge Vice-Reitor: Álvaro Penteado Crósta
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Diretor: Flávio Ribeiro de Oliveira Diretor-Associado: Jefferson Cano
COORDENAÇÃO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS Marcos Aparecido Lopes Daniela Birman
COMISSÃO EDITORIAL Júlia Elisa Marques Martins Luiza Herrera Braga Marília Grassi Trementocio Tosta
Sumário Maupassant antimoderno: análise de duas histórias e suas adaptações televisivas (Andressa Cristine) - 3-15
Canção do medo de agosto (Laís Ferreira) - 16
Haikai (Matuyama) - 17
Robert Galbraith, a nova faceta de J.K. Rowling (Luiza Herrera Braga) - 18-22
Senhora Poesia (Gabriela Nascimento Ananias) - 55
Alice, sua puta (Letícia Rocha) - 57
Reconhecimento (Marília Grassi Trementocio Tosta) 59-62
Preciso sair (Rodrigo de Faria) - 63
Por uma educação pela imagem, ou a retórica da consolação nos sermões do Rosário do Padre Antônio Vieira (Felipe Lima) – 64-80
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MAUPASSANT ANTIMODERNO: ANÁLISE DE DUAS HISTÓRIAS E SUAS ADAPTAÇÕES TELEVISIVAS Andressa Cristine Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o conto “L’ami Joseph” e a novela “Le rosier de Mme. Husson”, de Guy de Maupassant, em relação a dois episódios de mesmo nome que fazem parte da série de TV “Chez Maupassant”. À luz da teoria sobre os antimodernos de Antoine Compagnon, o artigo analisa as adaptações para a TV e de que forma o narrador se coloca como um pessimista que não se conforma com a modernidade e muitos dos seus pressupostos.
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Introdução O escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893) vivenciou intensamente a modernidade da segunda metade do século XIX, cujas origens remontam à Revolução Francesa, bem como sofreu as consequências desse período marcado pela industrialização, pelo estabelecimento da burguesia como classe média, pelo acúmulo de bens e pela repentina urbanização das cidades, em especial, evidentemente, as capitais europeias mais populosas, como Paris. No entanto, ao se pensar a modernidade – e ao se pensar no próprio Guy de Maupassant como um escritor da modernidade –, não basta enxergá-la como um período revolucionário que transgrediu o anterior e libertou o povo merecedor de direitos; é necessário pensar também em contradições que existiam na sociedade, as quais tornaram o indivíduo moderno um ser confuso com o impacto dessas mudanças. O espírito da revolução e os lemas de liberdade e igualdade, que impulsionaram o liberalismo, por exemplo, dividiam dividiam o espaço com o conservadorismo e a aura burguesa das aparências, ainda muito atrelada à aristocracia e às antigas tradições. A ficção de Maupassant, carregada de crítica social, traz muitos desses preceitos conflitantes da época: o coletivismo e o individualismo, a tradição e a inovação, a conser-
vação e a ruptura, a monarquia e a república, o espaço rural e o espaço urbano, além do racionalismo e da religiosidade bastante plurais. A fim de analisar o aspecto contraditório presente na ficção de Guy de Maupassant tanto na figura do narrador quanto nos personagens, foram escolhidos dois textos entre a numerosa obra do autor para serem analisados neste artigo: um conto chamado “L’ami Joseph” (1883) e a novela “Le rosier de madame Husson” (1887). À luz da teoria de Antoine Compagnon sobre os antimodernos e das contribuições históricas de Eric Hobsbawm, este artigo analisa de que forma o narrador e os personagens traduzem um Maupassant antimoderno, que se coloca como um pessimista desiludido com a realidade problemática e descrente das leis políticas, sociais e religiosas. Já se sabe que o conhecimento da realidade social dialoga constantemente com a produção literária e, mais do que isso, essa realidade é verdadeiramente um dos componentes da estrutura literária de uma obra. Por essa razão, os comentários deste artigo esforçam-se por interligar fatores por vezes considerados históricos aos fatores estéticos, tratando o texto e o contexto como elementos internos à literatura, como algo da própria construção artística de Maupassant, e não somente uma ilustra-
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tração do que aconteceu no período em que o escritor viveu e observou sua sociedade.¹ Outros textos do autor poderiam ser o objeto deste trabalho, por serem de fato um “poço” literário de cinismo, desilusão e decadência, como o romance Bel-ami e o conto Bola de sebo, mas aqui a seleção dos textos se deve a uma recente adaptação para a televisão em forma de episódios semelhantes a filmes curta-metragem. O artigo, portanto, propõe uma relação das obras citadas com os episódios homônimos da minissérie televisiva Chez Maupassant, mais precisamente com os da 2ª temporada, exibida em 2008, discutindo de que forma, nesse processo de adaptação para a TV, os episódios da série abordam os elementos do pensamento moderno e utilizam-se de efeitos esteticos próprios da mídia, como a lenta repetição de ações sob o foco da câmera e a interpretação caricaturada dos personagens, para transpor características de escrita (descrição, síntese, ironia, humor, etc.) do próprio Maupassant. 1. Por que antimoderno? Para Antoine Compagnon², os antimodernos são artistas que
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ficaram incomodados e frustrados em relação aos princípios da modernidade, nos quais se nota uma manifestação amarga de contragosto com os vários “ismos” sustentados pelo mundo burguês do século XIX, como: Iluminismo, idealismo, utopismo, otimismo, positivismo, progressismo, capitalismo, utilitarismo, liberalismo, individualismo, racionalismo, cientificismo. Às vezes considerados absolutamente modernos, esses artistas só podem ser denominados antimodernos porque o prefixo “anti” não está sendo utilizado em seu significado superficial de rejeição, e sim no sentido de dúvida, receio e desconfiança. Considerando a ambiguidade como essência da modernidade, pode-se dizer que o artista antimoderno gostava de permanecer na “retaguarda da vanguarda”, conforme disse Roland Barthes.³Da mesma forma, Guy de Maupassant demonstra uma atitude ambígua ao criticar certos valores sociais que, ao mesmo tempo, procura manter ao seu lado; e vice-versa, quando usa a voz do narrador ou dos personagens para exaltar uma sociedade desejada e simultaneamente despejar críticas nas entrelinhas. Para Compagnon, esse é o perfil questionador de um verdadeiro antimoderno, o qual,
¹ CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010 ² COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos. Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2011 ³idem
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ao contrário daqueles simples artistas que aceitam plenamente os princípios da modernidade, pode ser visto como um verdadeiro moderno. Chateaubriand, Proust, Baudelaire e tantos outros: são esses escritores que fizeram a “literatura não tradicional mas propriamente moderna porque antimoderna, literatura cuja resistência ideológica é inseparável de sua audácia literária”.4 A partir desse conceito de que a antimodernidade é a própria característica da modernidade, por sua ambivalência e consciência de si, pode-se incluir Guy de Maupassant no gênio antimoderno, mais que apenas um escritor transgressor da realidade ou um realista-naturalista como se vê em compêndios de literatura e estudos literários em geral. 2. Características antimodernas nos textos de Maupassant Em 1850, ano em que nasceu Maupassant, o fenômeno capitalista burguês se encontrava instaurado em muitos países europeus assim como em colônias e excolônias europeias. Era o sólido apogeu desse período da aparência e das massas, em que se destacava um grande símbolo da transforma-
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ção que as indústrias causaram: as grandes cidades. A população de Paris, por exemplo, havia praticamente dobrado em 30 anos, subindo de 1 milhão para 1,9 milhão de pessoas de 1851 a 18815. Portanto, a primeira marca encontrada nos textos de Maupassant é o homem emigrado da cidade pequena para a metrópole, que saiu das suas origens e não se sente mais em casa, por mais que a grande cidade possa lhe oferecer modernidade. No conto “L’ami Joseph”, um dos personagens de Maupassant “passava o tempo a sentir uma leve saudade do passado” e estava certo de que “nada é mais sólido do que as relações de infância retomadas na idade madura”6. Porém, como a modernidade agiu de forma transformadora sobre esses homens na multidão, a grande discussão era se o ambiente rural e tranquilo da cidade de origem seria realmente o lugar onde o homem poderia ser feliz. Como elementos de ligação entre os moradores do campo e os citadinos, pode-se dizer que o mais representativo é o trem. Em um episódio da minissérie Chez Maupassant, esse personagem não humano, tão impor-
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COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos. Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.15 5
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campo e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 319 6
MAUPASSANT, 125 contos de Guy de Maupassant. Tradução de Amilcar Bettega. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p.241
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tante quanto os personagens homens e mulheres, aparece já no início. As locomotivas representaram bem a transformação que a modernidade causou no pensamento da época justamente por serem feitas da própria matéria do mundo moderno, isto é, metal e carvão. Produzidas com muito metal e gerando energia a partir do carvão, elas desafiaram conceitos da física e transformaram as noções de velocidade e de distância geográfica, bem como estavam ligadas à pujança das indústrias (com destaque à produção do aço) e, por extensão, dos capitalistas dos meios de transporte. Metaforicamente, as ferrovias eram os novos caminhos a serem percorridos, tanto que até hoje são chamadas de estradas de ferro (chemins de fer em francês). Por todos esses fatores, o trem se tornou símbolo de uma mudança inevitável na sociedade, fato que se tornou perigoso à tranquilidade e à moral preservada entre os moradores de cidades pequenas, já que o contato entre as cidades ficou mais fácil e cada vez mais frequente.
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Na novela “Le rosier de madame Husson”, a narrativa começa a partir dessa grande metáfora, quando uma locomotiva quebra, os vagões saem dos trilhos e os passageiros são obrigados a aguardar um novo transporte na pequena cidade chamada Gisors, desolados com “o estropiado monstro de ferro”, impôssibilitado de conduzi-los 6. Outros elementos representam a mudança drástica como “divisora de águas” pela qual o espírito francês se encontrava ameaçado. Em fevereiro de 1887, Maupassant e outros artistas escreveram uma carta de protesto contra a construção da “inútil e monstruosa Torre Eiffel”, demonstrando estar amedrontados pelos montes de ferro que invadiam a cidade e prejudicavam o bom gosto francês7. No último trecho da carta, eles diziam que Paris já havia sido protegida uma vez8, por isso pediam honra para defendê-la de novo. Ou seja, sentiam-se felizes com os sinais de preservação e sentiam ojeriza ao progresso tecnocientífico do século XIX,
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MAUPASSANT, Guy de. O vestal da senhora Husson/ A inútil beleza . São Paulo: Martins, 1956, p. 11 7 ACADÉMIE ROUEN – LETTRES. Les artistes contre la Tour Eiffel. Disponível em: <http://lettres.ac-rouen.fr/sequences/outil_L/eiffel1.html>. Acesso em: 10 jul. 2014 No original: “Nous venons , écrivains, peintres, sculpteurs, architectes, amateurs
passionnés de la beauté, jusqu'ici intacte, de Paris, protester de toutes nos forces, de toute notre indignation, au nom du goût français méconnu, au nom de l'art et de l’histoire français menacés, contre l'érection, en plein cœur de notre capitale, de l'inutile et monstrueuse Tour Eiffel” 8
Referência ao ano de 1860, quando os limites geográficos de Paris foram modificados a fim de isolar as indústrias em áreas (arrondissements) específicas que pudessem garantir a preservação do patrimônio artístico e histórico da cidade
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sendo que a Torre Eiffel representava todo o “triunfo do cálculo e a irrupção na paisagem arquitetônica moderna dessa transparência quase desmaterializada que permitem as construções metálicas”9. Curiosamente, em uma carta trocada com Flaubert em janeiro de 1887, o próprio Maupassant manifestou um desejo de inovar: “nenhum jornal me deixará fazer artigos verdadeiramente literários e dizer o que penso. Todos os dias, leio La Nation; essa folha é totalmente idiota, é o reino dos preconceitos e do convencional, qualquer coisa nova os apavorará enquanto ideia e enquanto forma”10 Em outra carta, no ano seguinte, é possível perceber que a inovação deu lugar a uma profunda desilusão com a realidade: chegam-me percepções tão nítidas da inutilidade de tudo, da maldade inconsciente da criação, do vazio do futuro (qualquer que seja), que me sinto invadido por uma indiferença triste por qualquer coisa e que gostaria apenas de ficar tranquilo
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em um canto, sem esperanças e sem aborrecimentos11
Nesses pequenos trechos, está expresso o que Compagnon denomina dilema do antimoderno, quando o escritor está consciente da irreversibilidade do tempo, isto é, olha para o passado e percebe que tudo está muito diferente, porém precisa aceitar o presente em que se encontra. Em se tratando de um olhar voltado ao passado, outra característica antimoderna que se pode encontrar nos textos de Maupassant é a saudade do Antigo Regime em reação à Revolução e à República. Em “L’ami Joseph”, uma das personagens levanta os olhos para o céu e questiona “Sob que governo vivemos, meu Deus?”.12 E o narrador explica quem era o protagonista Joseph Mourador, um homem que vinha do Sul: “Era republicano; daquela raça de republicanos bons-moços, que fazem da sem-cerimônia uma lei e que posam para a independência da palavra, chegando até a brutalidade”13. Por esses exemplos, pode-se entender a razão pela qual Chateaubriand definiu o
LEMOINE apud COMBEAU, Yvan. Paris: uma história. Tradução William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2011, p.84 10 MAUPASSANT apud HERVOT, Brigitte. Tagaralice espirituosa: as cartas de Maupassant. São Paulo: Unesp, 2010, p. 171-172 FUNDAÇÃO Saramago. Disponível em: <http://josesaramago.org/371606.html>. Acesso em: 10 jun. 2014 11 Idem 12 MAUPASSANT, 125 contos de Guy de Maupassant . Tradução de Amilcar Bettega. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 241 13 Idem
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antimoderno, incluindo-se nessa definição, como um “homem dos tempos antigos e um insurgente” ou um “pintor das ruínas, um historiador das civilizações desaparecidas”14. A proposição ambígua tomada por Chateaubriand e recuperada por Compagnon aparece diversas vezes no conto “L’ami Joseph” na figura dos dois colegas da juventude, o amigo Joseph (solteiro, republicano, conselheiro geral morando em Paris) e o Sr. de Méroul (casado com a filha de um nobre, sem ocupação, dividiase entre Paris e um castelo de Tourbeville). Em uma discussão entre Joseph e o casal de Méroul sobre os jornais lidos todos os dias na casa, os contrastes se acentuam na escrita de Maupassant. Os jornais conservadores Le Gaulois e Le Clairon foram recebidos por Joseph com uma expressão de espanto e de raiva. Em seguida, Joseph substituiu esses jornais pelos republicanos Le Voltaire e La Justice, além de voltar à sua leitura rotineira do símbolo republicano L’Intransigeant. Marido e mulher ficaram estupefatos e seguraram as páginas “com a ponta dos dedos como se estivessem envenenadas”, sendo que Joseph disse a eles: “– Oito dias desse alimen14
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to, e converto vocês às minhas teorias”15. Tem-se uma reflexão metalinguística da escrita literária tratando da escrita jornalística em relação aos princípios revolucionários e contrarrevolucionários debatidos com força na década de 1880. Na verdade, os jornais são uma metonímia para todo esse jogo ideológico de tomada de posição política da época, o que foi adaptado na minissérie de forma mais acentuada e, devido à atualidade dos anos 2000 e ao distanciamento do século XIX, muito mais cômica que dramática. Ao invés de atirar os jornais conservadores pela jánela, como acontece no conto, o Joseph da minissérie decidiu tomá-los das mãos do casal e atirá-los no fogo da cozinha. Muitas dessas discussões políticas encontradas nos textos confirmam o lado pessimista do escritor Guy de Maupassant. Em 1963, José Saramago concluiu que, para Maupassant, “o mundo é uma noite sem aurora. Não há paz, não há alegria, não há felicidade. Só há a vida errada, o homem errado, a estupidez arrepiante dos artigos e cláusulas do contrato que constitui os homens em sociedade”16.
apud COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos. Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 17-18 15 MAUPASSANT, 125 contos de Guy de Maupassant . Tradução de Amilcar Bettega. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 245 16 HERVOT, Brigitte. Tagaralice espirituosa: as cartas de Maupassant. São Paulo: Unesp, 2010. Fundação Saramago. Disponível em:<http://josesaramago.org/371606.html>. Acesso em: 10 jun. 2014
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Nas diversas figuras sociais escolhidas por Maupassant para seus personagens, é possível identificar os sinais do caos em que se encontrava a sociedade, que lhe causava um mal-estar geral. Assim como acontecia com os escritores e filósofos dos anos 1880, os socialistas ansiavam cada vez mais pela decadência do sistema capitalista burguês “em virtude das suas contradições internas insuperáveis”17. De maneira até exagerada, os pensadores adotaram um tom apocalíptico aos seus comentários e, mesmo aos mais ponderados, havia a constante sensação de ameaça. Por exemplo, o narrador de “Le rosier de madame Husson” encontra na cidade de Gisors um antigo amigo em quem reconhece os males da vida provinciana “que engorda, brutaliza e envelhece”18. Durante as conversas desse reencontro, o narrador (que é também personagem) escuta a lenda do rosier da cidade, uma divertida história sobre um rapaz cheio de virtudes eleito como substituto ao título de rosière19 para o qual não foi encontrada nenhuma moça merecedora. 17
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O menino intitulado rosier desaparece logo após a festa de comemoração e retorna totalmente bêbado e sujo, corrompido pelos vícios e sem chance de se corrigir. Assim, o orgulho dos moradores se transforma em uma piada sobre a falsa moral, a honra estúpida que não se sustenta. No episódio de TV, é possível notar que todo o peso da decadência moral foi enfatizado pela figura da madame Husson. Com suas roupas pretas de luto, ela abre a primeira cena indo à igreja para rezar e contar ao padre seu desejo de ajudar a cidade a encontrar uma rosière, ou seja, madame Husson aparenta ser um exemplo de mulher caridosa, virtuosa e de boa índole. Porém, dentro de casa, ela comete desvios religiosos, como a avareza, a preguiça e a gula, demonstrando estar apenas interessada na indulgência pelos seus pecados capitais. No final do episódio, madame Husson se decepciona ao ver que o menino que escolhe para ser rosier se torna um bêbado incorrigível, o que acaba definitivamente com o
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campo e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2011 18 MAUPASSANT, Guy de. O vestal da senhora Husson/ A inútil beleza . São Paulo: Martins, 1956, p. 12 19 O título rosière não pode ser traduzido com exatidão, embora algumas traduções antigas tenham escolhido “vestal” como correspondente. O termo rosière existe na França desde o século V, mas no século XIX se tornou moda nas pequenas cidades para eleger uma moça de boa reputação que pudesse representar a virtude do lugar. À moça eleita eram concedidos prêmios em dinheiro e uma coroa de rosas, de onde vem a palavra roseira (se traduzido ao pé da letra).
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seu projeto hipócrita. Então, ela desiste de se fazer parecer bondosa na sociedade e resolve beber também. De forma caricaturada na adaptação e de forma crítica nos textos de Maupassant, a burguesia se apresenta como a classe social dos excessos. A permissividade e o afrouxamento dos valores puritanos faziam parte do intuito burguês de se formar como classe, então se adotou um estilo de vida mais confortável, em que se vivia rodeado de enfeites, tecidos e tudo o que “consideravam apropriado a pessoas de sua posição social e inapropriado aos seus inferiores, consumindo alimentos e bebidas em quantidades substanciais, provavelmente excessivas”20. Durante o episódio de TV, o padre também foi apresentado como um beberrão. Considerando que a Igreja faz parte dos questionamentos do antimoderno, muitos personagens de Maupassant representam o conflito entre os ensinamentos religiosos e os preceitos vivenciados pelos burgueses. Por exemplo, a Igreja tinha por princípio que a ambição e a avareza eram condenáveis, mas, ao 20
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mesmo tempo, acumular dinheiro e bens materiais era visto com bons olhos pela sociedade. Do mesmo modo, a relação amorosa entre homens e mulheres sofria certa parcialidade de julgamentos morais em que “um comportamento duplo era aceito: castidade para as mulheres solteiras e fidelidade para as casadas, a caça livre de todas as mulheres [...] por todos os jovens burgueses solteiros, e uma infidelidade tolerada para os casados”21. Para o antimoderno, as contradições funcionam exatamente nessa linha de pensamento: é necessário um poder independente para domar e submeter as paixões e vontades do homem, senão há barbárie22, mas a tranquilidade da vida provinciana pode levar ao tédio e à rotina. Por exemplo, a Sra. de Méroul, uma personagem de vida pacata e rotineira em “L’ami Joseph”, sabia, “por tradição, que antes de tudo devese respeitar o papa e o rei!”, além de ter um “devotamento hereditário [e ser] boa até as pregas da alma”23. No episódio de TV, a personagem é como uma mulher ociosa, de resquícios aristocratas – segundo Hobsbawm24, a linha entre a burguesia
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campo e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 262 21 HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campo e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p.353-354 22 COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos. Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.75-79 23 MAUPASSANT, 125 contos de Guy de Maupassant. Tradução de Amilcar Bettega. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p.241 24 HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campo e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p.270
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e a aristocracia era imprecisa –, que recebe as visitas para conversar, mas suas conversas são repetições de discursos moralistas ligados ao absolutismo e aos dogmas da Igreja. Também se pode notar a sua inferioridade em relação ao homem, sob uma releitura contemporânea que condena a soberania do homem na relação conjugal – pois em várias cenas ela fica irritada facilmente, expressa mais os seus sentimentos e exerce dominação somente sobre os criados, os responsáveis pela manutenção da paz e do conforto do lar. Alguns símbolos da sua atitude de mulher burguesa aparecem em cenas de alta carga imagética em Chez Maupassant: um quadro de Jesus com molduras douradas na sala principal e uma flor-de-lis sendo bordada, que juntos formam o duplo poder da Igreja católica e da monarquia francesa. A posição desfavorável da mulher burguesa na sociedade aparece em outra cena da adaptação “L’ami Joseph”, quando a Sra. de Méroul resolve melhorar o comportamento do indelicado Joseph propondo-lhe uma noiva bondosa e prendada. A pretendente e os pais são convidados para jantar e, no momento em que começam a falar sobre as qualidades da moça como futura esposa, Joseph não se interessa e faz uma piada sobre a magreza e a falta de curvas da jovem. Ao dizer que ela não tem o
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bastante para as mãos de um homem, está desmerecendo a mulheresposa e valorizando a mulheramante (cujo papel é representado pela criada na adaptação). Por um lado, o espectador sente o constrangimento e a humilhação da moça; por outro lado, ri da situação porque, vivendo no século XXI, tem consciência do absurdo que seria planejar a união de duas pessoas para um fim moral de boas aparências, além de ridicularizar o comportamento egoísta – e hoje se pode dizer machista – de Joseph. Por um lado, o espectador sente o constrangimento e a humilhação da moça; por outro lado, ri da situação porque, vivendo no século XXI, tem consciência do absurdo que seria planejar a união de duas pessoas para um fim moral de boas aparências, além de ridicularizar o comportamento egoísta – e hoje se pode dizer machista – de Joseph. A cena não existe no conto original de Maupassant, mas foi uma excelente criação do roteirista para colocar em evidência o problema dos casamentos arranjados da época. No entanto, ainda que os personagens não existam no texto de origem ou que tenham sido aproveitados de outro texto do autor, os leitores reconhecem uma espécie de “aura” de Maupassant, o seu estilo de escrever.
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3. Adaptações televisivas As adaptações televisivas trouxeram muitos elementos do escritor Guy de Maupassant, assim como criou visões próprias da sociedade da segunda metade do século XIX e outras referências artísticas e culturais típicamente francesas. Isso acontece porque uma adaptação é uma repetição com diferença25, que constantemente se aproxima e se distancia da obra adaptada. Torna-se uma nova obra, autônoma em relação àquela que lhe serviu (ou àquelas que lhe serviram) como ponto de partida, com seus próprios efeitos estéticos. Em Chez Maupassant, nota-se um olhar crítico e cômico em relação à mecanização da vida burguesa, à hipocrisia das aparências, ao conflito entre campo e cidade (orgulho do passado e da própria região, conservadorismo, valorização da pureza e da virtude), muito do que o próprio Maupassant havia feito em seus textos. No caso em análise, os diretores envolvidos com a roteirização e a filmagem (Denis Malleval – episódio 1 e Gérard Jourd’hui – episódio 2) acabaram por eleger os detalhes mais convenientes ao propósito de recriar a arte literária do escritor.
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Sabendo que a descrição é um dos pontos mais bem trabalhados por Maupassant e uma das marcas mais conhecidas pelos leitores (principalmente franceses), notase que descrever por meio da câmera foi a aposta dos diretores ao produzirem a minissérie. Inclusive se pode afirmar que: escrever e filmar são bastante similares na busca de uma descrição. Assim como o escritor terá que recortar a sua paisagem ao eleger os melhores detalhes, também o diretor terá que traçar as suas escolhas através do foco e filmagem, de forma que o objeto a ser tomado pela câmera terá inúmeras possibilidades de planos e enquadramentos26.
Os episódios de TV retomam a narrativa realista-naturalista do século XIX, da linguagem referencial, calcada na minuciosa lentidão das descrições dos fatos, lugares e pessoas, efeito este que pode ser chamado de pintura ou fotografia do instante27. Maupassant pode ser visto como alguém que carregava uma câmera fotográfica e captava diversos flashes, claro que não somente como uma fotografia banal da realidade, mas uma sugestão de
TAMARU, Angela Harumi. Descrição e movimento: imagens descritivas no cinema e na literatura. São Paulo: Scortecci, 2006, p.133 27 PELLEGRINI, Tânia (Org.). Literatura, cinema e televisão . São Paulo: Senac/ Instituto Itaú Cultural, 2003, p.20
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muito subjetiva, semelhante à dos pintores impressionistas. Na sua narrativa, Maupassant consegue levar o leitor consigo pelos espaços onde vivem as personagens, para depois traduzir em imagens mentais. E os diretores de Chez Maupassant utilizaram-se da linguagem cinematográfica, em que a câmera tem movimento, para transpor esse efeito de proximidade do real fictício (obra) com o real do espectador (conjunto de informações históricas), ambos entremeados pela realidade existente na segunda metade do século XIX, esta impossível de ser conhecida e atingida como única e verdadeira. Em “Le rosier de madame Husson”28, o diretor mostra a cena da foto comemorativa do novo rosier enquadrada em uma moldura de fotografia, como se alguém, segurando uma câmera filmadora, estivesse posicionado atrás do fotógrafo, que também está vendo uma imagem coordenada. Trata-se da arte falando da própria arte.
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Uma atenção especial deve ser dada ao título da minissérie: Chez Maupassant. Esse título pode ser traduzido como “na casa de Maupassant”, o que passa a ideia de o espectador se sentir dentro do universo de escrita do autor e também do universo narrativo das personagens29. Esse mundo a que assistimos na minissérie é muito parecido com o mundo de escrita do Maupassant, por isso foi escolhido esse título tão inteligente.
Os espectadores podem se sentir em casa, à vontade, enquanto veem as histórias pela televisão (objeto), lembrando que a televisão (mídia) exerce o papel de veículo popular das massas. Estar em casa está associado a refugiar-se, do mesmo modo como se construiu a noção de lar entre os burgueses e do mesmo modo como a antimodernidade concebia a convivência familiar. Como afirma Bachelard30, a “casa, na vida do homem, afasta a contingência, multiplica seus conselhos de continuidade.
FIGURA 1 – Metalinguagem da fotografia.FONTE: (CHEZ MAUPASSANT, 2008, episódio 1) FIGURA 2 – O universo de Maupassant em uma cena.FONTE: (CHEZ MAUPASSANT, 2008, episódio 2) 30 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2008 29
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Sem ela o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida”. Isso faz dos episódios verdadeiros “olhos da mente” do leitor e do autor. Em relação a essas adaptações, nota-se que o universo de Maupassant não envolve somente o escritor das obras literárias, mas também os roteiristas, os diretores e os leitores-espectadores. Com todas essas leituras envolvidas, é possível construir e reorganizar a escrita de Maupassant de múltiplas maneiras. Conclusão Por meio da análise dos dois contos em relação aos dois episódios de TV homônimos, podese concluir que Guy de Maupassant é um autor antimoderno, demonstrando em seus textos diversos conflitos com os pressupostos da modernidade, e que isso se reflete nas adaptações para a TV. Os diretores da minissérie apropriaram-se do contexto literário e das características de Maupassant para recriar as histórias sob outro ponto de vista. Mesmo com as modificações na história, como as condensações e inclusões realizadas, o que faz parte do próprio ato de adaptar, as adapta-
ções foram capazes de transpor a “aura” de Maupassant, todo o universo que envolve a sua obra.
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Canção do Medo de Agosto Laís Ferreira
Às vésperas das grandes viagens, sempre se avistam: uma casa cujo jardim segue pleno de rosas amarelas, um pedaço de grama ainda intocado pelo tempo, uma foto sob a gaveta mais amarelada que a flor.
Todas as preciosidades, porém, não dizem nada sobre o ruído a crescer no poço existente em cada olho, tornado outra vez ingênuo como todas as palavras, as quais nada dizem sobre todo verbo ou nome incapaz de ainda antecipar o que será do tempo,
do corpo outra vez mudo e expatriado na aurora onde não há outra luz ou amparo maior no campo em que estão teus pés outras vez soltos no barro, essa matéria infinita da criação da vida e da morte e também de casas nos cantos mais pobres e longes.
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Haikai Matuyama
ler um haikai leva o tempo de um bocejo
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Robert Galbraith, a nova faceta de J.K. Rowling Luiza Herrera Braga
Após o grande sucesso da série Harry Potter, a editora Rocco agora aposta em uma nova série de mistério. Publicado tanto no Brasil quanto na GrãBretanha em 2014, o livro O Bicho da Seda1 conta o desaparecimento de Owen Quine, escritor medíocre, endividado e de nenhum sucesso, mistério desvendado pelo detetive Cormoran Strike. A história, assim como o pseudônimo Robert Galbraith, parece ser uma tentativa de J.K. Rowling de atrair um público maduro e se libertar da imagem de escritora juvenil, perpetuada por sua série anterior. Aqui, Rowling buscou criar uma obra que dificilmente teria chances de ser recusada pelo público, uma vez que usou um tema já aclamado pelos leitores e que contém uma estrutura básica comum de emredo, um mistério no qual o desenrolar se dá através de pistas, podendo ter como única tentativa ousada de mudança a criação de personagens, que se mostram mais caricaturados, cômicos, do que é costumeiro em romances policiais. Em “O Mito do Superman”, Umberto Eco defende que há enredos que já possuem uma estrutu-
ra pré-concebida, e o romance policial, ao menos o do tipo que Eco considera tradicional, é um deles: “do delito à descoberta, através da cadeia das deduções”2. De fato, isso ocorre neste enredo, assim como um reflexo do esquematismo atinge os outros aspectos da obra: “Não se trata apenas de um esquematismo na ordem do plot, mas de um esquematismo estável dos próprios sentimentos e atitudes psicológicas” 3. Essas duas passagens exprimem bem a relação entre personagem e enredo na obra, ou seja, a forma como estes são criados baseados em moldes préconcebidos e como se relacionam no decorrer da produção. De início, no tédio cotidiano e vivendo na Londres atual, na Denmark Street, sem especificação de número, localizada a poucos quilômetros da Baker Street, moradia de Sherlock Holmes, Strike divide o endereço entre casa e escritório, sendo o segundo procurado principalmente por figurões em busca de elementos favoráveis para um divórcio auspicioso. Essa movimentação é frutífera para os ne-
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GALBRAITH, Robert. O Bicho da Seda. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2014. ECO, Umberto. “O mito do Superman”, em: Apocalípticos e integrados. São Perspectiva, 2004, p. 265. 3 Idem 2
Paulo:
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gócios, porém entediante, uma vez que Strike sempre vê o mesmo desenrolar de histórias iguais até que Leonora Quine o procura. Cada capítulo é resumido logo no início por meio de epígrafes e a história é contada por um narrador em terceira pessoa e onisciente, que sabe e narra os fatos e pensamentos das personagens; a única coisa que o narrador não nos revela são as pistas para o desvelamento do mistério. Este talvez seja o elemento mais fundamental que faz de o Bicho da Seda um romance de mistério: manter as pistas e o processo de desvendar o enigma em suspenso, fazendo com que a leitura prossiga sem esgotamento. O ponto cego da leitura é mantido por artifícios para desviar a atenção do leitor: a antiga história familiar e amorosa do detetive, seus hábitos de higiene e a história pessoal de sua assistente. Além disso, a possibilidade de que mais de uma pessoa possa ser o assassino é sustentada pela maneira como a narrativa apresenta os desafetos de Quine. O estratagema é bem montado e causa surpresa ao final. O outro elemento dessa estrutura de enredo encontra-se na construção subjetiva e psicológica das personagens que precisam de algo que as façam parecer reais e compatíveis com o
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Idem, p. 266
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mundo do leitor, trazendo ao livro um reflexo de. Segundo Eco, nesse tipo de romance a caracterização das personagens por suas atitudes implica na introdução contínua, por parte do autor, de “uma série de conotações (por exemplo, as características do policial e do seu entourage imediato) tais que sua ocorrência, em cada estória, seja essencial para sua aprazibilidade” 4. Essa marca, que a autora leva para todas as personagens, em proporções variadas, é um recurso que Rowling executa com maestria, utilizando um método que cria a familiaridade do leitor com o personagem a partir de seus traços caricaturais ou cômicos. Assim como Sherlock Holmes, Cormoran Strike é um homem que, além de possuir um nome que provoca estranhamento, é recluso e introspectivo ao extremo, nunca tendo dúvidas quanto a suas opiniões. Dono de uma mente quase matemática, seus únicos pontos fracos aparentes são uma perna que teve a parte inferior amputada, sequela da guerra, e sua incapacidade de socialização, a qual é evidente pela igual inaptidão de se envolver com os próprios sobrinhos, revelando o quão inviável é a vida familiar no ambiente, estilo de vida e personalidade da personagem.
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Contudo, essa caracterestica se contrapõe ao fato de que é alguém capaz de se preocupar com as pessoas que o rodeiam. Tudo isso, somado ao histórico familiar que, como foi dito antes, tem a intenção de desviar a atenção do leitor da aquisição das pistas, reforçam o estereótipo do personagem criado para vencer, apesar das circunstâncias. Esse elemento do protagonista vencedor também reforça a familiaridade do leitor e a ideia de estrutura pré-concebida: a fé de que o detetive particular sempre superará a polícia em uma investigação, coisa que não raro encontramos nas histórias do detetive Holmes. O fato de o herói possuir a sequela da guerra e sua dificuldade de se relacionar com as pessoas traz outro elemento que não é incomum nos enredos policiais: a presença de um assistente, aqui sendo ela representada por Robin, uma moça astuta, bonita e gentil e que necessita de um emprego, além de ser hábil motorista, característica indispensável a uma pessoa com movimentos limitados. Tudo isso comporta a sensação de combinação das personagens, assim culminando em outro estereótipo: o da assistente e chefe que, mais cedo ou mais tarde, se sentirão atraídos um pelo outro. Essa atração, por hora, vem disfarçada de admiração mútua, além do impedimento clássico para a apro-
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ximação entre eles encarnada no noivo de Robin, um rapaz que ela namora há mais de dez anos. Todavia, quanto maior a admiração pelo chefe e seu envolvimento no trabalho, num movimento oposto, mais distante a moça se vê de seu casamento, fator que reforça a sensação de que a atração entre o detetive e a assistente será inevitável em uma próxima história. É, portanto, o recurso ao estereótipo e à caricatura que permitem a familiaridade do leitor e a verossimilhança da personagem: Cormoran Strike possui uma personalidade inegável, ele é orgulhoso, inteligente e perseverante, transita entre a tendência solitária do homem de pensamento e a preocupação do membro de algum núcleo familiar. Algumas
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vezes chega à beira da arrogância, sendo por vezes uma tática para conseguir informações, algumas das quais só lhe são confidenciadas por ser justamente ele quem as procura. Até mesmo é torcedor de um clube de futebol desde tempos de juventude. A autora não parece deixar dúvidas de que a criação da personagem detetive foi feita para que ele combinasse com o desenrolar da história. É um homem honesto que, tendo a capacidade de relacionamentos interpessoais limitada, compensa a deficiência com o pensamento lógico, não permitindo a existência de problemas para perceber a inocência de um suspeito, mesmo quando as pistas da polícia vão contra sua inocência, principalmente quando a cliente em questão é Leonora, uma mulher cuja marca de sua personalidade é ser excêntrica e antiquada, além de não parecer ter senso do perigo que a envolve por falar tudo o que pensa. Todas essas características emergem juntas e sempre em situações que levam o leitor ao riso. Contudo, Leonora dedica-se exclusivamente à filha especial, Orlando, única razão pela qual a preocupa a ideia de ser presa. Esta moça, que além de ser indispensável na solução do caso de desaparecimento que resulta em assassinato premeditado, é a personagem mais serena de todo o enredo e a que mais compreende os fatos
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que ocorrem, talvez pela própria simplicidade com que lida com o desaparecimento e morte do pai, bem como descobrir que a assassina é uma pessoa próxima à família. Além disso, essa personagem possui algumas das mais interessantes passagens do livro pela forma curiosa como Rowling a criou: a personagem que deveria ser a mais afetada pelo crime é a que lida melhor com seu desfecho, além do fato de que sua deficiência mental não a torna menos capaz de perceber o que acontece ao seu redor. Essa ausência de fragilidade aparente, a dualidade entre deficiência retardatória e plena compreensão da personagem, pode ser sua característica mais importante. Rowling também optou por trabalhar o ambiente. Em geral, é cinzento como Londres tem a característica de ser, a começar pelo próprio escritório e apartamento de Strike, que são descritos como apertados, tanto pelo espaço físico em si como pelo tamanho anormal do morador, mais alto que a maioria das pessoas e com aspecto de pugilista. Contudo, esse cinza vai se intensificando. A todo o instante os investigadores se encontram em lugares horríveis, alguns até com algumas características compatíveis com as de pesadelos, que podem ser bem percebidas na cena do crime em que finalmente Strike encontra Quine. Essa obscuridade de ambiente pode ser interpretada
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de duas formas: tanto como um recurso a mais do autor de romances policiais para reforçar a ideia de suspense e repulsa, como para refletir a percepção da personagem sobre o caso e a própria forma em que ela se encontra envolvida na trama. Aqui, é curiosa a participação fundamental do cenário na construção da estrutura de romance policial como mais um aspecto para uma conclusão que não permite partes em aberto. Ao fim da obra, parece que a autora produziu aquilo que pretendia: uma nova série para um público mais maduro, com personagens que acompanham a vida desse público, com trabalho, aflições e vícios diferentes da plateia juvenil para quem Rowling escreveu por tanto tempo. Apesar da caricaturização das personagens, esse fato não influencia o funcionamento da obra, tendo em vista que é parte constituinte deste enredo a fim de trazer leveza ao ambiente escuro, hostil e denso que o cerca.
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Sertão do Rosa Rodrigo de Faria Sertão Tão grande de rosas veredas Verdes sertanejas Rosadas e amaciadas Erudita robustez Que transcreve e transpira Caminhos em pó Vermelho cerrado Caminhos longos Caminhos compridos Caminhos secos João e Guimarães Caminhos distantes Andantes Caminhantes Arbusto grosso Gente dura Que dura Perdura Insiste Persiste E finge solidão Rosas Lírios Delírios Um pranto Silêncio da noite Mato escuro Rio transparente Enchente? Tocaia Perigo que ensaia Escondido Enfurecido na brisa quente No povoado carente Longe Distante Sertão errante Delirante
Mirante Em cada Rosa Uma prosa Em cada João Um facão Um único Guimarães Sertão intransigente Lua iluminante Diamantes Brilhantes ao sol ardente Minas diamantinas Amantes Na serra No Serro No grande Chico Curvelo Destinos e entreveros O poeta em seu novelo Letra e palavra Desejo Sonho e pesadelo Sonhado Sertanejado Construção letrada Almejada Vereda vivenciada Caminhada, rosa rosada Como a rosa do sertão Como o Sertão do Rosa
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Leia antes de usar Germana Zanettini
não, aqui não há lugares reservados [de antemão já lhe adianto: nem adianta olhar para os lados] o ambiente não é climatizado os assentos não são flutuantes e máscaras de oxigênio não cairão sobre suas cabeças para sua segurança e conveniência informamos que a vida não vem equipada com saídas de emergência
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Uma leitura de As Sete Irmãs - Maia, romance entre épocas Júlia Elisa Marques Martins
Não é de hoje que se podem encontrar narrativas que se passam em mais de uma época, principalmente quando se trata de uma história de amor. No universo televisivo brasileiro contamos com a novela de Lauro Cezar Muniz, O Casarão, exibida pela Rede Globo em 1976, a qual apresenta a saga da família Leme (parte da elite cafeeira) por cinco gerações, narradas em três épocas distintas (1900-1910; 1926-1936; 1976). A trama principal é a história de amor entre Carolina (neta de Deodato Leme) e João Maciel (talentoso artista plástico), combatida pela família da moça, que a pressiona a casarse com Atílio (comerciante com carreira política ascendente). “Esse período marca o início da decadência da família, cuja fortuna sofre um abalo com a crise econômica mundial de 1 1929”. É interessante perceber que, depois de quase quarenta anos, a história clichê de amor proibido se repete em um romance da autora Lucinda Riley que, na tentativa de produzir uma história de su-
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cesso que se passa em duas épocas diferentes - 1928 e 2007 - começa a escrever uma série de sete livros intitulando o primeiro As Sete Irmãs, que, como a própria autora o descreve, é livremente inspirado na mitologia das Plêiades. Segundo a mitologia grega, as filhas de Atlas e Pleione foram raptadas por Busíris, Rei do Egito, e Hércules as libertou. Contudo, Órion, fascinado pela beleza das irmãs, começou a persegui-las e, para se libertarem dele, foram transformadas em estrelas. As estrelas que receberam os nomes das filhas de Atlas e Pleione (Maia, Alcyone, Asterope, Celeano, Taugette, Electra e Merope) formam o grupo de estrelas mais próximo à Terra, podendo ser visto a olho nu e, por esse motivo, foi conhecido por diversas civilizações. Além da história mitológica das Plêiades, Lucinda Riley se vale de um outro artifício no qual, antes do início do primeiro capítulo nos deparamos com Maia
22 de junho de 2007 Primeiro Quarto 13; 16; 21.
NÉIA, Lucas Martins. O Casarão, de Lauro César Muniz: genealogia de uma telenovela experimental. 2015. Disponível em: http://www.academia.edu <acesso em: 01/05/2015>
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Além da data e a fase da lua (referindo-se o “primeiro quarto” à lua crescente), não é possível, com a leitura da obra, entender o que os números 13; 16; 21 significam, mas, por e-mail em 6 de fevereiro de 2015 -, a autora, afirmou que eles referemse à posição da lua em 22 de junho de 2007. Ainda que Lucinda Riley tenha tido o trabalho de dar essas informações sobre a lua nas datas em questão, isso nada tem de relevante para a história, assim como a lenda das Plêiades não tem relação alguma com este primeiro volume.
As sete irmãs - Maia conta a história da primeira de seis meninas adotadas por Pa Salt, um homem rico que viaja o mundo a negócios. Neste primeiro volume não se sabe muito ainda sobre o pai adotivo de Maia, uma tradutora de 33 anos que ainda vive na casa de seu pai, em Atlantis - um castelo isolado às margens do Lago Léman. Através de uma carta deixada por Pa Salt e coordenadas gravadas em um dos anéis de uma Esfera Armilar, Maia descobre que nasceu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, então decide investigar suas origens. Logo nessa primeira parte do livro podemos notar um deslize na construção da verossimilhança, uma vez que Maia com doze anos já tinha boas noções de grego e com trinta e três anos levou as pri-
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meiras horas da madrugada para traduzir seis frases que estavam gravadas na Esfera Armilar. Apesar de a vinda para o Brasil não ser um plano próximo nas ideias da moça, ela se vê pressionada pelo anúncio da chegada inesperada de Zed, antigo namorado da tradutora na época da faculdade. Ao chegar ao Rio de Janeiro, Maia é ajudada por Floriano - um escritor que tinha suas obras traduzidas pela moça e que, estranhamente, prefere ser guia turístico a dar aulas de história - aqui revela-se mais um ponto fraco na história, já que Floriano é formado em história e já tinha suas obras traduzidas, mas ainda precisava ser guia turístico para complementar a renda - que a leva até a Casa das Orquídeas (onde a família biológica de Maia viveu, e onde ainda vive sua avó) e lá encontram a cuidadora de Beatriz (avó de Maia), Yara, que entrega as cartas de Izabela (bisavó de Maia) com pretexto de que Maia precisa primeiro conhecer a história de sua família para depois conhecer/compreender a história de seus pais. Com a leitura das cartas de Izabela, Maia passa a conhecer a história de amor vivido por sua bisavó. É em Paris que Izabela é apresentada, por Heitor da Silva Costa, a Laurent Brouilly, um jovem artista e ajudante de Paul
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Landowski, e se apaixona por ele. A história do amor proibido entre Laurent e Izabela é circundada pela elaboração do Cristo - o que dá um toque histórico, mas acaba deixando a história icônica demais, uma vez que falar do país se resume a falar do Rio de Janeiro, e falar do Rio de Janeiro se resume a falar do Cristo Redentor. Com isso, Riley se exime de construir o realismo no detalhe, no cotidiano, uma vez que se atém mais em tornar verossímil a história da construção do Cristo do que tornar a história de Maia e Izabela verossímeis.
O jovem ajudante de Landowski decide fazer uma escultura de Izabela - isso serve de pretexto para vê-la com frequência e em um desses dias a moça encontra um garoto sujo e doente no jardim do ateliê. Após acolher e cuidar do menino, este jura nunca se esquecer do que ela fez por ele. Com o primeiro volume não é possível saber se este garoto possui alguma relevância a mais na história, mas é valido o palpite de que ele pode ter a ver com - ou ser Pa Salt, este ainda com o passado nebuloso para suas filhas e para o leitor.
Mesmo usando elementos históricos - como os nomes reais dos responsáveis pela construção do Cristo Redentor (Heitor da Silva Costa e Paul Landowski) Lucinda Riley situa mal - ou, no mínimo, de maneira duvidosa - as personagens reais do passado, vêse pela passagem (p.234) em que Izabela e sua amiga, Margarida, encontram James Joice - mais um detalhe icônico demais - com o manuscrito de Finnegans Wake, o qual já estava escrevendo há seis anos; esse livro só foi publicado em 1939, e Joice realmente levou dezesseis anos para terminar e publicar Finnegans Wake. Contudo, é improvável que Margarida soubesse o título do livro que ele estaria escrevendo.
Depois de recusar a proposta de Laurent para ficar na França, Izabela retorna para o Brasil e casa-se com seu noivo, Gustavo Aires de Cabral, por pressão de sua família. Há alguns elementos que contribuem para que o leitor torça pelo romance entre Izabela e Laurent, como o fato de Gustavo começar a beber e a passar mais horas no clube com os amigos do que em casa com a família; e Luiza, mãe de Gustavo, ser uma mulher amarga e implicante. Um outro deslize pode ser percebido quando, com a crise do café, Bonifácio perde todos os seus bens e dinheiro e recebe ajuda financeira dos Aires de Cabral, uma vez que a família já estava falida há anos.
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A página 315 do livro termina com Yara dizendo a Maia que iria contar o que sua mãe, Loen um nome improvável para uma escrava brasileira -, disse que aconteceu com Izabela nos dezoito meses seguintes - após seu retorno ao Brasil -, contudo um capítulo depois, o livro mostra a vida de Laurent a partir de novembro de 1928, em Paris. A não ser que Loen se correspondesse com Laurent em segredo - o que é muito pouco provável - ou que Laurent tenha contado o que aconteceu com ele a Izabela, quando veio para o Brasil, e a moça contado para Loen - o que seria duvidoso visto a quantidade de detalhes que o amado de Izabela teria que ter dado a ela, e ela a sua amiga, para completar as sete páginas e meia -, é pouco provável que a mãe de Yara tivesse tido essas informações. Talvez se Lucinda Riley tivesse optado por não transformar as cartas de Izabela em narrativa e as tivesse mantido em sua forma original, o resultado teria sido melhor e não teria pecado em detalhes como este. Quando a história de Maia chega ao fim, encontramos o início do primeiro capítulo do segundo livro que contará sobre a segunda irmã, Ally. Para a sur-
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presa - ou não - do leitor a última página dá a entender, após uma ligação misteriosa, que Pa Salt não está morto. Este primeiro volume funciona bem apesar de pecar em muitos detalhes importantes - como atrativo para os próximos da série, uma vez que muitas questões levantadas não foram ainda resolvidas por Maia e suas irmãs, como, por exemplo, a origem e história de Pa Salt e quem seria a última irmã nunca encontrada. Contudo, o fato de a autora não conseguir amarrar tudo o que ela propõe nas duas histórias faz com que a qualidade da narrativa caia. Segundo Umberto Eco, é preciso que haja em uma obra uma relação de coerência, não só entre os fatos narrados, mas entre os fatos e os personagens, o que diz respeito aos problemas apontados acima: “(...)percebemos por que Os Três Mosqueteiros não são verdadeiramente uma obra de arte: malgrado o aprazível suceder-se de eventos narrados, faltalhes justamente uma condição de “sistema”, que ligue, em relações estruturais, difícilmente alteráveis, o nível do plot ao da descrição caracterológica e estes dois
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ao nível linguístico, e unifique o todo, exatamente, resolvendo-o num “modo de formar” que se manifeste como estruturalmente semelhante em todos os níveis - de modo que o leitor crê reconhecer-se na personagem típica, mas com efeito se reconhece na obra inteira, na personalidade que nela se declara, na conjuntura histórica, social, cultural de que ela se faz “modelo”.2
Isso não acontece neste primeiro volume de As sete irmãs, uma vez que, como já apontado anteriormente, há desconexão em vários pontos da narrativa, como o fato de que, embora o romance de Laurent e Izabela ocupe um número significativo de páginas o livro, não é claro o motivo pelo qual Maia precisa antes saber da história de sua bisavó para depois saber a de seus pais , principalmente pelo fato de a história de Izabela não ter ligação alguma com a de Cristina, mãe de Maia. Essa parte mal amarrada da narração nos permite perceber que a história de Maia é apenas um pretexto para que a história de Izabela seja contada.
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ECO, Umberto. “O mito Perspectiva, 2004, p. 265.
do
Superman”,
Retomando a comparação inicial feita com O Casarão, certamente muitas diferenças entre as obras de Lucinda Riley e de Lauro Cezar Muniz também podem ser apontadas. Uma vez que se trata de um romance e uma telenovela, a segunda pode ter, em certas situações, recursos áudiovisuais favoráveis para a construção da trama em diferentes épocas. A respeito dessa construção, Lauro César Muniz diz: Para envolver o telespectador, era importante essa unidade, uma unidade temática. Se em determi-
em:
Apocalípticos e integrados. São Paulo:
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nado capítulo o tema tratado era o comportamento feminino diante do homem, eu mostrava esse comportamento nas três épocas. Havia uma clara ligação temática e visual de cada uma das épocas: eu poderia abrir o capítulo em 1926, pular para atualidade, 1976 e voltar para 1910. Sem insistir na mesma ordem. Era uma colcha de retalhos, mas com os retalhos muito bem unidos, não havia uma desorganização estrutural. Por exemplo, uma personagem abria uma porta na década de 1920 e do outro lado, surgia a mesma personagem quarenta anos mais velha, na atualidade. Carolina abria uma porta em 1976 para passar para outro cômodo, e quando entrava, era uma jovem, outra atriz, em 1926 ou 1930, fazendo alguma coisa que complementasse alguma atitude do presente, muitas vezes dentro do mesmo espírito, pois era a mesma época.3
Ao relacionar O Casarão com A Moratória (texto teatral de Jorge Andrade, escrito em 1954) a primeira recebeu influência da
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segunda -, Lucas Martins Néia cita Sábato Magaldi e Elizabeth Azevedo: A priori, partindo da semelhança entre as estruturas dramáticas das obras, pode-se dizer que, em ambas, “o entrosamento estrutural dos planos alicerça [...] a unidade e marca as características as personagens” (MAGALDI, 2001, p.232233). Desta forma, tanto Jorge quanto Lauro procuravam “redes-cobrir o passado e repensá-lo nos termos de sua própria condição presente e do estágio de desenvolvimento em que se encontrava a sociedade brasileira” (AZEVEDO, 2001, p. 97) - adiante, observar-se-á que a década de 1970 foi o período no qual a teledramaturgia brasileira mais se empenhou em apresentar propostas sociais e dialogar com seu tempo/espaço.4
Levando em conta os argumentos propostos acima, é possível concluir que o novo best seller de Lucinda Riley, apesar de propor com ousadia a narração de histórias em épocas diferentes,
BASBAUM, Hersch W. Lauro César Muniz Solta o Verbo. Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010, p.168 4 NÉIA, Lucas Martins. O Casarão, de Lauro César Muniz: genealogia de uma telenovela experimental. 2015, p. 4. Disponível em: http://www.academia.edu <acesso em: 01/05/2015>
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não consegue de fato realizá-la de maneira bem. As obras de Lucinda Riley e Lauro César Muniz possuem até semelhanças em parte do enredo - como o fato de João Maciel esculpir Carolina e Laurent também o fazer com Izabela; como a crise do café ter marcado o início da decadência da família da Izabela e da de Carolina e ambas terem se casado com um homem que não amavam, mas que era aprovado por suas famílias -, além da narração de mais de uma época. Porém, O Casarão se sobressai ao primeiro volume de As Sete Irmãs, de maneira que o passado e o presente estão conectados de melhor forma no primeiro. Além disso, as personagens são mais bem construídas e a telenovela se preocupa em evidenciar e dialogar com problemas sociais brasileiros. Contudo, é de se levar em conta o fato de As sete irmãs - Maia já ter passado os quatro milhões de cópias vendidas. Ou seja, se a autora errou em muitos momentos, acertou em muitos outros, uma vez que o intuito era de que a série de livros se tornasse best seller. Espera-se agora que a autora possa manter o leitor igualmente ou mais interessado nos próximos volumes que contará a história de cada uma das irmãs de Maia.
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O dia em que teus olhos tombaram sobre a Terra Gabriela Nascimento Ananias
era teu aquele olho gigante tombado na terra duvidei se eram pernas ou raízes os ramos que dele despontavam e fincavam a superfície se pernas, não surpreenderia a tua visão realmente alcança e caminha toda a terra se raízes, muito menos sempre desconfiei que, inda mais que os de Tereza, teus olhos eram muito mais antigos que o restante do corpo
então debruçado no gramado dele decorriam pedras que na minha ingênua certeza reconheci mares incrustrados na terra seca o mundo ele se estendeu a partir do rolamento dos teus olhos e o mar se expandiu ele se abriu quando tombaram por sobre a Terra teus olhos.
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Ausência Rodrigo de Faria
Ausência presente no(na) sol(idão) que ilumina a janela. Em outro gesto procura o sol percebe que a noite não findará e o frio permanecerá.
E lá fora a cidade já não existe, Insiste, mas a sede não é simples alucinação é Ausência (in)existência de si.
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A QUEDA DE PENTEU: OS ESTÁGIOS RITUAIS DO SACRIFÍCIO 1 DIONISÍACO Lidiana Garcia Resumo: O artigo tem por objetivos analisar os episódios quatro e cinco da tragédia As Bacantes, de Eurípides, e investigar os elementos míticorituais dionisíacos representados nessas seções da tragédia. Tais elementos fornecem subsídios para se inferir que a queda trágica do rei Penteu obedece aos estágios rituais do sacrifício dionisíaco. Na tragédia, Dioniso possuiu Penteu e o enlouqueceu, consagrando-o ao rito de sacrifício por uma investidura: o jovem rei, antes da morte, vestiu um alongado peplos (túnica feminina), a pele de corça, a mítra (turbante), e carregou o tirso – as insígnias dionisíacas. Tal conduta está de acordo com as práticas de iniciação nos mistérios báquicos. Para tal pesquisa, utiliza-se a principal bibliografia de análise desta tragédia, salientando-se os estudos referenciais dos helenistas Dodds (1986) e Winnington-Ingram (2003). Para apoiar a compreensão das alusões mítico-rituais da religião dionisíaca, utiliza-se o estudo de W. Burkert (1993). O artigo divide-se em duas partes: (i) análise do quarto episódio, quando Penteu aparece vestido como bacante e possuído pela manía2 dionisíaca; (ii) análise do quinto episódio, quando o mensageiro chega a Tebas para anunciar a morte trágica do rei Penteu. Nessas partes, são realizadas a interpretação dos respectivos episódios, e a investigação dos elementos mítico-rituais representados na tragédia.
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Introdução A tragédia As Bacantes foi escrita por Eurípides, o terceiro e último dos grandes trágicos consagrados na Grécia. A peça foi escrita durante a estadia de Eurípides na Macedônia, quando, em 408 a.C, ele deixou Atenas para viver na corte do rei macedônio Arquelau, em Pela. A obra foi representada pela primeira vez em Atenas no ano de 405 a.C., um ano após a morte do tragediógrafo. O título As Bacantes significa “mulheres adoradoras do deus Bákkhos”, e a tragédia dramatiza o mito de introdução do culto de Dioniso em Tebas, cidade da Beócia. A tragédia escrita por Eurípides contém diversas alusões mítico-rituais à religião dionisíaca, apresentando a natureza do culto dionisíaco em antagonismo com a ordem social e os valores morais defendidos pelo rei tebano Penteu. As Bacantes narra a história de Dioniso de acordo com o mito grego de adesão ao deus: Dioniso é filho de Zeus e da princesa tebana Sêmele, filha de Cadmo. Entretanto, por mais que Dioniso seja filho do deus supremo, as irmãs de Sêmele não creem no nascimento divino do sobrinho.
Sendo assim, a família real não reconhece Dioniso como deus e maldiz os cultos dionisíacos. É por esse motivo que Dioniso planeja uma vingança contra a família real tebana, com o intuito de comprovar a sua divindade e estabelecer os seus ritos em Tebas. Para cumprir tais propósitos, Dioniso, de acordo com a sua phýsis3, enlouqueceu todas as mulheres tebanas, fazendo-as abandonar as tarefas domésticas e transformando-as em bacantes, ou seja, em adoradoras dionisíacas. Entre as mulheres convertidas estão Ágave, mãe do rei Penteu, Autônoe e Ino – as tias sacrílegas de Dioniso. I. Quarto episódio Na tragédia, Dioniso aparece em Tebas transfigurado de sacerdote dionisíaco, com o intuito de disseminar a sua religião em terras gregas. No contexto dos mistérios dionisíacos, além das mulheres, havia homens que também podiam adorar ao deus: nas Bacantes, o líder do thíasos de adoração era um homem (o próprio deus) que afirmava ter recebido os órgia4 de Dioniso.
Este artigo é parte da monografia Dioniso nas Bacantes: uma análise interpretativa da tragédia e das representações mítico-rituais da religião dionisíaca (2014), desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. Flávio Ribeiro de Oliveira. 2 “Loucura, entusiasmo, frenesi inspirado” pela experiência dionisíaca nos ritos. (Liddell & Scott. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1079). 3 Natureza, caráter (Ibidem, p. 1964). 4 Práticas de iniciação, cultos secretos (Ibidem, p. 1246).
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Segundo Burkert5, o dever desse adorador era mostrar os mistérios báquicos e transmitilos às outras pessoas que estivessem dispostas a adorar ao deus. Mas, esse processo era secreto, e aquele que não se submetia aos bakkheía não podia ter conhecimento sobre o ritual. Nesse sentido, ainda 6 segundo Burkert , o mito de sublevação das mulheres, retratado nas Bacantes, mistura-se com as práticas rituais secretas dos mistérios, nos quais as celebrações eram indiferentes ao sexo dos participantes que consentiam em ser iniciados, e existiam bakkhoí ou mýstai (adeptos dos mistérios) de ambos os sexos. As iniciações báquicas não eram festividades públicas: a admissão dependia do desejo individual do adorador, e, quando aceito, o iniciado passava por um período de preparação, uma transmissão dos ritos sagrados, e, depois, uma integração no grupo dos iniciados. No fim do terceiro episódio, Dioniso revelou o seu plano de
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vingança7 contra Penteu: o deus irá enlouquecê-lo e o induzirá a vestir-se como bacante, guiando-o para a morte que será consumada através das mãos de sua própria mãe. Agora, no início do quarto episódio, Dioniso sai do palácio sozinho, após ajudar Penteu a vestir-se com os trajes femininos. O deus, então, chama o rei para que ele apareça e se mostre vestido como mulher, mais especificamente, como uma genuína bacante. Dioniso: Tu, tão pronto em ver o que ver é defeso, tu que persegues o que devias fugir, tu, Penteu, sai do palácio, vem mostrar-te a nossos olhos em figura de mulher – Bacante ou Mênade – espia de tua mãe e de suas companheiras! (v. 912-15).
A vingança de Dioniso está em prática: Penteu está completamente entregue aos planos cruéis de seu inimigo. O deus atrai o herói para o infortúnio, transformando-o em um adorador dionisíaco – a bacante que, anteriormente, o rei perseguia.
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica. Tradução de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 556. 6 Idem. 7 “Dioniso: (Para as Mênades, na orquestra) Mulheres! O homem caiu nas redes! Irá às Bacantes e com a morte expiará a culpa. Dioniso, é a tua vez! Longe não estás; punamo-lo. Primeiro, que uma branda mania se lhe aposse do espírito; que, se o senso o guarda, veste de mulher não quererá vestir; e vesti-la-á, se o perde. Será o ludíbrio de Tebas, seguindo-me pela cidade em figura de mulher, ele, terrível que era por suas ameaças de outrora. Mas a vestimenta lhe vestirei, que para o Hades há de levar, por sua própria mãe imolado. Aprenderá assim que o filho de Zeus, Dioniso, sendo para os homens o mais benigno dos deuses, também é o mais terrível”. (v. 848-59). A tradução das Bacantes, utilizada neste artigo, é de Eudoro de Sousa (2011).
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Segundo Dodds8, o rei aparece vestido como uma mênade, usando peruca, mítra9, khitón0, e carregando o tirso. De acordo com Foley1, ao tornar-se uma mênade, Penteu se insere no espaço característico de Dioniso, onde as diferenças entre homem e mulher, deus e humano, homem e besta, são perdidas. A mudança dos trajes de Penteu fez dele um adorador extático, como exige os rituais dionisíacos. Penteu: Olha! P ar e c e q u e e m d o b r o v e jo o sol, que em dobro vejo Tebas, a cidade das Se t e P o r t a s ! E t u , q ue m e c o n d u z e s , n ã o s e di r i a que mudaste em touro? Cornos te nasceram na fronte! Acaso fera não terias sido sempre? Que u m t o u r o t u é s a go r a . (v. 918-21).
Ao entrar em cena, Penteu está aturdido, pois sua visão está ambígua: ele pode ver dois sóis, duas Tebas e, o mais impressionante, vê o estrangeiro na figura de um touro. De acordo com Dodds2, nesse momento, o sacerdote dionisíaco revela-se para Penteu como mais do que um
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simples homem, e o rei, por sua vez, revela-se como uma criatura indefesa e manipulável, porém, cheia do poder dionisíaco que o faz capaz de ver o deus em sua verdadeira forma. Tal capacidade de ver a encarnação divina de Dioniso só foi possível porque o deus possuiu Penteu e vestiu nele os paramentos dos órgia dionisíacos. Já se sabe que a admissão na iniciação báquica dependia do desejo individual do adorador, deste modo, enquanto Penteu não aceitou se submeter aos ritos dionisíacos, vestindo e portando as insígnias do deus, a divindade de Dioniso permaneceu secreta aos olhos do rei. Mas, agora que ele se entregou ao poder do deus, ele pode, finalmente, enxergar o divino. Penteu, perplexo, vê que o estrangeiro possui chifres, e faz uma reflexão apropriada: “Acaso fera não terias sido sempre?”, e Dioniso responde: “agora estás olhando o que devias olhar” (v. 924). De acordo com Dodds3, a visão de Penteu não é uma fantasia embriagada, mas sim a epifania sinistra do deus em sua encarnação bestial. Agora, os olhos do rei estão aptos para
DODDS, E. R. Euripides Bacchae. Edited with Introduction and Commentary by E. R. Dodds. Nova York: Clarendon Press Oxford, 1986, p. 191-92. 9 Turbante (Liddell & Scott, op. cit., p. 1138). 10 Túnica (Ibidem, p. 1993). 11 FOLEY, H. P. The Masque of Dionysus. Transactions of the American Philological Association , v. 110, p. 113, 1980. 12 DODDS, op. cit., p. 192. 13 DODDS, op. cit., p. 193.
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enxergar Dioniso em sua verdadeira forma. Porém, é importante salientar que Penteu só pode ver a epifania do deus por intermédio da possessão dionisíaca, pois sem esse controle de Dioniso sobre a sua mente, ele jamais aceitaria enxergar a verdade (salienta-se, aqui, a hamartía4 do herói). Outro aspecto relevante é o rei não pode compreender o que a manifestação divina significa: Penteu continua a desconhecer a divindade de Dioniso. De acordo com Foley5, a habilidade de Penteu em ver somente um nível da realidade continua em seu estado de loucura. A visão do rei muda, e ele tem acesso à visão da divindade, indisponível para ele antes, mas tal fato não traz nenhum conhecimento ou revelação para o ímpio. Penteu não pode ver e controlar sua transformação, pelo contrário, o rei afirma emxergar uma imagem dupla do deus: uma besta com a face de um homem sorridente. Tal tipo de visão é impossível para uma pessoa em estado normal. A linguagem e a ação da peça demonstram a divindade do deus indiretamente e simbó-
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licamente, e nega que nós podemos ver Dioniso com a visão humana. O deus pode adquirir qualquer forma que desejar(v. 478), mas tal manifestação não é completamente visível aos olhos humanos. (...) Ele é aquele que pode sucessivamente aparecer como divindade, animal ou humano. Penteu define o mundo através de antíteses exclusivas e relações hierárquicas. Homem e mulher, por exemplo, são categorias rígidamente separadas (v. 822); cada sexo tem sua própria esfera (v. 217); um é subordinado ao outro (v. 786). Dioniso pode simultaneamente inverter e subverter as categorias culturais: a linguagem, os papéis dos sexos, as classes e as hierarquias políticas6.
Segundo Seaford7, muitos detalhes da experiência de Penteu derivam do ritual de iniciação mística. Um desses detalhes foi Penteu enxergar Dioniso como um touro.Na Antiguidade, acreditavase que Penteu nessa cena estava mentalmente perturbado ou bêbado, entretanto, o que Penteu vê é apropriado para um iniciado na religião dionisíaca. É importante salientar que aí Penteu está mais calmo e dócil do que nos episódios anteriores. Para Seaford18,
Ignorância, estupidez (Liddell & Scott, op. cit., p. 76). FOLEY, H. P. op. cit., p. 123. 6 Ibidem, p. 124. Minha tradução (inglês-português). 7 SEAFORD, R. Pentheus’ Vision: 918-22. The Classical Quarterly, New Series, v. 37, n. 1, p. 76, 1987. 8 Ibidem, p. 77. 5
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o estado da mente do rei está altamente anormal. Nesse estágio da peça, a perda da personalidade de Penteu pode estar associada ao travestismo, e sua anormal docilidade e percepção exótica da realidade podem estar associadas à iniciação báquica.
para o seu destino. Deste modo, Penteu não escuta ou não está interessado nas palavras de Dioniso, pois o rei está preocupado em avaliar o efeito de seu traje dionisíaco: Penteu demonstra completo fascínio pelas vestes femininas.
Penteu: Mas, dize-me, a quem de semblante me pareço? Os ares tenho de Ino, ou a figura de minha mãe Ágave? Dioniso: Em te vendo, a elas creio ver. Mas em que desalinho me chegas! Uma madeixa solta, que eu tão bem arranjara sobre a mitra! Penteu: Soltou-se quando, lá dentro, há pouco, em delírio agitava a cabeça. (v. 92530).
Penteu: E o tirso, como levá-lo para que me reconheçam por bacante? Na mão direita ou na mão esquerda? Dioniso: Ergue-o na mão direita. E do mesmo lado, ao mesmo tempo, levanta o pé. Ah, podes-te gabar de teu revoluído senso! (v. 94144).
Penteu se transformou, tanto na aparência quanto no comportamento, em um devoto dionisíaco. Dodds9 observa que, desde o verso 925, Penteu manteve a sua cabeça inclinada para trás, e, dentro do palácio, a agitou, em delírio dionisíaco. Tal conduta é a imitação da atitude típica de uma mênade em transe. Winnington-Ingram20 ressalta que nos versos acima Penteu não está mais interessado na aparência bestial do estrangeiro, pois ele não pode compreender o que aquela manifestação significa
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Penteu está, de fato, muito dedicado no seu empreendimento de se passar por bacante e espiar as mulheres frenéticas no monte Citeron: ele até deseja aprender a forma correta de portar o tirso. De acordo com Dodds 21 , aparentemente não existia regras específicas que explicavam o modo correto de carregar o tirso: pinturas em vasos mostram-no sendo carregado em ambas as mãos. Tal vara sagrada era para ser levantada e batida contra o chão, como relatado por Tirésias: “não cessarei de bater o solo com este tirso” (v. 188).
DODDS, op. cit., p. 194. WINNINGTON-INGRAM, R. P. Euripides and Dionysus an interpretation of the Bacchae . Londres: Paperbacks, 2003, p. 118. 21 DODDS, op. cit., p. 195. 20
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Penteu: Que achas? Não poderia até sobre os ombros carregar o Citeron inteiro e, com ele, as Bacantes? Dioniso: Decerto, se o quisesses! Há pouco tua mente sofria; agora tens aquela que devias ter. (...) Penteu: Já se me afigura vêlas, como aves entre moitas, do amor cativas... Dioniso: Por isso, não vais a espiá-las? Hás de apresálas – quem sabe? – se antes apresado não fores. (v. 94560).
Penteu começa a sentir o poder dionisíaco dentro de si sendo convertido em uma grandiosa força. É impossível negar a lascívia do rei por encontrar as bacantes em atividades sexuais, dentre elas a sua própria mãe. Dodds22 observa que Penteu sente todo o vigor que a adoração dionisíaca fornece aos seus adeptos. Entretanto, a aceitação do rei não é sincera, mas induzida e forçada por Dioniso; sendo assim, Penteu não é realmente um adorador, mas sim um sacrílego que está sendo punido. Deste modo, segundo Dodds23, sim um sacrílego que está sendo punido. Deste modo, segundo Dodds24, verdadeiramente insanos. Como Kraemer25 observou:
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Em muitos mitos da introdução do ritual de Dioniso, incluindo aquele representado pela peça de Eurípides, a reversão da asnidade e a insanidade predominam. Aqueles que estão seguros da divina loucura da possessão dionisíaca estão verdadeiramente sãos, emquanto aqueles que resistem à santa insanidade estão verdadeiramente insanos. Aqueles que aceitam o chamado do deus e se rendem à temporária possessão não sofrem nenhum dano, enquanto aqueles que lutam contra o deus invocam um segundo nível de possessão mais perigoso que o primeiro.
Em outras palavras, Dioniso possuiu Penteu, mas para o mal. Penteu: Vamos! Conduze-me através de Tebas, único varão que ousou tamanha empresa! Dioniso: Só tu! Que só tu por esta cidade te esforças. Assim te esperam combates dignos de ti. (v. 961-64).
Segundo Dodds26, a resposta de Dioniso a Penteu pode significar que o rei é como um pharmakós27, um bode expiatório, que expia os pecados de sua cida-
DODDS, op. cit., p. 195. Idem. 24 Idem. 25 KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus . The Harvard Theological Review, v. 72, n. 1/2, p. 67, 1979. (Minha tradução ingles-português). 26 DODDS, op. cit., p. 196. 27 Um sacrificado executado para a expiação ou purificação de pecados (Liddell & Scott. op. cit., p. 1917). 23
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cidade, sendo condenado à morte depois de ser ritualmente escarnecido e apedrejado. De acordo com Burkert28, entre os rituais de purificação, praticados pelos gregos, a expulsão do pharmakós era um rito particular, pois aparecia o ascrifício humano como possibilidade para a superação de uma crise. Em Atenas, durante a festa das Targélias, eram escolhidos dois homens, devido à sua particular repelência, que eram emfeitados com figos e depois expulsos da cidade a pedradas: desse modo, o povo estaria livre do mal, pois o expiava através da expulsão desses homens. Segundo Burkert29, a agressividade motivada por situações excepcionais de angústia era concentrada sobre um indivíduo marginal. A descarga coletiva da cólera, nutrida pelo desespero, e a consciência de se encontrarem do lado justo ou puro fazia com que os membros da comunidade se sentissem aliviados e protegidos após a expulsão do pharmakós. Burkert30 ainda salienta que a designação grega kathármos31 torna o processo ainda mais nítido, pois sugere que a comunidade estava se livrando, simplesmente, de uma sujidade. 28
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Alguns mitos mostram que o indivíduo rejeitado pode ser o rei: assim acontece com o rei Codro de Atenas, com o rei Édipo de Tebas e com o rei Toas de Lemnos. Também o rei Penteu, nas Bacantes, parece ser tratado como um pharmakós, expiando, com a própria vida, a asebeía32 da comunidade tebana. Dioniso: (...) Segue-me, pois. Como guia e salvador me tens. Outro te reconduzirá de volta... Penteu: Sim, minha mãe. Dioniso: Alvo serás de todos os olhares... Penteu: Por isso, vou. Dioniso: Retornarás carregado... Penteu: Delicioso trato! Dioniso: Nos braços de tua mãe... Penteu: De pompas me enches! (...) Bem as mereci. (v. 964-70).
Dioniso assegura a Penteu que logo ele estará entre as suas inimigas, e o rei não esconde a ansiedade para tal acontecimento. De acordo com Winnington33 Ingram , o deus compara a luta de Penteu com uma competição atlética, na qual o rei voltará com o triunfo de um vencedor. Porém, em suas promessas, Dioniso faz alusão ao sparagmós que Pen-
BURKERT, W. op. cit., p. 176. Ibidem, p. 177. 30 Ibidem, p. 178. 31 Limpeza, purificação, expiação da culpa (Liddell & Scott. op. cit., p. 850). 32 Impiedade, sacrilégio; falta de respeito/veneração com as coisas sagradas. (Ibidem, p. 255). 33 WINNINGTON-INGRAM, R. P. op. cit., p. 119. 29
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teu sofrerá nas mãos de sua própria mãe. Entretanto, o rei, excitado demais com a expectativa de seu retorno triunfal, não compreende as palavras do deus. Segundo Burkert34, em Mileto no século III a.C foi referido, em uma inscrição, o culto em honra a Diónysos Bakkheîos, no qual homens e mulheres são iniciados, e o ato culminante da dança dionisíaca era rasgar em pedaços e comer a carne crua de um animal – atos denominados sparagmós e omophagía respectivamente. Para Dodds35, tais ritos comemoravam o dia em que o infante Dioniso foi despedaçado e devorado pelos Titãs, em um dos mitos que se referem ao deus. A vítima habitual do sacrifício ritual dionisíaco era um touro, mas podiam ser também cabras ou víboras. Dodds considera que no sparagmós e na omophagía o deus era despedaçado e comido, na for34
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ma do animal sacrificado, pelo seu adorador, que acreditava adquirir os poderes vitais da natureza selvagem de Dioniso. Para Foley36, nos versos 96470, Dioniso se oferece para ser o escolta, ou pompos, do rei em seus “combates”. Para a autora, Eurípides marca os eventos da transformação de Penteu até o retorno de Ágave, com a cabeça do filho, de acordo com os três estágios de um ritual padrão: a pompé37, o agón38 e o kômos39. De acordo com a autora, esse padrão ritual da morte de Penteu é refletido, nas Bacantes, através: da escolta que Dioniso oferece ao rei para acompanhá-lo até o monte Citeron, procedimento que refletiria a prática da pompé: a condução de Penteu ao sacrifício; do agón, o combate travado por Penteu e pelas bacantes que resultará na morte do rei (v. 1063-1047); e, por fim, do kômos
Burkert, op. cit., p. 555. Dodds, op. cit., p. XVI-XVII 36 Foley, H. P. op. cit., p. 116-17. 37 Segundo Pickard-Cambridge (The Dramatic Festivals of Athens. Londres: Clarendon Press Oxford, 1953, p. 59), a pompé era uma procissão religiosa realizada no festival da Grande Dionísia, na qual os adoradores conduziam um touro para ser sacrificado no sagrado precinto de Dioniso. 38 Significa conflito, disputa ou competição. Na Grécia Antiga, tal conceito era utilizado em diversos contextos: com relação à tragédia grega, o agón deve ser compreendido como o conflito trágico expresso através do debate entre as personagens. Nas Bacantes, o conflito central está relacionado com a disputa entre o culto dionisíaco e o poder real (dois tipos diferentes de poder: o divino e o humano). Já no contexto do festival da Grande Dionísia, o agón consistia nas competições dramáticas, nos quais os poetas disputavam a posição das melhores tragédias e comédias. Por fim, no contexto dos Jogos Olímpicos, o agón consistia nas disputas atléticas. 39 Segundo Pickard-Cambridge (Dithyramb, Tragedy and Comedy. Londres: Clarendon Press Oxford, 1927, p. 251), o kômos, realizado na Grande Dionísia, consistia em uma procissão foliã, que ocorria após os agônes, e celebrava a vitória do poeta vencedor do concurso. No kômos, os foliões marchavam ou dançavam, cantando um cântido de vitória dedicado ao vencedor do concurso. 35
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realizado por Ágave em seu retorno triunfante (v. 11681257), após ter abatido o próprio filho39. A teoria de que a condução de Penteu para a morte reflete um padrão ritual é de George Thomson40, que encontrou o padrão pompé-agón-kômos nas Bacantes e nas iniciações rituais espartanas. Dioniso: Terrível, ó terrível que és, e a penas terríveis que vais! Glória acharás, escalando o céu. Estende teus braços, Ágave! Os braços estendei, ó filhas de Cadmo, estendei os braços a este jovem que vos levo a combater o grande combate... Mas o triunfador serei eu. Eu e Brômio. (971-76).
Penteu sai de cena e Dioniso, antes de deixar o palco, emite suas ordens às bacantes do Citeron. O deus ordena que Ágave e suas irmãs combatam o jovem que se aproximará delas. Segundo Dodds4, a lýsis, libertação da culpa através de ritos expiatórios42, está prestes a começar.
ra anunciar a morte de seu rei. Penteu, acompanhado pelo servo e pelo sacerdote dionisíaco, se dirigiu até o monte Citeron com o intuito de espiar as ações luxuriosas das bacantes. O mensageiro enfatiza o cuidado que tiveram para se aproximarem das mulheres sem serem vistos. Chegando ao bosque de pinhos, lá estavam elas, todas em castas atividades: coroando com hera os tirsos e entoando cantos báquicos (v. 1043-54). As bacantes, na comunhão dionisíaca, realizam serenas atividades. Entretanto, esse não era o comportamento que Penteu queria ver: o rei esperava encontrá-las em atividades sexuais. Porém, nem mesmo os inocentes labores das bacantes Penteu consegue enxergar: Mensageiro: Exclama, então, o desditoso Penteu, que não vira o feminino tropel: “Estrangeiro, do lugar em que estamos não enxergo as Mênades, nem seus afrontosos trabalhos! Mas grimpando no abeto altaneiro, sobre esta penha aprumado, decerto hei de ver as vergonhas que fazem”. (v. 1054-59).
II-Quinto episódio No quinto episódio, o mensageiro chega sozinho a Tebas pa-
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O rei sugere subir em um abeto para, sem ser visto, enxergar as ações libidinosas das
Ver a interpretação realizada por Foley (op. cit., p. 117-118, nota 16). Apud Foley, op. cit., p. 118, nota 16. 4 DODDS, op. cit., p. 197. 42 Liddell & Scott, op. cit., p. 1066. 40
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mulheres. Dodds43 acredita que Penteu está magicamente cego. De acordo com as práticas dos mistérios báquicos, aqueles que não se submetiam à iniciação não podiam ter conhecimento sobre os órgia dionisíacos. Nesse sentido, é adequado que Penteu não consiga enxergar as ações das bacantes, uma vez que o rei não se submeteu, voluntariamente, aos ritos dionisíacos: Penteu só vestiu os paramentos báquicos porque Dioniso possuiu a sua mente. Mensageiro: Do forasteiro, ó prodígio grande a que assisti, então! Pega a alta ramada de um pinheiro alterando-se para o céu, e ao solo negro o verga, o verga (...) com força que a dos mortais supera. E tendo, entre as frondes colocado Penteu, lentamente, (...) deixa que o tronco se alce, cuidando de que a montada o cavaleiro não desmonte, antes de a meta alcançar. Reto para o céu, o pinho endireitou as ramadas, levando meu senhor em seu dorso, e antes que descobrisse as Mênades, delas a descoberto ficou. (v. 106374).
O estrangeiro atende ao pedido de Penteu: coloca -o sobre
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o abeto para que ele espie melhor as bacantes. Mas o desejo do rei não foi satisfeito: Penteu ainda não vê as mulheres, porém elas já o viram. Dodds44 acredita que colocar Penteu sobre a árvore não foi invenção de Eurípides, mas parece ter sido um elemento tradicional do mito. Para o autor, tal comportamento pode ter sido, na origem, o reflexo de um ritual primitivo. Pausânias45 afirmou ter visto, em Corinto, duas estátuas de madeira, evidentemente antigas, que foram nomeadas Lýsios e Bákkheios. Tais estátuas tinham os rostos manchados com tinta vermelha. Diziase que as estátuas tinham sido feitas a partir da árvore em que Penteu se sentou, de acordo com a ordem dada pelo oráculo de Delfos aos coríntios: “tendo descoberto
aquela madeira, venerá-la igual a um deus”46. Para Frazer47, a descrição sugere que a vítima humana foi amarrada ou pendurada em um pinheiro antes de ser feita em pedaços. Mensageiro: Mal o vimos, lá no cimo escanchado, e a nossos olhos o estrangeiro sumido, do alto ressoa uma voz – que era a de Dioniso, sem dúvida: “Mulheres! O homem vos trago, que de vós escarnece, de mim e dos meus
DODDS, op. cit., p. 209. Idem. 45 Cf. Dodds, op. cit., p. 209. 46 Minha tradução (grego clássico-português). O trecho original é: ἀνευρόντας τὸ δένδρον ἐκεῖνο ἴσα τῷ θεῷ σέβειν (apud Dodds, 1986, p. 209). 47 Apud Dodds, 1986, p. 209. 44
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ritos! A ele! Puni-o!”Ainda falava, e um fogo divino rompia, ligando o céu à terra. (v. 1074-79).
No momento em que o estrangeiro desaparece, ouve-se a voz de Dioniso ordenando que as bacantes punam o ímpio que escarneceu do deus e dos ritos dionisíacos. Enquanto Dioniso falava, caía do céu um fogo divino que se unia com a terra. Segundo Dodds48, a luz sobrenatural pode acompanhar a epifania de qualquer deus, porém tais manifestações parecem ter sido especialmente associadas com o culto dionisíaco. No santuário de Dioniso no Parnaso49 aparecia a declaração “fogo espontâneo” 50 e, no santuário na Crastônia5, no leste da Macedônia, foi vista a declaração “grande brilho de fogo”52. Mensageiro: Silêncio no ar. Silêncio na folhagem do vale frondoso. Nem um só grito de fera se ouvia. (...) Claramente escutando que de Báquio era a voz, logo arremetem as filhas de Cadmo: velozes não menos que pombas voando, em acordado alvoroço acorrem – Ágave, mãe de Pen-
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teu, suas irmãs com ela, todas as Bacantes, torrentes e escarpas do vale transpõem de salto, no furor indômito que o deus lhes inspira. E eis que de súbito avistam o meu rei, lá no alto abeto postado! Logo um penedo escalam, à árvore fronteiro, uma chuva de pedras despedem, assaltam-no com ramos de pinho, arremessam outras pelos ares os tirsos, a Penteu, miserando alvo, sem que lhe acertem, tolhido de medo, mas alto demais para que a fúria o atinja. (v. 1084-98).
Chegou a hora de Penteu expiar, com a própria vida, a asebeía que cometeu contra Dioniso. O rei é tratado como se fosse um pharmakós: no início de seus tormentos, Penteu foi escarnecido por Dioniso, ao vestir-se como mulher, e agora é apedrejado pelas bacantes. O rei encontrará a morte após ser ritualmente escarnecido e apedrejado. O mensageiro descreve o extraordinário silêncio da natureza no momento em que Dioniso se manifestou: todos os seres selvagens reverenciaram a epifania do deus.
DODDS, E. R. op. cit, p. 213. Cf. Dodds, op. cit, p. 213. 49 Minha tradução (grego clássico-português). O trecho original é: αὐτόματον πῦρ (apud Dodds, 1986, p. 213. 5 Cf. Dodds, op. cit, p. 213. 52 Minha tradução (grego clássico-português). O trecho original é: μέγα σέλας πυρός (apud Dodds, 1986, p. 213. 48
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De acordo com Dodds53, o silêncio dos animais é a contrapartida da sua inquietação selvagem quando o deus se manifesta. A calma é a resposta tradicional da natureza a uma epifania divina. Mensageiro: E como da obra não chegam a cabo, Ágave exclama: “Acercai-vos em volta, ó Mênades, empunhai esse tronco, capturemos a aérea fera, para que os coros secretos do nosso deus revelar não possa!” Míriades de mãos se apoderam do pino, e do solo o arrancam! Do vértice, por terra cai vertiginosamente, soltando lamentos, Penteu, que bem próximo o fim sentia chegado. (v. 1098-104).
Quando Ágave cerca Penteu, ela enxerga no filho não só uma fera, mas também um espião que deseja ter conhecimento sobre os ritos secretos. Nota-se que, num primeiro momento, ela identificou a humanidade de Penteu, mas depois seu delírio tornou-se completo: ela só se referirá ao filho como se este fosse um filhote de leão. Ágave, enquanto uma sacerdotisa dionisíaca, deve realizar adequadamente o rito do sparagmós na fera e zelar para que os secretos órgia não sejam revelados aos ímpios. Por isso a mãe de Penteu age com fúria: ela
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DODDS, op. cit., 1986, p. 213. WINNINGTON-INGRAM, R. P. op. cit., p. 130. Idem.
honra e protege os ritos de Dioniso. De acordo com WinningtonIngram54, o discurso de Ágave tem grande interesse psicológico devido à confusão mental que revela. Embora seja identificado como um animal, Penteu é ainda capaz de revelar os mistérios dionisíacos: ele é considerado pela mãe como um animal e um espião. Tal duplicação de imagens é comum em sonhos e é nessa condição, onde a lógica está suspensa e o simbolismo reina, que se encontra o estado da mente de Ágave. Sob o domínio de Dioniso, ela deixou o pensamento racional para se guiar através do mundo primitivo da imagem sem a presença de consciência. Ainda segundo WinningtonIngram55, Penteu também se emcontra em situação semelhante: o rei, sob influência dionisíaca, tinha visto Dioniso como um homem tauricornudo. Tanto a mãe quanto o filho estão sob o efeito do mesmo feitiço e ambos chegarão ao momento de reconhecimento racional da realidade, porém tal reconhecimento chegará primeiro para Penteu: Mensageiro: Primeira sacrificadora, a mãe, a defronte dele se achega. Arremessando fora a mitra, para que a inditosa Ágave enfim o reco-
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nheça, Penteu o rosto da mãe acarinha, e lhe fala: “Mãe, sou eu. Sou teu fi-lho, Penteu, o que deste à luz no palácio de Equíon. Mãe de mim te apieda; teu filho, por erros seus, não queiras imolar”. (v. 1114-19).
No momento de seu sacrifício, Penteu retira a mítra com o intuito de ser reconhecido pela mãe – ato vão, pois Ágave continua possuída pela manía dionisíaca; mas, para Penteu tal ação tem um resultado: ao retirar o ornamento dionisíaco, ele pôde readquirir a sanidade. De acordo com Dodds56, Penteu morre lúcido e arrependido: junto com a mítra ritual, o jovem descartou a loucura que ele adquiriu quando a colocou. O arrependimento do rei deve ser considerado sincero e é fatal para a interpretação que o considera uma vítima inocente do fanatismo religioso. Segundo Dodds 57 , a declaração do rei exprime a premissa de que o delito de um indivíduo não pode justificar a violação do vínculo de sangue. Entretanto, Ágave, em seu delírio, não reconhece as leis da razão humana, e só respeita as leis de Dioniso que considera a vingança um ato justo.
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DODDS, op. cit., p. 216-17. Idem.
Mensageiro: Mas não o escuta ela, Ágave, de lábios espumantes e de olhos revoltos, desprovida de senso, de Baco possessa. De ambas as mãos lhe assegura o braço esquerdo, e com seu corpo em arco estendido, pés fincados no flanco do mísero, lho arranca da espádua, não com a própria força apenas, mas com aquela que em suas mãos um deus depôs. Do outro lado, com igual esforço se aplicava Ino, dilacerandolhe as carnes, e vinha depois Autônoe com as demais Bacantes todas. Era um rumor confuso, gemendo ele, com o último alento, gritando elas o clamor da fúria. (v. 111927).
A justiça de Dioniso foi feita a seu modo: de acordo com o ritual do sparagmós, Penteu foi a vítima ritual de sua mãe bacante. Penteu encontrou a morte de uma maneira muito semelhante a outras vítimas dionisíacas. No mito de Dioniso Zagreu, o próprio menino Dioniso foi feito em pedaços e devorado pelos Titãs, seguindo a lógica dos rituais do sparagmós e da omophagía. Também as três filhas enlouquecidas do rei Mínias de Orcômenos despedaçaram Hípaso, filho de Leucipe, uma das três princesas. A representação desses mitos nos ritos era realizada
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através do despedaçamento e consumo de filhotes de animais pelas mulheres adoradoras. Podese observar que Penteu não foi iniciado na religião dionisíaca, mas foi consagrado como a vítima ritual do culto a Dioniso.
Considerações Finais O presente artigo analisou os episódios quatro e cinco da tragédia As Bacantes, de Eurípides, e investigou a hipótese de que a morte do rei Penteu obedeceu aos estágios rituais do sacrifício dionisíaco. Os elementos da tradição ritual dionisíaca, representados nas Bacantes, constituem-se na possessão das mulheres tebanas, convertidas em bacantes, e na condução do rei Penteu à morte. Assim, o rei foi guiado para estágios rituais que deviam ser cumpridos antes de consagrá-lo ao sacrifício dionisíaco: Dioniso possuiu Penteu e o enlouqueceu, consagrando-o ao rito de sacrifício por uma invéstidura (as insígnias dionisíacas), de acordo com as práticas de iniciação nos mistérios dionisíacos. O estudo realizado demonstrou que As Bacantes é uma tragédia constituída por expressivos elementos que aludem aos mitos e
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práticas rituais do culto a Dioniso. Entretanto, é importante salientar que não se pode ter completa certeza se as representações mítico-rituais da religião dionisíaca, presente nas Bacantes, eram ou não praticadas na Hélade no tempo de Eurípides (século V a.C). Sendo assim, o que se pode afirmar é que As Bacantes é uma peça que dramatiza a introdução de uma nova religião na Grécia, apresentando ao seu público uma forma mais restrita do rito dionisíaco, aquele associado aos cultos de mistérios que eram praticados, em sua maioria, por mulheres denominadas bacantes. Dessa forma, a leitura e análise da tragédia As Bacantes possibilitou a apreciação de uma obra literária de grande valor cultural, que fornece conhecimento sobre a mitologia e religião praticada na Antiguidade Grega. Tal obra pode ser comcebida como a herança cultural e artística da Hélade, produzida por um dos maiores trágicos que a tradição clássica consagrou: Eurípides, considerado por Aristóteles “(...) o mais trágico de todos os poetas”58.
ARISTÓTELES. A Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992, cap. XIII, 1453a, 25-30
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Fim da Dança Júlia Elisa Marques Martins
Você acordou com dificuldades, no horário em que era de costume. Não reparou no sol do lado de fora. Pensou em não sair de casa, mas logo desistiu da ideia. Apesar da vontade de se enterrar na cama, levantou. Lavou bem o rosto e foi se trocar (você nunca gostou de tomar banho pela manhã). Bebeu o café requentado que já não tem mais tanta graça sem a pequena bailarina que o preparava. As lágrimas já não obedeciam. Aquele parecia ser o dia mais triste da sua vida, tinha cheiro de solidão, de morte. Saiu de casa a contragosto, queria ficar ali, junto do ballet que acreditava estar pelos quartos e cozinha. Não desejava falar nem encontrar ninguém. Você tinha vontade de ficar sozinho e apodrecer, sem merecer sequer a compaixão de sua família. Só pensava no vazio que agora lhe restara, nos momentos felizes e outrora tristes que tivera ao lado da bailarina. Soldado você era de profissão, de chumbo era como ela te chamava. Ao lembrar disso pensava que se tivesse perdido todas as batalhas, não estaria a este ponto. De chumbo deveria ter sido feito também o coração, mas como não é, agora sangra sem haver expectativas de que pare de jorrar.
De repente, você notou que estava parado na calçada, não sabia ao certo há quanto tempo, mas suas pernas doíam. O telefone tocou e você soltou alguma palavra de maldição por ter se esquecido de desligá-lo. Era sua tia, a mesma que insistiu freneticamente, e sem sucesso, para que você não ficasse sozinho na noite anterior. Desligou o telefone e apertou o passo para não causar mais preocupações. Não demorou muito, você chegou ao destino. A casa parecia cheia demais para você, que só desejava estar na presença de uma pessoa. Não se deu ao trabalho de cumprimentar a todos que lá estavam.
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De repente sentiu um golpe no estômago e no coração. Via, dali mesmo onde estava, o caixão da pequena bailarina que alegrara seus dias nos últimos três anos. Você caminhou até o corpo sem observar ninguém que estava a sua volta e chorou amargamente a morte. Sentiu raiva e desespero, que vieram seguidos por medo e profunda tristeza. Sem a pequena bailarina, agora seria apenas soldado que, mais do que nunca, se sentia de carne e osso. Você nunca havia se sentido tão fraco e pequeno. Quis ir embora e foi. Quando você chegou em casa, sentiu mais forte o vazio. Se jogou no sofá e rezou pedindo que a dor passasse, mas sabia que suas preces nunca alcançariam o céu. A casa nunca mais teria o cheiro da bailarina. Você não seria mais soldado de chumbo.
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Antiquário Alexandra Vieira de Almeida Peças moldadas pela vista a docilidade das dobras do vento emerge sacode o pó do envelhecimento Um Dom Quixote de madeira e aço interroga meu vazio solar Pensas que quero deixar ali a memória de nosso tempo Driblar com o passado é a mais enérgica luta Agora teço um terço de rezas para ti na penumbra do ocaso Naquele templo de antiguidades és a letra morta que se avizinha dos elementos noturnos A simetria do quadro é leve pluma sobre as ondas recolhendo os restos da madrugada Manequim ascético pintado de branca cor no vai – vem incessante dos acrobatas Caixinha de música que levanta o véu da história subterrânea Escondida na caverna de um antiquário sombras de outras sombras Platão bem o disse o sol é a verdade No teu rosto só interrogações noites despidas de rostos sombras de um antiquário.
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O Segredo do Sucesso de Rainbow Rowell Marília Grassi Trementocio Tosta
O romance “Anexos”1 é o primeiro livro da escritora e jornalista Rainbow Rowell e, apesar de ter sido publicado em 2011 nos Estados Unidos, só ganhou tradução em 2014 pela Editora Novo Século. A obra teve grande aceitação pelo público, sendo um sucesso de livraria. O romance apresenta metade da narrativa em forma de e-mails, que diverte o leitor e a deixa menos cansativa, uma obra para relaxar. Mas a grande amplitude do livro não se deve somente à obra, mas principalmente à identificação do leitor com os personagens. Segundo diz Umberto Eco, em Apocalíticos e Integrados2, “trata-se da identificação privada e subjetiva, na origem, entre um objeto, ou uma imagem, e uma soma de finalidades (...) de maneira a realizar-se uma unidade entre imagens e aspirações”; logo um personagem ficcional seria o conjunto de aspirações, idealizações do leitor. Assim, o romance apresenta personagens que
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correspondem ao “típico”, um arquétipo, o resultado da soma de determinadas aspirações coletivas. A obra é dividida em dois tipos de capítulos: um que apresenta os e-mails trocados por Beth e Jennifer e o outro, que apresenta a vida pessoal de Lincoln. Apesar de ser inteligente, Lincoln possui dificuldade para encontrar emprego e quando encontra (segurança no departamento de TI), é insatisfatório. Essa impressão solidifica-se pelos primeiros capítulos, onde é contado de forma rotineira e até tediosa a vida de Lincoln: um nerd que mora com a mãe, joga Dungeons & Dragons aos sábados com os amigos, dorme até tarde, raramente sai, não demonstra interesse por conhecer pessoas novas e vai trabalhar. Sua história pessoal vira uma rotina cansativa para o leitor. Logo, os e-mails trocados por Beth e Jennifer tornam-se o centro das atenções: Beth namora
ROWELL, Rainbow. Anexos. 1ª Ed. São Paulo: Novo Século, 2014. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 6ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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o guitarrista Chris desde os tempos da faculdade. Ela está pronta para casar, mas esse desejo está longe de ser um projeto na vida de Chris. Jennifer, por sua vez, tem um relacionamento estável com Mitch, apesar de se sentir pressionada diante da ideia da maternidade. Lincoln teve um relacionamento anterior com uma garota que conhecera no colegial, Sam, que o abandonara depois de entrar na faculdade. No capítulo doze, ele decide repentinamente mudar sua rotina e sair com um amigo que não via há pelos dois anos. Tal passagem serve para Lincoln conhecer a banda de Chris, na mesma ocasião em que Beth quer sair no fim de semana e demonstra, pela primeira vez, sua insatisfação em relação ao namorado. Apesar de a sinopse ter denunciado a futura atração de Lincoln por Beth, isso não diminui a curiosidade do leitor. Beth começa a se interessar pelo “cara fofo” do jornal e passa a descrevê-lo: alto, atraente, cuidadoso, simpático; principalmente em contraposição com o namorado Chris. De forma divertida, Rainbow confirma a corres-
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pondência de Beth aos sentimentos de Lincoln, quando a última descreve para Jennifer seu ciúme por Emilie, que trabalha no mesmo jornal. A partir das categorias usadas por René Girard, em “Mentira Romântica Verdade Romanesca”3, vemos que Emilie teve uma pequena participação como “mediador” do amor entre Lincoln e Beth. Quando foi conversar com Lincoln, Beth ficou exaltada com seu ciúme, logo o pensamento girardiano (relação entre mediador, objeto e sujeito) encaixa-se perfeitamente neste momento: “Para que um vaidoso deseje um objeto, basta convencêlo de que esse objeto já é desejado por um terceiro a quem se agrega certo prestígio”. Cada época de uma sociedade é marcada por determinada cultura e valores; em romances como os da época de Dostoiévski, as representações do feminino constituíam-se de diversas maneiras: a primeira seria o que se chama de mulher infernal (mulher de classe social inferior, porém dotada de muita inteligência, utilizando o poder de sedução para arruinar o amado); a outra seria a mulher como sexo
frágil, boazinha, onde
Girard, René. Mentira Romântica Verdade Romanesca. 1ª Ed. São Paulo: É Realizações, 2009.
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as ações seriam limitadas aos afazeres domésticos. O final do século XIX e início do XX assistem ao surgimento da chamada Nova Mulher, uma substituta da mulher dependente e reprimida de antes: “a Nova Mulher pretendia ser sexualmente independente, criticava a insistência da sociedade
Quanto à construção do enredo, apesar de cativar o leitor, houve momentos em que personagens apareceram ou “desapareceram” sem contribuir com a história principal, causando estranhamento. O reencontro de Lincoln com Sam causa grande surpresa, porém esse aparecimento
no casamento como única opção de vida”.4 Segundo Perrot, a “dominação se faz por meio de definições e redefinições de estatutos ou de papéis que não concernem unicamente às mulheres, mas ao sistema de reprodução de toda sociedade.”5 A partir da década de 60, o movimento femi-
da personagem não alterou em nada a história, tornando-se desnecessário. Sam é uma personagem importante na obra, seu aparecimento poderia ter dificultado ou alterado o caminho que Lincoln estava seguindo, mesmo que por um breve momento. Assim, tal reencontro ficou jogado no meio do
nista passou a questionar fatos vistos até então como biológicos, como a inferioridade feminina e sua consequente sujeição à dominação masculina, e a discutir os papéis previamente demarcados exercidos por homens e mulheres dentro da sociedade. Essa nova mulher é representada na obra de Rainbow através de Beth, mulher bem sucedida, independente, que não tem medo de terminar seu relacionamento e seguir em frente, apesar de demorar consideravelmente para tomar essa atitude.
romance, sem ser bem desenvolvido. Além disso, a construção da personalidade de Lincoln mostrase confusa. A indecisão parece permear a vida do personagem durante a maior parte da história e só quando cresce o sentimento por Beth é que ele começa a tomar decisões concretas para sua vida. Aqui, a autora constrói um amor ideal, solução que resolveria todos os problemas de Lincoln. Também não fica explícito como ou quando Beth se apaixonou por Lincoln: de repente, quando ele
TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras”, em: DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 432. 5 PERROT, Michelle. “O trabalho das mulheres”, em: Minha história da mulheres. Trad. Angela M. S. Correa. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 18.
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se declara, ela se apaixona. Mesmo ela já tendo passado a admirálo antes, o sentimento criado foi repentino e facilmente correspondido. Quando Lincoln vai até o jornal conversar com Beth, não a encontra ali e, mesmo quando a encontra no cinema, a situação não foi resolvida. Esses “quase” finais felizes, além de prender a atenção, provocam tensão no leitor que anseia pela união dos protagonistas, a qual ocorre com a declaração de amor de um pelo outro. Rainbow Rowell recebeu várias críticas positivas com “Anexos”, pois explorou a identificação do leitor com a obra. Os elementos de ficção são tão sutis e os reais tão bem explorados, que o leitor facilmente participa da vida de Lincoln, Beth, Jennifer, Chris e Mitch. O romance cita artistas, músicas, filmes que fizeram sucesso no século XX, além do fato de a autora ser jornalista em Nebraska explicar como conseguiu descrever tão detalhadamente os bastidores de um jornal. A obra faz muito bem o uso da alternância entre o e-mail e a narração tradicional, explorando a criatividade, a realidade e a ficção.
Anexos
cativa e envolve o leitor, facilitando a identificação deste com os personagens, a qual é o grande segredo do sucesso do romance.
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Senhora Poesia Gabriela Nascimento Ananias
me traga agora, Senhora, um pouco do pouco dum olhar miúdo do muito que palavreado vira rés ... por favor, Senhora devolva-me meus calçados a fuga do tudo deste tudo que é o mesmo torrada sempre tudo manteiga me espera café tenho pra gorjeta um pouco com isso, faça o que quiser do léxico que sobrou do café pois eu também fujo desse léxico você quer? que excede e resta Senhora Poesia, fique com [o] tudo [o] muito [o] léxico Senhora, poesia, fique. me deixe ir com nada e despalavreada pra chegar mais rápido ao menos até o outro lado da calçada.
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Alice, sua puta Letícia Rocha
espectador de minha própria dor ator do meu próprio horror quantos comprimidos é preciso para comprar uma lucidez? não há show. como centro da personalidade não há sensibilidade. ou validade. desintegração do meu ego meu eu está cego.
incorporo sua percepção mas não há revolução. dissociação. estou refugiada nesta identidade unificada. nesta irrealidade ainda há integridade. não há decoro em minha demência. quantos comprimidos é preciso para comprar uma essência?
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Reconhecimento Marília Grassi Trementocio Tosta
Parei. Meus olhos dançaram uma valsa triste pela paisagem: as folhas, amarguradas, adquiriram a cor mostarda... As árvores magras, retorcidas, torturadas pela tristeza se camuflavam no solo áspero; o céu furioso em sua negritude, a ventania incessante, tiraram minha força. Curvei-me, único movimento possível. Minhas lágrimas esfumaçaram junto com a cor do restante de vida. Minhas pálpebras abraçaram-se fortemente, num ato de amor, mas não tão forte a ponto de meus olhos espiarem por entre o abraço. E lá estava. Uma altura que parecia alcançar o céu, em grande parte dotado de vidro, reflexos. Árvores, solo, minhas pálpebras... Eu. Os pés, agitados, ansiaram a aproximação e detiveram-se ao chegarem ao destino, vestidos de marrom e cobertos de asperidade. A cabeça caiu, lentamente para o lado, expressando sua dúvida. Os olhos imploravam por resposta, apesar de descansarem numa rede arroxeada. Os cabelos, confusos... Dando voltas e voltas até atingirem a cintura... Negros; O tecido fugia do corpo, os dedos se esconderam em fervor. O coração, apressado, palpitava, o único ruído... Eu. A figura refletida combinava com a paisagem desconcertante, surpreendentemente. Apesar de sempre temer o ambiente à sua volta, as células de sua pele inseriam-se entre o amarelo das folhas, assim como os cabelos na negritude do céu. Assustador. Minha pupila unida à mente indicaram: tudo sou eu. O ambiente reflete minha alma, o mais puro sentimento guiando onde devo estar. Uma cor diferente. A claridade apoderava-se do olhar e ia contagiando o reflexo. De repente, do lado esquerdo, embaixo da costela, reluzia um arco-íris; no alto da cabeça abria-se uma luz; os meus pés dançavam no ar; estava flutuando. Com a batida do renascer, meu corpo girava na mais tênue melodia, tocando cada detalhe da paisagem: as folhas sorriam e mostravam suas pétalas; o céu molhava-se; o fruto fora germinado.
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Partículas de areia encostaram-se à pele e logo depois, o calcanhar apoiara-se nos grãos. Os olhos fugiram em direção ao espelho, deslizando a cabeça para o lado, sem dúvida. Músculos agitados subiram para encontrá-los, contudo pararam no meio do caminho ao perceberem o que exibiram. Uma branquitude quadriculada surgia, envergonhando até as pálpebras que se encolhiam. Reconhecimento. E nesse momento o voo constante de borboletas rodeou minha cabeça e em um círculo vicioso transformaram tudo em luz, brilhos fugitivos saltaram do alto para o meu lado e quando as pupilas encontraram o céu, a vitalidade. A descrição para que eu guarde essa situação só para mim, sem que ela fuja para o papel. Da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Da esquerda para a direita, o globo se mexia. As pálpebras em seu trabalho incessante, as sobrancelhas unidas, perdidas. Os dedos sentiram células, sentiram calor, sentiram a aproximação. Num entrelaço enosado encontraram outros. O toque caminhou, correu por veias adentro e da esquerda para a direita tudo parou. Outras pálpebras, que estavam paralisadas pra esquerda, imobilizaram os globos. Outras células, outro corpo, uma energia amiga.
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E quando sua orelha escondeu-se atrás de seus cabelos e as mechas ramificaram-se pelo seu rosto... Ela. A mente procurando o calor de um coração verdadeiro se acolheu em seu abraço; as lágrimas insistiram em correr, contudo eram diferentes: o alívio permanecia. E depois da silenciosa comoção, procurou seus olhos e lá viu o mundo, tudo o que precisava. Seus dentes fugiram, as covinhas subiram e um sorriso antigo aparecera: está tudo bem. A cabeça, mais leve, conseguiu reerguer-se e fitar o mar verde que os olhos trouxeram. Ela tornou-se maior, maior, maior me constituindo em pequeno fruto de sua imensidão e segui-a, confiante. Os dedos abraçados numa saudade infinita guiaram pela trilha branca: agora estava segura, voltara. Os calcanhares não seguiam mais sozinhos: outros dedos os guiavam. E num reconforto ilimitado, as cores explodiam, pintando o branco, delineando o futuro. O ombro tombava, pequeno e inexperiente, os dedos amigos os colocavam no lugar. Imitava, continuava. As pupilas aumentavam, curiosas pela novidade, pela sonoridade da sua alma e pelo vislumbre da luz. Virou. Viu. As folhas amareladas, as árvores retorcidas, sua conhecida realidade esvaindo-se. Em um giro doloroso, seu joelho voltouse, regrediu um passo. O coração encolhia-se de tanto frio, de tanto medo
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e dormiu. Amarelo das folhas, amarelo da luz, negro do céu, o meu negro. Áspero, o chão balançou e esticou e envolveu o corpo. O vento passava e roubava o tecido, tentava acordar as pálpebras, batia. As mechas negras arranhavam, queriam voltar. Quero, por favor. A luminosidade, inquieta e teimosa, separava o amor das pálpebras que só queriam proteger, unidas de medo. E meus olhos entenderam: a energia balançava-me nos seus braços compreensivos e carregava-me para o branco incerto. O coração espreguiçou-se satisfeito colocavam-se uma após a outra, permitindo a passagem.
e
as
trilhas
A umidade aproximou-se e o barulho da quebra atraiu minha escuta. Devagar, meus pés paravam seu balançar. Paramos. O verde de seus olhos mostraram o verde daquelas gotas... Olhava-me, emocionada, sabia. Alcancei a areia e seus dedos desfizeram, deixaram-me, ela já tinha dito demais, feito demais, sozinha de novo. Sem caminho, só mar. Os ombros quiseram, jogaram-se para frente, minha consciência puxava para trás, as batidas aceleradas mergulharam na bela incerteza. Todos os sentidos contorceram-se, agitados, buscando os feixes de luz.
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Preciso sair Rodrigo de Faria
Preciso sair do meu contorno Explodir o limite do meu perímetro deixando escorrer todas as certezas Preciso romper a massa caustificada de angústias e olhar para mim de outro lugar para então duvidar do que eu vejo Preciso encontrar o que eu não sou e buscar na solidão alguma saída pois é quando posso olhar para minha escuridão
Preciso voltar ao meu corpo e escutar a minha respiração até cicatrizar cada buraco aberto pelo tempo Preciso voltar até o útero para encontrar alguma solução e de lá (re)nascer o meu avesso
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POR UMA EDUCAÇÃO PELA IMAGEM, OU A RETÓRICA DA CONSOLAÇÃO NOS SERMÕES DO ROSÁRIO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA Felipe Lima RESUMO: O fim deste artigo é refletir acerca do discurso religioso do Padre Antônio Vieira, presente em alguns sermões do Rosário, que se constitui por meio da simbiose entre oratória e visualismo. Mais especificamente, será discutido o evento do apelo ao sensível no discurso engendrado pelo pregador que busca circunscrever as paixões do auditório – referto de escravos etíopes e senhores de engenho - por meio de uma aguda retórica da consolação.
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A órbita do pensamento social do século XVII ibérico é marcada, sensivelmente, pela figuração de mistérios teológico-políticos que configuram um dualismo de questões que preenchem todo o círculo de interesses seiscentistas. Tais unidades complementares compõem um domínio complexo em que, quando analisado por lentes anacrônicas, podem transparecer contradições nos discursos de grandes representantes da época. A esse respeito, Alcir Pécora apresenta uma decisiva proposta de leitura para os sermões vieirianos: É impraticável uma análise rigorosa da retórica desses sermões [vieirianos] se não se examinar o valor que essa eficácia do divino recebe no seio de sua produção humana. [...] Recuar diante da teologia que se mostra a cada linha dos sermões, ou saltar a que dá partida a eles, não me parece, nessa situação, constituir qualquer exemplo de atitude objetiva e crítica particularmente criteriosa. Sem a irremovível teologia simplesmente não é possível investigar com um mínimo de responsabilidade histórica o sentido das colocações mais fundamentais de
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Antônio Vieira, assim como sem as concepções advindas dela mal se sustentaria a sua globalidade relativa1.
Este texto pretende refletir acerca de um domínio temático referente à atuação de Antônio Vieira no xadrez social de sua época: a escravidão. No curso desta reflexão, buscaremos, a priori, pensar os sermões reunidos sob o signo do Rosário por meio da construção imagética, que o discurso de Vieira, através de recursos retóricos, coloca em evidência diante de um público sintomático: os escravos e os senhores de engenho. Na tentativa de desviar dos anacronismos, ameaça que persegue esse tipo de reflexão, buscar-se-á traçar um percurso por intermédio de dois sermões que desdobram a querela da escravidão – o “Sermão XIV” e o “Sermão XXVII” –, ressaltando a expressividade das imagens e a potência discursiva presentes nas linhas de força da eloquência vieiriana, a fim de alcançar uma visualização dos interesses do pregador através da condução e da composição cenográfica em que, por alegorias e anamorfose, a actio oratória dramatiza para atingir a sensibilidade do auditório.
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. 2 ed. Campinas; SP: Editora da Unicamp; São Paulo: SP: Editora da USP, 2008, p. 35-36.
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Para uma leitura transversal como esta, não caberia no fim persistir no prisma que costuma enxergar, no maior pregador da língua portuguesa, uma sombra de humanista libertário. Não se pode abordar a forma mentis pós-tridentina sem antes ressaltar que Vieira tratou de – quase – tudo em sua obra. Considerado um ilustre homem seiscentista, o que pertencia a seu tempo não lhe era alheio. Seus sermões representam, nas letras luso-brasileiras, um retrato do século XVII. Segundo nos indica seu principal biógrafo, João Lúcio Azevedo, no caso da coleção do Rosário, consta que são sermões “pregados em diferentes épocas, na Bahia, e antes de 1640, no Pará e Maranhão, e durante as travessias marítimas”2. Além disso, reconhecida a complexidade de tal reflexão, a tópica da escravidão, abre-se através de chaves hermenêuticas diferentes, que se desdobrariam em um duplo que, na perspectiva de Geraldo Coelho, traduz-se em: “índio livre/ negro escravo”3. É possível perceber que para Antônio Vieira a matéria do índio se revela pela pragmática teológica cujo fim é a integração do gentio ao Grêmio católico através da conversão4. 2
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O negro escravo, entretanto, é tomado como peça-chave da engrenagem econômica da colônia e da metrópole, ficando isento dos planos da libertação, bem como da defesa jesuítica. Reduzido à escravidão, o negro africano encarnava uma condição que parecia ser conhecida, reconhecida e naturalmente aceita. À vista disso, noções diferentes desta, naquela época, seriam vontades utópicas, à frente do tempo, atitude esta que a sociedade seiscentista desconhecia. Como preparação à discussão do aspecto imagético nos sermões referidos aqui, façamos um breve mapeamento de algumas questões importantes que remontam ao horizonte teórico referente à empregabilidade da eloquência e da imagem nos sermões. Examinando-se mais de perto, é patente a primazia do paralelo entre imagem e eloquência na construção dos discursos sacros, nos quais o uso e a invenção de imagens com significados potencialmente teológicos podiam ser controlados segundo as regras de um discurso legitimado por uma hermenêutica canalizada, isto é, por uma prática de interpretação dos textos sagrados em que um pregador é instituído dos poderes de intérprete das Sagradas Escri-
AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008. Tomo II, p. 320. COELHO, Geraldo Mártires. Evangelho e história: a escravidão e o discurso fraturado de Antônio Vieira; In: OLIVEIRA, Ana L. de (Org.). Antônio Vieira: 400 anos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 87 4 Para maiores desdobramentos acerca da questão do índio na parenética vieiriana, cf. SILVA, Felipe Lima. A outra margem do ocidente: a configuração do índio sob a unidade teológica de Vieira. In: Revista Versalete. n.3. v. 2. Curitiba, PR: UFPR, 2014. Disponível online em: http://www.revistaversalete.ufpr.br/edicoes/vol2-03/Revista3final.pdf. 3
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turas, o que lhe faculta a autoridade de imprimir sobre os fiéis um “selo espiritual” que lhes garantisse o aprendizado da doutrina através da pregação. O uso das sensações visuais a fim de desencadear o prazer do auditório e, simultaneamente, difundir as doutrinas, é um dos principais dispositivos de mobilização dos afetos públicos para que se alcancem os propósitos almejados pelo orador. Essa prática funciona como uma liga de doutrina e plasticidade que tece uma autêntica pedagogia teológica, facilitando com que a absorção do conhecimento seja plenamente concretizada. É fundamental não esquecer que as letras seiscentistas, praticadas pela instituição eclesiástica, funcionavam na chave da pastoral, buscando mobilizar as paixões alheias através de uma massiva ideologia católica de caráter dirigido. Acerca disso, José Antônio Maravall comenta que: Os olhos e os ouvidos são portas de acesso válidas para o conhecimento das coisas, mas “em suma, são os olhos, entre os sentidos que servem à al-
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ma, por onde entram e saem muitos afetos”[...] São os olhos mais diretos e eficazes meios de que nos podemos valer em matéria de afetos. Eles estão ligados [...] Para pôr em movimento a vontade, como já vimos que pretende o Barroco, nada comparável em eficácia à possibilidade de entrar pelos olhos5.
Fazendo um corte transversal no vastíssimo corpus da história das polêmicas que gravitaram na órbita do paradigma6 entre retórica e pintura, destaquemos que as práticas de representação seiscentistas têm identificadas em suas produções um demarcado gosto pelas formas visíveis que colocaram, com o tempo, a retórica em uma posição difícil e pelo menos paradoxal, uma vez que ao lançar mão de recursos sensíveis aos olhos na pregação, dava-se margem à compreensão de que a eficácia da palavra, em sua solitária plenitude, não fosse integralmente efetiva. A eloquência ficava fadada ao estado de “uma arte do discurso que se
5
MARAVALL, José Antônio. A cultura do Barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 391-392. 6
Por demandar um tratamento bem mais extenso do que se poderia efetuar aqui, dado o escopo deste trabalho, não reconstruirei o cenário das discussões entre a simbiose da eloquência e da pintura promovidas pelos filósofos, que teria começado com Platão e assumido aspectos distintos com Aristóteles, na Grécia, e Cícero, em Roma. Após, a discussão ressurge com Quintiliano, que observava na imagem uma problemática para o discurso quando esta servia de ornamento que confere à fala do orador um caráter “efeminado”, devido à maquiagem que os ornamentos lhe atribuem. Para um exame detalhado sobre esta questão, remeto à análise brilhante de LICHTENSTEIN, Jacqueline. La couleur éloquente. Paris: Flammarion, 1999.
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julga com os olhos, uma palavra cuja apreciação depende unicamente do olhar!”7 No século em questão, o sermonário ocupou um lugar de destaque enquanto exemplo de gênero demonstrativo que articulava efeitos sensoriais, produzindo uma “eloquência silenciosa”8 cuja menção à imagem do orador torna-se uma peça-chave para alcançar o ponto culminante da oratória. A configuração do “corpo eloquente” é crucial para o sucesso do exercício da pregação, uma vez que a veemência dos gestos, o franzir do cenho, as lágrimas nos olhos, as expressões do rosto, são elementos importantes da actio – que constitui a quarta parte da retórica –, pois auxiliam no convencimento à medida que facilitam na captação das paixões. E nesse caso, como adverte Cícero, a eloquência age sobre as almas do auditório para as acalmar e mover9. Para o encaminhamento desta discussão, é relevante o pensamento de Luiz Costa Lima, que traz contribuições para o estudo dos processos de controle da imaginação que perpetuavam nos
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séculos XVI e XVII no interior das sociedades de cortes católicas. Não competindo aqui considerar as produções sermonárias de Vieira como casos literários que se afinem com o conceito romântico-moderno oitocentista; consideremos, a priori, que assim como o sermonário, Vieira está inserido em uma sociedade ortodoxa em que as noções de subjetividade e autenticidade não são praticadas, menos ainda discutidas. Sobre essa questão, Marc Fumaroli esclarece, em prefácio a sua obra magna, que no período contrarreformista “a tradição literária e a arte retórica da memória são sinônimas”10. Assim, acentuemos a impropriedade de falar em práticas textuais sem incorporar em nossas postulações a reciclagem dos manuais da tradição clássica, uma vez que toda representação no século XVII está suscetível a um referencial11 – Deus – e fundamentada em modelos precedentes que funcionam como bases paradigmáticas a serem emuladas. Ampliando nosso horizonte teórico através da tese de Luiz Costa Lima, pode-se afirmar que os sermões e o próprio Vieira são
7
LICHTENSTEIN, Jacqueline. La couleur éloquente. Paris: Flammarion, 1999, p. 106
8
Ibidem, op cit., p. 103
9
CICÉRON. De L’Orateur. Paris: Les Belles Lettres, 1950, I, IV-17
10
FUMAROLI, Marc. L’Age de l’eloquence. Rhétorique et “res literária” de la renaissance au seuil de l’époque classique. 2009. Genève: Droz, p. XII. 11
Para maiores desdobramentos sobre a questão de referencialidade, como forma de subordinação a Deus, do discurso literário desde a Idade Média, consultar LEUPIN, Alexandre. Fiction et incarnation. Littérature et théologie au Moyen Âge . Paris: Flammarion, 1993.
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partes de um controle. Qualquer manifestação discursiva que desviasse das coordenadas da máquina censora não era incentivada, logo, não constituía um lugarcomum no século XVII. Acreditar nisso, possibilita-nos compreender as posições de Antônio Vieira que, à luz dos olhos pósmodernos, provocam assombro e estupefação. Digno de nota é o fato de que a instituição que detinha o controle censurava as produções categorizadas como “estéticas” – não esquecendo que os séculos XVI e XVII desconheciam a Estética como disciplina –, promovendo uma repressão discursiva total em todos os setores da sociedade, posto que o “fenômeno do controle se torna menos localizável quando a região sobremaneira controlada, a arte verbal, tem por intérpretes figuras aceitas ou integradas ao mecanismo do poder”12. Nesse contexto, somos postos frente à possibilidade de compreender que para os intérpretes das figuras aceitas – os religiosos – o controle se mostrava mais flexível. Alarguemos a nota para perceber que, possivelmente, a flexibilidade
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não se limitava ao controle, mas ao engenho do pregador com a arte verbal. Mais uma vez, Costa Lima nos esclarece que “a astúcia dos contrarreformistas esteve em favorecer uma arte propícia à sua posição”13. As observações anteriores nos permitem concluir que, seguindo o gosto da época, “o discurso devia criar imagem”14. Isto posto, a extrema contaminação entre o visível e o dizível – uma constante da produção artística seiscentista – será a chave hermenêutica usada para mostrar que Antônio Vieira, em cima do púlpito, encaminha o discurso que o configura como “defensor” legítimo, para, subrepticiamente, resguardar uma conformidade com a situação do negro, deixando-se mostrar apenas certos incômodos que ainda não o caracterizariam como um autêntico defensor dos escravos. Na avaliação de Flávio Campos: A escravidão dos africanos refere-se diretamente à manutenção da monarquia e ao sentido providencial do Estado absolutista português, a partir do tropos do corpo místico hierárquico que
12
COSTA LIMA, Luiz. “Imitatio e barroco”. In: Vida e Mímesis. Rio de Janeiro: Editora34, 1995, p. 117 13 14
_____. Ibidem, p. 117
OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. Aristóteles e a imagem nas lentes seiscentistas: deslocamentos e reciclagens. In: ROCHA. Fátima C. D (Org.). Cenas do discurso: deslocamentos e transformações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 26.
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subordina seus membros e é encabeçado pela figura do monarca15.
Impõe-se, agora, observar os efeitos imagéticos e hermenêuticos no âmbito exclusivo da sermonística, para tentar detectar a concepção de Vieira que se alinha aos preceitos de seu tempo, firmemente ancorada na reciclagem da conceituação retórica e na justaposição de imagens em seu discurso. Como podemos notar em uma primeira leitura do “Sermão XXVII” da série do Rosário, a figura do negro escravo torna-se alvo da reflexão do jesuíta, mostrando-se como uma questão que, embora não fosse tomada como razão primeira das ações da evangelização jesuítica, merecia questionamentos: Estas são as considerações que eu faço, e era bem que fizessem todos, sobre os juízos ocultos desta tão notável transmigração, e seus efeitos. Não há escravo no Brasil e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação.16
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Os posicionamentos ao longo do sermão não colocariam o orador no lugar-comum de defensor legítimo das causas dos escravos segundo os protocolos iluministas, pois estão, estreitamente, ajustados a uma lógica binária na qual “não há qualquer contradição natural ou necessária entre catolicismo e escravidão, entre caridade e violência ou entre conversão e sujeição”1. Esse sistema duplo de combinações entre o que aparenta ser oposto é o que sustenta a lógica de todo o sermão, assim como o que proporciona pontos de contato entre o encadeamento analógico, presente na construção do discurso que, ao ser proferido, possibilita ser quase que visualizado. À guisa de exemplificação, cabe destacar a fala de Vieira no exórdio de um dos sermões ao centralizar uma curiosa semelhança, entre os escravos e a figura de Deus, que funciona como mecanismo de apaziguamento dos sofrimentos ao revelar ao auditório que nem mesmo os etíopes se distinguiriam dos contornos fisionômicos de Deus:
15
CAMPOS, Flávio. O sublime e o entendimento dos Néscios: os Sermões de Vieira aos escravos africanos. In: Actas do Congresso Internacional: Terceiro centenário da morte do Padre Antônio Vieira. Braga: Universidade Católica Portuguesa/Província Portuguesa da Companhia de Jesus, 1999, Tomo II, p. 766 16
VIEIRA, Antônio. Essencial padre Antônio Vieira . Organização e Introdução de Alfredo Bosi. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 534. Todas as referências de página serão relativas a essa edição. 17
LUZ, Guilherme Amaral. Rosário da concórdia: Vieira e os fundamentos místicos da paz social. In: Colóquio Tempos de Vieira e Machado. Uberlândia: NEPHISPO/UFU, 2008, p. 66
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Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eter-nidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus
criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos, um nesta vida, outro na outra18 (grifos meus).
No altar das construções das imagens, a figura do homem escravizado assume, analogicamente, o status da figura de Deus, produzindo pontos de contato pelas similitudes. Nesse sentido, fica estrategicamente possível aproximar, ainda mais, esses dois extremos que representam o finito e o infinito. Mais, é possível na lógica de Vieira preparar o auditório de escravos e senhores para ouvir que: Quando hoje os vejo tão devotos e festivais diante dos altares da Senhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma Senhora; já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda.19
No fragmento acima, notamos que um dos lugares comuns em que
18
VIEIRA, Antônio. op cit. p. 534
19
Ibidem, op cit. p. 534
20
Ibidem, op cit. p. 173
21
Ibidem, op cit. p. 536
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repousa a argumentação de Vieira, em grande parte dos sermões da ordem do Rosário, é a aproximação que faz entre os negros escravos e a Nossa Senhora do Rosário, mãe de Jesus, de São João, tal como dos “pretos seus devotos”20. Ainda nessa discussão, apresentase a conformidade, palavra-chave na semântica desses sermões, na medida em que representa o sentimento que o pregador busca incutir nos negros através do exercício retórico do sermão. A título de ilustração, destaca-se um exemplo de uma retórica da consolação para com o auditório de escravos, buscando, a todo o momento, justificar a conjuntura em que se encontram os negros e seus sofrimentos, apresentandolhes os traços que compõem as linhas do plano de Deus para eles: Vós sois os irmãos da preparação de Deus na transmigração presente do cativeiro, porque o fogo de Deus neste estado vos imprimiu a marca de cativos: e posto que esta seja de opressão, também como fogo vos alumiou juntamente, porque vos trouxe à luz da fé, e conhecimento dos mistérios de Cristo, que são os que professais no Rosário21.
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Conduzindo a resposta das razões do sofrimento, Vieira busca justificar os motivos que serviriam de fundamentação para semelhantes condições de vida dos escravos, declarando que esse resultado é uma parcela da estratégia divina que estaria guardando o encerramento das mazelas para a segunda transmigração dos cativos – a morte. Assim arremata o inaciano: Mas neste cativeiro temporal vos estão Deus, e sua Santíssima Mãe, dispondo e preparando para a segunda transmi-
gração, que é a da liberdade eterna. Isto é o que hei de pregar hoje para vossa consolação. E reduzido a poucas palavras será este o meu assunto: que a vossa irmandade da senhora do Rosário vos promete a todos uma carta de alforria22 (grifos meus).
Notemos, brevemente, que o tema da morte é recorrente nas pregações católicas, dada sua eficácia sobre os argumentos, uma vez que opera como um método clássico que imprime sobre o auditório o medo, estabilizando as bases da hierarquia e circunscrevendo o lugar de atuação social de cada um. A propósito, registrem-se as seguintes pala-
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vras de uma das principais vozes sobre o tema ao afirmar que os elementos básicos da doutrina estariam na: Tese de que o homem não deve exceder os limites de sua natureza nem alterar a ordem do mundo, a ordem divina que é dada à sua razão e cuja longínqua necessidade é razoável reconhecer. [...] A maior parte dos homens deve ser preservada das tentações da liberdade, da sensibilidade e do conhecimento, às quais apenas alguns privilegiados pelo nascimento ou pelos deuses podem resistir; que estes sejam em-
tão deixados em paz no gozo de uma submissão, ainda que injusta e cruel, mas sempre protetora, desde que permaneçam em seus lugares na hierarquia necessária das desigualdades23 (grifos meus).
Da passagem não fica difícil depreender que, embora injusta e cruel, a situação do escravo no período seiscentista é encarada como submissão justificada, que, inclusive, assegura uma proteção para os escravos, pois o cativeiro, que então funciona como prisão, é a chave para a liberdade na segunda transmigração.
Idem, op cit. p. 536
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 96
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Assim sendo, a retórica da consolação funciona como dispositivo argumentativo de disseminação das ideias do sermão. É nela e a partir dela que se concentram as incidências argumentativas do pregador. Em termos sensíveis, o xadrez retórico espelha-se no éthos de um pregador benevolente, mas que, na esteira do pragmatismo, mostra-se interessado em movimentar os sentidos e impor aos ouvidos e alma dos cativos uma gramática da conformidade. Na perspectiva de Guilherme Amaral Luz, deve-se levar em conta que as tópicas desdobradas nos sermões se oferecem como “algumas das questões, se não antiescravistas, ao menos disciplinadoras do escravismo, tratadas por clérigos jesuítas e de outras ordens nos séculos XVI e XVII, na América, na África e na Europa”24. Recorrendo precisamente ao caráter sinérgico e contextual que docere, delectare e movere sempre tiveram nas épocas de ouro da retórica25, pode-se concluir que os sermões do Rosário repousam, teologicamente, sobre o topos do “mistério eucarístico”. Entende-se neste momento como mistério um lugar-comum em que se
24
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conjugam as prescrições teológicas e retóricas, cuja inteligibilidade depende de uma hermenêutica autorizada institucionalmente pela Igreja. Isso possibilita falar de uma reciclagem dos códigos e dos protocolos regularizados pelo “controle do imaginário”, assim como de uma arte da agudeza verbal aperfeiçoada para estabe-lecer e encontrar similitudes na leitura de objetos e conceitos. O mistério eucarístico assinalaria um nó argumentativo com a retórica da época, constituindo uma forma de apreensão de uma “manifestação do Verbo dirigida para o mundo das imperfeições humanas, [que] expressa, assim, a sua generosidade providencial”26. Para tanto, essa forma misteriosa encontrar-se-ia reduzida a uma compreensão dialética, centralizada na combinação binária de uma “finitude na infinitude”, resultando na proposição de uma “presença sem vista” traduzida no evento figural-participativo de Deus no mundo. As razões anteriormente mencionadas nos levam a entender a grande voga do discurso do conformismo que impera na parenética vieiriana. Além disso, a
LUZ, Guilherme A. op cit. p. 66. Para um exame aprofundado dessa questão, consulte-se o texto de BARILLI, Renato. Retórica. Lisboa: Editorial Presença, 1985. 26 PÉCORA, Alcir. “Lugar retórico do mistério em Vieira”. In: MENDES, Margarida Vieira et all. Vieira escritor. Lisboa: Edições Cosmos, 1997, p. 156. 25
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forma sacramental, que ampara a existência de uma gramática dos signos, é o elemento mediador da materialidade do discurso persuasivo que se ornamenta pela agudeza do pregador. De outro modo, o mistério é o lugar básico que fundamenta as tópicas retórico-teológicas, operando em Vieira como “disponibilidade essencial para a ação eficaz da conversão”27. Nas linhas dos sermões nas quais nos detemos, os escravos e os seus senhores – principais ouvintes aos quais se dirigem – são tomados pela eloquência, ficando cativos pelos ouvidos e pelos olhos no movimento de ouvir e mostrar que articula o pregador: “ouçam primeiro os brancos um exemplo em que vejam a sua deformidade, e logo mostraremos outros aos pretos, em que vejam a sua”28 (grifos nossos). Cabe igualmente citar, nesse sentido, o juízo crítico de Georges Didi-Huberman, que não nos deixa esquecer que “ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa”29. Nesse sentido, o discurso pictórico de Vieira oferece, pe-
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los
olhos e pelos ouvidos, o conformismo, assim como o Rosário e “a própria condição para que se salvem”30. No movimento de correção moral, o (re)conhecimento da condição de escravo e a devida salvação são dados pelo discurso que se projeta como uma imagem, construindo-se, notadamente, no exercício da parenética. Na medida em que o pregador conduz seus argumentos, encaminha igualmente seu auditório, acentuando sobre este a eminência do discurso que tangencia o tema do post-mortem. Abra-se um parêntese para considerarmos que, no âmbito da Igreja visível contrarreformista, a cerimônia da pregação – 31 considerada por Jean Delumeau um mass media da época – passou a desempenhar uma função de destaque, como elemento catalisador de atitudes coletivas, transformando-se mesmo em um verdadeiro aparelho de combate pela perduração do poder efetivo da Igreja, em especial pelo uso dos recursos retóricos que descreviam o episódio do post-mortem, configurando, assim, uma massacrante pastoral do medo.
27
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. 2 ed. Campinas; SP: Editora da Unicamp; São Paulo: SP: Editora da USP, 2008, p. 107. 28 VIEIRA, Antônio. op cit. p. 542. 29
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora34, 2010, p. 34 30 31
LUZ, Guilherme Amaral. op cit. p. 79.
DELUMEAU, Jean. Le péché et la peur. La culpabilisation en Occident (XIIIe-XVIIIe siècles). Paris: Fayard, 1983, p. 128.
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Utilizando desses meios em sua pregação, Antônio Vieira propõe que negros e senhores vislumbrem, através de um movimento quase profético, à medida que ouvem o sermão, os rumos de seus destinos: Os que vos hão de servir no Céu, não hão de ser vossos senhores: que muitos pode ser que não vão lá: mas quem vos há de servir é o mesmo Deus em Pessoa. Deus é o que vos há de servir no Céu, porque O servistes na Terra32.
Assim, os sermões do Rosário evidenciam uma conjugação entre dois sentidos humanos: ver e ouvir. Sabe-se que em termos aristotélicos, isso significa o poder gráfico de “colocar as coisas diante dos olhos”, implicando o uso de expressões que representam objetos como se eles estivessem em atividade. É o princípio da enargéia, que consiste na evidência e concretude dos exemplos postos em ato. A maior qualidade do gênio é ser “metaphorikon”33. Para concluir tal raciocínio, Michel Foucault
32
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assinala que “as palavras se propõem aos homens como coisas a decifrar”34, desencadeando, nesse sentido, uma grande riqueza presente no organismo da línguagem. Além disso, acentua-se a proeminência desse mesmo conjunto de signos do século XVII, que enformam uma massa linguística, ser dotado por uma imanência natecedente, permitindo-nos enquadrar, finalmente, o pensamento da época de Vieira em uma unidade dotada de signos motivados por um “entrecruzamento do seu espaço com os lugares e as figuras do cosmo”35. Retomando as prescrições aristotélicas e os preceitos da Arte Poética36 horaciana, assinala-se, em suma, que as ações são causadoras de maiores emoções quando se apresentam pelos olhos do espectador, permitindo-lhe testemunhar pessoalmente. Homologamente, Ana Lúcia de Oliveira37, já no seu estudo acerca dos signos que se dobram pelo engenho dos intérpretes eleitos, ratifica que os pregadores precisavam se expressar também em língua vulgar, ao se dirigirem às pessoas da corte ou do povo.
VIEIRA, Antônio. op cit. p. 562. OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. op cit. p. 14. 34 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições70, 2005, p. 90. 35 Ibidem. op cit. p. 93. 36 Para maiores esclarecimentos, cf. HORÁCIO. Arte poética. In: ______, Aristóteles & Longino. A poética clássica. 12 ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 2005, p. 62. 37 OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas . Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 45. 33
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Desse modo, a empregabilidade de uma eloquência que se fizesse como um discurso plástico obteria efetivamente maior alcance – especialmente a respeito de um público não letrado como era o caso dos escravos. Entendamos, neste ponto, que, em última instância, para atingir o ápice do efeito patético, recorria-se ao discurso mais persuasivo tendo em vista, anamorfosicamente, distorcer para que signos desaparecessem ou se assemelhassem àquilo que a agudeza do pregador fosse capaz de promover. Por intermédio do domínio retórico, o orador poderia não apenas conduzir os fiéis à fé nas verdades explicadas, mas, além disso, levá-los à aceitação e ao cumprimento do código moral imposto por aquela crença. Na lógica dos sermões aqui em foco, a retórica da consolação alia-se à aguda produção de imagens para, enfaticamente, acentuar-se na didática paulatina do sermão. Enfoquemos, agora, no tratamento específico de duas imagens no âmbito dos sermões do Rosário, que, como tentaremos mostrar, são amplamente persuasivas na parenética vieiriana. O“Sermão XIV”– bem como o “Sermão XXVII”sobre a escravi-
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vidão – divide-se em duas partes consoante os auditórios aos quais se dirigiam. Diante da heterogeneidade de ouvintes, o pregador articula a disposição de sua fala conforme um ângulo pragmático, visando aos efeitos que ela deveria gerar em cada grupo de escravos e senhores. Para isso, a imagem é um forte dispositivo para alcançar, com mais energia, o páthos dos ouvintes, (re)educando os valores e visões de mundo do auditório. No caso do “Sermão XIV”, o auditório é, predominantemente, constituído de escravos. Quando não se dirige aos negros escravos, prega a um “suposto auditório universal ou indistinto, presente na ocasião”38. O paradigma do “auditório universal” funcionaria como uma espécie de avatar que, de acordo com Barbara Cassin39, seria um princípio regulador produzido pelo próprio orador, que teria suas origens extraídas do Fedro, de Platão. Segundo Vieira, o sermão é pregado devido à grande influência da Virgem Maria do Rosário que o “mandou que deixasse o sermão que tinha meditado de São João, e pregasse do seu Rosário”40.
LUZ, Guilherme A. op cit. p. 74. CASSIN, Barbara. 2005. De uma sofística a outra: boas e más retóricas. In: O efeito sofístico. São Paulo: Editora34, p. 171. 40 VIEIRA, Antônio. op cit. p. 171. 39
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Dito isto, a homilia incide para reiterar que os escravos também são filhos, junto com Jesus e São João, da Virgem do Rosário. Para tanto, há uma marcante condução do fluxo das prefigurações, ajustando-as, para efeito exegético, por meio de um movimento de espelhos, isto é, em uma movência de dobras de referências, Vieira projeta relações históricas entre os negros escravos com eminentes signos da História Sagrada, afirmando que: Se um destes homens nascidos de Maria é Deus: o outro homem também nascido de Maria, quem é? É todo o homem que tem a fé e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão diferente da dos outros homens, como é a todos pretos41.
Marcada a relação filial entre os escravos e a Virgem e a afinidade fraternal entre os mesmos e Cristo, o orador, que naquela época iniciava-se nas prédicas jesuíticas, guia seu público, engenhosamente, revestindo a situação com o véu tecido por sua eloquência consoladora que prima pela persuasão:
41 42 43
Ibidem, op cit. p. 181. Ibidem, op cit. p. 188. Ibidem, op cit. p. 190.
77
Deveis dar infinitas graças a Deus por ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e avós vivíeis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé, viveis como cristãos, e vos salvais42.
À frente, buscando circunscrever o domínio de atuação de seu sermão e ciente do poder massacrante que detém suas palavras, o jesuíta interpela o auditório, discursando com palavras que plasmam imagens carregadas de cores fortes, que incidem nos castigos infernais aos quais estão submetidos todos os ancestrais de seu auditório, que não tiveram contato com a palavra de Deus: Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade43.
Nesse momento, o sermão, dialeticamente, destila dois sentidos fundamentais para a compreen-
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são da pragmática vieiriana quanto à tópica da escravidão: incutir medo nos escravos quanto ao destino final de seus parentes que permaneceram perdidos nas trevas pela ausência da cristianização proporcionada pela Igreja com a coroa portuguesa; assim como encarecer as conquistas portuguesas, povo destinado pela Providência para liderar a cristianização no novo mapa-múndi que se desenhava no século XVII. Retomando o pensamento de Didi-Huberman, desde a Idade Média, os teólogos buscavam o “traço de uma semelhança perdida, arruinada”44, semelhante à de Deus perdida no pecado; busca essa a qual fundamenta a lógica do mistério que se afirma, por excelência, como a base do postulado de toda matéria do século XVII, uma existência, subrepticiamente, guardada em todas as coisas, produzindo um ornato dialético dependente da Identidade do imaginário infinitista: Suas ações só se concebem como análogos diferidos, causas segundas da Causa Primeira promotora de sua significação e sentido providencialista, que misteriosamente as enuncia como naturezan profé-
44
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tica [...] presente como perfectibilidade alcançavel pelas semelhanças do tempo português, que são suas causas instrumentais45.
A “semelhança perdida” e a busca do signo também perdido desde o advento do pecado original, que relacionam a Causa Primeira e a finitude humana, propiciam a Vieira a criação de uma analogia sensivelmente persuasiva que reitera a consolação que o sermão busca imprimir. Nesse ponto a fusão de elementos que justifiquem as mazelas dos escravos é selada: Não se pudera, nem melhor nem mais altamente, descrever que cousa é ser escravo em um engenho no Brasil. Não há trabalho, nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e paixão de Cristo, que o vosso em um destes engenhos. O fortunati
nimium norint!
sua
si
bona
Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho!46.
DIDI-HUBERMAN, Georges. op cit. p. 342 Ibidem, op cit. p. 188. HANSEN, João Adolfo. Prefácio. In: PÉCORA, Alcir . Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. 2 ed. Campinas; SP: Editora da Unicamp; São Paulo: SP: Editora da USP, 2008, p. 16. 46 VIEIRA, Antônio. op cit. p. 194. 45
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A passagem anterior nos apresenta claramente a unificação da imagem de Cristo à dos negros pela via do Sacramento, à proporção que seus sofrimentos assemelham-se. Pela dor, servo na terra e Senhor no Céu relacionamse, compartilhando do sofrimento enquanto eixo canalizador da relação analógica. Entre os mistérios a serem meditados, afirma Guilherme Amaral Luz, o pregador elege os da Morte e da Paixão de Cristo (portanto mistérios dolorosos) como os mais importantes47. Junto à retórica da consolação, Antônio Vieira expõe, como pragmática dos sermões do Rosário, a mecânica da imitação como fórmula de se colocar junto a Cristo, espelhar-se nele e se fundir em sua vontade redentora. Dessa forma, os escravos seriam perfeitos emuladores de Cristo na Paixão, quando, sofrendo e se martirizando, meditariam e se consolariam de sua situação: Oh quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos vossos trabalhos na harmonia destas vozes do Céu; e quão preciosas seriam, diante de Deus, as vossas penas e aflições, se juntamente Lhas oferecerdes em união das que a
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Virgem Mãe sua padeceu ao pé da Cruz!48.
Valendo-se da inventio retórico-dialética, Vieira projeta seu discurso como dispositivo da consolação no lugar de uma defesa de direitos, assim como assinala a proeminência de certa mímesis teológica na qual Cristo é a imagem-matriz para os negros, reiterando, com isso, que o lugar do Calvário, suportado com paciência e silêncio, foi reservado para os pretos na sua história salvífica. Na sequência argumentativa do sermão, a alegoria do “doce inferno” opera como alegoria hermenêutica, ou seja, aquela usada como instrumento de interpretação de uma “semântica” da realidade, segundo as palavras de João Adolfo Hansen49. Nesse enquadramento, temos dois polos extremos: o inferno (remetendo ao engenho e, paralelamente, à Paixão de Cristo) é, transversalmente, relacionado ao açúcar (nesse sentido, funcionando como metonímia de engenho), plasmando, por fim, uma unidade comum à vida sofrida no engenho colonial. Na descrição do pregador, mais uma vez, o discurso se converte em uma poderosa imagem da realidade dos cativos:
LUZ, Guilherme A. op cit. p. 72 VIEIRA, Antônio. op cit. p. 196. 49 Para um exame detalhado acerca do conceito de alegoria, ver a importantíssima obra de HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora . São Paulo: Hedra; Campinas; Editora da Unicamp, 2006 48
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E que cousa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno, que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar de doce inferno50 .
O caminho traçado torna possível perceber a presença de imagens intensamente pintadas nos sermões do Rosário com fim de convencer um público não letrado acerca dos preceitos católicos. Em linhas gerais, os sermões que constituem essa temática, na maior parte do tempo, fundam-se em uma tela de imagens significantes para a educação que se quer transferir persuasivamente para os escravos. Da relação com a Virgem Maria do Rosário até o doce inferno, conseguimos perceber relevantes indícios de um discurso que se busca fazer pictórico, obedecendo aos preceitos de uma retórica da consolação, do mesmo modo que, simultaneamente, visa à subordinação do negro escravo aos desígnios da ortodoxia católica, que, naquele momento, é representada pela figura de Vieira enquanto instaurador da ordem do mundo pós-tridentino.
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Para concluir, recorramos à análise de Jacqueline Lichtenstein para acentuar que o balanço entre a cor e a maquiagem na oratória, que não deve se submeter à primazia do prazer em detrimento da iluminação da razão, é elementar nos sermões do Rosário, pois são justapostas às técnicas teatrais amplamente expressivas que asseguram a transmissão do conhecimento através de formas sensíveis. É um caso em que “o ver não é mais um crer cuja origem seria um ‘dizer’; ele torna-se o efeito real de um mostrar”51. Sem excessos no discurso, o orador busca equilibrar os ornamentos que garantem à sua fala o estatuto da engenhosidade e que asseguram a transmissão das bases da metafísica. Da imagem, da metáfora, da alegoria, das agudezas, o orador, vir christianus dicendi peritus, extrai ao máximo o sumo plástico que formas verbais e conceitos encerram, disponibilizando assim uma educação pela imagem à sua plateia que, a todo o momento, observa diante dos olhos as razões de seu sofrimento por intermédio de uma eloquência consoladora, a qual garante que no fim dos tempos cada sofrimento se converterá em fortunas infindáveis.
VIEIRA, Antônio. op cit. p. 201 LICHTENSTEIN, Jacqueline. La couleur éloquente. Paris: Flammarion, 1999, p. 106.
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Ilustrações A Revista Arcádia agradece a colaboração dos artistas
Iara Nascimento
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Ana Alice de Resende Grisi
Luiz Pliger
Sobre os autores Alexandra Vieira de Almeida Formada em Letras – Português - Literaturas (UERJ). Possui Mestrado em Literatura Brasileira (UERJ) e Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atua como Agente de Leitura na Secretaria do Estado de Educação no Rio de Janeiro e é tutora de Ensino Superior a Distância em Letras (UFF) Website: malabarismospoeticos.blogspot.com.br Contato: alealmeida76@gmail.com
Andressa Cristine Marçal da Silva Possuí Licenciatura em Letras Português pela PUC – Paraná (2007) e Especialização em Filosofia e Literatura pela mesma Instituição (2008). Atualmente estuda Literatura e Cinema no Mestrado em Estudos Literários (UFPR). Trabalha como revisora, editora e tradutora de textos. Tem interesse em literatura francesa, literatura dos séculos XVIII e XIX, literatura e outras linguagens, poesia, legendagem de filmes e vídeos, tradução literária. Contato: andressacms@gmail.com
Felipe Lima da Silva Bacharel em Letras (UERJ). Atua como professor e foi aprovado para o Mestrado em Literatura brasileira (UERJ), com pesquisa sobre os sermões de Antônio Vieira. Contato: Felipe.lima2f@gmail.com
Gabriela Ananias Graduanda em letras pela UNICAMP. Compõe o Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP e flerta com os estudos sobre Literatura Feminista e Teatro Negro no Brasil, ainda em processo de consolidação de seu objeto de pesquisa. Contado: Gabriela.na.ananias@gmail.com
Germana Zanettini Reside em Porto Alegre/RS. Nasceu em 1984. É escritora, tradutora e jornalista. Contato: ge.zanettini@gmail.com
Júlia Elisa Martins Cursa o terceiro ano em Estudos Literários – Unicamp Contato: juliaelisamartins@gmail.com
Letícia Rocha de Siqueira Cursa o primeiro ano em Ciência Sociais – Unesp Araraquara Contato: siqueira.leticiarocha@gmail.com
Luiza Herrera Braga Formada pelo ProFIs – Programa de Formação Interdisciplinar Superior em 2013 pela Unicamp, atualmente cursa Estudos Literários – Unicamp. Contato: Luizaherrera93@gmail.com
Lidiana Garcia Geraldo Graduada em Letras (UNICAMP), e mestranda em Linguística pela mesma universidade, sob a orientação do professor Flávio Ribeiro de Oliveira. Atualmente, no Mestrado, desenvolve uma pesquisa sobre os elementos dionisíacos presentes na origem da tragédia grega. Contato: garcia.lidiana@yahoo.com.br
Marília Grassi Trementocio Tosta Cursa o segundo ano em Estudos Literários - Unicamp. Pesquisa teatro e é professora de português. Contato: Ma.grassi@hotmail.com
Matuyama Pseudônimo de Lívia Sayuri Aizawa. Bacharel em Estudos Literários pela UNICAMP. Atualmente trabalha como Editora. Contato: liviasayuri@gmail.com
Rodrigo de Faria Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor em História pelo IFCH-UNICAMP, PósDoutorado pela FAUUSP e pela ETSAMUP Madri. Professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB), e Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade – CIEC/UNICAMP. Contato: rs-dfaria@uol.com.br