Conversações_ Sobre Arquiteturas irrelevantes

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Conversações sobre arquiteturas [ir] relevantes Ariela Giuli 2017

Essa monografia é resultado de uma construção feita a partir de conversas com professores, colegas e estranhos. “Como cada um de nós era vários, já era muita gente.” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2000)


UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO 2017


Conversações

Sobre arquiteturas [ir] relevantes

Ariela Giuli

Trabalho final de graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do título de Arquiteta e Urbanista. Auferido nota máxima da banca examinadora composta por: Angelo Cecco, Daniel Corsi, Eduardo Gurian, Fernando de Mello Franco e Igor Guatelli. Orientadores: Prof. Ms. Angelo Cecco Prof. Dr. Igor Guatelli São Paulo, Junho de 2017


UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO 2017


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INTRODUÇÃO

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BREVE HISTÓRICO

25

DO TRABALHO CONCEITUAL AGENCIAMENTO RIZOMA DOBRA

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TERRITORIALIDADES PAULISTA HOJE FLUXOS IMPORTÂNCIA DA ESCALA DO ENTORNO DIMENSÃO PÚBLICA

45

CONVERSAÇÕES CARTOGRAFIA DO TEMPO SÍMBOLO DE PODER ARQUITEURA DO DESAPARECIMENTO CAVERNAS URBANAS

67

EXERCÍCIO PROJETUAL TEÓRICO-CONCEITUAL E PRÁTICA PROJETUAL PROJETO

99

DO PROCESSO (ANEXO) MODELO DE ESTUDO MODELO EM LAYERS PLANO DE ENGRENAGENS



[1] Eixo central Avenida Paulista Fotografia: Ariela Giuli



Introdução Se o suburbano é entendido a partir de sua posição secundária e aquém da vitalidade do urbano, por se colocar “fora” dele, extrínseco, o que dizer de espaços que historicamente sempre estiveram sob o urbano, sob a urbes, sob a cidade? Seria também um território suburbano ou, ao contrário, um suburbano fundamental ao apoio e existência do urbano, e, portanto, dentro do urbano, intrínseco a ele?

“Na maioria das vezes, a construção arquitetônica no subsolo é sinônimo de problema. Esses espaços são caracterizados por serem escuros, claustrofóbicos, perigosos, insalubres e possuírem acessos complicados”. (L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’HUI, 2002, p.64)

Ao mesmo tempo, arquiteturas ao redor do mundo, parecem nos mostrar que a discussão acerca da utilização ou não dos espaços enterrados vão além da noção de “não ser natural ao ser humano” ou do prejulgamento ansioso da não necessidade de se construir sob o solo. Arquiteturas precisam sempre da máxima visibilidade para serem Arquiteturas? Edifícios no subsolo, enterradas, não seriam edifícios igualmente verticais? Só se verticaliza para cima do chão? Ou podemos pensar em 11


potentes estruturas arquitetônicas verticais que apenas não aparecem na paisagem? Verticalizar, independe da direção.

“Em luz do dia abundante, edifícios ostentam suas peles tatuadas – seus envelopes, seus ornamentos esquisitos. Louvamos o desempenho de revestimentos e a eficiência das cascas em várias camadas. Muito tem sido dito sobre a beleza das fachadas. Mas e lugares que não possuem um ‘cartão de visitas’?” (L’ARCHITECTURE

D’AUJOURD’HUI,

2002, p.39)

Se, desde Platão, o belo ainda persiste vinculado ao bem, à verdade, à perfeição na ordem do julgamento, ao mesmo tempo, projetos recentes têm nos mostrado que a sobra, o resíduo, na metrópole contemporânea, tem enriquecido os sentidos de belo, do bom, do útil, normalmente associados ao prazer, à verdade. Desta forma, podemos entender que as experiências relacionadas à interação humana, social, são uma expressão estética, da cidade bela advinda do uso, do ato mental e corpóreo que experenciam


a desnaturalização do suporte, do lugar e seus pressupostos, uma experiência que vai além do prazer ótico contemplativo distanciado. Indagações estas colocadas por Igor Guatelli nas discussões da pesquisa “Catástrofes infra estruturais: de outras estéticas urbanas”. Nos parece que a utilização dos subsolos passa por um processo em que sua ocupação meramente técnica e funcional (como transporte e infraestrutura) vem sendo ressignificada como possíveis geradores de urbanidade. Teria o subsolo de estar condenado a soluções de engenharia e técnica?

13



[2] Calçada generosa | Estação Consolação Fotografia: Ariela15 Giuli



Breve Histórico 17



[3] Ciclovia Avenida Paulista Fotografia: Ariela Giuli


Breve histórico Segundo a urbanista e professora Raquel Rolnik, é costume dizer que existe uma “São Paulo e meia”. A referência a essa “metade extra” é a cidade que está nos subsolos, formada principalmente por garagens e espaços residuais. A SP Urbanismo (antiga EMURB – Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo) afirma que há 22 galerias subterrâneas na Avenida Paulista. São mais de 16 mil m² construídos que atualmente estão abandonadas. De acordo com a Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio, o valor das galerias abandonadas da Paulista em 2010, se estivessem em bom estado, chegaria a R$62 milhões de reais. (Estadão, 2010) O projeto “Nova Paulista” teve seu início em 1968 em uma parceria da Prefeitura de São Paulo com o escritório de engenharia Figueredo Ferraz e o escritório de arquitetura Nadir Mezerani. Os escritórios propunham o rebaixamento do fluxo de carros ao longo da avenida, onde seriam criados grandes vazios no térreo. É possível observar um exemplo desses vazios no quarteirão entre as ruas Consolação e Haddock Lobo, local onde o projeto foi parcialmente executado. Se o projeto tivesse seguido adiante, o térreo da avenida seria liberado dos automóveis


transformando-se em um grande boulevard peatonal, apenas com os automóveis circulando no sentido transversal à Avenida e o trânsito de acesso local no sentido longitudinal. O projeto também tinha como diretriz o alargamento do espigão central em dez metros para cada lado, foi assim que a avenida passou de 28 para 48 metros. O alargamento foi realizado em 1972 pela prefeitura que, ao expandir a largura da avenida, além de outras medidas, desapropriou parte dos subsolos existentes referentes a essa “faixa”. As “faixas” dos subsolos foram desapropriados para viabilizar o projeto de rebaixamento do fluxo de automóveis em 1968, que nunca se concretizou. Hoje elas se encontram sem uso, abandonadas, sem nenhum ou quase nenhum acesso e pertencem à prefeitura.

[4] Projeto “Nova Paulista” | Escritório Nadir Mezerani

21



Localização das galerias abandonadas ao longo da Avenida. Peça gráfica parte do processo de projeto

[5] Acesso | Galeria Conjunto Nacional

[6] Galeria Conjunto Nacional

[7] Galeria Conjunto Nacional 23



Do trabalho

conceitual 25


Agenciamento A

união,

aproximação,

emaranhado

de

múltiplos é agenciamento. A trama desses múltiplos é mais importante do que a coisa em si, do uno, do singular, do fundamento.

“(...) multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos e que estabelece ligações, relações entre eles, através das idades, sexos, reinos - de naturezas diferentes. Assim, a única unidade do agenciamento é o co-funcionamento: é a simbiose, uma

‘simpatia’”.

(DELEUZE,

G.;

PARNET, C., 1998, p.84)

Em termos gerais, agenciamento é efeito de uma mistura de elementos heterogêneos, que ao interagirem, resultam em uma multiplicidade com grau de coesão. Heterogeneidade própria do sujeito, não do indivíduo. Essa pluralidade desestabiliza o suporte dado, estável, compreendido em sua unidade inviolável.


De agenciamentos outros Em uma conferência para o TED talks em 2010, Agnaldo Farias apresenta associações curiosas que poderiam ser trazidas aqui a fim de complementar a discussão de agenciamento. Farias discorre sobre como as artes tem sido posta às margens, deixada de lado na sociedade atual. Em um mundo cada vez mais tomado pela rotina, pelo pré-definido. Diz que vê a arte como antidoto para esse cenário e que é preciso abrir espaços para a perplexidade, para a inquietação, para o excepcional. “Como dizia Jacob Bronowski, um teórico do conhecimento, o que espanta em Newton é ele perceber que aquilo que faz com que a maçã caia, aquilo que faz, o denominador comum, tem a haver com a lua que está lá onde ela está. É extraordinário, porque ambos olhando, na aparência, não tem absolutamente nada a ver. O que esse sujeito faz, ele simplesmente enreda as coisas, ele consegue juntar aquilo que é díspare, ele consegue unir aquilo que é vário, aquilo que em princípio nada tem a ver uma coisa com a outra. É isso que ele faz. E por que? Porque ele imagina. Essa é a beleza, por exemplo, de um Copérnico que pensou o sistema e quebrou toda ideia de que a Terra era o 27


centro do universo, colocando-se no sol, aonde ele só poderia visitar na imaginação. Os artistas fazem isso cotidianamente. Por que eles fazem? Nós não saberemos. Mas nós devemos tudo a eles”. (FARIAS, A., 2010)

Agnaldo coloca sob o holofote, questões do agenciamento Deleuzeano, enfatizado através do ato inventivo, criativo, imaginativo. A aproximação daquilo que é dispare, como uma noção de beleza. O experimentar, o imaginar, o agenciar seriam, antes de mais nada, atos artísticos? Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, escreve que “O binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso.”

Rizoma Rizoma e agenciamento se tocam. Pelo emaranhado, pela trama. Com tamanha superfície de contato, valendo-se de uma metáfora química, se embaralham.

“O rizoma diz ao mesmo tempo:


nada de ponto de origem ou de princípio primordial comandando todo o pensamento; portanto,

nada

de

avanço

significativo

que não se faça por bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito.” (ZOURABICHVILI, F., 2004, p.52).

Na gramática da língua portuguesa, conjunção é a palavra que tem por função ligar orações ou termos de mesmo valor gramatical. Aqui, a conjunção “e”, não procura conectar iguais. Nem tem a intenção de escolher uma coisa ou outra, mas de avizinhar e, ao mesmo tempo, articular elementos dispares, dissonantes. Tem o valor de soma no sentido horizontal das relações, não de hierarquia. Poderíamos pensar essa palavra conectora como uma forma de agenciar um pensamento?

“Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e...e...e...’.

nesta

conjunção

força

suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.” (DELEUZE, G.;GUATTARI, F., 2000, p.48)

O

pensamento

rizomático,

por

interrogar

signos,

comunicações hierárquicas e ligações preestabelecidas, remete 29


à experimentação. Rizoma é um elogio às micrológicas, às relações que podem se estabelecer em escala micro que por sua vez é a responsável pela complexidade da escala macro – e torna-se um conceito fundamental para pensarmos como um território pode acontecer para além de suas visibilidades mais evidentes, muitas vezes ofuscantes.

“Mas, de que maneira esse raciocínio pode nos ajudar a tratar a realidade em um outro nível? Seria esse um questionamento onto-teleológico, no

sentido

Heideggeriano?

questionamento

que

abala

Um o

significado e a finalidade mais evidente

da

coisa

introduzindo

uma noção da diferença entre o que a coisa é e o que pode ser?” (GUATELLI, I., Linhas do devir, 2016)

Estamos embrulhados no mundo, não é possível estarmos separados dele, não existe um mundo apartado de nós e tomar consciência dessa realidade é de urgente prioridade, deixar de ser massa e ser multidão. Koolhaas é um dos arquitetos que evidencia a


interface entre arquitetura e sociedade. “(...) o entendimento e compreensão de como a sociedade de valores se organiza de modos secretos e surpreendentes” como questão fundamental para a arquitetura.

Dobra “A dobra é inseparável do vento. Ventilada pelo leque, a dobra já não é a da matéria através da qual se vê, mas é a da alma na qual se lê (...)” (DELEUZE, G.; ORLANDI, L., 1991, p.52)

O conceito de dobra do Deleuze está relacionado com a invaginação provocada por algo externo. O mundo exterior sempre atua sobre o sujeito. “Quando eu me dobro existe essa concavidade, que passa a fazer parte do sujeito” me explica Guatelli, fazendo um gesto corpóreo. Essas dobras surgem ou por reflexo dessa exterioridade, ou pela ação de defesa do sujeito frente às forças externas que atuam sobre ele. A dobra aproxima coisas que não estavam próximas, gerando coisas novas. A dobra pode ser uma ruga ou um estriamento. Seria possível aproximar esses vazios subterrâneos a uma ruptura espacial? Uma disjunção de matéria, com uma situação análoga a quase uma falha geológica, dando respiro e condições para que um elemento externo se hospede. Afinal o que seria essa fissura, se não o lugar de uma matéria mais sutil? 31


Provocar uma reaproximação entre as galerias e a avenida perturba o signo absoluto da paulista. O silêncio do poço pousa agora ao lado da presença-ausente desse signo. Atordoa essa relação. “Em Leibniz, os dois andares são e permanecem inseparáveis: realmente distintos e todavia inseparáveis, em virtude de uma presença alto embaixo. O andar de cima dobra-se sobre o de baixo. Não há ação de um a outro, mas

pertença,

dupla

pertença”.

(DELEUZE, G.; ORLANDI, L., 1991, p.179)


Territorialidades 33


Paulista hoje “Eu preferiria debruçar-me sobre o espaço externo. O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão das nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também, em si próprio, um espaço heterogêneo”.

(FOUCAULT,

M.,

2001, p.79)

A Avenida Paulista passou a estar interditada aos carros aos domingos, sem a presença dos automóveis, em outubro de 2015. Em junho de 2016 houve um decreto publicado no Diário Oficial do Município que oficializou a medida, parte do “Programa Ruas Abertas” criado, pelo então prefeito da cidade, Fernando Haddad. Um dos principais centros financeiros do país durante a semana, agora, aos fins de semana assume uma condição de parque. Essa situação urbana potencializou ainda mais os acontecimentos, dos mais diversos tipos, na já intensa avenida. Já havia ali um certo descompasso de usos. Mas,


pode-se dizer que cenas heterotopicas paulistanas ganharam energia e intensidade a partir desse momento, um ato de suporte, de apoio. E se, segundo Foucault, a história não é linear, e sim composta de instantes e seus desdobramentos - não a causa/consequência - mas o desdobramento, teríamos aqui um desdobrar foucaultiano no dobrar deleuzeano? Seria essa uma heterotopia conceitual?

“A heterotopia consegue sobrepor, um só espaço real, vários espaços, vários lugares que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece num teatro, no retângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um atrás do outro, um estranho ao outro;”(FOUCAULT, M., 2001, p.82)

Quando o conceito de heterotopia está intimamente relacionada ao tempo, Foucault a chama de heterocronia. Uma heterocronia acontece quando há uma espécie de ruptura do tempo tradicional, um deslocamento no sentido esperado do tempo. Há assim, heterocronias do “acúmulo de tempos”, as quais o tempo não cessa de se amontoar e de se sobrepor a si mesmo. Um museu ou uma biblioteca, por exemplo. Talvez seja possível pensar em uma heterocronia acumulativa na Paulista, ao se tratar de signos. O signo da elite cafeeira, seguido pelo do wall street brasileiro são questões presentes até hoje na avenida (não só na avenida, mas pelo 35



[8] Onde o ponto vira palco Fotografia Ariela Giuli 37


visto em todas as instancias da sociedade brasileira). É comum ouvir que a Paulista “perdeu a graça” depois que foi proibida a circulação de automóveis aos domingos. Quem pensaria dessa maneira? Quem é obtuso, refratário às diferenças e multiplicidades. Como se houvesse uma espécie de “glamour” a ser mantido, este que carregados de signos, muito estaria associado aos edifícios altos com suas fachadas de vidros espelhados? Provável, ainda mais, se de vidros azuis. Uma visão utilitarista da vida, onde a expressão “perda de tempo” parece ter o poder de acionar o modo automático das vivências cotidianas. A condição do “rápido” e do que se diz eficiente parece ser elemento básico e fundamental para qualquer equação. Virou ingrediente vital do agora, que destrói a longo prazo. Safatle magistralmente nos ajuda a clarear as ideias:

“Pois há de fato uma dimensão de liberdade da arte em relação ao que se reduz à mera ocupação, ao

mero

reprodução

preenchimento de

lugares

da já

determinados que é insuportável a uma subjetividade embrutecida pela limitação do seu horizonte de experiência à perpetuação


do presente. Essa liberdade da arte sempre soou como uma afronta aos que não querem outra coisa do que continuar a sustentar a reprodução de um mundo incapaz de produzir qualquer satisfação efetiva com sua existência.” (SAFATLE, V., 2017)

Porém aqui, nos é de maior interesse os tempos efêmeros da avenida, uma heterocronia de outra dimensão.

“Do outro lado do espectro estão as heterotopias

que

estão

associadas

ao

tempo na sua vertente mais fugaz, transitória, passageira.” (FOUCAULT, M., 2001, p.82)

Um morador de rua que checa seus e-mails na calçada, alguém praticando yoga, drag queens ensinando crianças a andar de bicicleta, uma pessoa vestida de panda e um cavalo fazendo um show na calçada, uma banda em que os integrantes estão de paletó e sem calças. Poesia nos totens, colagens nos muros, pessoas se bronzeando. Modelos posando nus, seminus, de vestido de noiva (1). Simultaneamente a plateia veste terno e gravata, ou não. Estaríamos percebendo a avenida como um grande palco de teatro? Onde ocorre uma aparente disjunção entre programa, espaço e tempo? A prática de uma imaginação que passa pela corrupção, talvez subversão, do suporte. Uma cidade heterotópica, que possibilita novas formas de encontro 39


[9] Onde a sobra vira parque Fotografia: Ariela Giuli


41


e sociabilidade, através de uma expansão criativa. A Paulista parece estar infectada por uma heterotopia crônica.

Fluxos Provocar alternativas de caminhos possibilita o reconhecimento do lugar. Esse reconhecimento se mostra como peça fundamental para reforçar a utilização desses espaços. Motivar outras rotinas e lógicas de circulações promovem interações e acontecimentos imprevistos. São suporte ao ser urbano. Associados

à

rede

rizomática

de

fluxos,

conexões visuais entre os níveis são cruciais para que, através da incorporação dos caminhos diretos, as novas possibilidades de percursos, trajetos, e, por consequência os espaços de estar, permanências, sejam expostos. Vislumbrar as possibilidades de fluxos é uma questão espacial, de arquitetura. Não se trata da comunicação visual de placas, sinais ou setas. O embricamento da função de circulação com

os

espaços

de

encontro,

permanência,

potencializa a porosidade do espaço. Assim, de algum modo, os vetores de indeterminação deixadas no projeto possam ser preenchidos, a fim de favorecer a imprevisibilidade da vida.


Importância da escala do entorno A escala da Paulista no térreo é bastante própria. Calçadas amplas e largas, leito carroçável de 28 metros, altura elevada dos edifícios.

“Reconhecer

essa

escala,

da

situação

Paulista, torna-se importante para se pensar outros espaços, também pertencentes a essa situação.” (PICCOLI, I, em conversas, 2017)

Desierarquizar a Paulista também passa por esse reconhecimento.

Dimensão pública Esse projeto se trata de uma escala pública. Não privada. A escala pública exige a compreensão de muitos fatores, que não são próprios da situação privada. São questões mais amplas, que vão além do lote definido. Do projeto ensimesmado. Do offset do terreno. Da “conversa” com o “contexto” físico-construído. A intenção é romper o limite definido do privado, nublar, confundir essa borda. Extravasar para o “lado de lá”. Como formulação de estratégia projetual, esse desejo associase a necessidade de promover acesso público. Acesso que se potencializa no encontro com a cidade, redesenha relações e espaços, inaugurando outras paisagens. Ao mesmo tempo, 43


espaços públicos cuja indeterminação do uso, do programa, abre a possibilidade de serem criativamente apropriados pela população.


Conversações 45


Cartografia do tempo Tentar assimilar o que a Paulista é hoje faz parte de um movimento complexo. Para essa tentativa, foram realizadas fotografias nas calçadas da avenida, que

poderiam

chamar-se

cartografias.

Algumas

versam especificamente sobre as galerias subterrâneas enquanto outras advieram do caminhar e de processos de desvelamento do território. Esta foi uma das maneiras encontrada para interpretar, principalmente os fluxos, e alguns dos acontecimentos que chegavam a mim enquanto derivava. O fotografo alemão Michael Weseley foi de grande influência para esse raciocínio. Em uma palestra ocorrida em abril de 2016 durante o XI Seminário Internacional Espaço Livre na Cidade, em São Paulo, Weseley explica sua inquietação sobre fotografias instantâneas. Diz que tirar uma fotografia captura um momento muito singular, único, e por ser tão breve pode simplesmente expressar um engano. Como fotografo, diz, é muito fácil tirar uma foto de alguém sorrindo por um instante, mesmo o sujeito sendo um ranzinza ingênito. Basicamente, qualquer fotografo

pode

fazer

qualquer

pessoa

parecer

inteligente, feliz, estupida.... Sabemos ser comum as mídias de comunicação visuais tirarem proveito disso,


em que retira-se do contexto um frame exato e utiliza-se como um recurso manipulável, tendencioso conforme o interesse. Mas o que aconteceria se a “duração da foto” fosse estendida? Weseley começou a fazer retratos das pessoas com duração de cinco minutos, pois achou que esse tempo seria o suficiente para ter um “resumo” da pessoa, não um retrato. Foi dessa maneira que o fotógrafo passou a investigar uma técnica que envolve longuíssimas exposições em uma única fotografia, são anos de obturador aberto, indo na contramão das imagens cada vez mais instantâneas que parecem ser uma exigência do mundo contemporâneo. Pelo fato do obturador ficar aberto tanto tempo, é possível revelar circunstâncias ocorridas em momentos diferentes no tempo, simultaneamente, através de rastros. A ideia de condensar um tempo dilatado em uma única fotografia, é no mínimo, fascinante. É a lógica de um filme, que possui milhões de quadros, posto em um único frame. Ao olhar mais atento, passa-se a descobrir, a questionar certos elementos do quadro. Objetos que ficaram mais tempo expostos. Outros, que se percebe uma presença-ausente, ora estavam, agora não mais. A trajetória do sol, os reflexos. Uma fotografia enigmática, que pede tempo, demora, que exige estar. Não imediata, pronta, direta. O campo da publicidade e propaganda, em que se tem como objetivo uma mensagem fácil, rápida, direta, que se acostumou às orações coordenadas simples, aqui enlouquece. Sem muitas pretensões de ter o resultado da indiscutível qualidade de Weseley, algumas cartografias foram feitas na avenida. De uma maneira bem rudimentar, várias fotografias 47



[10] Calçada sagrada | Conjunto Nacional Fotografia: Ariela Giuli


foram tiradas em intervalos de alguns segundos, totalizando alguns minutos entre o primeiro e o último frame, depois foram sobrepostas com auxilio digital. A ideia seguia de uma maneira experimental, a princípio sem muitas expectativas em relação ao resultado. Ao provocar a sobreposição das imagens, algumas questões pareciam saltar aos olhos, apesar do blur, da nuvem, causado pela própria sobreposição. Nessa imagem em específico, na calçada do Conjunto Nacional, é possível observar onde está o fluxo intenso de pessoas. Chama a atenção os objetos fixos na calçada - orelhão, vasos de plantas, banca de jornal que impedem a circulação em seu sentido longitudinal. Só mais adiante, ao fundo da imagem, é possível observar um fluxo no sentido transversal, onde se encontra a faixa de pedestres. Algo curioso é que após a sobreposições de várias imagens em uma única, o bueiro que atualmente permite o acesso à galeria do subsolo parece ter feito notar-se. É de se ressaltar a dimensão quase sagrada que a calçada do Conjunto Nacional tem. Rasgala, a fim de iluminar o subsolo, a princípio parece um crime. “Afinal, como ferir a calçada paulistana mais generosa de todos os tempos?”. Essa cartografia, foi de grande ajuda nesse sentido. Qual seria, em termos de fluxo de pedestres no térreo, a diferença entre os elementos fixos existentes e outros propostos?


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