Palavra e Imagem: As Cidades Invisíveis Ilustradas

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PALAVRA E IMAGEM: AS CIDADES INVISĂ?VEIS ILUSTRADAS Arielle Cristina Martins Professor Orientador:

Ricardo Trevisan



U nive r sidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Arielle Cristina Martins dos Reis PALAVRA E IMAGEM: AS CIDADES INVISÍVEIS ILUSTRADAS

Ensaio Teórico 2/2016 Professor Orientador Ricardo Trevisan Banca Examinadora Elane Ribeiro Peixoto Pedro Paulo Palazzo de Almeida

novembro de 2016



Índice

Apresentação: O Ponto de Partida

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Prelúdio

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Introdução

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Cidades Invisíveis versus Cidades Visíveis Maurília vs. Barcelona Anastácia vs. Atlântida Zirma vs. Samaris Sofrônia vs. Instant City Cloé vs. Tóquio Bauci vs. Ville Radieuse Pirra vs. El Dorado Adelma vs. San Junipero Tecla vs. Nova Iorque Procópia vs. Hong Kong Teodora vs. “O Labirinto do Fau

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Considerações Finais

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Anexo: Três Cidades...

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Referências Bibliográficas

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Resumo O presente Ensaio consiste em uma interpretação das cidades contidas no livro “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, por meio de análises comparativas. Dois fatores principais justificam a escolha desse tipo de análise: 1) a tendência à dualidade presente na maioria das cidades do livro, que contêm sempre duas perspectivas ou dois “lados”, conduzindo à sua comparação com outros exemplares urbanos; e 2) a tentativa de atribuir uma imagem às palavras de Calvino – tentativa essa que se faz natural durante toda a leitura da obra –, que induz à busca de referências em outras áreas que trabalhem essencialmente com imagens - cinema, fotografia, desenho etc. – e que se fazem importantes no processo imaginativo das cidades. Esses pares de cidades – onze ao todo – compartilham um discurso que as relaciona, que as aproxima ou as afasta. O discurso presente entre uma Cidade Invisível e seu correspondente exemplar refere-se à cidade e aos seus habitantes. Assim, essas cidades servem de mote para discutir e refletir a cidade, o urbanismo e urbanidade a partir delas. Juntamente às análises, se mostrou pertinente uma segunda interpretação visual dessas cidades, por meio de ilustrações. Dessa forma, o escopo do Ensaio possui dois produtos. O primeiro constitui-se de onze narrativas comparativas entre um exemplar de Cidade Invisível e um outro exemplar urbano, retirado de projetos utópicos, cidades fictícias e cidades reais, que se relacionem por um discurso. As comparações foram feitas sob uma visão urbanística e arquitetônica, deixando-se que outros assuntos se fizessem presentes sempre que relevantes. O segundo produto consiste em onze ilustrações autorais, apresentadas junto às suas cidades correspondentes e objetivam insinuar visualmente a relação entre essas cidades e auxiliar em sua compreensão. PALAVRAS-CHAVE: Cidades Invisíveis; Urbanismo; Cidades; Análise Comparativa; Ilustrações.



Abstract The present Essay is an intension of an interpretation of the cities contained in the book “The Invisible Cities”, by Italo Calvino, through comparative analysis. Two main factors justify the choice of this type of analysis: 1) the tendency to duality present in most cities of the book, which always contain two perspectives or two “sides”, leading to its comparison with other urbanistic examples; and 2) the attempt to assign an image to Calvin’s words – which is a natural process throughout the reading of the work – which induces the search for references in other areas that work essentially with images – such as cinema, photography, drawing, etc. - and which become important in the imaginative process of the cities. The pairs of cities formed are related by sharing an equivalent discourse, which draws them close or distances them. The discourse present in “The Invisible Cities” and in its corresponding pair refers to the city and its inhabitants. Thus, these cities serve as motto to discuss and reflect the city, urbanism and urbanity from them. Besides the analyzes, a second visual interpretation of these cities was made pertinente. In this way, the Essay has two products. The first consists of eleven comparative narratives between an exemplar of Invisible City and another urban exemplar, taken from utopian projects, fictitious cities and real cities, that are related by a discourse. The comparisons were made under an urban and architectural vision, letting other subjects to be present whenever relevant. The second product consists of eleven illustrations, presented together with their corresponding cities. They aim to visually insinuate the relationship between the two cities, aiding in their understanding. KEY WORDS: Invisible Cities; Urbanism; Cities; Comparative Analysis; Illustrations.



Apresentação: o ponto de partida Numa segunda-feira de janeiro de 2015 começava em Brasília a mostra “O Universo de Miyasaki/Otomo/Kon”, em homenagem aos três diretores de animação japoneses: Hayao Miyazaki, Katsuhiro Otomo e Satoshi Kon1. A mostra contava com exibições de filmes, oficinas de mangá2 e aulas expositivas sobre o universo da animação japonesa. Essa última parte era a que mais me interessava e me apressei em fazer a inscrição para as aulas, que pareciam ter vagas concorridas. Cheguei então ao auditório da Caixa Cultural às 15hs de uma quarta-feira para o curso sobre a animação do Studio Ghibli, que duraria até sábado. Foi na aula de quinta-feira, intitulada “Um Velho Mundo Idealizado”, que pela primeira vez escutei sobre o livro “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino (1972). A aula tratava sobre a construção de um espaço fundamentado na realidade, como acontece nos desenhos “Porco Rosso” e “Kiki’s Delivery Service”, ambos de Miyazaki. Nesses desenhos, cidades e paisagens europeias reais inspiraram os cenários, como a ilha Stiniva na Croácia e a cidade francesa de Colmar, respectivamente. O palestrante usou dessa relação entre o espaço real e o idealizado para citar outras obras e artistas, como o livro de Calvino e o ilustrador Albert Robida, famoso por suas suposições futurísticas na série “Le Vingtième Siècle”. O primeiro contato com o livro de Calvino foi enaltecedor. Uma obra cujo autor, dotado de genialidade, cria cinquenta e cinco cidades imaginárias e fantásticas, apresentadas em pequenos contos. Para uma estudante de arquitetura e urbanismo em seu quinto semestre, vários desses temas parecem extremamente interessantes: os desenhos animados e sua cenografia, a criação de espaços imaginários, ilustrações sobre os hábitos do futuro, um autor que pudesse criar aquelas cidades, sem conhecimento formal prévio sobre arquitetura ou urbanismo. Alguns meses após a mostra, saía da livraria com o livro nas mãos, ansiosa para conhecer essa representação criativa.

1 Hayao Miyazaki nasceu em Tóquio em 1941 e é um dos mais respeitados animadores japoneses. Miyasaki é conhecido por seus trabalhos em “A Viagem de Chihiro”, 2001, e “O Castelo Animado”, 2004, em que ele utiliza traçados feitos à mão (os recursos digitais como ferramenta secundária). Katshuro Otomo, conhecido pela sua animação “Akira”, 1988, teve grande participação na popularização da animação japonesa nos Estados Unidos. Em seus filmes as ferramentas digitais são utilizadas a fim de simular um desenho feito à mão. Satoshi Kon nasceu em 1963 em Hokaido e faleceu em 2010, em Tóquio. É considerado um dos artistas mais promissores da animação japonesa, sendo conhecido por seus trabalhos em “Paprika”, 2006 e “O Túmulo dos Vagalumes”, 1988. 2 Mangá é a palavra utilizada para designar história em quadrinhos japonesas, lida da direita para a esquerda.

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Prelúdio A concepção e a estrutura do presente Ensaio Teórico se deram a partir de sua referência principal, o livro “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino2 (original: Le città invisibili; primeira publicação em novembro de 1972). Nessa obra, o autor italiano confabula diálogos entre duas conhecidas figuras históricas: o viajante veneziano Marco Polo e o imperador mongol Kublai Khan. As viagens de Marco pelo Oriente estão reunidas em “O Livro das Maravilhas” (século treze), em que ele relata suas missões diplomáticas a serviço do Grande Khan pelo Império Mongol. Os relatos de Polo são de difícil confirmação quanto a veracidade, ao passo que o veneziano inclui às informações sobre a religião e costumes orientais, histórias sobre um califa perverso, um sapateiro sagrado, e outros relatos um tanto fantasiosos. Calvino extrapola a fama de Marco Polo em contar histórias fantásticas e o coloca como narrador dessas cidades com paisagens exóticas e habitantes excêntricos; cidades com realidades aparentemente futurísticas, porém de aspectos medievais. Veneza, a cidade natal de Polo, se torna importante nas narrativas, pois Marco confessa acrescentar a presença dela em cada cidade que relata. O livro conta com cinquenta e cinco cidades, divididas em onze temas. Os relatos das cidades – que notavelmente possuem nomes femininos – são intercalados com diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Os temas apontam o assunto que será abordado com maior enfoque; são eles: memória, desejo, sinais, delgadas, trocas, olhos, nome, mortos, céu, contínuas e ocultas. As cidades não são apresentadas para o leitor divididas por tema; aparentando ter uma lógica aleatória. Apesar de classificadas, algumas cidades podem se aproximar de mais de um tema, a depender da interpretação.

Italo Calvino nasceu em Cuba em 1923. De família italiana, Italo se mudou para a Itália ainda pequeno. Em sua vida Calvino se associou às ideias comunistas e ao ativismo político. Italo faleceu em 1991, em Siena, na Itália. “As Cidades Invisíveis”, 1972, é uma de suas obras mais conhecidas. 2

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Introdução Em “Seis Propostas para o novo milênio” (1990), Italo Calvino revela como o seu livro “As Cidades Invisíveis” lhe permitiu concentrar todas as suas “reflexões, experiências e conjecturas” (CALVINO, 1990, p. 85) sobre a cidade. Para Calvino a cidade é um símbolo complexo, no qual ele consegue exprimir de forma mais completa “a tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado das existências humanas”. (CALVINO, 1990, p. 85) Calvino preparou cinco conferências, posteriormente publicadas em “Seis Propostas para o Novo Milênio”, que seriam proferidas na Universidade de Harvard no ano letivo de 1985-1986 – Calvino faleceu em setembro de 1985, antes que pudesse participar das conferências; ele desenvolveu cinco das seis conferências previstas antes de sua morte. As cinco conferências tinham como temática “qualidades da escritura” que ele pretendia passar para a juventude do novo milênio que se aproximava. Eram elas: “Leveza”, Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”. Sua obra literária, “As Cidades Invisíveis”, é citada como exemplo de duas delas – “Rapidez” e “Exatidão”, as quais o presente Ensaio Teórico pretende se estruturar e justificar a sua escrita. A primeira conferência revela uma predileção de Calvino aos textos curtos, que seguem o “percurso velocíssimo dos circuitos mentais que captam e reúnem pontos longínquos do espaço e do tempo” (CALVINO, 1990, p. 85). O autor utiliza da “Rapidez” em “As Cidades Invisíveis”, em que cada um dos exemplares urbanos é apresentado em uma narrativa que se enquadra, segundo o autor, entre o apólogo e o pequeno poema em prosa. Calvino acredita que os textos breves, a destacar as leituras infantis de contos e fábulas, proporcionavam um texto lacônico, que permite ser reinterpretado e recontado de diversas formas “respeitando-lhe a concisão e procurando dela extrair o máximo de eficácia narrativa e sugestão poética” (CALVINO, 1990, p. 49). Assim são as Cidades Invisíveis. Cada apólogo correspondente a uma cidade permite diversas interpretações por parte do leitor. Se “tudo o que é nomeado tem uma função necessária no enredo” (CALVINO, 1990, p. 50), as lacunas deixadas pelos textos ficam à disposição da imaginação. Aqui, as análises das cidades serão feitas, principalmente, sob a ótica urbanística e arquitetônica, com diligência em deixar as narrativas serem influenciadas por outras perspectivas secundárias, intencionando que se diluam e acrescentem pontos pertinentes à história. Essas análises serão feitas por meio de comparações das cidades invisíveis com outros exemplares urbanos que se fizeram relevantes para o entendimento da cidade e de sua imagem. A simpatia de Calvino pela fábula e pela aventura conferiu às suas obras uma característica imagética que naturalmente brota delas – o que acontece durante a leitura de “As Cidades Invisíveis”. Assim, a escolha dos exemplares que se relacionaram com as cidades de Calvino foi em parte norteada pela imagem que se tem ao ler “As Cidades Invisíveis”. Essas imagens são referências que foram buscadas no cinema, na fotografia, nas histórias em quadrinhos e em projetos de cidades utópicas. Nesse sentido,

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neste Ensaio Teórico foram criadas quatorze ilustrações autorais, onze delas apresentadas juntamente às cidades as quais referenciam. A produção das ilustrações auxiliou a desenvolver a narrativa que relaciona as duas cidades; assim como auxiliará no entendimento das comparações. Sobre os processos imaginativos e as referências de outras áreas, Calvino expõe: “Podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal. O primeiro processo é o que ocorre normalmente na leitura (...) No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro “vista” mentalmente pelo diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidade num set, para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme”. (CALVINO, 1990, p. 99).

Na segunda conferência, Calvino revela o que entende por “Exatidão” e expõe as suas definições, dentre as quais ele destaca: 1) a clareza na definição do projeto de uma obra; 2) a evocação de uma imagem visual memorável e; 3) uma linguagem mais precisa possível. Porém, o autor diz ter percebido, ao escrever “As Cidades Invisíveis”, que esta obra é puramente dúplice; até mesmo em sua exatidão. Todos os onze temas se bifurcam durante as narrativas. Elas começam descrevendo algo sobre a cidade ao leitor, até que revelam uma outra perspectiva ou um lado oculto inesperado da mesma cidade. Ao apresentar cada Cidade Invisível com o seu respectivo par, essa estrutura dúplice se mantém também no Ensaio.

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Cidades Invisíveis versus Cidades Visíveis Os exemplares urbanos aqui comparados com as Cidades Invisíveis serão chamados de Cidades Visíveis, ao passo que auxiliam na visualização da imagem dessas cidades; e podem ser organizados em quatro tipologias: cidades fictícias, como as de Calvino; cidades reais; cidades reais vistas sob uma perspectiva subjetiva (filmes); e cidades utópicas (propostas por arquitetos). Somente uma delas não foi originalmente chamada de “cidade”4, aqui considerada como uma. Cada comparação seguirá o modelo estilístico e estrutural do livro; com textos breves e rápidos. As comparações estão organizadas a partir das onze temáticas tratas no texto – totalizando onze comparações. Os pares de cidades foram comparados a partir de um discurso que as aproxima ou as afasta e que abordam discussões sobre a cidade e seus habitantes; discurso este presente na temática de cada cidade e que, como o próprio Calvino expõe em sua conferência sobre a “Rapidez, se aproxima de um raciocínio dedutivo. Dentre as cinquenta e cinco cidades foram escolhidas onze, uma representativa de cada tema. O Plano de Trabalho do Ensaio contava com vinte e três pares de cidades. Alguns temas contavam com apenas um par – selecionados para a comparação –; outros contavam com dois a quatro pares – para estes, as cidades foram escolhidas conforme as comparações se mostravam mais relevantes. No Ensaio, elas estão apresentadas na mesma ordem em que cada tema se apresenta no livro de Calvino; para que, nas palavras do autor, se construa “(...) uma estrutura multifacetada em que cada texto curto está próximo dos outros numa sucessão que não implica uma consequencialidade ou uma hierarquia, mas sim uma rede dentro da qual se poderão traçar múltiplos percursos e extrair conclusões plurais e ramificadas.” (CALVINO, 1990, p. 86). As referências ao narrador muitas vezes confundem a figura de Calvino com a de Marco Polo, e considera-se que os dois estão descrevendo as cidades. Ao início de cada comparação dois parágrafos foram constantes: observações e comentários gerais sobre o tema em si e resumos sobre as demais cidades do tema não selecionadas para as comparações. Esses breves resumos objetivam despertar o interesse do leitor para as várias cidades presentes no atlas das Cidades Invisíveis e permitir que novas relações de referências possam ser criadas ou percebidas, por meio da apropriação dessa interpretação comparativa das Cidades Invisíveis.

Em “O Labirinto do Fauno, Guillermo del Toro, 2006, a cidade aqui utilizada como exemplar é chamada de Submundo. 4

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Maurília (“As Cidades e a Memória”, p. 30) versus Barcelona (“Vicky Cristina Barcelona”, Woody Allen, 2008 e “Biutiful”, Alejandro Iñarritu, 2010)

“Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões postais não representam Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília”. (CALVINO, 2002, p. 30-31).

“As Cidades e a Memória” é o primeiro tema apresentado por Calvino. Essas cidades cujas características principais se relacionam com a memória trazem um embate entre o passado e o presente, onde o passado é louvado, impossibilitando a cidade presente de seguir em frente. Diomira, a primeira das cidades, abre a discussão sobre o tema, associando a memória de uma cidade com a lembrança que se tem de tantas outras. As próximas cidades possuem “um encantamento e uma armadilha”5, que se dá com a percepção de que o passado, aparentemente ideal, não se mantém imutável, e pode acabar “matando” a cidade. Enquanto as três cidades centrais abordam uma memória coletiva da cidade; a última cidade, Maurília, demonstra como a cidade possui diferentes interpretações, uma memória individual que depende de como o indivíduo percebe e se relaciona com a cidade. As cinco cidades da Memória são todas apresentadas nos dois primeiros capítulos do livro, contrastando com “As Cidades Ocultas”, as últimas a serem lidas. Diomira é uma cidade de várias belezas. As suas cúpulas, estátuas e ruas, porém, são reconhecíveis por já terem sido vistas em outras cidades. Isidora é a cidade onde se materializam todos os desejos de um homem. Ela parece a cidade dos sonhos até que se percebe que Isidora é a idealização de um passado, de quando o homem ainda era jovem, e os desejos agora são lembranças. A cidade de Zaíra está presa à memória dos acontecimentos do seu passado. Seus aspectos físicos são descritos de maneira a remeter à eventos ainda presentes na memória coletiva: “a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado” ou “o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha” (CALVINO, 2002, p. 14). Zora é uma cidade memorável por ser facilmente memorizada. A condição de ser recordada, porém, fez a cidade permanecer inalterada, até ser enfim esquecida. Maurília é a última das “Cidades e a Memória”. Nela, os visitantes são convidados a conhecer a cidade ao mesmo tempo em que olham para os seus antigos cartões postais, que revelam notável diferença nos locais visitados. Para o conMONTEIRO, Evandro Ziggiatti. Cidades Invisíveis Visitadas: Uma Leieitura de Italo Calvino para Compreender a Paisagem Urbana. 2009. 5

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forto de seus habitantes, o visitante deve preferir a Maurília dos cartões postais à Maurília atual. Isso com muita cautela para não menosprezar o fato de a cidade ter se desenvolvido e prosperado. Calvino atenta para o fato de que a memória da cidade, registrada nos cartões postais, só pode ser hoje louvada em decorrência da mudança que a cidade sofreu pois, se a Maurília provinciana tivesse permanecido, não se veria “absolutamente nada de gracioso” (2002, p. 30). O autor faz observações sobre a transformação de pequenas cidades antigas em metrópoles no último parágrafo da descrição da cidade. Para ele existem várias outras cidades como Maurília, que há muito deixaram de ser como eram para se tornarem metrópoles. As cidades de Paris, Londres, Barcelona, entre outras, se encaixam nesse fenômeno proposto por Calvino, e hoje são cidades diferentes das que eram há décadas atrás. Barcelona, particularmente, passou por uma evidente transformação e desenvolvimento urbano em séculos distintos. Por volta de 1850, a cidade espanhola recebeu o plano de extensão de Ildefonso Cerdá, pioneiro na disciplina do urbanismo. Nos próximos séculos, mais especificamente em 1992 e 2004, a cidade sediou os Jogos das Olimpíadas e o Fórum Universal de Culturas, respectivamente. A partir desses eventos culturais, principalmente o de 1992, Barcelona se transformou em um destino turístico, “um centro de negócios feroz, uma cidade baseada no design e na arquitetura modernos, uma marca própria que seria baseada em consumismo e especulação”6. Isso a distancia da imagem de típica cidade industrial que costumava ser. Esse processo de desenvolvimento urbano barcelonês demonstra como ele tem influenciado a relação que os habitantes e turistas têm com a cidade. No processo de entendimento da cidade de Maurília, dois filmes se tornaram importantes referências. Já que Maurília é um único nome para várias cidades distintas, mas que por acaso ocupam o mesmo solo; a análise de dois filmes, duas visões distintas e quase antagônicas de uma mesma cidade – Barcelona –, se faz válida. As duas visões correspondem a Woody Allen, em “Vicky Cristina Barcelona” (2008), e Alejandro Iñarritu, em “Biutiful” (2010). Ambas abordagens chegaram a ser criticadas pois, evidentemente, se trata da visão de um norte-americano e de um mexicano sobre uma cidade espanhola. Os dois filmes conseguem “sensibilizar os espectadores das fronteiras geralmente invisíveis, mas às vezes muito visíveis, que fenômenos como a globalização, gentrificação, imigração e turismo criam dentro da cidade” (DELEYTO & LÓPEZ, 2014). O discurso presente em “Vicky Cristina Barcelona” (VCB) introduz melhor a análise entre os dois filmes. No longa-metragem, duas mulheres norte-americanas (Vicky e Cristina) viajam para Barcelona como turistas. Expostas à atmosfera limpa, otimista e artística da cidade, elas começam a viver uma história típica de Woody Allen, que envolve romances, acontecimentos inesperados e clichês envolvendo tanto a cidade quanto as personagens espanholas que aparecem na narrativa (Juan Antonio e Maria Helena). Em VCB o espectador vê a Barcelona dos cartões postais, das formas de Gaudí, das cores vibrantes e do azul do céu.

DELEYTO, Celestino, LÓPEZ, Gemma. Catalan beauty and the transnational beast: Barcelona on the screen. Transnational Cinema Vol. 3 No. 2, p. 157-175, 2014. 6

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Os cartões postais representaram muito mais do que só a memória da cidade. O ápice da utilização deles foi por volta de 1910, quando milhares foram impressos, vendidos e postados. As pessoas que os enviavam reconheciam na cidade a memória de alguém, que se encontrava distante e que poderia nem ao menos ter visitado a cidade em questão. As pessoas que o recebiam tinham os cartões como a única memória da cidade, geralmente aquela vendida e anunciada pelas autoridades locais. De fato, a Barcelona que vemos em VCB é a cidade vendida pelas autoridades aos turistas: uma Barcelona das classes médias intelectuais, que vemos nos guias turísticos. Outra importante questão presente na Barcelona dos cartões postais é a definição dos pontos que estarão presentes nos passeios turísticos: o Parque Guell, A Sagrada Família, La Pedrera, etc., todos eles exibidos no filme. A edição é feita de modo que todos esses pontos turísticos pareçam estar em um espaço contínuo, sem uma separação entre eles. “Juan Antonio vive em uma casa localizada em uma área rica nas encostas de Vallvidrera, (...). No entanto, a maior parte do resto da ação occore em pontos reconhecíveis da relativamente distante Ciutat Vella, como se não houvesse nada no meio” (DELEYTO & LÓPEZ, 2014). Barcelona é então reduzida ao tamanho de uma pequena cidade, como a Maurília provinciana dos cartões postais. Em “Biutiful”, Alejandro Iñarittu proporciona ao espectador uma percepção contrária à de Allen em VCB. O diretor deixa a dúvida sobre onde o filme se passa durante boa parte dele. Só se pode ter certeza de que as personagens realmente se encontram em Barcelona quando em apenas uma cena pode-se avistar a Sagrada Família e a Torre Agbar ao fundo, em segundo plano (Imagem 1).

Imagem 1. Barcelona em “Biutiful”. Fonte: comics-tirinhas blogspot.

O filme conta a história de Uxbal (Javier Bardem). Pai de duas crianças, ele as cria praticamente sem a ajuda da mãe, enquanto mantém um negócio de vendas ilegais com imigrantes também ilegais e faz trabalhos como médium, ajudando pessoas que acabaram de perder algum ente querido. A vida de Uxbal começa a se complicar ainda mais quando ele descobre um câncer terminal que provavelmente o matará em alguns meses. A localização exata do bairro em que Uxbal vive não pode ser identificada no filme, como acontece em VCB, apesar de se saber que a maioria das filmagens foram feitas em Badalona e Santa Coloma de Gramenet, ambos municípios de crescente

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população imigrante. Ao contrário de VCB, “Biutiful” possui uma atmosfera melancólica e escura. A marginalização representada no filme, cujas personagens são quase puramente imigrantes africanos, orientais e sul americanos (a personagem principal parece ser uma das únicas a ter família espanhola), relata um processo de gentrificação da cidade de Barcelona. Essas personagens representam o grupo social que o processo de metropolização levou a morar em bairros cada vez mais distantes dos setores turísticos. Segundo Celestino Deleyto e Gemma López essa gentrificação “têm expulsado os imigrantes para longe de Ciutat Vella para dar espaço para intelectuais, artistas, turistas e visitantes ricos do tipo que vemos em Vicky Cristina Barcelona” (DELEYTO & LÓPEZ, 2014). Iñarritu utiliza um outro elemento visual da cidade para ambientar a sua narrativa: a Central Térmica del Bésos (Imagem 2). Presente e perceptível no skyline de Barcelona, a Central, desativada desde 1966, representa o passado industrial tanto da cidade quanto dos habitantes que trabalharam na indústria; não coincidentemente a cena em que as três torres da Central são mostradas (Imagem 3) antecede a cena em que os trabalhadores asiáticos ilegais são encontrados mortos em seu esconderijo, asfixiados por aquecedores a gás comprados por Uxbal.

Imagem 2. Central Térmica del Bèsos. Fonte: Panoramio

Imagem 3. Central Térmica del Bèsos em cena de “Biutiful”. Fonte: Netflix

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A Barcelona de Iñarritu se assemelha à Marília cidade grande, onde a estação de ônibus, o viaduto e a fábrica de explosivos se encontram nos lugares onde antes podia-se ver uma galinha, um coreto e duas moças com sombrinhas brancas, eternizados nos cartões postais7. Claramente, quem visita Barcelona deve preferir a Barcelona dos cartões postais, aquela mostrada em VCB; mas não se deve esquecer o fato de que a cidade passou por grandes processos de urbanização, que devem ser reconhecidos. Ambos os diretores utilizam artifícios imagéticos para representar de forma diferente uma mesma área geográfica. O cinema revela a sua capacidade de transformar um único local em diversas narrativas díspares. Como Maurília, a Barcelona dos cartões postais de Allen não representa a Barcelona de Iñarritu, assim como nenhuma delas representa a Barcelona “real”, e sim “uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília” (2002, p. 30).

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Calvino, sobre a cidade de Maurília (2002, p. 30).

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Anastácia

(“As Cidades e o Desejo”, p. 16) (Platão, 360 a.C)

versus Atlântida

“A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram por preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano (...). Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade (...).”. (CALVINO, 2002, p. 16).

Marco Polo explica ao Grande Khan como são as cidades desejadas como num sonho: “(...) tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outras coisas.” (CALVINO, 2002, p. 44)

Os exemplares urbanos de “As Cidades e o Desejo” possuem paisagens dúbias e múltiplas. Essas paisagens se manifestam na relação do indivíduo com a cidade. Todas elas parecem ser a materialização de seus sonhos; um desenho urbano impecável, as melhores mercadorias que se poderia encontrar, a cidade ideal. Logo, o visitante descobre que cada uma dessas cidades possui um outro lado, muitas vezes antagônico, que ele percebe conforme amadurece a sua visão sobre a cidade. O mar e a areia, os quais o autor chama de desertos, estão presente em quase todas as cidades do tema. O calor, a iluminação excessiva, a falta de estímulos visuais etc., causam uma miragem, muitas vezes confundida com alucinação pela ficção. Calvino utiliza essa característica dos desertos para criar cidades a partir de um desejo, mas que acabam sendo uma miragem, e a medida que o viajante se aproxima descobre a verdade sobre elas. A cidade de Doroteia pode ser descrita de duas maneiras diferentes. A primeira diz respeito ao seu desenho urbano e a sua arquitetura – torres, muralhas e pontes levadiças –, uma visão arquitetônica e urbanística um tanto impessoal. A segunda é a visão de um indivíduo que chega a cidade após uma longa temporada no deserto e pensa que não há nada mais que possa desejar. Porém, ao partir de Doroteia, ele percebe que aquela visita foi apenas o início de seu desejo, e que o caminho que segue agora é “apenas uma de muitas estradas que naquela manhã se abriram para mim em Doroteia” (CALVINO, 2002, p. 13). Quem deseja chegar a Despina pode escolher entre dois caminhos: o de navio ou o de camelo, pois ela se encontra entre “dois desertos”, o de areia e o de água. A cidade que se apresenta no horizonte é diferente para o marinheiro e para os cameleiros. Na cidade de Fedora existe um palácio que contém inúmeras esferas azuis. Dentro de cada uma delas se encontra o desejo de indivíduos que pensaram ter imaginado uma Fedora ideal. Enquanto construíam em suas esferas a cidade idealizada em miniatura, a Fedora de tamanho real se transformava e deixava de ser a mesma de antes. Zobeide foi construída a partir de um sonho e um desejo em comum. Vários homens sonharam com uma mulher que corria

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pelas ruas de uma cidade, até se perder de vista. Eles desejavam alcançar a mulher, sem êxito. Saíram, então, à procura da cidade de seus sonhos, mas só encontraram uns aos outros. Decidiram construir aquela cidade que se apresentou em seus sonhos, rua a rua; só que dessa vez, com o cuidado de deixar a mulher dos sonhos sem escapatória quando enfim chegasse a Zobeide, que se tornou um labirinto de armadilhas. Anastácia, por sua vez, possui dois lados antagônicos; o que atrai e encanta os viajantes e o oculto que os engana e manipula. Quem chega a Anastácia é surpreendido pelas suas riquezas em abundância; as mercadorias de melhor qualidade, vendidas pelo melhor preço e pelas mulheres que se banham nuas num tanque de um jardim. Anastácia desperta em seus visitantes inúmeros desejos que devem ser reprimidos; o que os deixa eufóricos ao invés de cismados. Quem chega a Anastácia e vê todos os seus desejos logrados, decide permanecer para sempre. Mas Anastácia possui a capacidade de manipular o desejo de seus visitantes, que agora a habitam. Enquanto eles pensam estar realizando todos os seus desejos se tornam escravos da cidade. “(...) se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma (...)” (CALVINO, 2002, p. 16). A descrição física de Anastácia remete claramente à espacialização da cidade de Atlântida. O povoamento da Ilha de Atlântida era de responsabilidade do deus Posídon – quando os deuses decidiram dividir a terra em regiões –, e lá ele abrigou os filhos que tivera com uma mulher mortal. Segundo Crítias, na obra platônica Timeu-Crítias, na ilha já existia um casal de mortais com uma filha, Clito, a quem Posídon desejara e decidira proteger. Para isso, Posídon “(...) desfez num círculo o monte em que ela habitava, e construiu à volta anéis de terra alternados com outros de mar (...) torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos, para que fosse inacessível aos homens.” (PLATÃO, 2011, p. 230). Crítias então descreve como se deu a organização do centro da cidade, a divisão de poderes e das riquezas, o desenvolvimento urbano da ilha etc.

Imagem 4 . Atlântida por Lloyd T. Townsend (século dezenove).

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Sabe-se que a cidade de Atlântida, assim como Anastácia, produzia tudo em abundância; raízes, folhagens, flores, frutos e o que mais seus habitantes pudessem desejar. Com uma população extremamente organizada em caso de guerra, Atlântida chegou a dominar diversas outras ilhas e algumas partes do continente, tornando-se uma potência e escravizando todas as regiões dominadas. O fim de Atlântida se deu do dia para a noite, quando um abalo sísmico e um dilúvio afundaram a ilha, que desapareceu para sempre no mar8. Calvino parece propositalmente descrever Anastácia à imagem de Atlântida. Desde os diálogos de Timeu e Crítias, escrito por volta do século 360 a.C., a cidade de Atlântida, a sua imagem, sua veracidade, sua localização geográfica e seu povo têm sido explorados. Se “As Cidades e o Desejo” se referem às cidades utópicas imaginadas e projetadas, como acontece com as esferas azuis na cidade de Fedora, nenhuma outra cidade seria melhor exemplo que a cidade perdida de Atlântida. Inicialmente, ela foi desejo dos deuses, que tinham o objetivo de estabelecer seus “templos e sacrifícios em seu próprio benefício” (PLATÃO, 2011, p. 230); depois, passou a ser aspirada por outros povos, que desejavam acabar com o poderio da ilha; e, por fim, é desejada até hoje por aqueles que ainda se inspiram em sua estória.

Imagem 5 . Atlântida em “Atlantis: o Reino Perdido” (2001). Fonte: O Camundongo

Acredita-se que tais fenômenos tenham ocorrido por ordem do próprio Zeus, após se reunir com os demais deuses, pois ele acreditava que os habitantes de Atlântida haviam caído em desgraça e decidiu puni-los. 8

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Zirma

(“As Cidades e os Símbolos”, p. 23) versus (“Os Muros de Samaris”, Schuiten & Peeters, 1983)

Samaris

“Da cidade de Zirma, os viajantes retornam com memórias bastante diferentes: um negro cego que grita na multidão, um louco debruçado na cornija de um arranha-céu, uma moça que passeia com um puma na coleira. Na realidade, muitos dos cegos que batem as bengalas nas calçadas de Zirma são negros, em cada arranha-céu há alguém que enlouquece, todos os loucos passam horas nas cornijas, não há um puma que não seja criado pelo capricho de uma moça. A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente ”. (CALVINO, 2002, p. 23)

Marco Polo, recém-chegado ao Império Mongol, não falava e nem entendia as línguas familiares ao imperador Kublai Khan. Isso não o impedia de relatar tudo o que ocorria em suas viagens. Era um jogo de improvisar e interpretar: Marco fazia gestos com as mãos, braços, saltava, gritava... e o imperador achava tudo aquilo fascinante, “o espaço que restava em torno deles, um vazio não preenchido por palavras” (CALVINO, 2002, p. 41). O espaço em branco em suas narrativas permitia ser preenchido pela imaginação do Khan e era possível percorrer as cidades “com o pensamento, era possível se perder, parar para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente” (CALVINO, 2002, p. 41). Com o passar do tempo, Marco aprendeu a língua tártara e muitas outras, os gestos passaram a ser substituídos por palavras e as narrativas de Polo se tornaram as mais detalhistas do Império. Porém, a comunicação já não era mais tão eufórica, as palavras eram escassas e Polo começava a gesticular novamente. O Grande Khan sentia falta da antiga comunicação; quando escutava sobre alguma cidade se recordava do símbolo ou gesto que o veneziano utilizava na primeira vez que se referiu a ela. As cidades de “As Cidades e os Símbolos” se comunicam com o indivíduo como Marco Polo se comunicava com o Khan no início de sua jornada. Os signos que elas apresentam permitem que sejam interpretadas, desvendadas. A cidade transmite os códigos de uma sociedade e, por meio deles, é possível identificar o povo que ali vive ou viveu. Segundo Ana Carina Oliveira Silva, em sua tese de mestrado: “Em diversas situações a expressão de poder e da cultura de uma sociedade é transmitida através da arquitetura e ao identificá-la, é possível perceber os ideais, valores e símbolos dessa sociedade em períodos específicos de sua história” (2013, p. 47). Em Tamara nada vale por si próprio, e sim como símbolo de algo: a figura do jarro, insígnia presente no edifício, representa a taberna; “as alabardas, o copo de guarda; a balança, a quitanda” (CALVINO, 2002, p. 17), e assim por diante. Em Zoé a forma não segue a função. Um prédio cuja forma remete aos grandes palácios de outras cidades em Zoé é, na verdade, um abrigo de mendigos. Não se consegue distinguir os locais que na mente são distintos; em Zoé eles se encontram misturados. Em Ipásia ocorre algo semelhante à Zoé pois nada segue a ordem previamente estabelecida na mente do viajante. O local dos sábios não é a biblioteca e sim o jardim das crianças, revelando uma nova cultura com novos hábitos e signos a serem desvendados. Na cidade de Olívia revela-se que não se deve confundir o discurso sobre a cidade com o que ela realmente é. Uma descrição pretensiosa sobre o lado “bom” de Olívia in-

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duz o visitante a descobrir o seu lado oculto, pois todo discurso possui mais de uma perspectiva. Contudo, não seria possível descrever Olívia sem fazer o mesmo discurso de sempre. “A mentira não está no discurso, mas nas coisas” (CALVINO, 2002, p. 60). A cidade de Zirma se repete para fixar algo à mente. Dela cada viajante retorna com uma memória diferente pois a relação de cada um com a cidade varia e depende de sua memória individual. Ao final, Calvino esclarece que o que muda não é a cidade, e sim a memória de cada indivíduo que retorna dela. “A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”. Em Zirma é possível se recordar da história da cidade de Samaris e do jovem Franz, em “Os Muros de Samaris”, e faz-se o esforço de tentar desvendar e perceber o que as aproxima. “Os Muros de Samaris” é uma história em quadrinhos publicada por François Schuiten9 e Benoît Peeters em 1983, como parte da série intitulada “As Cidades Obscuras”10. A história conta a jornada do jovem Franz, habitante da cidade de Xhystos que é enviado pelas autoridades à cidade de Samaris, a fim de desvendar o mistério que envolve tanto a cidade quanto os que de lá não retornam. O quadrinho começa com uma imagem panorâmica da cidade de Xhystos e falas do narrador (Imagem 6). Já na primeira página é possível captar uma atmosfera misteriosa que se estende por toda a história. “Eles vieram a mim essa semana. Disseram que devo ir para Samaris, que o boato não havia morrido e que o único modo de terminá-lo era ser enviado como observador...Eu sou, como dizem, o único homem que consegue” (SCHUITEN & PEETERS, 1983), diz o narrador. Não se sabe quem foi até o narrador (até o momento não se sabe nem ao menos quem é o narrador), o que seria Samaris (uma cidade? Um bairro?), e que boato seria esse. O narrador nunca chega a se apresentar e seu nome — Franz — é pela primeira vez mencionado em uma conversa na sexta página do quadrinho. Pouco se sabe sobre o que acontece tanto em Xhystos quanto em Samaris, o que faz o leitor prestar atenção em cada pista deixada. Franz, o narrador que partirá para Samaris em breve, se encontra com amigos antes de sua viagem. Eles o reprimem por ter tomado tal decisão, pois Mark e Clara (pela primeira vez citados) “também pensaram que a viagem seria simples (...)” (SCHUITEN & PEETERS, 1983); e logo deduz-se que nenhuma das personagens citadas retornara da ida a Samaris. Ignorando todas as opiniões, pois já havia assinado o acordo irreversível de sua partida com o que pareciam ser as autoridades de Xhystos, Franz parte em direção a Samaris.

François Schuiten nasceu na Bélgica em 1956. Filho do arquiteto e pintor Robert Schuiten, François se interessou por arquitetura e desenho. Sua série de história em quadrinhos: “As Cidades Obscuras” foi criada em conjunto com o francês Benoît Peeters. Os quadrinhos são influenciados pela arquitetura Art Nouveau, de arquitetos como Victor Horta. 10 “As Cidades Obscuras” é uma série de Schuiten e Peeters, publicadas entre 1983 e 2008, e conta com 11 títulos lançados: “Os Muros de Samaris” (1983), “A Febre de Urbicanda” (1985), “A Torre” (1987), “A Rota de Armilla” (1988), “Brusel” (1992), “A Menina Inclinada” (1996), “A Sombra de um Homem” (1999), “A Fronteira Invisível” Vol. 1 (2002) e Vol. 2 (2004) e “A Teoria do Grão de Areia” Vol. 1 (2007) e Vol. 2 (2008). 9

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Imagem 6 . A Cidade de Xhystos. Fonte: SCHUITEN & PEETERS.

A viagem leva doze dias e Franz enfim chega a Samaris, deparando-se com suas enormes muralhas (Imagem 7). “A cidade não era tão grande e imponente como aparentava de fora. Estilos arquitetônicos muito diferentes pareciam se misturar, como se a cidade tivesse conservado traços de todas as civilizações que tinha abrigado” (SCHUITEN & PEETERS, 1983) são as primeiras observações que Franz faz sobre a cidade. Ele se hospeda em um hotel e começa a reparar nos estranhos hábitos dos habitantes, assim como um barulho, que ele chama de sibilo, e que parece o seguir desde que entrou na cidade. Franz logo percebe que seus passeios pela cidade e as reações dos habitantes que observa parecem ser sempre os mesmos, como se repetissem a cada dia. “Tinha a impressão de ver os mesmos prédios, de ir para os mesmos lugares repetidas vezes. (...). Percebi, claro, que não podia ser assim. Haviam muitas diferenças entre o lugar onde estava e aquele de onde vim, mesmo que os detalhes parecessem bater” (SCHUITEN & PEETERS, 1983), pensava. Sem conseguir desvendar o mistério de Samaris, Franz decide ir até o governador. Lá ele descobre que os viajantes que saíram de Xhystos nunca chegaram a Samaris. Ele então repara em uma gravura atrás da mesa do governador, que lhe explica que se trata do emblema da cidade, uma planta carnívora que cresce na região. A revelação do mistério sobre Samaris se dá quando Franz percebe que está se tornando um habitante dela, um “andarilho letárgico explorando as mesmas ruas todo dia” (SCHUITEN & PEETERS, 1983) e decide partir. Na noite antes de ir, ele volta a prestar atenção no sibilo com o qual já tinha se acostumado. Decide forçar a porta por onde o barulho parece vir e acaba descobrindo que as paredes eram apenas cenários. Ele escala o muro e finalmente vê Samaris como ela realmente era: “a cidade existia somente para mim e nenhuma outra pessoa havia percebido do modo que vi. As casas se juntavam e formavam as ruas de acordo com a direção de meus passos. (...) era um labirinto continuamente mutável” (SCHUITEN & PEETERS, 1983). Ele descobre que não só as construções da cidade eram uma ilusão de ótica, como também os seus habitantes, programados para dizer sempre as mesmas coisas todos os dias. Franz então encontra a fonte do ruído que escutava, no centro de Samaris, um maquinário que funciona com princípios hidráulicos. Ele encontra também um livro sobre a história de Samaris, cujo símbolo da capa é o mesmo que se encontrava atrás do governador.

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Imagem 7. As Muralhas de Samaris. Fonte: SCHUITEN & PEETERS.

“Samaris sempre terá e sempre será, como a maré que sobe a cada dia. Ela irá capturar as imagens daqueles que pegar e a tornará deles... Nunca mudando, e ainda sim, sempre diferente, durará para sempre. Dia após dia, suas raízes crescerão mais e mais” (SCHUITEN & PEETERS, 1983), é o trecho que Franz lê no livro, antes de decidir partir de vez. Franz consegue fugir pela tubulação de água, e segue o caminho de volta a Xhystos (Imagem 8). Quando finalmente retorna, ele segue diretamente para o Grande Conselho e pelo caminho percebe que não reconhece mais a própria cidade. Enfim, Franz se encontra com as autoridades e conta-lhes sobre a sua missão; mas recebe uma resposta curiosa e inesperada: toda a história de Franz teria acontecido há muito tempo, como se tivesse ficado anos fora de Xhystos. Franz, extremamente confuso, não tem tempo de lhes contar a verdade sobre Samaris pois visualiza o emblema da planta carnívora e é invadido pela certeza reveladora de que Xhystos era a verdadeira cidade do livro que encontrou no centro de Samaris (Imagem 9). Ele então foge de Xhystos e parte de volta para Samaris, que ele agora considera ser a sua cidade, “para anunciar meu horrível segredo” (SCHUITEN & PEETERS, 1983).

Imagem 8. Franz foge de Samaris. Fonte: SCHUITEN & PEETERS.

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Imagem 9. Franz parte de volta para Samaris. Fonte: SCHUITEN & PEETERS.

Muitas são as pendências presentes na história. Franz deixa Samaris sem descobrir como ela surgiu, quem são os seus verdadeiros habitantes e quem está por trás de todo o maquinário. O modo como Franz visualizou o emblema no Grande Conselho é inserto, como se ele tivesse tido uma visão, e não se sabe porque ele começou a pensar que Xhystos é a cidade que se repetia. Sabe-se que, no início da história, ele parte de Xhystos, então não faria sentido Samaris ser a sua verdadeira cidade. Tudo parece extremamente confuso. Várias teorias podem ser formuladas, dentre elas a de que Xhystos seria um simulacro, assim como Samaris11. Descoberto o segredo de Samaris, o das outras também estariam revelados, e Franz jamais conseguiria saber qual a sua verdadeira cidade. Ora, o que Franz descobre sobre Samaris a aproxima do que se sabe sobre Zirma; exceto que em Samaris, nenhum visitante retorna com suas memórias. Samaris captura as imagens que os seus visitantes têm de outras cidades e projeta nos seus cenários; quanto mais o visitante permanece, mais imagens ela tem para projetar. Samaris só existe devido aos símbolos que existem na memória dos visitantes, assim como Zirma. Franz repara nas semelhanças que a cidade de Samaris tinha com a sua cidade de partida, Xhystos, mas se recusa a acreditar que seja mais do que mera coincidência. Enquanto permanecia em Samaris à procura de algo, ela se transformava cada dia mais em Xhystos. Quando Franz retorna à verdadeira Xhystos, já a não reconhece mais. A revelação de que já havia se passado anos desde que Franz partira explica o estranhamento. Xhystos não poderia ter continuado a mesma, já que durante os anos pode ter recebido inúmeros visitantes, o que reforça a teoria de que Xhystos também seria um simulacro. Ao perceber isto, Franz se apavora e decide voltar a Samaris, pois lá estão projetadas as imagens da cidade que ele conhece, a sua cidade, Xhystos. Em Zirma, primeiramente Calvino induz a pensar que o que faz a cidade existir é a repetição da própria cidade para que ela se fixe na memória. Essa primeira parte é representada na confusão de Franz assim que chega a Samaris. Tudo parece se repetir; as ruas, os becos, as conversas, os edifícios etc. Calvino então revela que na verdade o que se repetem são os símbolos presentes na memória, que permitem que a cidade exista. A parte final da descrição de Zirma é representada pela descoberta do segredo de Samaris: ela é apenas um reflexo da memória que Franz teria de outras cidades.

A teoria de que Xhystos e Samaris seriam ambas cidades simulacros está presente no texto de Julian Darius, da revista online Sequart Organization, escrito em 2011. 11

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Sofrônia

(“As Cidades Delgadas”, p. 61) (Archigram, 1968)

versus Instant City

“A cidade de Sofrônia é composta de duas meias cidades. Na primeira, encontra-se a grande montanha-russa de ladeiras vertiginosas, o carrossel de raios formados por correntes, a roda-gigante com cabinas giratórias, o globo da morte com motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com os trapézios amarrados no meio. A segunda meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, as fábricas, os palácios, o matadouro, a escola e todo o resto. Uma das meia cidades é fixa, a outra é provisória e, quando termina a sua temporada, é desparafusada, desmontada e levada embora, transferida para os terrenos baldios de outra meia cidade”. (CALVINO, 2002, p. 61).

A cidade de Sofrônia é uma das cinco cidades delgadas presentes em “As Cidades Invisíveis” (1972). Essas cinco cidades evocam a ideia de leveza, verticalidade e desprendimento do solo. A cidade de Isaura se encontra no chão, mas é condicionada por seu subsolo, repleto de poços que crescem verticalmente para baixo. Zenóbia e Otávia se desprendem do chão, a primeira se encontra sobre palafitas, enquanto a segunda é suspensa em um precipício por fios e correntes. Em Armila tudo o que se encontra são os encanamentos da cidade e em Sofrônia, os terrenos baldios são preenchidos por estruturas que se desmontam e transitam por outras cidades, deixando-a apenas com metade da sua cidade. Sofrônia possui duas meia cidades. Uma delas possui caráter transitório, feita de materiais leves, de fácil transporte e montagem/desmontagem e de equipamentos que aludem ao lazer e ao uso esporádico. A outra metade é pesada, feita de materiais concebidos para durar e de equipamentos que fazem parte do cotidiano de uma cidade, onde se trabalha, estuda, reside etc. Logo se descobre que uma das meia cidades de fato é provisória, ao passo que ao final de sua temporada é desmontada e levada para a próxima cidade. A imaginação do leitor é inclinada a acreditar que a primeira meia cidade, a do carrossel e da cúpula de circo é a cidade viajante. Contudo, no último parágrafo sobre a cidade, Calvino revela que a cidade que se desmonta é a de mármore e pedra. A outra meia cidade fica então à espreita de uma nova caravana. A concepção de leveza e efemeridade em uma cidade utópica pode ser pareada à Instant City (1968), projeto de pesquisa especulativa do grupo Archigram (Reino Unido). Na Instant City (IC) existe a ideia de uma “metrópole viajante” que chega a comunidades e é temporariamente enxertada no local. A cidade consiste em instalações móveis que transportam informação, educação e entretenimento às cidades que se encontram distantes da metrópole. A cidade móvel deve trazer à essas regiões “um sabor da dinâmica metropolitana”. Como em Sofrônia, na Instant City duas cidades ocupam um mesmo local: a cidade base, existente, empresta locais como clubes, rádios e universidades para que este “pacote City” seja ali implantado. O “pacote”, por sua vez, chega à cidade base de dirigível e espalha suas estruturas e maquinários pneumáticos, leves, exibicionistas

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e de fácil transporte e montagem. Na Imagem 10 , é representada a cidade antes da chegada da IC, considerada uma cidade adormecida, sem o estímulo cultural e visual existente na metrópole. Um dos habitantes percebe a presença do “pacote City” chegando pelo céu. Na imagem 11, a IC começa a descer os seus equipamentos pelo que parecem ser cabos. A cidade começa a revelar a sua vida, os habitantes se amontoam nas janelas para ver o que acontece lá fora e começam a aparecer nas ruas. Uma torre surge no skyline da cidade. Nas imagens 12 e 13, o evento: o céu vira cinema aberto, a praça vira teatro... a vida não é mais a mesma na cidade base.

Imagem 10. Antes da Instant City. Fonte: The Archigram Archival

Imagem 11. Descida. Fonte: The Archigram Archival

Imagem 12. Evento. Fonte: The Archigram Archival

Imagem 13. Maior Intensidade. Fonte: The Archigram Archival

Imagem 14. Infiltração. Fonte: The Archigram Archival

Imagem 15. Rede de Faz. Fonte: The Archigram Archival

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Também como em Sofrônia, uma das cidades se desmonta e parte para uma nova cidade ao final da temporada. Na Instant City, as estruturas leves que chegam, como feiras, trailers, mercados, etc., são as que vão embora. Deixam para trás os prédios, a igreja e os palácios. Nas imagens 14 e 15, a IC se move para a próxima cidade, deixando nesta uma torre de telecomunicação, uma rede que conecta todas as cidades visitadas, a fim de criar uma nova metrópole. Aqui é pertinente a metáfora do “hardware” e “software”, abordada pelo grupo Archigram. Na linguagem informática, o hardware é a máquina, sólida e rígida; enquanto o software corresponde aos componentes móveis e permutáveis. O hardware possui limitações e o software controla o funcionamento da máquina. O projeto da Instant City remete à essa ordem: a cidade base, de equipamentos fixos, é a máquina, um ambiente receptivo aos componentes eletrônicos concebidos pelo grupo, os softwares. Em Sofrônia essa ordem se inverte. A metade transitória, de mármore e pedra, é a que convencionalmente seria considerada o hardware. Contudo, esta é a que se move. Calvino deixa, em sua última consideração sobre Sofrônia, a ideia de que sem a sua metade de mármore a vida na cidade para de acontecer, “(...) e começa a contar quantos meses, quantos dias se deverão esperar até que a caravana retorne e a vida inteira recomece” (CALVINO, 2002, p. 61). Para o Archigram, a cidade antes da chegada do “pacote” é vazia e desinteressante, desfavorecida em relação às metrópoles. A Instant City chega com cores vibrantes, imagens, propaganda, moda e tecnologia necessárias para ativar a vida na cidade. O grupo Archigram apresenta de forma gráfica, utilizando de todas as ferramentas que puderam, desde esquemas e colagens 2D a maquetes, a “cidade do espetáculo” (1994) de Christine Boyer. Em seu livro “The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments” (1994), Boyer divide a representação da cidade por meios visuais em três “convenções estéticas distintas”: 1) a cidade como obra de arte; 2) a cidade como panorama; e 3) a cidade como espetáculo. Sobre a cidade como espetáculo, Boyer considera que “Pelos anos de 1980, a transformação do mundo material por bandas invisíveis de comunicação eletrônica circundando o globo, por ambientes visuais estimulados por computador, e por espetáculos de imagens teatralizadas parecia por extensão ter decomposto os pedaços e peças da cidade em uma forma efêmera. Espaços urbanos coerentes (...) são tidos como construções históricas em um tempo em que Los Angeles é celebrada como o protótipo do lugar contemporâneo. [...] As rupturas utópicas do planejamento urbano racional (...) produziram no seu despertar a cidade do espetáculo, uma cidade na qual as apropriações de estilos históricos e alusões cenográficas re-encenadas agora se tornam nós em conexão dentro de uma composição urbana rasgada por vias de alta velocidade e circuitos eletrônicos invisíveis. Ambientes simulados, o avanço de meios projetados posou e ensaiou teatralmente composições, os anúncios cromolitográficos iluminados e cartazes magnetizantes tremulam a frente de nossos olhos com uma disposição visual pura. Através de simulações nós manipulamos espaço e tempo (...)”. (BOYER, 1994, p. 46-48).

Christine Boyer parece descrever o que o grupo Archigram representou como a Instant City. Uma vez que a cidade base é visitada pelo “pacote”, ela é ocupada de imagens que estimulam nas pessoas um determinado estilo de vida e lazer. Pela análise das imagens produzidas pelo Archigram, a maioria feitas com colagens de

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imagens retiradas de outros meios de comunicação, como revistas, livros ou jornais, percebe-se que a comunidade que recebe a visita da IC é encorajada a ter o carro da moda, seguir padrões de beleza, principalmente femininos, “Aprender Francês”, assistir a filmes norte-americanos, estar sempre cercados de pessoas amigas, estar a par das tecnologias, praticar esportes elitizados, como esqui... A cidade base não poderia voltar a ser a mesma depois da visita da Instant City. O cotidiano, as opções de entretenimento e o desejo por novas influências visuais fazem da antiga cidade base uma nova cidade de comunicação, criando uma metrópole em rede nacional. “Depois que um número de lugares for visitado, as estações retransmissoras locais serão ligadas entre si. A Comunidade Um poderá agora alimentar parte do programa para ser apreciado pela Comunidade Vinte” (ARCHIGRAM, 1999). Sofrônia não teve a mesma sorte. Assim que a temporada acaba seus habitantes ficam numa espécie de limbo, esperando a cidade de mármore retornar para que possam voltar a cumprir as suas atividades na cidade.

Imagem 16. Rupert IC2. Fonte: The Archigram Archival

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Imagem 17. Santa Monica + San Diego Freeway Intersection, LA. Fonte: The Archigram Archival

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Cloé

(“As Cidades e as Trocas”, p. 51) versus tros e Desencontros”, Sofia Coppola, 2003)

Tóquio

(“Encon-

“Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim”. (CALVINO, 2002, p. 52).

Em Eufêmia, os viajantes se encontram para trocar mais que mercadorias. À noite, todos se reúnem em volta de uma fogueira, onde trocam também histórias sobre suas aventuras da última viagem e, pela manhã, partem de Eufêmia, guardando em mente as suas próprias recordações. Eutrópia consiste em várias cidades, todas elas de mesmo aspecto, espalhadas por um planalto. Uma de cada vez, as várias Eutrópias vão sendo habitadas. Quando os habitantes se cansam da vida que levam na Eutrópia atual se mudam para a próxima Eutrópia, onde podem renovar as suas vidas: escolher um novo trabalho, uma nova mulher etc. E assim vão se deslocando pelo tabuleiro de Eutrópias vazias. Em Ersília, as relações entre os indivíduos são representadas por fios que mudam de cor de acordo com o tipo de relação, se estendendo de casa a casa. Quando o espaço físico de Ersília não suporta mais a quantidade de fios os habitantes se mudam para uma nova Ersília, deixando somente os fios para trás. Eles então reconstroem e tecem um novo emaranhado de fios, tentando sempre melhorar o anterior, até que o número de fios os fazem se mudar novamente para um novo local. Os habitantes de Esmeraldina não se entediam ao seguir o mesmo caminho todos os dias para chegar ao trabalho. Isso porque na cidade não é possível utilizar sempre o mesmo caminho. Lá, a linha mais curta entre dois pontos se transforma em uma trama de escadas, pontes arqueadas, ziguezagues, trajetos que alternam barcos e terra. O tema “As Cidades e as Trocas” apresenta questões acerca da relação entre indivíduos, entre o indivíduo e a cidade e entre os diferentes espaços dentro da cidade. Eufêmia, a primeira cidade, cumpre o papel de introduzir o tema, discutindo sobre o significado de “troca” e como ele pode abranger mais do que trocas físicas, como de mercadorias. Nela não são citados habitantes nativos, e sim viajantes que vêm até ela e depois partem. A mobilidade está presente em quase todas as cidades: duas delas, Eutrópia e Ersília, possuem habitantes que migram de local em local, na tentativa de renovar tanto as suas vidas quanto as relações que desenvolvem com outros indivíduos em cada cidade. Em Esmeraldina a mobilidade abordada acontece dentro da própria cidade, que possui redes superpostas, que permitem aos seus habitantes uma vida nada tediosa, onde inúmeros trajetos diferentes podem ser explorados todos os dias. Os habitantes de Eutrópia, Ersília e Esmeraldina têm um notório receio de se entediarem. A cidade de Esmeraldina consegue sanar esse medo ao propor percursos lúdicos e interessantes para quem se move pela cidade. Isso impede que os habitantes abandonem a cidade, como acontece com Eutrópia e Ersília. Nessas duas cidades, os habitantes estão sempre à procura de renovação, seja em suas relações ou no seu cotidia-

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no. O tema está de certa forma relacionado também com a memória pois, em três das cinco cidades, elas se movem, deixando alguma memória de sua existência para trás, representada pelos fios e pela cidade fantasma, em Ersília e Eutrópia, respectivamente. Cloé é a segunda cidade de “A Cidade e as Trocas” apresentada ao leitor. Assim como Eufêmia, ela também auxilia na introdução do tema. Cloé é a cidade “mais casta das cidades”(CALVINO, 2002, p. 51); nela as relações entre as pessoas são retraídas e impessoais. A exemplo de uma cidade grande, quem se vê na rua não se conhece e nem chega a se conhecer, “(...) ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam” (CALVINO, 2002, p. 51). As relações são efêmeras e mesmo aqueles que se encontram em meio à uma grande multidão se sentem sozinhos. A triste realidade de Cloé e de seus espaços públicos, que reduzem as chances de encontros pessoais a zero, não impede que os transeuntes desejem estabelecer algum tipo de contato com outras pessoas. “Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar (...) consumam-se encontros (...)” (CALVINO, 2002, p. 51). A cidade de Cloé não é tão imaginária como parece. Sua realidade é a mesma das grandes metrópoles que hoje existem. Mesmo em 1970, década da publicação original de “As Cidades Invisíveis”, a cidade de Tóquio, no Japão, contava com uma população de mais de 11 milhões (em 2015 ela conta com pouco mais de 13 milhões). Tóquio tem sido cenário de diversos filmes, entre eles, “Encontros e Desencontros” (2003), de Sofia Coppola, que se passa em Tóquio no início do século 21. No filme são exploradas as relações entre os indivíduos e a própria capital japonesa, abordada como a megalópole que é. No filme, Bob Harris (Bill Murray) e Charlotte (Scarlett Johansson) são as duas personagens principais, turistas norte-americanos. O primeiro, ator hollywoodiano que vê a sua carreira começar a entrar em declínio, se encontra na cidade para a divulgação de uma marca de whisky japonês; a segunda, recém-formada no curso de filosofia, acompanha o marido fotógrafo em um de seus trabalhos e aproveita para conhecer a cidade. O filme se divide em duas partes, separadas pelo encontro entre as personagens principais. Na primeira parte a relação de Bob e Charlotte com a cidade de Tóquio parece ser tão impessoal quanto a vivenciada pelos habitantes de Cloé. Bob observa da janela do carro os sinais luminosos, o movimento na cidade e os vidros espelhados. Charlotte também se limita a observar a cidade, só que da janela do quarto do hotel, como se ansiasse por mais do que vê. Ela passa melancólicos dias sozinha no quarto esperando que o seu marido retorne do trabalho (Imagem 18). Os dois personagens se veem em uma situação de solidão em meio à uma cidade cheia de pessoas. Essa primeira parte remete a Cloé das pessoas que passam pelas ruas sem se conhecerem. A “moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro” (CALVINO, 2002, p. 51) em meio à multidão é literalmente representada no filme em uma das cenas (Imagem 19). Na primeira cena do filme, percebe-se o semblante confuso da personagem Bob, que não entende nada que está escrito em japonês pela cidade. O não conhecimento da língua maximiza esse “efeito Cloé”, tornando a comunicação praticamente impossível para as duas personagens. Elas se limitam à gestos, sons e imagens (Bob reconhece o próprio rosto em uma das propagandas no centro

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Imagem 18. Charlotte observa a cidade pela janela do quarto de hotel. Fonte: Netflix

Imagem 19. Charlotte vaga pela cidade. Fonte: Netflix

de Tóquio assim que chega na cidade, apesar de não entender o que os símbolos em volta significam) para conseguir o mínimo de comunicação com os japoneses. Bob passa por situações constrangedoras durante a divulgação da marca de whisky e Charlotte tem dificuldades para andar de transporte público pela cidade. Não há por parte das personagens nenhum sentimento de pertencimento e afetividade à cidade que estão. Em certo ponto do filme as personagens tampouco parecem conseguir se comunicar em sua própria língua. Em duas cenas distintas, Bob e Charlotte conversam ao telefone com pessoas que ficaram nos Estados Unidos; nos dois casos a comunicação parece se desfazer, ao passo que as pessoas ao telefone ignoram o que eles falam por não ser de seu interesse. De fato, durante o filme, várias cenas mostram pessoas interagindo apenas com tecnologias, como uma máquina de ginástica que também só se comunica em japonês ou jogos de fliperama. Ironicamente, o momento em que as duas personagens se veem pela primeira vez é dentro de um dos locais onde as relações impessoais são mais frequentes: o elevador (Imagem 20). Nesta cena os olhares de Bob e Charlotte “se cruzam por um segundo e depois se desviam (...), não se fixam” (CALVINO, 2002, p. 51). A segunda parte do filme acontece quando Bob e Charlotte se conhecem e começam a se relacionar. Após essa interação as personagens parecem começar a “viver os seus

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sonhos efêmeros” (CALVINO, 2002, p. 52). Pela primeira vez as personagens estão felizes em interagir com outras pessoas (amigos de Charlotte que até então não tinham aparecido no filme) e conhecer lugares pela cidade, como uma boate, restaurantes e até um local onde é possível cantar em karaokê. As personagens parecem pela primeira vez sentir que podem interagir com a cidade, mesmo com a limitação da linguagem. Deveras, elas começam a achar cômica a naturalidade com a qual os japoneses tentam se comunicar com eles, apesar de ainda não conseguirem compreender uma palavra.

Imagem 20. Bob e Charlotte se veem no elevador do hotel. Fonte: Netflix

Na Imagem 21, Bob e Charlotte correm pela cidade, desviando dos carros como se estivessem em algum tipo de filme de ação. Da momentânea ação, o filme se transforma em drama, quando Bob enfim tem que deixar a cidade e não consegue se despedir de Charlotte, e em comédia romântica, quando Bob salta do taxi a caminho do aeroporto pois avistou Charlotte no meio de uma multidão. Ele então consegue se despedir da amiga com um primeiro e último beijo. Ao final, os dois se separam e se mesclam mais uma vez à multidão. Nenhum habitante de Cloé chega a viver as maravilhas efêmeras do encontro desejado com algum outro habitante. Pelo menos não durante a descrição de Calvino. Em Tóquio, porém, as duas personagens escolhidas por Coppola para representar esse encontro conseguiram tornar real o “carrossel das fantasias” (CALVINO, 2002, p. 51). A aproximação dos dois os conectaram também à cidade, tornando possível vivê-la enquanto estavam juntos.

Imagem 21. Bob e Charlotte no centro de Tóquio. Fonte: Netflix

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Bauci (“As Cidades e os Olhos”, p. 73) versus Ville Radieuse (Le Corbusier, 1930)

“Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência”. (CALVINO, 2002, p. 73).

Bauci é uma das cinco cidades do tema “As Cidades e os Olhos” . Nesse tema, Calvino conduz o leitor a refletir sobre como a cidade é percebida e como aspectos sobre ela são transformados a partir dessa observação. No universo desse tema encontram-se outras cidades. Valdrada é inteiramente refletida de cabeça para baixo no lago da cidade, onde se repete o que acontece na Valdrada sobre o lago. O lado oculto da cidade, como o interior das casas, tem o seu reflexo revelado no lago. Em Zemrude, a impressão que se tem da cidade depende do humor do indivíduo, que pode conhecê-la de baixo para cima, ao se caminhar “(...) assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio” (CALVINO, 2002, p. 64), ou somente de baixo, quando se “(...) caminha com o queixo no peito, com as unhas fincadas nas palmas das mãos (...)”( CALVINO, 2002, p. 64). Fílide é conhecida pela enorme variedade de elementos e detalhes que contém: pontes, janelas, pavimentos. Não é possível ver tudo o que a cidade abarca; o visitante a deixa “depois de tê-la olhado apenas de relance” (CALVINO, 2002, p. 85). Quem decide ficar para conhecer mais, vê a cidade perder o encanto, caindo na monotonia do cotidiano. Moriana tem duas faces: uma com colunas de coral e frontões incrustados de serpentina; e outra de lâminas enferrujadas e pedaços de pano. Por fim, é a presentada a cidade de Bauci, que passa quase despercebida por quem chega, que é visto antes mesmo de avistar a cidade. Acontece que Bauci se eleva em longas pernas de flamingo até alcançar o céu e se esconder nas nuvens. Seus habitantes raramente tocam o solo, e o observa lá de cima, com seus binóculos e telescópios. O visitante reconhece Bauci pelas pernas que a sustentam, única parte que toca o solo, e pela sua sombra que em dias reluzentes denuncia a existência da cidade na folhagem das árvores. A leitura sobre Bauci é uma das mais curtas e sucintas do livro e logo algumas indagações começam a manifestar-se: por que Bauci se encontra elevada do solo? Quem são os habitantes de Bauci e, mais importante, por que raramente descem ao solo? A cidade teria surgido lá em cima, e lá permanecido, ou teria se elevado por algum motivo? Com uma descrição de pouco mais de dez linhas, as pistas que Calvino se permitiu ceder são escassas. O que se sabe dos habitantes de Bauci é que vivem nas alturas, sobre uma estrutura extremamente vertical, raramente tocam o solo, pois têm todo o necessário lá em cima, e que possuem relação incerta com a natureza, ao passo que o autor faz suposições a respeito da razão pela qual os habitantes não descem à terra: porque a odeiam, porque a respeitam tanto que não ousam tocá-la, ou porque a amam como era antes de existirem por lá. A única relação provável dos habitantes de Bauci com a terra é a percepção de sua própria ausência.

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A tentativa de relacionar a descrição de Calvino com imagens que possam auxiliar na sua interpretação visual encontrou referências em uma outra cidade utópica que também se caracteriza pelo inusitado, só que dessa vez procedente, paralelismo ao solo: a Ville Radieuse (1930) de Le Coubusier. Nessa proposta urbanística, Le Corbusier descansa o peso da estrutura de seus edifícios em colunas no piso térreo, os pilotis. O edifício se eleva, deixando 100% da área do terreno livre para circulação de pessoas12. A Ville Radieuse foi apresentada originalmente no III Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1930, e posteriormente publicada, em 1935. O projeto, evolução de um plano anteriormente, a Ville Contemporaine (1922), tenta “alcançar um equilíbrio entre o público e o privado, forma construída e espaço aberto, cidade e a natureza”13. Seu esquema em planta segue a forma de um ser humano, com zoneamento sócio espacial definido. Possui um centro cívico de 14 torres cruciformes de 190 por 190 metros. Essas torres possuem uso predominantemente comercial e têm 200 metros de altura; uma cidade vertical. No centro físico das torres está localizada um único terminal de transporte público, por onde se acessa o sistema subterrâneo de transporte. No nível térreo seria possível o uso de air-buses e air-taxis. Esse sistema subterrâneo permitiria aos habitantes se deslocarem para a zona residencial do entorno. Cada bairro habitacional chegaria a uma altura de 50 metros, podendo acomodar 2.700 habitantes; uma vila vertical. “Instalações de restaurantes e lavanderias ficariam no piso térreo, um jardim de infância e uma piscina na cobertura. Entre os blocos existiriam parques, proporcionando aos residentes um máximo de luz natural, um mínimo de ruído e instalações de lazer logo à porta”.14

Imagem 22. Planta Ville Radieuse. Fonte: Fundação Le Corbusier

Imagem 23. Ville Radieuse. Fonte: DELECAVE, 2015.

LE CORBUSIER. Ville Radieuse, Not Located, 1930. Paris: Fundação Le Corbusier. MACHADO, A. Soler e BREGOLIN, E. Gehlen. La poética del urbanismo: arte y función em la ciudad moderna. Valença: Universidade Politécnica de Valença, Congresso Internacional Le Corbusier, 50 years later, 2015. 14 MERIN, Gili. “Clássicos da Arquitetura: Ville Radieuse / Le Corbusier” [AD Classics: Ville Radieuse / Le Corbusier] 09 Mai 2016. ArchDaily Brasil. (Trad. Souza, Eduardo) Acessado 26 Out 2016. 12

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Imagem 25. Render 3D da Torre. Fonte: MONTAVON, Marylène, 2006.

Imagem 24. Bairros Habitacionais. Fonte: Fundação Le Corbusier.

A partir daqui pode-se notar certas parecenças entre a Ville Radieuse e a cidade de Bauci. Ambas são cidades verticais. Não se tem uma descrição da cidade de Bauci em si, mas a sua tendência à verticalidade é salientada pelas “longas pernas de flamingo” que servem de apoio para a cidade. A preocupação com natureza, como lazer ou como algo a ser preservado, também está presente nas duas cidades. Le Corbusier liberta o chão para que se faça um parque contínuo sob e entre os edifícios. Sua intenção se confronta com o tipo de deslocamento proposto no plano. O zoneamento e as grandes estruturas de enorme capacidade aumentam as distâncias. Um transporte subterrâneo eficiente resolveria o problema, assim como os air-buses e taxis. E quanto ao solo? Lê-se sobre as alturas, capacidades, sobre como as unidades habitacionais teriam todo o equipamento necessário para se viver..., porém o deslocamento é estimulado em um nível abaixo e acima do solo, e não sobre nele. No solo se encontrariam os parques, sombreados pelas árvores e até pelos altos edifícios, revelando a sua grandiosidade. Por tais suposições Bauci parece ter mais relações com o plano para a Ville Radieuse do que com o próprio solo que a sustenta. As indagações feitas ao final da leitura sobre Bauci podem começar a serem respondidas ao se sugerir uma relação temporal entre Bauci e a Ville Radieuse. Nesse plano onde as duas cidades se encontram e se sobrepõem a natureza continua sendo preservada, a ponto de deixar de ser tocada; as alturas continuam crescendo sem limites, a ponto de alcançarem as nuvens e se perderem de vista; os habitantes têm tudo o que precisam lá em cima e continuam utilizando a natureza como lazer, ao observar com seus binóculos e telescópios o que acontece lá embaixo, que parece muito mais interessante sem a existência deles por lá; o solo continua vazio, às vezes habitado apenas pelos viajantes ou pelos errantes que almejam encontrar Bauci.

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Pirra (“As Cidades e o Nome”, p. 87) versus El Dorado (lenda) “Por longo tempo, Pirra foi para mim uma cidade encastelada nas encostas de um golfo, com amplas janelas e torres, fechada como uma taça, com uma praça em seu centro profunda como um poço e com um poço em seu centro. Nunca a tinha visto. Era uma das tantas cidades que nunca visitara, que imaginava somente a partir do nome: Eufrásia, Odila, Margara, Getúlia. Pirra era uma delas, diferente de todas as outras, assim como cada uma delas era inconfundível para os olhos da minha mente”. (CALVINO, 2002, p. 87).

O Grande Khan possui um atlas onde estão marcadas todas as cidades relatadas por Marco Polo; as cidades visitadas por terra, pelo mar, por todos os continentes e até os reinos mais longínquos. O atlas também inclui aquelas cidades que nem Marco nem o mais experiente dos desbravadores algum dia encontrou; cidades relatadas de boca em boca, que não se sabe se realmente existem e onde podem ser encontradas. “Para essas cidades, Marco também dá um nome, não importa qual, e sugere um itinerário a percorrer. Sabe-se que o nome dos lugares muda tantas vezes quantas são as suas línguas estrangeiras; e que cada lugar pode ser alcançado de outros lugares, pelas mais variadas estradas e rotas (...)” (CALVINO, 2002, p. 125). Em “As Cidades e o Nome”, encontramos cinco delas. Existe a Aglaura que se descreve e a Aglaura que se vê; e nada do que se diz a respeito da cidade é realmente o que ela é. Uma descrição da Aglaura que se vê a tornaria sem personalidade e finalidade. Por isso, os habitantes preferem imaginar que moram na Aglaura que descrevem, e se esquecem da verdadeira Aglaura que se vê. Leandra é protegida por duas minúsculas espécies: os Lares e os Penates, que vivem dentro do espaço das casas. A descrição de Leandra é feita inteiramente dentro do ambiente intimistas das residências, em detrimento do espaço urbano. Clarisse é uma cidade que alterna fases gloriosas com fases decadentes; e, apesar disso, mantém o mesmo nome. Irene é uma cidade que se vê ao longe, mas que nunca é adentrada. Os que olham de longe imaginam uma cidade diferente da que ela realmente é. Por isso, Calvino acredita que “Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se aproxima dela” (CALVINO, 2002, p. 115). Pirra é uma cidade que só existe em função de seu nome. Pelo menos era o que Marco Polo pensava, antes de enfim decidir visitar a verdadeira cidade de Pirra. Ela é uma das cidades do atlas do Grande Khan em que só se escuta falar, mas que nunca ninguém relatou ter lá chegado. O próprio Marco Polo confessa imaginar uma Pirra mirabolante, com poços que se sobrepõe no centro da cidade, abrindo uma fenda para dentro da terra. Quando Polo chega à Pirra, depara-se com uma cidade completamente diferente da que imaginava: sem vista para o mar, com casas baixas e ruas em linha reta. A partir desse momento, o nome Pirra não evoca nada a mais do que ela realmente é. Mas na mente de Polo ainda existe uma cidade onde em seu centro há uma praça profunda com um poço mais profundo ainda no centro dela. No atlas do Grande Khan ainda existem inúmeras cidades que ainda não foram visitadas: Getúlia, Odila, Eufrásia... alguma delas poderia um dia se encaixar com essa cidade sem nome que Marco imagina. Os itinerários, estradas e rotas criadas por Marco Polo para se chegar a essas cidades

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que não se sabe se existem – ainda mais sem uma localização precisa –, parece ser o começo da história de algum mocinho ou vilão, que por acaso descobre a tal rota e parte em direção a esse local, que esconderia algum tesouro. Muitas foram as lendas fundamentadas na busca por alguma cidade perdida. Uma delas é a cidade de El Dorado, cidade feita inteiramente de ouro. A lenda começou a se propagar a quase quatro séculos atrás, quando os espanhóis voltaram da América do Sul com a lenda de que em algum lugar escondida na floresta tropical, existiria uma cidade com a maior quantidade de ouro que se poderia imaginar. Segundo Dudley Easby Jr. (s.d.), incontáveis europeus partiram em direção as selvas e montanhas da América do Sul, a procura da cidade perdida. O rio Amazonas e quase metade do continente foi explorado, mas a lendária El Dorado nunca foi encontrada. A estória foi sustentada devido à grande quantidade de ouro que os espanhóis realmente encontraram quando conquistaram o Peru e arrasaram o império Inca, nas primeiras décadas do século dezesseis. Hoje, El Dorado é considerada uma lenda, com direito à animação e diversos documentários sobre ela. A cidade existe em função de seu nome; e, assim como Polo imagina Pirra, aqueles que conhecem a lenda a imaginam de forma diferente, mas com a característica em comum de possuir uma extrema quantidade de ouro. Talvez os espanhóis já a tenham encontrado há muito tempo, quando na América do Sul chegaram; talvez algum explorador a tenha visto de relance enquanto a procurava pela floresta Amazônica. Eles não poderiam ter encontrado a El Dorado que imaginavam, porque El Dorado era o nome dado à cidade perdida e, caso fosse encontrada, atenderia, nesse caso, a outro nome.

Imagem 26. El Dorado em “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008). Fonte: Wikipedia

Imagem 27. El Dorado em “O Caminho para El Dorado” (2000). Fonte: Taverna da Cebola

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Adelma (“As Cidades e os Mortos”, p. 89) versus San Junipero (série Black Mirror, Charlie Brooker, 2016) “Pensei: ‘Se Adelma é uma cidade que vejo no mundo dos sonhos, onde não há nada além de mortos, sinto medo do sonho. Se Adelma é uma cidade real, habitada por vivos, se eu continuar a fita-los as semelhanças se dissolverão e eles parecerão estranhos portadores de angústia. Seja num caso seja no outro é melhor não insistir em olhá-los. (...) Pensei: ‘Talvez Adelma seja a cidade a que se chega morrendo e na qual cada um reencontra as pessoas que conheceu. É sinal de que eu também estou morto’. Também pensei: ‘É sinal de que o além não é feliz’.”. (CALVINO, 2002, p. 89-90).

As cidades do tema “As Cidades e os Mortos” discutem os efeitos da consciência da mortalidade em seus habitantes. As duas primeiras cidades apresentadas, Melânia e Adelma, abordam a imortalidade tão desejada pelos seres humanos. Na primeira cidade, a semelhança de hábitos e personalidades entre pessoas, principalmente aquelas com parentesco, faz a cidade apresentar sempre os mesmos papeis a serem representados, pois quando um indivíduo morre, ele logo é substituído pelo seu sucessor, imortalizando uma personagem. Na segunda, a ideia da imortalidade se relaciona à memória, pois os vivos se recordam das pessoas que já se foram. As outras três cidades do tema mantêm a morte fisicamente dentro ou próxima à cidade real, como em cemitérios, subterrâneos ou sobre o solo. Os habitantes de Eusápia encontraram a solução para a aflição que enfrentavam na transição entre a vida e a morte. Eles construíram uma cidade idêntica à Eusápia dos vivos em seu subsolo, onde moram os antigos habitantes que já morreram. O que acontece na cidade dos mortos só se sabe pelos encapuzados encarregados de acompanhar os mortos, que dizem encontrar algo novo sempre que visitam o subsolo, como se os mortos estivessem inovando a cidade. A Eusápia de cima, para não ficar para trás, começou a copiar a Eusápia de baixo. Em Argia os habitantes vivem debaixo da terra. Não se sabe como eles conseguem viver ali, como se movimentam ou enxergam algo a sua frente. Tudo o que se sabe é que ela está lá embaixo, e é preciso acreditar. Laudômia se assemelha a Eusápia, pois possui a cidade dos vivos e dos mortos. O que difere Laudômia das outras cidades é que ela é uma cidade tripla: possui a cidade dos vivos, dos mortos e daqueles que ainda não nasceram. Quem chega à Adelma parece reconhecer, nos rostos de seus habitantes, pessoas que já morreram: “(...) o marinheiro que pegou a corda no ar e amarrou-a à abita parecia-se com um dos meus soldados, que já morrera” (CALVINO, 2002, p. 89). Na descrição de Adelma, Marco Polo faz algo raro e conta ao Grande Khan os seus exatos pensamentos enquanto andava pela cidade, assim como as sensações que tinha. Adelma parece despertar em seus visitantes diferentes reações. Para Marco, que chega a visualizar seu pai e sua avó, já falecidos, a reação é de desespero e melancolia. Poucas cidades despertaram em Polo uma descrição tão pessoal, em que ele se permite expor os próprios pensamentos. Polo é invadido por reflexões pesarosas como a de que, em certo momento da vida, a maioria das pessoas que se conhece estão mortas e “a mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões” (CALVINO, 2002, p. 90); e chega a se desesperar quando percebe ser também fita-

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do por outras pessoas, como se eles estivessem reconhecendo na sua fisionomia o rosto de algum ente querido. À essa altura, Polo começa então a desconfiar da própria existência. Na tentativa de aliviar a consciência de sua inevitável morte, ele considera que Adelma pode ser uma cidade presente unicamente em seus sonhos. Essa cidade, visitadas por vivos e por mortos, que se encontram com uma naturalidade que só acontece nos sonhos, não foi imaginada apenas por Calvino. Charlie Brooker visualizou a mesma cidade, só que com um nome e em uma época diferente, a cidade de San Junipero. Inglês, Charlie é criador da série Netflix: “Black Mirror”. Os episódios da série sugerem diversas discussões sobre a sociedade contemporânea, influenciada por tecnologias aparentemente futurísticas. San Junipero aparece em um dos episódios (2016) que, dentre diversas outras discussões, trata da relação dos seres humanos com a sua mortalidade e da vida após a morte. Tudo o que se sabe sobre San Junipero se resume a uma hora de episódio, em que são apresentadas duas personagens principais, Kelly e Yorkie. As duas se conhecem nessa cidade e a história parece se passar nos anos de 1980. Conhecida pelo público como uma série de suspense, fictícia e reflexiva, sabe-se que este episódio não trata apenas de uma história sobre um romance entre duas jovens numa cidade imaginária, no que parece ser o estado da Califórnia nos anos 1980. San Junipero é, na verdade, como um jogo de avatar15. A cidade, criada em computador, existe somente virtualmente, como uma opção para se viver após a morte. Esse limbo entre a vida e a morte existe em décadas distintas, sendo que o indivíduo escolhe em qual década prefere viver após a sua morte na vida “imortal”. Yorkie e Kelly, porém, ainda estão vivas; são duas mulheres idosas cuja morte está próxima e que vivem em diferentes cidades reais dos EUA. Elas experimentam o que parece ser a versão demo16 de San Junipero, limitadas a visitar a cidade somente uma vez por semana, para decidir se, após a morte, preferirão ter uma morte “tradicional” ou ter a consciência armazenada em um computador e viver para sempre em San Junipero. Aqueles que visitam a cidade encontram tanto parentes e amigos que se foram e optaram por ficar em San Junipero quanto pessoas desconhecidas que podem estar ou não vivas. Em uma das cenas, Yorkie pergunta para Kelly qual seria porcentagem de pessoas mortas que ali vivem, os permanentes, e Kelly responde ser entre 80 e 85%. Yorkie aparenta estar satisfeita com o que a morte lhe oferece e desde o início do episódio está decidida a ficar em San Junipero. Kelly nem tanto. Seu parente mais próximo decidiu pela morte “tradicional” e ela se vê em conflito. Nem Kelly nem Yorkie chegam a reconhecer alguém já falecido pela cidade no episódio, como acontece com Marco Polo em Adelma. O viajante veneziano parece ter conhecido San Junipero como era no século treze, por acaso, antes de existir a tecnologia que transportasse a consciência humana até lá, por meio de widgets17 na testa. Até onde se sabe, Marco poderia realmente ter visitado Adelma pelos seus sonhos, mas ela já tinha a característica de parecer tão real a ponto de se confundir com a realidade. Além disso, a legitimidade da própria consciência levada até a cidade pode ser contestada. Ao final, não se sabe se quem visita ou decide morar para sempre na cidade dos sonhos são Yorkie, Kelly e Marco “reais”. No caso de Marco, tudo poderia ser apenas uma estratégia da mente para aliviar a angústia da morte. No caso de Yorkie e Kelly, a consciência “levada” a San Junipero poderia ser uma cópia progra-

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mada para existir ali. Sabe-se, porém, que Marco definitivamente não teria optado por permanecer em San Junipero, em detrimento da morte “tradicional”. Ele revela temer essa cidade de seus sonhos. “Se Adelma é uma cidade que vejo no mundo dos sonhos, onde não há nada além de mortos, sinto medo do sonho” (CALVINO, 2002, p. 90 ).

Imagem 28. San Junipero. Fonte: Netflix

Imagem 29. Personagens em uma casa de jogos. Fonte: Netflix

Nos jogos de avatar, o jogador escolhe um personagem que irá representá-lo no jogo. Ele pode personalizá-lo com características físicas, como o corte de cabelo, expressões faciais, cor da pele etc. 16 Demo é uma versão de demonstração de um material, seja ele um jogo, uma música um clipe etc. 17 Widget é um componente presente em computadores ou outros aparelhos eletrônicos, utilizado para acessar de uma maneira mais simples um outro programa ou sistema. 15

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Tecla (“As Cidades e o Céu”, p. 117) versus Nova Iorque (“Sinédoque, New York”, Charlie Kaufman, 2008) “Quando se chega a Tecla, pouco se vê da cidade, escondida atrás dos tapumes, das defesas de pano, dos andaimes, (...) À pergunta: Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo? Os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo, respondem: – Para que não comece a destruição. – E, se questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar-se, acrescentam rapidamente, sussurrando: – Não só a cidade”. (CALVINO, 2002, p. 117)

“As Cidades e o Céu” anseiam pelo arquétipo de cidade perfeita. Para isso, elas seguem à risca o desenho do próprio céu, marcado pelas constelações e pelos astros. As cinco cidades, cujo projeto se encontra no firmamento, possuem um aspecto inesperado, consequência do desejo de serem ideais. Essas cidades atentam para o fato de que o projeto, mesmo que considerado uma obra-prima, muitas vezes pode ter a sua concretização destoada e, até mesmo, deturpada. Dizem que Eudóxia foi construída a partir de um desenho presente em um tapete, que corresponde ao desenho urbano da cidade. Porém, isso só se percebe com muita atenção, pois as ruas já em nada se parecem com o desenho, ao passo que é preciso verificar o desenho presente no tapete para se lembrar do esquema geométrico da cidade, que se perde em meio à confusão e as multidões. Um oráculo uma vez revelou que o desenho do tapete na verdade foi tecido por deuses que o fizeram à imagem do céu estrelado e das órbitas. Bersabeia possui uma lenda da existência de uma outra Bersabeia suspensa no céu. A lenda conta que, se um dia os habitantes tomaram a Bersabeia celeste como um modelo, as duas cidades se tornarão uma só. Perínzia foi projetada por astrônomos. Sua localização, geometria e perímetro foram de responsabilidade deles, que a traçaram segundo cálculos meticulosos que resultariam na posição das estrelas, certos de que a cidade “espelharia a harmonia do firmamento” (CALVINO, 2002, p. 130). Eles não previram que um dia teriam que admitir ter calculado a cidade inteira errada, pois os cálculos levaram Perínzia a um destino inesperado. Ândria também foi construída segundo a ordem das estrelas e a localização dos astros. O funcionamento da cidade corresponde ao movimento dos corpos celestes de maneira tão perfeita que qualquer mudança feita na cidade original, ao invés de desequilibrar o ritmo astral da cidade, provoca uma mudança no céu, para que os dois permaneçam idênticos. Já Tecla é uma cidade constantemente em construção e seus habitantes parecem ter medo de um dia terminá-la. Os cidadãos de Tecla sussurram ao responder que temem que algo a mais se desmorone caso um dia a terminem e parecem acreditar que a cidade influencia algo mais importante que ela mesma. Tecla é a terceira cidade apresentada no tema “As Cidades e o Céu”. Com a função de divisora das cinco cidades, ela a única que não é descrita por uma relação direta entre a cidade e o céu. De fato, essa relação permanece implícita na última exposição da cidade, tanto para o visitante quanto para o leitor.

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“– Qual o sentido de tanta construção? (...) – Mostraremos assim que terminar a jornada de trabalho; agora não podemos ser interrompidos – respondem. O trabalho cessa ao pôr do sol. A noite cai sobre os canteiros de obras. É uma noite estrelada. – Eis o projeto – dizem”. (CALVINO, 2002, p. 117).

O projeto só poderia estar nas estrelas. A cidade é construída durante o dia seguindo o projeto visto no céu a noite. Isso explica o porquê de os habitantes nunca conseguirem terminá-la; pois a visibilidade das estrelas varia de acordo com a época do ano ou a hora do dia, o que faz o projeto mudar constantemente. Todavia, isso parece algo percebido e tomado de forma natural pelos habitantes. Eles interpretam essa mudança como algo normal e, se um dia o projeto se estabilizar e eles conseguirem terminar a construção da cidade, algo estaria errado na ordem do mundo e “não só a cidade” (CALVINO, 2002, p. 117) correria o risco de desmoronar e se despedaçar. Os habitantes parecem saber que lidam com algo muito importante, como se em segredo mantivessem a ordem do próprio céu, que se perpetua juntamente à construção da cidade. É como se a cidade fosse interpretada como o próprio céu posto em movimento pelos habitantes de Tecla. A cidade, porém, não poderia espelhar o céu por completo, e sim somente uma parte dele. Assim, os habitantes de Tecla substituem o todo por uma parte, para onde eles transferem toda a estabilidade celeste. Em “Sinédoque, New York” Charlie Kaufman, por meio de seu personagem principal Caden Cotard, constrói uma sinédoque18, como fazem os habitantes de Tecla. Caden, um diretor de teatro, é abandonado pela esposa e filha, que se mudam para Berlim. Com uma quantia milionária em mãos que recebey de um prêmio pela sua última obra, ele se vê sozinho na cidade de Nova Iorque. Então, decide criar a sua peça definitiva, que ele acredita que irá representar toda a sua carreira, e resolve fazê-la sobre a sua própria vida. Para isso, constrói uma maquete de uma parte da cidade de Nova Iorque em um galpão, para onde ele desloca toda a sua realidade – aqui está a sinédoque –, e ao extrapolando a importância do sentido de sua vida, tenta comportar todo o destino de uma cidade a sua volta. O filme é uma obra extremamente complexa e as personagens da vida real começam a se confundir com as personagens da peça, e vice-versa, assim como os próprios acontecimentos da vida de Caden. Dezessete anos se passam e a peça nunca é terminada. Caden chega a perder a noção do tempo. Em uma cena, ele comenta com uma outra personagem sobre fazer algumas semanas que sua mulher o abandonou, ao que é respondido que na verdade faziam três anos desde o ocorrido. Toda a ideia da peça passa a ser um mecanismo com o qual Caden espera descobrir em que momento ele fez a escolha que tornou a sua vida um caos, assim como pensar em como resolver os problemas que o perseguem. Ele transfere todo o sentido de sua vida para aquele pedaço de Nova Iorque, incrustado pelos limites do galpão. Caden teme que terminar a peça significaria acabar com a sua chance de entender sua existência inteira e acabar sem um propósito. Em certo momento do filme um dos atores da peça o questiona: “Quando vamos ter um público aqui? Faz dezessete anos”. CaPor definição Sinédoque, sf. Figura de linguagem, considerada uma espécie de metonímia, que se baseia na relação quantitativa entre o significado usual da palavra e seu conteúdo criado na mente, mais abrangente e extenso. MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (Dicionário online). 18

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den se mostra em desespero; ele sabe que nunca terminará a peça. Assim como os habitantes de Tecla nunca poderão circular pela sua cidade, cumprirem suas atividades cotidianas e se relacionarem uns com os outros em suas rotinas; a peça de Caden nunca seguirá do início ao fim, à espera da reação final do público.

Imagem 30. “Sinédoque, Nova York”. Fonte: One Room With a View

Imagem 31. “Sinédoque, Nova York”. Fonte: Slashfilm

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Procópia (“As Cidades Contínuas”, p. 132) versus Hong Kong (séries fotográficas, 2009 e 2012) “Não que seja fácil me movimentar. No meu quarto, somos vinte e seis pessoas: para mover os pés, preciso incomodar os que estão agachados no chão, abro espaço entre os joelhos daqueles sentados sobre a cômoda e os cotovelos daqueles que revezam para se apoiar na cama – todas as pessoas gentis, felizmente”. (CALVINO, 2002, p. 133)

Em “As Cidades Contínuas” os exemplares urbanos transmitem uma atmosfera mais moderna quando comparados aos outros temas, que possuem cidades com características medievais. Marco Polo chega a citar uma cidade por onde se chega pelo aeroporto e outra que possui sistemas de coleta e descarte de lixo. Essas cidades aparentam ser resultados de fenômenos também recentes, discussões que se tornaram crescentes no final do século vinte e início do século vinte e um – sucedendo até mesmo a publicação original de “As Cidades Invisíveis” –, como a globalização, as questões ambientais, o planejamento regional etc. Leônia é uma das Cidades Contínuas. Ela pode ser considerada uma cidade descartável. Todos os dias seus habitantes descartam em sacos plásticos os restos de ontem: lençóis, sabonetes, roupões, pianos, aquecedores. A cidade amanhece com as calçadas cobertas pelos sacos plásticos, à espera da carroça do lixeiro. Não se sabe ao certo se a paixão de seus habitantes é descartar aquilo que já foi utilizado ou adquirir coisas novas. O lixo vai para fora da cidade, descartado em seus arredores; e quanto mais a cidade expele, mais ela acumula, e seu cinturão de lixo aumenta. Trude é uma cidade que se confunde com tantas outras. Ao chegar em seu aeroporto, o viajante só sabe que está em Trude quando lê o nome da cidade escrito em algum letreiro. Pela cidade dizem: “(...) o mundo é recoberto por uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome do aeroporto” (CALVINO, 2002, p. 36). Cecília está em todos os lugares desde que os espaços se misturaram. A cidade costumava ficar entre pastos, onde caminhavam os pastores com suas cabras. Hoje não se encontra mais nenhum pasto; quanto mais se tenta sair de Cecília, mais se penetra por suas ruas. Em Pentesileia não há uma entrada definida, não há uma cinta de muralhas ou uma arcada para marcar o seu acesso. Por isso, o visitante não consegue saber se já chegou a cidade, ou se já está perto de seu centro. Ao perguntar como se faz para adentrar a cidade escuta-se como resposta: “Deve ser por ali” ou “É melhor tentar ir adiante”. O viajante segue percorrendo os subúrbios e periferias até que chega a hora de partir de Pentesileia. Procópia é a cidade em que Marco sempre faz escala durante suas viagens. Das incontáveis vezes em que visitou a cidade, ele sempre se hospeda no mesmo hotel, no mesmo quarto. Ao observar a cidade pela janela, ele começa a reparar em alguns rostos de pessoas em meio à paisagem, que ele não se recorda de ver da última vez em que estivera observando pela mesma janela. Todos os anos os rostos parecem se multiplicar e os elementos da paisagem começam a desaparecer; no lugar do fosso, da árvore, do céu, agora se vê mais rostos. Chega o dia em que Polo não vê mais nada pela janela além de um amontoado de rostos,

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que hoje dividem o quarto com ele; num total de vinte e seis pessoas. No quarto já não se tem mais espaço para se movimentar sem incomodar outra pessoa. Procópia é uma cidade que passou por rápido e intenso aumento demográfico. Calvino transmite essa ideia de modo extremo ao descrever a notável multiplicação de pessoas numa cidade que parece não crescer na mesma proporção. O autor descreve os rostos que aparecem como “cara redonda e chata que roía uma espiga de milho” (CALVINO, 2002, p. 132) e diz que todos eles “assemelham-se, parecem gentis, têm sardas nos rostos, sorriem (...)”(CALVINO, 2002, p. 132). Essas fisionomias admitem supor que Procópia se trata de alguma cidade localizada no Oriente, a destacar as da China, onde o governo teve de implantar medidas para reduzir o crescimento populacional, como a “política do filho único”19. A descrição dos rostos, que aparecem para o viajante sempre mastigando ou roendo algum alimento, e a constante referência ao ambiente agrícola, também permitem indagar se os habitantes de Procópia são como pragas, que se multiplicam desorganizadamente, e acabam causando a escassez de alimentos, mudanças na paisagem etc. Marco descreve que, “desde que as pessoas sobre a ponte ganharam o hábito de acavalar-se uns nos ombros dos outros, não consigo olhar muito adiante” (CALVINO, 2002, p. 133). Essa observação evoca os grandes prédios em altura habitados por centenas de pessoas e que bloqueiam a visão do céu. A cidade de Procópia pode ser visualizada em duas escalas diferentes; uma doméstica, que enquadra o interior do quarto de hotel onde Marco Polo se hospeda; e outra urbana, representada pela paisagem enquadrada pela janela do quarto do hotel. Nesse sentido, duas séries fotográficas se fizeram importantes para ilustrar a demografia de uma das cidades de maior densidade populacional do mundo: Hong Kong, na China20. Uma delas, intitulada “Trapped”, foi exibida em 2012 pela “Society for Community Organisation”21 (SoCO) e fotografada por Benny Lam. As fotografias mostram a cidade em sua escala doméstica e revelam os problemas habitacionais que as pessoas que vivem em favelas urbanas de Hong Kong enfrentam. Foram fotografados os interiores de diversos apartamentos em uma perspectiva aérea. Os espaços minúsculos são divididos por uma família inteira, como se estivessem presos em uma cela (Imagens 32 e 33). As “residências” retratadas nas fotos se assemelham ao quarto de hotel ocupado por Marco Polo e, exageradamente, mais vinte e cinco pessoas em Procópia.

A política foi implantada pelo governo da República Popular da China na década de 1970. Por ela ficava proibido para os casais chineses terem mais de um filho cada. A lei foi abolida em 2015. 20 Segundo o inventário Demographia World Urban Areas de 2016, a densidade populacional da cidade de Hong Kong corresponde a 66.200 de pessoas por milha quadrada. 21 “Society for Community Organisation” é uma organização comunitária não lucrativa formada em 1972 por pessoas da Igreja Católica e Protestante da cidade de Hong Kong. Seu objetivo principal consiste em estabelecer uma sociedade igualitária e diminuir a disparidade entre ricos e pobres na cidade, por meio de programas de educação cívica e ações sociais. 19

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Imagem 32 e 33 “Trapped”, por Benny Lam/SoCO/Rex Features. Fonte: The Telegrapgh UK

A segunda série, “The Architecture of Density”, publicada em 2008 pelo fotógrafo Michael Wolf, mostra a cidade de Hong Kong em uma escala urbana. As fotografias fazem os arranha-céus de Hong Kong parecerem texturas, um amontoado de linhas, geometrias e cores (Imagens 34 e 35). Logo percebe-se que se tratam das fachadas desses arranha-céus, em que se pode observar as janelas e, com alguma atenção, insinuações de objetos no interior dos apartamentos. Em nenhuma delas é possível ver o céu da cidade. As fotografias de Wolf se assemelham a visão que Polo tem de sua janela, pela qual consegue enxergar apenas uma “extensão de faces: de um canto a outro, em todos os níveis e em todas as distâncias (...)” (CALVINO, 2002, p. 133).

Imagem 34 e 35. “The Architecture of Density”, por Michael Wolf. Fonte: New Rebublic

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Teodora (“As Cidades e os Mortos”, p. 89) versus “O Labirinto do Fauno” (Guillermo del Toro, 2006) “Ao menos era isso que os habitantes de Teodora acreditavam, longe de supor que a fauna esquecida estava se despertando no letargo. Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basilíscos retomavam a posse de sua cidade”. (CALVINO, 2002, p. 114).

O tema “As Cidades Ocultas” é apresentado mais tardiamente no livro. As cinco cidades desse tema se caracterizam pela dualidade antagônica: o interior e o exterior, felicidade e infelicidade, ratos e andorinhas, homens e criaturas mitológicas, justiça e injustiça. São as cidades mais enigmáticas da obra, pois tratam não só de características físicas da cidade, mas da complexidade dos humanos que a habitam. As cidades são ordenadas, tanto na versão original quanto na versão utilizada para o Ensaio, de modo que Olinda, a primeira delas, seja a única a ter uma descrição física da cidade, introduzindo a temática da dualidade oculta. As demais cidades têm como principais características aspectos relacionados ao comportamento humano. Olinda é uma cidade que cresce em círculos concêntricos, à semelhança de um tronco de árvore, aumentando a circunferência de sua muralha a cada ano. A particularidade de Olinda é que ela se expande por inteiro, desde o seu centro até os muros, ampliando os bairros mais antigos e os pouco menos antigos que os primeiros. Assim, ela se distingue das demais cidades que mantêm intactos os seus velhos centros guardados pelas muralhas, crescendo para fora destas. Raíssa é uma cidade aparentemente infeliz. A cidade é apinhada de acidentes, números negativos, copos vazios, brigas, etc. Em meio a esses infortúnios, a cidade esconde uma série de acontecimentos felizes, como “uma criança que da janela sorri para um cão que pulou num alpendre para comer um pedaço de polenta (...)” (CALVINO, 2002, p. 134). Já Marósia consiste em duas cidades segundo o oráculo: a dos ratos e das andorinhas. Os habitantes, que acreditam viver na cidade dos ratos, se atêm na esperança de que um dia a cidade dos ratos se tornará a cidade das andorinhas. Berenice, a última cidade apresentada no livro, é uma cidade injusta, onde a justiça está oculta. Porém, na cidade dos justos existe uma “semente maligna; a certeza e o orgulho de serem justos – e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justo (...)” (CALVINO, 2002, p. 147). Assim, as cidades justa e injusta se misturam e crescem uma dentro da outra. Teodora é a penúltima cidade a ser apresentada por Calvino, seguida de Berenice. Os habitantes de Teodora têm o desejo de se tornarem a única espécie viva a habitar o mundo. Aranhas, moscas, cupins, traças e até os ratos foram exterminados até que toda a fauna foi extinta e Teodora se tornou puramente humana. Sobre a vida animal só se conservaram os estudos sobre as espécies organizados e arquivados nas bibliotecas. O que os habitantes de Teodora não

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esperavam é que uma nova fauna estaria à espreita, preparando-se para recuperar a sua cidade: uma fauna imaginária de esfinges, unicórnios e basiliscos. Pode-se indagar se os habitantes de Teodora representam a esperança da soberania da espécie humana, no sentido de dominar e explorar outras espécies consideradas ameaçadoras ou mais fortes, desde pragas — como as traças — a animais de grande porte. O medo das pragas e das grandes criaturas horrendas que poderiam ter habitado o planeta já foi constituído por superstições, esquecidas ao passar do tempo, mas eternizadas na literatura, nos contos e na mitologia. As ideias iluministas começaram a desenvolver uma forma de pensamento respaldado na razão, libertando os seres humanos do medo de criaturas que não possuem explicação científica, e que são fruto do nosso imaginário. Calvino faz referência a Buffon e Lineu em “a biblioteca de Teodora conservaria em suas estantes os tomos de Buffon e Lineu.” (CALVINO, 2002, p. 145). O primeiro, conde de Buffon, realizou estudos comparativos, analisando e descrevendo cientificamente o reino animal, assim como a origem das espécies; o segundo, Carlos Lineu, desenvolveu a nomenclatura binária, para atribuição de nomes científicos às espécies. Na esperança da soberania, a autoridade humana chegou a certo ponto que não restou mais nada a se dominar a não ser a própria espécie. A tentativa de extermínio de um grupo por outro dentro de uma mesma espécie já é conhecida pela humanidade. Os piores conflitos entre humanos aconteceram principalmente por brigas por território, pautadas na crença da soberania de uma nacionalidade ou religião sobre a outra e facilitada pelo conhecimento científico. O contexto bélico está presente em grandes histórias imaginárias, com personagens fantásticos até então esquecidos pela razão. Alguns autores se permitiram explorar essas histórias, como o caso “d’As Crônicas de Nárnia” (original: The Chronicles of Narnia, 1950), de C. S. Lewis, e “O Labirinto do Fauno”, de Guillermo del Toro (original: El Laberinto del Fauno, 2006). O Reino de Nárnia e o do Submundo surgem para duas crianças, Lúcia e Ofélia, respectivamente, que podem os alcançar por meio de um guarda-roupa e um labirinto. As Crônicas de Nárnia se passa durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e O Labirinto do Fauno durante a Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939). Em “O Labirinto do Fauno”, a menina Ofélia é levada com a mãe grávida à uma base militar fascista, escondida em um casarão nas montanhas da Espanha. Ofélia começa a perceber a presença de criaturas mágicas no local, que a atraem para um labirinto onde ela encontra Pan, o fauno que guarda o labirinto e a entrada para o Reino do Submundo (Imagem 36). O fauno revela a Ofélia que ela é a princesa, filha do rei do Submundo, que fugiu para a superfície onde acabou morrendo. A princesa é punida e fica presa no mundo dos humanos sob a forma de uma menina: Ofélia. O fauno então promete que a menina poderá retornar à companhia de seu pai no Submundo se completar três tarefas. Durante as tarefas, Ofélia tem que lidar com o severo mundo real, em meio a Guerra Civil Espanhola, a gravidez de risco de sua mãe, a morte de seu pai e seu novo padrasto fascista opressor. A imaginação de Ofélia traz à realidade uma fauna que se encontrava esquecida nos livros de contos de fada e mitologia (de fato, a menina precisa abrir o livro que o fauno lhe dá em um cômodo sozinha para a que a próxima tarefa possa ser revelada).

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Imagem 36. Pan e Ofélia na entrada no Submundo

O filme está repleto de criaturas mitológicas e simbolismos. O fauno se assemelha ao minotauro, que na mitologia era guardião do labirinto; as fadas saem dos livros de contos de fadas que Ofélia lê. No início do filme, Ofélia devolve à um antigo monumento de pedra o seu olho esquerdo e se surpreende ao ver um inseto sair da boca do monumento, o qual ela chama de fada (Imagem 37). O inseto se transforma fisicamente em fada quando Ofélia o mostra uma ilustração de uma fada em um de seus livros (Imagem 38). O ato de devolver o olho ao monumento também parece ser simbólico; é a partir desse momento que Ofélia começa a ver as fadas e ser conduzida ao labirinto. No antigo Egito existia o mito de Hórus, cujo olho era símbolo de proteção. Hórus era o Deus egípcio do Sol; seu olho direito representava a racionalidade e o esquerdo o abstrato. O olho esquerdo possuía um lado feminino místico, capaz de enxergar a espiritualidade. Ao devolver o olho esquerdo ao monumento, Ofélia teria devolvido a si mesma a capacidade de enxergar o mundo presente em sua imaginação. A mandrágora22 também é uma lenda importante na percepção do filme. Ofélia a utiliza, sob orientação do fauno, para curar a sua mãe que se encontra muito doente. A planta de fato cura a mãe até ser retirada do quarto pelo padrasto. Nessa cena, del Toro implanta a incerteza sobre a invenção do submundo, fauno e labirinto, que parece estar além do imaginário de Ofélia. Vários outros simbolismos e superstições podem ser interpretados no filme, como as fases da lua, a misticidade do feminino e o próprio labirinto. Os habitantes de Teodora, ao conservar em seus livros a sua antiga fauna negligenciada, mantiveram presente a capacidade humana de imaginar criaturas híbridas, que atuam como personagens de lendas, mitologias e, mais atualmente, de filmes. A mandrágora é uma planta cujo formato da raiz remete a forma humana. Foi uma planta bastante venerada e acreditava-se que podia curar a esterilidade, além de ser utilizada como amuleto. 22

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O filme de del Toro também se aproxima de outras cidades do tema. Como em Raíssa, Ofélia parece viver em uma cidade infeliz, repleta de acontecimentos negativos e pessimistas; porém, ao visualizar o labirinto e suas criaturas, Ofélia vivencia alguns poucos e sutis momentos felizes. Em “O Labirinto do Fauno” Ofélia é a tentativa humana de se apoiar na inocência e imaginação para conseguir permanecer emocionalmente num mundo traçado por uma recorrente, cruel e racional realidade.

Imagem 37. Ofélia devolve ao monumento seu olho esquerdo

Imagem 38. Ofélia mostra a imagem de uma fada para o inseto

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Considerações Finais “(...) Ao amanhecer, disse: – Sire, já falei de todas as cidades que conheço. – Resta uma que você jamais menciona. Marco Polo abaixou a cabeça. – Veneza – disse o Khan. Marco sorriu. – E de que outra cidade imagina que eu estava falando? O imperador não se afetou. – No entanto, você nunca citou o seu nome. E Polo: – Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza” (CALVINO, 2002, p.)

A análise comparativa de algumas das Cidades Invisíveis permitiu, além de um melhor entendimento da obra, estabelecer conexões entre cidades a partir de um tema em comum. Esses temas serviram de filtro para que se pudesse visualizar a cidade segundo as perspectivas que ele propunha. Certas cidades se aproximaram mais de seus temas do que outras; algumas puderam ser encaixadas em mais de um tema. O livro de Calvino é uma obra espelhada. As duas primeiras cidades apresentadas, Diomira e Isidora, são classificadas no tema “As Cidades e a Memória”, também o primeiro a ser apresentado; as duas últimas cidades, Teodora e Berenice, são classificadas como “As Cidades Ocultas”, último tema do livro. Assim, o primeiro e o último tema se fizeram expressivos a ponto de serem brevemente comentados. Em “As Cidades e a Memória”, a temática nos leva a questionar a memória que temos de uma cidade, a sua veracidade e a possibilidade de existir mais de uma realidade para ela, como acontece com a cidade de Barcelona nas obras de Allen e Iñarritu. “As Cidades Ocultas”, último tema, talvez assim esteja posicionada a fim de insinuar que, ao final, as cidades ainda não se fizeram totalmente visíveis. Esse ciclo, que começa na memória e termina no oculto, remete às cidades que ainda estariam por vir e que poderiam, enfim, escancarar todas elas. Ao comparar as cidades, acrescenta-se uma nova interpretação em cada uma delas, e cidades que se considerava conhecer são repensadas. Refletir sobre a cidade de Barcelona sob a ótica de Maurília se tornou um exercício crítico e interpretativo sobre as duas. Foi também relevante compreender como outros indivíduos – os diretores de cinema – têm refletido sobre os mesmos pontos, na tentativa de transmitir aquelas suas interpretações sobre uma cidade tão famosa ao seu público. Porém, as comparações não se fazem únicas. Um exemplo disso é cidade de Anastácia, que poderia ser comparada também, numa aproximação um pouco mais realista, ao desejo de milhares de imigrantes em mudar de suas cidades para outras consideradas a materialização de seus desejos. Lá eles percebem ser escravos tanto de seus desejos quanto da cidade. O exercício de estabelecer um raciocínio comparativo entre as cidades, mesmo que dedutivo, fez perceber como as cidades são parecidas no que menos se espera; e quando se achava não conseguir encontrar nenhum ponto que as conectasse, lá estava o fio por meio do qual elas trocavam informações umas com as outras. Para essa percepção, escrever foi essencial.

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A complexidade e a dualidade dessas cidades podem ser consideradas como reflexo da existência humana, realidade que conecta todas elas. Como Telca, as cidades são todas uma sinédoque. Elas representam algo muito maior que elas, mas que se encontra pelas suas ruas, dentro de seus edifícios, caminhando sobre os seus parques: a própria existência humana. Foi percebido que tal existência – sentido da cidade – é o que a modela para ser o que ela é. Maurília não seria considerada uma cidade tão nostálgica se os seus próprios habitantes não o fossem, ao apresentar seus cartões postais para cada viajante que chega à cidade; Teodora não teria uma fauna fantástica planejando tomar a cidade, se os seus habitantes não tivessem expulsado todas as espécies de animais que existiam anteriormente, em sua compulsão pela soberania; Sofrônia não teria duas meias cidades que não estão constantemente complementadas se os seus habitantes decidissem não desmontar uma delas ao final da temporada e lá permanecerem de vez. As Cidades Invisíveis podem ser consideradas como tal por serem impossíveis de existirem pelas suas narrativas fantásticas. Porém, chega-se ao final de uma análise comparativa de onze delas com a suposição de que As Cidades Invisíveis representam cidades reais, com questões e características reais, em forma de metáforas muito bem colocadas por Italo Calvino. Ora, o próprio Marco Polo insinua que todas elas contêm “pedaços” de uma cidade real, Veneza. Os seus relatos se esgotam quando só resta Veneza para ser descrita. Ele então intriga o Grande Khan ao dizer que teme que, ao falar claramente de Veneza, sem metáforas, nomes e confabulações, a imagem que tem da cidade morra em suas palavras e que ele acabe perdendo-a de vez. Assim, prefere perder uma parte de cada vez, falando de Maurília, Tecla, Barcelona, Nova Iorque e de várias cidades que na verdade são a mesma. “A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene.” (CALVINO, 2002, p. 115).

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Anexo: Três Cidades...

Outras três Cidades Invisíveis foram ilustradas para compor a capa do Ensaio Teórico – e não utilizadas nas comparações. São elas: Diomira (“As Cidades e a Memória”), Otávia e Zenóbia (“As Cidades Delgadas”).

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Diomira

(“As Cidades e a Memória”, p. 11)

“Partindo dali e caminhando três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todosos deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre”. (CALVINO, 2002, p. 11).

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Otávia

(“As Cidades Delgadas”, p. 71)

“Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazi, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. Caminha-se em trilhos de madeira, atentando paran não enfiar o pé nos intervalos, ou agarra-se aos fios de cânhamo. Abaixo não há nada por centanas e centenas de metros: passam algumas nuvens; mais abaixo, entrevê-se o fundo do desfiladeiro”. (CALVINO, 2002, p. 71).

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Zenóbia

(“As Cidades Delgadas”, p. 36)

“Agora contarei o que a cidade de Zenóbia tem de extraordinário: embora situada em terreno seco, ergue-se sobre altíssimas palafitas, e as casas são de bambu e zinco, com muitos bailéus e balcões, postos em diferentes alturas, com andas que superam umas as outras, ligadas por escadas de madeira e passarelas suspensas, transpostas por belvederes cobertos por alpendres cônicos, caixas de reservatórios de água, cata-ventos, desdobrando roldanas, linhas e guindastes”. (CALVINO, 2002, p. 36).

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