26/9
1971
vá à feira
H
oje é domingo. Dia de estender o último bocejo. Desprezar virtualmente o despertador e trocar o pijama em desalinho pela roupa mais bem cuidadinha. Tomar café sem pressa nenhuma, discutir o orçamento familiar com a mulher e, quem sabe, curar o princípio de ressaca do copo a mais de ontem à noite. Domingo. Dia de alisar os cabelos dos pequenos, ralhar com eles, ajeitar-lhes a blusa e tomá-los pela mão para sair à rua. Passear pela praça, descer a rua sem calçamento olhando sempre para o alto, pressupondo as condições do tempo e, surpreendido, verificar as novas construções da cidade. Tudo isso sem horário e sem determinação. Hoje é o dia do passeio despreocupado, da visita ao parente, do apontar para as crianças o prédio onde se trabalha a semana inteira. É dia de lhes satisfazer
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23 de setembro de 2016
Levante um pouco mais tarde, arrume as crianças e vá à Festa da Primavera
a curiosidade, diverti-los, brincar mais que eles. E, quem sabe, uma sugestão: a Festa da Primavera começou ontem, aqui em Blumenau. A semana que passou foi dos expositores, decoradores e operários, que montaram a feira nos dois pavilhões da Proeb. Ontem foi o dia das autoridades cortarem a fita, elogiarem o progresso da região, comemorarem o desenvolvimento com almoço e, aproveitando o encontro semiocasional, especular posições e atitudes políticas. Domingo não. Hoje é dia de visitar a festa, descomprometidamente. Roupa domingueira e crianças pela mão. Os jovens. Esses vão trocar alguns dos estandes pela espiadela marota na turma do sexo oposto que faz de conta que está na feira por causa dos pombos ou das orquídeas. Leve-os junto também. Com as crianças vai ser preciso um pouco mais de paciência. Cuidá-las para que não se percam, explicar-lhes
a origem das coisas e, mais do que elas próprias, surpreender-se com o tamanho das aves e as cores das orquídeas. Não esqueça de levar os pequenos até o lugar dos pequenos animais. Mas prepare-se para justificar a impossibilidade de sair sem levar os filhotes para casa. Prepare-se também para responder a mil e uma perguntas e aproveite uma folga para dar uma espiada nos estandes da indústria e comércio para saber como é que anda nosso desenvolvimento. Se você não foi ontem à festa, já perdeu tourada, o rodeio crioulo e a apresentação do centro de tradições gaúchas de Blumenau. Mas hoje você pode assistir à apresentação de cães adestrados, do CTG Barbicacho Colorado de Lages, e o torneio de laço – Grupo Laço de Ouro de Tijucas. Isso tudo sem contar com os pombos, orquídeas, produtos e animais expostos. É domingo. Vá à feira. Jornal de Santa Catarina 45 anos
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1971
Um verão qUe chega em setembro
maior conforto tem mais praia em Santa Catarina do que pode imaginar a fantasia domingueira do turista. Escolha devagar, porque cada uma tem uma característica especial.
CAMBORIÚ Quem vai à praia quer viajar sem transtornos. Então é preciso boas estradas que dão acesso fácil. Talvez seja este um dos motivos de grande número de banhistas em Camboriú. Novos trechos de asfalto na BR-101 e a retificação de outras estradas que demandam ao mar. Camboriú cresceu em fama mas não aumentou as acomodações para justificar essa popularidade. Os três melhores e maiores hotéis continuam sendo o Fischer, o Marambaia e o Miramar. Existem os menores, de igual conforto, que já não satisfazem ao número cada vez mais crescente de veranistas. Estes hotéis, além de não oferecerem boas condições, estão com as reservas esgotadas, o que explica o aumento dos preços de hospedagem. Ninguém aceita mais reserva para o veraneio na maior praia de Santa Catarina. Não há empreendimentos imobiliários de vulto e a construção de hotéis parece que parou. E, se isso não mudar, talvez no próximo veraneio Camboriú deixe de se chamar a “Copacabana do Sul”.
Foto baNco De DaDos, 9/197 1
O mar já começa a ser o programa obrigatório destes fins de semana que a cidade nos oferece calor, paz demais e quase nada de novo
“Pegue a esteira e o seu chapéu. Vamos para a praia que o sol já vem...” Tiribiribim e lá estão milhares de catarinenses caindo nas águas do Atlântico. A primavera mal iniciou, o verão está muito longe, mas a corrida as praias já começou. De Joinville a Criciúma, de Lages a Florianópolis, quem tem tempo e automóvel se abalou para Camboriú, Cabeçudas, Canasvieiras, Morro dos Conventos e dezenas de outras praias catarinenses. Desde sexta-feira, quando o sol reapareceu depois de chuvas intermitentes, o fim de semana se mostrava límpido e quente. Em Blumenau, Joinville e Florianópolis o comércio aumentou as vendas de chapéus de palha, roupa de banho e cosmético para a praia. Mas não são só os catarinenses que gostam de nossas praias. Do Paraná e do Rio Grande do Sul vêm centenas de turistas, na maioria estudantes que viajam de carro próprio ou carona. Os paranaenses preferem Camboriú (foto), pela proximidade e pela fama, que este ano deverá receber 150 mil veranistas. Os gaúchos, pelo contrário, preferem Morro dos Conventos ou o sossego de Garopaba, praia semideserta, ideal para descansar e para quem já saturou de praias superlotadas como Tramandaí e Torres (RS). E quem gosta de variedade e
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1972
Mulher de vanguarda Paulo Beccon
A personalidade marcante e o misticismo de Elke Hering Bell
Registro de Elke no ano de 1976
O
encontro com Elke Hering Bell já estava programado há algumas semanas e quarta-feira passada se concretizou, pois tivemos o prazer de entrevistar uma das mais famosas escultoras de Santa Catarina (no programa Mulheres de Vanguarda, da TV Coligadas). Elke é uma mulher de voz grave, alta, magra, olhos marcantes. Falando com muita desenvoltura e de maneira segura, certamente o telespectador não sentiu o tempo passar. Casada com Lindolf Bell, tem um filhinho chamado Pedro e espera outro dentro de alguns meses. Elke impressiona logo pela sua personalidade simples e definida. Para ela, o problema da paz entre os homens não está no maior ou menor desenvolvimento socioeconômico, nem no nivelamento do potencial das nações da terra. Só terminarão as guerras quando houver um equilíbrio de paz interna, de grandeza interior. Seus olhos têm algo de místico – ela não sabe com certeza se realmente possui uma personalidade mística, porém o assunto a entusiasma bastante. Essa inclinação a faz estudar astrologia como ciência, que dia a dia se aperfeiçoa. Basta dizer que já se está fazendo horóscopos eletrônicos, de uma exatidão impressionante.
Mãe Além de mulher de sociedade, escultora, vocês sabem que Elke Hering Bell é mãe. “Depois que se é mãe”, explicou, “há uma reviravolta completa na forma de ser. Do que era antes, muito pouco resta. É a grande experiência da mulher.” Seu mundo ideal seria na Índia, em uma cidade chamada Auroville, que na aparência é uma cidade como outra, com indústrias, restaurantes, lojas e tudo mais. Mas lá a função do homem é a sua realização. Pratica-se ioga, discutem-se todos os problemas que surgem e medita-se profundamente. O principal não é o dinheiro, mas o desenvolvimento interior das potencialidades de cada um.
FOTO BanCO de dadOS, 4/3/197 6
Arte
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A arte no Brasil tem grande futuro. Na Europa respira-se arte em cada lugar, mas tudo já está se tornando bastante artificial. O Brasil, como a África, tem um manancial de riquezas inimagináveis. Em Santa Catarina o problema é o mesmo. Entre as coisas que mais gosta na vida estão o trabalho, a criação, viajar, a família e o mundo interior. Para Elke, é evidente que a felicidade existe.“Se não existe”, acrescentou,“não haveria essa busca incessante”.
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2/10
1974
15 CrUzeiroS por dia
Apesar dos riscos à saúde, catadores de lixo industrial fazem do depósito um ganha-pão
foto banco de dados, 2/10/1974
U
m depósito de lixo industrial a céu aberto, localizado na Rua Nanny Poethig, no bairro da Velha, oferece atualmente boa rentabilidade a muitas pessoas que nele catam e depois comercializam madeira, latas, sacos plásticos, papelão, ferro, fios e malha, principalmente. Obter lucros é a preocupação de mais de uma dezena de pessoas trabalhando durante toda a semana em meio a fumaça e nuvens de moscas. Apesar do mau cheiro, da fumaça que é constante, além da proliferação de insetos e animais nocivos à saúde – motivos de queixas frequentes entre os próprios moradores vizinhos ao depósito –, nenhuma denúncia foi feita até agora a qualquer órgão de fiscalização da saúde pública, mesmo tendo a lixeira mais de três anos. Nos depósitos diários que a empresa realiza, os resíduos já aterraram um precipício de quase 50 metros. Márcio* é o mais antigo frequentador desta lixeira. Ele não gosta muito de falar do seu trabalho, já que as autoridades podem se alarmar e decretar o fechamento do depósito de lixo, seu único "passatempo" e ganha-pão, segundo ele diz, já que tem filhos menores para sustentar, inclusive um neto, mesmo que os maiores trabalhem.
Expostos a céu aberto, os rejeitos garantem renda extra às famílias que coletam e revendem os materiais
Aos homens, em número bem menor do que o das mulheres que frequentam o lixo, cabe a retirada de papelão, madeira, arame, latas e fios. Eles têm mercado garantido para a comercialização das sucatas, podendo ganhar de 4 até 15 cruzeiros por dia. Isso quando eles mesmos não ocupam o material recolhido. – Seu Luís, um colega meu, com a madeira que recolheu deste lixeiro deu para construir duas casas pequenas e alugá-las – afirma Márcio. Mas são as mulheres que mais procuram esse lixo. E ali passam o dia inteiro. O dia menos frequentado – afora o domingo – é a segunda-feira. Isso porque, além do lixeiro conter pouco material aproveitável, "é dia de pôr a casa em ordem e lavar a roupa da semana". Elas vêm de vários locais de Blumenau, e nunca das proximidades do depósito de lixo. Eliana* mora no bairro Água Verde. No começo deste ano foi convidada por uma vizinha para fazer companhia para a cata das sucatas de malha. Aceitou e gostou. Como o marido trabalha na Companhia Hering, ela diz que por necessidade não precisa fazer isso. Mas com o lucro que obtém, ela prefere este "passatempo" do que ficar em casa fofocando a vida alheia. Durante os nove meses em que vem frequentando diariamente a lixeira, Eliana já conse-
guiu comprar um televisor colorido e uma Velosolex (bicicleta da época). – Já está quase tudo pago, pois comprei quase à vista – diz. Com o pequeno veículo, que ela gosta de chamar de "motoca", Eliana se desloca para a cata do lixo, para a venda do produto da cata e para as compras e os passeios. No lixeiro, recolhe somente retalhos de malha. Os maiores vende para costureiras que confeccionam artigos de crianças. O resto aproveita fazendo estopa para as oficinas mecânicas da cidade. Com uma lâmina desfia o retalho, num trabalho cansativo e demorado, que exige paciência. Sua prática nesse trabalho praticamente artesanal é grande, e nenhuma das companheiras consegue superá-la. Assim chega a fazer 10 quilos de estopa por dia, quando tem matéria-prima suficiente. Paralelamente à rentabilidade que o lixeiro oferece aos que nele passam o dia inteiro à cata de sucatas, existem os fatores negativos, como a exposição constante a doenças graves, pela falta total de higiene do local, principalmente para as crianças. A queima da sucata, que se processa diariamente em ritmo lento, é outro perigo. Na semana passada, uma criança teve seus pés queimados, e ainda está sendo medicada.
* Os nomes verdadeiros foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados
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23 de setembro de 2016
Jornal de Santa Catarina 45 anos
24 e 25/4
1988
POE TA Foto banco de dados
Lindolf Bell traça, em 20 anos de carreira, um discurso entrecruzado de poesia e vida
“O
poeta Lindolf Bell não envelheceu nestes mais de 20 anos de poesia. Até parece, reinventou a juventude. Navegou, bem fundo, no rio da palavra. Entre algas e correntezas. Fiel à poesia, à emoção, ao artesanato do fazer poético. De húmus e areia, amor e participação, síntese e propósito, elaborou seu verso. Ajudou a construir a sílaba da vida. Poetou. Poeta. Sincero. No balcão do tempo, serve, alquimista da metáfora e da beleza, a magia do poema...” Estas considerações são de Fernando Coelho, poeta cearense, radicado em São Paulo, em introdução a uma entrevista com Bell para o Jornal do Ceará. Fernando Coelho elaborou a entrevista na época do lançamento do livro “O Código das Águas”, publicado pela Global Editora (SP) e que Lindolf esteve autografando na quinta-feira, em Timbó, sua terra natal, numa grande noite cultural naquela cidade, onde há 20 anos não apresentava suas obras. Na ocasião ele autografou também o pôster-poema das “Crianças Traídas” e o livro “Vi-
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vências Elementares”. Na entrevista cedida a Fernando Coelho, o poeta Bell resume seu pensamento sobre a poesia, emoção e luta pela sobrevivência como testemunha de seu tempo. Criador da Catequese Poética, em 1964, Lindolf Bell considera que o movimento deu certo à medida que surgiu no tempo certo. “Os anos 1960 caracterizaram-se por uma insuspeita inquietação na cultura brasileira”, relata o poeta. “Cinema, teatro, música, dança e poesia: o signo dominante era a inovação. Mas a redescoberta de raízes, as primeiras manifestações das memórias nacionais jogadas no lixo, começaram a ter defensores”. Para o poeta, falar para 10 mil pessoas, como fez em Itajaí, no Estádio Marcílio Dias, num silêncio “ancestral e comovido” da plateia, representa um dos feitos dentro da poesia brasileira, que “às vezes não divulga em grandes centros”. O que justificou não ter a mínima importância. “Porque tudo faz parte de tudo. Ainda que pareça o contrário”. Perguntado se poderia dizer onde se encontram, hoje em dia, os catequizados pela poesia, Bell disse
que se algumas pessoas se redescobrem no poema, não carece fazer alarde. “O homem que se redescobre através do poema sabe que já não corre mais o risco de perder-se na sociedade consumista, pois reencontrou sua capacidade de introspecção. Bell acha que a poesia não trai. Mas desafia. Se faz duvidar, no mesmo instante que amplia a intuição, a consciência do nosso destino comum, ilumina a incerteza das coisas. E, acrescenta,“faz do ato poético uma dádiva, onde o tempo do homem se faz de todas as estações e de todas as circunstâncias”. Quanto ao mercado para a poesia, ele acha que há, embora lento, “mas não impossível”. Considera que se todos os poetas entenderem que o ato final do poema é chegar ao leitor, o mercado se ampliará. “Se a educação nas escolas, na casa de cada um, na universidade, assumir o poema como um instrumento de autoconhecimento, a audiência do poema crescerá”. Mas, para tanto, Bell acha que é preciso não ter vergonha da palavra poesia.“Quando isto se tornar claro para todos, tudo ficará mais fácil”, acredita. 23 de setembro de 2016
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arte sobre foto banco de dados
1988
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SimpleS e metódiCo A Aos 81 anos, o industrial Ingo Hering acorda cedo, trabalha de segunda a sexta, dirige seu próprio carro, não cultiva vícios nem se permite a exageros
simplicidade é a marca indelével de Ingo Wolfgang Hering, um dos empresários mais bem sucedidos e respeitados do país. Aos 81 anos, três filhos, oito netos e prestes a completar 54 anos de casado com dona Lili,“seu Ingo”, como é chamado carinhosamente por familiares e funcionários, é um homem metódico. Avesso à improvisação, há anos segue uma rotina bem traçada. Levanta-se às 7h e pontualmente às 8h, de segunda a sexta-feira, está em seu gabinete, no prédio da administração na sede da Cia. Hering, no bairro Bom Retiro, em Blumenau. É uma sala modesta para um dos mais destacados industriais brasileiros e sem secretária exclusiva. Acarpetada, mas sem tapetes, aconchegante, mas sem luxo, comporta duas cadeiras e um sofá para três pessoas. Sua escrivaninha está sempre abarrotada de papéis. Na parede, o retrato de seu pai, Curt Hering. Abaixo da foto, uma máquina de escrever portátil. É ali que passa boa parte do seu dia. Ocupa a sala para supervisionar as empresas (ele próprio reconhece que é presidente executivo e do Conselho Administrativo sem exercer, atualmente, plenamente estes dois cargos), ler muito e escrever semanalmente seu artigo que sai publicado aos domingos no Santa. À noite ouve Mozart,“gosto porque sua música vem do interior”. Mas já foi fã de Beethoven. Deixou-o por “ser muito impulsivo”. Sempre que pode vai ao teatro, “principalmente para acompanhar a orquestra”. Há um ano abandonou seu único hobby: tocar piano.“Minhas mãos já não permitem este privilégio”. Assiste a poucos filmes, vê novela às vezes e mantém distância de aparelhos eletrônicos devido ao marcapasso que carrega no peito há três anos. Nos finais de semana se diverte com a família, principalmente seus netos. “É uma alegria ver as crianças brincarem”. Vale-se de uma dieta sem exageros para manter a forma. É um homem de fala macia, pausada e gestos fortes. Cultiva amizades sem discriminações sociais ou ideológicas e é reconhecido por favores impagáveis. Da política partidária quer distância, apesar de ter se notabilizado como defensor das causas comunitárias. Usa o carisma que forjou durante estas oito décadas de convivência com os blumenauenses para deixar de lado certos cuidados com sua segurança pessoal e levar uma vida o mais normal possível. É ele mesmo quem dirige seu carro (até ano passado um Opala que não era do ano) e toda quinta-feira entrega sua coluna na redação do Santa, pessoalmente.“Não tenho motivos para me preocupar com isso”, diz satisfeito.
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fotos josé werner, bd, 27/4/1988
1988
Fotógrafo flagrou a triste rotina de uma criança que precisa se virar em uma casa sem banheiro
200 famíLias na faveLa do horto Sem esperanças de um programa habitacional, moradores refugiam-se em barracos
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Irene Huscher
ixo, lama e pobreza. Refúgio de quem não pode pagar aluguel, principalmente imigrantes. O Horto Florestal é hoje abrigo para quase 200 famílias, segundo os próprios moradores. Os programas habitacionais da prefeitura, no entanto, não os atingem e a população local está jogada à própria sorte, lutando por condições mais dignas de vida. A cada semana novos barrancos são construídos, complicando ainda mais a falta de espaço. E a cada dia cresce a certeza de que, por pior que seja, essa é
a única opção para quem cansou de pedir um lugar para morar sem nada conseguir. Indignado, um morador que não quis se identificar revelou que a única assistência que os moradores recebem é da Celesc e do Samae. Há quatro meses morando em um barraco no Horto Florestal, Ana* não sabe de projetos da prefeitura para transferir os moradores a outro local. – Uns dizem que vamos sair. Outros, que vamos ficar – observou. Desempregada, ela mora com um filho de 14 anos e recebe ajuda das irmãs para sobreviver. Sem água e luz no barraco, diz que só sai dali se for para um local melhor. – Tenho que ter o que é meu – justifica, afirmando que não tem condições de morar com a família.
Vítima do cruzado Germano*, casado, cinco filhos, todos menores, veio do Paraná à procura de emprego. – Foi o belo Plano Cruzado que nos botou aqui – observou, revelando que teve que vender o sítio
onde morava para pagar as dívidas contraídas com o financiamento de um galpão. – Não tenho mais nada – alegou, informando que só sai do Horto Florestal, onde mora em um barraco de dois cômodos, se conseguir um lugar melhor para morar. Germano é vigia, sua esposa trabalha como zeladora de um condomínio residencial e o filho mais velho, de 15 anos, é cobrador de ônibus. A renda da família atinge 30 mil cruzados, o mesmo que custou o material para a construção do barraco. – Quando tinha um pedacinho de terra era melhor – admite, revelando que não tem condições de pagar o aluguel. No bairro Fortaleza, onde morava antes de mudar para o Horto, há três meses, pagava 3 mil cruzados para alugar uma casa, metade do seu salário. Quando chegou a Blumenau, conta, foi à prefeitura procurar um terreno e se inscrever para o programa habitacional. – Não aceitaram minha inscrição porque sou de outro estado. Mas dentro da prefeitura me disseram que existia esse lugar – revela.
* Os nomes verdadeiros foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados
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1989
Milhares protestaM
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lumenau nunca viu nada igual. A opinião é de representantes do movimento de trabalhadores e dirigentes sindicais de Blumenau, que não descartaram a possibilidade de continuar a paralisação amanhã. Ontem de manhã milhares de pessoas voltaram a se concentrar na Rua XV de Novembro, defronte à Igreja Matriz. Entre os discursos dos grevistas, a queima da bandeira dos Estados Unidos por um dos manifestantes empolgou a multidão. A manifestação prosseguiu sem tumultos e, após seu término, os manifestantes seguiram em passeata pelo Centro e pelas principais ruas da cidade, fechando todos os estabelecimentos que ainda permaneciam abertos. Escolas, bancos e hospitais ficaram fechados, mas ao final da tarde algumas lojas abriram e o transporte coletivo voltou a funcionar, precariamente, em algumas linhas. Segundo balanço da Central Única dos Trabalhadores (CUT), mais de 350 A greve geral convocada pelas mil pessoas paralisaram em todo o Estado. A expectativa para hoje é de que este centrais sindicais contra o Plano número chegue a 500 mil. Na avaliação do governo de Santa Catarina, o moviVerão levou trabalhadores às ruas de mento grevista foi pacífico e ordeiro até ontem, como haviam assegurado os orBlumenau, em um grau de adesão ganizadores da greve.
Setor têxtil
Fotos José Werner, bd, 14/3/1989
Jornal de Santa Catarina 45 anos
que surpreendeu até mesmo as lideranças do movimento
O presidente do Sindicato das indústrias de Fiação e Tecelagem de Blumenau, Ulrich Kuhn, reconheceu a greve dos têxteis como um direito constitucional, mas, no entanto, considerou-a precipitada. O maior problema, na sua opinião, foi a mistura deste movimento com a greve geral articulada a nível nacional pela CUT e a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), “que tem como alvo o governo, provocando urna grande confusão”. O índice de 87% de reposição, pedido pelos trabalhadores, foi avaliado como inviável por Kuhn, que considerou a proposta de 33% de reposição mais 5,2% de aumento, feita pelos empresários, como “sensata, principalmente porque não podemos repassar os reajustes para os preços finais dos produtos, que estão congelados”. O presidente do sindicato patronal acredita que hoje cerca de 80% a 90% dos têxteis deverão retornar ao trabalho. O rompimento das negociações, para Kuhn, fez com que a proposta dos 33% deixasse de ter efeito. A adesão mais maciça à greve geral em Blumenau tem sido a dos trabalhadores das indústrias têxteis, que foram os principais responsáveis pela paralisação quase total da cidade um dia antes do programado, segunda-feira. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Blumenau, Osmar Zimmermann, acusou os empresários do setor de se fecharem à negociação, partindo para acordos isolados,“inviabilizando a negociação de salários”. Segundo Zimmermann, as notícias veiculadas na imprensa em anúncios pelo sindicato patronal da área têxtil não correspondem à verdade, “porque eles encerraram as negociações, e hoje (ontem) pela manhã ligamos para os empresários de diversas empresas e eles se recusaram a nos atender”.
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mOrte nO maiOr aSSaltO dO eStadO Márcia Pontes e Guarim Liberato Júnior
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cutado. Os clientes e funcionários da agência entraram em pânico e se atiraram ao chão, enquanto as balas ricocheteavam nas paredes da agência. – Depois que os assaltantes mataram o segurança, os outros revidaram os tiros e o faroeste começou – contou Olivia. Um assaltante também foi atingido e saiu mancando da agência. Já na Rua XV de Novembro os assaltantes continuaram atirando contra o Besc e fugiram a pé, em direção à Rua Padre Roberto Landell de Moura, onde pegaram um Vectra vinho, de Balneário Camboriú, estacionado em frente ao prédio da Justiça Federal. Eles fugiram pela Rua Martin Luther e abandonaram o carro na Rua Arthur Koehler, uma via sem saída transversal à Antônio da Veiga.
terror Depois de abandonar o veículo, os assaltantes se refugiaram em um prédio comercial. Uma corporação da Polícia Militar (PM) feminina invadiu o imóvel e encurralou os fugitivos. Nesse momento, a policial feminina Magali Theiss, 23 anos, acertou um projétil de seu revólver calibre 38 no fígado de Cláudio Adriano Ribeiro, 35 anos, o Papagaio, considerado o bandido mais procurado do Sul do país. O comparsa de Papagaio, o assaltante Márcio Jorge Rodrigues, 34 anos, o Zi, se rendeu quando a policial Cleusa, que acompanhava Magali, pediu reforço ao local.
Jornal de Santa Catarina 45 anos
Guarnições da Polícia Militar fizeram buscas dos assaltantes em fuga
arte sobre foto bd, 21/7/1997
Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) não teve tempo para cortar o bolo em comemoração aos 35 anos de aniversário, e recebeu o maior presente de grego de sua história. Ontem, às 14h45min, quatro assaltantes tiveram a ousadia de levar R$ 982 mil da agência Central do Besc em Blumenau, na Rua XV de Novembro, que estava lotada naquele horário. No maior roubo a banco da história de Santa Catarina – o 12º a agências do Besc na região de Blumenau este ano –, a ação dos assaltantes foi rápida e violenta. O segurança da Prosegur Brasil, Valdecir Amaral, 32 anos, que não usava colete à prova de balas, foi morto com quatro tiros e uma cliente que estava na fila, Valdecir Heinzen, 54, levou um tiro no pé direito. Os assaltantes já estavam dentro da agência quando os funcionários da Prosegur Brasil – transportadora de valores – entraram no Besc para recolher um malote com R$ 982 mil que seriam depositados no Banco do Brasil, a poucos metros dali. Na hora em que um funcionário da empresa saía da sala-forte da agência com o malote, dois assaltantes sacaram meias dos bolsos, enfiaram na cabeça e deram voz de assalto. Segundo a publicitária Olívia Marchi, que estava atrás de um assaltante que esperava na fila, o segurança Valdecir Amaral, que segurava o malote, resistiu em entregá-lo ao assaltante e foi exe-
Gangue comandada pelo bandido mais procurado do Sul do país invade o Besc, rouba R$ 982 mil e deixa rastro de destruição
23 de setembro de 2016
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28/7
2000
Força inviSível O vento indica perigos, indica boas pescas. O vento atrasa a volta pra casa, faz do navegar um passeio. É preciso conhecer seus caprichos
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Giovana Kindlein
opra um vento terral numa manhã de sábado, nos molhes do Pontal, na boca da barra, em Navegantes. O movimento de Dalci Cristino da Conceição, o seu Dadá, 65 anos, é automático. Depois de chegar na praia, ele abre a tarrafa de popa, ou seja, ruma a favor do vento. A possibilidade de levar para casa uma tainhota, robalo ou pescada é quase certa para a alegria da mulher, Maria de Lourdes, a dona Ia, 60. A própria experiência e os ensinamentos sobre a interferência dos ventos, passados de pai para filho, fazem dele um sinalizador de boas pescarias. Depois de 35 anos embarcado em traineiras e sardinheiros, hoje aposentado, seu Dadá comprova que não dá ponto sem nó. Ele sabe que a ação da natureza é implacável. O vento sudoeste, segundo o contido e discreto senhor, é um dos mais perigosos para os pescadores. Com ar compenetrado, ele comenta: “É um vento muito pesado. Quando cai, deixa uma mandada tremenda em alto-mar. Os barcos que pescam no golfo passam um cortado com ele. Muitos já naufragaram por conta dele. Mas o tempo ruim que se pega, se esquece. Correr da morte ninguém pode!”. Em contrapartida, conforme seu Dadá, um dos melhores ventos para a pesca é o nordeste. O tempo também é determinante para a chegada do cardume de tainhas em águas catarinenses. Elas aparecem somente de maio a julho e podem, dependendo do vento, segundo o pescador aposentado, apressar ou refrear o seu trajeto: “Um sudoeste fraco é bom para trazer o cardume, mas se bater forte, o peixe viaja muito!”
AngústiA
Foto Marcos Porto, BD, 7/2000
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23 de setembro de 2016
O dia a dia no mar aumentou seu conhecimento sobre o assunto. Em certos momentos, às duras penas. Quando embarcou pela primeira vez numa traineira, aos 20 anos, com destino ao Litoral do Rio Grande do Sul, teve que suportar a angústia de passar três meses no oceano, longe de casa e da família. Há 25 anos cada viagem levava, em média, de três a quatro meses, período bem superior ao de hoje, que gira em torno de 20 a 30 dias. Com uma ponta de nostalgia, seu Dadá recorda: “Certa vez, meu filho Isaías (hoje com 29 anos), de dois anos, chegou a correr de mim quando entrei em casa depois de quatro meses sem aparecer. Não me conhecia mais”. Antigamente, segundo ele, os filhos tinham que ajudar os pais e, por isso, começavam cedo na lida. Aos oito anos já saía de madrugada com o pai para pescar de espinhel.Até aprender bem o oficio, a regra era a seguinte: metade do que pescava era da tripulação e a outra metade era sua.Aos 12, aprendeu sozinho a fazer tarrafa com um pedacinho de fio, e aos 14 já fazia o serviço de um homem. “Naquele tempo fazia de tudo para ajudar a casa. O rapaz com 15 anos não tinha moleza. Quatro horas de estudo não impedem o trabalho. Hoje é tudo diferente!”, compara seu Dadá, que além de tarrafear, trabalha à noite como vigia. Jornal de Santa Catarina 45 anos
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Cobertura vencedora do Prêmio Esso Regional em 2009
2008
foto tadeu Vilani, bd, 25/11/2008
Em Sertão Verde, Gaspar, uma avalanche de lama atingiu a casa de alvenaria que protegia sete familiares
luto na família mendonça
Família em fuga da enchente acaba soterrada no abrigo. Floresta desabou sobre sete pessoas
a
Carlos Etchichury
o perceber as águas ocupando o pátio de sua casa, Maria Marlene Mendonça, 49 anos, juntou duas filhas, dois netos, uma sobrinha e um amigo e abrigou-se numa residência de alvenaria, na encosta de uma floresta vistosa e ainda nativa, em Sertão Verde, localidade de Gaspar. Julgavam-se seguros. – As casas aqui inundam, mas a floresta nunca tinha desmoronado – lembra Francisco Mendonça, 49 anos, marido de Maria. Eram 15h de domingo. Uma hora mais tarde, uma avalanche de lama e árvores engoliu a casa que servia de abrigo para a família. Todos morreram. A tragédia dizimou os Mendonça, abalou Francisco e enlutou Sertão Verde. Frequentador da Igreja Assembleia de Deus, Francisco, que escapou da morte porque não conseguiu voltar Jornal de Santa Catarina 45 anos
do trabalho, busca forças na fé para compreender tamanho infortúnio. – Era a hora delas. Só pode ser isso. Não tem outra explicação – diz o vigilante, que comemoraria em fevereiro 30 anos de casamento. Enquanto olha os retratos da família na sala de casa – aquela em que Maria temia permanecer e que nem sequer teve seus cômodos inundados –, Francisco se desespera. – Aqui eu não tenho mais como morar. Olha as paredes (aponta paras os retratos). Elas estão aí! E eu fiquei sozinho. Como vou continuar vivendo? – questiona-se. Ele mesmo responde: – Preciso ajudar a minha outra filha (Jussara). Só restou eu e ela da nossa família. Ontem, em meio às perdas irreparáveis, o sofrimento de Mendonça arrefeceu no meio da tarde. Mergulhados nos escombros, os corpos da filha Débora, 26 anos, (grávida de dois meses) e da netinha Ester, quatro anos, foram encontrados.
Mãe e filha estavam abraçadas. A cena emocionou bombeiros e voluntários. – É uma das coisas mais triste que já vi na minha vida – balbucia um dos soldados dos Bombeiros, com o rosto protegido por máscara de pano. Cerca de 30 metros de onde mãe e filha foram achadas, voluntários localizaram Géssica, 15 anos. Até o final da tarde, os corpos de Maria, 49 anos, Elenai, nove, Charles, 19 anos, permaneciam ocultos pela lama. Além de dizimar os Mendonça, a fúria da natureza destruiu a localidade. Escolas, creches, ruas e centenas de casas foram parcialmente destruídas. Derrotados pela perda dos bens e pela morte dos vizinhos, centenas de moradores concentravam seus esforços ontem retirando água de balde de seus cômodos ou removendo com pá camadas de até 30 centímetros de lama de seus bairros. – Levaremos muito tempo para nos recuperar – avisa Francisco. E complementa a frase antes de se despedir: – Se conseguirmos nos recuperar. 23 de setembro de 2016
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MuitoS anoS de vida
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Blumenau tem 14 pessoas com mais de 100 anos. Ana Mineiro Sá, a Ciana, é uma delas. O que a conduziu à longevidade resume-se em uma palavra: coragem
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iana dispensa a ajuda de quem se aproxima. Basta a bengala. Com a mão direita apoiada sobre o acessório de madeira envernizada, percorre os cômodos da casa de repouso onde vive, em Blumenau. Corredor, rampa, degrau. Ignora a coluna fraturada e a visão prejudicada pela catarata que nem os óculos de grau mais dão jeito. É toda desassossego. Aos 103 anos, completados dia 25 de março, faz questão de tirar a fragilidade cedo da cama. Coragem nunca lhe faltou. – Pra viajar em cima do cavalo, vesti calça comprida, camisa. Coloquei até chapéu. Igual ao meu marido Vicente quando puxava boi. A vizinha olhou: “Ciana, cê tá doida? Pensei que fosse um homem” – relembra, em tom de travessura, a transgressão protagonizada na primeira metade do século passado, quando calça era roupa masculina. Entre os fragmentos de memória, vêm à tona os que reforçam a personalidade destemida. Com a fala firme, segue orgulhosa a contar: – Eu meti a cara e aprendi a ler e escrever depois de botar os meus filhos pra estudar. Nunca quis filho analfabeto. Um coronel me ensinou a juntar as letras. Um dia, chegou lá em casa e me disse: “Vou te ensinar uma coisa. Não fala pra ninguém.” Eu respondi: “Falo, não”. O uso peculiar da negação depois do verbo numa conversa, como na resposta ao militar, dá a pista. Nasceu Ana Mineiro Sá em Mineirolândia, hoje distrito de Pedra Branca, sertão cearense. No vilarejo, distante 260 quilômetros da capital Fortaleza, cresceu sob os cuidados do irmão mais velho. Perdeu a mãe na infância. O apelido Ciana viria mais tarde. A origem, Ciana desconhece. Medo, só tem um: – Peço a Deus para não ficar prostrada, dependendo dos outros. A minha felicidade, na idade que eu tô, é eu ainda poder cuidar de mim. Casou-se uma vez, com Vicente. Teve cinco filhos. Representou uma projeção da própria mãe, com a qual gostaria de ter convivido mais tempo. – Diziam: “Tenho inveja de você. Teus filhos andam todos com roupa bordada” – conta Ciana, ao recordar o capricho empregado pelas próprias mãos nas vestimentas dos herdeiros. Quando o marido morreu, há 33 anos, mudou-se para a casa do filho em Blumenau. Deixou o Ceará muito antes de a cidade natal chegar aos atuais 42 mil habitantes. Uma metrópole perto do que era, quando nasceu. Não demonstra ter saudade: – Aqui em Blumenau eu faço coisas que não podia fazer lá. Provavelmente, se refira ao tempo disponível para dedicar-se ao que chama de faxina. Um passatempo executado mais de uma vez por dia, na casa de repouso onde vive há 15 meses. Tira as roupas do armário individual, as dobra e guarda tudo novamente. No Ceará, a vida sempre foi dura. Carregou lata de água na cabeça e trabalhou em engenho de farinha. Fazia bolos e queijos para vender. Negou o modelo de união da época. Para Ciana, o papel da mulher estava longe de ser restrito às tarefas domésticas. – Eu gostei de um rapaz, primeiro. O Manoel me pediu em casamento. Mas, eu, casar com um homem para andar debaixo do braço dele? – indaga, convicta sobre a possibilidade de resposta ser única: não. Explicar por que Vicente a fez mudar de ideia é algo difícil. Quer seja pela idade avançada ou por tratar-se de uma daquelas inexplicáveis histórias de amor, silencia. Conserva no dedo anelar da mão direita a aliança de casamento. Talvez sejam lembranças desta história o motivo dos olhos umedecerem quando, orgulhosa do dom, canta sem desafinar: “Lua, manda tua luz prateada despertar a minha amada. Canto e por fim; nem a lua tem pena de mim; pois ao ver que quem te chama sou eu; entre a neblina se escondeu.” A quem dela se despede, Ciana deseja, como se resumisse em três palavras o que a conduziu a uma vida centenária: – Saúde. Força. Coragem.
foto Rafaela Martins, bd, 10/5/2011
Reportagem vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco
Daiane Costa
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Onde a luz nãO ilumina Pelo menos 30 casas em áreas urbanas de Blumenau padecem da falta de energia elétrica Cristian Weiss
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lucas amorelli, bd, 14/8/2013
ara eles, a TV empoeirada renunciou à vocação de animar. A sala de estar tornou-se sombria. O banho esfriou. A luminária da varanda rendeu-se à penumbra. E os dias tornaram-se mais breves. Tudo o que se podia esperar de uma vida de esforços era desfrutar o conforto ao final de cada jornada. Mas Seu Miranda, Laerte, Pedro, Genésio, a esposa Sandra e as cinco crianças estão excluídos sempre que o sol se põe. Em casebres de madeira ou de tijolos nus, moram onde a energia elétrica não chega, seja por faltar dinheiro para o poste particular ou por viver em área de risco. Habitam a zona urbana de Blumenau e como 130 mil famílias brasileiras veem a cidade se acender enquanto os lares são dominados pela escuridão. Eles têm água encanada e recebem correspondências. Gente que prefere a honestidade em abdicar o conforto à facilidade da ligação clandestina.
Jornal de Santa Catarina 45 anos
Chiara veiO à luz na eSCuridãO Se a vida começa ao renunciar à escuridão do ventre para enfrentar as luzes do mundo, Chiara quase contradiz a lei da natureza. Às 20h do dia 7 de dezembro de 2012, Sandra Marques, 37 anos, sentiu as contrações do parto se intensificarem. O marido, José Genésio Duarte, 44, responsável por trazer ao mundo pelas próprias mãos outros quatro filhos do casal, colocou colchão, almofada e cobertores na sala. Às 22h16min, nasceu Chiara, hoje com oito meses. Quando a menina chegou, a família estava nove meses sem eletricidade. A sala do parto foi iluminada por lâmpada de emergência a bateria e velas. O corte da luz ocorreu por atrasos no pagamento das faturas. O lar da família fica entre o Morro do Aipim e a Rua Pedro Krauss Senior, no Vorstadt. Na vizinhança, a casa abaixo foi atingida por deslizamento em 2008. Desde então, vizinhos têm dificuldades para religar a energia. Precisam do aval da Defesa Civil. Há dois meses, a família juntou R$ 800 e quitou a dívida com a Celesc. – Agora que a gente teve condições de pagar à
vista, eles não estão querendo liberar porque o poste está na área de risco. Fico triste, magoada. TV, banho quente, não temos – lamenta Sandra. Genésio é engenhoso. Fez um balanço no fundo de casa para os filhos e para o rottweiler que guarda a casa. Sandra sai às 6h30min para o CEI Pedro Krauss, onde trabalha, com as duas caçulas. Genésio se divide em dois empregos, mas acompanha os maiores até o Colégio Pedro II. Voltam para casa às 17h45min. Sandra acende a vela, esquenta água no fogão e dá banho nas crianças. O mais velho prepara o café no bule, pois a cafeteira, assim como o micro-ondas, a geladeira e as panelas elétricas, está aposentada. Genésio alimenta o gosto pela leitura e espalha pela casa revistas e livros. Gensan chegou a ocupar o topo da lista dos que mais emprestam livros da biblioteca da escola. Apesar das adversidades, a família segue unida a cada luz que se cintila. – Os outros têm eletricidade, nós temos um ao outro e damos um jeitinho – finaliza Genésio.
laerte vê a Cidade Se aCender Os olhos esmeralda de Laerte Loli, 47 anos, brilham com as luzes que se acendem no Vorstadt e na Ponta Aguda a cada anoitecer, enquanto, dentro de casa, o escuro toma conta. A morada 73 da Rua José Isidoro Correa, no Morro da Pedreira, ergueu com tijolos por R$ 3,2 mil. Morava um pouco abaixo há seis anos. Mas trocou a casa com o antigo dono de onde vive hoje, que lhe propôs a barganha após desentendimento com os vizinhos. Um trato pouco lucrativo, pois meses depois o ex-parceiro de negócios arrumou a rede e instalou luz na nova casa. Laerte permanece no escuro. Admite não ter se informado sobre o que precisa para ter energia. O lampião quebrado acima da porta é mera decoração. À noite, acende velas e prepara o chimarrão. As banquetas, uma cadeira de madeira, a cama de solteiro e mesas improvisadas se espremem no cômodo de 12 metros quadrados. No banheiro em construção, banho só de caneca e bacia. O fogão a gás aquece a água e cozinha o arroz, as verduras e a carne, comprados em porções, por faltar refrigeração. Laerte não tem emprego fixo, mas orgulha-se do legado. Chegou a Blumenau em 1986 e edificou um dos primeiros prédios da Ponta Aguda, a sede da
Caixa Econômica, o Viaduto da Via Expressa, reformou a Câmara de Vereadores e a rede de esgoto do Garcia. Os 15 anos de carteira assinada e a oitava série não lhe dão garantias e, assim, a depressão o persegue. Laerte sente falta do pai, que se foi há um ano e meio. Revisita fotografias, recorda do filho de oito anos doado a uma família italiana. Para superar a solidão, sintoniza o rádio a pilhas nas estações AM, FM e canais de TV. Fim da noite, deita-se, ouve mais um capítulo da novela e sonha com os desfechos da ficção. Em seus dramas reais, descobriu que sonhar é mais edificante que a ambição do conforto moderno. Com 20 anos, queria ser humorista, mas foi barrado pela timidez. Guarda duas passagens compradas por R$ 1,2 mil, em 2009. Em janeiro, voou de Navegantes a São Paulo. Em novembro, foi ao Rio de Janeiro. Nas duas viagens, teve dinheiro apenas para ir ao aeroporto e retornar de imediato. Nem sequer pisou o solo das metrópoles. – Queria voar de avião. Era um sonho. Se pudesse, queria ir para o estrangeiro, para Nova York. Mesmo sem a definição dos problemas, traça planos. Os olhos esmeralda brilham novamente: Laerte quer conquistar uma família.
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MAdrugAdA de terror no gArciA Temporal, apesar de breve, deixou 20 mortos nos bairros Progresso e Glória, além de feridos e desabrigados
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foto mario marques, bd, 14/10/1990
Jornal de Santa Catarina 45 anos
chuva torrencial que caiu na madrugada de domingo em Blumenau não durou mais do que 30 minutos, mas deixou um rastro de destruição e tristeza nos bairros Progresso e Glória, onde morreram 20 pessoas e muitas ficaram feridas, além de dezenas desabrigadas. O prefeito Victor Fernando Sasse decretou estado de calamidade pública e o governador eleito, Vilson Kleinübing, vai enviar relatório ao presidente Fernando Collor de Mello, quinta-feira, em Brasília. A violência das águas foi tanta que arrastou casas inteiras, um ônibus e um caminhão, dezenas de carros de passeio, além dos corpos das vítimas, muitos dos quais foram parar a centenas de metros. A Artex – uma das maiores indústrias brasileiras do setor têxtil de cama, mesa e banho – teve vários departamentos inundados e sua direção ainda não calculou os prejuízos. Além das ações de socorro às famílias, a prefeitura montou um posto de recolhimento de donativos no Salão Porta Aberta, nos fundos da Igreja Matriz. A previsão é de tempo nublado para hoje, com possibilidade de chuva, mas o perigo de enchente não está afastado, pois voltou a chover em todo o Vale, embora as barragens tenham grande capacidade de retenção, segundo informações da Defesa Civil, Por causa da tragédia do Garcia, o desfile da Oktoberfest foi cancelado, mas o restante da programação foi mantido.
Glória “Eu moro aqui há mais de 10 anos e nunca tinha visto uma coisa assim”. Estas eram as palavras de grande parte dos moradores das ruas Brusque e Belo Horizonte no bairro da Glória, ontem pela manhã, quando conferiam os estragos nas casas e nas calçadas, causados pela breve mas forte chuva que caiu naquela madrugada. Por toda a rua da Glória, que dá acesso à rua Brusque, as opiniões eram as mesmas. As pessoas que se encontravam no local não conseguiam acreditar no que viam, principalmente aqueles que, se não perderam tudo, seguramente perderam mais de 70% de seus pertences. A presença do Corpo de Bombeiros – que teve o auxílio dos bombeiros treinados de diversas empresas de Blumenau como Hering e Artex – de escoteiros, bandeirantes e todas as demais equipes de salvamento, além das máquinas para a retirada do barro e dos entulhos, não eram suficientes para regularizar a situação de total calamidade. No alto da rua Brusque um bloco de terra caiu sobre uma casa onde estavam toda uma família – pai, mãe, um casal de gêmeos de 17 anos e mais uma filha. Quatro integrantes conseguiram escapar com vida dos escombros, mas a gêmea Salvelina Müller, que faria 18 anos em dezembro, não conseguiu escapar. Com o auxílio de duas escavadeiras, a equipe de salvamento tentava encontrar o corpo da jovem sob os escombros e sob as águas.
Já era noite quando Ingrid Budag, a Miss Brasil 1975, foi recepcionada com euforia em Blumenau
No bairro Progresso, os maiores estragos e tragédias causados pela chuva da madrugada passada se registraram na rua São Boaventura, segmento da rua Rui Barbosa, na parte de trás do morro Hadlich. Até o final da manhã de ontem, já haviam sido resgatados, das ruínas, cinco corpos, sendo quatro de uma mesma família. No entanto, durante todo o dia, muitos ainda não haviam sido encontrados e o Corpo de Bombeiros não sabia se eles haviam sido levados pela correnteza forte do ribeirão Garcia, ou se haviam ficado sob os escombros. Sueli Aparecida de Jesus, residente à rua Napolina, morreu ao retornar à casa onde morava e achava que sua filha de pouco mais de um ano havia ficado trancada. A criança, no entanto, já tinha sido recolhida por vizinhos, com vida. O esposo de Sueli Aparecida e os outros dois filhos menores do casal conseguiram sobreviver. Na rua São Boaventura, no alto do morro, de oito pessoas que moravam numa mesma casa, quatro – Marlise Peres, o esposo Nelson da Veiga e mais os dois filhos menores de dois anos do casal foram levados pelas águas. Embora o Corpo de Bombeiros, apoiado por diversos populares, tenha passado boa parte do dia limpando o terreno onde estavam os escombros da casa, muitos acreditavam que os corpos, a exemplo dos demais, haviam descido pelo ribeirão. Em completo estado de choque, os moradores do bairro Progresso, principalmente das ruas mais atingidas, tentavam, ainda, recuperar um pouco dos seus pertences bem como se empenhavam em tirar a água e o barro que ficou nas casas e nas calçadas, assim que a chuva parou, ainda de madrugada.
foto marcio damasio, bd,14/10/1990
ProGresso
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Go A primeirA 2000
Foto Gilmar de Souza, BD, 5/2000
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Fiu Saldanha
os 44 anos, Nauri Miranda morre de saudade da infância, quando caçava borboletas para sobreviver. Nas andanças à procura de espécies como a Azul Gigante ou a 88, ele se tornou um dos maiores conhecedores da região do Alto Rio Azul, em Rio do Campo, onde mora até hoje. É justamente lá, na Serra do Morro Alto, divisa com Papanduva, que se encontram duas nascentes do rio Itajaí-Açu. A natureza, mãe zelosa, a exemplo do que faz com a terceira nascente, em Alfredo Wagner, esconde as fontes com a mesma maestria com que as transforma na maior bacia hidrográfica de Santa Catarina, com uma área de 15 mil quilômetros quadrados envolvendo 47 municípios. A dificuldade para chegar em cada uma das fontes, porém, é recompensada pela paisagem exuberante e pelo mais saboroso dos goles d’água que um ser humano pode imaginar. A localidade onde se escondem as duas nascentes é povoada também por histórias antigas, quase lendas. Algumas Miranda aprendeu com a mãe, Lídia Tool, 76 anos. Hoje viúva, ela e o marido foram os desbravadores da região. Orgulhoso, Miranda conta que os pais chegaram de Ituporanga carregando tudo o que tinham em um carro de boi. Até encontrarem o local ideal para viver, eles passaram meses em acampamentos solitários, encontrando abrigo em barracas improvisadas e comida na caça abundante da época. Cada palmo caminhado era aberto pela lâmina do facão.
Lendas Das histórias que mais gosta de contar, Miranda prefere duas. Uma é sobre um boi chamado Encaroçado. O animal, segundo o caçador de borboletas, fugiu ainda bezerro para o mato, e se criou sozinho. Já adulto, o bicho era tão bravo que ninguém conseguia prendê-lo. Depois de várias tocaias frustadas e perseguidores feridos, Encaroçado só teria sido
morto por acaso, após cruzar com um grupo de caçadores. Em outra história, Miranda parece querer ter um pouco das características do protagonista. Segundo ele, um dos mais famosos caçadores da região ganhou o apelido de Manoel Facão, depois de matar o que eles chamam de leão (na verdade um puma). Diz a lenda que Manoel encontrou o animal numa noite clara, há muito e muito tempo. Sem arma de fogo, o caçador teria matado o puma a golpes de facão. Criado na roça, Miranda vê com ironia o fato de as únicas estradas existentes na Serra do Morro Alto terem sido abertas para retirada de madeira, atividade responsável em grande parte pelo assoreamento dos rios. Uma delas, inclusive, por muito pouco não enterra a mais pitoresca das três fontes que formam o rio Itajaí-Açu, que, em Papanduva, nasce com o sugestivo nome de rio Bonito. No alto da serra, da ponta de um estalactite, a nascente brota em gotas.
sede O caçador de borboletas aprendeu que a retirada desordenada de árvores prejudica todo o meio ambiente, mas não consegue entender como o velho Itajaí-Açu, daquele tamanho todo, pode nascer uma gota de cada vez. Poucos metros abaixo, já em Rio do Campo, Miranda mata a sede da mesma forma que fazia quando adolescente. Enche as mãos em concha e traz à boca um pouco d’água que acabou de brotar da rocha e passou a se chamar ribeirão Verde, a segunda nascente do Itajaí-Açu. Apesar da proximidade das duas nascentes, ambas a mais de 700 metros de altura, elas seguem caminhos distintos até se reencontrarem. O rio Bonito logo passa a se chamar rio Azul, após misturar-se com outras águas. Quando se encontra com o ribeirão Verde, o que antes eram apenas duas nascentes se transforma no rio Itajaí do Oeste.
esperança
terceira nascente, localizada em Alfredo Wagner e tão escondida e cercada de encantos como as outras duas. Ali mora outro caçador. Não de borboletas, mas de esperanças. Apesar das dificuldades em que vive, Volnei Schaeffer, 22, quer continuar a tradição camponesa da família, porém teme que a vida dos colonos fique ainda pior. – A cada ano trabalhamos ainda mais na roça, em troca de um rendimento cada vez menor – lamenta. Para aumentar os ganhos, a família Schaeffer comprou pouco mais de 100 hectares de terra ao pé da Serra do Campo dos Padres, interior do município, para criar gado. A necessidade de água para os animais fez o patriarca da família, Sebon Schaeffer, escolher uma propriedade cortada por um ribeirão. Volnei ficou surpreso ao saber ser herdeiro da fazenda que abriga uma das nascentes do rio Itajaí-Açu. A propriedade fica na localidade de Campo dos Padres, 30 quilômetros afastada da região onde mora a família Schaeffer. O caminho só pode ser vencido a pé ou por veículos com tração nas quatro rodas. A chegada justifica o esforço. O cenário parece ter sido esculpido à mão antes de ser escondido da degradação humana. A região é cercada por uma formação montanhosa, com um cânion tao fundo que não se vê o chão. Nas bordas do paredão de pedra, duas araucárias desafiam a lei da gravidade. As árvores conseguiram crescer verticalmente, de cabeça para baixo, com as raízes encravadas na rocha. A água que brota da terra, descendo a serra, passa a se chamar rio Lageado. Mas à frente, a nascente já se chama rio Santo Anjo, para, em seguida, se tornar rio Caeté. No Centro de Alfredo Wagner, o encontro do Caeté com os rios Adaga e Aguas Frias dá origem ao rio Itajaí do Sul. O rio Itajaí do Oeste, nascido em Rio do Campo, se une ao Itajaí do Sul, de Alfredo Wagner. O encontro se dá em Rio do Sul, onde nasce o Itajaí-Açu. Mais à frente, em Ibirama, o rio Itajaí do Norte, ou Hercílio, nascido em Papanduva, engorda a maior bacia hidrográfica do Estado. Mas isso já é outra história.
otA Na outra ponta da história, e do Estado, está a
Da água cristalina que surge da terra em três nascentes até o encontro com o mar, a maior bacia hidrográfica do Estado percorre centenas de quilômetros colecionando histórias de pessoas anônimas. E como em toda boa história, tudo começa em lugares encantados
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Pela Ponte do Salto
1982
foto banco de dados, 5/1/1982
22/1/1982
de ProPóSito Luiz Antônio Soares
Essa rapaziada da área cultural é gozada. Quando do incidente com o paisagista Burle Marx, foi aquele quiproquó dos diabos. Resmungaram, excomungaram, entisicaram, espernearam, gastaram, enfim, todo o arsenal disponível para malhar a nossa arquitetura neogermânica, classificação com que alguém houve por bem de “homenagear” o estilo adotado para os enxaiméis locais em versão moderna. O barulho, nos botecos, nos jornais e nas esquinas era – e é ainda – ornado com os brasões da preservação histórica e cultural do nosso abençoado município, cujas tradições estariam sendo profanadas pelo “mau gosto”. Quem visse a coisa de fora até poderia imaginar que os enfurecidos senhores, ocupantes sagrados dos nossos canteirinhos, adonados do precioso espaço que lhes era ofertado pela turma que quer ver o circo pegar fogo, compunham em uníssono o relevante protesto na sincera defesa do nosso patrimônio histórico. Bem no fim até eu me convenci de que essa gente, apesar de seus costumeiros pecadilhos, teria o grande mérito de guardar, como se fora um pelotão avançado de sentinelas vigilantes, a respeitável e ainda não bem contada história desta antiga colônia. Aí – veja-se como são as coisas –, aí a Ponte do Salto, como este repórter exauriu-se de prevenir, foi pro saco. E foi porque tinha que ir mesmo. Só cego não via que uma estrutura daquele tamanho, jogada, às traças, enjeitada por Suas Excelências de lá e de cá, acabaria derrubada pelo tempo. De propósito não fiz sobre o desastre a menor alusão. Vamos ver – pensei comigo – o que fazem agora as nossas sentinelas culturais. Afinal de contas, a Ponte do Salto é (ou era) um monumento histórico da nossa terra. Trata-se de uma obra de arte da qual se orgulharia qualquer cidade do mundo. Preservar, nem só pela sua utilidade como também pela sua atração, o seu estilo, seria – pensei mais uma vez comigo – um dever rotineiro da comunidade. Nenhuma alma caridosa levantou-se em defesa da falecida. A prefeitura já anunciou que vai construir outra ponte e aproveitar as ferragens para fazer pontilhões (no melhor estilo eleitoreiro) ao largo das nossas periferias. Ninguém resmungou, ninguém blasfemou, ninguém entisicou. Por que não mandam perguntar ao Sr. Burle Marx, já que a opinião dele foi tão endeusada, o que ele pensa de uma comunidade cultural que não faz o mínimo protesto contra o extermínio puro e simples de um patrimônio como a Ponte do Salto?
Jornal de Santa Catarina 45 anos
E t e m I p S
A estrutura despencou dia 5 de janeiro de 1982
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R p lê co ri
Em 1982 o colunista Luiz Antônio Soares comprovou a força do jornalismo para transformar a realidade da comunidade. Depois da queda da Ponte do Salto, em Blumenau, em janeiro daquele ano, Soares se posicionou firmemente contra a intenção do governo municipal da época, que pretendia reconstruir a estrutura ignorando a arquitetura original. Insistiu que a primeira ponte construída sobre o Itajaí-Açu precisava ser vista como patrimônio histórico e moveu uma ação pública para garantir a preservação dela. Selecionamos quatro colunas que abordaram o tema: 24 e 25/1/1982
tiquinho de nada Luiz Antônio Soares
Meu caro governador, Estava pensando cá c’os meus botões: o dr. Jorge (Bornhausen) larga o governo daqui a pouco e eu, como cidadão, acabo sem lhe fazer um só pedido. Então veio-me a ideia de, aproveitando o ensejo, encaminhar a minha respeitosa reivindicação. Não é, em verdade, um pedido adornado daquela chatice que o sr. deve receber aí por atacado: privilégios pra familhada, uma boquinha no governo, transferência d’alguém pr’uma melhor, carro por conta, nada disso. Vossa Excelência bem sabe que eu não sou dessas coisas. O meu pedido, governador, é um tiquinho de nada. Basta uma canetada sua e fica tudo resolvido. É o seguinte: a Ponte do Salto saltou de banda e foi pras cucuias depois que um tijoleiro andou passando das medidas. Aliás, como o telhado da ponte, de saudosa memória, sucumbira há muito e bom tempo, a gente só tinha mesmo é que esperar pelo pior. Sabe, governador, a Ponte do Salto, assim como Vossa Excelência e eu entendemos, está inserida naquilo que as pessoas de bom senso qualificam como um patrimônio histórico. Originalmente, aliás, trata-se de uma ponte muito atrativa. Eu até a imagino, para o futuro, toda florida, arborizada em suas cabeceiras e com áreas de acesso pelas suas laterais às margens do rio, pois o Itajaí-Açu, naquele trecho, caprichou em beleza. Se depender de Blumenau (conheço as flores do meu jardim), eu não tenho dúvida, a ponte vai pro beleléu. E aí, babau. Com o Vapor Blumenau foi assim: deixaram o bicho apodrecer nas barrancas do rio e depois que ele estava bem podre, mas bem podre mesmo, construíram dois pedestais de concreto na prainha e largaram o coitado em cima. É a nossa vergonha. Já a“macuca”, nossa velha e poética locomotiva, foi salva pela restauração. Levei um susto quando a vi pintada verde.Afinal, ela sempre foi preta. Mas, governador, com o gosto dessa gente não convém discutir porque pra chamar a gente de burro eles não contam até três. Eu os conheço. E justo porque os conheço é que resolvi depositar na mãos de Vossa Excelência a minha esperança. Salve a ponte do Salto, governador. Trata-se de um patrimônio pelo qual os países civilizados dariam uma fortuna. E daqui a 10 anos – se persistirem no intento de exterminá-la – não faltará quem venha às ruas para dizer que justamente no seu governo é que se cometeu esse crime. Não vou argumentar mais porque sei que o seu tempo é escasso. Reforço apenas o meu pedido com o argumento de que a decisão pode até resultar em bom investimento político. Como Vossa Excelência sabe, se não houver um empurrão muito forte aí de cima, a coisa aqui vai ficar ruim barbaridade. Tanto é que esse pedido deveria estar sendo feito por eles e não por mim... Sou grato pela atenção.
27/1/1982
do Pedido Luiz Antônio Soares
Sobre o comentário aqui inserido no último domingo, quando este repórter tomou a liberdade de dirigir um apelo ao governador Jorge Konder Bornhausen tentando salvar como patrimônio histórico a nossa velha e combalida Ponte do Salto, tenho recebido inúmeras consultas, algumas na base do deboche: – Como é, o governador já respondeu?... Pipocas! Primeiro que o governo não fica no dever de responder-me coisa alguma porque não pedi ao governador uma resposta, mas sim uma decisão, ou melhor, uma “canetada” para o “Dão”, que é o secretário dos Transportes e é a quem compete materializar o meu desejo se, naturalmente, for acatado o meu pedido. Segundo que, mesmo que Sua Excelência o Sr. governador houvesse por bem de mandar-me um ofício, negando-me o pedido, eu engoliria em seco mas compreenderia. Sabem por quê? Porque cheguei à conclusão de que essa ponte só foi alçada à condição de patrimônio histórico porque eu, na minha santa burrice, resolvi promovê-la a tais patamares. Tanto é verdade que os nossos deputados, os nossos vereadores, os nossos administradores, os nossos escritores, senadores, poetas, pintores, arteiros, as nossas abençoadas e sempre badaladas “entidades representativas”, essa gente toda está aí, caladinha, omissa, inerte diante da iminente destruição da ponte. Neste verão, portanto, sou uma andorinha só. De maneira que meu fio de esperança fica mesmo pendurado na crença de que o governador Jorge Bornhausen se deixe levar pelo meu papo. Ora, patrimônio histórico! E o que é meu Deus, o que é que uma pontesinha à toa teria a ver com as tradições de um povo? Só mesmo pra minha cara... Em tempo: Apesar de tudo, sou pela ponte de pé. Continuo pedindo.
Conteúdo foi vencedor do Prêmio Esso Regional Sul em 1982
7 e 8/2/1982
quem vê Cara... Luiz Antônio Soares
Circunstante sempre inspirado, irreverente ao fazer suas avaliações a respeito da cena urbana, garantia que, estivessem aqui as pirâmides do Egito, não faltaria gente para apoiar a ideia de retalhá-las, transformando-as em paralelepípedos. Jura por todos os santos, além do mais, que a Torre de Pisa, em Blumenau, há muito tempo já teria ido “pro saco” porque aqui, segundo ele, haveria muito mais gente disposta a empurrar do que a segurar sua estrutura. Não é de duvidar. Nessa aventura a que o repórter se dispôs, incorporado na sua condição de ser cidadão antes de ser profissional de imprensa, houve margem para o recolhimento de subsídios muito interessantes sobre o comportamento de certos indivíduos, ditos e tidos no contexto da cidade como “gente culta”. Mas houve também, seria injusto não relevar, posicionamentos surpreendentes de gente simples do povo que, mesmo despojada dos chamados “dotes culturais”, demonstraram profunda sensibilidade para as intenções deste jornalista e até emociona-me lembrar, uma dessas pessoas, ao pedir licença para apertar-me a mão, revelava suas lembranças da juventude e infância, marcadas pela presença da inesquecível Ponte do Salto, não resistiu, chegando às lágrimas. Paradoxal o comportamento, se comparado ao de um conhecido líder classista que, do alto de seu diploma, fazendo escárnio, preferiu justificar seu comodismo e omissão com uma expressão que nem ele mesmo aprova: “aquela velharia precisa mesmo é vir abaixo”. Um dia, deixem passar tudo isso – e seja o que Deus quiser – um dia eu ainda vou contar algumas estórias, para evitar, no mínimo, que se venha a plantar estátuas no futuro para homenagear certo tipo de gente. Quem vê cara, não vê que horas são. 23 de setembro de 2016
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Aos 74 anos, a Casa Kieckbusch vai fechar. Para os blumenauenses, é o fim de um tempo romântico. Para os irmãos Klaus e Erica, o começo de um tempo para descansar, cuidar do lar, caminhar na praia...
DaS EnDE Jornal de Santa Catarina 45 anos
Giselle Zambiazzi
L
á fora, o tempo corre com a mesma velocidade dos carros apressados. Passando o umbral da Casa Kieckbusch, ele dá uma trégua. Mas, como a umidade que atravessa paredes e passa por debaixo da porta, deu um jeito de atingir a loja que, no dia 1º de julho, completou 74 anos. No pequeno cartaz colado na vitrine, a marca mais nociva das ações do tempo: a casa está fechando. Discreto, o aviso segue o mesmo estilo do secos e molhados e seus donos. Sem estardalhaço. Muito menos lamentações. Acabou-se. Pronto. Dia 30, a porta de caixilho arredondado e madeira escura vai fechar. E, no dia 1º, não vai mais abrir. Pelo menos não sob o nome de Casa Kieckbusch Ltda. Os irmãos Klaus e Erica Kieckbusch cansaram do balcão atrás do qual cresceram, casaram, aposentaram-se e envelheceram. Só ele tem filhos. Quatro. Todos escolheram outras profissões. Não tem mais ninguém para administrar a loja. – Mesmo que alguém quisesse comprar o ponto, não venderíamos. Tradição não enche barriga de ninguém. Essa disputa que tem aí fora, de um querer ser mais forte do que o outro, isso não é com a gente. Assim pensa Klaus. – A gente também não quer ver o sofrimento dos outros. É muito caro manter essas geladeiras ligadas. O lucro é cada vez menor para uma despesa cada vez maior. Antigamente os fregueses eram mais fiéis, davam mais valor. É muito difícil competir com os mercados grandes. Assim pensa Erica. Ambos sorriem. Atendem com a mesma atenção de sempre. Olham em volta. E dizem que não estão tristes. Antes, aliviados. De fato, é o que parece. Mas também dá a impressão de uma saudade antecipada, um nó na garganta que Klaus jura que é uma gripe forte: – Talvez nos primeiros meses a gente sinta falta do contato com os fregueses.
História Junto a tudo o que está dentro da loja, incluindo seus donos, a Kieckbusch preserva coisas não palpáveis mas muito importantes. Como a língua. Aqui ainda se compra e se vende em alemão. Do jeitinho como era quando Ernzt Kieckbusch, pai de Klaus e Erica, fundou a loja. E essa história vale a pena contar. O pai de Ernzt era um professor de Biologia ale-
mão. Muito doente, foi aconselhado pelo médico a mudar-se para os trópicos. Escolheu Blumenau. Ernzt tinha então quatro anos. Como o pai não podia trabalhar muito para sustentar a família, aos 14 o filho teve de ir à luta. Encontrou emprego na extinta loja de Tintas Hering. Pegou gosto pelo comércio. Em 1932 fundou a Casa Kieckbusch, em 1933 noivou, em 1934 casou e em 1935 nasceu Erica, a primeira filha. Tudo exatamente na mesma esquina da Alameda Rio Branco com a Rua XV de Novembro. A loja ficava no térreo do prédio em que a família Kieckbusch morava no primeiro andar e os cinco funcionários, no segundo. – Almoçávamos todos juntos. Aos sábados, eu e meus irmãos tínhamos que ajudar na loja arrumando as prateleiras, essas coisas. Durante a semana a gente só estudava e brincava – lembra Klaus.
Dia 30, a porta de caixilho arredondado e madeira escura vai fechar. E, no dia 1 , não vai mais abrir O
A responsabilidade veio aos 14 anos. Como qualquer empregado, os filhos tinham carteira assinada. – Claro! Senão a gente não poderia se aposentar – completa. Ernzt realmente tinha o olho no futuro.
Em alEmão Além de artigo de luxo, telefone era um aparelho complicado. Uma ligação chegava a demorar 10 minutos para ser completada. Mas não fazia muita diferença para a Casa Kieckbusch. – A gente ia no freguês, pegava a lista de compra e depois entregava de bicicleta. Os clientes estavam espalhados por toda a cidade, eram fixos e fiéis. Um desconhecido dificilmente tinha seu pedido entregue em casa. Especialmente na época da Segunda Guerra Mundial, considerada a mais crítica. Ninguém podia falar alemão, língua materna da família. Da cidade. Dos clientes.
– Minha mãe tinha acabado de ganhar neném. Chegou uma senhora no balcão que não sabia falar português. Foi só ela falar a primeira palavra. O policial que estava na porta, de ouvido em pé, levou a cliente para a cadeia na hora. Ficou lá um ou dois dias. Isso que era brasileira – lembra Erica. Não fosse a amizade da família com o então coronel, que era freguês da casa, teria sido muito pior. – Ele e a mulher sempre orientavam a gente de como devia ser. Foi um tempo muito difícil.
anos 1980 A década de 1980 foi, literalmente, um divisor de águas para a Casa Kieckbusch. Primeiro porque a loja ganhou sede nova, reformada, azulejada e com vitrine. E, logo em seguida, enfrentou as enchentes de 1983 e 1984, que inundaram a loja. Nessa época, a cadernetinha do fiado, os empregados e a bicicleta já haviam sido dispensados. Como o depósito fica no andar de cima, as perdas foram mínimas. Pelo menos as imediatas. Porque de lá para cá, foi a umidade do tempo que começou a se infiltrar. Os Kieckbusch nunca foram dados a investimentos em marketing ou publicidade. Nem caixa registradora a loja tem. O aparelho mais moderno é uma balança eletrônica, mas a de peso nunca deixou de ser usada. A qualidade e tradição dos produtos sempre foram o grande diferencial. Até o empresário Beto Carrero já foi cliente assíduo. Uma vez por ano ele fazia uma compra para mandar os artigos para a direção da Rede Globo, no Rio de Janeiro.
tEmpo Klaus tem 65 anos. Erica, 71. Ambos se sentem cansados. São quatro, cinco décadas de segunda a sexta das 7h às 19h. Aos sábados até o meio-dia. Sem férias. Apenas alguns dias esporádicos na praia. O que explica uma certa ansiedade para que chegue logo o dia 30. A aposentadoria vai garantir o de comer. Parte do estoque – que já não é muito – está sendo negociada com empresas que trabalham com artigos afins. O que não for vendido, será repartido na família. E a sala, posta para alugar. O tempo. Ele mais uma vez. Já faz tempo que os irmãos Kieckbusch vêm amadurecendo a ideia de fechar as portas do comércio. Os clientes protestam. Mas, além de se livrar do peso de um negócio que não traz mais lucros, tudo o que eles querem agora é ter tempo. Para arrumar suas casas, descansar, caminhar na praia. Para Erica e Klaus, dia 30, a última volta da chave na porta da Casa Kieckbusch vai encerrar um tempo. E começar outro.
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