SETEMBRO - NOVEMBRO · 2010 ASSOCIAÇÃO RENOVAR A MOURARIA WWW.RENOVARAMOURARIA.PT DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Maria das Flores 97 anos portuguesa vive na Mouraria desde o 3º aniversário da República
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Rosa Maria
Setembro - Novembro de 2010
destaque texto
Ana Luísa Rodrigues e Pedro Santa Rita
O almirante, o regicida, as manifs e a camioneta-fantasma
ANTÓNIO VENTURA, OS POSTAIS DA PRIMEIRA REPÚBLICA, EDIÇÕES TINTA DA CHINA, 2010
Com a aproximação do centenário do 5 de Outubro de 1910, o Rosa Maria quis saber qual o papel da Mouraria e das suas gentes no mapa republicano. E descobrimos que a história da República também se escreveu na Mouraria e arredores. De Almirante Reis a Manuel Buíça, passando por históricas organizações republicanas, importantes episódios aqui tiveram lugar. Páginas escritas a ferro e fogo, num tempo em que os costumes eram tudo menos brandos.
Um republicano “Bem Formoso”
A imagem ao serviço da política
José Joaquim dos Santos era proprietário de uma mercearia na Rua do Benformoso e, pelos vistos, um ferrenho republicano. No 1.º aniversário da Implantação da República, mandou reproduzir este bilhete-postal ilustrado com os principais acontecimentos do 5 de Outubro. Ao centro os três ícones republicanos: a Portuguesa, levando a bandeira verde rubra; o parlamento, sede do poder político democrático; e, encimando ambos, a esfera armilar e o escudo.
Além de servir como meio rápido de correspondência, o bilhete-postal servia de propaganda política. No livro “Os Postais da Primeira República”, onde se reproduz este postal, o historiador António Ventura explica: “Se nesses anos derradeiros da monarquia constitucional abundam postais com motivos políticos, o seu número aumentou exponencialmente durante a Primeira República.”
Bilhete-postal de um merceeiro? Era vulgar as casas comerciais dos mais diversos ramos editarem bilhetes-postais: para além das papelarias e tipografias, havia também farmácias, armazéns ou mercearias, contou ao Rosa Maria António Ventura. No local onde era a mercearia de José Joaquim dos Santos (Rua do Benformoso, n.º 94 a 102), funciona hoje a loja de artigos chineses Li & Li Vestuário.
Setembro - Novembro de 2010
1. A trágica história do Almirante Reis
chamava-se Avenida D. Amélia. Era uma zona limite da cidade, com poucos prédios e rodeada de hortas. Como as fotos de Joshua Benoliel mostram (a que vemos é de um comício de 1908), foi aqui que, por diversas ocasiões, se clamou contra a forma como estavam a ser conduzidos os destinos da nação. “Era o tempo da propaganda republicana, anti-monárquica e anti-clerical, onde oravam as mais conhecidas personalidades republicanas, como Bernardino Machado, António José de Almeida ou Afonso Costa”, recorda Fernando Rosas, em entrevista ao Rosa Maria. Segundo o historiador, estes comícios serviam para conquistar as massas e as classes populares: “Juntavam-se ali grandes multidões, que muitas vezes nem ouviam os oradores porque não havia sistema
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4. Mouraria, berço de organizações republicanas
Por volta de 1910, a Mouraria era maioritariamente constituída pelas classes trabalhadoras. E era em bairros populares como a Mouraria, Alfama ou Graça que o republicanismo popular mais crescia. A Mouraria foi morada de várias organizações republicanas. Desde logo, dois Centros Escolares Republicanos, que promoveram a instrução e prestaram assistência alimentar e cuidados de saúde aos carenciados. O Centro António José de Almeida foi o primeiro. Fundado em 1906, teve sede na Rua do Benformoso e na Travessa da Nazaré, n.º 21 (actual morada do Grupo Desportivo da Mouraria).
ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA/ ARQUIVO FOTOGRÁFICO
“Se me julgasse incapaz de assumir o comando das forças de Marinha e de as conduzir à vitória, dava um tiro na cabeça!” Estas palavras, ditas por um inflamado Cândido dos Reis aos dirigentes do Partido Republicano, revelaram-se premonitórias. O Almirante Reis tinha um papel destacado na conspiração republicana: foi ele quem decidiu – recusando qualquer adiamento – que a revolução começaria à uma hora da manhã de 4 de Outubro de 1910. À hora e dia combinados, Cândido dos Reis, liderando um grupo de oficiais, tinha como missão chegar a bordo dos navios de guerra fundeados no Tejo, através de um “certo” vapor de pesca. Mas tudo correu ao con-
Em cima — 16 de Outubro de 1910: cortejo funerário de Cândido dos Reis e de Miguel Bombarda, passando no Rossio Ao centro — Manuel Buiça À direita — Abril de 1908: Multidão acotovela-se e sobe a escadotes para assitir a um comício republicano na Av. D. Amélia (actual Av. Almirante Reis). Foto de Joshua Benoliel
trário: nem os vapores que encontraram no cais estavam a postos, nem as tripulações conheciam as operações militares e a senha revolucionária (“Mandou-me procurar? – Passe, cidadão!”). Também não se ouviram as 31 salvas de tiros dos barcos fundeados no Tejo – sinal do início da Revolução. O Almirante inquieta-se e desiste do embarque. Dirige-se aos Banhos de São Paulo – quartel-general dos revoltosos –, mas também aqui as informações eram escassas e contraditórias. Corria a notícia de que grande parte das unidades militares não tinha aderido ao golpe. Desesperado, aceita a boleia de um camarada, que o leva à casa da irmã na Estefânia. Mas conciliar o sono era impossível. E, pelas seis da manhã, é encontrado morto com uma bala na cabeça numa azinhaga em Arroios (actual Travessa das Freiras a Arroios). A sua morte precoce – por uma batalha que julgava perdida e que no dia seguinte resultou vitoriosa – tornou o Almirante Cândido dos Reis um dos heróis da República. Implantado o novo regime, o seu funeral tem honras de Estado (na foto). Também se torna um dos nomes mais comuns na toponímia nacional – poucas devem ser as localidades portuguesas que não tenham uma rua ou avenida Almirante Reis.
2. As multidões e os comícios sem altifalantes
E era exactamente na actual Avenida Almirante Reis, em Lisboa, que se realizavam os famosos comícios republicanos, anteriores ao 5 de Outubro de 1910. Na altura,
sonoro. Isto no tempo em que a capacidade de oratória era fundamental para a afirmação de um político.”
3. Buíça: regicida e morador na Mouraria
Outro acontecimento fundamental para a queda da Monarquia foi o regicídio em 1908. E era no número 4 das Escadinhas da Mouraria que vivia Manuel dos Reis Buíça, um dos regicidas. No dia 1 de Fevereiro, saiu de casa com uma carabina escondida num capote em direcção ao Terreiro do Paço. Objectivo: matar o rei e o seu sucessor. Buíça, nascido em Trás-os-Montes, era professor primário. Pertencia à Carbonária e à Associação do Registo Civil, organizações dinamizadoras do movimento republicano. Viúvo, vivia com a sogra e os dois filhos. Dias antes do regicídio lavrou um testamento pedindo que os filhos fossem educados nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. No livro O Regicídio, a historiadora Maria Alice Samara afirma que “Buíça, mais do que Costa, suscitou desde logo grande curiosidade. Surgiu como o homem que matara os Bragança. E mais do que isso: vestiu a pele de herói popular, de mártir pela causa da liberdade. (…) Para os monárquicos foi uma figura negra, a mão assassina que representava a desordem.” Esta curiosidade levou a que vários repórteres se deslocassem à Mouraria: queriam ver e fotografar Elvira e Manuel, os órfãos de Buíça. Entre os meios republicanos, houve uma subscrição que rapidamente assegurou casa e colégio para as crianças.
Pouco depois da implantação da República, em Abril de 1911, é inaugurado o Centro Almirante Reis. Mantém-se até hoje em actividade, na Rua do Benformoso. Na Mouraria esteve igualmente sedeada a Associação do Registo Civil. Com milhares de sócios, esta organização defendia o registo civil obrigatório, por oposição ao registo paroquial. Clamava pela separação entre Estado e Igrejas, e inspirou vários decretos dos governos republicanos. A Associação começou na Rua do Arco do Marquês de Alegrete, e teve a última sede no Largo do Intendente até 1937, ano em foi encerrada pela polícia política do Estado Novo.
5. Fuzilamento no Intendente
Também Machado dos Santos, um dos heróis do 5 de Outubro, tem a sua história ligada a esta zona. Foi no Intendente que conheceu a morte, em Outubro de 1921, assassinado na “Noite Sangrenta”, um dos mais violentos episódios da Primeira República. Na sequência de um golpe militar, grupos de marinheiros e civis radicais decidem fazer um “ajuste de contas”. Percorrem a cidade à procura de várias figuras republicanas, que são levadas à força naquela que ficou conhecida como a “camioneta fantasma”. Machado dos Santos foi um dos seus passageiros e vítimas. Como conta Fernando Rosas no livro Lisboa Revolucionária, foi às primeiras horas do dia 20 de Outubro de 1921 que «o herói da Rotunda» é “fuzilado no Largo do Intendente, quando a camioneta que o transporta pára com uma avaria”.
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Rosa Maria
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crónica CAMILLA WATSON
notícias
Leitura Furiosa
FORÇA, PORTUGAL Jacinto Lucas Pires escritor
Exposição no Quarteirão dos Lagares
A fotógrafa Camilla Watson foi convidada pela Câmara Municipal de Lisboa para registar os trabalhos arqueológicos que estão a ser realizados no Quarteirão dos Lagares. As imagens fazem parte de uma exposição inserida no Festival Todos e poderão ser vistas naquele mesmo espaço a partir de 16 de Setembro. Desde 1999 que o Quarteirão dos Lagares tem vindo a ser palco de várias campanhas e sondagens arqueológicas que permitiram pôr a descoberto algumas estruturas antigas. Todas as peças relevantes são limpas, lavadas, desenhadas, inventariadas e analisadas. Graças a elas, ficamos a saber mais sobre o quotidiano das pessoas que ali viveram. MJA/TD
MG DE SAINT VENANT
O Senhor Barros foi deixado com dez meses debaixo de uma parreira ali para os lados da Luz, e agora aqui está ele, com quase 18 anos ao contrário, a desbobinar a vida. A contar de uma tentativa de roubo de um tal Galinhas da Rua Farinhas ao palácio municipal de que ele, Barros, tinha passado a tomar conta em 1974. Imaginem: subia e punha-se assim, como que a coiso, como que a mais ou menos coisa, a andar de cavalo no muro. A andar de cavalo para burro à procura do melhor sítio para descer. Já morreu o Galinhas. O filho e o pai, logo a seguir. A Senhora Mafalda foi educada pelas freiras porque nunca conheceu a mãe. O pai já tomava conta do irmão e não dava para tudo. Fala de rezarem o terço às 6 da manhã, fala do frio, fala das Escolas Gerais e da Póvoa de Varzim, fala da família no Algarve e da avó aos gritos às 4 da noite. Fala de começar vida em Lisboa, mil trabalhos, vendas na rua. Criou filhos que foram todos para fora. Holanda, Irlanda e onde. E principalmente fala da neta. A neta de que cuida como uma filha, nas vezes da filha. Mostra a cara da menina numa imagem quadrada tipo-passe, duas imagens, duas caras que são uma menina de 10 anos a sorrir. É muito exigente, diz. E muito inteligente, tem tudo na cabeça. Uma vez perguntou-me de onde é que vinha a água. Pode o que quiser, basta querer. Se quiser, pode conseguir uma bolsa de estudo até. O Senhor João foi chamado e deu por si num navio da tropa em direcção a Macau. Apanharam o rabo de um tufão ali para os lados de Singapura, mar-céu, mar-céu, mar-céu e mais nada, mais nada a não ser uma dor de cabeça imensa, mas, mesmo assim, que dias. De qualquer modo, a dor de cabeça passou mal pisou terra firme em Hong-Kong. O tenente queria pô-los a fazer ginástica e ele deixava-se ficar no camarim a fazer um teatro de vómitos, a personagem clássica do enjoado. O amigo preto trazia-lhe bacalhau e bebida, e fechavam-se os dois, às vezes três, que havia outro boémio a bordo, a comer e a beber à grande, em pleno mar, que melhor ginástica, que belos dias. É polidor de metais o Senhor João, mas, quando voltou, voltou para a Feira Popular. 55 meses em Macau e 30 anos em Entrecampos. Não se preocupem, calo-me já. Carreguem no botão e calo-me já. Como aquele aparelho do Senhor Barros, mas ao contrário. Uma caixinha de plástico com um botão. Carrega-se e sai uma voz de mulher. Diz as horas, podia dizer qualquer coisa. Uma voz fresca que não parece gravada nem nada. Pois é, tal e qual. E como traduzir a leve tristeza daquele meio sorriso do Senhor Barros? Tem uma boina e uma varinha de condão. Há quem diga que está vestido à poeta. E traz uma camisola vermelha e verde que diz, a amarelo, “Força, Portugal”.
Aprender a arte de bem gerir
Texto gentilmente cedido pelo autor e pela direcção da Casa da Achada
Idealizada pela Casa da Achada, mas inspirada numa inciativa francesa que tem lugar em Amiens, a Leitura Furiosa é um acontecimento anual em que um pequeno grupo de gente “zangada” com a leitura convive durante um dia com vários escritores. À noite, os escritores escrevem um pequeno texto que oferecerão ao grupo. No dia seguinte, os textos são tornados públicos numa sessão de leitura conduzida por actores e não-actores. Posteriormente, todos os textos são ilustrados e editados em livro.
deverá estar concluída em Março de 2011, vai albergar também um supermercado e um restaurante. Segundo Rui Moreira, da Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL), o edifício terá seis pisos de estacionamento, um dos quais com condições especiais para moradores. No topo do edifício haverá um espaço de restauração e um miradouro. O rés-do-chão, com entrada junto ao Largo do Caldas, terá um supermercado de uma cadeia ainda não definida. A ligação entre o piso térreo e a entrada para o topo do prédio será feita através de dois elevadores panorâmicos (estacionados na Calçada Marquês de Tancos), com capacidade para 10 pessoas. Segundo afirmou à Agência Lusa António Júlio de Almeida, presidente da EMEL, os munícipes não pagarão para usar os elevadores, mas a empresa está “a pensar” cobrar passagem aos turistas. Fernando Nunes da Silva, vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa, explicou ao Rosa Maria que o percurso estará concluído até ao início do próximo verão e que esta será a primeira peça de um “complexo de apoio à modalidade pedonal”, no âmbito do qual estão em projecto mais três troços, nas zonas do Martim Moniz, Largo da Graça, Mouraria e Alfama. NF
Mercado do Chão do Loureiro vai ser parque de estacionamento O outrora único mercado ao serviço da população das freguesias da Mouraria – o Mercado Chão do Loureiro - vai transformar-se num parque de estacionamento. A estrutura, que
A Associação Conversas de Rua vai promover uma formação na área de Gestão de Projectos destinada a técnicos de desenvolvimento comunitário. O objectivo é proporcionar noções de gestão a responsáveis e dinamizadores de acções sociais pouco familiarizados com a arte de bem gerir. Esta acção de formação é co-financiada pelo programa europeu Leonardo Inovação - Aprendizagem ao Longo da Vida. A Conversas de Rua é uma Instituição Particular de Solidariedade Social que, dentro do seu quadro de intervenção, trabalha no reforço das capacidades das pessoas, associações e outras instituições que intervêm no desenvolvimento comunitário e na dinamização do bairro da Mouraria. Para mais informações, consulte o site http://www.prodev-project.eu, escreva para comfin@conversasderua.org ou ligue o 931 908 228. MJA
Setembro - Novembro de 2010
Sistema de videovigilância aprovado para a Baixa, Martim Moniz e Intendente A proposta de instalação de câmaras nas zonas da Baixa, Martim Moniz e Intendente foi aprovada na Câmara Municipal de Lisboa, com abstenções do PSD e do vereador Nunes da Silva, dos Cidadãos por Lisboa, e votos contra do PCP e do independente Sá Fernandes. A proposta seguirá agora para a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) emitir parecer. O projecto prevê a instalação de 50 câmaras espalhadas por 10 freguesias da Baixa, Restauradores, Martim Moniz, Intendente e na Rua Barros Queiroz (que une o Martim Moniz ao Teatro Dona Maria II). Manuel Brito, vereador com o pelouro da Protecção Civil, disse à Lusa que a proposta integra uma série de estudos e pareceres,
entre eles o da PSP e da Associação de Turismo de Lisboa, e um abaixo assinado dos comerciantes da Praça da Figueira. “Quer pelas estatísticas das autoridades policiais, quer pela própria percepção de insegurança das pessoas, torna-se necessário, do nosso ponto de vista, um sistema deste género”, afirmou o responsável. A CNPD rejeitou no ano passado a proposta da junta de freguesia de S. Nicolau para instalar um sistema de videovigilância na Baixa, considerando que não tinha ficado demonstrado que contribuiria para combater o sentimento de insegurança. MJA
Entre Agosto e Setembro, sempre ao pôr do sol, o cheiro a comida espalhava-se pelas ruas vizinhas da Mesquita Baitul Mukarram, na Calçada Agostinho Carvalho. Era a hora do Iftar, o quebra-jejum servido pelo Centro Islâmico do Bangladesh. Depois de se lavarem e de uma curta oração, os homens comiam em silêncio para a seguir rezarem outra vez. Este é o ritual do Magrib, uma das cinco orações diárias do Ramadão, celebrado no mundo inteiro e também na Mouraria. ALR
Crónica de bairro
O FIM DA PASTELARIA MAIS CONHECIDA DA MOURARIA Carlos Picado empregado de mesa
NM
A Primor era uma pastelaria de referência na Mouraria e arredores que serviu muitas gerações. Chegou a ter 18 empregados, pois houve tempos em que vendia para várias instituições, que gostavam da qualidade dos bolos e dos preços acessíveis. Conheci mais de 50 colegas que lá passaram bons e maus momentos. Como em tudo na vida, nada é fácil. Todos deram o melhor que podiam para bem servir os nossos estimados clientes, que adoravam a pastelaria. Éramos uma grande família, pois todos os dias nos víamos, falávamos dos vários temas da vida, sempre respeitando as ideias e opções de cada um. Em relação ao fim deste grande espaço, tudo começou com a falta de segurança que o prédio tinha nas bases e na estrutura. As paredes já faziam lomba. Quando subíamos as escadas tudo rangia e por vezes abriam-se rachaduras nas paredes. Em 2002 os técnicos da EPUL avaliaram as estruturas e viram que não tinham condições para suportar o prédio. Por isso chegaram a um acordo com a gerência e fomos indemnizados. A 31 de Setembro de 2004 fechou uma casa com quase um século de vida que foi o espaço de muitas pessoas que por lá passaram.
O n.º 101 da Rua dos Cavaleiros Nos anos trinta do século XX surgiu na Rua dos Cavaleiros n.º 101 a Confeitaria Primor. Foi ocupar o espaço de uma antiga loja de ferrador que servia os cavaleiros que, de passagem, demandavam ao Castelo de São Jorge. A Primor tornou-se a escolha principal dos moradores e frequentadores da Mouraria. A concentração de lojas de revenda chamava comerciantes de todo o país, que aí faziam as suas pausas, ao lado dos trabalhadores da fábrica de camisas Regojo e dos clientes da feira do Martim Moniz. Muito apreciadas eram as Cavacas de Lafões e a marmelada que, tal era a procura, chegou a necessitar de nove pessoas para a confeccionar. Mas o tempo foi implacável. Nos anos 90, o mau estado do edifício, cuja fachada traseira ameaçava abater, o surgimento das grandes superfícies, a alteração do comércio tradicional para lojistas vindos de outros países e a proliferação da revenda pelo país decretaram o ocaso da Primor. Carlos Picado, de 44 anos, foi empregado na Primor durante 20 anos. Ficou até ao fecho. Hoje trabalha num outro café do bairro, mas olha sempre com tristeza o prédio fechado do n.º 101, onde inexplicavelmente ainda funcionam duas lojas de artigos de importação. NF e CM
CAMILLA WATSON
O Ramadão na Mouraria
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Rosa Maria
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reportagem
texto RM fotografia Carlos Morganho
A política das grades
As vedações colocadas na Mouraria são remendos para situações de toxicodependência e mendicidade. Flagelos que se esperam resolvidos com o projecto QREN
“Era um centro de chuto de toxicodependentes a céu aberto. Chegavam a estar lá 10, 15 pessoas a injectarem-se e era normal ver limões e gotas de sangue no chão. Havia overdoses, corpos espalhados no chão, e volta e meia lá parava uma ambulância”. A descrição é de André (nome fictício), jurista, 34 anos, sobre o passado do Beco da Guia, na freguesia do Socorro, onde mora. Hoje quem lá passa dá de caras com um portão verde (na foto), cujas chaves podem ser requisitadas na junta em situações de emergência. “Acho muitíssimo bem, mora ali muita gente e era uma infelicidade assistirem todos os dias àquilo que acontecia”, declara Maria Correia, 89 anos, sobre o gradeamento colocado no mandato de Marcelino Figueiredo, anterior presidente da junta do Socorro. André, que concorda com a medida, “desde que transitória”, culpabiliza o município de Lisboa por a situação ter chegado àquele ponto: “Este sempre foi um bairro esquecido”. Para a presidente da Junta de Freguesia do Socorro, Maria João Correia (PS),
a toxicodependência é um “assunto difícil de resolver” e a solução, realça, não passa por uma acção directa junto dos toxicodependentes: “Não sei se os moradores gostariam de ver aqui um centro de toxicodependentes, porque eles não pertencem ao bairro”. E os responsáveis pelo negócio das drogas pesadas, localizado no mal afamado Largo do Terreirinho, serão eles habitantes do bairro? “Não sei”, responde a autarca. Segundo Maria João Correia, a toxicodependência será erradicada com a intervenção prevista para a Mouraria nos próximos três anos, estimada em 7 milhões de euros (com 3,5 milhões financiados pelo Quadro de Referência Estratégica Nacional). “Vão aparecer outras gentes, outras dinâmicas”, conclui.
Da gentrificação ao limbo dos sem-abrigo
Se as grades no Beco da Guia são um mal menor, as que se encontram sob o Centro Comercial da Mouraria revelam facilitismo, critica André. A circulação naquela passagem é “essencial para a vida da praça” Martim Moniz, defende. “Estas
Grades a interditar ruas está longe de ser uma situação isolada, explicou ao Rosa Maria Luís Fernandes, autor de vários estudos sobre a droga em contexto urbano. “Nas últimas duas décadas tem havido muito esta tendência”: não só a colocação de gradeamentos, mas também a demolição de bairros considerados problemáticos, como aconteceu no Porto ou em Barcelona. Medidas em resposta “ao aumento visível das situações de exclusão social”, explica. O professor da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto chama-lhe “fechamentos urbanos”. Para Luís Fernandes, “os poderes autárquicos tomarem estas atitudes revela impotência e prepotência. Impotência porque mostram que não conseguem resolver os problemas e prepotência porque a cidade é de todos, mesmo dos excluídos.” ALR
grades violam o princípio de liberdade de circulação, deve haver outras medidas para tirar os sem-abrigo daqui, como convidá-los para centros de abrigo”. Carla Maurício, agrónoma, 40 anos, conta que fez voluntariado durante cinco anos junto de sem-abrigo e que as grades são uma medida comum em toda a capital. “Quando íamos nas carrinhas de voluntariado para os locais onde os sem-abrigo costumavam estar, acontecia-nos frequentemente chegar lá e em vez de os encontrarmos estarem apenas grades”. A ex-voluntária, moradora do bairro, explica que as vedações são postas durante a noite por comerciantes ou moradores nas entradas de lojas ou garagens, ou mesmo pela autarquia em espaços públicos onde os mendigos procuram abrigo. “Se a solução é espalhar grades pela cidade? Claro que não, a solução seria resolver o problema dos sem-abrigo!”, exclama a moradora, reconhecendo que, no entanto, esta não é uma tarefa fácil. Não só “não há segurança nos centros de abrigo”, como são necessários programas de intervenção, geralmente muito demorados, para os retirar, progressivamente, da rua.
sabia que… Sabia que, ao percorrer o Bairro das Olarias, se caminha sobre chão que, desde o tempo de D. Afonso Henriques até ao final do século XV, foi um cemitério muçulmano e judaico? Após 1497, altura em que os judeus foram expulsos de Portugal, o rei D.
Manuel I doou os respectivos terrenos à Câmara de Lisboa. A grande maioria das pedras dos túmulos e lápides foram utilizadas na construção do Hospital de Todos os Santos, que acabou destruído no terramoto de 1755. Foram depois utilizadas para ajudar a pôr Lisboa novamente de pé e é provável que estejam agora a suportar empenas e janelas no Rossio e Praça da Figueira. Actualmente, no Beco dos Mortos, porventura antiga última morada da comunidade judaica medieval, uma cruz de Cristo ergue-se misteriosamente sobre o número 8. Os actuais proprietários ainda lá encontraram objectos religiosos. Ana Filipa Fernandes
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texto e fotografia Marie-line Darcy tradução Ana Barroso de Moura
28 S
urge precedido pelo seu tilintar tão característico. ‘Prazeres – 25’ lê-se no painel luminoso do eléctrico que entra na rua Forno do Tijolo. “Tem a certeza que é o 25? Eu vou para os Prazeres, mas normalmente apanho o 28!” A guarda-freio levanta os olhos para o céu. É pelo menos a quadragésima vez que lhe dizem o mesmo desde o início do percurso. “Mas não vê o que está escrito? Prazeres, Prazeres.. É para lá que vamos”. Perplexa, pergunto a mim própria o que terá acontecido às três décimas que faltam a este 28 transformado em 25, e penso na súbita estranheza provocada por esta mudança nada habitual. A manhã deste sábado radioso apenas começou. Por sorte os turistas ainda não acordaram, ainda há lugares vazios nos bancos. E, já agora, à janela! As janelas de guilhotina, que os noviços nunca conseguem abrir nem fechar. Mas no eléctrico é assim: tudo tem um ar familiar sem que nada seja como nos outros lugares. É sabido que o eléctrico, no verão, não é para as pessoas do bairro. Os turistas apropriam-se dele, como é da
eixo de ligação
praxe. Já para os habitués, o caso é um pouco mais complicado. Mas é tão agradável ver o rosto de uma senhora idosa iluminar-se quando um outro passageiro lhe cede o lugar. Os turistas, esses, olham para outro lado, é para isso que aqui estão. “Castle, castelo, château”, esfalfase subitamente a minha guarda-freio. Atropelos: saio aqui? Saímos aqui? A hesitação lê-se em todos os rostos. Enquanto dura a hesitação, a guarda-freio explica mais uma vez que “sim, é um 28 transformado em 25, mas o que conta é Prazeres. E que sim, que vai para os Prazeres, é o que está escrito, não é?”. Tento adivinhar o que vai no espírito deste turista sem fôlego, de tons carmesim, que chegou in extremis antes de ouvir o dling-dling da partida do eléctrico e que já não sabe muito bem que eléctrico escolher. Prazeres? Sentada no meu banco do 28-25 penso de novo naquela vez em que perguntei inocentemente a um guarda-freio se me levaria aos prazeres. Acenou com a cabeça, educadamente. Só depois corei: o meu português de estrangeira tinha-me traído. Prazeres é
um cemitério, uma última paragem. Que nome adequado! Verdejante, bem tratado, abriga um universo maravilhoso de poesia e esoterismo. Sepulturas fabulosas, estátuas delicadas, anjos e demónios, tentativas para contrariar o destino e para se amar até para além da morte. Ao transpor o portão do cemitério, feliz por estar deste lado dos vivos, vem-me à lembrança que estou no extremo oposto do Martim Moniz da Mouraria. Entre os dois bairros há colinas, aberturas sobre o Tejo, paragens bruscas e outras mais suaves, dling-dlings nervosos, outros somente iniciados, turistas latinos que falam alto, outros mascarados de camarões, mais nórdicos, esta senhora pequena e o seu cesto, um par de namorados, uma menina sorridente, estudantes do Bairro Alto e um grupo de miúdos agarrados ao parapeito. O 28 é a travessia do mundo, de todos os mundos. Entre a Mouraria e Campo de Ourique, dois bairros tão diferentes, o verdadeiro prazer consiste em ir ao cemitério e de lá voltar!
mouraria, rua a rua
Do “Boy Formoso” à carne halal Quando se chega ao Benformoso temos a sensação de estar a entrar na azáfama dum mercado, bazar ou souk. O movimento das constantes entradas e saídas e do permanente jogo da compra e venda é uma marca desta rua de todos os tempos. Já se chamou Rua de Benfica à Mouraria, com as suas quintas e hortas (almuínhas), que às portas da cidade, alimentavam de
verduras o estômago dos lisboetas. Diz a tradição ter existido aqui um boi. Como o bovino era uma verdadeira estampa, a fama correu a capital do reino segundo a tradição, “Benformoso” é uma corruptela do primitivo “Boy Formoso”. Até 1862, ano da abertura da Rua Nova da Palma, a entrada e saída natural de Lisboa para norte passava por aqui. O caminho continuava pelo Intendente, rua dos Anjos e rua de Arroios. Hortelões, moleiros, lavadeiras e leiteiros montados em burros ou carros de bois, atravessa-
vam o buliçoso Benformoso e abasteciam os mercados da capital. No Benformoso também existem prédios com memória: como o número 101103, construído no século XVII, com os seus dois andares de ressalto, as típicas gelosias e varandas de grades com reixas, estas a lembrar o nosso passado árabe. Um edifício classificado Imóvel de Interesse Municipal. Por aqui também passou até 1795 a procissão do “Senhor dos Passos” uma das mais antigas de Lisboa. Atravessava
o Benformoso, e subia a Rua do Terreirinho em direcção à Graça - hoje já não encontramos o famoso “passo do Benformoso”, devorado pelo tempo. Nos tempos que correm, a vetusta rua continua a fervilhar de comércio. Os saloios já não vêm de carroça ou montando animais e os arrabaldes são a dezenas de milhares de quilómetros. A “porta” abriu-se ao mundo e aqui chega-se de avião. A rua é agora um mosaico de culturas onde o “Boy formoso” pode ser servido como carne halal. Pedro Santa Rita
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Rosa Maria
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está bem! MARIA ESTELA GONÇALVES
editorial oferecido
PERDIDO DE AMORES Tiago Torres da Silva escritor e letrista
A Mouraria fica a escassos metros da casa onde vivo; na encosta em frente mas sempre e desde sempre dentro de mim. Aliás, a Mouraria é um dos segredos mais bem guardados que me foi contado. Um mistério eternamente por resolver. Se, desde cedo, se revelou em mim como lugar poético, letra de fado castiço, miragem de guitarristas e cantadeiras, também foi um lugar de medos e convulsões, de sustos grandes nas escassas visitas que lhe fui fazendo na adolescência. Depois, comecei a conhecer melhor a Mouraria. A ver a sua gente, as suas gentes. E descobri que o que parecia passado era, afinal, um presente vigoroso e que era necessário actualizá-lo. Foi, por isso, com muita alegria que recebi a notícia da edição do Rosa Maria. Há que dar passos, por pequenos que sejam, para fazer que o passado regresse à Mouraria, mas que já não regresse sob a forma de passado, mas como um futuro que se quer abrir, que se deve abrir e que, na realidade, já se está a abrir. Parece-me que há uma qualquer coisa no ar que prenuncia um novo vigor neste bairro de tantos amores. Talvez tenha sido por isso que, no último disco da fadista Joana Amendoeira escrevi um fado, chamado precisamente “Fado Rosa Maria” em que presto homenagem a todas as Rosas Marias que existem pelas ruas sombrias, pelas vielas íngremes deste bairro popular - “Ela cantou como se faz na Mouraria/ e eu guardei a minha voz dentro de mim/ porque eu não sou e nem vou ser Rosa Maria/ e não sei se saberia cantar assim”. Folheio o primeiro número deste jornal. E pressinto que me estou a perder de amores pela Rosa Maria.
Seja bem-vindo. António Costa muda gabinete para o Intendente. Mudará a vida da gente? CARLOS MORGANHO
está mal!
Na esquina do Benformoso com o Terreirinho jaz um chafariz. Quando por lá passar, tape o nariz. cartas dos leitores Tendo chegado às minhas mãos por um puro (e feliz!) acaso o vosso jornal, não posso deixar de dar-vos os parabéns por este projecto! Enquanto apaixonada por Lisboa e, por isso mesmo, defensora da manutenção do espírito e das tradições dos diversos bairros históricos, penso que iniciativas como a vossa só dignificam a nossa cidade! Continuem o bom trabalho!
Rosa Maria, escrevo-te para te pedir que continues a mostrar-nos as ruas menos mediáticas da Mouraria, os restaurantes e as histórias que andam esquecidas. Como é que vão ser as tuas próximas edições? Vais divulgar a programação do bairro, com o que se passa, por exemplo, na Casa da Achada? Tens alguma receita antiga ou actual das cozinhas da Mouraria? Contamos contigo, Rosa Maria. Abraço da Graça,
Catarina Alves Martins João Pacheco
Li o vosso comentário no Jornal Rosa Maria [número 0], na página 8, acerca da vedação existente no C.C. Mouraria. Depois de estudado por nós e pela CML [Câmara Municipal de Lisboa], chegou-se à conclusão de que o local não fazia passagem dado o seu estado de degradação, funcionando apenas como casa de banho e dormitório de várias pessoas (nomeadamente toxicodependentes), pelo que poucas pessoas ousavam ali passar. Se houver uma alternativa melhor, para acabar com o estado em que
se encontrava o local , agradecia reconhecidamente que nos informassem qual. Informo ainda que recebi, tanto pessoalmente como por outras vias, elogios à decisão que tomei. No entanto, agradeço a vossa opinião contra, que, até ver, é a única de que tenho conhecimento. Manuel Luís Medeiros Presidente da Junta de Freguesia de Santa Justa [nota da redacção: sobre este assunto, ver reportagem na página 6]
FICHA TÉCNICA Direcção: Associação Renovar a Mouraria Direcção gráfica: Armanda Vilar Edição: Ana Luísa Rodrigues, Maria João Amorim e Oriana Alves Revisão de texto: Ana Castro e Nuno Morão Redacção: Adriana Freire, Ana Castro, Ana Filipa Fernandes, Ana Luísa Rodrigues, António Henriques, Carla Maurício, Inês Andrade, João Madeira, Marie-line Darcy, Maria João Amorim, Mourad Ghanem, Nuno Franco, Nuno Saraiva, Oriana Alves, Pedro Santa Rita e Sara Ludovico Colaboraram neste número: Ana Barroso de Moura, André Carrilho, Carlos Picado, Euprémio Scarpa, Jacinto Lucas Pires, Luís Vaz, Nuno Morão, Paulo Antunes, e Tiago Torres da Silva Fotografia: Adriana Freire, Brian Astbury, Camilla Watson, Carlos Morganho, Caroline Pimenta, Maria Estela Gonçalves, MG de Saint Venant Ilustração: Antònia Tinture, Hugo Henriques e Nuno Saraiva Agradecimentos: Arquivo Municipal de Lisboa / Arquivo Fotográfico, Eduarda Dionísio (Centro Mário Dionísio - Casa da Achada), João Pedro Ruela e Carmo Stichini LEM - Lisboa Encruzilhada de Mundos e IELT - Instituto dos Estudos de Literatura Tradicional Propriedade: Associação Renovar a Mouraria Redacção, Administração e Publicidade: Rua da Mouraria, nº 30, 5º, 1100-364 Lisboa, Telf: 21885203, Telm: 922191892, geral@renovaramouraria.pt Impressão: MIRANDELA - ARTES GRÁFICAS Distribuição: VASP/Associação Renovar a Mouraria Versão digital: www.renovaramouraria.pt Direcção comercial: Associação Renovar a Mouraria Fonte: Leitura gentilmente cedida por DSTYPE Depósito legal: 310085/10 Periodicidade: Trimestral Tiragem: 40000 exemplares Número um, Setembro de 2010 CAPA: Adriana Freire Reimpressão: 40000 exemplares
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notícias arm
Estamos à procura de voluntários para os vários projectos da Associação Renovar a Mouraria. Vem trabalhar connosco. Contacta-nos através do mail geral@renovaramouraria.pt
Basta aparecer – just turn up PAULO ANTUNES
Visitas guiadas para o mês de Outubro Encontro: às 10h, no Largo do Martim Moniz (junto à Capela) Preço: 7€ por adulto Duração: 1h30 Sábado/ 9 de Outubro “Os lugares da República na Mouraria” – Venha conhecer os lugares e as figuras da República na Mouraria. Sábado/ 16 de Outubro “Mouraria – Da sua origem à actualidade multicultural e bairrista – 900 anos de História” – Percurso pela freguesia do Socorro.
As visitas guiadas à Mouraria são um dos vários projectos dinamizados pela Associação Renovar a Mouraria (ARM) e pretendem dar a conhecer um dos bairros mais tradicionais e multiculturais de Lisboa. Mas também promover a mobilidade, o convívio entre gerações, a aproximação entre residentes e forasteiros, numa experiência de enriquecimento pessoal. Durante as visitas, é contada parte de uma História com nove séculos, recorrendo ao próprio território do bairro e aos seus episódios mais marcantes e personagens míticas e históricas, como a fundadora do Fado – Maria Severa – ou o “rei
do Fado sem coroa” – o celebrado Fernando Maurício, dois ilustres moradores da Rua do Capelão. A Mouraria é, igualmente, detentora de um importantíssimo património edificado, desconhecido por muitos, como o antigo mosteiro de Santo Antão, hoje designado por Coleginho, que foi o primeiro colégio Jesuíta do mundo. Guiados por residentes, os participantes entram facilmente na intimidade de um bairro cheio de tesouros. Sem reservas. Basta aparecer. PA Walking Tours – No need to book – Just turn up
O número zero em Port-au-Prince, no Haiti
Sábado/ 30 de Outubro “Entrar no labirinto” – A Mouraria descoberta pelas crianças, através de histórias e actividades. Na companhia da contadora de histórias Vera Sales. Para famílias com crianças entre os 6 e os 12 anos. Acompanhe o calendário actualizado das visitas no site e blogue da ARM ou através do telefone 922 191 892.
O beijo que ficou por dar, a crise que vai no país, as tricas do facebook, a luz de Setembro incendiando o jardim: tudo pode ser tema para um fado, e quem sabe arrebatar o troféu Maria Severa. Organizado pela Associação Renovar a Mouraria, o concurso Há Fado na Mouraria – Prémio Maria Severa, dirige-se a fadistas amadores maiores de 16 anos e tem como condição a inscrição pelos concorrentes de pelo menos uma letra inédita. Mas não faltarão poemas a quem não os tiver – a organização criou um Banco de Letras Inéditas que conta com mais de cem poemas
Oficinas portáteis pela Mouraria MARIA ESTELA GONÇALVES
EUPRÉMIO SCARPA
rosa maria, jornal do mundo
Sábado/ 24 de Outubro “Mouraria – Da sua origem à actualidade multicultural e bairrista – 900 anos de história” – Percurso pela freguesia de São Cristóvão e São Lourenço.
Não pergunte o que o fado pode fazer por si, mas o que pode fazer pelo fado
originais de 14 autores, como Tiago Torres da Silva, José Luís Gordo ou Daniel Gouveia. Além dos prémios pecuniários, os vencedores levarão para casa o garboso troféu Maria Severa, desenhado pelo ilustrador Nuno Saraiva e esculpido por mestres da Fundação Ricardo Espírito Santo. Atenção: as inscrições terminam a 30 de Setembro. Os concorrentes préseleccionados prestarão provas em Novembro e 12 deles irão à Grande Final a 1 de Dezembro, no Teatro Trindade, em Lisboa. Saiba como concorrer em http:// hafadonamouraria. wordpress.com e venha daí, dar novos fados ao fado. OA
Vila Almeida, 25 de Agosto de 2010: um pátio, uma mesa e à volta dela portugueses, italianos, indianos, romenos e brasileiros de todas as idades, de todas as crenças, de todas as cores - pedaço de mundo implantado na Mouraria... Uma tarde de partilha e alegria, aprendendo a fazer “o que presta a partir do que não presta” (pacotes de leite, tecidos, transformados em carteiras, portachaves, colares, etc.). Os mais crescidos a ajudar os mais pequenos sob o olhar das mães, envolvidas também naquela confusão. Quão pouco é o suficiente para fazer crianças felizes! E no final desta “oficina portátil”: um lanche saboroso. ES
Rosa Maria
Os carris do 28 — No Largo do Terreirinho existia a Taberna do Ruivo, hoje está entregue ao filho, acho que se chama a Taberna do Poço, tem mesmo um poço lá dentro. Ao lado há o cabeleireiro da Florinda, que antigamente era o
Zalala — Passava a maior parte do tempo a trabalhar no restaurante dos meus pais, brincar não era uma coisa muito comum. Era eu que fazia a correria entre mercearias quando a minha mãe precisava de coisas para o restaurante. Começou como uma taberna, hoje já não existe. Foi lá que tive o meu primeiro contacto com o fado, comecei a ouvir e a gostar e a achar que o ambiente era giro. Passaram por lá muitos fadistas amadores, quem quisesse cantar, cantava. O Maurício e o Batalha iam lá muitas vezes. Era importante existirem hoje sítios como aquele, no bairro onde dizem que nasceu o fado. Tinha cinco anos quando comecei a cantar, umas senhoras que lá iam jantar achavam-me piada e ofereceram-me um xaile pequenino.Chamavamme “o passarinho”. Já era um xaile preto, não era branco nem cor-de-rosa. Era de uma grande responsabilidade.
A primária — Chorei baba e ranho quando cheguei à escola primária. Quando fui já sabia ler, para mim a escola era uma chatice. Hoje está fechada. Ficava no Palácio dos Távoras, na Travessa da Nazaré. A Dona Fernanda, contínua, que ainda mora ao lado da escola e que era conhecida de várias gerações, levava bolos para vender. Tenho muita pena que tenha fechado, era linda, tinha o recreio nos jardins e uns azulejos fantásticos em que não nos deixavam tocar.
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passeando com mariza
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A Casa da Maria Severa
Os amigos da ribalta — Não éramos muitos, do pequeno grupo de amigos fazia parte o Nuno, a Cristina e o Joaquim, que morava no prédio ao lado do meu. Tinha um desafio: cantava de cá de baixo lá para cima para ele me ouvir. Se ele me ouvisse estava tudo fantástico: eu era a melhor cantora do mundo. Havia também a Dona Judite, a minha vizinha da frente. Eu era louca pelos filmes do Fred Astaire que passavam ao Domingo, achava aquilo uma coisa genial. Colava caricas nos sapatos, dançava e cantava num inglês muito próprio, e só a simpatia da Dona Judite poderia aplaudir tal espectáculo.
Inês Andrade e Nuno Saraiva O Castelo — Adorávamos fazer pesquisas no Castelo. Armávamo-nos em detectives e íamos para o Castelo em busca de pegadas e animais mortos, tipo insectos. Trazíamos tudo para o bairro, eram os nossos achados, A rua os nossos tesouros. — Éramos um bocado Íamos às malucos. Aquilo nêsperas no depois dava quintal de um para trocar senhor que tinha por um pastor alemão cromos. muito mau e que acabava por levar com elas em cima. Roubar nêsperas era uma delícia. Hoje acho que seria incapaz de fazer tal coisa. O imaginário da Mouraria continua muito vivo na minha memória – não existe sítio igual para se brincar na rua. Cada rua era um esconderijo, conhecíamos aquilo como a palma da nossa mão. Era fantástico brincar às escondidas, corríamos o bairro inteiro. Apesar de ter perdido as regalias que tinha em África, foi fabuloso poder ter a oportunidade de brincar na rua e conhecer aquelas pessoas.
depoimento recolhido por
fotografia Caroline Pimenta e Brian Astbury
As fugas à noite para ouvir fado no Grupo Desportivo da Mouraria e uma dúzia de pares de ténis estragados, por obra das descidas em tábua ensebada pelos carris do 28 abaixo, valeram-lhe uns belos puxões de orelha.
Não tenho alma de andarilho
— Ficávamos banzados quando passávamos em frente da casa da Maria Severa. Ficávamos a olhar mas não fazíamos a mínima ideia de quem era.
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Grupo Desportivo da Mouraria — Fugia de casa para ir ouvir o fado. A minha mãe não gostava que saísse de casa à noite, e eu nem tinha idade para entrar no Desportivo, mas ficava a espreitar da rua. Ia espreitar as noites de fado, vi nomes fantásticos, como o Fernando Maurício, o chamado “rei da Mouraria”. Depois chegava a casa e levava uns belos puxões de orelha.
A Procissão — Quando se aproximava a data da Procissão da Nossa Senhora da Saúde, ficávamos horas a desfiar pétalas e pétalas de rosas para lançar à Santa quando ela passasse. Se existe algo que é extremamente importante, e também um símbolo do próprio bairro, é a Capela da Senhora da Saúde, da qual eu sou devota.
O mamarracho — Onde fica agora o mamarracho horroroso do Centro Comercial da Mouraria existia no meu tempo uma feira. Era muito gira, tinha um NOTA BIOGRÁFICA ar um bocado chineleiro, mas Nasce em Moçambique em 1973 e vem morar para a Mouraria com 4 anos. É no Desportivo que descobre o fascínio por a Mouraria não tem sandália Fernando Maurício, que a chamava de “ó miúda” e a quem ela tratava por “ó tio”. Volta e meia, nos seus discos e espectáculos, de ouro, por isso é que ela é faz o seu tributo à Mouraria. No seu álbum Transparente interpreta o original do tio “Quando me sinto só”, que lhe foi oferecido como é, linda, fantástica e pelo próprio. Ao contrário dos fadistas que deambulam na noite, Mariza não tem alma de andarilho, mas continua a achar a maravilhosa! Mouraria misteriosa e a gostar de a descobrir.
AML/AF
Pregões e vendedeiras — Lembro-me da Maria da Hortaliça e da Adelaide Peixeira quando chegavam ao Largo do Terreirinho e estendiam as mantas. Tudo isto trazia muita cor e alegria. Imaginem uma pessoa que chega ali, abre uma manta e sai repolho, sai tomate. Eu ficava fascinada a olhar para aquilo. Nós ficávamos sentados a olhar e a dizer: “Ela está a cantar, ela está a cantar”. Mesmo a apregoarem, aquilo soava a fado. Bastava aparecer alguém com uma viola e começava-se logo a cantar, toda a gente cantava. Depois, eu chegava a casa e também fazia de conta que vendia e tentava apregoar... Mas não chegava a lado nenhum...
talho do Sr. Onofre, que nos dava pedaços de sebo. O nosso passatempo preferido era arranjar umas tábuas e umas cordas, ensebar as tábuas e descer pelos carris do 28 abaixo. Aquilo ganhava uma grande velocidade, partíamos cabeças, partíamos tudo. Mais tarde, começámos a ir à Feira da Ladra comprar rolamentos, porque percebemos que isto com o pé não estava a dar, chegávamos a casa todos empenados e com os ténis estragados.
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DO
MUN
DO
ICAS
MÚS
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Rosa Maria
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CARLOS MORGANHO
mouraria, ontem e hoje
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O eléctrico continua a passar. Mas difícil, mesmo difícil, é encontrar no Martim Moniz uma imagem de arquivo semelhante à actualidade. Talvez por isso a Mouraria e seus edifícios inaugurem a célebre colecção Lisboa Desaparecida, da olisipógrafa Marina Tavares Dias.Originalmente, a Igreja do Socorro é de 1646, tendo sido reconstruída depois do terramoto de 1755. Aqui, o estaleiro montado para a demolir documenta uma das mais emblemáticas mudanças na Mouraria. Foi o primeiro edifício a ir abaixo, num conjunto de demolições decididas pelo Estado e pela Câmara Municipal de Lisboa, que se prolongaram pelos anos 50 do século XX. Todo o espaço aberto do actual Martim Moniz era ocupado por ruas e edifícios habitacionais, comerciais e culturais. Como memória ancestral, só a Capela da Senhora da Saúde se manteve de pé. Hoje, mais ou menos no local da Igreja do Socorro, está o Centro Comercial Martim Moniz, construído nos anos 90. As mudanças também ecoaram ao subsolo: se hoje a estação do metropolitano se chama Martim Moniz, durante décadas levou o nome de Socorro. ALR
1949/ /2010
Esta rubrica é feita em colaboração com o Arquivo Municipal de Lisboa/Arquivo Fotográfico. A sua colecção de 600 mil imagens mostra a evolução da cidade desde 1850. As fotografias podem ser consultadas gratuitamente na sede do Arquivo (Rua da Palma, nº246) ou na internet, através do endereço: http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt
texto Mourad Ghanem | desenho Hugo Henriques
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retratos do quotidiano texto Carla Maurício fotografia Adriana Freire
A família Amoedo Octávia sorri com a pergunta: “Se sou da Mouraria? Já a minha mãe nasceu nesta casa, sempre aqui morámos. O meu avô era galego, a minha avó minhota. O meu pai era cabo-verdiano, mas quem me criou foi aqui o meu padrinho”. O Sr. Pina, 90 anos, acaba de chegar, após assistir a uma tarde de fados. Iris, 6 anos, aproxima-se e a avó acrescenta: “Há quem pense que não é minha neta por ter cabelo loiro como o meu genro, que é ucraniano. O meu neto Paulo é mais moreno”. Octávia tem espírito alegre, ávido de liberdade. A mãe, D. Felicidade, trabalhou no antigo Tivoli.
Octávia cresceu a assistir aos filmes e concertos que lá passavam, alimentando o seu gosto pela arte. Tem dois filhos, Pedro e Elsa, e quatro netos. Aprecia Lisboa e o espírito de bairro: “Quando passeio pelas ruas sempre encontro uma exposição para ver, um músico a tocar, há sempre qualquer coisa que me deixa feliz por aqui”. Em 1981 foi trabalhar para a Associação Pró-infância da Mouraria, que encerrou portas em Julho. Após 30 anos a educar crianças, não sabe o que o futuro lhe reserva. Para já, vai participar numa peça de teatro integrada no Festival TODOS. Depois logo se vê.
ensaio
Luís Vaz
Mouraria
ADRIANA FREIRE
e República
A Mouraria é um dos Bairros típicos mais marcantes na História de Lisboa e do país. Ontem, como hoje, estão marcados e vincados traços da sua macrocefalia resultantes do paradigma das relações sociais estabelecidas fraternamente com povos de todos os tempos e de todas as proveniências. Esta forma generosa de acolhimento sem rupturas e clivagens, foi, é, e continua a ser, uma das facetas mais marcantes de uma identidade de bairro onde sobressaem o culto da vizinhança, da amizade e da solidariedade entre pessoas de culturas tão díspares. Estas características de universalidade conferiram ao Povo deste maravilhoso bairro uma autoridade e uma consciência crítica, arrolando-o de uma forma natural, nos grandes acontecimentos da História, sobretudo naqueles que encontraram como palco a cidade das sete colinas. De entre os vários acontecimentos, destacamos a Implantação da República em cinco de Outubro de 1910. Na verda-
de, o povo operário e de pequenos comerciantes deste bairro marcou presença em todos os protestos, petições, manifestações dos períodos que precederam a queda da Monarquia. Provam-no o espólio documental de uma das mais prestigiadas Instituições - a Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento - que promovia o Ensino Popular e que havia de ser encerrada pela polícia política, em 1937, quando esta já se encontrava a funcionar no Largo do Intendente. Da Mouraria, saíu da sua residência o professor Manuel dos Reis Buíça, munido da carabina que, pelas 17h20m do dia 1 de Fevereiro de 1908, haveria de desferir, no Terreiro do Paço, sobre o rei D. Carlos e o Principe Luís Filipe. Antes de abandonar a sua residência, apertou os filhos, um de seis meses, outra de sete anos, sobre o seu peito, na convicção profunda de que a despedida jamais teria retorno, mas que a sua morte, seria a morte da Ditadura e da própria Monarquia, como haveria de acontecer passados apenas dois anos. Na verdade, a morte do rei e de Buíça foram lamentavelmente mortes necessárias a que o tempo, único juíz sereno, veio dar razão. O ditador João Franco foi destituído, os presos políticos, esmagadoramente vultos do pensamento republicano (de entre vários lembramos, Egas Moniz, Afonso Costa, António José de Almeida), foram libertados. Este acontecimento marcou decididamente o advento da República. No dia 1 de Abril de 1911, na Rua do Benformoso n.º 50, foi fundado, por republicanos e livres pensadores, o Centro Escolar Republicano Almirante Reis, que se tornou uma referência na educação e instrução dos filhos dos operários da Mouraria, que, para além da educação e instrução, lhe garantia gratuitamente livros, uma refeição quente diária, banhos, calçado, vestuário e inspecções sanitárias e médicas e medicamentosas. Quando a República foi derrubada em
28 de Maio de 1926 essa nobre instituição republicana, abriu as suas portas na resistência à ditadura de Salazar. Por isso, todos os seus dirigentes, antes do 25 de Abril de 1974, foram alvo da repressão da PIDE tendo sido muitos deles encarcerados no Aljube ou em Caxias. Enfim, falar na Mouraria é falar na luta secular de um Povo contra a descriminação e contra as ditaduras.
Luís Vaz é historiador e doutorado em Estudos Portugueses. Medalha Grau Ouro da Cidade de Lisboa, foi presidente do Centro Escolar Republicano Almirante Reis. É autor de vários livros que documentam a história do movimento e organizações republicanas.
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Rosa Maria
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reportagem texto Nuno Saraiva fotografia MG de Saint Venant
A sustentável grandeza de ser segundo A selecção São Cristóvão no IV Torneio de Futsal Inter Juntas 2010
Entramos no Recinto Polidesportivo do parque da Madre de Deus, onde uma pequena multidão expectante assiste ao desafio. A nossa – da Mouraria selecção mais pontuada, a Junta de São Cristóvão, formada pelos juniores do Grupo Gente Nova (GGN), bate-se contra o Junta de Freguesia de Campo Grande. Os nossos outros, o Junta do Socorro, haviam já perdido as esperanças de chegar ao título e lutavam pela terceira posição com o Casa das Marés, o campeão em título. Chegamos atrasados e já se joga a segunda parte. O árbitro calçava chinelas havaianas. Vítor Sequeira, o treinador do São Cristóvão, impaciente, saltitava e ameaçava com os punhos: “Passa a bola! C’um cara de alho! Já é a segunda vez que te digo... Passa a bola ao Ricardo!” Os instintos de justiça do treinador degeneravam numa linguagem pouco adaptada a um bairro com nome Madre de Deus. Nelson finta dois Campo Grandenses e marca ao ângulo. O pivot (avançado em linguagem de futsal) está em grande forma. A equipa distribui carinhosamente a chincha
Zé António (cima) e Vitor Sequeira
1 - Adelino Afonso
em pancadas ritmadas e regulares. Funciona como um único corpo cujas cabeças, pernas e braços resultam numa máquina abastecida em estilo realmente magnífico que só nos leva a desejar que Carlos Queiroz aqui estivesse para aprender. E porque a Mouraria é a Esparta de Lisboa, Vítor põe-se aos pulos assim que o Carlos (o nosso) se voltou a inspirar em Quaresma; fica vermelho de tanto gritar e dispara: “Carlos, para o banco! Gonçalo, entra!” Zé António, o homem do leme e presidente do GGN, em voz suave e bem educada, tranquiliza o defesa central: “Bom jogo, Carlos. Agora descansa aqui um pouco.” Ricardo marca o último golo, um golo dos bons, dos substanciais. O São Cristóvão vence por 7-3. Rosa Maria aplaude à mão cheia. Os jogadores correm para o fiscal de torneio, que anuncia: “Apenas 33 golos sofridos, São Cristóvão ganha o prémio de melhor defesa! E o Nelson é até agora o terceiro melhor marcador do torneio!” “Atão e o prémio Fair Play?”, gritavam os jogadores enquanto se acotovelavam à bruta no espaço exíguo. Tudo parecia
2 - Carlos Santos
3 - Ricardo Soares
estar a correr bem. Mas o destino está cheio de meandros e recebemos a notícia de que apesar dos 27 pontos somados pela equipa moura, o adversário Desportivo da Pena, na disputa pelo primeiro lugar, tinha menos dois jogos e dificilmente os perderia. É pena. Nem de propósito: o Pena mais o Junta do Beato entram no recinto para o jogo seguinte, agora arbitrado por um Vítor mais calmo e descontraído. Com uma mistura de respeito, admiração e inveja olham para os nossos rapazes a fazer pose para a fotografia. No regresso ao balneário, Zé António não consegue disfarçar o contentamento. Talvez por ver enfim regressadas as vivas memórias do Gente Nova aquando da vitória frente
ao 2ª Comuna, em 2000, no pavilhão do Areeiro, onde levantou a taça de campeões juvenis dos hoje extintos Jogos de Lisboa, suspensos por Santana Lopes em 2002, num gesto franciscano para cortar despesa camarária. Talvez porque Zé António sabe que existe uma promessa do actual executivo municipal para reactivar os Jogos de Lisboa, em articulação com as juntas e o movimento associativo. Uma proposta que estará algures num gabinete dos Paços do Concelho e que se espera que não se perca no caminho de transição do gabinete do presidente António Costa para o Largo do Intendente Pina Manique. Talvez... O IV Torneio de Futsal Inter Juntas 2010 decorreu de 15 de Maio a 24 de Julho.
CLASSIFICAÇÃO EQUIPA
JOGOS
V
E
D
GM
GS
P
PENA
11
10
0
1
96
48
30
SÃO CRISTÓVÃO
12
9
0
3
82
33
27
Junta do SOCORRO
11
7
0
4
76
52
21
CASA MARÉS
11
6
0
5
63
51
18
GRUPO DESPORTIVO DA PENA
11
4
0
7
42
79
12
CAMPO GRANDE
11
3
0
8
47
80
9
BEATO
11
0
0
11
27
90
0
Grupo Gente Nova - 1986
* Forma de Desempate entre Equipas - Posição na Taça Fair Play
7 - Gonçalo Martins
9 - Helder Monteiro
10 - Nelson Duarte
mouraria nas artes texto Inês Andrade ilustração André Carrilho
Saramoureando As Pequenas Memórias de José Saramago na Mouraria
“’O menino quer vir para o quarto?’ Foi na Rua do Bem-Formoso, na esquina de umas escadinhas que ali há, e eu devia ter uns doze anos.” É assim que José Saramago, no seu livro As Pequenas Memórias, nos relata a noite em que foi abordado por uma prostituta a caminho do Cinema Piolho, nome dado ao Salão Lisboa, onde “o garoto de calções e cabelo cortado à escovinha” se escapava para as suas brincadeiras. O prazer de ir aos figos na Azinhaga, aldeia ribatejana onde Saramago nasceu, rivalizava com a excitação de ir Piolho adentro, fundindo e confundindo a sala com a tela. Era ali que a imaginação viajava para lá das ruas, sujas – e assim mesmo se chamou, até certa altura, a Rua do Capelão: Rua Suja. Bicicletas e playsta-
tions era coisa que não existia, e as aventuras dos pequenos heróis, José e o seu amigo Félix, não se resumiam a contraataques a extraterrestres verdes – quando muito seriam ataques aos verdes figos da Azinhaga. O Beco do Imaginário, ali como quem sobe a Rua dos Cavaleiros, bem que poderia ter dado o seu nome à sala de cinema. Aos 12, ou talvez menos, porque nas memórias distantes nunca sabemos ao certo a nossa idade, ainda permitimos que os fantasmas e monstros povoem as nossas vidas para lá da sala de cinema. Os brinquedos, ou iam-lhe na alma ou dava-lhos a rua, de lata, alguns raramente comprados a vendedores ambulantes. Porque as casas onde Saramago viveu, várias, desde a Rua do Benformoso até à
Rua dos Cavaleiros, de tão exíguas, não deixavam grande espaço para as fantasias de uma mente irrequieta de criança. O que não nos passava pela cabeça é a importância das suas vivências “mouras” para a obra que, há vinte anos, abalou o país: “É também desse tempo o descobrimento do mais primitivo dos refrescos que já me passaram pela garganta: uma mistura de água, vinagre e açúcar, a mesma que viria a servir-me, com excepção do açúcar, para, no meu Evangelho, matar a última sede de Jesus Cristo.” Caso para se dizer que nessa época a Senhora da Saúde já andava a fazer das suas. Saramago viveu algumas das grandes aventuras da sua infância na Mouraria, em sonho e em cinema. Recorrentemen-
agenda cultural
Rua Costa do Castelo, 75 Outubro / Novembro — 22 e 23 de Out Absence (dança) — 29/31 Out Natureza Morta (teatro) Reservas: 218854190
Casa da Achada Largo da Achada
Setembro / Outubro — 19/26 Set, 15h30 Oficina de Pinhole com Luís Rocha e Tânia Araújo Introdução teórica e construção de máquinas pinhole — 20/27 Set, 18h30 Ciclo A Paleta e o Mundo
21h30 Ciclo Assim começaram 13 grandes realizadores — 23 Set, 18h Mário Dionísio, um escritor - com Manuel Gusmão sessão sobre livros de Mário Dionísio poemas e ficções — 29 Set/5 Out Semana do 1º aniversário da Casa da Achada — 10/17/24/31 Out, 15h30 Oficina de Teatro com Mariana Goes — 11/18/25 Out, 18h30 Ciclo A Paleta e o Mundo — 21h30 Ciclo Realizadores de uma só longa-metragem Projecção do filme Butley de Harold Pinter — 15 Out, 18h Mário Dionísio, um escritor - com Antonino Solmer Série sobre livros de Mário Dionísio — 16 Out, 16h Direis que não é poesia - com Bárbara Assis Pacheco Desenhos a partir de poemas de Mário Dionísio com a participação de crianças do bairro — 21h30 Ciclo Realizadores de uma só longa-metragem Projecção do filme A Sombra do Caçador de Charles Laughton
23 Out 16h - Inauguração da exposição de Fotografia Vieira da Silva e Arpad Szenes vistos por Ursula Zangler — 17h Itinerários - uma conversa com Jorge Valadas — 25 Out, 21h30 Ciclo Realizadores de uma só longa-metragem Projecção do filme L’Espoir de André Malraux — 28 Out, 18h Livros das nossas vidas - Moderato Cantabile
Um ano de Centro Mário Dionísio Vão ser sete dias de festa. Um ano depois de ter chegado ao Largo da Achada, o Centro Mário Dionísio prepara-se para celebrar as muitas exposições, tertúlias, sessões de cinema e ateliês que deu à cidade e ao bairro. Com quê? Com a mesma receita vencedora que tem trazido à Casa da Achada público, conversas e reconhecimento. A festa vai acontecer de 29 de Setembro a 5 de Outubro. Logo no primeiro dia serão inauguradas duas exposições, lançados dois livros e projectados os Filmes da Achada, de Regina Guimarães. No dia seguinte, será apresentado Entrevistas de Mário Dionísio (1945-1991), livro que reúne entrevistas feitas ao autor e pelo autor. Ao longo da semana, o público poderá também assistir a uma leitura de textos coordenada por Luís Miguel Cintra, a um concerto que junta o grupo Cramol e o Coro da Achada (2 de Outubro) ou participar numa pintura colectiva de murais (3 de Outubro). A festa termina com um leilão de obras de arte oferecidas à Casa da Achada.
Tributo de Camilla Watson — Os rostos da D. Nazaré, da D. Laurinda, do Sr. Salvador e da D. Violeta continuam a dar vida ao Beco das Farinhas. Um ano depois, a exposição Tributo da fotógrafa Camilla Watson ainda pode ser vista nas paredes da Mouraria. Retratos afectivos que têm resistido à chuva, ao sol e ao vento.
design_Armanda Vilar/moldura+lettering_Baguinho/ilustração_Nuno Saraiva
Teatro da Garagem
ME ULA REG ES, EM: AÇÕ ÃO ORM RIÇ INF NSC I S I E MA A D .pt/ ICH E F aria
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ARMouraria/Maio 2010
te sonhava que caía, na esconsa casa da Rua dos Cavaleiros, não “no sentido de queda desamparada, pois o que realmente sucedia era que eu me deixava descer, roçando devagarinho pelas varandas dos andares abaixo, pela roupa estendida, pelos vasos das flores, até pousar suavemente nas pedras da Rua da Guia, intacto.” Intacto não está, hoje, o velho Piolho que alimentou as pequenas memórias do José. Retiraram-lhe a tela, a plateia e o balcão e transformaram-no numa espécie de armazém de atoalhados. As grandes memórias de José Saramago, todo o seu espólio material, vão para a Casa dos Bicos, no bairro aqui ao lado, que não consta das suas recordações mas que tem vista para o rio.
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© ANDRÉ CARRILHO/DN/18 JUN 2010
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passatempos
7 Diferenças
Sopa de letras
As duas imagens parecem iguais, mas na verdade contêm 7 diferenças entre si. Descubra-as.
Ache no diagrama os 10 nomes de especiarias que se indicam na lista em baixo. As palavras podem encontrar-se na horizontal, diagonal ou vertical e em ambos os sentidos.
Carrinha+barris: 1-Interior da roda de trás da carrinha 2-Falta um degrau nas escadas 3-Cor dos sapatos do homem da direita 4-Faltam pedras no chão no canto inferior direito 5-Falta o bigode do homem do canto superior esquerdo 6-Vidros da porta da casa 7-Altura da janela da casa do lado esquerdo SOLUÇÕES
Nos dias 8 e 9 de Outubro, realizar-se-á em Lisboa o primeiro encontro internacional de coleccionadores e investigadores de cartas de jogar, através da convenção anual da International Playing Card Society (IPCS) e da Asociación Española de Coleccionismo y Investigación del Naipe (ASESCOIN). A Apenas Livros lançará, com o apoio do IELT – Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, uma História das Cartas de Jogar em Portugal e da Real Fábrica de Cartas de Lisboa, de Fernanda Frazão, especialista portuguesa na área e organizadora do evento. Simultaneamente, a Biblioteca Nacional de Portugal irá inaugurar, no dia 8 de Outubro, a exposição «Cartas de Jogar: da Fábrica à Mesa» e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda colocará no mercado réplicas de cinco baralhos da Real Fábrica. Três instituições juntaram-se para fazer uma antologia dos melhores contos e contadores alentejanos: a editora Boca, a cooperativa Memória Imaterial, que faz recolha da tradição oral portuguesa, e a Trimagisto, companhia de actores e contadores. O resultado é o videolivro Anda cá que eu já te conto, edição trilingue (pt/es/eng.), que às transcrições dos contos, ilustrados por António Salvador, junta um DVD com gravações ao vivo de mestres contadores de Mora e Beja e cinco histórias narradas por Luís Carmelo, descrevendo um arco desde os contos antigos às criações de autor. Trata-se do 2º volume da colecção HOT – Histórias Oralmente Transmissíveis apoiada pelo IELT - Instituto de Estudos de Literatura Tradicional e será lançado no dia 18 de Novembro, data do 31º aniversário do IELT, acompanhado pela exposição das ilustrações em grandes formatos e uma roda de contos. A publicação tem ainda patrocínio da Atlanfina e apoio científico do CEAO – Centro de Estudos Ataíde Oliveira.
Açafrão Canela Cardamomo Coentros Cominhos
Cravinho Estragão Oregãos Pimenta Mostarda
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Cursos de Artes no Ar.Co Cerâmica Cinema/Imagem em Movimento Desenho Design Gráfico Escultura Fotografia Ilustração/Banda Desenhada Joalharia Pintura Tipografia História e Teoria da Arte Cursos Completos; Workshops; Cursos Teóricos Horários Diurnos e Pós-Laborais; Sábados para Jovens e Adultos Local: Rua de Santiago 18, 1100 - 494 Lisboa e Quinta de São Miguel, Almada Contactos: 21 880 10 10 | secreataria@arco.pt | www.arco.pt O AR.CO é apoiado por: Ministério da Educação | Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior | Ministério da Cultura | Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social | Instituto do Emprego e Formação Profissional | Câmara Municipal de Almada | BES - Banco Espírito Santo | Fundação Calouste Gulbenkian | Fundação Millennium bcp | REN - Redes Energéticas Nacionais | Câmara Municipal de Lisboa | EPSON Portugal S.A | Espírito Santo Investment | Ana Martinho | Fundação Carmona e Costa | José de Guimarães | Madalena Lobo Antunes | Graça e Victória Reis | Tintas Barbot
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Rosa Maria
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salmoura
Chocos ao alhinho
Pudim Flan (para 15 unidades)
chocos alho coentros azeite batatinhas cozidas
1,5 l de leite 3 dl de natas 500 g de açúcar 15 ovos 2 colheres de sopa de mel 1 casca de limão 1 pau de canela 2 colheres de sopa de licor Beirão
Grelhe os chocos em seguida corte-os em pedaços pequenos. Salteie os chocos em azeite com o alho e os coentros picados. Sirva com batatinhas cozidas a acompanhar.
texto e fotografia Adriana Freire
Zé da Mouraria
Virgílio Oliveira
Colabora comigo! ANUNCIE AQUI!
Se há boas razões pelas quais a Mouraria é conhecida, o restaurante “Zé da Mouraria” é uma delas. Frequentado por muita gente exterior ao bairro, políticos, actores, empregados bancários e jogadores de futebol, entre muitos outros, “todos vêm à comida típica. Ainda a semana passada esteve cá o César Peixoto”, diz o Chefe. São os pratos mais simples de confeccionar que têm mais saída: o bacalhau e o entrecosto no carvão, os chocos, e o peixe fresco grelhado. O arroz de pato à antiga também agrada a muitos. Mas qual o segredo do “Zé da Mouraria”? A resposta é simples: além da qualidade dos produtos e da sua confecção existe sempre alguém. Vírgílio Oliveira é a alma deste restaurante. É minhoto e durante anos chefiou cozinhas de hotéis no Algarve. Há dez anos ficou com este restaurante que já tinha o nome de “Zé da Mouraria”, que manteve. E há dez anos que não tem férias. Este ano quase que se abalançou ao descanso mas “a malta de África”, impediu que tal acontecesse. “Vem aqui muita gente que já viveu na Mouraria, não só para comer mas para visitar o local que antes era uma carvoaria.” “Nunca fiz publicidade, as pessoas é que escrevem na internet sobre o res-
Envia-me notícias, histórias do bairro, contos, fotografias novas e antigas, desenhos, receitas de culinária, anúncios e publicidade. Diz-me o que está mal, o assim-assim e o que vai bem. rosamaria@renovaramouraria.pt Telm: 922 191 892
Leve o leite ao lume, com o açúcar, o mel, o pau de canela e a casca de limão até ferver. Retire do lume e misture, mexendo sempre, os ovos batidos e o licor. Verta o preparado para uma forma ou várias forminhas individuais de pudim previamente barradas com caramelo e leve ao forno em banho-maria até cozer.
taurante que é conhecido em Angola, Cabo Verde e em muitos países da Europa. Além de ser o restaurante eleito pelo pessoal da RTP1, no seu sítio da internet” Virgílio vive em Mem Martins, porque gosta de sossego e de viver longe do local de trabalho. Só servem almoços. Jantares só por marcação para grupos superiores a 16 pessoas.
Restaurante Zé da Mouraria Cozinha Regional Portuguesa Rua João do Outeiro, 24 Mouraria Tel.: 218 865 436 (encerra ao domingo)
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vox mourisco
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na dobra das palavras texto Ana Castro e Sara Ludovico ilustração Antònia Tinture
fotografia Nuno Morão entrevistas Oriana Alves
O vocabulário de uma língua conta, através das palavras, o nosso presente e o nosso passado - é uma espécie de memória colectiva permanentemente activa que contém em si acontecimentos, novidades, descobertas, escolhas, que narram não só a grande História, como também as pequenas histórias. No dicionário da nossa língua (e de outras), existem entradas significativas que remetem para tempos e para personagens específicos, com um conjunto de alusões capazes de oferecer a cada falante um “mundo” onde se possam reconhecer e identificar.
Porque é que veio morar para a Mouraria? Vim viver para a Mouraria porque é mais barato. Descobri a casa em que vivo num anúncio de jornal, há dois anos. No início, à noite, tinha até um bocadinho de medo, por causa da prostituição e da droga, mas depois percebi que o bairro é pobre mas não é perigoso. Renata Oliveira, 29 anos, brasileira, ajudante de cozinha
Tinha aqui uns cachopos da minha terra, Fajão, na Pampilhosa da Serra, um casal amigo, e eles é que me disseram que havia uma casa para alugar ao pé deles e realmente havia aqui muita gente da minha zona. Foi há 30 anos. Eu trabalhava num lar de raparigas universitárias e achava que Lisboa tinha mais vida, mas afinal aqui a solidão ainda é maior do que lá na minha aldeia. Etelvina Iria, 56 anos, portuguesa, empregada de limpeza
Calhou. Eu e a minha companheira andávamos há nove meses à procura de casa no centro histórico e com boas acessibilidades: ou era muito caro ou eram casas terríveis. E um dia, passeando na Rua Marquês de Ponte de Lima que, ao contrário da maior parte das ruas do bairro, é larga e luminosa, pensámos que se houvesse uma casa ali não era nada mau. Vimos uma placa de “vende-se”, ligámos, vimos a casa, que tinha uma vista maravilhosa, e ficámos. Foi sem dúvida a melhor relação qualidade/preço. Ivan Azevedo, 34 anos, português, jurista
Estava num quarto em Arroios, na casa de uma senhora que colocava imensas restrições: a luz, os horários. Enfim coisas que não se coadunam com a vida de estudante universitário — eu estava a estudar enfermagem. A casa mais barata que encontrei foi aqui na Vila Almeida, muito pequenina, mas eu tinha tanta necessidade de mudar que fiquei, e já vai fazer 13 anos.
mandarim era o termo com o qual, em tempos idos, os estrangeiros designavam os funcionários civis e militares do Império Chinês. Hoje, por extensão, designa muitas vezes, não decerto sem alguma ironia, altos funcionários e burocratas. Designa ainda, enquanto adjectivo, a língua geral e oficial chinesa (hoje preterida pelo mais imediato “chinês”), representada pelo dialecto principal da China do Norte. Durante o Império foi uma língua da burocracia e da literatura, usada pela corte e pelos mandarins. Mas o mundo associado a esta palavra não termina aqui. “Mandarim”, em português, é uma alternativa à palavra “tangerina” (de Tânger), mas em muitas línguas é mesmo o nome oficial para este fruto perfumado, sumarento e açucarado originário da China meridional e hoje cultivada nas regiões mediterrânicas ocidentais. Segundo o filólogo espanhol Corominas, o nome é uma alusão à cor do traje dos antigos mandarins. Resta dizer que o vocábulo “mandarim” foi difundido através do português para as demais línguas europeias e que, segundo alguns linguistas, provém do malaio mantari, uma corruptela do sânscrito mantri (conselheiro, ministro, chefe de estado) e, pelo meio, sofreu influências do verbo português mandar.
mandarino
(italiano)
(grego) (árabe)
mandarin (romeno) (mandarim) (russo e ucraniano)
Eunice Epalanga, 40 anos, angolana, trabalhadora na
Vim para cá quando fiquei desempregado, há um ano. Tinha um amigo que vivia aqui num prédio abandonado, eu não podia pagar a renda da casa onde vivia, na Amadora, e vim. Tomo banho no balneário do Centro Comercial da Mouraria. Agora comecei a receber subsídio de desemprego, mas são 300 euros, não dá para pagar um quarto. Gosto de viver aqui. Inscrevi-me no Grupo Gente Nova e vou lá ver os jogos de futebol e conversar, e já me tentei inscrever na Junta mas ainda não foi possível porque estou à espera da autorização de residência.
Vim para a Mouraria porque tinha cá muitos amigos e porque este bairro é o mais forte em comércio e as pessoas são muito sociáveis. Eu vivi cá entre 1996 e 2004, depois tive um filho e tive de mudar, mas comprei casa aqui perto, na Praça do Chile. Estou cá todos os dias porque tenho uma loja de vestuário e bijuteria, e gosto muito do bairro e de Portugal. Já tinha estado noutros países europeus e senti muito racismo; aqui nunca senti racismo.
Komba Honoré, 42 anos, angolano,
Rabbir Hassain, 39 anos, bangladeshiano, comerciante
pedreiro desempregado
restauração de dia e artista plástica à noite
B.I.
Mandarim Número de falantes no mundo: 840 milhões Variedades: um conjunto de variedades faladas no norte e sudoeste da República Popular da China, nem todas compreensíveis entre si; o mandarim standard baseia-se na variedade falada em Pequim. Família*: Sino-tibetana – o mandarim é “primo” do tibetano. Geografia: Língua oficial da República Popular da China, Taiwan (ou Formosa, a partir do português “Ilha formosa”), Macau, Hong Kong, Singapura e Nações Unidas; também falada por comunidades emigradas em países de todo o mundo. e língua também falada por comunidades emigradas em países de todo o mundo. Sistema de escrita: escrita logográfica – cada símbolo representa não um som, como na escrita alfabética, mas uma palavra ou um morfema; parte dos logogramas é comum ao japonês e coreano; o pinyin é uma forma de escrita “romanizada”, que usa o alfabeto latino adaptado. Ranking: 1ª língua mais falada no mundo
*As línguas, como as pessoas e as espécies de animais e plantas, têm família (e apelidos!): pais, irmãos, tios, primos mais próximos e mais afastados, avós, bisavós e tetravós... todos descendendo de um antepassado comum e com diversos ramos (sub-famílias). Fontes: www.ethnologue.com e Wikipedia
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banda desenhada de Nuno Saraiva
entrevista Ana Luísa Rodrigues e Nuno Franco fotografia Camilla Watson
“Uma coisa é religião outra coisa é cultura”
Taslim Uddin Rana nasceu em Daca, capital do Bangladesh. É comerciante, tradutor e um dos líderes do Centro Islâmico do Bangladesh, na Mouraria. Quando chegou a Portugal, em 1990, só havia quatro bangladeshianos no bairro. O Ramadão terminou a 9 de Setembro. Como foi comemorado no bairro? Começámos a comemorar o Ramadão na Mouraria em 2000. Quisemos organizar-nos e fizemos o Centro Islâmico do Bangladesh, uma organização de muçulmanos. Mas é para toda a gente. A Mesquita chama-se Baitul Mukarran e hoje dá para 500 pessoas. O jejum é a face mais visível do Ramadão. Quais os outros rituais associados a esta festividade? A lei islâmica dita que nos 30 dias do
Ramadão, durante o dia, se faça jejum e depois se faça um quebra-jejum a que nós chamamos Iftar. Resolvemos trazer essa tradição para a Mouraria. Há muitos locais de culto onde só há lugar para rezar. Mas pensámos que há na nossa comunidade muitas pessoas pobres que trabalham nas obras, nos restaurantes e na venda ambulante. Então resolvemos fazer uma acção de solidariedade. Deus deu ordem para fazer jejum, para criar uma solidariedade com quem passa fome. E partindo dessa intenção, a ideia é: quando comemos vamos fazê-lo juntos. Não faz diferença que seja africano, preto, branco, castanho ou vermelho. Interessa é a humanidade. Como arranjam verbas para a refeição? Quem financia esta despesa – uma refeição para 300 pessoas por dia ainda é despesa – são sobretudo os empresários muçulmanos de todo o país. Antes e durante o Ramadão fazemos o peditório. Quem toma a refeição não tem de pagar – há uma caixa para donativos simbólicos e quem quiser põe dinheiro quem não quiser não põe. Em relação às mulheres, é celebrado da mesma forma? É igual. As mulheres estão em casa, onde fazem o jejum e a oração. Em algumas mesquitas, como na Mesquita Central ou na Mesquita de Odivelas, as mulheres podem fazer a oração e o quebra-jejum.
Mas tem de ser tudo separado: a entrada, o local para as lavagens e a sala para oração. Como na Mouraria não temos condições, as mulheres fazem tudo em casa. Como classificaria a integração dos imigrantes na Mouraria? Eu acho que é boa. Nós nunca tivemos problemas com cidadãos de outras nacionalidades. Na nossa comunidade, por exemplo, há duas partes: a religião e a cultura. Porque há muitos bangladeshianos que não são muçulmanos, são hindus ou cristãos-católicos. Mas temos na mesma uma relação de solidariedade, porque somos todos do mesmo país. Sentem algumas reacções menos agradáveis por parte dos portugueses? Racismo existe em todo o lado, directo e indirecto. Mas a minha experiência de 20 anos em Portugal é a de que o português tem mais solidariedade. Nós não reparamos num racismo directo, existe mais racismo indirecto. Há uma classe superior que não é racista. Mas há uma classe mais baixa, que por causa da ignorância ou por não terem educação, podem ter atitudes racistas. Mas a esses não ligamos. Quantos muçulmanos vivem na Mouraria? E quais as nacionalidades? Mais ou menos 1500 muçulmanos. São do Bangladesh, Índia, Paquistão, árabes e do continente africano, sobretudo da
Guiné-Bissau e Guiné-Conacri. Desde há uns anos está a aumentar também o número de marroquinos. No a n o p a s s a d o j u n t a v a m - s e n o quebra-jejum 350 pessoas e este ano o número baixou. Porquê? Como há crise e falta de trabalho em Portugal há muitos imigrantes a sair do país. Muitos foram para Espanha, França ou Inglaterra. E como agora o Governo não está a abrir as portas à imigração já não há tantos estrangeiros. Mas o principal motivo é a falta de trabalho – há muita gente, na maioria africanos, que fica no desemprego. Há também muitos moçambicanos a voltarem para Moçambique, tal como muitos bangladeshianos e indianos a voltarem para os seus países.