UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO / ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
THALES BRANCHE PAES DE MENDONÇA
MASCARADOS: UMA ETNOAVENTURA NA MARUJADA DE SÃO BENEDITO NO MUNICÍPIO DE QUATIPURU NO ESTADO DO PARÁ
Salvador 2012
THALES BRANCHE PAES DE MENDONÇA
MASCARADOS: UMA ETNOAVENTURA NA MARUJADA DE SÃO BENEDITO NO MUNICÍPIO DE QUATIPURU NO ESTADO DO PARÁ
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.
Orientadora: Profa. Denise Maria Barreto Coutinho
Salvador 2012
Escola de Teatro - UFBA Mendonça, Thales Branche Paes de. Mascarados: uma etnoaventura na Marujada de São Benedito no município de Quatipuru no Estado do Pará / Thales Branche Paes de Mendonça. - 2012. 132f. il. Orientadora: Prof.ª Drª. Denise Maria Barreto Coutinho. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2012. 1. Festas populares – Artes cênicas - Pará. 2. Máscaras. 3. Cultura popular – Quatipuru (PA). I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. II. Coutinho, Denise Maria Barreto. III. Título. CDD 792
A S達o Benedito e sua Marujada.
AGRADECIMENTOS
A Deus, em toda sua variedade e em cada modo pelo qual eu recebo a Sua presença. A São Benedito e sua Marujada, pelo ensino da fé e da esperança ardente. A Seu Osório e Seu Joaquim, pelos paus de Angola. A Dona Luíza e Seu Pedrinho pela prosa, a poesia e o café. A meus avós, pela herança de paz e força. A minha mãe, pelo aprendizado de águas e ninho. A meu pai, pela educação religiosa de voo e liberdade. A meu irmão, pela pedagogia do canto, do contracanto e do coro. A toda a minha família, pela profundidade da raiz, a robustez dos troncos e a frondosa copa da árvore onde moro na casa de dentro. A meus amigos de rio e de mar, pela leveza dos ares e a sabedoria da brisa. A meus companheiros de demandas e etnoaventuras em Quatipuru: Danielle, Armando, Camila, Lucidéia, Armandinho, Kleyton, Rodolfo, Cássio, Rafael, Vico, Neto e Raquel, pela confiança e entrega mesmo na insegurança da nau. A Karine Jansen, pela generosidade e sutileza na introdução dos mistérios de vida e morte. A Denise Coutinho, pela sensatez de sua intuição do norte, professora de retidão e sinuosidade do traço. A Érico de Oliveira, pela educação e pela pedra. A Armindo Bião, pela inspiração de maravilha e perigo e o encanto da encruzilhada. A Sônia Rangel, pelo conhecimento dos protocolos da lua. A Freddy Ortiz, pela estrela-guia de águas doces, e ainda assim a severidade do sangue derramado. A Milena e Veloz, pelo aconchego da casa aberta. A tia Madalena, pelo sorriso e largueza do abraço.
A tia Sandra e tio Cláudio, pela confiança e generosidade silenciosa. A Charleny, par des liens. A Musse, pelo concreto e a arquitetura. A Marla, for the balacing heart of reason. A Elmir, pela disponibilidade, amizade e caridade. A Marton Maués, pela consultoria de liberdade. A Wlad Lima, por inspirar aventura e risco no telefonema fatal. A Luz, pelo galope sagrado. A Manhã, pelos três sopros. A Michele, pela canção, a consciência de asas nos pés e pássaro sobre a cabeça. A meus coordenadores, professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, pela companhia da caminhada afetuosa, para além dos protocolos. A CAPES, pela abertura dos caminhos. Ao amor.
MENDONÇA, Thales Branche Paes de. Mascarados: uma etnoaventura na Marujada de São Benedito no município de Quatipuru no Estado do Pará, 2012, 132fl. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.
RESUMO
A festa da Marujada de São Benedito em Quatipuru (PA) é o eixo central a partir do qual esta pesquisa de mestrado se desenvolve. Tomando como ponto de partida a reflexão sobre o trajeto antropológico aqui construído nas experiências de encontro e aproximação com a festa da Marujada de São Benedito em Quatipuru (PA), especialmente na brincadeira dos mascarados, este trabalho constitui uma leitura da festa que se articula por meio da troca poética entre as afetividades que emanam do contexto antropológico verificado em campo e as possibilidades de sua compreensão no nível da profundidade simbólica que a festa provoca. Na brincadeira dos mascarados, furor e vigor físico, em conexão com o intenso prazer do jogo, constituem um meio pelo qual se expressa a devoção do povo de Quatipuru por São Benedito. Nesse sentido, o potencial dessa devoção só pode ser compreendido com mais concretude com uma aproximação afetiva e sensorial das diferentes imagens simbólicas que perpassam a festa. Daí a necessidade de proceder com uma escrita que tente dar conta desse manancial energético, o que implica o abandono de alguns princípios epistemológicos cartesianos, tais como a dicotomização, a distância entre sujeito e objeto e o império da racionalidade como eixo central da reflexão. No sentido de constituir uma alternativa epistemológica mais eficiente para atingir o objetivo apresentado, busca-se nutrir-se dos conhecimentos advindos da etnocenologia, da antropologia do imaginário, da antropologia interpretativa, dos estudos sobre a leitura e da psicologia analítica. Assim, articula-se uma proposta não-cartesiana de pesquisa, em que se toma por princípio básico os limites impostos pela experiência como eixo da leitura. Desse modo, a leitura da festa da Marujada de São Benedito e de seus mascarados confunde-se necessariamente com a leitura da errância/trajeto antropológico do pesquisador; porém, é pela leitura dos potenciais simbólicos que emanam da festa que se delimita o espaço coletivo e transpessoal do conhecimento sobre as relações entre imaginário, cultura e sagrado. Palavras-chave: Mascarados da Marujada de São Benedito em Quatipuru; trajeto antropológico; leitura; etnocenologia.
MENDONÇA, Thales Branche Paes de. Masqués: une ethnoaventure à Marujada de São Benedito dans la ville de Quatipuru de l’État du Pará, 2012, 132fl. Dissertation (Mâitrise en Arts du Spectacle) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.
RÉSUMÉ La fête de la Marujada de saint Benoît à Quatipuru (PA) est l'axe central à partir duquel se développe cette thèse de maîtrise. En prenant comme point de départ la réflexion sur le trajet anthropologique construit ici dans les expériences de rencontre et approche avec la fête de la Marujada de São Benedito à Quatipuru (PA), en particulier dans le jeu de masques, ce travail est une lecture de la fête qui s'articule au moyen d’échange poétique entre les affectivités qui émanant du contexte anthropologique vérifié sur le domaine et les possibilités de sa compréhension au niveau de la profondeur symbolique que la fête provoque. Dans le jeu de masque, la frénésie et la vigueur physique, en connexion avec l'intense plaisir du jeu, sont un moyen par lequel s’exprime la dévotion du peuple de Quatipuru par São Benedito. En ce sens, le potentiel de cette dévotion seulement peut être comprise avec plus de concret avec une approximation affective et sensorielle de différents images symboliques qui perpassent la fête. D'où la nécessité de procéder à un script qui tente de rendre compte de cette source d'énergie, ce qui implique l'abandon de certains principes épistémologiques cartésiens, tels que la dichotomisation, la distance entre le sujet et l'objet et l’empire de la rationalité comme axe central de la réflexion. Dans le sens de fournir une alternative épistémologique plus efficace pour atteindre l'objectif présenté, on veut se nourrir à partir des connaissances acquises de l’ethnoscénologie, de l'anthropologie de l'imaginaire, de l'anthropologie interprétative, des études sur la lecture et de la psychologie analytique. Ainsi, s'articule une proposition noncartésienne de recherche, qui prend comme principe de base des limites imposées par l'expérience comme un axe de la lecture. De cette façon, la lecture de la fête de la Marujada de São Benedito et de ses masqués s'embrouille nécessairement avec la lecture de l'errance / trajet anthropologique du chercheur ; toutefois, est à travers la lecture des potentiels symboliques qui émanant de la fête qui se délimite l’espace collectif et transpersonnelle de la connaissance sur les relations entre l'imaginaire, la culture et le sacré. Mots-clés: Masqués de la Marujada de São Benedito à Quatipuru; trajet anthropologique; lecture; ethnoscénologie.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Seu Chá e o periquito...........................................................................................p. 11 Figura 2 – Meu peixe............................................................................................................p. 20 Figura 3 – Danielle recebendo o chapéu de Maruja pela primeira vez.................................p. 33 Figura 4 – A Marujada na rua...............................................................................................p. 34 Figura 5 – A Marujada no quintal de Karine.........................................................................p.35 Figura 6 – A psique humana.................................................................................................p. 58 Figura 7 – A re-união da alma e do corpo na ressureição.....................................................p. 60 Figura 8 – Prometeu acorrentado, de Rubens......................................................................p. 73 Figura 9 – Preparando o mastro..........................................................................................p. 85 Figura 10 – Doação do mastro..............................................................................................p. 91 Figura 11 – O coco e o mastro..............................................................................................p. 92 Figura 12 – Mascarado e menino..........................................................................................p. 96 Figura 13 – Menino na espreita...........................................................................................p. 100 Figura 14 –Menino mascarado atirando água para o outro lado do muro..........................p. 101 Figura 15 – Capitoa e mascarado........................................................................................p. 111 Figura 16 – Meninos enfrentando mascarado.....................................................................p. 112 Figura 17 – Mascarado afugentado meninos......................................................................p. 112 Figura 18 – Mascarado dançando com Marujo...................................................................p. 113 Figura 19 – Menino captado por mascarado.......................................................................p. 115 Figura 20 – Mascarado no chão..........................................................................................p. 116 Figura 21 – Esperando o presente.......................................................................................p. 117 Figura 22 – Mascarados arremessando os presentes dos mastros.......................................p. 118 Figura 23 – Mascarado e descida da bandeira....................................................................p. 121 Figura 24 – Derrubada do mastro.......................................................................................p. 122 Figura 25 – Máscara de Mardock.......................................................................................p. 123 Figura 26 – Detalhe da máscara de Mardock......................................................................p. 123
SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 CAPÍTULO I – POR UM REFERENCIAL POÉTICO-EPISTEMOLÓGICO: PRINCÍPIOS DE LEITURA DE UM TRAJETO.............................................................. 18 1.1. LANÇAR
LUZ
SOBRE
A
PRÓPRIA
ERRÂNCIA
COMO
PONTO
DE
PARTIDA.................................................................................................................................18 1.2. NARRATIVAS DO VIVIDO: TRAJETO E IMAGINÁRIO.........................................25 1.3. INSPIRAR SOB A MÁSCARA: O SABER QUE BROTA DO CORPO......................37 1.4. SOBRE
A
NECESSIDADE
DE
REVISITAR
OS
PARÂMETROS
EPISTEMOLÓGICOS CARTESIANOS.................................................................................40 1.5. NO PRINCÍPIO, A LEITURA: UMA ALTERNATIVA NÃO-CARTESIANA.......... 45 CAPÍTULO II – O MAR EM CHAMAS DE SÃO BENEDITO: UMA IMERSÃO MITOLÓGICA ......................................................................................................................57 2.1. DO SONHO AO MITO: IMERGIR................................................................................57 2.2. IMAGENS DO SANTO PRETO: EMERGIR.................................................................66 CAPÍTULO III – UM DIA DE FESTA: LEITURAS DE UMA ETNOAVENTURA......78 3.1.
LEVANTAMENTO DO MASTRO: ARRUMANDO O PAU DO PRETO E O
TEMPO-ESPAÇO DO SAGRADO.........................................................................................79 3.2.
LEVANTAR O PAU DO PRETO: MOTRIZES AFRO-BRASILEIRAS DO
SAGRADO...............................................................................................................................85 CAPÍTULO IV – OS MASCARADOS: O ÚLTIMO DIA DA FESTA.............................96
CONCLUSÃO.......................................................................................................................124
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................129 ANEXO..................................................................................................................................132
INTRODUÇÃO
A cabana É preciso dizer-lhe que tua casa é segura que há força interior nas vigas do telhado E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo E que tens uma esteira E que tua casa não é lugar de ficar mas de ter de onde se ir. Max Martins.
Seu Chá acarinha o periquito que, como ave que é, mal pode supor que entre homens de muitas culturas é um símbolo da transcendência, da conexão etérea entre o céu e a terra, o divino e o mundano conectados pelo espírito liberto, batedor de asas e cantador do pássaro.
Figura 1 – Seu Chá e o periquito. Foto: Kleyton Silva (2010).
Em sua casa ele recebe os outros que, como ele, não deixam transparecer seus mistérios ao adentrar o quintal pela porta dos fundos em suas vestes cotidianas, um espírito calmo, e talvez com certa preguiça, pois são três horas da tarde e na pequena cidade de interior sempre há tempo para o sono depois do almoço, mas não hoje. Provavelmente Seu Chá também não deve pensar muito sobre isso e, para ser sincero, enquanto eu estava naquele quintal presenciando essa cena, eu também não podia supor que um homem conectado a um pássaro pudesse remeter a questões tão profundas das misteriosas formas do sagrado. Meu amigo Kleyton, que desde muitos anos é meu companheiro de música, no ano de 2010 se tornou meu companheiro na pesquisa de campo que eu realizava na Marujada de São Benedito em Quatipuru, pequena cidade do interior do Estado do Pará. Como ele, também me acompanharam nesta demanda Danielle (Dani), Armando (Armandinho), Armando (Papai), Rodolfo (Rod), Rafael (Rafa), Luís Flávio (Vico), Cássio (Laranjinha), Guimarães (Neto) e Raquel, que eu não chamava por apelido, sobrenome ou abreviação do nome, mas por quem, como por todos os outros, eu nutro um carinho sem fim. Em nome desta pesquisa que entre aquele grupo inicialmente dizia respeito somente a mim pelo compromisso firmado com o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA (PPGAC), juntos, todos deixamos nossas casas para enfrentar essa viagem rumo ao interior do Estado do Pará, à Quatipuru ainda imaginária para esses meninos que, corajosos, confiaram nas histórias que eu contava. É também verdade que todos voltamos para casa transformados, com a certeza de que ao viajar rumo ao interior do Estado talvez nós tenhamos descoberto muito mais sobre o interior de nós mesmos, sobretudo no que tange ao sagrado que paira sobre o ar de Quatipuru especialmente em seus dias de Marujada, a sensível (porque se dá pelo corpo) presença de São Benedito. Porém, é necessário dizer que esta dissertação de mestrado foi desenvolvida no âmbito da linha de pesquisa “Matrizes estéticas da cena contemporânea” do PPGAC da UFBA, e, sendo assim, quando eu proponho começar esta Introdução por um ainda deslocado e incompreensível fragmento de imagem da festa da Marujada1 é porque compreendo que assim se proceda a especificidade da cena que aqui irei tratar: a festa da Marujada como elemento
1
A imagem que trago compõe o momento da preparação dos mascarados, que no dia 27 de dezembro, o último dia da festa da Marujada, saem às ruas para realizar os ritos finais da festa.
agregador comunitário em honra a São Benedito instaura um tempo-espaço ritual que durante os dias de festa exibe vigorosamente a luz de um sagrado que não se pode compreender exclusivamente por definições objetivas. Certa confusão e mesmo estupor diante da festa compõe o aprendizado de certa humildade necessária diante do imponderável presente no corpo da festa, que é explícito, mas que oculta segredos que jamais poderemos adivinhar. Diante do imponderável encontrado no caminho, apesar da confusão e da desordem do primeiro contato e talvez das primeiras tentativas de compreensão dessa experiência, a transformação do corpo e do espírito que a Marujada me inspira sempre foi minha única certeza. Num antigo e importantíssimo primeiro exercício de escrita durante o mestrado, meu então orientador, o professor Érico Oliveira, um bom mestre, me perguntava: o que te move? É essa profunda inspiração que me move, o sagrado que ressoa em mim, como se meu corpo inspirado reverberasse energias que nem sempre sei dizer, mas sei que estão. Falei de inspiração. Fisiologicamente, a inspiração é basicamente um processo orgânico que compõe a respiração. A respiração começa pela inspiração, que é quando o ar entra pelo nariz, onde é filtrado, umedecido, aquecido (por pelos e pelo muco), passando pela faringe, pela laringe, pela traqueia, pelos brônquios e, assim, chega aos pulmões. Nos pulmões, os alvéolos realizam trocas gasosas entre o pulmão e o coração, que absorve o oxigênio do ar e elimina o gás carbônico, absorve o que é bom e elimina o que é ruim, permitindo a vida. A inspiração inicia um processo vital que “termina” no coração. A experiência com os mascarados na Marujada de Quatipuru me inspirou profundamente; aqueles dias foram como o ar que me tomou o corpo e se alojou no meu coração (estou apaixonado), onde agora busco o transformar em conhecimento. “Todos no mundo recusaram a responsabilidade do Amor, / como você pode aceitar, /Amedrontaram-se com a possibilidade de errar, / O inspirado saber que brota ao estar apaixonado”. Esse é um trecho do poema “Depois da paixão, a responsabilidade do Amor”, de Jalal ad-Din Muhammad Rumi2. Há poucos instantes antes de escrever esse trecho, eu estava ao violão tentando musicar esse poema. Na ânsia de encontrar uma melodia que pudesse se ajustar de forma mais orgânica ao texto do poema, eu devo ter cantado sem parar durante mais de dez minutos, o que me gerou uma tontura epifânica. Fiquei tonto porque estava respirando mal em meu canto que era o meu próprio corpo em processo criativo. A tontura, meu corpo 2
Infelizmente não tenho como apontar precisamente a referência bibliográfica, pois tive acesso a esse poema por meio de um pequeno papel que um ator me entregou na rua durante uma performance. Naquele momento eu não imaginava que o texto me serviria.
desestabilizado, foi como fluir aquele poema sensivelmente em minha matéria. A paixão faz isso, o coração acelera quando o amante vê a pessoa amada: de repente, uma sensação de falta de ar, e, em seguida, é necessária uma profunda inspiração. É um devaneio, talvez um delírio ainda resultado da tontura, mas é o que é: há um inspirado saber que brota quando se está apaixonado. Eu, sujeito-pesquisador, me exponho afetivamente implicado no meu objeto de pesquisa, ou seja, inspirado, é essa a condição de produção intrínseca à escritura desta dissertação de mestrado. Diante da imensa responsabilidade de escrever a partir de um viés acadêmico sobre minha experiência do sagrado na Marujada de São Benedito especialmente como mascarado, ocupeime durante o tempo do mestrado num primeiro momento de encontrar uma trilha pela qual eu pudesse seguir para liberar uma escrita que não traísse os afetos que entre lá e cá no meu peito floresceram. Viver a Marujada conforme aprendi com muitos mestres durante os quatro anos de viagem a Quatipuru e que compreenderam todo este processo de pesquisa é por princípio reverenciar São Benedito em toda a sua glória e significado de fé e esperança no seio da comunidade que faz a festa. Assim, a dissertação de mestrado que escrevo como resultado deste processo de pesquisa compromete-se num primeiro plano a refletir sobre essas atividades, de modo que todo o traçado epistemológico e metodológico foi desenhado a partir desta opção. Tomando a minha experiência participante e afetivamente comprometida na Marujada de São Benedito em Quatipuru, optei assumir a diluição da noção de objeto de pesquisa entre a minha percepção subjetiva e o meio externo do qual eu trato efetivamente para elaborar minhas reflexões. A partir dessa opção, é a noção de “trajeto antropológico” (Durand, 1997, p. 41) que fundamenta a não dicotomização da relação sujeito-objeto nesta pesquisa, bem como sua elaboração e aplicação conforme propõe Bião (2007, p. 21). Deste modo, é a narrativa de meus encontros e desencontros na Marujada, organizada em forma de leitura no sentido que pretende Barthes (2004a, p. 51), que permite a realização do objetivo fundamental desta dissertação: a escritura de uma leitura do sagrado na Marujada de São Benedito com ênfase nos aspectos arquetípicos que emanam, no sentido de energia das possibilidades de interpretação dos símbolos dos mascarados. Ressalto que esta leitura é a realização de uma escritura que tem como princípio motivador a experiência participante, portanto física, sensorial e amplamente afetiva na festa, o que compreendo como participação concreta no sagrado que envolve a Marujada de São Benedito. Ressalto também que a leitura como escritura elaborada a partir do trajeto considera como referência fundamental o contato afetivo
e intelectual com a professora Karine Jansen e sua tese de doutorado 3, agentes determinantes de minha entrada compreensiva no imaginário da Marujada de São Benedito em Quatipuru, conforme indicarei em diversos momentos no corpo do texto. No primeiro capítulo, intitulado “Por um referencial poético-epistemológico: princípios de leitura de um trajeto”, estabeleço um primeiro e determinante momento de, num nível teórico, definição dos pilares epistemo-metodológicos que organizam a pesquisa. Inspirado nas reflexões de Armindo Bião (2007) sobre a etnocenologia e sua relação com a noção de trajeto antropológico em Durand (1997), especialmente na implicação do sujeito no objeto de pesquisa e o franco aproveitamento das apetências e competências do pesquisador no encaminhamento de sua pesquisa, estruturo-me a partir de uma visão não-cartesiana (COUTINHO; SANTOS, 2010) da epistemologia que organiza este processo de pesquisa. De modo a elaborar um trajeto claro da escolha desta opção, discuto a necessidade de relativização de princípios duros das epistemologias cartesianas especialmente no contexto da pesquisa em artes e humanidades. Noto que toda a elaboração teórica deste capítulo acompanha o ir e vir da narrativa de minha primeira experiência na Marujada de São Benedito e seus impactos como elementos motivadores deste processo de pesquisa, de modo que é a partir dessa exposição que o capítulo culmina na noção barthesiana de leitura como caminho pelo qual seguirei com mais tranquilidade em relação ao meu limite de contribuição sobre a Marujada de São Benedito em Quatipuru. No segundo capítulo, intitulado “O mar em chamas de São Benedito: uma imersão mitológica”, dou início à minha leitura da Marujada de São Benedito considerando em nível simbólico e arquetípico as emanações que provêm da festa no culto ao santo preto. A leitura é organizada fundamentalmente a partir do referencial constituído pela professora Karine Jansen em sua tese de doutorado “Um fogo que se deita no mar: um estudo sobre a Marujada do município de Quatipuru do Estado do Pará” (2008). O título deste capítulo referencia via paráfrase a tese da professora Karine Jansen, pois sua reflexão está a ela filiada, ampliando-a e alargando o horizonte dos aspectos simbólicos primeiramente identificados pela autora. A leitura por mim estruturada fundamenta-se, também, em aspectos teóricos dos estudos sobre o 3
Intitulada “Um fogo que se deita no mar: um estudo sobre a Marujada do Município de Quatipuru do Estado do Pará”, a tese de doutorado defendida em 2008 pela professora Karine Jansen constitui o único documento acadêmico que se debruça sobre a Marujada de São Benedito em Quatipuru. Esta tese é uma etnografia densa da Marujada, situando de maneira global todos os momentos que constituem a festa, tanto do ponto de vista estrutural quanto simbólico, inclusive no que diz respeito aos mascarados, que compõem efetivamente o meu recorte nesta dissertação. Contudo, conforme justificarei no decorrer do texto, não fiz uso do método estritamente etnográfico, escolha feita pela professora Karine Jansen.
mito de Mircea Eliade (s/d; 1996) e da psicologia analítica (JUNG, 2008; BOEACHAT, 2008; VON FRANZ, 2008), o que permite compreender o que chamo de “imersão mitológica” como uma rota de acesso à Marujada que leva em conta o contato sensível e direto com os símbolos e elementos arquetípicos percebidos a partir da leitura sobre o universo mítico que envolve São Bendito como centro simbólico de comoção afetiva coletiva na festa. Neste capítulo desenvolvo a discussão teórica sobre os elementos destacados a partir da leitura de sonhos e elementos míticos de diferentes tradições, focalizando essas reflexões para a percepção da mitologia que envolve São Benedito especialmente nas histórias contadas sobre os feitos do santo em Quatipuru. Se tal escolha, por um lado revela uma dinâmica específica relativa ao culto de São Benedito no contexto cultural, por outro, revela também elementos arquetípicos imbricados nessas narrativas, ou seja transpessoais e passíveis de emparelhamento com diversos símbolos presentes em diferentes culturas pelo mundo. No terceiro capítulo, intitulado “O primeiro dia da festa: leitura de uma etnoaventura4”, inicio a leitura das diversas potencialidades simbólicas que atravessam a brincadeira dos mascarados. De modo a efetivar esta leitura, ressaltando a compreensão dos mascarados como parte de uma engrenagem ritual que os inclui como articuladores de vigorosas energias arquetípicas que atravessam o sagrado na Marujada, este capítulo narra a dinâmica de levantamento e derrubamento dos mastros que estabelecem simbolicamente o tempo-espaço da festa entre os dias 18 e 27 de dezembro. Posteriormente, no quarto capítulo, intitulado “Os mascarados: o último dia da festa”, focalizo enfaticamente a brincadeira dos mascarados, que acontece especificamente no dia 27 de dezembro. Durante quatro anos pude participar de diversas etnoaventuras na festa até a escritura desta dissertação. A leitura é organizada partir da narrativa de fragmentos de minha experiência participante na Marujada e do emparelhamento com outros elementos simbólicos externos à Marujada, mas que ajudam a perceber a força arquetípica das dinâmicas rituais, especialmente no contexto da leitura das motrizes culturais afro-brasileiras (LIGIÉRO, 2011).
4
O termo etnoaventura é utilizado ludicamente como forma de referenciar a experiência da participação na Marujada de São Benedito em Quatipuru como um encontro do pesquisador com o outro, constituindo um confrontamento com a alteridade que, no meu caso, em forma de ressonância, tal qual discuto posteriormente nesta dissertação, abriu-me possibilidades de vinculação afetiva e simbólica com a festa. Neste caso minha implicação como sujeito é narrada como uma aventura, uma jornada de encontro com o outro, a alteridade. Assim, tal qual considera Bião (1999, p. 17), o prefixo “etno” é aqui utilizado não no sentido original designando raça, mas sim referenciando a diversidade cultural humana.
Esta dissertação de mestrado inclui em arquivo anexo um filme realizado por Rodolfo Mendonça e que contou com a parceria e apoio técnico-operacional de todas as pessoas que citei nominalmente acima. Este filme também é tomado por mim como um dos resultados deste processo de pesquisa e meu objetivo com sua anexação é a inclusão de uma via de fruição da Marujada a partir de um potente canal sensorial aberto pela conjugação de imagem e som. Além da dissertação de mestrado e do filme, este processo de pesquisa inclui inúmeros outros resultados concretos que se alastraram e se alastram constantemente como ondas agitadas em um lago profundamente afetado pela intervenção de uma pedra atirada. As ondas geradas pela pedra que penetra no lago e se aloja no seu fundo possuem direções incalculáveis e seus efeitos na dinâmica do lago são imensuráveis. Durante um bom tempo desta escritura mantive meu coração apertado por julgar que eu precisava dar conta de todo o movimento gerado pelo processo de pesquisa, mas na finalização deste ciclo, na escritura desta dissertação de mestrado, percebo que isto é absolutamente impossível e contento-me com o calor que aquece o meu coração, mesmo que em segredo, é a essa chama que eu devo meu respeito e honra. Salve São Benedito, que ele nos guarde a cada palavra cravada nesta escritura.
CAPÍTULO I POR UM REFERENCIAL POÉTICO-EPISTEMOLÓGICO: PRINCÍPIOS DE LEITURA DE UM TRAJETO
Neste capítulo elaboro conceitualmente a proposta epistemo-metodológica que fundamenta a escritura desta dissertação. Paralelamente, escrevo a narrativa de meu primeiro encontro com a Marujada de São Benedito em Quatipuru, de modo a estabelecer o impacto afetivo da experiência participante como fator estruturador das opções e reflexões teóricas que compõem este trabalho acadêmico.
1.1.
LANÇAR LUZ SOBRE A PRÓPRIA ERRÂNCIA COMO PONTO DE PARTIDA “Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, acorda.” Jung
Paul Feyerabend afirma despudoradamente no índice analítico de seu livro/tratado Contra o método (2007, p. 29): “O ponto de vista implícito neste livro não é resultado de uma bemplanejada cadeia de pensamentos, mas de argumentos instigados por encontros acidentais”. O “acidental”, de algum modo, está incorporado ao seu processo de trabalho, num espírito livre e libertário, a meu ver. Feyerabend é certamente um dos maiores inspiradores de minha escrita e prática de pesquisa, assim como também o é o psicólogo suíço Carl Gustav Jung que, com menos irreverência que o filósofo austríaco, estruturou uma teoria que se propõe a dar conta de numerosos aspectos que envolvem a noção de acidental. Jung refletiu sobre o que comumente se considera como acaso, considerando a palavra em sua familiaridade de sentido com o “acidental”, mas com ênfase na ideia de que o acaso encerra acontecimentos vivenciados devido a certa atração realizada por nós, como se esses acontecimentos ocorressem a partir de uma lógica que compreende o contexto do indivíduo, o que estaria no
cerne do sentido das coincidências significativas. A discussão sobre as chamadas coincidências significativas constituem um inventário experiencial que serve à elaboração da noção de acontecimentos sincronísticos, fundamentando a teoria da sincronicidade. Trata-se da última grande contribuição de Jung para a psicologia, sendo um conceito controvertido, forjado durante décadas de pesquisa. O ensaio “Sincronicidade – um princípio de conexões acausais” é o único texto que aborda efetivamente a teoria da sincronicidade na obra de Jung. Na sua introdução, o autor já adverte o leitor de que se trata de um tema absolutamente árido e que apesar de já o acompanhar durante anos em suas reflexões, somente após décadas de pesquisa e experiência com acontecimentos sincronísticos é que ele poderia esboçar alguma teoria sobre o conceito. Considerando o enorme cuidado e a humildade de Jung ao tratar da sincronicidade, não me proporei aqui a expor esmiuçadamente as questões que estruturam a formulação do termo, bastando a elucidação de alguns aspectos referentes à sincronicidade que se mostraram importantes para a compreensão de meu processo de pesquisa. Do ponto de vista metodológico, como um bom conservador que era, Jung debruçou-se sobre o tema da sincronicidade de modo a aproximar sua exposição ao modo científico o máximo possível, apropriando-se de procedimentos e métodos característicos do modelo da ciência baseada na epistemologia cartesiana e elegendo prioritariamente uma abordagem empírica baseada em cálculos estatísticos. Como já foi dito anteriormente, os aspectos científicos da concepção da sincronicidade não me interessam nesta dissertação, bastando, em vez disso, acompanhar a narrativa de uma experiência vivenciada por Jung para dar início à compreensão da sincronicidade: No dia primeiro de abril de 1949 anotei o seguinte: Hoje é sexta-feira. Teremos peixe no almoço. Alguém mencionou de passagem o costume do “peixe de abril”. De manhã eu anotara uma inscrição: Est homo totus medius piscis ab imo (o homem todo é peixe pela metade, na parte de baixo). À tarde, uma antiga paciente, que eu já não via desde vários meses, mostroume algumas figuras extremamente impressionantes de peixes que ela pintara nesse entretempo. À noite, mostraram-me uma peça de bordado que representava um monstro marinho com figura de peixe. No dia dois de abril, de manhã bem cedo, uma outra paciente antiga, que eu já não vira desde vários anos, contou-me um sonho no qual estava à beira de um lago e via um grande peixe que nadava em sua direção e “aportava”, por assim dizer, em cima de seus pés. Por esta época, eu estava empenhado numa pesquisa sobre o símbolo do peixe na História. Só uma das pessoas mencionadas tinha conhecimento disso. [...] Para completar o que acabo de dizer, gostaria de mencionar que escrevi estas linhas à margem de nosso Lago [Lago de Zurique]. Assim que terminei esta frase, dei algumas passadas sobre a
amurada do Lago: ali encontrei um peixe morto [...]. O peixe era o sétimo da série (JUNG, 2011, p. 18-19).
Sendo assim, gostaria de completar esse belo exemplo de série curiosa de acasos com o desenho que fiz na primeira aula que assisti no Instituto Junguiano da Bahia, onde fui aluno do curso de extensão “Fundamentos da Psicologia Junguiana” em 2011, justamente numa aula que versava sobre a sincronicidade.
Figura 2 – Meu peixe. Desenho de Thales Branche (2011).
Segundo o próprio Jung, o caso apresentado não pode ser considerado como representante da categoria dos acontecimentos sincronísticos, devendo ser encarado como uma sucessão de eventos causais. Porém, é interessante notar que apesar de não se tratar de um caso efetivamente elucidador do que vem a ser a sincronicidade, Jung, mesmo assim, o coloca no hall de casos curiosos para pensar sobre estranhas sucessões de acontecimentos aparentemente casuais, ou seja, supostamente obra do acaso, mas que por sua serialidade geralmente condensada num curto espaço de tempo superam os limites da probabilidade. Jung considera o caso do peixe como um caso duvidoso, pois se trata de uma sucessão de eventos acausais, ou seja, que se estabelecem para além do princípio da causalidade baseado na dicotomia causa/efeito. A teoria da sincronicidade de Jung sugere que essa sucessão de eventos acausais podem estabelecer entre si conexões cruzadas de significado, em que eventos aparentemente desconectados podem ser ligados por um significado atribuído pelo sujeito que participou desses eventos. Num sentido estrito, a sincronicidade é “[...] a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo [...]” (ibid., p. 35). Esta simultaneidade pode se expressar de
maneira imediata5, ou não, como se dá, por exemplo, em numerosos casos em que o sujeito sonha com um acidente que logo em seguida se concretiza. Nesse caso, o acontecimento pode ser considerado sincronístico pelo fato de o sonho antecipar o acontecimento físico numa dimensão psíquica, gerando uma misteriosa coincidência. A sincronicidade, então, se estabelece como possibilidade de relativização do tempo pelo psiquismo, pois uma circunstância real que está para se dar é, como no exemplo do acidente, antecipada no nível psíquico por um sujeito. A ideia de relativização do tempo evidencia a filiação da teoria da sincronicidade com os princípios da física moderna que, entre suas várias contribuições, admitiu que a natureza não é governada por leis absolutas imutáveis, havendo espaços desconhecidos em que a racionalidade humana de nada serve para sua compreensão. Esses espaços do desconhecido foram intensamente explorados por Jung em toda sua trajetória e a teoria da sincronicidade talvez seja a coroação de seu conjunto de contribuições para os estudos da psique humana, pois aborda meticulosamente um grande número de eventos que, por não constituírem “regra”, ou seja, por estarem envoltos na aura do extraordinário, não são objetos da reflexão científica, que tem na observação controlada do experimento o seu maior instrumento de realização. Porém, para além do sentido estrito da sincronicidade exposto acima, Jung sugere que ainda há muito a ser explorado sobre esse tema, e é Murray Stein (2006), um grande leitor da obra de Jung, que aborda claramente a sincronicidade como um espaço revelador da face metafísica ou mesmo mística de Jung, aspecto que ele sempre negou. Ampliando o sentido da sincronicidade para além do estritamente definido pelos acontecimentos sincronísticos, é possível pensar o mundo objetivo como extensão da psique humana: A psique, definida por Jung como quaisquer conteúdos ou percepções que sejam capazes, em princípio, de tornar-se conscientes e ser afetados pela vontade, inclui a consciência do ego, complexos, imagens arquetípicas e representações de instintos. Mas arquétipo e instinto per se deixa de ser psíquicos. Situam-se num contínuo com o mundo físico, o qual, em suas profundidades (como exploradas pela física moderna), é tão misterioso e “espiritual” quanto a psique. Ambos se dissolvem em pura energia. Este ponto é importante porque envolve uma forma de conceber a psique que está relacionada com o soma e com o mundo físico. Os dois domínios, a psique e 5
Como exemplo de acontecimento sincronístico em que a simultaneidade entre estado psíquico e acontecimentos se expressa de forma imediata, vale lembrar o clássico caso do escaravelho de ouro que ocorreu durante uma sessão de análise entre Jung e uma paciente rigidamente racional e com sérias dificuldades de liberação de suas potencialidades criativas, intuitivas e emocionais. A paciente contava-lhe um sonho em que recebia de presente um escaravelho de ouro; exatamente nesse momento Jung capturou em pleno voo um escarabeídeo da espécie Cetonia aurata, o besouro rosa comum, que se debatia na janela do consultório. Ele teria se dirigido à sua paciente com o besouro na mão, dizendo: “Aqui está o seu escaravelho”. Este caso é descrito pelo próprio Jung em seu ensaio “Sincronicidade: um princípio de conexões acausais” (2011).
o mundo material, podem ser unidos por equações matemáticas e por “postulados empiricamente deduzidos – arquétipos”. Tanto o corpo material quanto a psique não precisam ser derivados um do outro. São, antes, duas realidades paralelas que estão sincronicamente relacionadas e coordenadas (STEIN, 2006, p. 185).
Essa tese encontra ressonância também com as perspectivas que a física moderna, especialmente o pensamento quântico, traz como novo paradigma. A partir de uma visão quântica, toda a existência do universo surge do mítico big-bang em que uma única partícula explodiu e se expandiu e continua se expandindo dando forma a tudo o que existe desde o início dos tempos até hoje. Nesse sentido, o universo que o pensamento racional humano insiste em discriminar em categorias é, na verdade, uma coisa só que permanece e sempre permanecerá em expansão: trata-se da noção de unus mundus, frequentemente aludida na obra de Jung. Nesse contexto, a sincronicidade revela momentos em que o sujeito pode experimentar a unidade de seu psiquismo com o mundo físico. Ou seja, o mundo físico encarado como exterior, nos momentos em que experimentamos a sincronicidade, coincide significativamente com estados psicológicos interiores. Isto implica dizer que a coincidência entre mundo físico e estado psicológico interior faz com que surjam conteúdos significativos e transformadores do self (si-mesmo), estrutura transpessoal que reside na região mais profunda da psique humana, segundo a psicologia junguiana. Apesar do self se referir a um espaço que aparentemente reflete a experiência subjetiva, na perspectiva junguiana quão mais profundamente o sujeito mergulhar em si mesmo, mais ele entrará em contato com as zonas transpessoais do inconsciente coletivo, a grande morada dos arquétipos que tem como arquétipo central o próprio self, que para Jung é a imagem arquetípica de Deus. Para Murray Stein (2006), a compreensão do conceito de sincronicidade pode ser expandida à experiência de contato do sujeito com o chamado “conhecedor desconhecido” (p. 188), outra imagem do self. Ou seja, a sincronicidade ativa uma sabedoria interna que se estende e tem como parte de si o próprio mundo, o que, na realidade, se dá pelo que Jung (2011, p. 29) afirmou como a característica transgressora de transferência que o arquétipo pode assumir. Isso significa que o arquétipo pode, ocasionalmente, durante os períodos em que dá a sincronicidade, transgredir os limites da psique humana e se expressar no mundo físico, de modo que “Ingressar no mundo arquetípico de eventos sincronísticos gera a sensação de se estar vivendo a vontade de Deus.” (STEIN, 2006, p.194).
Ao compreender a psique humana em interação e mesmo em conexão orgânica com o mundo físico, o conceito de sincronicidade dissolve a tradicional e engessada barreira da dicotomia sujeito / objeto, o que se dá, sobretudo, nesses eventos em que o sujeito entra em contato com o que Jung chamou de numinoso, que é a própria experiência do sagrado. Ao vivenciar a sincronicidade, fatalmente o sujeito sai transformado, e essa ação transformadora é uma das características básicas da própria sincronicidade (STEIN, 2006). Assim, o símbolo do peixe, imagem aquática ligada ao inconsciente coletivo, sempre figurado por Jung como um mar profundo, atravessou a experiência de Jung de seus estudos ao mundo físico se realizando como símbolo da minha própria entrada no universo dessa complexa e magnética teoria. O próprio Jung (2011) considera a afetividade como elemento catalisador da sincronicidade, pois quando o sujeito está emocionalmente investido há uma baixa da faculdade normal da mente e é possível experimentar um contato muito mais profundo com o inconsciente, o que se traduz num estado alterado de consciência que caracteriza numerosas situações, entre elas o sonho, o devaneio e mesmo a experiência e expressão artísticas na cena. É a partir desse gancho que considero a narrativa de minha aproximação com o que a essa altura do texto ainda chamo entre aspas de “objeto” como elucidadora da experiência de contato com o sagrado na Marujada de São Benedito em Quatipuru, sobretudo pelas numerosas possibilidades de perceber em diversos momentos o íntimo contato com o mundo arquetípico no mundo físico, daí a necessidade de eu recorrer frequentemente às imagens simbólicas como forma de compreensão da experiência. O que proponho como caminho para a compreensão da Marujada de São Benedito se estrutura a partir de um olhar pessoal, em que me coloco como sujeito pesquisador implicado afetivamente no “objeto” de pesquisa. Nesse sentido, minha alternativa para não recair numa fala demasiadamente autocentrada está justamente no apoio teórico da teoria psicológica junguiana e em noções e conceitos advindos da antropologia que contribuem no sentido de um conhecimento construído numa via subjetiva, mas que direciona uma visão necessariamente coletiva das realidades pesquisadas. Referenciado em Feyerabend, Juremir Silva propõe uma epistemologia anárquica em que o pesquisador “[...] utiliza todos os instrumentos, técnicas e métodos para chegar a respostas provisórias sobre questões definitivas e que o obcecam” (SILVA, 2003, p.87). Alargando esta percepção, Juremir Silva lança um olhar sobre o imaginário articulado à tradição de autores como Gaston Bachelard, Michel Maffesoli e Gilbert Durand, que em As estruturas antropológicas do imaginário, o seu trabalho mais expressivo, elabora uma complexa teoria do imaginário a partir da interpretação do jogo de cartas do Tarô. Tomo a anarquia
epistemológica de Feyerabend e as noções de imaginário propostas por Juremir Silva como bases teóricas que fundamentam a interpretação do que vivi em campo. Nesse sentido, a pluralidade metodológica que Feyerabend propõe articula-se de modo a potencializar a noção de imaginário em Juremir Silva, basicamente, a “[...] ‘bacia semântica’ que orienta o ‘trajeto antropológico’ de cada um na ‘errância’ existencial.” (2003, p.14). A noção de “errância” em Juremir Silva é elaborada fundamentalmente pela leitura da noção de “trajeto antropológico” em Gilbert Durand, que basicamente consiste na “[...] incessante troca que existe ao nível imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 1997, p.41). É importante ressaltar que, assim como a sincronicidade de Jung, a noção de trajeto antropológico igualmente suplanta a separação dicotômica entre sujeito e objeto, considerando, antes disso, que há, sim, uma constante troca, ou seja, interação entre os conteúdos subjetivos e as emanações objetivas, o que me serve para pensar que qualquer prática de pesquisa se elabora por meio da consciência do trajeto antropológico do sujeitopesquisador, o que vale, sobretudo, para as pesquisas que se desenvolvem nos eixos de artes e humanidades. Assim, a errância em Juremir Silva é, antes de tudo, o modo pelo qual se estrutura o imaginário, sendo ela “[...] assimilação, apropriação, distorção e acaso” (SILVA, 2003, p. 14). Interessante também é perceber que a leitura de Juremir Silva sobre o trajeto antropológico pela noção de errância incorpora o erro ao trajeto. Nada mais adequado a uma epistemologia experimental que o autor busca constituir no campo das artes, em que cada processo de pesquisa pode ser vivenciado como experimentação, ou seja, um salto no desconhecido, através da ideia de que o experimento não pode ser controlado pelo laboratório vivo do mundo. Pensar na relação do sentido de errância com o de imaginário sugere uma perspectiva necessariamente aberta do pesquisador em relação ao seu objeto. Afinal, sobretudo quando se trata da pesquisa em artes e humanidades, é necessário considerar que o objeto pesquisado frequentemente compreende outros sujeitos que possuem referências imaginárias próprias, que no processo de pesquisa interagem numa fricção salutar com as referências do pesquisador. Desse modo, errâncias distintas dançam na pesquisa, que se torna uma zona de contato e intersecção.
Daí, a graça e o perigo iminente do estudo do imaginário: remontar os caminhos pelos quais se estrutura o imaginário do outro é uma tarefa quase impossível, pois esse caminho não se dá de forma linear, mas entre as idas e vindas que caracterizam a complexidade e a contrariedade6 intrínseca ao ser humano. Em vez de evidências, o pesquisador tem pistas que se espalham pela realidade e que se inscrevem subliminarmente nos objetos culturais, ou seja, como texto, a narrativa do vivido. Nesse sentido, em conformidade com Juremir Silva, o estudo do imaginário só pode ser uma aproximação, uma possibilidade, uma interpretação. E sendo assim, não há caminho certo, não há caminho sem erro, há errância. De agora em diante narro a história de meu encontro com a Marujada de São Benedito em Quatipuru, história de minha errância. O meu ponto de partida é o estranhamento em relação à entrada num mundo outro que eu julgava não ser meu e que inversamente permitiu o meu reencontro comigo mesmo e com o sagrado em mim.
1.2.
NARRATIVAS DO VIVIDO: TRAJETO E IMAGINÁRIO
Quando cheguei a Quatipuru7 pela primeira vez, de algum modo, eu já conhecia aquele lugar. Em dezembro de 2008 eu fui a Quatipuru a convite de uma pessoa fundamental em minha formação como artista e pesquisador, a professora da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA) e diretora de teatro Karine Jansen. Karine havia concluído naquele ano de 2008 o seu doutoramento em artes cênicas com uma pesquisa que versava sobre a Marujada de São Benedito em Quatipuru. Como um de seus resultados, a professora montou um espetáculo chamado “O império de São Benedito”, encenado pela primeira vez em 2007, no Teatro Porão “Puta Merda” 8, que se situa na casa da
6
Sobre a contrariedade, Umberto Eco (2005), ao discutir a interpretação sob a perspectiva da história, remonta aos princípios do pensamento hermético, que sustenta a contrariedade como qualidade natural de todo símbolo, numa abordagem não-dicotômica que acolhe a ambiguidade como característica humana. 7 Quatipuru é sede do município de mesmo nome, autônomo desde 1994, situado no interior do Estado do Pará, distante aproximadamente 270 km da capital do Estado, Belém, com cerca de 12.000 habitantes, existindo como povoado e posteriormente distrito de outros municípios desde 1869. 8 Em Belém do Pará, o Teatro Porão “Puta Merda” se insere num contexto histórico e político de resistência da classe artística contra uma política cultural que na década de 1980 ignorava as demandas da classe não disponibilizando espaços adequados para a apresentação de obras cênicas. Essa contingência fez com que grupos de teatro ocupassem praças e outros espaços públicos na rua para suas apresentações. Em paralelo a esse movimento, alguns grupos organizaram suas apresentações nos porões de antigos casarões remanescentes em de uma Belém histórica. O movimento identificou a prática desses grupos como Teatro de Porão. Informações detalhadas e específicas sobre o Teatro de Porão e sua importância estética e política podem ser encontradas na
também professora da ETDUFPA e diretora de teatro Wlad Lima, grande parceira de Karine. Encenado num porão, ou seja, inserido numa atmosfera que propunha desde a entrada na “sala de espetáculo” certo estranhamento. Em sua “Poética do Espaço” (1978), Gaston Bachelard se debruçou sobre os diferentes espaços que compõem a casa para constituir um amplo espectro de imagens simbólicas reveladoras de conteúdos que o autor chama de “trans-subjetivos”. Considerando os elementos que o filósofo francês traz para uma compreensão do trans-subjetivo, que, de certo modo, corresponde ao que Jung chamou de transpessoal, é possível pensar na casa como “[...] um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade” (BACHELARD, 1978, p. 208), ou seja, a casa simbolicamente corresponde ao espaço da segurança, um ambiente cômodo e controlado em que o acolhimento e certa previsibilidade que lhe são característicos. Porém, mesmo sendo “casa” uma imagem que remonta ao sentido supracitado, no interior do símbolo reside justamente o seu oposto, o que pode ser percebido na contemplação do conteúdo simbólico do porão, que é “[...] em primeiro lugar, o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas.” (ibid., p. 209). Ao ingressar no porão de Wlad para assistir àquele espetáculo, de certa forma, eu ingressava também nesse espaço simbólico do subterrâneo, do inconsciente, como já dito anteriormente, a morada dos arquétipos. Nesse sentido, adentrei muito mais do que num simples porão, era o mundo físico encenando meus processos internos. Devido à estrutura física do espaço, o espetáculo recebia 15 pessoas por vez; nos primeiros meses, o público era composto apenas de convidados, entre amigos, grupos de teatro e lideranças ligadas ao movimento negro e a religiões afro-brasileiras9. Em conversas informais, Karine revelou essa opção por se tratar de um objeto que naquele momento ainda não tinha natureza exclusivamente estética, não estando destinado apenas à contemplação do público, mas também para uma apreciação que visava contribuir para o processo de pesquisa, naquele momento, em andamento.
tese de doutorado da professora Wlad Lima, intitulada: “O teatro ao alcance do tato: uma poética encravada nos porões da cidade de Belém do Pará” (2008). 9 Não estou certo de que o termo genérico “religiões afro-brasileiras” expresse efetivamente a diversidade dessas religiões, pois ele mesmo pode sugerir certa homogeneidade. Porém, na falta de outro termo melhor, permanece o “afro-brasileiro”. Em Belém, especificamente, temos a presença majoritária de terreiros de Umbanda e Tambor de Mina, em suas diversas linhas e variações.
Eu assisti ao “Império de São Benedito” juntamente com o grupo de teatro do qual fazia parte naquele momento, os “Palhaços Trovadores”, que em seus 13 anos de estrada tem como diretor artístico Marton Maués, professor da ETDUFPA, diretor de teatro e um pai simbólico para mim. Esse contexto é importante para situar a formação de minha “bacia semântica” sobre o teatro, pois as referências que compunham meu imaginário foram alimentadas intensamente por esses artistas e pesquisadores da cultura e das artes cênicas. O imaginário, apesar de possuir nuances subjetivas, é sempre elaborado em face à coletividade do qual é originário. Assim, participar de um espetáculo que de algum modo levava uma pesquisa acadêmica à cena para mim era uma grande emoção, porém, antes de entrar no porão propriamente, ainda no quintal de Wlad, eu não sabia que estava prestes a me deparar com um mundo outro que viria a abalar o meu próprio mundo. Uma imagem enorme de São Benedito, com cerca de meio metro de altura, se impunha na entrada do porão. Um a um, espectadores saudavam a imagem e atavam nós às fitas de cetim amarradas ao santo, posteriormente adentrando o porão. Atei também um nó em uma das fitas e fiz um pedido, cujo conteúdo não lembro mais, e já sentindo algo de estranho por certa claustrofobia, entrei no porão e assisti a um dos espetáculos mais lindos que já vi. Três atores interpretavam diversos personagens daquela Quatipuru imaginária em tempos da festa em honra a São Benedito. O espetáculo encenava o mito de São Benedito como elemento estruturador de um imaginário até então alheio a mim. Aquele São Benedito cultuado em Quatipuru não era o mesmo que eu conhecia das Igrejas e da tradição católica na qual fui criado, o santo cozinheiro, exemplo da mais profunda humildade e parcimônia. Aquele era um São Benedito outro, imponente, forte, de algum modo colérico e até vingativo. As diversas histórias contadas me divertiam e me encantavam na descoberta daquele Glorioso São Benedito que eu desconhecia, e que mais à frente viriam me surpreender com o inimaginável: São Benedito em Quatipuru também é Verequete10, um vodum11: uma imagem sobreposta a outra, um cruzamento de imaginários. Ali eu conheci Quatipuru pela primeira vez. De algum modo, fruto de um encontro acidental, como são os encontros, mas um encontro que mobilizou em mim o desejo de me entranhar nessa história.
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Verequete é também um grande mestre de carimbó quatipuruense conhecido em todo o Estado do Pará. Segundo os estudos de Karine Jansen em sua tese de doutourado, baseados nos trabalhos de Sérgio Ferreti e Mundicarmo Ferreti, os voduns são divindades cultuadas na atual África Ocidental, especificamente na República do Benim e, no Brasil, na região de São Luís do Maranhão e especialmente no nordeste do Estado do Pará. 11
Proponho uma suspensão da narrativa para uma inscrição teórica que mobiliza interpretações. Para Juremir Silva (2003), há três passos básicos que devem orientar o processo de pesquisa do imaginário: o estranhamento, em que: O sujeito torna-se narrador por um choque perceptivo que o afasta do conhecido e o situa, então, como narrador. [...] Nesse sentido, a condição inicial da narratividade é sempre passional, empática, afetiva, pessoal. O narrador nasce de um desequilíbrio, o choque que lhe afeta a ponto de incitálo a querer levantar o véu do familiar ou da distância cultural. Esse choque se caracteriza, essencialmente, pela determinação a pôr-se no lugar do outro para melhor senti-lo e descrevê-lo (ibid., p.84).
O conceito de estranhamento em Juremir Silva para mim funciona como a própria descrição do momento epifânico em que sou fecundado pelo desejo de conhecer. Para o autor, os dois outros passos, por assim dizer, do processo de pesquisa sobre o imaginário consistem no entranhamento, o “mergulho total no outro [...], quando [o sujeito-pesquisador] se dilui no imaginário investigado, antes de retornar a si [...]” (ibid.). Segundo Juremir Silva (2003), é da dialógica entre estranhamento e entranhamento que culmina a posterior volta a si, o desentranhamento, a partir do qual se pode desenvolver uma abordagem compreensiva de qualquer fenômeno. Do momento em que assisti ao espetáculo de Karine ao momento em que iniciei propriamente esta pesquisa muita coisa aconteceu. Pouco depois de me alimentar de um imaginário novo sobre aquele encantador “O império de São Benedito”, ganhei uma bolsa de iniciação científica no curso de Letras da UFPA, em que orientado pelo professor José Guilherme Fernandes passei a realizar uma pesquisa sobre narrativas orais na região de Bragança, município próximo de Quatipuru. Em Bragança, também há uma Marujada de São Benedito e meu objetivo era desenvolver como Trabalho de Conclusão de Curso uma pesquisa sobre o culto do santo em Bragança. Era como se eu estivesse sendo atraído por algo. Porém, devido à necessidade de adiantar um semestre de meu curso para me graduar mais rapidamente, na iminência de ser chamado para tomar posse num concurso público em que eu havia passado, abandonei o tema por outro que pudesse ser desenvolvido com mais velocidade. Nessa noite, então, sonhei com São Benedito12. Em sonho, eu estava numa tempestade em alto mar, num pequeno barco que era invadido rapidamente pela água. Eu, desesperado, me
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A narrativa de sonhos que insiro no texto desta dissertação se dá pela concordância com princípios da psicologia analítica de Jung sobre a compreensão das dinâmicas que envolvem a psique. Sob esta perspectiva, os sonhos, ou pelo menos o que se pode lembrar deles, constituem poderosos produtores de símbolos que situam
esforçava para me manter na embarcação que era castigada por um mar feroz. E, enquanto quase me afogava naquela situação terrível, eu via uma pequena imagem de São Benedito que, a despeito da tempestade incrível, se mantinha fixa no barco. Com dificuldade, eu abria bem os olhos e via claramente aquela expressão rígida do santo, seus olhos eram de fogo, e ele me olhava fixamente com se estivesse me reprovando. Acordei sobressaltado e certo de que São Benedito não havia gostado de eu tê-lo abandonado como tema! De algum modo, esse sonho denota um nível de entranhamento num imaginário que até então não me dizia respeito, afinal, São Benedito me apareceu em sonho para me castigar. São Benedito como um santo perigoso e vingativo para os que não o tratam com respeito e honra é um elemento de um imaginário que eu havia acessado por meio da experiência estética com o espetáculo de Karine, mas agora eu já estava completamente comprometido, absolutamente imbuído de uma nova potencialidade imaginária. A experiência no “Império de São Benedito” fez com que despertasse em mim um potencial imaginário que até então eu desconhecia. Defendi meu TCC com uma imagem de São Benedito na camiseta e nas minhas primeiras palavras contei a história para a banca e pedi licença ao santo para fazer a apresentação. Como membro da banca estava Karine que, no final de minha apresentação, já em meados de dezembro de 2008, viria me convidar para passar uns dias em sua casa em Quatipuru, para que eu pudesse ver a Marujada e me resolver com São Benedito. E eu estaria prestes a fazer a minha primeira viagem de pesquisa, ainda sem pretensões acadêmicas, mas com grandes ressonâncias dali em diante. No dia 26 de dezembro de 2008 cheguei a Quatipuru. Karine já havia partido para a cidade bem antes de mim, pois, na verdade, eu não avisei que chegaria: tive um impulso em Belém e simplesmente fui, confiando que ainda seria recebido mesmo sem ter confirmado o convite. Eu não sabia onde era exatamente a casa de Karine, e não tinha como ligar para ela, porque em Quatipuru não havia sinal da maior parte das operadoras de celular. Então saí perguntando para as pessoas na rua se sabiam onde era a casa daquela professora de Belém, aquela que estava fazendo uma pesquisa sobre a Marujada. Alguns perguntavam: “A que fez o filme?”, e eu “isso!”. Karine também fez um documentário sobre a festa da Marujada e exibiu para a comunidade em certo momento, o que deu a ela a projeção pública que me ajudou a encontrála. conhecimentos sobre o inconsciente pessoal e coletivo. Desse modo, considero a narrativa dos sonhos nesta dissertação como parte da elaboração e reflexão sobre o trajeto antropológico que me liga como sujeito e pesquisador ao meu “objeto de pesquisa”.
Karine se surpreendeu com a minha chegada, mas me recebeu com muito carinho. Naquela noite, ela viria a me contar várias histórias de sua empreitada em Quatipuru. Na casa também estavam alguns artistas de Belém que ajudaram Karine na pesquisa, e entramos pela madrugada conversando longa e deliciosamente sobre aquela festa, aquelas pessoas. Ainda sem muita consciência, eu já estava começando um exercício de campo, agora já alertado para alguns elementos que estruturavam as relações daquela comunidade na festa, coisas simples, mas fundamentais, por exemplo: mulheres só entram de saia no barracão, portanto, Danielle, amiga que me acompanhava na viagem, já estava alertada. Na hora de dormir, na minha rede atada na sala, ainda imaginava num certo frenesi o que viveria, o que encontraria no outro dia. Sentia uma felicidade imensa por estar ali; e, enquanto olhava uma imagem de São Benedito, agradecia por estar ali. Tomamos café todos juntos pela manhã e eu viria a aprender algo que pratico religiosamente até hoje: após passar o café, é fundamental dar o cafezinho do santo, numa xícara que é só dele e que fica ao lado de sua imagem. Outra coisa, São Benedito é um santo cozinheiro, então, o melhor lugar para se tê-lo é mesmo na cozinha, que se converte num espaço de agregação e, com a presença do santo, de certa ritualização do cotidiano, uma relação com a espiritualidade que se dá de modo horizontal em determinadas práticas, entre elas o dançar para o santo na Marujada de São Benedito em Quatipuru. A compreensão dessa questão aponta para um interesse orientador de meus objetivos de pesquisa: eu, como estrangeiro àquele contexto, me surpreendia e me surpreendo ainda com certos modos de experimentação da espiritualidade incorporados ao viver e à própria festa da Marujada como manifestação da cultura de quem cultua São Benedito em Quatipuru. Trata-se do estranhamento como primeiro passo de que já falamos, concepção que se relaciona com a proposta da etnografia como método, sobretudo na perspectiva de Clifford Geertz (1989), que sugere um olhar eminentemente interpretativo para as práticas culturais, tomadas como redes de significados complexas e estruturadas, segundo lógicas internas nem sempre visíveis ao olhar estrangeiro. Assim, Geertz (1989, p. 32) sugere que a etnografia não deve se propor a estudar as “aldeias”, mas sim nas “aldeias”. Em conformidade com essa ideia, a terminologia de Graziela Rodrigues (2007) em que co-habitar com a fonte, é, por assim dizer, um passo mínimo em direção à elaboração de um trabalho etnográfico. Nesse sentido, a experiência de assistir ao espetáculo de Karine e de ouvi-la longamente em suas histórias sobre Quatipuru obviamente não pode ser compreendida como uma forma de
experimentar a festa em si. Porém, foi a forma pela qual eu pude dar continuidade ao acesso ao imaginário que envolvia aquela festa, podendo estabelecer uma relação respeitosa com ela, sobretudo no que diz respeito à percepção de alguns de seus lugares do sagrado. No fundo, falar sobre imaginário é sempre um esforço frustrado se o que se busca é a compreensão de uma verdade objetiva. Para Juremir Silva (2003), citando Maffesoli, o imaginário é o espaço do imponderável no espírito humano. Porém, para o mesmo autor é por meio do imaginário que o indivíduo pode efetivamente deixar a solidão para ser inserido numa atmosfera de partilha. Se as noções de imaginário por vezes me apontam caminhos que parecem obscuros demais, penso que as noções de cultura, sobretudo num sentido antropológico podem equilibrar essa questão. Entre imaginário e cultura a diferença é bastante tênue, mas determinante. O imaginário atua como uma “[...] represa de sentidos, de emoções, de vestígios, de sentimentos, de afetos, de imagens, de símbolos e de calores” (SILVA, 2003, p. 14), elaborando-se como matriz da cultura e força-motriz modificadora desta. Ou seja, o imaginário é compreendido na cultura, mas é também capaz de modificá-la como força criativa que é. Nesse sentido, penso que seja necessário manter uma dinâmica entre o ir e vir, entre o imponderável sensorial do imaginário e a suposta realidade objetiva e observável da cultura, sobretudo no olhar sobre os objetos culturais. Naturalmente, trata-se de um processo complexo que não se dá de forma absolutamente controlável e organizada, pois, sobretudo quando se está “sensivelmente acordado”, imaginário e cultura coincidem. Assim, já num processo de imersão paulatina no imaginário da festa da Marujada de São Benedito, eu iria experimentar, naquele dia posterior a uma noite fertilmente imaginativa, a festa no corpo. Pela manhã, antes de sairmos propriamente de casa para o cortejo, presenciei uma cena que remontou às histórias de Karine, mas que dessa vez eu pude apreciar bem na minha frente. Karine, que também adotou o procedimento etnográfico em suas pesquisas em Quatipuru, encontrou como forma de aprofundar suas relações com a festa a participação como maruja, ou seja, integrante do corpo dançante da Marujada. Na verdade, a presença feminina na Marujada no corpo de marujas é esmagadoramente superior à presença masculina (também há marujos), sendo a festa enfaticamente realizada por mulheres13. Ser maruja envolve uma série de elementos relativos a processos complexos de 13
Nos dias 25, 26 e 27 a Marujada sai às ruas nos tradicionais cortejos dançados. O cortejo é acompanhado pelo povo que observa a rua ser colorida por duas filas lideradas pelo capitão, Seu Pedrinho e a capitoa, D. Luíza (lideranças rituais na festa) que se situam ao centro das filas. Há uma ordem que é organizada principalmente
identificação e afeto que podem ser tema de diversas teses de doutoramento, mas que não poderei explorar neste texto. Basta dizer que ser maruja representa um acolhimento coletivo, um fazer parte, que impacta afetivamente de modo efetivo quem coloca a roupa e o chapéu de maruja pela primeira vez. Digo isso com base nas conversas que tive com Karine, com Ester Sá, atriz que também esteve envolvida de modo profundo no processo de pesquisa, e com base no que vivi ao ver Ester colocar o chapéu de maruja pela primeira vez em Danielle, que ficou extremamente emocionada. Foi Karine que se esforçou para arranjar saia e chapéu de maruja para Danielle, num gesto generoso de tentar dar a quem quer que chegasse ali a oportunidade de experimentar numa outra profundidade física aquela festa. Como disse anteriormente, há uma grande complexidade no “ser maruja”. Ser maruja é se paramentar, se enfeitar, embelezar o próprio corpo para o agrado do espectador principal da festa que é o próprio santo. Nesse sentido, há também certa vaidade no ato, um se sentir bela, um orgulho de ser, de dançar para o santo. Desse modo, algo mágico aconteceu quando Ester colocou o chapéu em Danielle, um gesto que naquele momento se envolveu de uma potencialidade misteriosa, como uma espécie de coroação e rito de iniciação num mundo outro até então desconhecido.
pela capitoa que posiciona nos primeiros lugares da fila, as marujas mais velhas, e por último as marujas crianças. Depois das mulheres, a fila é organizada com os marujos mais velhos à frente e por último os marujos crianças. Acompanhando o cortejo transversalmente em relação às filas paralelas de marujas e marujos, seguem os tamboreiros, os músicos da festa. Quantitativamente, o número de participantes dos cortejos e das danças que acontecem no barracão varia em cada dia de festa. Porém, é possível observar a maioria feminina entre uma média de 50 a 60 marujas para 15 a 20 marujos. O número de tamboreiros também pode variar sensivelmente, mas é constituído por uma média de oito músicos. Informações precisas sobre as dinâmicas que envolvem cada função na Marujada podem ser encontradas na tese de doutorado de Karine Jansen (2008), conforme indicado na seção de referências deste trabalho.
Figura 3 – Danielle recebendo o chapéu de maruja pela primeira vez. Foto: Thales Branche (2008).
O chapéu de maruja é feito comumente de papel machê e ornamentado com fitas coloridas e penas brancas de pato que simulam flores, o que pode variar em relação a uso de materiais. Esse chapéu tem um peso que, no momento em que a pessoa o coloca na cabeça, produz imediatamente um efeito de alteração do equilíbrio natural do corpo. Pesa o chapéu, e, de algum modo, me parece que pesa também sobre a cabeça-corpo de quem o usa a tradição da Marujada, a cultura, o imaginário, o próprio santo preto, o glorioso São Benedito, o maior homenageado naqueles dias de festa. Saímos logo em seguida para encontrar o cortejo com todas aquelas outras marujas que eu só imaginava, só conhecia das fotos, dos vídeos. Num instante, aquelas três mulheres tão conhecidas minhas se integrariam no corpo da Marujada, e perderiam por algum tempo suas individualidades para assumir o corpo coletivo das marujas, um grupo de mulheres diferentes, cada uma com sua errância, mas que durante a festa da Marujada de São Benedito colorem a cidade de dança, música e fé.
Figura 4 – A Marujada na rua. Foto: Thales Branche (2008).
Acompanhei o cortejo das marujas pelas ruas de Quatipuru, fotografando aquela marcha colorida que coloca todos os moradores da cidade atentos nas portas de suas casas por onde a Marujada passa. Um costume dos dias em que a Marujada sai pelas ruas em cortejo é o de se fazer uma pausa no quintal de alguma casa para um lanche, regado à comida e bebida, o que é fundamental para o descanso das marujas, sobretudo as que são mais velhas, e para a sombra necessária para esfriar qualquer corpo que sustenta o sol amazônico na cabeça. Porém, naquele dia especificamente, já era quase meio-dia e casa alguma havia preparado uma recepção para as marujas, o que gerou um grande transtorno nas filas de marujas. Quando Karine foi comunicada do que estava acontecendo, decidiu rapidamente fazer ela mesma a recepção das marujas em sua casa. Então, ela, Ester e Danielle saíram do cortejo para trabalhar nos preparativos improvisados para a recepção das marujas. André Mardock, ator e companheiro de Ester, igualmente envolvido nas pesquisas de Karine em relação à Marujada, e eu nos juntamos às meninas para organizar a recepção. Em cerca de meia-hora compramos litros de água, refrigerante e vinho, além de pães e biscoitos para o lanche. A Marujada é de São Benedito, então durante todo o tempo em que as pessoas estiveram na casa de Karine, a despeito do calor que fazia naquela manhã, passamos continuamente café, um símbolo forte que aprendi a reconhecer como parte da devoção do santo, afinal foi com Karine e especialmente com Ester que aprendi a oferecer o café ao santo todas as vezes que tomo o meu café. Esse gesto incorporou-se profundamente no meu cotidiano e mesmo quando não estou na minha casa e não posso encher a xícara de café que
fica ao lado da minha imagem de São Benedito na minha cozinha, eu ofereço o café do santo internamente enquanto bebo. Assim, São Benedito sempre está comigo no café. Uma emoção enorme nos tomava enquanto preparávamos aquela recepção e quando vi eu estava em Quatipuru, re-conhecendo aquele mundo imaginário, e estava de volta a um quintal, o quintal da casa de Karine, não mais na espera para entrar no espetáculo que me abriria para essa realidade imaginária de São Benedito, mas para receber a Marujada do santo, como quem recebe um ente da família.
Figura 5 – A Marujada no quintal de Karine. Foto: Thales Branche (2008).
A Marujada encheu o quintal de alegria. As pessoas conversavam, comiam, bebiam, fumavam, tocavam e dançavam: faziam a festa. Eu, como músico que também sou, fiquei com as mãos coçando para tocar também, e acabei acompanhando no pandeiro o seu Bichinho, tocador de rabeca, em vários ritmos como xote, choro, valsa e retumbão, tradicionalmente executados durante os cortejos e danças da Marujada. Com o interesse despreocupado de apenas estar ali, aproveitando o momento, eu pude sentir a Marujada em sua complexidade; tudo se apresentava à minha frente de uma só vez. Algo aqui e ali me chamava a atenção, mas definitivamente naquele momento (e tampouco agora) eu não saberia dar sentido àquele caleidoscópio de informações.
No meio da festa, depois de tocar e dançar o carimbó14 na roda que se formou, percebi que um grupo de pessoas folheava um exemplar da tese de doutorado de Karine. As pessoas se divertiam vendo a si próprias e seus conhecidos nas fotos. Naturalmente, naquele momento ninguém parou para ler a tese, mas rememorar essa cena me faz pensar sobre a responsabilidade de escrever sobre algo tão representativo para o outro, afinal, mesmo que pouco a pouco o pesquisador se aproprie de algum modo do objeto de sua pesquisa para si, o que penso ser muito saudável quando a relação de troca é verdadeira, o objeto, neste caso, a festa, não pertence ao pesquisador. De todo modo, essa divagação nem merece tanto espaço agora, e, naquele momento, aquelas pessoas estavam mesmo adorando ver-se ali no “livro”. Limpar a casa depois da festa foi um trabalho que só viríamos ter mais tarde, pois, depois dali, seguiríamos para o barracão, onde foi servido o tradicional almoço das marujas. O almoço das marujas é realizado basicamente a partir de doações dos ingredientes, sendo servido em grandes mesas posicionadas no barracão em que se tem o centro da festa, por assim dizer. É um momento de grande integração comunitária em que as pessoas se juntam num gesto que considero ancestral: o sentar à mesa para comer. O ato de comer junto me liga imediatamente às práticas de integração em minha família, em que basicamente toda reunião se dá associada a uma refeição, seja ela café-da-manhã, almoço ou janta. Durante a Marujada, todos ali estão juntos também com um propósito apenas, louvar São Benedito. Segundo Karine Jansen (2008, p. 17), a Marujada de São Benedito como performance tem como espectador principal o próprio santo. Esse sentido é reforçado em todos os momentos da festa, sobretudo no dançar para o santo. Ou seja, aquele almoço quem come é o próprio corpo da Marujada, as pessoas que fazem e participam da festa, e aquela comida toda de algum modo é para o santo, é como se o santo também comesse por cada um envolvido ali, naquele momento. Fui posicionado na mesa das marujas, o que me gerou um grande constrangimento, mas aproveitei o almoço, que por sinal estava delicioso, percebendo o clima constante de riso e intimidade que aqueles momentos me inspiravam. Possivelmente, minha percepção estava comprometida demais com meu encantamento pela festa, mas acredito ser válido ressaltar essa percepção, pois ela foi real, foi o que senti. E sendo “real”, de algum modo ela também
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O carimbó é considerado um ritmo típico do Pará, não se apresentando em toda a extensão do Estado, mas assumindo sentido simbólico de ícone da “cultura paraense”, mesmo nos espaços em que não possui fortes vínculos de tradição.
estava comprometida com um imaginário que hoje me esforço para perceber de que forma se estrutura. Juremir Silva afirma: “Todo imaginário é real. Todo real é imaginário” (2003, p. 7), e o faz na frase que inicia a seção em que se propõe a conceituar “imaginário”. Parece uma brincadeira com o leitor, e, na verdade, não estou convencido de que não seja. Porém, entendo sua afirmação no sentido de evidenciar a relação intrínseca entre real e imaginário. A compreensão do real se dá por vias que remontam ao imaginário, afinal “Não há vida simbólica fora do imaginário” (ibid.). Compreender, interpretar, realizar uma etnografia é antes de tudo um esforço no sentido da construção ficcional, “[...] ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento.” (GEERTZ, 1989, p. 26). Geertz vai mais longe afirmando que um romance como Madame Bovary não difere de uma descrição etnográfica pelo seu caráter de ficção, mas sim por suas diferentes condições de criação e enfoque, para não falar de sua “maneira” e “qualidade”. Ainda não cheguei ao fim da história, minha narração pára no ponto em que, depois daquele almoço, Karine me apresentaria a Seu Pedrinho e, sem me avisar, pediria que eu saísse de mascarado logo mais naquela tarde. O projeto de pesquisa que deu origem a esta dissertação de mestrado resulta fundamentalmente de um momento epifânico vivenciado por mim naquela tarde. Ser mascarado transformou profundamente meu olhar, no que se refere ao que eu chamava de formas de expressão da cultura popular. Essa transformação do olhar mobilizou, por sua vez, a reestruturação de toda uma forma de fazer pesquisa; agora, para além do olhar, eu tenho, pelo menos, o sentir, o cheirar, o degustar e mesmo o sonhar como verbos representativos do ato de pesquisar, que estruturo a partir de uma epistemologia colorida com o signo do afeto.
1.3.
INSPIRAR SOB A MÁSCARA: O SABER QUE BROTA DO CORPO
Entre a tarde e a noite do dia 27 de dezembro de 2008, precisamente no lusco-fusco de um sábado, dia do descanso de Deus, eu vivi a Marujada de São Benedito em Quatipuru como mascarado. Três anos se passaram desde aquela experiência determinante em meu trajeto artístico e acadêmico. Seria depois dali, já de volta à minha casa em Belém, e, de algum modo, de volta à minha casa interior, que me perceberia profundamente inspirado e com um
desejo enorme de canalizar aquele sentimento em um projeto de pesquisa. Na segunda-feira eu começaria a escrever o anteprojeto de pesquisa de mestrado para a seleção do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA. Na sexta-feira, depois de organizar referenciais teóricos, documentos e certificados apressadamente, me inscrevi para a seleção. Não fui aprovado. Mas o “estrago” já estava feito e eu não conseguiria mais abandonar a ideia de realizar a pesquisa. Bons ventos sopraram e cá estou na Bahia concluindo mais um capítulo dessa história com a escrita desta dissertação. Escrevo e nas minhas orações eu peço força a São Benedito, para que eu dê conta de descrever sua festa com as honras merecidas. Naquele 27 de dezembro, pouco depois do almoço das marujas, quando efetivamente estive mais próximo do povo que faz a festa, sentado à mesa num gesto familiar de integração que dali em diante seria aprofundado, Karine, em conversa com Seu Pedrinho, atualmente capitão da Marujada15, pediria para que André Mardock e eu participássemos da saída dos mascarados. Não sei em relação a Mardock, mas Karine não me havia avisado que sugeriria que eu saísse de mascarado naquele dia. Fui surpreendido e, enquanto conversávamos com Seu Pedrinho, não pude esconder o meu espanto. A despeito disso, o Seu Pedrinho foi extremamente receptivo e falou até que nos ajudaria arrumando roupas adequadas e máscaras, se não as tivéssemos. Às quatro da tarde deveríamos estar na casa de Seu Chá, que naquele ano assumiria a guarda dos mascarados, que até então era de Seu Pedrinho. Na casa de Seu Chá teríamos uma espécie de concentração dos mascarados, onde, na prática, já se inicia o jogo. Voltamos para casa e começamos a procurar entre a nossa bagagem roupas e tecidos que pudessem servir como indumentária e máscara para a nossa saída. Enquanto isso, eu ia tentando controlar a ansiedade provocada pelas horas que antecediam aquela experiência. Como meu objetivo com esta dissertação compreende elaborar uma leitura da participação dos mascarados na festa, neste momento do texto é suficiente dizer que eu já conhecia relativamente as regras do jogo pelo contato com Karine. Então, sabia que, basicamente, o jogo dos mascarados é o único momento da festa em que estão “ao centro” exclusivamente
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Uma pessoa pode ocupar diversos lugares na festa da Marujada; neste momento do texto, talvez baste dizer que no ano de 2008 o Seu Pedrinho participava como marujo, dançando no cortejo que sai às ruas e nos momentos de dança no barracão, e estava passando a guarda dos mascarados para o Seu Chá. O responsável pelos mascarados tem, basicamente, a função de coordenar o grupo que sairá nas ruas fazendo a brincadeira; trata-se de uma função que necessita, portanto, de certa liderança e experiência na festa. Atualmente o Seu Pedrinho é capitão da Marujada, uma função vitalícia e, de alguma forma, representante da guarda da tradição na festa. Depois da capitoa, de fato, a grande liderança da Marujada, o capitão é a posição de maior prestígio, e o posto mais alto que pode ser ocupado por um homem na festa.
homens, que se dividem entre o que em meus familiares termos teatrais eu chamaria de “personagens” de Nêgo Chico e Catirina, como na brincadeira do Boi-Bumbá. Nesse sentido, já imaginava que os mascarados representavam, de certo modo, o ponto cômico e ao mesmo tempo o que eu considerava caótico da festa, quando homens mascarados vestidos em trajes rotos e improvisados saem pelas ruas da cidade conduzidos pelo cortejo das marujas e “aterrorizando” as crianças com grunhidos ininteligíveis e armados com ripas feitas de galhos de cuieira16 descascados, tudo a partir da convenção clara de que se trata de uma brincadeira. Assim, a brincadeira se desenvolve até a chegada ao espaço dos mastros, que, ornamentados de presentes, são escalados pelos mascarados em suas peconhas17, quando se dá o lançamento dos presentes no povo que se esbofeteia no desejo de conseguir alcançar aqueles “prêmios”. Nesse momento, um grupo de mascarados faz um círculo de proteção em torno do mastro, enquanto um deles sobe para buscar os presentes. É uma grande brincadeira, e eu, como ator, participava como mascarado com a intenção única de jogar o jogo. Porém, esse estado lúdico, em mim, fora quebrado no momento em que um presente caiu dentro do círculo de proteção dos mascarados, ou seja, muito próximo do mastro. Ao ver um presente sem dono, no chão, o público invadiu o espaço que nós, os mascarados, reserváramos para o que eu compreendia como nossa “atuação”, e houve uma cena violenta na tentativa de contenção do público enlouquecido. Entre gritos e risos eu acabei levando duas fortes pauladas na cabeça. O autor do ataque foi um dos meus colegas mascarados, que, como eu, também tentava conter o público. Naquele momento, abandonei o estado de jogo, e percebi que estava numa situação de risco; só me restou dar vazão ao instinto de auto-preservação, e lá se foi meu trabalho de ator. Em casa, passado o sufoco, percebi a profundidade daquela experiência, que funcionou como principal impulsionador do trabalho de pesquisa que agora realizo. Para meu olhar estrangeiro, de ator formado em uma tradição baseada em moldes e experiências estruturadas fundamentalmente num parâmetro outro, a brincadeira dos mascarados beirava a selvageria ao aproximar de maneira tão enfática o riso de um jogo violento. Digo isso porque, naquele
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Crescentia cujete: árvore comum na região. Seu fruto é posto para secar depois de retirada a polpa para a feitura da cuia, que pode ser utilizada de diversas formas, especialmente como recipiente em que se toma o tacacá, bebida típica da região Norte do Brasil. 17 A peconha é um instrumento rudimentar utilizado por diversas populações amazônicas na escalada de árvores, especialmente da palmeira do açaí, sendo construída, comumente, por pedaços flexíveis de casca de árvores, palha trançada ou cortes de sacas de carvão.
momento, eu estava absolutamente tomado por uma concepção de riso fundada nos princípios éticos e estéticos da técnica do clown, que se filia a um modelo europeu que, em minha compreensão limitada, sublimava instâncias menos líricas das possibilidades de riso. A aparente selvageria do riso na brincadeira dos mascarados é um ponto de partida para a percepção de que, na realidade, o imaginário no qual está imersa a Marujada de São Benedito em Quatipuru comporta dimensões simbólicas diferenciadas do modelo ao qual eu estava acomodado, transformando, consequentemente, a noção de riso. Em outras palavras, não entendi a piada, porém, algo em mim foi mobilizado com aquela experiência. Aquelas pancadas na cabeça coincidiram simbolicamente com as pancadas que recebi em minha consciência, e, num repente, eu acordei. Iniciando efetivamente a reflexão que fundamenta minha escrita sobre a festa, retomo a ideia de que a base epistemológica que sustenta este trabalho parte de um princípio que acolhe o “acidental” não como “mera coincidência”, mas como coincidência significativa e transformadora das minhas perspectivas como sujeito pesquisador. A consciência da sincronicidade se funda na aceitação da acausalidade, portanto da relativização do império da racionalidade pautada no princípio da causalidade. Uma sucessão de eventos não relacionados causalmente me levou até a Marujada de São Benedito, onde eu experimentei o sagrado de uma forma completamente não programada que me motivou a realizar esta pesquisa de mestrado. Afirmo, com isso, que a pancada que recebi no plano físico coincidiu com uma pancada simbólica que eu recebi no nível mais sutil de mim mesmo. Segundo a perspectiva de Jung sobre a sincronicidade, esse acontecimento talvez não possa ser considerado exatamente um evento sincronístico, sobretudo pelo fato de não estar envolvida estritamente uma simultaneidade entre um acontecimento psíquico e outro físico que dá vistas à relativização da noção de tempo e espaço. Porém, o evento supracitado provocou em mim um efeito absolutamente transformador, de modo que conforme um dos aspectos que envolvem a sincronicidade, eu posso dizer que vivi uma experiência do numinoso, ou seja, do sagrado, pois pude entrar em contato de forma física e afetiva com a poderosa tradição dos mascarados, experimentando na pele e no espírito a Marujada de São Benedito.
1.4.
SOBRE
A
NECESSIDADE
EPISTEMOLÓGICOS CARTESIANOS
DE
REVISITAR
OS
PARÂMETROS
De modo a sustentar um marco teórico coerente, alguns aportes são necessários. Esta pesquisa se elabora a partir de estreita relação com a antropologia, e em grande parte com a antropologia interpretativa de Clifford Geertz (1989), em que a análise cultural é um objetivo básico de qualquer pesquisa dessa natureza. A análise cultural em Geertz tem um caráter enfaticamente interpretativo, em que o antropólogo, via etnografia, descreve em densidade contextos culturais alheios ao seu, numa postura compreensiva em relação ao objeto de sua investigação: A análise é, portanto, escolher entre as estruturas de significação – o que Ryle chamou de códigos estabelecidos, uma expressão um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de códigos, quando na verdade ele é muito mais parecido com a do crítico literário – e determinar sua base social e sua importância (1989, p.19).
Mais uma vez Geertz aproxima o antropólogo ao âmbito da literatura e da arte. Portanto, o antropólogo age como um crítico literário, ou seja, um sujeito que se relaciona com uma obra no sentido de interpretá-la, compreendê-la, e mesmo de identificar nela os elementos estruturais e discursivos pelos quais ela se organiza, e, além disso, como um narrador, numa atividade próxima a do romancista. Ele atua no campo da ficção, onde se constroem os sentidos. Porém, apesar da incrível sensibilidade de Geertz e de sua contribuição inestimável para os rumos da antropologia contemporânea, ainda é o termo “análise” que nomeia o procedimento pelo qual se dá a práxis do antropólogo. Ora, o sentido de análise de que Geertz fala não é o mesmo daquele utilizado nos tradicionais (ou convencionais) métodos do trabalho científico, mas penso que é importante cuidar do léxico acadêmico, de modo que possa expressar de forma mais apropriada as intenções do próprio pesquisador. Nesse sentido, o que a palavra “análise” traz em sua história trai os objetivos do próprio Geertz. Se o trabalho de pesquisa acadêmico toma como veículo de seus conteúdos prioritariamente a linguagem verbal, a fala metalinguística que aqui desenvolvo é válida do ponto de vista epistemológico, pois é a partir dessa reflexão que podemos alargar a consciência sobre possibilidades e limites de uma pesquisa na academia. Aprofundando a reflexão sobre a palavra, em sua Aula (2004), Barthes realiza uma espécie de balanço de numerosos elementos conceituais elaborados em seus escritos, e acaba trazendo à tona, de forma irônica e sarcástica, um discurso desestruturador de modelos do contexto universitário europeu. Barthes utiliza um tom professoral para subverter a própria cultura professoral. Nesse jogo de levantar o véu das estruturas dominantes, Barthes é taxativo em relação à língua: “Assim que ela é
proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço do poder” (ibid., p. 14). Tomo a língua, então, como sistema simbólico organizado, portanto, representação da cultura, ou seja, espaço em que se encenam lutas sociais. Desse modo, a língua guarda em si, em sua inserção no mundo, questões profundas sobre a forma com a qual a sociedade se organiza e se desorganiza: [...] os signos de que a língua é feita, os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua. Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito (BARTHES, 2004, p. 15).
Num movimento metonímico revelador de minhas perspectivas epistemológicas nesta pesquisa, vale uma apreciação mais cuidada da palavra “análise”. Segundo o Dicionário Etimológico (CUNHA, 1986), a palavra “análise”, derivada do latim analysis, guarda um sentido ligado à ação de decomposição de um todo em suas partes, em seus componentes. O que corresponde a um processo de fragmentação do objeto comum aos métodos empregados em pesquisas científicas tradicionais, observado claramente no texto de Antônio Severino (1996) acerca dos processos lógicos de estudo: A análise é um processo de tratamento do objeto – seja ele um objeto material, um conceito, uma idéia, um texto, etc. – pelo qual este objeto decomposto em suas partes constitutivas, tornando-se simples aquilo que era composto e complexo. Trata-se, portanto, de dividir, isolar, discriminar (ibid., p. 157).
Na definição de Severino, elementos relativos a um método de pesquisa científica baseado numa racionalidade cartesiana se fazem presentes de forma evidente. Assim, a fragmentação do objeto como etapa de sua compreensão se realiza como um processo lógico relativamente comum às ciências, podendo ser considerado um pré-requisito para a classificação, outra forma de organização racional extremamente cara a esses métodos. Classificações certamente ajudam-nos a compreender o mundo em que vivemos. Porém, acredito que nem seja necessária muita argumentação para concluir que é necessário flexibilizar a verdade das classificações. Em síntese (outro processo lógico dos métodos tradicionais em ciências), a análise serve a uma tentativa de organizar o mundo de forma mais
simples, com vistas à possibilidade de elaborar classificações. Porém esse processo não passa de uma forma de olhar entre outras, pois o mundo é complicado e levemente caótico, e apesar do enorme esforço para encaixotá-lo, essas teorias que se vendem como absolutas têm seus limites, pois se fundam numa compreensão a meu ver defasada de ciência. A palavra “análise”, no processo metodológico da pesquisa acadêmica, remonta a todo um arsenal simbólico que pesa como história impressa na própria palavra. Não quero com isso dizer que sou contra o procedimento da análise, ou mesmo que não me servi deste procedimento. Em vez disso, proponho a reflexão sobre a palavra com o objetivo de limitá-la, flexibilizá-la para que ela possa atender efetivamente aos meus objetivos nesta pesquisa. Se eu procedesse a uma análise da Marujada de São Benedito em Quatipuru no sentido de fragmentar a festa em diferentes momentos, tomando por simples o que é complexo, acredito que estaria incorrendo num erro de abordagem. Escrevo sobre os mascarados, mas não posso esquecer em momento algum que, por mais que representem o momento enfaticamente cômico da festa, eles também a compõem de forma orgânica. Afirmo com isso que o riso instaurado pela brincadeira dos mascarados ainda comporta o sentido ritual de louvor a São Benedito, não constituindo, assim, uma ruptura com algo que representa, para mim, o eixo da festa, a devoção ao santo preto. Na relação que estabeleço com a Marujada não cabe a pretensão de uma “análise” que se mostre como discurso científico que diz o que é a verdade sobre a Marujada, como ela se organiza, o que ela significa. Esse não é o meu objetivo, daí a necessidade de relativização da palavra “análise”, sobretudo, em sua acepção no contexto. Ressalto que, quando falo em trabalho científico, refiro-me, especificamente, a uma noção cartesiana de ciência, pautada numa supervalorização da racionalidade e consequente arrogância por parte de quem se impõe como cientista. Uma boa síntese do que trato pode ser observada na Metodologia do Trabalho Científico de Severino (1996): “O trabalho científico em geral, do ponto de vista lógico, é um discurso completo.” (p. 147). Partindo do pressuposto de que no século 20 houve uma grande expansão da produção de conhecimento no campo das ciências humanas, Coutinho e Santos (2010) veem no século 21 um momento de maturidade das pesquisas em artes e humanidades na academia, o que desestabiliza a hegemonia das ciências duras, tornando equivalentes seus reconhecimentos na sociedade. As autoras estabelecem uma leitura crítica das epistemologias cartesianas no que diz respeito à rigidez de preceitos cartesianos resumidos em: “[...] evidência; análise
(divisão); ordem; enumeração completa, sendo que todos esses preceitos partem da Dúvida metódica exaustiva que visa assegurar, no final, a Certeza.” (2010, p. 67; grifo meu). Responsável pela legitimação da ciência moderna, o método cartesiano propõe uma abrangência universal: “De acordo com a tradição cartesiana toda e qualquer pesquisa estaria inapelavelmente subordinada ao método científico.” (COUTINHO; SANTOS, 2010, p. 65). Considerando esse contexto ideológico e filosófico claramente delimitado, penso que a minha pesquisa, em sua especificidade, não se adequa a essas proposições. Assim, afasto mais uma vez os sentidos incorporados à palavra “análise” de meus objetivos, sobretudo pela evidência de que o significado matemático de análise observado na tradição cartesiana não se aplica ao meu desejo de dar vazão a uma escrita elaborada com a incorporação do sentido plural e complexo da Festa da Marujada de São Benedito em Quatipuru. Em sua Introdução a uma ciência pós-moderna, Boaventura de Sousa Santos (1989) toma Bachelard como teórico fundamental na ruptura com o modelo de racionalidade que prescreve a ciência moderna. Não por acaso, Coutinho e Santos (2010) e Sousa Santos (1989) recorrem a este autor para propor as epistemologias não-cartesianas no primeiro caso e uma ciência pós-moderna no segundo: [...] a ruptura bachelardiana só é possível dentro dum paradigma que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem; um paradigma cuja forma de conhecimento procede pela transformação da relação eu/tu em relação sujeito/objeto, uma relação feita de distância, estranhamento mútuo e de subordinação total do objeto ao sujeito (um objeto sem criatividade nem responsabilidade); um paradigma que pressupõe que a única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico, cuja validade reside na objetividade de que decorre a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética [...]; um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objetos, assim perdendo de vista a expressividade do face a face das pessoas e das coisas onde, no amor ou no ódio, se conquista a competência comunicativa [...] (1989, p. 34-35).
Assim, o intelectual português critica de forma eloquente uma das questões mais centrais da epistemologia cartesiana, o distanciamento como condição favorável para o bom funcionamento da relação sujeito/objeto. Pedro Demo (1978) aprofunda a crítica da atividade científica em palavras notadamente mais ácidas que as de Boaventura de Sousa Santos. Para Demo, a noção de ciência é claramente um processo social pelo qual um determinado segmento da sociedade, explicitamente o segmento dos cientistas, empenha-se em legitimar a si mesmo. Não existe para o autor um conceito de
ciência com o qual todos estão de acordo; existem numerosas versões que funcionam para legitimar esse ou aquele subgrupo de cientistas em relação aos seus pares no mesmo segmento e à sociedade como um todo. Demo realiza uma autocrítica profunda da atividade científica e da atividade do cientista, desmitificando-a em várias direções e, especialmente, ao comparar o trabalho do cientista ao de uma criança. Para mim, uma metáfora que pode ser inspiradora, mas para uma cultura científica dura e enrijecida, certamente uma agulha espetada no imenso balão de ego de muitos dos pares do próprio Demo. Perseguindo a ciência como construto social que serve sobejamente aos interesses dos grandes cientistas em suas torres de marfim (ou universidades), Demo (1978) tira a ciência do lugar especial em que foi colocada. A perspectiva de ciência como fenômeno processual em Demo se mostra eficaz para questionar e relativizar a metodologia do trabalho científico aos moldes cartesianos: Esta ótica afirma que a metodologia tradicional fundada na lógica formal não pode ser exclusiva. A lógica formal se caracteriza pela pretensão de poder elaborar um corpo acabado de “leis do pensamento”; tais leis seriam duradouras, formando, assim, um arcabouço externo ao sujeito e ao qual ele deveria se sujeitar, se quisesse fazer ciência. Seria uma instância norteadora externa, praticamente evidente, capaz de gerar a verdade, porque não depende da ideologia e do processo de formação histórica (ibid., p. 22).
Conforme nos permitem pensar as referências epistemológicas que trouxe até aqui, para além de ditames dos manuais, a autoridade da ciência, amparada na epistemologia cartesiana, escreveu uma história do conhecimento que precisa ser lida com crítica. A história a que me refiro está contida na palavra “análise”, como se a palavra fosse um recipiente que contém o remédio homeopático em que está milhares de vezes diluído o seu princípio ativo. Há quem diga que a homeopatia não funciona, mas o princípio ativo está lá, servindo de forma mais ou menos eficaz aos seus propósitos.
1.5.
NO PRINCÍPIO, A LEITURA: UMA ALTERNATIVA NÃO-CARTESIANA
Desconstruindo os sentidos da palavra “análise”, sigo brincando de palavras para encontrar o caminho justo entre o rigor da comunicabilidade acadêmica e o respeito pelo imponderável e inapreensível mistério da Marujada de São Benedito em Quatipuru. Claro que digo que estou brincando, e de fato só a leveza do menino brincando pode suavizar a gravidade de
estabelecer uma linguagem adequada diante da minha preparação talvez inadequada para esse propósito. Porém, se ser menino é ser leve, me permito também a liberdade da audácia, não a audácia motivada pelo orgulho, mas pelo desejo de iluminação. O texto que escrevo como dissertação de mestrado deve ter a clareza de uma reflexão, porém, como escritura de um processo de pesquisa que se arrisca entre jogos teóricos e intuições, ele é, sim, devaneio. Não o devaneio como fuga do real, conforme esclarece Bachelard (1996). O devaneio que mobiliza esta pesquisa e que se faz fundante em sua concretização é aquele que se elabora como criativo, como possibilidade de superação dos horizontes limitados da repetição convencional e confortável de conceitos e conjuros acadêmicos. Falo do devaneio poético, aquele que deve ser escrito, portanto, não o devaneio em si, aquele que se faz no espaço interior do corpo-mente do sonhador e que como experiência só a ele pertence. Interessa-me o devaneio que se faz escritura: “Todos os sentidos se despertam e se harmonizam no devaneio poético. É essa polifonia dos sentidos que o devaneio poético escuta que a consciência poética deve registrar.” (BACHELARD, 1996, p.6). No devaneio poético as imagens do sonhador se ordenam, se organizam, e podem ser compreendidas, a despeito de suas origens etéreas, fazendo com que o texto seja passível de comunicação. Partindo de uma ideia mais ou menos estabelecida do que vem a ser a etnocenologia como disciplina, ou seja, uma etnociência das práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, vale dizer que essa disciplina possui vários modos de se estabelecer como epistemologia, mesmo havendo entre esses modos contradições entre suas variadas formulações, como se houvesse “várias” etnocenologias. As inúmeras variantes dessas formas de ser da etnocenologia devem ser reconhecidas, porém não me dedicarei a explicitá-las aqui. Prefiro, em vez disso, focar a etnocenologia em sua potencialidade epistemológica de possibilidade de realização da pesquisa acadêmica na área de artes entre a criação e a crítica, entre a “criatividade científica e a criação artística” (BIÃO, 2007, p. 39). Uma etnocenologia que seja um alento para o pesquisador-artista, o artista-pesquisador: Do ponto de vista epistemológico [...] vale considerar quatro condições desejáveis para o bom, belo e útil desenvolvimento da pesquisa: a serenidade, a humildade, o humor e o amor. Vale, também, assumir a necessária implicação do sujeito, responsável pela generosa construção de um discurso sobre um trajeto que liga objetos a sujeitos, numa busca poética, comprometida e libertária (BIÃO, 2007, p. 33).
É nesse espaço profundamente humano que percebo a etnocenologia como epistemologia nãocartesiana, termo forjado por Bachelard e elaborado por Denise Coutinho e Eleonora Santos (2010): alternativa epistemológica para as pesquisa em artes. Sobre a concepção do termo “não-cartesiano” e sobretudo a presença simbólica do “não” incorporado ao conceito é interessante acompanhar a reflexão metalinguística das autoras: Proposição de caráter eminentemente lógico, engendra simultaneamente uma posição epistemo-metodológica complexa (não-trivial), formando um sistema aberto que, para além de definições e conceitos fechados e fixados na existência, dirige-nos para descrições e redescrições que caracterizam eventos ou fenômenos instáveis, abertos, sobredeterminados e para os quais valem os princípios de uma lógica não-clássica: a não-identidade, a contradição e o princípio do terceiro incluído (ibid., p. 70).
Com base numa articulação de interpretações da palavra “não” e de seus desdobramentos simbólicos a partir de Freud, Garcia-Roza e Eduardo Vidal, as autoras atualizam o termo “não-cartesiano” de modo a ampliar a possibilidade de abertura epistemológica para o campo da pesquisa em artes. Segundo as autoras, o prefixo “não” possui sentido absolutamente diferenciado do prefixo “anti”, que denota uma negação pela rejeição, ou mesmo exclusão. Nesse sentido, uma postura anti-cartesiana é totalmente diferente de uma não-cartesiana, pois enquanto a primeira exclui o sistema cartesiano e implicitamente o substitui por uma manifestação supostamente oposta, uma atitude não-cartesiana “[...] suspende e conserva os princípios cartesianos, num movimento paradoxal e complexo” (ibid., p. 71). A partir desse entendimento epistemológico, cada pesquisador pode construir o seu próprio “método” em relação às suas necessidades, ou seja, levando em conta o próprio trajeto como eixo delineador. O método cartesiano e seus procedimentos caem como regra absoluta, e se tornam caminhos possíveis como todos os outros que outrora estavam excluídos. Entretanto, um paradigma epistemológico fatalmente dirige a concepção sobre o método, que, a partir das considerações de Juremir Silva (2010), pode passar a ser considerado o caminho caminhado, pois seria o caminho feito para chegar a respostas às perguntas, o que o confere um caráter de mapa da jornada escrito pelo pesquisador, mas que só poderá ser completado ao final da empreitada: “Pode-se saber o caminho antes de a caminhada ter sido feita?” (ibid., p. 18). Tais ideias tornam o empreendimento acadêmico muito mais interessante, mas simultaneamente mais tortuoso, pois elas estão de acordo com a natureza contraditória e paradoxal do fazer artístico, mesmo quando este fazer não está diretamente implicado na prática acadêmica, como é o caso desta dissertação de mestrado. A perspectiva oferecida pelas
epistemologias não-cartesianas contempla a singularidade do fazer artístico e da presença da cultura artística no ambiente acadêmico em seus processos e objetos, o que permite o “[...] desenvolvimento de métodos coerentes com tais investigações” (COUTINHO; SANTOS, 2010, p. 71) aos pesquisadores. Assim, por mais que esse desenvolvimento seja lento ou atrapalhado, é necessário que ele seja contemplado, pois assim se podem sanar situações como as que frequentemente me deparei no processo de pesquisa quando em meio à angústia do acerto eu não tinha certeza de que caminho seguir; por outro lado, sabia muito bem que determinados caminhos não serviriam. Bachelard utiliza como epígrafe de sua introdução em A Poética do devaneio (1996) as seguintes palavras de Jules Laforgue: “Método, Método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente”. No inconsciente é que residem os sonhos, a paixões, as forças motrizes para a criação de muitos artistas. É nesse contexto que residem os princípios que regem este trabalho, e para que haja uma compreensão mais aprofundada do que entendo por “princípio”, vale considerar a contribuição de Sônia Rangel (2006, p. 312): “É aquela unidade molecular que ao ser retirada da obra e do seu pensamento lhe esvazia sentido, configuração, vitalidade. [...] Um princípio opera por uma didática da estética, de reconhecimento, aproximação, pulsão, desejo, compreensão, invenção”. É importante notar que Sônia Rangel trata o princípio sob a perspectiva da criação de uma obra artística, porém ressalto que o processo de pesquisa, sobretudo no momento de sua tradução em forma de texto, é também um processo criativo, que pode ser ordenado de forma diferente do que um processo criativo em artes, mas que também se constitui e se engendra a partir de princípios criativos. Assim, busco delinear os princípios desta pesquisa a partir da tomada da etnocenologia como epistemologia não-cartesiana, de modo a justificar a necessária implicação sujeito - objeto da pesquisa, que se torna ela mesma a própria expressão do trajeto de cada um, nesse caso o meu, na busca de uma compreensão amorosa da experiência que vivi em campo e que agora traduzo em texto. Traduttore, traditore, sim, e por isso mesmo, a despeito das aproximações que estabeleço com os conteúdos e procedimentos advindos do campo das ciências humanas e, em especial, da sociologia e da antropologia e suas variadas abordagens, o objetivo deste trabalho se afasta da já tão comentada análise, ou mesmo da estrita descrição etnográfica da experiência de campo. O que vivi como mascarado na Marujada de São Benedito em Quatipuru gerou em mim um desejo que não é o de explicar o que é a brincadeira dos mascarados. Nos primeiros
momentos deste processo, meu esforço maior foi o da simbólica escuta interior dos sons que reverberavam dentro de mim, pois de alguma forma, os sons que ouvi em Quatipuru me fizeram vibrar junto como se fôssemos um único instrumento. Identifico o fenômeno do harmônico como o meu princípio criativo fundante, pois é a música que exprime de forma mais adequada a minha forma de pensar-criar o mundo. O violão é o instrumento que me iniciou efetivamente como artista, e a partir dele eu vivi várias outras experiências artísticas não estritamente musicais, portanto é ele quem eu carrego comigo como imagem / símbolo do que sou. Quando uma nota é tocada em uma das cordas do violão várias outras vibram conjuntamente em frequências cada vez mais altas numa escala ascendente, são os chamados harmônicos. Uma nota tocada faz com que a outra reverbere, ou seja, apesar de nosso entendimento identificar apenas uma nota sendo tocada de cada vez, fisicamente, várias outras ressoam simultaneamente, inclusive notas que o ouvido humano nem é capaz de ouvir. Em conversas com Karine, ela me falou algumas vezes de um certo senhor que expressava sua relação com a Marujada falando sobre um efeito físico que ele sentia em si, precisamente quando o tambor da Marujada era tocado e, como se respondesse a um chamado, o seu peito vibrasse junto. Essa sensação de unidade que eu também pude e posso experimentar é tomada por mim como experiência do sagrado, o encontro com a ancestralidade, precisamente uma harmonia entre eu e instâncias que estão além de um entendimento racional e que só podem ser tratadas como símbolo, ou seja, materialização do mistério, cujo significado “nunca pode ser atingido pelo pensamento direto, nunca é fornecido fora do processo simbólico” (DURAND, 1988, p.16). Chego, assim, ao cerne de minha questão: se meu “objeto de pesquisa” se refere a um fenômeno tão impalpável como o processo simbólico pelo qual se dá a Marujada, como eu poderia estabelecer uma análise como objetivo final? Para além dessa perspectiva, o símbolo segundo Durand (1988, p. 21) é não-arbitrário, não-convencional, o que o difere do signo semiológico. Sob essa perspectiva, o significado do símbolo só pode ser acessado pela epifania, uma compreensão que se dá no contato / fricção entre significante e significado, o que nunca pode ser atingido pelo pensamento direto e nunca é fornecido fora do processo simbólico, daí a necessidade constante da criação de imagens e analogias para a tentativa de delinear o sentido do símbolo, que pela definição de Durand é um signo que remete a um indizível e invisível significado.
Tomando o símbolo e sua epifania como parâmetros de percepção, é pela imaginação simbólica que encaro a realidade do “[...] significado não mais absolutamente representável [...]” (DURAND, 1988, p. 13); sendo assim, só resta uma escrita não-analítica para buscar uma compreensão do “objeto”. Afinal, se significado e significante do símbolo permanecem em relação constante na epifania, ele é sempre um todo, sem possibilidade de fragmentação. Assim, de modo a resolver essa tensão, Durand (1988) afirma que uma das funções do símbolo é justamente a transcendência; portanto, é por esse viés que se encaminha o meu objetivo de constituir uma leitura, em vez de uma análise da Marujada de São Benedito em Quatipuru e seus mascarados. A noção de leitura que tomo emprestado do campo das letras é compreendida por mim a partir da inspiração que os próprios antropólogos oferecem. Como já apresentado anteriormente, o próprio Geertz (1989, p. 26) ao falar da prática antropológica da etnografia, a aproxima do que faz um crítico literário, ou um escritor. Neste caso, a conexão existente entre etnógrafo, crítico literário e escritor se dá pelo sentido de ficção, que em sua etimologia de origem grega fictio, significa construir. Num sentido discursivo tem-se a noção de verdade gravemente relativizada, pois toda fala, seja ela oral ou escrita, passa por uma seleção que leva em conta numerosos aspectos que vão desde o contexto no qual se fala até as intenções do falante, o que permite concluir que toda fala é parcial, toda fala é ficção, sendo construída segundo determinados objetivos que são, conscientemente ou não, percebidos pelo falante. Essa percepção de maneira alguma vai de encontro ao que Geertz traz em sua teoria sobre a antropologia interpretativa; antes, ela a reforça, pois para o autor esta antropologia está ancorada no objetivo último da análise cultural, considerando uma abordagem semiótica do conceito de cultura, a prática da pesquisa deve tomar o homem como um animal “[...] amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu [...]” (1989, p. 15), o que põe o antropólogo fora do paradigma experimental de orientação cartesiana de busca de verdades e leis, mas no paradigma de “[...] uma ciência interpretativa, em busca do significado” (ibid.). Assim, a abordagem interpretativa da cultura se aproxima da abordagem interpretativa da literatura, mais especificamente da interpretação literária; porém, não se trata de igualar esses dois espaços que são diferenciados, mas sim de aproximá-los de modo a, neste caso, tornar mais fluída e justa a prática antropológica, que, assim como no campo da interpretação literária, também lida como objetos culturais, observados numa noção mais abrangente do conceito de cultura que pode ser apreciada na fala de Thompson:
Cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significantes de vários tipos, em virtude das quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças (1995, p. 176).
Contudo, como já exposto anteriormente, a abordagem de Geertz é fundada numa percepção semiótica do conceito de cultura, o que em linhas gerais torna claro o objetivo final da conquista do significado que pode ser expresso em uma forma acadêmica, racional, ou seja, inteligível, segundo os padrões de uma cultura letrada dominante. Naturalmente, sei o quanto é delicado estabelecer a crítica de um conhecimento legitimado na tradição dos estudos antropológicos, porém o objetivo último da análise cultural numa abordagem interpretativa não é adequado ao tratamento que desenvolvo nesta pesquisa. Noto também que o objetivo eminente etnográfico de compreensão da Marujada de Quatipuru já foi realizado de forma rigorosa no referenciado trabalho da professora Karine Jansen, que se aproxima do que, nas palavras de Geertz (1988), constitui uma interpretação antropológica, ou seja, aquela que busca “[...] traçar uma curva de um discurso social; fixá-lo numa forma inspecionável.” (ibid., p. 29). Mesmo coerente, esta valorosa percepção antropológica da cultura humana se choca com a compreensão do símbolo como materialização do imponderável, e que tem a característica básica de não poder ter seu significado completamente representável, segundo o referencial trazido por Gilbert Durand (1988). É exatamente nesse ponto em que preciso adaptar a contribuição de Geertz às necessidades de minhas escolhas. Segundo Durand (1988), a abordagem do símbolo na cultura pode ser feita a partir de dois caminhos que se relacionam, mas que possuem diferenças de abordagem fundamentais: “hermenêuticas redutoras” e “hermenêuticas instauradoras”. Apesar de as hermenêuticas redutoras terem reintroduzido o simbólico de maneira efetiva na prática acadêmica, elas o tratam no nível do signo, em que o significante é arbitrário e adequado a um significado, num olhar simplificador de uma dinâmica que é muito mais complexa. Por outro lado, as hermenêuticas instauradoras levam o símbolo para as percepções já expostas, em que basicamente se tem uma natureza não-arbitrária e não-convencional do símbolo. As raízes da formulação forjada por Durand residem em Jung, que é elucidador ao afirmar: “Não considero o símbolo em sentido alegórico ou semiótico, mas propriamente como a melhor designação e formulação possíveis de um objeto não perfeitamente identificável em todos os seus aspectos” (JUNG, 1982, p. 67-69).
A perspectiva de tratamento do símbolo na visão de Durand, em sua antropologia do imaginário, e de Jung, em sua psicologia profunda, explicam o porquê da preferência desses dois autores em verificar a dimensão simbólica muito mais próxima da abordagem da imagem que pode ser contemplada em partes, mas que se apresenta na experiência estética como um todo. Por outro lado, quando Geertz aproxima a prática acadêmica da antropologia à literatura, ele o faz considerando, prioritariamente, as possibilidades de relação com o gênero literário do romance, do mesmo modo que François Laplantine (2007) o faz quando estabelece a mesma relação: O confronto da antropologia com a literatura é imprescindível. O antropólogo, que realiza uma experiência nascida do encontro com o outro, atuando como uma metamorfose de si, é frequentemente levado a procurar formas narrativas (romanceadas, poéticas e mais recentemente cinematográficas) capazes de expressar e transmitir o mais exatamente possível essa experiência (ibid., p. 174).
Enquanto Geertz se aproxima da literatura pelo viés semiótico da interpretação, Laplantine traz a perspectiva do uso da linguagem literária como possibilidade de enriquecimento da prática antropológica. Porém, pela busca da transmissão do significado dos diferentes contextos culturais, uma espécie de tradução que daria um acesso eminentemente racionalizado desses contextos, é evidente que a prática antropológica difere da literária pela ênfase dada a esse elemento racional de sua operacionalização. Isso não significa que o antropólogo deve neutralizar-se como sujeito de afetos, pois é evidente, tanto no texto de Geertz, quanto em Laplantine, que a motivação dessa empreitada parte do encantamento de um encontro, a experiência, frequentemente o próprio trabalho de campo. Assim, uma expressão usada por Laplantine (2007) é esclarecedora: trata-se do convite a uma “[...] etnologia eminentemente amorosa, na qual o pesquisador-escritor renuncia a ser o único sujeito do discurso, mas também seu objeto, dentro de uma aventura.” (ibid., p. 178). A percepção do pesquisador como parte integrante do objeto de pesquisa, em completo acordo com a noção de trajeto antropológico de Durand, e a pesquisa como aventura, jornada, experiência que tem seu potencial de expressividade muito mais liberado numa forma narrativa, me servem como pilares nesta pesquisa. Porém, é a ênfase do esforço semióticoantropológico da apreensão dos significados dos objetos simbólicos em campo que abandono. Ou seja, tomo a forma narrativa como veículo de expressão prioritário da experiência, mas busco na inspiração poética do tratamento da imagem a possibilidade de multiplicar aspectos de modo a abranger mais adequadamente o tratamento do símbolo. Essa escolha implica
necessariamente suspender a racionalidade e a linearidade momentaneamente, para a instauração do potencial do símbolo, o que se dá de forma mais efetiva no trabalho poético com as imagens e metáforas, ou seja, fora do pensamento direto, de modo a atingir o símbolo dentro do processo simbólico, assim como sugere Durand (1988). Dando continuidade ao jogo de adaptações entre as sugestões da ciência antropológica e uma abordagem mais criativa orientada por uma base epistemológica não-cartesiana, vale considerar o que propõe Geertz (1988) em relação aos resultados de um trabalho antropológico interpretativo, que além de elaborar pensamentos concretos sobre as vidas das pessoas que estão sendo pesquisadas, o mais importante é a possibilidade de pensar “[...] criativa e imaginativamente com eles.” (p. 34). Nesse ponto reside a maior contribuição da antropologia para esta pesquisa, a orientação de que o potencial imaginativo e criativo que precisa ser liberado para a interpretação da vida simbólica só pode ser adequadamente acessado por meio do contato com os sujeitos pesquisados. Daí a ideia já apresentada de que o antropólogo não estuda as aldeias, mas sim nas aldeias. É a partir da experiência vivenciada que se gera o conhecimento, num ato criativo conjuntamente concebido. Laplantine (2007) sintetiza: Aquilo que o pesquisador vive, em sua relação com os interlocutores (o que reprime ou sublima, o que detesta ou gosta), é parte integrante de sua pesquisa. Assim uma verdadeira antropologia científica deve sempre colocar o problema das motivações extracientíficas do observador e da natureza da interação em jogo. Pois a antropologia é também a ciência dos observadores capazes de observarem a si próprios, e visando a que uma situação de interação (sempre particular) se torne mais consciente possível (ibid., p. 170).
Nesse contexto em que o jogo marca o eixo pelo qual interagem os diferentes atores envolvidos no processo de pesquisa, tomo novamente as proposições de Barthes (2004) quando aproxima por meio da constituição etimológica as noções de “saber” e “sabor”, sugerindo o potencial de conhecimento que existe, no caso, naquele texto que se faz escritura: “[...] as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa.” (ibid., p .21). A literatura foi o maior objeto de desejo de Barthes, e aqui retomo a importância do respeito e reconhecimento do “inspirado saber que brota ao estar apaixonado”. O texto literário, o maior objeto de pesquisa sobre o qual Barthes se debruçou, é nesta pesquisa simbolicamente equivalente à festa da Marujada de São Benedito de Quatipuru, com
a diferença de que se a escritura de Barthes possui uma potencial pluralidade inalcançável desde a sua natureza como objeto simbólico, a festa da Marujada pode ser considerada mais plural ainda, pois se ela é tomada como escritura, trata-se de uma escritura engendrada por numerosos autores, entre vivos e mortos, ou seja, uma escritura elaborada no seio do espírito coletivo de uma ancestralidade viva. A leitura barthesiana é observada como uma prática, um trabalho que, na literatura, se inicia no ato da leitura do texto lido, mas que só se concretiza no ato da escritura. Relaciono esse aspecto da leitura barthesiana com o pensamento de Bachelard sobre o devaneio poético, que se realiza também como esforço de materialização consciente e é estruturado a partir de experiências geradas, sobretudo, pela liberação da anima, a parcela feminina do espírito humano responsável pelas dimensões imaginárias da experiência humana, polaridade do animus, a parte masculina, que é racional, lógica e matemática. Articulando contribuições de Bachelard, penso que a leitura, por só se concretizar efetivamente na escritura, exige uma articulação harmoniosa entre anima e animus, num movimento elaborado necessariamente dessa relação, mas que no trato do texto no sentido mais amplo de objeto simbólico tende a extrapolar criativamente a estrutura primeira para alcançar um outro lugar, que é o lugar da leitura-escritura, esse espaço que é do leitor. Assim, esta dissertação de mestrado pode ser considerada uma escritura de minha leitura da Marujada de São Benedito em Quatipuru, ou seja, um texto outro, independente do contexto que lhe deu origem, mas que a ele deve respeito e devoção. Em outras palavras, escrevo devotamente a memória e a reflexão sobre a minha etnoaventura em Quatipuru. Barthes proclama a simbólica morte do autor, que se dá não pelo descarte, mas sim para que a paixão motivada pela literatura possa ser vivenciada plenamente. Trata-se de um movimento contraditório e paradoxal em que é necessário que se proclame a morte do autor para que a devoção do leitor possa se realizar efetivamente; sendo assim, a relação entre leitura e obra como estrutura primária, objeto da interpretação, é sempre dúbia: “[...] a leitura não extravasa da estrutura; fica-lhe submissa; precisa dela, respeita-a; mas perverte-a. A leitura seria o gesto do corpo [...] que, com um mesmo movimento, coloca e perverte sua ordem: um suplemento interior da perversão.” (BARTHES, 2004a, p.45). É a partir do uso de determinadas categorias da psicanálise que Barthes fundamenta o processo pelo qual se dá a leitura; entre elas, destaco a categoria do desejo, que para o autor é o motor do processo de encantamento que se dá na leitura do texto. Nesse sentido, Barthes
(2004a) considera que a leitura mobiliza um certo erotismo, configurado como a expressão pessoal do prazer do leitor em contato com a obra. Assim como em Bachelard (1996), a solidão é a condição inicial para que se dê o devaneio. No caso de Barthes (2004a), a leitura: Ao fechar-se para ler, ao fazer da leitura um estado absolutamente separado, clandestino, no qual o mundo inteiro é abolido, o leitor – o lente – identificase com dois outros sujeitos humanos – a bem dizer bem próximos um do outro – cujo estado requer igualmente uma separação violenta: o sujeito amoroso e o sujeito místico (ibid., p.48).
Barthes não prossegue a ponto de conceituar precisamente “sujeito amoroso” e “sujeito místico”, porém em sua profusão de termos confirma que o “[...] sujeito-leitor é um sujeito inteiramente deportado sob o registro do Imaginário.” (2004a, p. 48), o que permite considerar a leitura um processo em que, na solidão, expande dimensões afetivas e mesmo transcendentes da existência do leitor, numa experiência que pode adquirir tons de sagrado. Daí a importância dessa noção para a compreensão de meu processo de pesquisa que desde sempre é mobilizado pela experiência do sagrado na Marujada de São Benedito e que, agora, na distância necessária do momento da escrita adquire outros sentidos, expandindo a experiência primeira, redimensionando-a. Se o desejo é o princípio motor da leitura em Barthes, é a partir do prazer que se delineiam as diferentes formas de ler, segundo este autor. Estando a leitura tão intimamente ligada ao lugar de sua criação, o próprio leitor como um coletivo de todos os textos que ele acumula no inventário de sua experiência, cada um possui os seus próprios caminhos do prazer. Porém, Barthes (2004a) destaca algumas formas comuns da expressão do prazer da leitura, e, entre elas, aquela que é basilar para esta pesquisa, a aventura da leitura, assim o autor a chama, que conduz ao desejo de escritura, não de escrever como o autor lido, mas simplesmente escrever: Nessa perspectiva a leitura é verdadeiramente uma produção: não mais imagens interiores de projeções, fantasias, mas, literalmente do trabalho: o produto (consumido) é devolvido em produção, em promessa, em desejo de produção, e a cadeia dos desejos começa a desenrolar-se, cada leitura valendo pela escritura que ela gera, até o infinito (ibid., p. 50).
Desse modo, a leitura é tomada como o processo que transtorna o sujeito leitor, mobilizandoo para uma produção que tem a pulsão da expansão dos sentidos. Não se trata de uma autonomia absoluta do leitor em oposição à antiga e convencional autonomia do autor, e sim de um outro paradigma que se estruture para além do binômio objetividade-subjetividade, instaurando, pelo amplo uso da conotação imanente do texto, o acesso à sua pluralidade de
significados. Nesse contexto, em vez do discurso desgastado em torno de verdades objetivas ou subjetivas, o que se tem é uma verdade lúdica em que o jogo é o princípio fundamental da leitura. Assim o leitor não decodifica, “[...] ele sobrecodifica; não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia.” (BARTHES, 2004a, p. 51). Inspirado por essa proposição de Barthes, que trata como sinônimos a literatura, o texto e a escritura, é que, ao invés do objetivo final de uma análise cultural, prefiro me comprometer a realizar uma leitura da minha experiência na festa da Marujada de São Benedito. Tomo então a experiência como objeto da leitura, ou seja, eu e meu “objeto de pesquisa” fundidos, a própria noção de trajeto antropológico. Nesse sentido, é sobre uma experiência ainda em curso que escrevo, ou seja, mesmo como resultado final da pesquisa de mestrado, esta dissertação só pode existir assumindo desde já a sua incompletude, o que não vejo somente como deficiência, mas sim como resultado de uma leitura engendrada a partir da visão barthesiana e da análise cultural de Geertz. Assim, sigo segurando firme o fio de Ariadne que me permite brincar com alguma segurança pelo labirinto do Minotauro. A leitura como empreitada não-cartesiana precisa alcançar seu destino de escrita; desse modo, eu me curvo até alcançar o meu próprio centro, o centro da terra. Eu que escrevo porque preciso escrever, porque preciso honrar o sagrado, suspendo os medos cartesianos, deixo os pesadelos para depois. Assumo com responsabilidade o meu amor, o meu devir de artista, meu corpo errante no eterno limiar de não estar nem exatamente cá, nem lá. Meu corpo de menino brincando de cambalear. Escrevo esta dissertação/ensaio/narração/poema com palavras que não são minhas nem são de ninguém, mas prometo avisar sempre que for possível quando o texto é menos meu, porque no fundo eu gostaria que a fala e a escutas trançadas aqui fossem... [...] semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz (BARTHES, 2004, p. 44).
CAPÍTULO II O MAR EM CHAMAS DE SÃO BENEDITO: UMA IMERSÃO MITOLÓGICA
Neste capítulo o universo mitológico no qual está imersa a Marujada de Quatipuru, especialmente no que diz respeito ao conteúdo simbólico referente a São Benedito, é explorado de modo a estabelecer a imersão mitológica como entrada compreensiva no contexto da festa por um viés eminentemente simbólico. Inicio propriamente a leitura da Marujada de São Benedito enfocando as possibilidades de percepção da potencialidade do sagrado na festa, que tem como símbolo estruturante e agregador o próprio santo preto.
2.1. DO SONHO AO MITO: IMERGIR Eis que a menina Luz, com quem convivi durante boa parte da feitura deste escrito, do alto dos seus quase sete anos, me presenteia com um belo sonho: ela observava o seu pequeno aquário de águas escuras, densas. Dentro dele, o seu peixinho nadava absorto. Luz, que brincava distraída com uma semente de feijão, assim “sem-querer-querendo”, deixa a semente cair dentro do aquário. A fim de resgatá-la, a menina conversa com o peixinho, naturalmente, na língua dos peixes, pedindo-lhe que nade até o fundo do aquário para buscar a semente perdida. O peixe atende ao pedido da menina nadando até as profundezas de seu pequeno mundo, onde abocanha a semente. De volta à superfície, o peixe emerge cuspindo a semente de volta para a boca de Luz. Com esse sonho, retomo a imagem do peixe que anteriormente fora discutida no âmbito do curioso caso de sincronicidade relatado por Jung. Mais uma vez a perspectiva junguiana será estruturante das ideias aqui apresentadas, porém, dessa vez, a abordagem se encaminhará para um dos recônditos mais obscuros, misteriosos e fundamentais de sua teoria: as potencialidades do inconsciente em suas relações com o sonho e o mito.
As noções de Jung sobre a psique humana aqui serão tratadas de modo a expandir uma demanda interpretativa de meu próprio trajeto, pois uma das pulsões que mobilizou esta pesquisa se elaborou na experiência de meu atormentado sonho com São Benedito, conforme já relatado e ao qual me reportarei com mais vagar neste capítulo. Para evidenciar a estrutura da psique humana na obra de Jung, trago o gráfico apresentado por Marie-Louise Von Franz. Para a autora: A psique pode ser comparada a uma esfera, com uma zona brilhante (A) em sua superfície que representa a consciência. O ego é o centro desta zona (um objeto só é consciente quando eu o conheço). O self é, a um tempo, o núcleo e a esfera inteira (B); seus processos reguladores internos produzem os sonhos (2008, p. 211).
Figura 6 – A psique humana. Fonte: VON FRANZ, 2008, p. 211.
O ego representa o centro regulador da consciência, a instância que organiza os numerosos conteúdos que permeiam a consciência humana. A partir da ação do ego somos capazes de percorrer nossas mentes como se fosse uma imensa biblioteca em que podemos localizar o livro ou conteúdo que bem entendermos a qualquer momento. Na visão junguiana, o ego, ou seja, o eu conhecido, é aquele com o qual nos relacionamos no estado de vigília, porém, conforme pode ser observado no gráfico, a parte consciente da psique é consideravelmente menor do que a massa escura que representa o inconsciente. No centro da massa escura do inconsciente está o self, conhecido também pela terminologia de si-mesmo. Nesta representação, o ego corresponde à superfície e o self à região profunda da psique. Essa imagem corrobora com a imensa proliferação de metáforas que relacionam a busca de si mesmo como uma jornada rumo às profundezas, para representar a ideia de que nos espaços obscuros e desconhecidos é que se encontram as verdades interiores.
Nesse sentido, o sonho de Luz expressa de forma elucidativa de que modo se pode processar uma dinâmica saudável e potencialmente criativa entre o eu e o inconsciente. O sonho é em si uma linguagem originada pela dimensão inconsciente da psique humana, sendo, conforme ressalta Von Franz (1969), resultado da ação reguladora do self, ou seja, o sonho se elabora como uma mensagem dos espaços não acessados pela consciência, e, segundo Jung (1969), é a partir de sua faculdade inconsciente e espontânea de produzir símbolos que os sonhos se revelam como uma das formas mais eficientes de investigar as potencialidades da psique humana. O símbolo já fora anteriormente comentado sob a perspectiva de Gilbert Durand (1988) e Jung (1982), que concordam em afirmar que o significado do símbolo é impossível de ser alcançado plenamente, pois como sua origem se dá no inconsciente, ele sempre possui duas partes: uma parte concreta, que é a forma tal qual se apresenta, sobretudo como imagem; e outra parte desconhecida diz respeito à sua íntima relação com o universo inconsciente de onde ele se origina. Desde a etimologia da palavra, o símbolo, que deriva do grego symbolon, significa “pôr junto com, juntar”, daí a sua função transcendente, já discutida na leitura de Gilbert Durand (1988). Nesse sentido, a dualidade entre conhecido e desconhecido, consciente e inconsciente é superada pela integração transcendente que o símbolo propõe. Assim, tomando o sonho como um profuso produtor de símbolos, é possível expandir consideravelmente os limites da consciência na interação simbólica com o inconsciente. Ao observar atentamente o sonho de Luz, notei que o peixe, a água escura do aquário e a semente dimensionam numa linguagem simbólica à própria dinâmica do inconsciente. A imagem da água frequentemente remete ao inconsciente, que metaforicamente também é representado como o mar, tanto por suas dimensões colossais, quanto pela existência das obscuras zonas abissais, em que a luz do sol, associada à consciência, não pode chegar. O fundo do mar é inacessível ao ser humano, trata-se de um espaço misterioso em que moram criaturas desconhecidas. O aquário de Luz não possui uma água translúcida característica dos aquários comuns. Em geral, o aquário é um objeto que remete a uma realidade artificial em que diferentes seres são depositados para realizar uma função mais ou menos decorativa contrária às suas naturezas. Porém, o aquário de Luz tem águas escuras, densas, e quando sua semente cai ali dentro, ela não se arrisca a colocar a mão dentro do recipiente, necessitando da interlocução com o peixe. O aquário, assim, se mostra um espaço talvez perigoso para a pequena Luz, e somente com a
ajuda do peixe, o pequeno animal que domina aquele espaço, é que a menina poderá reaver sua semente. O peixe, então, realiza o mergulho às profundezas do aquário na busca da semente que é reavida e entregue novamente a Luz com o gesto que faz a liga da boca do peixe com a boca da menina. Ela não me disse se teria ingerido a semente, mas é forte a sugestão de que aquela semente, agora embebida do líquido do inconsciente, serve de nutrição para a menina. E aqui (re)cito a epígrafe utilizada por Bachelard em sua introdução na Poética do devaneio (1996) as seguintes palavras de Jules Laforgue: “Método, Método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente”. Nesse sentido, compreendendo também a imagem da semente que agora se converte numa nutrição dos conteúdos inconscientes, é pela boca que acontece a conexão entre o misterioso mundo aquático do peixe e o conhecido mundo humano de Luz. De modo a potencializar a imagem da boca como símbolo, vale contemplar a obra “A reunião da alma e do corpo na ressurreição”, de William Blake:
Figura 7 – A re-união da alma e do corpo na ressurreição. Fonte: <http://www.william-blake.org/The-reunion-of-the-soul-and-the-body-(The-re-union-of-soul-and-body).html>.
Na gravura de Blake, o transcendental momento da ressurreição contempla a integração da alma e do corpo, o que se dá simbolicamente pela boca. A ressurreição pressupõe a morte física, portanto a boca seria o espaço simbólico da comunicação liminar entre o conhecido (a vida) e o desconhecido (a vida após a morte na ressurreição). Esse sentido pode também ser
ressaltado por expressões populares do tipo “ele deu o último suspiro e morreu”, ou “respirou o último sopro”. Nesses casos, integra-se a boca ao processo da respiração, que em si é um processo vital, de modo que na tradição indiana do yoga, por exemplo, a palavra sânscrita para respiração é prana, que simboliza a própria energia vital. Assim, a boca assume ambivalentemente o espaço da morte e da vida, o espaço liminar da comunicação entre a existência terrena e a transcendente, e, no sonho de Luz, a possibilidade de nutrição do inconsciente. Finalmente, Luz consegue reaver sua semente, elemento simbólico da promessa do novo, do nascimento, a partir de uma interlocução na “língua dos peixes”. Esse elemento que pode ser associado a um forte dado de fantasia frequente nos sonhos é também simbólico de uma capacidade de se comunicar com o ser aquático, o não-humano, que no contexto do sonho representa o habitante do universo aquático do inconsciente. O peixe se comunica com Luz e o faz graças à capacidade da menina de falar sua linguagem, o que também pode ser considerado como uma extensão do uso da boca, segundo a interpretação que vem sendo encaminhada até aqui. Desse modo, a “falação” de Luz revela sua capacidade de interagir de forma natural com o inconsciente, precisamente com aquele animal que no contexto simbólico da perspectiva junguiana pode ser considerado como o próprio arquétipo, ou seja, o habitante do inconsciente sobre o qual discutirei com mais vagar à frente, sobretudo por condensar em si a natureza animal que remete ao instinto em conexão com sua existência psíquica. Por fim, o sonho de Luz simboliza emblematicamente a função geral do sonho para a psique humana, que segundo Jung consiste em: [...] tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que reconstitui, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É ao que chamo função complementar (ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica (1969, p. 49).
A partir da perspectiva junguiana, a função complementar do sonho, anteriormente comentada por Von Franz (2008) como ação do self, é fundamental para a conquista da saúde psíquica. Todo o esforço da teoria psicológica de Jung teve como objetivo o desvendamento da psique humana para fins terapêuticos, ou seja, de cura, de reabilitação da saúde. Naturalmente, o nobre objetivo de Jung não é o mesmo desta pesquisa. Porém, a teoria psicológica junguiana é capaz de restituir ao símbolo onírico o valor de conhecimento, sobretudo pelas possibilidades de percepção de suas relações com as potencialidades do inconsciente, enfaticamente pela
presença do símbolo como elo de ligação com o arquétipo, que é justamente a sua parcela inconsciente e não-absolutamente definível. Como já foi discutido anteriormente, o arquétipo é passível de transferência nos eventos sincronísticos. Em tais eventos, há uma grande concentração de energia psíquica, o que se traduz numa elevada carga emocional que torna essas experiências transformadoras para quem as vivencia. Conforme já discutido, essas experiências são consideradas numinosas, ou seja, sagradas, sobretudo pelo contato com as instâncias arquetípicas, originárias das parcelas do inconsciente que Jung chamou de coletivo. O inconsciente coletivo é estruturado pelos arquétipos, que, em suma, não representam experiências individuais, mas sim universais da espécie humana. Para Jung: Assim como o nosso corpo é um verdadeiro museu de órgãos, cada um com a sua longa evolução histórica, devemos esperar encontrar também na mente uma organização análoga. Nossa mente não poderia jamais ser um produto sem história, em situação oposta ao corpo em que existe. Por "história" não estou querendo me referir àquela que a mente constrói através de referências conscientes ao passado, por meio da linguagem e de outras tradições culturais; refiro-me ao desenvolvimento biológico, préhistórico e inconsciente da mente no homem primitivo, cuja psique estava muito próxima à dos animais. Esta psique, infinitamente antiga, é a base da nossa mente, assim como a estrutura do nosso corpo se fundamenta no molde anatômico dos mamíferos em geral. O olho treinado do anatomista ou do biólogo encontra nos nossos corpos muitos traços deste molde original. O pesquisador experiente da mente humana também pode verificar as analogias existentes entre as imagens oníricas do homem moderno e as expressões da mente primitiva, as suas “imagens coletivas” e os seus motivos mitológicos (1969, p.67).
O inconsciente coletivo, povoado pelos diferentes arquétipos, é outra das mais valiosas percepções junguianas sobre a psique humana. A partir dessa noção, é possível perceber no processo simbólico do sonho a proliferação de imagens como uma dinâmica reveladora dos padrões arquetípicos herdados. O sonho é um dos veículos mais naturais para a aparição das imagens arquetípicas, porém não é apenas nesse contexto que essas imagens se revelam. Sobre o desenvolvimento dessas ideias de Jung, Samuels (1989, p. 42) afirma: Jung descobriu que as imagens configuravam padrões, que estes padrões lembravam o mito, a lenda e o conto de fada, e que o material dessas imagens não tinha origem em percepções, memória ou experiência consciente. Para Jung, as imagens pareciam refletir modos universais da experiência e comportamento humano. Chamou de imagens primordiais passando a adotar esse termo de 1912 em diante. [...] As imagens primordiais são como fundações; elas têm certa interdependência, podem brotar subitamente em
sonho, devaneio, fantasia ou na criação artística. Por volta de 1917, Jung dizia que o inconsciente coletivo se expressava sob forma de dominantes, pontos nodais especiais em torno dos quais as imagens se cristalizavam. Em 1919, Jung introduziu o termo arquétipo. De 1946 em diante, Jung continuou a fazer nítida distinção entre arquétipo e imagem arquetípica; o que é experienciável pela psique são as imagens arquetípicas, pois os arquétipos são elementos estruturais.
Nesse contexto, é possível perceber que a experiência de relação com os arquétipos do inconsciente pode se dar de maneira bastante variada, inclusive, para além da experiência pessoal subjetiva do sonho, como se dá com o mito, que se elabora como uma construção cultural prioritariamente coletiva, ou seja, passível de ser fruído por toda uma sociedade e mesmo em circunstâncias comunitárias como numa situação de contação de histórias, numa hora de lazer. Assim, o contato com as instâncias arquetípicas, para muito além da estrita experiência do sonho, também pode ser observado em outras numerosas formas da cultura. Tais ocorrências também foram estudadas por diversos campos do conhecimento e a partir de diferentes procedimentos e abordagens. Em especial, no primeiro capítulo, foi enfatizada a leitura das imagens simbólicas a partir do contexto da antropologia do imaginário, sobretudo no que diz respeito às orientações de Gilbert Durand (1988). Naturalmente, há peculiaridades conceituais entre a antropologia e a psicologia profunda de Jung que dizem respeito, sobretudo, a uma diferença de objetivos no que tange às questões epistemológicas. Não me dedicarei a pormenorizar essas questões, bastando apenas reafirmar que este trabalho assume uma postura notadamente transdisciplinar conforme permitem os princípios da abordagem não-cartesiana anteriormente discutidos. Evidentemente, conforme já descrito, a psicologia profunda de Jung se ocupa da pesquisa sobre a psique humana de modo a potencializar o processo terapêutico. Assim, o contato com as imagens arquetípicas como formas primordiais e coletivas da experiência humana se dá não pelo interesse nessas formas em si, mas nas possibilidades de compreensão dessas formas nos diferentes contextos terapêuticos. Por outro lado, a antropologia do imaginário traz um interesse prioritário no aspecto coletivo das imagens arquetípicas, principalmente pelas possibilidades de compreensão dos modelos societais que são constantemente influenciados por elas. Peculiaridades à parte, o sonho de Luz com o mergulho do peixe nas obscuras águas do aquário representa para mim a dinâmica da relação com o inconsciente como um mergulho no mar profundo, assim como nas leituras da antropologia do imaginário é possível notar a
imagem frequente das chamadas “potências subterrâneas” do imaginário. O espaço do indizível, do incomensurável, do imaginário, enfim, é frequentemente expresso pela metáfora do subterrâneo, que sob uma outra forma também aponta para o mesmo movimento descendente que leva o peixe às profundezas do inconsciente. Sobre a jornada rumo ao subterrâneo, lembro o mito de Perséfone. Deméter, a Mãe-Terra, responsável pela gestação e pelos ciclos da natureza tinha uma bela filha chamada Core. Enquanto colhia narcisos no jardim de sua mãe, foi raptada por Hades, o senhor da morte e deus do submundo, que a surpreendeu violentamente ao fazer o chão abrir e levando-a na carruagem com dois cavalos negros. Levando Core para seu mundo sombrio, Hades lhe ofereceu uma romã, que a bela jovem aceitou. Ao comer a fruta, ela participou dos mistérios dos mortos e ficou para sempre ligada a Hades, tornando-se sua esposa Perséfone, a rainha do submundo. Após o sequestro de Core, Deméter a procurou desesperadamente por muito tempo e, ao descobrir o terrível feito de Hades, como expressão de sua ira começou a fazer com que toda a natureza fenecesse, o que pôs em risco a vida na Terra. Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas ao submundo, atuou como mediador e conseguiu estabelecer um acordo entre Hades e Deméter: durante toda a eternidade, ano após ano, Perséfone passaria nove meses com a mãe e três meses com o marido, com a condição de que durante sua estadia na Terra não revelasse os segredos do submundo. E assim se deu; porém, toda vez que Perséfone retorna ao submundo, Deméter se entristece e assim chega o inverno, estação que se afasta com o desabrochar da primavera, com a volta de Perséfone. Pela apreciação do mito de Perséfone, pude perceber a bela imagem arquetípica da descida ao mundo subterrâneo, conforme a metáfora tão utilizada pelos pesquisadores da antropologia do imaginário. Desse modo, tanto o mergulho nas profundezas aquáticas quanto a descida ao mundo subterrâneo descrevem, sob distintas formas, uma mesma experiência arquetípica: a jornada rumo ao inconsciente. Jornada essa que indica sempre um esforço descendente, sobretudo, por se tratar de, psicologicamente, uma baixa da consciência normal, ou seja, para além dos limites concretos da consciência racional da vigília, a jornada rumo ao misterioso inconsciente requer a abertura para um estado outro. Nesse sentido, parafraseando a já retomada imagem de Jules Laforge, para comer do fruto do inconsciente, seja ele a semente da menina Luz ou a misterioso romã do submundo, é preciso falar a língua dos peixes, é preciso deixar o senhor da morte nos levar momentaneamente. A leitura do símbolo como síntese de um conhecimento inconsciente só pode ser realizada num
estado de abertura conceitual que permita perceber que a imagem arquetípica é transpessoal e transcultural, o que significa dizer que as experiências do sonho de Luz e do mito de Perséfone remetem a uma arcaica origem única, indecifrável, inexprimível em termos concretos, mas muito potente em termos de energia psíquica. É do que trata Walter Boechat (2008) com as escatologias gregas antigas e suas relações com a psicoterapia moderna. Para o autor, a psicoterapia pode ser analogicamente comparada aos mitos escatológicos, ou seja, aqueles que se referem aos destinos finais dos indivíduos, o que implica, na cultura grega, a descida ao reino de Hades. Mais uma vez, pude estabelecer relações com o sonho de Luz, pois Hades, como o deus grego que rege o submundo, ou seja, o mundo dos mortos, é também conhecido como o Senhor das Sementes. Para Boechat (2008), numa visão junguiana, o mundo do deus Hades pode ser considerado como o inconsciente, e é em direção a esse mundo que a alma do homem grego se encaminha no momento de sua morte. Na cultura grega antiga, no momento da morte, todo homem realiza a decida ao inferno de Hades; porém, não se trata do inferno retratado pelo catolicismo. A descida ao inferno não é uma punição na cultura grega, antes disso, é um movimento natural da alma no momento da morte. A descida ritual ao mundo dos mortos é chamada de catábase e representa um momento fundamental nos mitos escatológicos, sobretudo pela possibilidade de transformação e ressignificação do herói que vive essa experiência de descida e retorna ao mundo dos vivos modificado, concretizando a chamada anábase. Na narrativa mítica do herói é dado a ele descer ao Hades em condições especiais, e lá ter um aprendizado, uma iniciação. Isso faz da escatologia não apenas uma expressão de mitos das coisas que irão acontecer no final dos tempos, mas dá a ela uma importância grande nas religiões de iniciação, pois qualquer iniciado deverá sofrer uma catábase, passar por uma transformação (mudança de nome, morte simbólica) e só depois de transformado chegar a uma anábase (BOECHAT, 2008, p. 109).
Através da possibilidade de transformação proporcionada pela catábase, Boechat estabelece a conexão comparativa com o processo terapêutico, em que o analisando também deve mergulhar corajosamente em si mesmo, nas profundezas subterrâneas do inconsciente, para sofrer uma morte simbólica e retornar transformado à consciência, tal qual o herói nos mitos escatológicos gregos antigos. Ou seja, no universo mítico de Hades, as sementes são todos os homens, e a morte simbólica nada mais é do que a catábase, a viagem ao mundo de baixo,
que se concretiza efetivamente no momento em que se retorna; assim, o homem brota do chão renascido quando a semente está pronta para germinar. Neste processo de pesquisa, o potencial transformador da catábase também é tomado como inspiração para a compreensão das dinâmicas simbólicas do contexto da Marujada de São Benedito. Desse modo, tanto a psicologia profunda de Jung e seus seguidores quanto a antropologia do imaginário de Durand são capazes de oferecer valiosas pistas sobre essa jornada descendente rumo ao inconsciente. Como ponto de partida de minha catábase, retorno ao meu atordoado sonho com São Benedito, para que depois seja possível passear pelas paisagens amazônicas numa história contada pelo povo de Quatipuru com alguma intenção de foco: o sagrado que emana da imagem do santo preto.
2.2. IMAGENS DO SANTO PRETO: EMERGIR Em alto mar, eu que não sou, nem nunca fui, marujo, agonizava sozinho na pequena embarcação que sofria a violência de uma tempestade. Era noite e eu quase me afogava naquela situação de desespero. Uma onda quebra sobre a minha embarcação, eu caio para fora dela segurando com muito esforço numa das suas bordas. Em meio à chuva forte que não me deixava abrir os olhos completamente, vislumbro a pequena grande imagem de São Benedito me fitando seriamente. Olhos graves, olhos de fogo e eu naquele momento tinha certeza de que estava sendo castigado. Arrependimento pela minha falta. Vontade de gritar perdão para a imagem; e ela imóvel, fixa, rígida apenas me fita, em silêncio. Acordo sobressaltado e dali em diante eu já não seria mais o mesmo. Desci violentamente ao reino de Hades e retornei ainda sem muita clareza do acontecido, mas transformado. Esse sonho já foi contado no decorrer desta dissertação, mas quero lembrar que ele vem justamente num momento em que vacilei com o santo ao abandonar um escrito acadêmico que realizaria sobre ele. Eu já havia assistido ao “Império de São Benedito”, de Karine e, desse modo, apesar de nunca ter estado em Quatipuru durante a Marujada de São Benedito, eu já havia sido de alguma forma apresentado àquele universo ainda tão estrangeiro a mim. Sou feliz por ter conhecido o santo preto e sua força no atordoado sonho que narro toda vez que falo da experiência de pesquisa que tem como um de seus resultados esta dissertação de mestrado. Em sonho, experimentei São Benedito como símbolo na re-união da alma e do corpo, pois até tenho a memória da taquicardia, da respiração ofegante que ao acordar dava
lugar ao meu afogamento onírico. Minha primeira experiência efetivamente transcendente com a Marujada de São Benedito se deu nas horas misteriosas do sono, e a elas eu devo boa parte das reflexões que estruturam este capítulo. Nesse sentido, considero a experiência estética e seu óbvio efeito no sonho como um primeiro momento da catábase simbólica que me permitia lentamente realizar a imersão no contexto da Marujada de São Benedito. Obviamente, na Marujada de São Benedito em Quatipuru o santo preto é o principal motor afetivo, afinal, toda a festa é realizada em sua devoção, o que faz de sua imagem um importante símbolo da agregação comunitária na cidade de Quatipuru. Porém, é interessante notar que as cores que colorem a imagem do santo preto diferem daquelas que a cultura católica divulga. Considero esse elemento necessário na composição desta discussão por se tratar de um ponto para mim muito curioso num primeiro momento. Tomando o meu próprio trajeto antropológico como ponto de partida para as reflexões que dão origem a este trabalho, observei que eu conhecia São Benedito apenas pelo filtro simbólico que minha experiência religiosa do catolicismo permitia. Assim, considero que a minha imersão mitológica pessoal na Marujada de São Benedito de Quatipuru se iniciou efetivamente no momento em que o santo preto se apresentou em meu sonho. Ali eu experienciei sua fúria pela primeira vez. Tomo São Benedito como imagem simbólica, ou seja, como um símbolo que poderia apresentar peculiaridades interpretativas se eu optasse por realizar uma escrita centrada unicamente no meu olhar como sujeito. Porém, meu interesse nesta pesquisa é apresentar um olhar, isto é, uma leitura sobre a festa da Marujada, que é um acontecimento coletivo. Portanto, de modo a evidenciar de maneira mais efetiva em que consiste a presença de São Benedito em Quatipuru, quero ressaltar de que forma se constitui sua mito-lógica. Compreender São Benedito como imagem simbólica de um mito é enveredar nas profundezas de seu significado. Trata-se da imersão mitológica como catábase. De modo a constituir efetivamente a base teórica desse movimento, trago a contribuição de Mircea Eliade sobre a importância do pensamento simbólico: O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser (ELIADE, 1996, p. 9).
As palavras de Mircea Eliade trazem à tona uma visão do mito que contradiz e supera o senso comum, pois, para o filósofo, o conteúdo simbólico do mito se constitui como um conhecimento que responde a necessidades profundas do ser humano, representando, inclusive, espaços “secretos” do ser. Ou seja, essa concepção contraria a superficial percepção do mito como mentira, como história inventada por uma compreensão primitiva do mundo. Ao contrário, o mito narra sempre uma história sagrada, sendo assim, ela é necessariamente real, verdadeira. Pessoalmente, a definição que me parece menos imperfeita, por ser mais lata, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar num tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narração de uma “criação”: descreve-se como uma coisa produzida, como começou a existir. O mito só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se manifestou plenamente. As suas personagens são Seres Sobrenaturais, conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, pois, a sua atividade criadora e mostram a sacralidade (ou, simplesmente, a “sobrenaturalidade”) das suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas e frequentemente dramáticas eclosões do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. Esta irrupção do sagrado que funda realmente o Mundo e o que faz tal como é hoje (ELIADE, s/d, p.1213).
Desse modo, o mito pode ser considerado como uma forma de conhecimento que se constitui como linguagem, essencialmente, palavra, narrativa, tal qual estabelece Barthes (1970) em acordo com Eliade. Porém, é interessante notar que o conhecimento que o mito revela diz respeito a realidades profundas, sagradas, o que faz da imersão que ele propõe um mergulho num espaço também misterioso. Se o mito evoca o pensamento simbólico, ele possuirá sempre uma parte conhecida, ou seja, sua forma concreta, e uma desconhecida, misteriosa, evocando frequentemente imagens arquetípicas responsáveis pela grande descarga de energia psíquica que toma o mito, tornando-o um objeto de grande comoção. Esse entendimento do mito é confirmado pela visão junguiana presente na obra de Boechat (2008) que, ao falar sobre o mito, evidencia que ele corresponde à razão do coração, situando-se além da lógica formal e manifestando aspectos do numinoso, ou seja, o sagrado de que fala Eliade. Dito isto, é importante notar que as contribuições de Mircea Eliade, apesar de serem estruturantes para esta pesquisa, foram aqui levemente adaptadas. A primeira adaptação diz respeito à restrição temática que o autor faz em relação à cosmogonia. Eliade enfatizou em
seus estudos os mitos cosmogônicos, o que para a visão junguiana representa apenas um mitologema possível, ou seja, “um núcleo essencial do mito” (BOECHAT, 2008, p. 24). Nesse sentido, ao partirmos para a leitura do mito de São Benedito, outros mitologemas se elaborarão como mais significativos para a compreensão. Assim, nas histórias sagradas do santo preto, conhecidas e veiculadas dentro de uma tradição católica, um aspecto estruturante da característica desse personagem mitológico é enfatizado: sua humildade e dedicação aos pobres. Numa de suas histórias mais conhecidas, São Benedito era o cozinheiro do mosteiro e, burlando as normas estabelecidas por seus superiores, frequentemente entregava pães aos pobres que o aguardavam na porta do mosteiro. Um dia, ao perceber aquela movimentação, um de seus superiores o surpreendeu justamente no momento em que o monge Benedito levava os pães numa cesta para os pobres que o aguardavam. Ao verificar o conteúdo da cesta, o superior deu com numerosas rosas. Benedito seguiu o seu caminho e, ao chegar à porta do convento, o conteúdo da cesta se transmutou novamente em pães e assim o monge pôde concluir sua boa ação. Esse sem dúvida é um dois mais conhecidos milagres de São Benedito. Não se trata de uma história contada exclusivamente no contexto oficial da Igreja Católica; como narrativa mítica, ela pode ser encontrada nas diversas variações da oralidade. Mesmo sendo uma narrativa que identifica Benedito como o bondoso franciscano, distante de como ele é muitas vezes representado pelo povo de Quatipuru, essa história foi coletada por Karine durante sua pesquisa de doutorado justamente do então capitão da Marujada, Seu Rosa. Evidentemente, o humilde e bondoso São Benedito que é personagem dessa bela história não é o mesmo que se apresentou a mim em sonho. O que proponho como ponto estruturante da compreensão sobre a Marujada de São Benedito é a percepção de que a divindade cultuada e adorada em Quatipuru não parece ser exatamente a mesma de que trata a Igreja Católica. Isso se dá por um fator cultural objetivamente estabelecido, pois grande parte da comunidade que faz a festa possui ligação com o Tambor de Mina, religião de origem jeje-nagô, que tem em São Benedito o sincretismo com Verequete, um vodum nagô. Ou seja, por um lado, esse fator cultural afeta drasticamente a característica da divindade, mas, por outro, esse dado não é compartilhado por toda a comunidade que faz a festa. A Marujada de São Benedito em Quatipuru se organiza por meio de uma comunidade que, do ponto de vista religioso, é heterogênea, havendo pessoas ligadas ao Tambor de Mina, ao Catolicismo e mesmo a religiões evangélicas que nem aceitam o culto dos santos. A Igreja Católica não participa da
organização dessa festa e mesmo os membros do Tambor de Mina que participam não a veem como parte integrante dos cultos que realizam em seus terreiros. Porém, nas histórias do santo que são contadas em Quatipuru é evidente que o São Benedito de que se fala não é o mesmo do catolicismo, e, talvez, nem exatamente o mesmo que é cultuado nos terreiros de Mina, constituindo-se como uma divindade singular, mas que em seus mitos elenca elementos arquetípicos que podem ser observados em todo o tecido da festa. Para que fique evidente o modo como se dá a transmissão oral da força de São Bendito e seu mito, trago a narrativa coletada por Karine Jansen durante a fase de sua pesquisa de campo sobre a Marujada de Quatipuru: Ah, mana! Se for contar estória de S. Benedito nós não termina hoje. Eu vou te contar uma do S. Benedito que foi verdade verdadeira. Aconteceu comigo, eu tinha uns nove anos de idade. Foi no Quatipuru mirim, São Benedito de Bragança veio pra Quatipuru Mirim, e eles forum assistir a ladainha dele. Então, a minha avó era muito devota de S. Benedito, ela dançou Maruja desde pequena. Ela agarrou uma vela e foi acendê nos pés de S. Benedito. O marido dela, meu avô, disse: Porque qui tu não manda esse filho duma égua desse preto comprá vela pra acendê, que todo dia é vela. [pausa] Forum simbora pra ladainha. Te juro como foi verdade isso, o povo tudo lembra. Forum simbora pra ladainha. Mana, quando chegarum lá, os pessoal tão rezando a ladainha, quando olha, cai a lavareda. Ai, tá, queimando, tá queimando a casa da dona Eva, tá queimando, quando eles chegarum lá, menina, tava um lavarel, queimou tudo. O meu avô ainda entrou na sala pra pegar o meu irmão que tava deitado assim na sala. Aí ele pegou o menino, quando ele passou no corredor tinha um vulto? - Ele pensou que era outra pessoa, e pegou e jogou lá no terreiro. Aí São Benedito pegou fogo, terminou de pegar fogo todinha a casa que foru olha S. Benedito em cima dum pedaço de pau lá no terreiro, com as fita todinho, a vela do lado dele, só num tava acesa, tava apagada. Queimou a casa todinha e São Benedito não queimou. Num sei como foi que ele saiu daquele fogo ali e foi lá pro terreiro... Sozinho, foi, foi mana, foi verdade isso, tu te lembra, num lembra? Foi, foi verdade verdadeira isso, queimou tudo. Deixou nós só com a roupa, só com a roupa do corpo que os pessoal fizero donativo pra dar roupa pra nós. Mas não salvou nada, só o meu irmão. Tudo, ele tinha um depósito de colocar farinha, sal, essas coisas, que ele vendia essas coisas. Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Pela língua do meu avô, pegou fogo a casa da minha avó todinha. Depoimento da Maruja Ana dos Remédios18 (AMORIM, 2008, p. 59)19.
Ao tomar as histórias contadas sobre o santo, reitero a compreensão de Barthes (1970) sobre o mito, que vê na oralidade o seu modo mais natural de abertura e suporte, e adapto a compreensão de Eliade, pois para o autor a noção de sagrado implícita ao mito incorpora uma 18 19
Ana Maria Costa dos Remédios, 49 anos, dança Marujada desde 14 anos de idade. A transcrição apresentada segue rigorosamente a versão da tese de doutorado da professora Karine Jansen.
seriedade que não aceita o riso como elemento integrante da sua vivificação, pois esse seria um elemento profano que se opõe ao sagrado. Nas histórias contadas em Quatipuru sobre os inúmeros feitos de São Benedito, frequentemente se tem o acompanhamento do riso nas contações; afinal, apesar de tratarem geralmente de situações extremas, a marca do curioso gera o efeito cômico. Nesse sentido, é possível perceber que a sacralidade de São Benedito aceita o riso como parte integrante do momento em que, segundo as palavras de Eliade (s/d), se pode “viver o mito” (p. 23), ou seja, experimentá-lo no corpo, pois se a festa da Marujada for considerada um rito que reitera a divindade narrada no mito, contar as histórias do santo nos dias de festa é uma forma de viver e vivificar a fé nesse poderoso santo preto. Como forma de compreensão da interseção existente entre as imagens de São Benedito e Verequete, apóio-me em Leda Martins (1997) quando discorre sobre a constituição das culturas negras nas Américas. Segundo a autora, tais culturas se elaboram em encruzilhadas, gerando relações de transformação cultural, fundamentalmente, via sincretismo, e mesmo em processos de analogia e deslocamento. Nos processos de deslocamento, observa-se, por exemplo, a constituição de encruzilhadas culturais como devoções católicas praticadas a partir de gnoses africana, o que pode ser uma pista para a compreensão de como o sagrado do louvor a São Benedito se alinha a elementos do culto ao vodum Verequete. Segundo a mitologia da religião dos Voduns, tal qual elucida Sergio Ferretti (2009), Verequete pertence a uma família nagô de voduns estrangeiros: Quevioçô20. Segundo o antropólogo, essa família de voduns possui poderes sobre os astros, os céus e as águas, controlando chuvas, raios, trovões, ventanias e tempestades, o que articula os poderes mágicos da família de Verequete às frequentes histórias contadas em Quatipuru. Os desastres relacionados à água e ao fogo são comumente relacionados à vingança do santo contra os sujeitos que resolvem tratá-lo sem o respeito necessário, ou mesmo com ofensa, como o “personagem” da história narrada por Ana dos Remédios. Assim, lembro que, em meu sonho, quando São Benedito se apresentou a mim, ele o fez em meio a uma tempestade em alto mar, o que identifico como uma comunicação mitológica entre minhas impressões pessoais e mesmo espirituais sobre a festa e o universo mitológico no qual ela está efetivamente imersa como construto coletivo de uma cultura.
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Optei, nesta dissertação, por utilizar a grafia “Quevioçô” para designar a família de Verequete, porém é possível encontrar outras grafias dessa mesma palavra, tais como: Queviossó, Kevioçô, Keviossó ou mesmo Heviosso.
Ao compor o título de sua tese de doutorado, Karine (2008) reuniu com precisão e poesia os dois elementos que, a partir de sua leitura, considero estruturantes do potencial simbólico que a Marujada de São Benedito movimenta: “Um fogo que se deita no mar”. Trata-se de um título poético que é seguido de um subtítulo que delimita o espaço acadêmico no qual se insere sua tese: “um estudo sobre a Marujada do município de Quatipuru no Estado do Pará”. Em suas pesquisas, Karine cruzou as informações prestadas pelo povo da Marujada em narrativas orais a documentos históricos e acadêmicos que ajudavam a contextualizar as dinâmicas de um ponto de vista sócio-antropológico. A partir de suas pesquisas, é possível perceber que entre o culto da Mina no Maranhão, sua origem geográfica, e o Tambor de Mina no Estado do Pará, desenvolvido a partir de diversos contatos culturais com a religiosidade já existente na região Amazônica, fundamentalmente a pajelança e o catolicismo popular, numerosos aspectos de seu simbolismo persistiram. Nesse sentido, Karine observa por meio de um olhar que também remonta às origens da Marujada de Quatipuru que por toda a festa há rastros do simbolismo mineiro. Em sua pesquisa é possível perceber que sua interlocução com o Pai Tayandô, líder religioso nos terreiros de Mina do Estado do Pará, alimentou intensamente suas reflexões. Foi a partir desse contato que Karine chegou à informação de que a família Quevioçô teria conquistado o poder sobre o fogo por ter conseguido transformar em combustível a gordura de tartaruga. Tal dado reverberava nas informações que Karine já havia coletado em entrevista com Seu Rosa e lendo os escritos de Seu Saturnino, uma espécie de historiador popular de Quatipuru. Segundo esses dois mestres das tradições quatipuruenses, era costume antigo na Marujada o uso de lanternas confeccionadas em forma de tartaruga, o que Karine observou como possibilidade de conexão entre um objeto do cotidiano da festa e os conteúdos simbólicos contidos no mito, nesse caso, de Verequete. Não pretendo afirmar, com esse tipo de informação, que existe uma correspondência direta e inegável entre os símbolos que compõem o mito e o objeto do cotidiano; porém, percebi que da festa emanam imagens que, em suas reverberações míticas, podem oferecer valiosas leituras do ponto de vista simbólico. Pude, portanto, alargar minha compreensão da Marujada de Quatipuru, por exemplo, por meio de pistas como a presença da tartaruga no mito dos Quevioçô, tal qual informa o Pai Tayandô. Aprofundando o espectro de referências sobre a leitura dos símbolos, encontrei no Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant (1994) a informação de que a tartaruga é tratada como um animal identificado às mais altas divindades no Tibete, pois, ao ser associada às primeiras águas, adquire fortemente o sentido de fertilidade, além da imensa longevidade que também a
caracteriza. Desse modo, a tartaruga carrega a possibilidade do início firme e vigoroso, e, considerando o feito da família Quevioçô, que conseguiu transformar a gordura da tartaruga em combustível, adquirindo nesse instante o poder sobre o fogo, o início firme e vigoroso que a imagem da tartaruga sugere também pode ser associado ao intenso conteúdo simbólico do poder sobre o fogo. Em campo, foi de seu Zé Maria, um velho marujo de Quatipuru, que escutei pela primeira vez uma frase que depois viria a ouvir de outras pessoas: “São Benedito anda com uma caixa de fósforos no bolso. Qualquer coisa ele taca fogo!”. Essa pérola quatipuruense integra o texto do “Império de São Benedito” de Karine Jansen (2008) e, em Quatipuru, geralmente era proferida depois de alguma história sobre os terríveis feitos de São Benedito. Fica evidente nessa frase o caráter devastador e poderoso que o fogo adquire como elemento simbólico que identifica São Benedito em sua Marujada. Esse aspecto do fogo pode ser observado com muita clareza em numerosos mitos que compõem o espectro das tradições mitológicas pelo mundo. Lembro o mito de Prometeu que ao roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens conferindo-lhes consciência (e consequentemente poder sobre todos os outros seres vivos do mundo) foi duramente castigado por Zeus, que o condenou a eternamente permanecer acorrentado ao monte Tártaro e ter seu fígado eternamente devorado por uma águia.
Figura 8 – Prometeu Acorrentado, de Rubens. Fonte: <http://giramundo-cirandeira.blogspot.com.br/2009/10/prometeu-acorrentando-ou-busca-do.html>.
No mito de Prometeu, circunscreve-se com clareza o valor do fogo como um símbolo de poder divino, de modo que seu roubo constituiu um crime terrivelmente castigado. Desse modo, o fogo como símbolo de poder pode promover experiências dolorosas que carreguem
em si também o sentido da purificação ritual. E este talvez seja um sentido incorporado num nível mais profundo das histórias que são contadas sobre os feitos de São Benedito. Ou seja, para além da vingança em relação àqueles que não prestam o devido respeito ao santo preto, os desastres de fogo, apesar de apresentarem fortemente o caráter da destruição, também promovem a percepção de uma purificação, tanto que é relativamente comum ouvir histórias de pessoas que passaram por algum tipo de desastre como esse e depois modificaram sua maneira de se relacionar com o santo, chegando a se tornar efetivamente devotos. Notei que, apesar de as experiências de dor e sofrimento atravessarem as narrativas do santo, é o clima de festa e alegria que se estende por todos os dias da Marujada. Portanto, antes de expressar uma forma de conexão com o sagrado que se dá por um respeito sério ao divino, o povo de Quatipuru o faz com muita leveza e riso. Esse aspecto também pode encontrar reverberação em outro aspecto mitológico relacionado ao sincretismo entre São Benedito e Verequete. Considerando os estudos de Ferretti, é interessante notar que Verequete adora São Benedito e frequentemente é também retratado como um vodum que expressa certa ambiguidade ao se apresentar, por exemplo, ora como criança, ora como velho. Na Casa das Minas no Maranhão, objeto dos estudos de Ferretti, Verequete executa a função de toquén, ou seja, vodum mais jovem que nas festas vem antes e chama os outros voduns, executando a função de guia, mensageiro ou ajudante. Essa “categoria” de voduns é chegada a festas e brincadeiras, de modo que o humor é uma marca simbólica dessas entidades, o que gera um vínculo direto com a forma da festa da Marujada de Quatipuru em que o riso e o sentido de festança são a todo o momento ressaltados. Sobre esse caráter brincalhão de Verequete, pudemos anotar, em conversa com uma mãe-desanto da tradição ketu do candomblé em Salvador, sua declaração de que em sua nação Verequete é um Exu. Ora, tomando o universo simbólico que Exu evoca, notamos que ele é justamente o orixá das encruzilhadas, anteriormente citado como meio pelo qual se constituíram as culturas negras nas Américas, segundo Leda Martins (1997). Exu é aquele que estabelece a comunicação entre o ayé (o mundo terreno) e o orum (o mundo espiritual). Assim, é possível associar suas potencialidades com as informações que Ferretti (2009) presta sobre os toquéns, a função que Verequete exerce na Casa das Minas do Maranhão. Afinal, assim como os toquéns, todo ritual de candomblé se inicia obrigatoriamente pelas oferendas a Exu, pois é ele que abrirá os caminhos para que a celebração ocorra bem, é ele que é o movimento, a possibilidade de a transformação da energia se dar de forma efetiva no terreiro.
Exu também é chegado a brincadeiras, sendo considerado do ponto de vista mítico como um trickster, ou seja, aquele que “[...] representa a antítese de valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva em forma de rituais.” (BOECHAT, 2008, p. 65). Exu como trickster, o arquétipo da inversão, traz à tona com o riso a necessidade de fruição de todas as potencialidades da vida como sagradas, inclusive aquelas que dizem respeito ao êxtase do corpo que explode como sensorialidade, seja pela dança, ou pelo álcool. Esse aspecto conecta profundamente a Marujada de São Benedito em Quatipuru às energias que emanam, por assim dizer, de Exu. Esses elementos serão detalhados com mais vagar no terceiro capítulo desta dissertação, de modo a serem explorados com mais profundidade, sobretudo, nos símbolos que são evocados pelos mascarados da Marujada. Durante os dias de festa em Quatipuru, entre uma dança e outra, no intervalo dos ensaios e mesmo nas conversas informais que se pode ter a qualquer momento com quem faz a festa, são variadas as histórias contadas sobre o santo preto, que como mito presentifica a força de uma divindade. Porém, quero ressaltar mais uma vez que, apesar do grande clima de humor e riso que essas histórias transmitem, São Benedito é também uma divindade poderosa e impiedosa que, tal como acontece na tragédia grega, via o nemésis, o ciúme divino, castiga violentamente com a moira, o destino cego, aqueles que cometem uma hybris, ou seja, uma falta desmedida contra si mesmos e contra os próprios deuses. Segundo Junito de Sousa Brandão (2002), que traz uma conceituação e reflexão precisa sobre os elementos constitutivos da tragédia grega, o herói trágico peca por ultrapassar a medida, o métron, e ao fazê-lo fere a consciência divina, pois com sua ação tenta se igualar aos deuses, tenta ultrapassar os limites do humano, o que é um grande desrespeito para as divindades. Nesse momento, só mesmo uma poderosa vingança é capaz de recolocar o homem no seu lugar de inferioridade em relação à divindade, e, por que não, desse modo purificá-lo como faz o fogo rebaixando-o em relação aos deuses, e inversamente elevando-o espiritualmente. Sobre este traço furioso de São Benedito, registrei que em dezembro de 2011 em Belém, numa ladainha rezada em nome do santo que pude acompanhar numa casa frequentada por adeptos de Umbanda e Candomblé, o sacerdote Luciano, que naquele momento “presidia” a ladainha, afirmou com clareza que, no sincretismo de seu povo de santo, Verequete é Xangô, o orixá nagô, o terceiro rei de Oió, e que se tornou o orixá do fogo, o que pode relacioná-lo paralelamente à família Verequete, os Quevioçô. Interessante notar que o caráter de Xangô no candomblé é frequentemente considerado como altivo e garboso, um rei que não admite falhas de seus súditos, por assim dizer.
Como já foi dito anteriormente, os Quevioçô conquistaram o poder sobre o fogo, mas Verequete é referenciado em alguns pontos cantados como o rei do Mar, o que explicaria sua conexão com a festa da Marujada, uma festa realizada por homens e mulheres do mar. Mesmo que, nesse caso, se trate de um mar do ponto de vista simbólico, pois Quatipuru é construída junto de um rio. O mito de Verequete como vodum Quevioçô rei do Mar, ou seja, “um fogo que se deita no mar”, reúne elementos poderosos que fazem de seu sincretismo com São Benedito uma junção de elementos arquetípicos geradora de um forte vetor de energia psíquica, a Marujada de São Benedito como um grande espaço de comoção, pois a força simbólica do fogo e do mar dela emana. Nesse momento, é possível retomar o simbolismo do mar como o inconsciente, o desconhecido conforme ele já foi discutido anteriormente; porém, quero sublinhar que o mar como um grande espaço misterioso é também um espaço altamente perigoso, não por acaso retratado intensamente em numerosos mitos de heróis como o espaço em que se dão as provações. Nesse sentido, temos o mar em chamas, vibrando a intensa energia da divindade, o símbolo de sua força terrivelmente destruidora, mas purificadora. Verequete como o rei do mar apresenta essa face, tal qual Netuno na mitologia grega. Numa das versões do mito, Netuno é representado como a intervenção divina que se realiza como moira contra os abusos do rei Midas, que teria pedido ajuda ao deus do mar que em troca lhe exigira o sacrifício do melhor touro de seu reino. Após conquistar o que desejava com a ajuda de Netuno, Midas escondeu o seu melhor touro e sacrificou um outro, o que provocou uma crescente fúria de Netuno que mobiliza ao final o gesto destruidor do deus que aniquila o reino do rei traidor de sua própria promessa. Assim como Verequete, Netuno é uma divindade que remonta à natureza de um mar violento e perigoso, e que, portanto, deve ser respeitada. Esse aspecto do potencial simbólico do mar reforça a concentração de energia arquetípica que a Marujada de São Benedito emana a partir das imagens que permeiam sua constituição. Assim, as histórias de São Benedito em Quatipuru revelam uma divindade que está a todo momento vigilante daqueles que não lhe prestam o devido respeito, castigando-os ferozmente a cada erro cometido pelos humanos. Daí, uma enorme multiplicação de histórias de desastres que ao mesmo tempo representam a urgência do medo e o amor a um santo poderoso que protege aqueles que o respeitam devidamente. Retomando Mircea Eliade: Na maior parte dos casos, não basta conhecer o mito de origem, é preciso recitá-lo; isto é, de certo modo, proclamar seu conhecimento, que assim é
mostrado. Mas isto não é tudo: ao recitar ou celebrar o mito da origem, ficase impregnado da atmosfera sagrada na qual os acontecimentos milagrosos se passaram. O tempo mítico das origens é um tempo “forte”, porque foi transfigurado pela presença activa e criadora dos Seres Sobrenaturais. Recitando os mitos reintegra-se esse tempo fabuloso e, consequentemente, fica-se de certo modo, “contemporâneo” dos acontecimentos evocados, partilha-se da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária, poder-se-ia dizer que, “vivendo” os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, e penetra-se num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, simultaneamente primordial e indefinidamente recuperável (s/d, p. 22-23).
Essa talvez seja uma bela definição do que vem a ser a imersão mitológica, para além de um conhecimento formal sobre os mitos, uma experimentação deles, e talvez um texto acadêmico jamais seja capaz de transmiti-la, pois lhe falta cheiro, pele e voz. Pelas ruas de Quatipuru, eu ouvi grandes histórias sobre São Benedito, a maioria delas contadas por gente comum, mas que no gozo de suas narrações experimentavam o conhecimento que lhes permitia alcançar uma centelha do divino. A esse divino eu devo todo o meu respeito, afinal, pesquisar a Marujada de São Benedito em Quatipuru é, do meu ponto de vista, experimentar o sagrado que se revela no cotidiano, na rua e na fala de um povo imerso num tempo-espaço sacro, pois são eles mesmos os personagens de seus mitos, são eles mesmos que temem e amam a fúria de água e fogo de São Benedito. Este texto elabora-se como narrativa de minha catábase, sendo ele mesmo uma tentativa de anábase, pois imergir no mito certamente é uma aventura perigosa; porém, realizar a imersão em linguagem acadêmica certamente é tarefa tão dura quanto. Confesso minha paixão, minha confusão, mas encerro este texto com uma afirmação de Antônio Carlos Farjani que percebe o mito, como os autores elencados durante este texto, como expressão do sagrado, portanto do inefável: “[...] para expressar-se plasticamente, terá que se submeter a um processo que equivalerá a uma verdadeira mutilação da sua essência original (FARJANI, 1991, p.52). Portanto, uma leitura sobre o mito só poderá ser parcial, tal qual o mito que, como expressão do divino, jamais poderá captá-lo com toda a sua força. Assim, contento-me com a aproximação, o sutil calor da centelha. Salve São Benedito.
CAPÍTULO III UM DIA DE FESTA: LEITURAS DE UMA ETNOAVENTURA
Após incursões teóricas e poéticas acerca dos caminhos abertos por este processo de pesquisa, é chegado o momento crucial de efetivamente escrever a leitura sobre os mascarados da Marujada de São Benedito em Quatipuru e articular mais uma vez todos os elementos que desde o início desta dissertação foram trazidos à cena como estruturantes de minhas reflexões: leitura, símbolo e imaginário. Escrevo no sutil limiar entre a liberdade de ampliar as potencialidades simbólicas da festa pela leitura e inspiração respeitosa e sóbria do texto etnográfico, que se expressa de maneira mais eficiente pela narrativa. Nesse contexto, considero iluminadoras as palavras de Walter Benjamin sobre o gesto narrativo: A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois tirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (1994, p. 205).
A imagem do oleiro moldando a argila para construir o vaso me remete ao movimento necessário que agora acalma o sentimento de terror que me tomou quando percebi que a largueza imensa da experiência de campo jamais poderia ter um equivalente direto em forma de dissertação. A vida sobre qual trato aqui é como um manancial extraordinário e incrivelmente potente, mas que ao se apresentar em toda sua potência é como uma grande fonte de caos. É necessária a calma do oleiro que, com delicadeza e firmeza, imagina com as mãos possibilidades de moldar a argila, que para o olhar desatento tem algo de disforme, mas para o verdadeiro artesão revela sua potencialidade sem fim para fazer do ser humano um criador. Depois de quatro anos de festa, moldo a Marujada em forma de texto, e o faço com a clareza de que nessa experiência, eu também fui moldado sutil e poderosamente. Escrevo a memória de minha etnoaventura, sempre rumo ao desconhecido, encontrando, em cada personagem que
cruzou comigo, o espelho de humanidade e divindade que ressalta a nossa conexão. Na máscara do mascarado, o poderoso encontro com a história desde que o mundo é mundo até os dias de hoje, pois escrevo sobre o conteúdo arquetípico dessa experiência. Escrevo minha leitura a partir do mistério da Marujada, e, já que se trata de um trabalho acadêmico, recorto o mistério em forma de estrela no papel e o retomo mesclando histórias dos meus quatro anos de festa, histórias dos fiéis amigos que me acompanharam em campo e histórias que ouvi de meus belos mestres da tradição em Quatipuru.
3.1. LEVANTAMENTO DO MASTRO: ARRUMANDO O PAU DO PRETO E O TEMPOESPAÇO DO SAGRADO A festa da Marujada de São Benedito em Quatipuru se inicia oficialmente no dia 18 de dezembro, quando são fixados em frente ao barracão os dois mastros de São Benedito. Devido às minhas atividades profissionais e estudantis em Salvador, só pude acompanhar esse primeiro dia de festa em dezembro de 2011. Senti que era necessário estar presente neste primeiro dia, pois desde as minhas primeiras conversas sobre os mascarados com o Seu Pedrinho, capitão da Marujada e guardião de sua tradição, uma informação sempre me pareceu muito curiosa: segundo o capitão, era função dos mascarados fazer o preparo do mastro. Esta informação retornou em momentos pontuais à fala de Seu Pedrinho, porém nem na tese da professora Karine Jansen aqui referenciada como o principal documento etnográfico que serve de base a esta dissertação, nem na fala de outras pessoas ligadas à Marujada havia qualquer relação estabelecida entre os mascarados propriamente e a preparação dos mastros. De todo modo, eu percebia que ao realizar a derrubada dos mastros no último dia de festa, os mascarados encerravam simbolicamente o ciclo da festa que se inicia justamente com a levantada dos mesmos mastros. Assim, apesar de a preparação dos mastros não corresponder efetivamente à participação dos mascarados na Marujada de Quatipuru, sua presença na festa está intimamente conectada simbolicamente a estes, o que discutirei com vagar neste capítulo. Em campo, por boa parte do tempo eu não compreendia bem porque levantar o mastro, como dizem no falar cotidiano de Quatipuru, deveria ser uma ação dos mascarados, afinal, concretamente, não há mascarados na rua nesse dia, e, efetivamente, a preparação dos mastros e seu transporte durante o cortejo na rua são atividades realizadas por vários homens, entre
marujos, tamboreiros, foliões da festa e moradores. Para mim, havia ali uma contradição estranha em relação a esta suposta “função dos mascarados”, pois, se a brincadeira parte do princípio de que suas identidades devem ser resguardadas, o princípio do jogo seria quebrado no momento em que os homens por trás dos mascarados se revelassem para a cidade no primeiro dia de festa. Apesar da informação truncada, eu precisei considerá-la seriamente, pois Seu Pedrinho a repetiu em diferentes momentos, chegando a afirmar, inclusive, no último ano (2011), que tomara a decisão de estabelecer que os mascarados deveriam preparar, carregar e levantar o mastro como um castigo devido ao mau comportamento deles no ano anterior, quando teriam exagerado na baderna e no “desvio” de presentes21. Ora, como eu estava presente no último ano da festa, eu bem percebia que Seu Pedrinho estava ali conversando e brincando comigo, mas desconfiava de que, mesmo naquelas palavras descontraídas e no riso do capitão, algo de interessante poderia se revelar a mim no momento em que acompanhasse o levantamento dos mastros. Assim, no dia 18 de dezembro, pela manhã, segui para o sítio Boa Vista juntamente com Rodolfo e Cássio, meus companheiros que realizaram o registro audiovisual da festa no ano de 2011. Já há alguns anos, não saberia precisar quantos, o primeiro momento ritual de abertura dos trabalhos na Marujada acontece no sítio Boa Vista, que pertence a um político que apoia a festa. Assim como nos mascarados, pude perceber que preparar o mastro é uma atividade essencialmente masculina, provavelmente pelo desgaste físico envolvido na ação. No ano em que acompanhei o preparo dos mastros, estavam presentes desde cedo Seu Pedrinho, Seu Zé Maria (marujo), Seu Olivar (tamboreiro), Seu João (tamboreiro) e Seu Poeira, de todos, o único que participa da Marujada efetivamente como mascarado. Observei então que a realidade contrariava as palavras do Seu Pedrinho, apesar de notar que o momento da preparação do mastro, assim como o momento dos mascarados, se revelava como uma atividade essencialmente masculina. Nesse sentido, o desgaste físico envolvido em encontrar a palmeira certa no mato, derrubá-la a machadadas e carregá-la até o lugar em que ela será ornamentada como atividade que exige certa força, conectava a preparação dos mastros e o vigor físico envolvido nas ações que compõem a brincadeira dos mascarados.
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Quanto ao “desvio” de presentes, refiro-me a uma ação recorrente por parte dos mascarados, durante o momento em que atiram os presentes ao povo em volta dos mastros. De modo a resguardar uma parte dos presentes para eles mesmos, os mascarados utilizam um saco em que são guardados os presentes “desviados”. A existência desse saco (o “saco dos mascarados”) produz grande alvoroço entre o povo e uma série de brincadeiras paralelas, o que discutirei adiante.
Talvez nesse espaço de força do masculino resida a relação prática e simbólica que associa o ritual dos mastros com os mascarados, pois abrir e encerrar o ciclo da festa da Marujada termina por simbolicamente remontar ao potencial ativo das imagens fálicas que levantam e depois descem, retornando ao chão. Quanto ao manuseio do mastro, sua característica eminentemente masculina é ressaltada na descrição da professora Karine (2008) que afirma que “Na feitura do mastro, não existe a presença de mulheres, principalmente no momento em que se deve entrar no mato.” (p. 79), o que indica poderosas sugestões para uma leitura do mastro e dos mascarados como momentos rituais presididos pela simbólica do masculino na festa. As palmeiras que servirão de mastros são retiradas da terra, de suas existências naturais, mundanas, e ganham, no momento em que são preparadas para se tornar mastros, o poder transcendental dos símbolos fundantes da festa da Marujada. No sítio Boa Vista, pela manhã, enquanto são escolhidas as palmeiras que morrerão para restaurar a tradição, o silêncio da mata e o canto dos pássaros indicam que o ambiente ainda ignora o que virá. Os passos dos homens no chão amassando as folhas, o ruído da caminhada em direção ao que deve ser feito... é emocionante pressentir que a festa está prestes a começar. É possível ouvir um riso de criança brincando perto dali, é como se agora o mundo todo pressentisse o que vem. O machado do homem corta a árvore que cai num estrondo de morte. O homem solta um foguete para o céu num estrondo de vida que, naquele ano, abre a festa da Marujada: “O trovão como estrondo aterrador é a primeira existência de um poder superior ao da comunidade humana” (CAMPBELL, 1997, p. 11). Interessante notar que os foguetes lançados demarcam a Marujada com elementos que frisam os momentos rituais mais importantes da festa. Assim, é como se o som dos estrondos dos foguetes também demarcasse o tempo divino que se instaura nos momentos em que os ritos da Marujada, ou seja, as ações que compõem o ritual religioso da festa, reiteram a presença da força mítica de um São Benedito que mobiliza aquele povo: “Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-se semelhante ao divino” (ELIADE, 1996, p. 94). As palavras de Mircea Eliade expressam bem o sentido simbólico fundamental dos mastros na Marujada de São Benedito. O ritual dos mastros abre o ciclo da festa da Marujada instaurando uma espécie de tempo mítico que permite a participação dos homens comuns no divino, o
que, segundo Eliade, reflete o cerne da questão: “A experiência religiosa da festa, quer dizer, a participação no sagrado, permite aos homens viver periodicamente na presença dos deuses” (1996, p. 93). Assim, reiniciar a festa da Marujada é reencontrar a esperança de que a força de São Benedito, o glorioso santo preto, também pode ser integrada à vida de cada um. Ainda segundo as proposições de Eliade sobre o rito: O valor apodíctico dos mitos é periodicamente reconfirmado pelos rituais. A rememoração e a reatualização do evento primordial ajudam o homem “primitivo” a distinguir e reter o “real”. Graças à repetição contínua de um gesto paradigmático, algo se revela como fixo e duradouro no fluxo universal. Através da repetição periódica do que foi feito in illo tempore, impõe-se a certeza de que algo existe de uma maneira absoluta. Esse “algo” é “sagrado”, ou seja, transumano e transmundano, mas acessível à experiência humana. A “realidade” se desvenda e se deixa construir a partir de um nível “transcendente”, mas de um “transcendente” que pode ser vivido ritualmente e que acaba por fazer parte integrante da vida humana (ELIADE, 1989, p. 224).
Considerando as afirmações de Eliade, pude perceber que o gesto ritual ancestralmente repetido demarca firmemente a possibilidade de o homem estabelecer concretamente o contato com o sagrado em sua vida. Assim, quando, em Quatipuru, tive a oportunidade de conversar sobretudo com os antigos na Marujada, pude entrar em contato com pessoas que canalizavam em si a potência espiritual de uma tradição. Do mesmo modo, ao escolher uma forma de compreender a Marujada pela participação efetiva em seus ritos, também pude sentir passar pelo meu corpo uma espécie de acúmulo ancestral de energia espiritual. Talvez me faltem termos acadêmicos para descrever essa experiência, mas com certeza o poder e o mistério que pude contemplar em cada momento ritual da festa jamais poderá ser completamente exprimível em linguagem alguma. Eliade corrobora o que digo, afirmando que, por mais que o aprendizado do mito acompanhe a possibilidade de entrada e abertura do conhecimento cósmico transcendental à experiência do sujeito, ainda assim, as realidades às quais o mito se referem “continuam conservando sua densidade ontológica original.” (1989, p. 124), ou seja, o mistério persiste. De todo modo, esforçando-me por realizar uma aproximação das energias que fluem por todo o tecido da Marujada, relembro mais uma vez que as esperanças renovadas a cada ano concentram no mastro um fator que Eliade (1989) atribuiu ao homem arcaico como a não aceitação da irreversibilidade do tempo. Assim, a partir do momento em que eles começam efetivamente a preparar o mastro, o tempo mítico é instaurado.
Aquela manhã de dezembro gerou em mim um certo anuviamento de minha percepção objetiva e embarquei serenamente no ato de encapar a palmeira com suas próprias folhas, ou seja, iniciar a ornamentação do mastro, enquanto ouvia as muitas histórias sobre a Marujada e sobre São Benedito que aqueles homens começavam a me contar. Sobre esses momentos em que o rito permite o alargamento da percepção do tempo, Leda Martins, citando Pierre Nora, ressalta a diferença entre os lugares de memória, como as bibliotecas, os museus e arquivos, e os ambientes de memória, ou seja, aqueles ambientes construídos nos gestos e nas ações e repertórios corporais, “cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem e preservação dos saberes” (MARTINS, 2003, p. 69). Segundo o referencial teórico advindo dos estudos da performance, Leda Martins considera os ritos como performances rituais, que reúnem em si um vasto repertório mnemônico em ações e práticas que se expressam fundamentalmente pelo corpo e voz, daí a construção da noção de oralitura22 pela autora: O significante oralitura, da forma como apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição verbal, mas especificamente, ao que em sua performance indica a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimentos e na vocalidade. A oralitura é do âmbito da performance, sua âncora; uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo (MARTINS, 2003, p. 81).
A partir dessa noção, consultar a oralitura da Marujada de São Benedito foi o ato presente de acompanhá-los na ornamentação daquele mastro, aquela ação repetida incontáveis vezes no passado e que, naquele momento, se renovava na minha presença e com a minha participação. Esta presença certamente produz sentidos outros para aquela ação, pois agora que havia câmeras fotográficas e de vídeo, era evidente que aqueles homens se sentiam extremamente valorizados, mas esse conteúdo não abafava a necessidade de realizar o ritual; mesmo que eu não estivesse lá com meus companheiros e nossas câmeras, aquela ação seria realizada: ela é
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“Oralitura. Maximilien Laroche salienta que a palavra "oralitura" foi forjada por Ernst Mirville em 1971. Para Chamoiseau e Confiant a oralitura tem como figura central o contador crioulo, aquele que vai transmitir os contos, provérbios, adivinhações, que se constituíram, no passo do tempo, no lugar de inscrição do imaginário. Na época da escravidão, durante a noite, o contador relatava essas histórias feitas dos vestígios do passado. Palavras noturnas que diziam dos sofrimentos dos escravos e conformavam uma contra-cultura oposta ao sistema de escravidão. A oralitura foi assim o lugar que representou a forma estética da resistência, da cimarronagem na plantação mesma. Ela foi também o lugar onde se misturaram elementos diversos, da África, animais como o tigre ou o elefante, da Europa, personagens como o Diabo, Deus e ainda elementos vindos dos Caraíbas, dos Indianos, dos Chineses”. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/glissant/comentarios.htm>. Acesso em: 16 mar. 2012.
sagrada e está inscrita de modo espiralar no tempo. Ou seja, sua relevância vai muito além dos desejos dos sujeitos envolvidos objetivamente naquele processo. O rito como forma mais elementar do primevo sentido da palavra religião, (do latim religare), representa simbolicamente o vínculo dos humanos com o divino e suas ancestralidades. Aqui lembro da imagem que Karine Jansen utilizava ao pensar a ancestralidade na fila das marujas durante o cortejo na rua da Marujada: por detrás de cada maruja na fila da Marujada, há uma outra enorme fila espiritual que também dança a Marujada nos dias de festa. Essa é uma bela imagem que remonta à ancestralidade e ao tempo espiralar que retorna eternamente; não como repetição, mas como recriação simbólica do ciclo da vida, o movimento arquetípico fundamental no qual toda criatura no mundo está envolvida. Como um logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua concepção linear e consecutiva. Assim, a ideia de sucessividade temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento (MARTINS, 2003, p. 79).
Desse modo, Leda Martins atribui ao rito, ou performance ritual, o mesmo poder de transfiguração do tempo que Mircea Eliade também considera ao apontar as relações entre rito e mito, em suma, uma possibilidade de conexão e religação poderosa com o sagrado. Assim, no momento em que Seu Pedrinho e companhia me ensinavam a ornar com delicadeza os mastros de São Benedito, ali eu entrava em contato com a sabedoria e o conhecimento que reside na própria prática, o que não significa que agora eu possa falar dela como os antigos mestres da tradição; longe disso, mas talvez agora eu possa reconhecer a fonte da intensidade de emoções que aqueles que vão a Quatipuru sentem durante a Marujada. Nos dias de festa, um portal mágico se abre e é o mastro o símbolo fundante dessa abertura. Nesse momento, percebo que, apesar da grande força empreendida no corte da árvore e depois ao carregá-la nos ombros até o lugar em que se poderia começar a orná-la, aqueles duros homens também liberavam, como já foi dito, uma parte mais delicada deles mesmos ao tomar as folhas das palmeiras e ajustá-las com um rigor feminino ao “corpo” do mastro que nascia. As mãos percorrem em círculos e espirais a superfície cilíndrica do mastro, quase mimetizando a estrutura espiralar do tempo-espaço; e com graça, o mastro de São Benedito
começava a aparecer com grande beleza pelas mãos daqueles homens: “Do comedor saiu comida e do forte saiu doçura” (Juízes, 14:14).
3.2. LEVANTAR O PAU DO PRETO: MOTRIZES AFRO-BRASILEIRAS DO SAGRADO Apesar do que afirmo como sendo uma parcela de delicadeza nas mãos daqueles homens duros, provavelmente por uma questão cultural eles não assumem esse aspecto deliberadamente e logo passam a criar estratégias para rir de suas próprias feminilidades, por assim dizer. A brincadeira mais recorrente em relação a este momento do rito é afirmar que ali estavam todos “encapando o pau do preto”, numa clara alusão à característica fálica do mastro. Por um lado, há aqui uma clara relação com o sagrado que difere fortemente das perspectivas que aponta Eliade (s/d), pois em vez de seriedade para com o ente mítico, eles têm uma relação muito mais de proximidade pelo riso, o que já foi abordado no capítulo anterior.
Figura 9 – Preparando o mastro. Foto: Rodolfo Mendonça (2011).
De certo modo, ao elaborarem várias brincadeiras com o manuseio do tal “pau do preto”, de um lado os homens ridicularizam o erotismo homoafetivo e, por outro, incluem esse mesmo erotismo como parte integrante de suas percepções e imaginário. Cabe ressaltar, no momento ritual da preparação do mastro, o estado constante de brincadeira que inclui falas maliciosas inclusive sobre o próprio São Benedito, que, nesses momentos, em vez de ser chamado pelo
epíteto de “glorioso”, é carinhosamente chamado de preto, ou pretinho, como se fosse um amigo muito próximo. No capítulo anterior, sinalizei que, a partir do sincretismo existente na Marujada de Quatipuru entre São Benedito e o vodum Verequete, é possível pensar esta festa como um exemplo do que Leda Martins considera como cultura negra formada a partir das encruzilhadas culturais que, no encontro de tradições diferenciadas, acabam por gerar um elemento terceiro necessariamente híbrido; e a essa dinâmica pode ser creditada grande parte dos objetos culturais brasileiros, sobretudo aqueles que possuem relação com a cultura negra advinda de alguma herança africana. A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. Na concepção filosófica de muitas culturas africanas, assim como nas religiões afro-brasileiras, a encruzilhada é o lugar sagrado das intermediações entre sistemas e instâncias de conhecimentos diversos, sendo frequentemente traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular dos cosmos e do espírito humano que gravitam na circunferência das suas linhas de intersecção (MARTINS, 2003, p. 70).
Conforme discutido no capítulo anterior desta dissertação, na informação prestada por uma mãe-de-santo da tradição do candomblé de ketu, vodum Verequete é considerado um Exu, orixá nagô que é o próprio senhor das encruzilhadas. Considerando a abordagem escolhida para a condução da leitura neste processo de pesquisa, percebi que em todo o tecido da festa é a força simbólica e arquetípica de Exu que emana como fio condutor e elemento agregador de todos os elementos que compõem a Marujada. Exu é o orixá da comunicação, aquele que é capaz de estabelecer a relação entre o orum (mundo espiritual) e o ayé (mundo terreno), ou seja, Exu guarda em si o incrível talento da negociação, o que lhe coloca como o orixá que preside o comércio e as trocas. A partir da percepção desses atributos, alguns autores 23 que
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A aproximação entre Exu e Hermes foi a mim apresentada pela primeira vez pelo professor Bião durante suas aulas no curso de Etnocenologia que frequentei como aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA em 2009. Porém, pude incorporar essa informação mais vigorosamente na experiência que tive em 2010 no processo criativo do espetáculo teatral “A gente canta Padilha”, de dramaturgia, direção e concepção global do próprio professor Bião. Este espetáculo foi resultado do projeto de pesquisa “Mulheres por um fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro” e se inspira no teatro de cordel de João Augusto para narrar a história de Maria Padilha, uma personagem histórica que misteriosamente entrou para o panteão de entidades da umbanda como uma pomba-gira, ou seja, um Exu do sexo feminino, uma Exua “Prima do romano
tratam desse simbolismo aproximam Exu de Hermes, o psicopompo, aquele que conduz as almas ao inferno grego e, mais tarde, em Roma, a Mercúrio, o deus dos comerciantes, dos ladrões e daqueles que cruzam as fronteiras. Tanto Hermes, quanto Exu são considerados tricksters de um ponto de vista mitológico, ou seja, apresentam em sua energia arquetípica o potencial subversivo da inversão dos valores, representando o questionamento do padrão de normalidade de uma sociedade e a integração de outros aspectos da existência, o que se expressa comumente pelas brincadeiras às quais essas duas divindades estão relacionadas em muitos de seus mitos. O que considero relevante sobre a relação entre Exu e Hermes tem a ver com a percepção clara de que ao representarem paralelamente os mesmos conteúdos, essas duas divindades, do ponto de vista mitológico representam também uma frequência de energia arquetípica similar e que pode ser observada como força mobilizadora da festa da Marujada. Sobretudo nos momentos em que, por exemplo, durante a preparação dos mastros o Seu Olivar, velho tamboreiro e mestre dessa tradição, se põe a contar causos cômicos em que estão relacionados homens comuns e o próprio santo preto. A malícia na fala daqueles que fazem a Marujada é como uma manifestação das qualidades de Exu, o senhor das encruzilhadas que, em seu modo de devoção, aceita com tranquilidade determinadas intimidades: “Exu é um orixá do panteão iorubá proveniente da Nigéria, especial e diferente dos outros, mas equivalente em importância – o único que gosta de jogar, burlar, comer exageradamente e, explicitamente, incluir a vida sexual em suas considerações” (LIGIÉRO, 2011, p. 243). Segundo Ildásio Tavares (2008), na cosmogonia iorubá, Exu é o próprio movimento, a pulsão de vida que, como polaridade da suprema inércia de Obatalá, o pai do branco, propulsiona, realiza o ato catalisador que dinamiza o estático. Sob essa perspectiva, todo culto de Exu deve agregar esses elementos para evidenciar o que Tavares chama de faixa de energia cósmica que corresponde a este orixá. A qualidade de energia à qual Exu está relacionado explica porque ele foi historicamente associado à imagem do Diabo medieval cristão, o que se cristalizou de diferentes formas, sobretudo na Umbanda, em que as imagens de Exu, em geral, remetem ao senhor vermelho de rabo e chifres, munido de um tridente, conforme o imaginário cristão. Evidentemente essa é uma questão complexa da qual Zeca Ligiéro trata com profundidade, porém, para este trabalho de pesquisa basta sublinhar que: “Obviamente, como o diabo
Mercúrio [o mesmo que o Hermes grego], o dos pés e capacetes alados, do comércio e das artes” (BIÃO, 2010, p. 22).
católico, ele gosta de amor, sexo e sacanagem. Também é forte a sua paixão pelo dinheiro, o que representa a plenitude de energia da Terra.” (LIGIÉRO, 2011, p. 251). O sincretismo entre São Benedito e Verequete salienta aspectos simbólicos que aproximam gravemente a festa da Marujada às vibrações de Exu. Leda Martins (1997) percebe o sincretismo como estratégia de deslocamento em que devoções aparentemente católicas possuem um modo de proceder baseado em uma gnose eminentemente africana, o que revela uma dinâmica cultural e religiosa afro-brasileira, ou seja, mesmo que superficialmente dominada por símbolos católicos, situada numa encruzilhada cultural que em suas práticas e modos de proceder é possível identificar o elemento africano fortemente estabelecido. Assim, o santo católico tem seus conteúdos simbólicos alterados na intersecção ou, melhor dizendo, no espaço de encruzilhada formado pela superposição dos elementos advindos das culturas negras. Para compreender a dinâmica cultural das chamadas performances afro-brasileiras, Zeca Ligiéro (2011) elaborou o conceito de “motrizes culturais”. Uma reação declarada ao conceito de matriz africana amplamente difundido nos meios acadêmicos, sobretudo, nas humanidades. Para Ligiéro, a noção de matriz africana ressalta uma percepção formal que enfatiza noções de origem e identidade fixadas num tempo passado e num modelo redutor que não dá conta da complexidade da questão. Como forma de contornar esse equívoco, o autor procede com a criação do conceito de motrizes culturais. O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar os comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011, p. 107).
Segundo o autor, constituem as dinâmicas principais das motrizes afro-brasileiras: 1) o emprego dos elementos performativos: canto, dança e música; 2) a utilização simultânea do jogo e do ritual na mesma celebração; 3) o culto dos ancestrais por meio do culto e do transe; 4) a presença do mestre que guarda o conhecimento da tradição e que, através da iniciação, transmite o legado, e que na maioria dos casos também é performer líder do ritual e/ou da celebração; e a 5) utilização do espaço em roda – as performances se movimentam dentro do círculo enquanto a plateia assiste em volta (ibid, p. 108)
As considerações de Zeca Ligiéro sobre as motrizes culturais africanas na cultura brasileira servem à percepção de que são essas mesmas motrizes que dinamizam a Marujada de São Benedito em Quatipuru, situando-a contextualmente na encruzilhada das culturas brasileiras. Assim, após a preparação cuidadosa do mastro, um pouco mais tarde, após o almoço e depois de alguns muitos copos de vinho, que estavam sendo consumidos desde cedo naquela manhã, os dois mastros devidamente preparados saem cortejados pelas duas filas de marujas pelas ruas de Quatipuru, sempre anunciados pelos foguetes que a todo o momento comemoravam a presença estrondosa e divina de São Benedito. Ou seja, como festa popular situada no contexto religioso afro-brasileiro, a Marujada de São Benedito encena a presença do divino por meio do pulsar intenso e alegre do corpo, uma tradição pautada na liberação das energias sensuais da terra, precisamente na ênfase em uma ancestralidade festiva que, conforme Érico de Oliveira, dá lugar de destaque a um “corpo prazenteiro que ri, que goza, que se diverte, que ama...” (2006, p.53). Durante o cortejo, as duas filas de maruja acompanham os dois mastros que seguem ao centro. A dança/marcha das marujas ressalta a relação com a terra, o espaço mundano de Exu, no passo que quase não tira o pé do chão e salienta percussivamente no arrastar de pés a música24 dos tamboreiros que tocam tambores, pandeiro, triângulo, banjo e violino enquanto cantam 24
A música da Marujada é tema envolto de grande complexidade, pois ao mesmo tempo em que há um inventário fixo de gêneros que são executados, entre as diferentes Marujadas de São Benedito que há no Estado do Pará, algumas sutis diferenças podem ser observadas. A música da Marujada é essencialmente instrumental, e nela o tambor define o gênero musical, enquanto o banjo faz a harmonia e o violino ou rabeca, nome popular do violino confeccionado artesanalmente, faz a melodia. Percussivamente é possível encontrar na Marujada a presença do reco-reco, da caixa de santo e do tambor onça. Em Quatipuru, a percussão é também completada pelo pandeiro e o triângulo. A sequência fixa de gêneros que se desenrola nos momentos de dança do Barracão é a seguinte: roda, retumbão, chorado, nas quais se pode perceber a ascendência negra pelo batuque; e mazurca, xote e contradança (valsa), de forte ascendência europeia (MORAES; ALIVERTI; SILVA, 2006, p. 60). Todos os gêneros apresentados são executados em compasso binário ou quaternário, a exceção da mazurca e da contradança que são executadas em compasso ternário. Não há informações precisas sobre como o repertório europeu de gêneros musicais, de forte tom erudito, passou a fazer parte do ritual das Marujadas; porém, é evidente que, mesmo nesse repertório, o resultado musical é sempre mestiço, mesclando melodias de origem europeia a timbres e sotaques eminentemente afro-brasileiros. É interessante notar também que a presença do carimbó é marcante nas danças do barracão, exercendo grande magnetismo e finalizando as atividades das noites de dança, quando o povo que acompanha a festa também adentra no salão para dançar o carimbó circularmente junto das marujas e marujos. Conforme Karine Jansen (2008), a Marujada de Quatipuru possui a especificidade de ser cantada, à exceção do chorado, o que se tornou evidente como elemento de identificação para a comunidade no momento em que tocadores de banjo e rabeca da cidade faleceram e foi necessária a contratação de músicos de outras cidades para os substituírem. Os cantos são corais e divididos na maioria das vezes em duas (voz solo e contralto) ou três vozes (voz solo, contralto e baixo) que os tamboreiros assumem espontaneamente. Os cantos são extremamente elaborados na harmonia, especialmente na ladainha de São Benedito cantada em latim no dia 26 de dezembro, o dia de São Benedito. Quando a Marujada toma as ruas, são executados, a partir do acompanhamento instrumental, cantos improvisados constituídos estruturalmente à semelhança do repente nordestino, com uma melodia de base fixa e frases que se repetem com grande frequência, não necessariamente com a função de estribilho. Porém, é importante notar que não há, do ponto vista temático, a característica de desafio, mas sim de louvor a São Benedito (AMORIM, 2008, p. 107).
louvores ao santo preto. Nesse momento estão presentes quase todos os elementos que compõem as motrizes afro-brasileiras, à exceção da dinâmica construída no espaço circular que, aqui, é substituída pelo formato de cortejo. Trata-se, segundo Ligiéro (2003), de uma continuidade das tradições medievais das procissões católicas, mas que ao entrar em contato com a cultura negra no Brasil, adquire um tom festivo, sobretudo pela introdução da força motriz do “cantar, dançar, batucar”, e instauram um segmento de performances procissionais afro-brasileiras que, para o autor, são responsáveis, inclusive, por constituir as raízes do carnaval de escolas de samba do Rio de Janeiro. As motrizes afro-brasileiras frequentemente colorem os ritos sagrados de uma alegria que explode no prazer do corpo. Ao considerar o potencial simbólico de Exu como força propulsora deste conteúdo, ressalto a alta concentração de energia arquetípica que pode ser percebida e, principalmente, sentida na pele em todo o tecido da Marujada. Do meu ponto de vista, leio a presença simbólica de Exu como energia que atravessa e dinamiza toda a Marujada, e que tem nos rituais dos mastros a abertura de um processo de aprofundamento energético e festivo que atinge seu ápice de concentração na brincadeira dos mascarados. Daí a importância fundamental dos mascarados para a festa da Marujada, pois eles presentificam a presença gloriosa, perturbadora e violenta de uma divindade, e agora me refiro a São Benedito, capaz de agregar um alto nível de comoção comunitária que justifica a potência da festa como evento religioso, ou seja, da ordem do religar o mundo terreno ao espiritual. A procissão do mastro é o momento ritual de abertura da festa, e seu objetivo é, junto à comunidade, coletar os presentes que ornamentarão o mastro e serão lançados pelos mascarados de volta à comunidade de Quatipuru. Conforme já foi dito, os presentes são em sua maioria brinquedos infantis, e em 2011, pelas mão do Seu Pedrinho eu recebi o carrinho que se tornou o primeiro presente a ornamentar os mastros. O gesto de Seu Pedrinho me comoveu muitíssimo e aparentemente ele o fez sem muitas cerimônias, simplesmente me deu o carrinho e me mandou amarrar ao mastro, como um bom mestre que integrava a mim, um neófito, aos mistérios da Marujada com indicações imperativas, diretas, simples, mas que resguardam secretamente conteúdos que minha ignorância ainda não permitem adivinhar. Assim Seu Pedrinho agiu em relação a mim durante todos os anos de Marujada e a ele eu também devo minha gratidão. Nesse sentido, a presença de Seu Pedrinho, o capitão da Marujada, assim como a presença de muitos outros antigos mestres da tradição atestam mais uma vez a força das motrizes agindo no tecido da festa.
Ao sair em cortejo do sítio Boa Vista, a Marujada toma as ruas de Quatipuru recebendo em pequenas paradas os presentes que, pouco a pouco, ornamentam o mastro colorindo-o de infância e alegria. Todo o trajeto do cortejo do mastro é realizado sob o cantar, dançar, batucar constante dos tamboreiros, marujas e marujos, assim como compõe o ritual dos mastros a brincadeira de amarrar os presentes. Entre jogo e ritual se estabelece com uma alegria delicada a dinâmica que se aprofundará e atingirá seu ápice no dia dos mascarados.
Figura 10 – Doação do mastro. Foto: Thales Branche (2011).
Por enquanto, ainda não há mascarados, somente os homens que carregam os mastros pelas ruas de Qautipuru, mas noto algum frisson da expectativa desse grande dia. Em vários momentos, crianças me abordaram perguntando sobre os mascarados. Enquanto eu caminhava tentando acompanhar e fotografar o cortejo, conversava com vários pequenos sobre os mascarados. E eles embarcavam na conversa situando-me em todo tipo de elucubração que a mim parecia absurda, mas que para aquelas crianças era a mais concreta verdade. Naquele momento eu ainda não sabia, mas a natureza dos mascarados já começava a me ser revelada por um outro viés na interlocução com as crianças. No próximo intertítulo deste capítulo explorarei esta questão com mais profundidade. Antes do cortejo terminar o seu trajeto e encontrar o rumo do barracão, onde seria fincado, nos arredores do bairro da “Barca” em que há um mangue, um homem coberto parcialmente de lama segurava quatro cocos e os oferecia para serem também amarrados aos mastros. Considerei aquela cena bastante curiosa, pois me remeteu a uma fala de Seu Pedrinho que, em entrevista, já me havia dito que, antigamente, frutas e cocos também ornamentavam o mastro
e eram atirados pelos mascarados à comunidade que estava em volta dos mastros. Seu Pedrinho comentou que essa prática havia sido abolida por ele mesmo, pois, sobretudo os cocos, poderiam machucar as pessoas. Porém, verificando meu arquivo de fotografias percebi que nos outros anos um par de cocos ornamentava a base de cada mastro. E aquele homem que parecia ter vindo do mangue oferecia os cocos dizendo: “O coco é a tradição do mastro”25. Essa fala também me remeteu a uma outra entrevista com Seu Pedrinho em que ele afirmava que o coco é um dos alimentos preferidos de Verequete. Seu Pedrinho, além de capitão da Marujada e funcionário público da prefeitura de Quatipuru, é pai-de-santo da linha de Umbanda e Mina, e em alguns momentos compartilhou alguns de seus conhecimentos em relação ao sincretismo existente entre São Benedito e Verequete. O caso do coco como tradição do mastro revela um rastro da cultura negra compondo em forma de encruzilhada uma cultura eminentemente afro-brasileira.
Figura 11 – O coco e o mastro. Foto: Thales Branche (2010).
Se o coco é tradição do mastro e é também um alimento do agrado de Verequete, de algum modo a cena que pude contemplar me induzia a pensar que havia uma espécie de identificação simbólica entre os mastros e o próprio Verequete. É evidente que esse tipo de informação não é compartilhada por toda a comunidade que faz a festa, mas de algum modo, esse rastro africano, por assim dizer, compõe a festa de forma quase que secreta, apesar de exposta aos 25
Segundo um dos informantes de Karine Jansen (2008, p. 82), cocos e bananas são doações tradicionais para os mastros porque, ao serem jogados, provocam tumulto e diversão. A autora acrescenta que não é mais permitido jogar cocos, porém as bananas fazem a maior sujeira. Em minha experiência de campo, não observei a doação de bananas.
olhos de todos. O coco que é ofertado ao mastro, antigamente era arremessado de volta ao povo pelos mascarados, denunciando a dialética do ciclo vital compartilhado em Quatipuru no tocante à relação com São Benedito, que ajuda quem paga sua promessa e o louva devidamente e agride aquele o ofende. Ou seja, a natureza ambígua do santo preto pode também ser observada em outros elementos que compõem a festa, como no coco que é o presente ofertado e o perigoso objeto que pode ferir. Nesse contexto, é simbolicamente o mascarado que exerce a função de mantenedor do ciclo dinâmico de oferta e dádiva. Retomo a referência que Karine Jansen realizou em sua tese de doutorado ao emparelhar os mascarados a uma tradição coletada por Verger em que se tem a seguinte sequência de ações: Os Heviossos chegam em carreira precipitada, empunhando seu machado” [...]. [...]. o outro pegou um menino pequeno e eles foram entregá-los aos músicos, soltando gritos roucos [...]”. “[...] um terceiro Heviososi subiu em uma laranjeira e, lá de cima, começou a bombardear a multidão com as frutas das árvores (VERGER apud AMORIM, 2008, p. 108).
Depois do cortejo dos mastros atravessar toda a cidade de Quatipuru recebendo presentes, é chegado o momento crucial que encerra o ritual de abertura da Marujada de São Benedito: o levantamento do mastro. Nesse momento, exatamente de frente para o barracão onde acontecerão durante os dias de festa as danças rituais, os tradicionais almoços e as festas de aparelhagem pela parte da noite, os dois mastros são preparados para serem fincados no chão. Antes de serem efetivamente levantados, dois pequenos pombos brancos são posicionados exatamente no topo de cada um dos mastros. Aqui, trago o que Karine Jansen (2008) sinalizou em sua tese de doutorado, quando identificou o pombo branco como um animal que tem relação com Verequete. Sérgio Ferretti corrobora: “Mãe Andreza disse uma vez que a (sic) D. Celeste que Averequete26 estava em transe com uma pessoa que se transformou numa pomba e sumiu. Aí cantaram ‘Averequete é pombo no ar’, para ver se ele voltava.” (FERRETTI, 2011, p. 215). Mais uma vez os rastros de Verequete podem ser observados. Além disso, achei curioso notar que nesse mesmo ano de 2011, no bico de um dos pombos, foi colocada uma nota de cinco reais, observado por todos como uma piada; mais uma vez, o riso se incorporou ao ritual e o pombo subiu junto do mastro com a nota de cinco reais que dali a uns dias desapareceria, provavelmente levada pelo vento. Com este episódio, vale 26
O vodum Verequete, conforme tenho me referido nesta dissertação por assim ele ser conhecido no Pará, também pode ser chamado de Averequete, Averequetê, Frequetê, ou mesmo Anafrequete (FERRETTI, 2011).
lembrar que Exu também adora dinheiro e, se ele está realmente envolvido nessas traquinagens de Marujada, provavelmente ficou muito feliz. Posicionados os dois mastros paralelamente entre si e de frente para o barracão, se inicia o levantamento. Os buracos cavados no chão recebem os mastros como a genitália da terra recebendo aqueles imensos falos que a fecundam e dão início efetivamente à festa da Marujada. É necessário muito esforço e suor em todo o trajeto ritual do mastro e no momento de efetivamente levantar os mastros não é diferente, e é quando é possível perceber o ápice do desgaste físico em todo o ritual. Como escolhi o caminho da participação concreta para a compreensão da festa, além de fotografar, observar e conversar com as pessoas, eu também fiz questão de carregar o mastro e ajudar, sobretudo, no levantamento. O peso do mastro, o cansaço e o suor acrescentam, à posterior contemplação dos dois mastros fincados, um sabor de intensa alegria e religiosidade que só se explica pelo sentimento de estarmos na presença do divino. Se o mastro é tomado a partir de sua simbologia fálica, o conteúdo é relativo ao poder gerador, ao princípio ativo, o ato criador que irrompe o estático (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994) se ajusta plenamente à qualidade de energia de Exu, que sensivelmente pode ser percebida em toda a festa da Marujada. Noto também que é o falo um dos símbolos da potência de Exu, sendo este orixá representado em várias imagens munido de um falo descomunal. O ritual dos mastros é repetido em diferentes festas populares pelo Brasil, mantendo mais ou menos a mesma significação festiva e ritual de louvor ao santo ao qual o mastro se refere, demarcando e instaurando o tempo e espaço sagrado da festa. Em tempos de São João, por exemplo, é possível, inclusive, encontrar localidades em que são levantados três mastros, um para cada santo da quadra junina: São João, Santo Antônio e São Pedro. Nesse sentido sempre achei curioso que em Quatipuru haja dois mastros, apesar de a festa ser de um santo só. Conversando com algumas pessoas nos dias de festa, escutei algumas vezes a história de que os mastros pertencem, cada um, a um juiz diferente, o que faz sentido porque juiz e juíza acompanham todo o cortejo do mastro posicionados exatamente à frente de cada um dos mastros e munidos de suas respectivas bandeiras de São Benedito que, mais tarde, também são posicionadas no topo dos mastros no ato de seus levantamentos. Porém, outras pessoas me diziam que isso era uma bobagem e que, na verdade, os dois mastros eram de São Benedito. O fato é que há essas duas versões, que mesmo contraditórias, por vezes são acolhidas pela mesma pessoa. Naturalmente, essa é uma bela situação para se contemplar o imenso mistério
que uma tradição centenária como a Marujada de São Benedito é capaz de carregar. Ainda não consegui chegar a uma boa resposta sobre a questão dos dois mastros, mas imagino que esse valor do número dois é também uma forma pela qual a festa ensina o arquétipo da unidade dos opostos, em que marujo e maruja, juiz e juíza, mascarado e catirina (o mascarado que se veste de mulher) encenam a propriedade do equilíbrio dos opostos como uma lição sobre a natureza da vida. Nesse sentido, até Exu tem sua porção fêmea, a Pomba-gira, portanto, dois mastros para um São Benedito que também é Verequete, por que não? Após escrever a leitura desse primeiro e intenso dia de mastros e risos e álcoois27 sem fim, contento-me com o tempo-espaço do sagrado instaurado, sobretudo pela potência dos mastros, e agora proponho um salto para o último dia da festa, o dia 27 de dezembro, quando efetivamente os mascarados sairão às ruas e espalharão suas forças por todo o mundo. Gostaria de lembrar que, como escolho o caminho do pensamento simbólico, todas as idas e vindas em temas, termos e histórias antigas (neste texto) são naturais, pois, no (pro)fundo, fruir o sagrado é dançar uma ciranda em espiral que também rompe com qualquer ideia de linearidade do tempo, principalmente nesse momento tão especial e energeticamente potente e concentrado: a brincadeira dos mascarados.
27
Ou alcoóis, como querem alguns gramáticos.
CAPÍTULO IV OS MASCARADOS: O ÚLTIMO DIA DA FESTA
Abro este último capítulo com uma imagem que para mim representa a síntese mais preciosa dos conteúdos que durante toda a dissertação pretendi trazer à tona.
Figura 12 – Mascarado e menino. Foto: Rafael Samora (2011).
Uma alegria enorme me tomou quando dei de encontro com a potência desta imagem-síntese que não foi capturada por mim, mas foi. Uma imagem que diz tudo, enquanto silencia. O mascarado-diabo sorrindo para a câmera, enquanto leva nos braços a alegria sem fim de uma criança, mimetizando a imagem de todos os santos que carregam nos seus braços a criança divina, mas pelo avesso. É encanto infantil sobre o mascarado, o arauto do avesso que se instaura pouco a pouco na Marujada e atinge seu ápice no dia 27 de dezembro, o último dia da festa. Nesse dia, o cortejo pela manhã sempre conta com menos Marujas e o grande almoço que é servido no barracão em que todos comem corre mais rapidamente. Tudo se acelera para as três da tarde em que os homens que sairão de mascarados se encontram no quintal do responsável por esse momento para se prepararem. Durante os anos de 2008 a 2010, Seu Chá
era o responsável pelos mascarados e foi com ele que comecei a aprender efetivamente o que era o mascarado. No ano de 2011, o responsável pelos mascarados voltou a ser Seu Pedrinho. Nessa mesma tarde, enquanto os mascarados se preparavam no quintal determinado, as crianças de Quatipuru se aglomeravam no muro desse quintal, na tentativa de espreitar, espionar os mascarados, buscando adivinhar-lhes suas identidades, desafiando seus mistérios. O menino da foto se chama Eudson, e com sua camiseta do time de futebol Flamengo acompanhou fielmente nossa “comitiva” durante três dias em dezembro de 2011. Como referido anteriormente, acompanhei os primeiros dias de festa com a ajuda essencial de Rodolfo e Cássio, mas voltei a Belém para passar o Natal com a família e retornei a Quatipuru, dessa vez acompanhado de Rodolfo, Cássio, Rafael, Luiz Flávio (Vico), Neto, Raquel, Kleyton e Armandinho. Todos me ajudaram com o registro audiovisual e o compartilhamento de impressões sobre a festa que, pouco a pouco, estruturei sob a forma de leitura escrita. Foi, por exemplo, Vico que me chamou atenção para o fato de que Eudson surgia pontualmente em circunstâncias surpreendentes para nos indicar o caminho da Marujada, ou mesmo da casa desse ou aquele marujo. Eudson realmente nos surpreendia e brincávamos entre nós que duvidávamos de sua condição humana, porque o menino simplesmente surgia do nada, indicando os caminhos certos, como um anjo da guarda, às vezes, às avessas, porque esse menino também é bem travesso e adorava tirar sarro de cada um de nós: esse é mais gordinho, ou aquele usa óculos. Eudson parecia adivinhar que atribuíamos em segredo a ele poderes mágicos, até que no último dia de festa, depois de tudo terminado, quando estávamos sentados no chão com várias crianças em volta, ele chegou a mim e disse: “Eu vi tu nascer! Tu era desse tamaninho... [e fez um gesto com as mãos]”. Esse menino cheio de malandragem e alegria me remetia a um outro aspecto de Exu, que até agora foi discutido por conceitos advindos do candomblé, mas que na umbanda brasileira possui algumas particularidades. Diferentemente de como se processa no candomblé, as almas dos mortos (no candomblé, os eguns) possuem papel estruturante na umbanda, pois assim como no espiritismo, os médiuns podem receber essas almas que se manifestam como entidades vinculadas às diferentes linhas de umbanda. Entre essas numerosas e diversas entidades, há os Exus-mirins, que, genericamente, constituem uma classe de entidades crianças que possuem ligação com os elementos simbólicos de Exu, sobretudo no que diz respeito a seu caráter zombeteiro e traquinas. Já ouvi dizer, inclusive, que o famoso sacipererê nada mais é do que um Exu-mirim. Assim, considerando a disposição para as
travessuras de Eudson, e levando em conta também seus três dias com a camiseta vermelha e preta (as cores de Exu no candomblé e na umbanda), eu concluí seriamente que só poderia se tratar de um Exu-mirim que resolvera nos ajudar e abrir nossos caminhos na festa. A relação com esse menino foi regada a muitos risos que ele nos motivava; e durante aqueles dias eu aprofundava o cerne de minha questão de pesquisa ao sentir junto daquela criança um ponto crucial para a leitura dos mascarados: sua relação com as crianças. Os mascarados são ansiosamente aguardados pelas crianças que não se contêm, a ponto de não esperarem o momento em que a porta do quintal irá se abrir para contemplar aqueles seres misteriosos. Enquanto os mascarados se preparam, as crianças os espreitam, e criaram diversas elucubrações sobre suas identidades, suas naturezas, suas histórias. No esforço imaginativo para dar sentido aos mascarados, as crianças projetam suas próprias sombras, o que se traduz numa cena de espelhamento em que os mascarados se constituem simbolicamente num duplo sombrio das próprias crianças. A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos, a sombra também pode constituir fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo (VON-FRANZ, 2008, p. 222).
Considerando a percepção da sombra como um aspecto da psique, segundo a psicologia junguiana, pude perceber, a partir das palavras de M. Louise Von-Franz, que a sombra representa uma parte de si que é desconhecida e que, frequentemente, é tomada como negativa, pois o ego (a parcela consciente da psique) renuncia a ela firmemente. Segundo essa concepção, quando nos incomodamos muito com alguma atitude de um amigo ou desconhecido, possivelmente estamos diante de um momento em que projetamos a nossa sombra, ou seja, um aspecto interior sobre um ente exterior. A projeção é uma estratégia simbólica de estabilização emocional do ego, porém a integração da sombra à consciência é um momento importante do processo de individuação, segundo a psicologia junguiana. Esse é um tema muito complexo e que tem sua aplicabilidade muito bem determinada e elaborada no contexto do campo da psicologia junguiana; contudo esse não é meu interesse ao trazer tal elemento aqui. Interessa-me, para a compreensão e leitura dos mascarados, a noção de sombra como canalização arquetípica que o simboliza no contexto da festa. Pude observar esse aspecto com muita clareza ao ver a participação das crianças na brincadeira, pois assim
como elas anseiam com paixão pela brincadeira dos mascarados, também o temem intensamente, ou brincam de temê-los, dependendo da criança. Entre os muitos depoimentos que tivemos a felicidade de coletar, percebi vários aspectos dessa brincadeira de espelhamentos que provoca a atração pelos mascarados. Em frente ao muro do quintal dos mascarados, Raquel vivenciou vários momentos de intensa troca com as crianças. Raquel pergunta: “o que eles [os mascarados] fazem”, um menino responde: “Dá-lhe porrada!”, e ela: “E vocês querem ver?”, o menino novamente: “Não, a gente corre!”. Um gordinho, mimetizando uma voz de medo: “Se eles pegam a gente, eles matam a gente. Eu não quero ver mais não!”. Num outro momento de conversa, Raquel pergunta: “o que vocês estão achando deste momento?”, um deles: “ muito ruim que eles vão dá-lhe porrada em nós.”, Raquel retruca: “E por que vocês estão aqui?”, e ele novamente: “Pra gente dá-lhe porrada neles também!”. Assim, a violência dos mascarados inspira a violência dos meninos num claro espelhamento, o que é responsável por boa parte do sentido da brincadeira. Ainda segundo o registro de Raquel, em frente ao muro do quintal, um menino engrossa a voz e, munido de um cipó que é a própria duplicação do cipó/bastão dos mascarados, grita: “Eu vou fazer um cozidão de vocês!”. Alguém murmura algo do lado de dentro do muro e o menino bravo responde: “Vai te fuder, rapá. Vai cheirar o periquito da tua mãe!” e todos riem. Daí um festival de xingamentos podem ser escutados: “Ei, bando zé ruela!”, “Ô, bando de carniça!”, “Ei, cheira pica!”, “Ei, caga na calça!”, e por aí vai. Apesar de haver uma grande troca de insultos e xingamentos de todo tipo, é esse o eixo da brincadeira. Aqui vejo claramente um momento em que a agressividade e a violência como sombra coletiva podem ser fruídas e integradas ao corpo num viés simbólico que não sufoca o espírito comunitário da festa. Antes, é a brincadeira dos mascarados um forte vetor de agregação comunitária, mesmo concentrando energias que não encontramos descritas nos manuais das religiões cristãs, por exemplo. A esse fato, atribuo ser essa uma maneira pela qual as motrizes afro-brasileiras se expressam no seio da cultura, abrindo espaço para uma religiosidade que se dá entre jogo e ritual e que pode trazer em seu tecido elementos arquetípicos diferenciados daqueles que as religiões cristãs exploram. Nesse sentido, os mascarados concentram as energias e os impulsos de um simbólico Exu como um vetor de uma motriz afro-brasileira, pois São Benedito na Marujada de Quatipuru é, em seu potencial mítico, um santo de fogo e um rei do mar, que em sua glória e bondade, pode ser cruel.
Os meninos, então, espreitam os mascarados, aqueles monstros míticos que, em algum nível, são eles mesmos. Ou seja, os meninos inclinam-se perigosa e corajosamente em direção àquela parcela da natureza de suas existências, que eles mesmos temem ao imaginar, mas que também os atrai. Figurar um mal, representar um perigo, simbolizar angústia já é, para o domínio do cogito, dominá-los. Toda epifania de um perigo para a representação o minimiza. A imaginação joga o tempo sobre o terreno onde poderá vencê-lo com facilidade. E, enquanto ela projeta a hipérbole assustadora dos monstros da morte, em segredo aponta as armas que enterram o Dragão. A hipérbole negativa não passa de um pretexto à antítese (DURAND, 1984, p. 124).
Figura 13 – Menino na espreita. Foto: Rafael Samora (2011).
Assim, o impulso imaginativo e a coragem dos meninos em espreitar os mascarados de modo a enfrentá-los traduzem a integração da sombra, a possibilidade de, na relação com os mascarados, fruírem do mesmo potencial de energia arquetípica que eles mobilizam quando saem nas ruas espalhando um cômico e alegre terror. Nesse contexto, as crianças que os espreitam secretamente e os enfrentam corajosamente representam a conquista da festa como um todo. Crianças, jovens, adultos e velhos, todos acolhem os mascarados com alegria e a tradição da Marujada de Quatipuru passa necessariamente por esses seres que temos tratado
como seres imaginários, até aqui. Contudo, eles são homens, jovens e meninos como todos os outros, mas que, do lado de dentro do quintal, enquanto se preparam, abrem espaço em seus corpos para que seus monstros também se liberem, pois a fé em São Benedito e a tradição da festa precisam desses homens que sacrificarão momentaneamente suas humanidades, para que haja mascarados, demônios encarnados que promovem o caos e o sagrado. As crianças de fora do muro mimetizam a violência que pouco a pouco se aproxima dos mascarados; e estes, do lado de dentro, quando veem aquelas pequenas mãozinhas tentando escalar sua fortaleza, aplicam severos golpes com os galhos de cuieira, seus bastões. Vez ou outra, algum mascarado também toma em suas mãos uma cuia de água e atira para o lado de fora do muro contra as crianças, afinal, elas estão num fogo só e, endiabradas, precisam ser controladas, pois os senhores dessas energias precisam de concentração para se se preparar.
Figura 14 – Menino mascarado atirando água para o outro lado do muro. Foto: Kleyton Silva (2010).
Do lado de dentro do muro, a preparação dos mascarados 28 é um momento exclusivamente masculino. Durante os anos de 2008 a 2010, enquanto a preparação se dava na casa de Seu Chá, naqueles anos o responsável dos mascarados, as únicas mulheres que presenciavam parcialmente o momento eram sua esposa e filha, que serviam vinho aos mascarados, mas que não permaneciam no quintal onde acontecia a preparação. Na Marujada de Quatipuru, os únicos espaços que têm participação exclusiva de homens estão entre as atividades dos tamboreiros e os mascarados. Conforme as reflexões de Karine Jansen (2008) e a minha experiência participante na festa, é evidente que a Marujada conta com uma participação 28
A cada ano o número de mascarados varia sensivelmente, mas pude observar uma média de 12 a 15 mascarados entre os anos de 2008 e 2011.
numérica majoritariamente feminina, o que atribui um colorido belo e sensual à festa. Pude perceber que, ainda assim, não há espaços exclusivamente femininos. Porém, eu não saberia afirmar com certeza o por quê da participação exclusivamente masculina entre tamboreiros e mascarados. Talvez pese uma questão cultural sobre os tamboreiros, pois os homens são tradicionalmente mais estimulados a aprender a tocar instrumentos, principalmente em meios populares. Isso de dá, possivelmente, pelo fato de que numa cultura de tendências machistas como a brasileira, a presença feminina não é vista com bons olhos num meio que agrega condutas não exemplares, regadas a excessos. Lembro também que, considerando as motrizes afro-brasileiras, em diversas tradições religiosas, como o candomblé, a função de tocar o tambor também é exclusivamente masculina. Quanto aos mascarados, conforme já foi dito, em entrevista com Seu Pedrinho, a razão da presença exclusivamente masculina é atribuída a um suposto fator biológico, pois as mulheres teriam os corpos mais frágeis podendo se machucar ao realizar as ações que cabem aos mascarados. De fato, a brincadeira promove um grande desgaste físico, porém, esse desgaste é relativizado quando observamos os mascarados mais velhos brincando. Estes brincam economizando energia, numa dinâmica distinta dos mais jovens, conforme explicitarei mais adiante. De todo modo, proponho como leitura que a participação exclusivamente masculina, sobretudo entre os mascarados, se dá também por uma dimensão arquetípica, que identifica como masculinas as qualidades de energia que são mobilizadas pela brincadeira. Isso não significa dizer que as mulheres não são tocadas por essa energia, afinal, como expressão do arquétipo, o mascarado como símbolo agrega um potencial de vida eminentemente humano. Porém, conforme é possível observar nos diferentes mitos que compõem a história da cultura humana, há personagens mitológicos que encenam energias e sentidos eminentemente femininos, enquanto outros se referem ao masculino. A polaridade masculino-feminino é também um tema arquetípico elaborado em várias tradições e mitologias. A presença masculina na brincadeira dos mascarados pode ser também observada no número majoritário de meninos provocando os mascarados, desde sua preparação até o momento em que eles saem na rua. Quando é chegada a hora de lançar os presentes para o povo em volta do mastro, são também homens que protagonizam a maioria das cenas de violência e comoção, na tentativa, por vezes, desesperada, de agarrar os presentes, conforme será
discutido com mais vagar à frente. Nesse sentido, os mascarados atestam uma presença masculina na festa que pode ser explicada pelo potencial simbólico que emana do arquétipo do trickster. Segundo Boechat (2008), um arquétipo do masculino que frequentemente está associado à noção de sombra, pois como se dá o arquétipo da inversão da ordem social também há sentidos que se referem ao que socialmente é visto como o mal. Daí a intensa relação simbólica entre mascarado, trickster e Exu, como símbolo da motriz afro-brasileira que agrega os sentidos arquetípicos do trickster e os potencializa. Para Boechat, o arquétipo do trickster “representa o masculino emergente, trazendo valores inaceitáveis para a persona, mas que vitalizam o ego desenraizado do instinto.” (2008, p. 66). A perspectiva de Boechat situa o papel simbólico do trickster no contexto da psicologia, porém, é a partir da antropologia que a reflexão sobre este arquétipo foi desenvolvida. Numa perspectiva mais fundada na simbologia do social, o valor simbólico do trickster vai ao encontro do sentido do mascarado na Marujada de São Benedito: Sem limite ou qualquer lei senão o seu próprio desejo, o trickster representa a antítese dos valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva na forma de rituais. Na verdade, ele aparece mesmo nestes rituais personificando a antítese da atitude esperada, tristeza nos casamentos e nascimentos, alegria na morte (BOECHAT, 2008, p. 65).
Dessa perspectiva, pude perceber com clareza que o momento dos mascarados na Marujada interrompe qualquer possibilidade de percepção do solene da festa, revelando uma outra face do sagrado, presentificada nos cantos dolentes para São Benedito, na concentrada ladainha, mas também de forma vigorosa na explosão física e cômica dos mascarados. O sentido do trickster como arquétipo da inversão está disseminado no simbolismo do carnaval, a festa da carne, em que todas as moralidades podem ser colocadas de lado para a entrega sensual aos prazeres de forma desmedida. Essa perspectiva é discutida por Cleise Mendes (2008) ao reler Bakhtin, identificando no cômico de inclinação carnavalizante o princípio do “baixo”, ou seja, da exploração física e concreta do que há de instintivo no ser humano. Segundo Cleise Mendes (2008), a noção de “baixo” no cômico grotesco se opõe ao “alto”, que em comédias mais intelectualizadas prevalece. O cômico “alto” gera um riso mais contido, e possui um sentido intelectualizante que supostamente “eleva” a comédia e o riso por apresentar uma função social de reflexão e crítica. Por outro lado, numa perspectiva que valoriza o grotesco e o princípio do baixo, “O cômico reivindica e reinstala incessantemente a fisicalidade, a materialidade, a espessura da vida.” (MENDES, 2008, p. 62). A esse cômico
amplamente fundado na fisicalidade puxando o ser humano para suas raízes instintivas relacionam-se os elementos simbólicos aqui utilizados para ampliar a leitura sobre os mascarados, percebidos como vetores da energia arquetípica do trickster, encarnações das forças de Exu, o senhor do movimento, simbolizado frequentemente pelo masculino falo em riste. Assim, durante a preparação dos mascarados, os homens aquecem seus corpos e espíritos em conversas sempre inclinadas para o riso. Aqui o consumo do álcool também é muito importante. Sobre esse ponto delicado e controverso, como não poderia deixar de ser, lembro de uma noite em que conversava com Rodolfo, Cássio e Veloz (quatipuruense que nos hospedava) na varanda da casa, quando chegou um velho senhor, que eu já reconhecera como mascarado dos outros anos. Veloz nos dizia que ele era antigo na Marujada e eu perguntei, já sabendo a resposta, se ele era mascarado. Ele que estava visivelmente bêbado disse que não; e com uma fala por vezes difícil de acompanhar me deu uma aula de mascarado. Ele dizia que a brincadeira é se tornar irreconhecível e que, portanto, ninguém pode saber quem são “realmente” os mascarados. Ele me explicou sobre o mascarado “homem” e a Catirina, o mascarado que faz o papel da mulher e disse também que para fazer o mascarado é preciso “tomar uma” para conseguir brincar. Nesse momento, começou a contar uma história fantástica que eu gostaria de ter gravado para ouvir sempre. O que parecia ser apenas um encontro casual com uma conversa leve sobre trivialidades começou a tomar ares mais profundos e, enquanto percebia a doação que aquele velho homem nos fazia, eu olhava para os meus companheiros trocando cumplicidades de espanto ao mesmo tempo em que lamentava internamente por não ter uma câmera ou gravador ligado. Sua fala arrastada e quase incompreensível fazia com que nós inclinássemos nossos corpos nos aproximando dele, completando com nossa imaginação aquilo que não conseguíamos entender. Pouco a pouco, íamos sendo tragados para aquela sua realidade fantástica numa noite insólita em que a nós era permitido penetrar em mistérios, com odor de suor e álcool. O velho começou falando que Quatipuru é cercada por mangues, e que durante toda a sua vida ele trabalhou como tirador de caranguejo. Ainda jovem, ele morava com os pais e tinha uma relação especialmente difícil com o pai, que ele descrevia como um homem extremamente severo. Um dia, depois do trabalho, acabou cedendo a uns amigos que o convidaram para beber uma cachaça. Ele, ainda jovem, nunca havia bebido absolutamente nada, mas resolveu se arriscar. Ele ficou completamente bêbado, pois não estava acostumado ao álcool. Nesse
estado, voltou para casa com dificuldade, e, segundo seu relato fantástico, saltou planando sobre um igarapé antes de chegar em casa. Seu pai, ao sentir o forte cheiro de álcool, o espancou e o expulsou de casa. O velho mascarado nos contou que assim ele saiu de casa para sempre e partiu para conhecer o mundo. Ora, o conhecimento do mundo veio para aquele velho homem por meio de sua desmedida, que gerou a dor do espancamento físico e o rompimento com o pai, o que só aconteceu pela intervenção simbólica do álcool. A história do velho mascarado me fez pensar no álcool como um símbolo do conhecimento do mundo, ou do conhecimento mundano, tal qual é tão familiar a Exu, que recebe como uma de suas principais oferendas a cachaça. Nesse contexto, o álcool para além de qualquer sentido baseado numa argumentação médica ou moral sobre o seu consumo, é um dispositivo mágico de abertura para a consciência mundana, uma consciência liberada, subversiva, fundamental para o mascarado, que precisa beber, como parte do ritual que o conecta a essa outra face do sagrado. Assim, os mascarados se preparam conversando sobre trivialidades, pessoas que estão ausentes, peripécias de outros anos e o fazem sempre buscando uma relação que se dê pelo riso. Durante essas conversas pude perceber elementos cômicos que se elaboram de forma mais ou menos transversal nas culturas. Como melhor exemplo, o tema do sexo, que está na fala e que estará nas ações físicas dos mascarados durante toda a brincadeira. Nesse momento, a estrutura machista da cultura local se coloca de forma bastante evidente, sobretudo quando se fala de homossexualidade, o que ocorre com frequência nas provocações entre os mascarados. Pude notar também que se por um lado um discurso evidentemente machista conduz ao riso entre os mascarados, por outro, alguns mascarados se apropriam desse elemento e deslocam essa fala quando brincam eles mesmos de serem homossexuais, numa atitude que se propõe como ridícula e que gera objetivamente o riso dos outros. Um dos mascarados mais velhos me chamou bastante atenção com essa brincadeira: uma caricatura exagerada do homossexual e que, talvez por isso mesmo, acaba gerando um efeito cômico imediato. Do outro lado do muro, uma criança espreita por um buraco e criando uma voz caricatural de um homossexual grita: “Ui, pernas grossas!”. Todos riem. Em geral, os mascarados saem em pares, um representando o homem (pai Francisco ou nêgo Chico) e outro representando a mulher (Catirina), não havendo neutralidade do ponto de vista
da polaridade sexual, ou seja, aquela representação de seres estranhos e absolutamente irreais são também sexuados como qualquer ser humano. Sobre as indumentárias, o elemento mais evidente, naturalmente, é a máscara, que pode ser industrializada, como aquelas de monstros de fantasias de carnaval, ou confeccionada de forma improvisada com tecidos, plástico ou papelão. Existe uma espécie de inventário constituído que é sempre acessado para as roupas dos mascarados. Desse modo, ao passar dos anos, podemos perceber várias peças sendo combinadas de formas diferentes. O mesmo pode ser observado em relação às máscaras industrializadas de monstros e gorila. Os trajes, possivelmente por serem usados todos os anos, são rotos, o que atribui à figura do mascarado um caráter sujo e marginal, como se ele fosse uma espécie de escória, um ser sem altos valores, completamente desprovido de porte altivo. A imagem dos mascarados, conforme descrita acima, é elaborada de forma mais efetiva quando se imprime no corpo do mascarado esse aspecto baixo e, de certa forma, animal. Enquanto se preparam, em alguns momentos, alguns daqueles homens colocam suas máscaras e se comportam efetivamente como mascarados. Em quase todos os casos observei a base baixa e uma certa curvatura da coluna que gera uma corcunda no mascarado. Acompanhada a essa postura, a voz emite apenas grunhidos, e como Seu Chá indica: a linguagem dos mascarados é só “ro, ro, ro, ro”. Ou seja, o mascarado usa a oralidade restrita à repetição de uma única sílaba constituída de um “r” esvozeado (como em “rato”) e uma vogal fechada “ô”. É possível que para um leitor estrangeiro a repetição do “ro” possa remeter à risada estereotipada do Papai Noel, porém essa referência é completamente estranha ao mascarado, pois essa composição sonora de sua oralidade é integrada a um contexto global estético que inviabiliza tal aproximação. As possibilidades de uso da voz pelo mascarado variam de acordo com cada sujeito, porém, em geral, sua fala é bastante limitada, apesar de sua única vogal sintetizar o caráter masculino do “ser” mascarado. Segundo as observações de Bachelard (1996), a polaridade básica entre o masculino e o feminino, como princípios presentes em todos os objetos do mundo, se expressa nas línguas por seus mecanismos de definição de gênero, no caso do português: o “o” e o “a”. Ainda assim, apesar de prevalecerem os tons graves entre os mascarados, alguns deles, especialmente os que representam as Catirinas, eventualmente preferem os tons agudos em falsete para construir comicamente uma voz feminina.
O fim da tarde se aproxima e já está quase na hora dos mascarados tomarem as ruas. Devidamente aquecidos de riso e álcool, são formados os pares que sairão pela porta e abandonarão o quintal para transformar a rua e o mundo como o próprio quintal simbólico, espaço da brincadeira sem fim e da explosão de imaginário e possibilidades de criação. As máscaras mais diferentes e variadas são colocadas para o grande momento. A máscara transfigura a noção de sujeito, que se dissolve. Segundo Ildásio Tavares: “Todo artefato que cubra o rosto nas culturas africanas é indicativo de ancestralidade, da presença de um espírito [...]” (2008, p.65). Sob esta perspectiva, a máscara é o maior símbolo da presença do sagrado na indumentária do mascarado, mesmo em se tratando de máscaras industrializadas e que representam diferentes personagens difundidos pela cultural globalizada da mídia. O que pude perceber nesse contexto foi que a substância formal das máscaras poderia indicar para um olhar folclorizante uma deturpação da tradição pela agregação dos elementos das culturas de massa, mas que, por outro lado, sob o ponto de vista das motrizes afro-brasileiras, a dinâmica do jogo-ritual permanece mesmo com as constantes alterações que a forma da tradição sofre. Um último elemento da caracterização dos mascarados me parece importante de ser levado em conta: o galho de cuieira29 que eles tomam como um bastão, uma arma que penaliza todos aqueles que os provocam. Num certo sentido, essa é a própria metáfora do poder de São Benedito contra aqueles que o ofendem. Por um lado, a divindade castiga, mas, por outro, é por meio dessas histórias de insultos e severos castigos do santo preto que a fé se alastra e ganha força no seio de corações que, como o meu, se comovem ao encarar o vigor de São Benedito. Assim, o galho de cuieira se converte no bastão/símbolo do vigor e do poder da divindade que se expressa na terra pelas mãos dos mascarados que com riso também empunham firmemente seus bastões. A simbólica do bastão relaciona-se igualmente com a do fogo, e consequentemente com a da fertilidade e a da regeneração. Assim como a lança, o pilão, o bastão foi comparado a um falo; as miniaturas são a esse respeito particularmente explícitas. O bastão faz mal, dizem certos povos referindo-se ao desejo masculino insaciado. O fogo brotou do bastão segundo a lenda grega (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 125).
Considerando as palavras de Chevalier e Gheerbrant sobre a simbólica do bastão pude, mais uma vez, perceber as energias arquetípicas mobilizadas por São Benedito canalizadas para um único símbolo, que como um vetor concentra os poderosos sentidos do fogo e da 29
Curiosamente, em conversa com um pai-de-santo do candomblé de Ketu, ele me contou que a cuieira é uma árvore masculina, ligada ao elemento fogo e a Exu.
masculinidade fertilizadora. Esses aspectos também podem ser relacionados aos conteúdos simbólicos já explorados do mastro, o que cria uma grande rede de significados que nos diversos aspectos da festa se reforçam. Exemplo disso é que do outro lado do muro, o mesmo e irado menino de que falei anteriormente grita, provavelmente respondendo à ofensa de um outro menino mascarado: “Fala igual homem, rapaz. Eu não tenho medo não, eu tenho esse ó [se referindo ao seu próprio cipó/bastão]”. E assim, no bastão do mascarado e no seu duplo infantil, o poder do símbolo se concentra. Numerosas tradições podem alargar o horizonte desta leitura sobre os mascarados. Nesse sentido, proponho tomar o culto dos Egungun na Bahia em seus aspectos que permitem pensar pontos de contato com os mascarados a partir das motrizes afro-brasileiras, que evidenciam numa leitura mais profunda elementos arquetípicos. No culto de Egungun, são igualmente homens mascarados30 e com os corpos completamente cobertos por trajes rituais que representam espíritos ancestrais. Na cultura yoruba, egun ou egungun são os nomes dos espíritos dos mortos e, conforme já comentado anteriormente, no candomblé de ketu (onde é majoritária a influência yoruba) esses espíritos são tratados com muito cuidado e até restrição. Na Ilha de Itaparica, Bahia, persiste até os dias atuais o culto dos Egungun, formado igualmente a partir de uma tradição religiosa da cultura yoruba. Evidencio, mesmo que superficialmente esta questão cultural, no sentido de compreender que há diferenças estruturantes entre as tradições afro-brasileiras formadas a partir da cultura yoruba, como o candomblé de ketu, e aquelas formadas a partir da cultura dos povos do Benim, como o Tambor de Mina no Maranhão e a Marujada de São Benedito em Quatipuru (sobretudo no que se refere ao sincretismo entre São Benedito e Verequete). Contudo, conforme já explicitado anteriormente, neste momento interessa à minha leitura os pontos de contato que a noção de motrizes afro-brasileiras permite pensar. Segundo Juana dos Santos e Deoscóredes dos Santos (2011), apesar de eminentemente masculino, o culto de Egungun tem suas raízes míticas fincadas sob um orixá feminino: Oya Igbalé. Oya, ou Iansã, como também é conhecida no Brasil, é o orixá dos ventos e do raio, articulando energias arquetípicas da sensualidade e da violência. A qualidade Igbalé de Oya se refere aos mitos em que ela é tomada como a rainha dos eguns, comandando o mundo dos mortos, o que, portanto, a faz ser cultuada lado a lado com os espíritos ancestrais nas tradições
30
No culto de egunguns a máscara simboliza a presença do espírito ancestral, o que corrobora com a afirmação trazida anteriormente de Ildásio Tavares (2008) em que o autor afirma que, nas culturas africanas, os artefatos que cobrem o rosto são indicativos de ancestralidade.
do culto de Egungun. Um dos mitos que narra essa relação conta que Oya só teria filhos se fosse possuída com violência e, assim, Xangô o fez, dando a ela nove filhos. Os oito primeiros nasceram mudos, o que incomodou Oya que ao realizar algumas oferendas seguindo a prescrição de um babalaô31 concebe o nono filho: Egun. Curioso notar que, apesar de Egun não ter nascido mudo, ele só poderia falar com voz inumana, o que posteriormente também comentarei como possibilidade de contato com o mascarado. Outro mito relativo a Oya Igbalé situa igualmente as instâncias da ancestralidade, da sexualidade e da violência como articuladas do ponto de vista dos temas que são elencados na narrativa: No começo do mundo, as mulheres intimidavam os homens desse tempo e faziam deles o que bem entendiam. Devida a esta razão, Oya (mais conhecida nos cultos afro-brasileiros como Yãnsan) foi a primeira a inventar o segredo ou a maçonaria dos Egúngún sob todos os seus aspectos. Assim, quando as mulheres queriam humilhar seus maridos, encontravam-se em uma encruzilhada, sob o comando de Yãnsan. Ela já estava ali com um grande macaco que havia treinado, vestido com roupas apropriadas, junto ao tronco de um igi (árvore). O animal faria tudo que fosse determinado por Iansã, por meio de uma vara que ela brandia, conhecida pelo nome de ìsán. Após uma cerimônia especial, o macaco aparecia e demonstrava suas habilidades, sob as ordens de Yãnsan. Isso se passava diante dos homens, que fugiam aterrorizados com aquela aparição (SANTOS; SANTOS, 2011, p. 236).
A temática da tensão de poderes entre o masculino e o feminino é um dos pontos focais desse mito e se expressa por meio das habilidades mágicas que possui Iansã de dominar um ser animal capaz de afugentar os homens, justificando a hegemonia feminina que existira no tempo primevo que o mito situa. Em relação à Marujada de Quatipuru, pude notar que, do mesmo modo como situa o mito, há uma hegemonia feminina que se expressa em diversos aspectos pela simbólica autoridade maior da festa: dona Luíza, a capitoa, que, curiosamente também carrega consigo uma pequena vara, ou bastão, seu instrumento de poder. Somente à capitoa e à sub-capitoa é permitido o porte destes bastões32. No mito é o bastão, o ìsán, o instrumento mágico que domina o grande macaco que amedronta os homens, ou seja, é este o objeto simbólico que atribui poder de domínio sobre o ser que representa as potencialidades monstruosas e violentas do instinto, um ser masculino e inumano, poderoso a ponto de afugentar os homens, 31
Um sacerdote capaz de consultar o oráculo do Ifá. Noto que o bastão da sub-capitoa é muito mais simples e timidamente decorado em relação àquele que a capitoa porta. 32
que, arquetipicamente seriam os donos destas forças. Nesse sentido, o bastão representa a alta concentração de energia arquetípica no mito. Ademais, observei que é debaixo de uma árvore que toda a ação acontece, o que de algum modo remete ao espaço sagrado instaurado pelo mastro na Marujada de Quatipuru e que, posteriormente, também será descrito como ambiente da ação dos mascarados. Na continuação da mesma narrativa mítica, a hegemonia feminina é quebrada quando os homens resolvem consultar Orumilá (o senhor do óraculo de Ifá) a fim de reverter a questão. Orumilá recomendou que Ogum fizesse uma oferenda, ebó de galos, se armasse de uma espada e vestisse roupas e um chapéu apropriado para que, no momento em que as mulheres se reunissem para realizar seus ritos habituais, ele as surpreendesse. E assim o fez, assustando-as poderosamente o que fez fugir Iansã e restituiu aos homens a hegemonia; assim, as mulheres ficaram proibidas de conhecer o segredo de qualquer sociedade, como ocorre, por exemplo, na maçonaria. De todo modo, no culto dos Egungun, Oya Igbalé permanece sendo adorada e venerada por todos como rainha e fundadora da sociedade secreta de Egungun, possuindo assentamento diferenciado no terreiro de Egun. Para Santos e Santos: “Esse mito também enfatiza a prioridade do poder feminino” (2011, p. 237). Por meio de uma bela contradição, assim como na brincadeira dos mascarados, o culto de Egungun reúne o poder feminino e as subterrâneas e violentas energias arquetípicas do masculino, o que se espraia por todo o mito, mas que tem um grande foco de concentração no ìsán, a vara ritual, símbolo do poder; no mito, é do porte do feminino desafiador de Iansã, mas no culto é manipulado por sacerdotes (homens) que invocam os Egungun. Estes, ao se manifestarem, também tomam o ìsán em suas mãos como um chicote: “Tal evento é algo que deve ser muito temido, pois sugere a ira dos ancestrais e a punição que eles podem impor.” (SANTOS; SANTOS, 2011 p. 244). Relacionei esse ponto crucial com a simbologia do mascarado que, na minha leitura, expressa o poder da divindade com comicidade, embora com muito vigor em sua participação no ritual da Marujada. Assim, mascarados e capitoa dividem o simbólico bastão que presentifica o poder de São Benedito.
Figura 15 – Capitoa e Mascarado. Foto: Kleyton Silva (2010).
Ao saírem nas ruas, os mascarados transformam a solenidade dos cortejos de Marujas num ambiente que logo parece tender ao caos. A partir desse momento, uma série de ações é repetida pelos mascarados, porém sempre há o espaço de liberdade em que todo tipo de brincadeira é permitida aos mascarados que agora, sim, tomam as rua de Quatipuru liberando ferozmente toda a energia que concentraram durante a preparação. Entre as ações que se repetem mais comumente, anotei a dinâmica entre as provocações das crianças com os xingamentos, pois agora os mascarados já saíram para fora do muro e, na rua, as crianças os enfrentam corajosamente face a face. Após as provocações, sobretudo os mascarados mais jovens, mais vigorosos fisicamente, correm loucamente atrás das crianças simulando golpes com seus galhos de cuieira, seus bastões que, ao serem agitados, mobilizam também toda a simbólica mítica que até aqui venho considerando como o conteúdo sutil que energiza a festa. Nesse momento, as crianças alternam entre a dramatização de um enfrentamento corajoso e masculinizado, refletido nos xingamentos homofóbicos: “como, ei mascarado viado!”, com a fuga, quando dramatizam o medo do “ataque” dos mascarados.
Figura 16 – Meninos enfrentando o mascarado. Foto: Rafael Samora (2011).
Figura 17 – Mascarado afugentando os meninos. Foto: Rafael Samora (2011).
Enquanto os mascarados mais jovens investem ferozmente no jogo que envolve o enfrentamento das crianças e as posteriores corridas, os mascarados mais velhos conseguem passear de forma menos desgastante do ponto de vista físico e mais elaborada, se considerarmos as possibilidades de interação que são criadas. Observando principalmente Seu Chá e Seu Poeira nos anos em que pude acompanhar os mascarados, pude perceber que a tranquilidade dos mais velhos permite que eles estejam conectados de maneira mais profunda, por exemplo, com o sentido de sair de Nêgo Chico (o mascarado masculino) ou de Catirina.
Seu Poeira, por exemplo, saiu de Catirina durante os quatro anos que acompanhei a brincadeira dos mascarados. É evidente que a inversão dos padrões, por exemplo, um velho senhor vestido como mulher, provoca um efeito cômico quase instantâneo. Contudo, observando que Seu Poeira tem uma habilidade enorme de se entregar ao ridículo, vi que a habilidade imaginativa do mascarado contribui singularmente para produzir o efeito cômico. Nesse quesito, Seu Poeira sempre me surpreende, estando ou não mascarado, pois a alegria e a abertura para o riso é um aspecto que emana de sua presença. Para mim, Seu Poeira faz a Catirina mais graciosa da trupe de mascarados.
Figura 18 – Mascarado dançando com Marujo. Foto: Thales Branche (2009).
Considerando esse tipo de interação, me foi possível perceber que há doçura em meio à grande liberação de agressividade. Por vezes, a brincadeira dos mascarados instaura o caos, sobretudo pela participação dos mascarados mais jovens. Há momentos em que eles perdem o controle da situação e tornam-se agressivos com as crianças que tencionam até o limite a segurança da brincadeira. Por exemplo, quando as crianças “brincam” de atirar pedras contra os mascarados. Nesse aspecto, a brincadeira envolve certo perigo, pois, a qualquer momento, a alegria e o jogo podem transformar-se numa confusão violenta. Apesar disso, percebi que, em geral, quando um mascarado se desestabiliza momentaneamente, perdendo o sentido da brincadeira,
imediatamente se aproximam dele dois outros que o recolocam no seu lugar e, na verdade, essa é uma função prioritariamente exercida pelo líder dos mascarados. Durantes os anos de 2008 a 2010, foi Seu Chá quem exerceu essa função e suas palavras sempre ressaltavam que os mascarados eram os palhaços da festa e, portanto, os agentes da alegria. Desse modo, Seu Chá procurava deixar claro que a violência liberada é também uma violência simbólica, ou seja, ela se expressa num nível imaginário em que cada golpe de cipó de cuieira é sempre uma menção do golpe. Para Seu Chá, as crianças jamais podem ser machucadas, apesar de que por vezes elas machuquem efetivamente um ou outro mascarado, sobretudo com pedradas. Na tensa dinâmica entre a violência que é brincadeira e riso e violência que é agressão se processa a participação dos mascarados. Naturalmente, há na Marujada um sutil, frágil, porém divino equilíbrio que permite que a festa seja vivenciada sempre com muita alegria. Retomo então o que considero a imagem-síntese da brincadeira: o menino Eudson nos braços do mascarado-diabo. De seu sorriso emana a mais infantil alegria, a plenitude da felicidade que se expressa na integração com o mascarado. Aqui referencio mais uma vez Zeca Ligiéro, quando discute as acepções do diabo na cultura brasileira. Para o autor, o encontro entre a cultura católica e as motrizes afro-brasileiras criou diferentes possibilidades de fruir a figura do diabo, o que corrobora imensamente com a imagem do menino Eudson junto de seu mascarado-diabo. Zeca Ligiéro verifica na participação do palhaço na Folia de Reis uma forma de integração dos aspectos que a cultura cristã católica atribui ao diabo de uma forma mais festiva, menos pesada, potencialmente transformada pela participação das motrizes afro-brasileiras: Nota-se que, nesta celebração [Folia de Reis], carregada de inúmeras seções estritas de ritual devocional católico, surge o elemento perturbador, o mascarado, comumente chamado de palhaço pelo seu caráter lúdico e de grande disponibilidade em trabalhar, como o palhaço de circo, que conhecemos bem, a parte baixa do corpo, os vícios, aludindo aos excessos e aos desvios da conduta social em sua performance (LIGIÉRO, 2011, p. 238).
A partir dessas considerações, quase que é possível afirmar as mesmas coisas sobre o mascarado da Marujada de São Benedito em Quatipuru. De todo modo, tornou-se para mim mais uma vez evidente que o aspecto perturbador de que fala Zeca Ligiéro sobre o palhaço da Folia de Reis é também um elemento recorrente em diferentes formas da cultura brasileira formadas a partir da mobilização das motrizes afro-brasileiras. Nesse sentido é que leio o potencial simbólico de Exu se alastrando por essas formas culturais, preenchendo da energia
arquetípica do trickster esses espaços, agregando alto poder de comoção social na constituição de um sagrado plenamente mundano. Em outras palavras, os mascarados que assustam, e que os meninos enfrentam ferozmente, são também os personagens sobre os quais os meninos projetam o vigor e luz da alegria humana, por isso é também um momento de intensa felicidade quando, por acaso, algum menino é “capturado” pelos mascarados na rua.
Figura 19 – Menino capturado pelo mascarado. Foto: Rafael Samora (2011).
A grande apoteose dos mascarados se aproxima quando a Marujada conclui seu cortejo chegando finalmente ao barracão, mais precisamente à pequena praça que fica em frente ao barracão, onde estão situados os dois mastros ornamentados com presentes que, como referido anteriormente, são em sua maioria brinquedos infantis. Em outros anos foi também possível perceber que ornamentavam o mastro cocos e bananas. Nesse momento, marujas e marujos fazem um círculo em volta dos dois mastros e os mascarados ficam no meio. Realizam então uma tradicional cena cômica de tentar subir no mastro e não conseguir. Alguns deitam no chão e fingem dormir em posturas cômicas. O gesto de se atirar ao chão também é rotineiramente repetido, como uma espécie de metáfora corporal do sentido simbólico de descida ao humano que os mascarados instauram desde o
início da brincadeira. Os mascarados, como Exu, como me dizia o velho senhor alcoolizado, são os senhores do conhecimento do mundo, ou seja, sua sabedoria é da terra, dos prazeres das sensações imediatas: o álcool, o riso, o corpo explodindo na ancestralidade em festa.
Figura 20 – Mascarado no chão. Foto: Rafael Samora (2011).
Após aquele
jogo inicial, os mascarados começam a subir nos mastros para atirar os
presentes. Como já referido anteriormente, a “escalada” dos mastros, por assim dizer, se dá com o auxílio da peçonha. Enquanto os mascarados começam a subir nos mastros, Seu Pedrinho e algumas marujas que o ajudam distribuem vinho aos mascarados que bebem com voracidade, em função do desgaste do primeiro momento de suas atividades. Como já disse acima, a festa da Marujada contemporaneamente tem contado com aparelhagens de som que tocam um repertório próprio, constituído de músicas de ritmos populares como carimbó e tecno-brega, durante a tarde inteira até começar a festa propriamente dita; porém, quando se aproximam as atividades da Marujada no barracão, observei que a aparelhagem toca carimbó ou um cd gravado pelo Instituto de Artes do Pará, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado do Pará. Nesse momento, entram as músicas tradicionais da Marujada de Bragança, que são as mesmas de Quatipuru, executadas com o solo do violino.
Ao chegarmos, juntamente com o grupo de marujas e marujos, a aparelhagem interrompe seu som para dar espaço aos tamboreiros que também param de tocar quando a roda de marujas se fecha em torno do mastro. Nesse momento, temos um silêncio musical e a paisagem sonora da festa passa a ser constituída somente do burburinho das pessoas e de um narrador/locutor que assume o microfone para exercer a função de estimular as pessoas e os mascarados naquele momento da brincadeira. A partir daí, se inicia o momento mais esperado por todos na festa. O movimento simbólico mundano e que tem como princípio o baixo, agora desloca o olhar de todos para cima. Os mascarados iniciam a escalada do mastro para atirar os presentes ao povo que está em volta. É um momento de grande comoção e não faltam olhos brilhando e esperando com esperança o presente que vem do céu.
Figura 21 – Esperando o presente. Foto: Rafael Samora (2011).
Assim, os mascarados que há pouquíssimo tempo castigavam as crianças com severos golpes de cipó de cuieira, o poderoso bastão, agora ascendem às alturas do mastro, o imenso símbolo do espaço tempo-sagrado da Marujada, e lá de cima atiram os presentes que enchem a festa de alegria; são as benesses de um São Benedito que é duro, é vigoroso e violento quando precisa, mas glorioso sabe acalentar seus fiéis. São os mascarados os arautos da glória do santo preto,
distribuindo esperança em cada brinquedo de criança atirado ao povo de Quatipuru. Acrescento que no ano de 2011 tive a graça de, pela primeira vez, conseguir agarrar um presente atirado por um dos mascarados: uma bola de borracha amarela. No agarrar da bola, senti a criança vibrando pelo corpo todo até explodir num grito. Neste ano, voltei para casa com meu troféu de menino e minha bola não empresto para ninguém.
Figura 22 – Mascarados arremessam os presentes dos mastros. Foto: Rafael Samora (2011).
Claro que descrevo com certo lirismo que não tenho como desvincular de meu olhar, pois escrevo a memória de meu corpo. Mas quero lembrar, que além da poesia, também há um sabor mais terreno que não se sublima em momento algum. Assim, o locutor provoca os mascarados insinuando que eles estão jogando os presentes apenas para um lado, ou para seus familiares, como se eles estivessem sendo corruptos no exercer de sua função. Desse modo, o locutor também encontra espaços de comicidade ao insinuar que determinado mascarado é homossexual, é gordinho ou é fraco. De certa forma, o locutor introduz um elemento a mais na brincadeira, induzindo o povo que está em volta, por exemplo, a gritar pelos presentes, o que acontece naturalmente após o início da brincadeira. Após um primeiro momento mais frio e com menos pessoas em volta dos mastros, a brincadeira começa a esquentar e o número de pessoas que acompanha começa a aumentar.
Dali a alguns minutos o povo já está extremamente excitado, gritando pelos presentes e literalmente se esbofeteando para agarrar algum deles. O mastro está completamente ornamentado com presentes de criança e quem se esbofeteia e consegue agarrar a maior parte dos presentes são adultos. Trata-se de um momento muito delicado e violento, a meu ver, e que, por isso, necessita de certa atenção e senso de autopreservação para que não haja acidentes. De todo modo, compõe a brincadeira nesse momento uma grande liberação de energia instintiva coletiva. Trata-se do momento em que, para além dos mascarados e das crianças, jovens e adultos também encontram espaço para liberar sua agressividade de forma festiva. Naturalmente, algumas pessoas se excedem, sobretudo alguns jovens alcoolizados, o que ocasiona pequenos conflitos, que dificilmente tomam grandes proporções. Porém, observei que é nesse momento que todos podem se entregar de corpo inteiro à brincadeira, o que permitiu que Rodolfo conseguisse belas imagens para o registro de vídeo que segue anexado a esta dissertação. Nesse ponto, as imagens certamente serão muito mais representativas do que minha descrição. Os mascarados é que administram o jogo, o que implica que é deles que algumas pessoas que acompanham a festa dependem, em alguns casos, para dar um presente de Natal para seus filhos. Aqui lembro a referência que faz em sua tese Karine Jansen (2008) aos mastros como duas grandes árvores de natal. Curiosamente, no ano de 2011 (conforme se pode observar na Figura 22), o poste de luz que se posiciona entre os dois mastros foi ornamentado com garrafas pet em forma de árvore de natal. Por um lado, é evidente a imagem da árvore de natal como um elemento ligado fundamentalmente a uma cultura de consumo contemporânea integrada aos conteúdos da festa da Marujada. Isto denota a característica dinâmica da cultura que não cristaliza seus elementos, colorindo do espírito do tempo as tradições ancestrais. Por outro lado, vale também remeter rapidamente à simbologia germânica da árvore de Natal no contexto do solstício de inverno, ou seja, representando a abertura de um ciclo no momento em que uma árvore é abatida na floresta para ser ressignificada como objeto mítico, o que me parece ser uma compreensão ritual muito próxima da que existe em relação aos mastros da Marujada de Quatipuru. Por duas vezes como mascarado, vi pessoas em volta do mastro nos abordarem insistindo para que conseguíssemos um presente, ou seja, desviando o que, num primeiro momento, parecia ser a norma da brincadeira: aceitar o golpe de sorte de agarrar o presente atirado aleatoriamente. Efetivamente o golpe de sorte é um dos elementos de jogo que envolve a dinâmica da distribuição dos presentes nos mastros. Faz também parte do jogo o “desvio” dos
presentes para o “saco dos mascarados” posteriormente divididos entre os próprios mascarados. Além disso, é possível também que um dos mascarados resolva atirar o presente praticamente nas mãos de algum conhecido seu, ou mesmo entregar em mãos, o que em geral é um atitude rechaçada pelo povo que acompanha todos esses movimentos. Assim, o jogo se processa de variadas formas e, no caso das abordagens diretas do povo que pede os presentes diretamente aos mascarados, lembro que em alguns casos essa cobrança chega a ser intimidadora ou desagradável. Em 2010, como mascarado, fui beliscado nas costas várias vezes por uma senhora que queria um presente. Esse anseio pelo presente gera situações inclusive perigosas, quando, por exemplo, um mascarado deixa cair um presente no pé do mastro e as pessoas avançam desesperadamente sobre nós, que fazemos uma espécie de cordão de isolamento em torno de cada mastro. Minha experiência com esse tipo de situação já foi descrita no primeiro capítulo desta dissertação. Como parte da tradição, enquanto alguns presentes são atirados ao povo pelos mascarados, outros são arremessados para baixo para serem guardados em um saco que servirá para uma partilha entre os mascarados depois daquele momento: eis o famoso “saco dos mascarados”. O próprio Seu Pedrinho, capitão da Marujada, estimula essa prática que é vista pelo povo e pelo locutor como “corrupta”, injusta. Na realidade, Seu Pedrinho acredita que o mascarado trabalha para dar presentes para os outros, mas nunca consegue guardar presente algum para si, o que justifica o desvio. Claro que isso acaba se tornando mais um elemento para que as crianças e os jovens que estão em volta incomodem e provoquem os mascarados, o que é absolutamente parte do jogo. Crianças e jovens tentam a todo o momento roubar os bastões dos mascarados, o que significa simbolicamente também roubar o objeto de poder dos mascarados. Sobre esse roubo, eu também guardo uma memória terrível de ter meu bastão roubado no ano de 2010 por um jovem espertinho. A sensação é terrível, quase como uma humilhação. Outra prática igualmente comum é a tentativa de retirar a máscara para descobrir a identidade do mascarado. Nesse mesmo sentido, o “saco dos mascarados” é um objeto de desejo para os jovens que tentam roubá-lo. No ano de 2011, Rodolfo conseguiu o grande feito de registrar o grupo no qual eu consegui roubar o saco e, para nossa surpresa e encanto, eles afirmavam que “roubar o saco dos mascarados é tradição”, e por que não? Afinal, numa festa em que a energia do arquétipo da inversão se alastra ferozmente por todos os lados, o jogo entre ordem e subversão da ordem pode gerar belas surpresas, como essa percepção torta, porque funda a tradição da Marujada num roubo, por definição uma contrafação. Por outro lado, se a
contrafação é o próprio modo de ser da energia arquetípica que perpassa a festa, especialmente no jogo que a brincadeira dos mascarados provoca, essa se torna uma percepção perfeitamente coerente do que vem a ser a tradição da Marujada. Após os presentes serem todos distribuídos, dois mascarados, um em cada mastro, sobem ao mesmo tempo e retiram as duas bandeiras de São Benedito que estavam em cada um de seus topos. A cena é linda. Esse momento acontece sempre ao pôr-do-sol, ou seja, no Pará, sempre por volta das seis horas da tarde, justamente o horário de Exu. Então, é ao lusco-fusco que os dois mascarados descem balançando aquelas bandeira que agora serão entregues a duas das personalidades mais importantes da festa e as responsáveis por portar as bandeiras nos cortejos antes dos mastros serem levantados: o juiz e a juíza. As bandeiras que também demarcam simbolicamente a festa só são tocadas pelos juízes, dois cargos de elevado prestígio na festa, e pelos mascarados, os cômicos.
Figura 23 – Mascarado e descida da bandeira. Foto: Thales Branche (2009).
Nesse momento, acontecem a derrubada do mastro pelos mascarados e sua posterior despedida dentro do barracão. A festa da Marujada completa seu ciclo e depois de quase dez dias de muita vida, ela começa a morrer lentamente e se esvanecer em memória para os próximos anos que todos sabem que virão. O mastro cai para encerrar a festa, mas sua morte
não precisa ser chorada por ninguém, pois a essa altura todos já estão fortalecidos do sentimento comunitário de esperança na força e na glória de São Benedito.
Figura 24 – Derrubada do mastro. Foto: Danielle Blanco (2008).
Desse modo, os rituais do mastro assim como abrem a festa, também a finalizam, de modo que são os mascarados os sacerdotes do riso responsáveis pela condução desse trabalho, sobretudo no último dia de festa, o tão esperado 27 de dezembro, em que, em meio à extrema exaustão e alegria, todos se despedem da Marujada que voltará no próximo ano, com certeza. E assim termino a escritura de minha leitura sobre os mascarados na Marujada de São Benedito em Quatipuru: exausto, mas com o coração alegre. Escrevo certo de que minha fala é de uma pequenez incalculável perto da força de São Benedito e sua Marujada. Esta força me inspirou profundamente e hoje eu sou outro, transformado, assim como cada um que me acompanhou durante esta pesquisa nestes meus quatro anos de festa. E depois de tanto falar em ciclos que começam, finalizam e recomeçam, acredito que duas belas imagens que o amigo André Mardock me proporcionou podem falar com muito mais propriedade do que eu. Essas imagens-brincadeiras foram feitas em 2008, quando eu conheci a Marujada pela primeira vez, e agora termino o meu texto com elas.
Figura 25 – Máscara de Mardock. Foto: Thales Branche (2008).
Figura 26 – Detalhe da máscara de Mardock. Foto de Thales Branche (2008).
CONCLUSÃO
Entre as artes e as humanidades, desenvolvi esta pesquisa com a certeza de que fui fiel ao meu centro afetivo, pois só eu sei que este foi o meu farol. Quando me pesavam as questões metodológicas, epistemológicas, teóricas, foi o contato sincero com o espaço de afeto, que em mim conquistou a Marujada de São Benedito, o que me reconduziu à caminhada. Escrevi apaixonado e inspirado por minha paixão. Escrevi sobre um inspirado saber que brota ao se estar apaixonado, pois decidi não renunciar a ele em nome do que inadequadamente poderia chamar de artifícios científicos. À guisa de conclusão, posso afirmar que escrever uma leitura de minha etnoaventura na Marujada de São Benedito com ênfase no conhecimento do corpo presente, especialmente na Festa dos Mascarados me permitiu vislumbrar belas possibilidades de pesquisa no limiar das artes e das humanidades. A questão do campo no qual se insere esta pesquisa sempre será de suma importância. E foi sobre essa necessária flexibilidade que esta pesquisa pôde encontrar alento e apoio nas epistemologias não-cartesianas, especialmente nas inspirações advindas da etnocenologia, dos escritos barthesianos, dos estudos do imaginário e da psicologia junguiana. A leitura que desenvolvi sobre a Marujada de São Benedito e seus mascarados só pôde ser realizada a partir do questionamento a uma hegemonia das ciências tradicionais, cartesianas, como modelo único de pesquisa, o que me abriu espaço para experimentar possibilidades outras a partir dos referenciais já citados. Assim, foi importante renunciar a definições rígidas, a encaixotamentos inúteis para permitir à minha leitura a liberdade da sinceridade com o centro afetivo que, contrariando as leis da física, ocupa simultaneamente dois espaços: a Marujada de São Benedito em Quatipuru e o meu coração. Isto implica dizer que toda a elaboração teórica e intelectual que foi realizada nesta dissertação é fruto de uma escuta rigorosa das intuições dos corpos em vida que compuseram meu objeto de pesquisa: o meu corpo e os corpos da Marujada em todas as suas emanações simbólicas que pude capturar. Evidentemente, tais elaborações encontraram eco em – e, por vezes, foram dirigidas por – prévias e concomitantes leituras teóricas.
Encontrar a palavra certa para expressar algo que fosse justo comigo e com a Marujada foi a grande e dramática questão que enfrentei a cada segundo desta escritura, mesmo quando estabeleci como princípio poético e epistemológico desta dissertação a errância, o meu trajeto antropológico narrado em seus tropeços. A essa sutil contradição entre a busca da palavra certa e a confissão do erro, eu também devo todo o meu respeito, pois sua natureza é arquetípica e a partir dela também pude vislumbrar a potencialidade do símbolo, que não pode ser definido, afinal, como a lua cheia e redonda a nós só é oferecida uma de suas partes para contemplação, a outra permanecerá misteriosa e qualquer tentativa de adivinhá-la só será válida como exercício lúdico da imaginação, essa habilidade tão cara ao ofício de artista. E aqui chego a um ponto fundamental de minha conclusão. Sou um artista do corpo, e exerço o meu ofício entre o teatro e a música, como quando tomo o violão ao peito e posso sentir quem está à minha volta a ponto de adivinhar qual a próxima canção que eu devo cantar para que a festa exista, para que a sagrada celebração da vida se instaure pelas luzes que emanam dos corpos dançando, mesmo quando não se movem: a plenitude de estarmos juntos, eu e o público, os segundos sagrados em que a arte acontece. As artes do corpo necessitam da presença e esse foi o viés pelo qual abordei a Marujada de São Benedito em Quatipuru, buscando em minha memória da experiência os momentos da iluminada e sagrada presença dos corpos em festa: a ancestralidade festiva indicando os caminhos da compreensão amorosa. Foi a partir desse manancial afetivo que pude escrever minha leitura colorida por meus sonhos e intuições arquetípicas sobre a festa e meu respeito por São Benedito e sua Marujada. A Marujada de São Benedito e especialmente seus mascarados por mim foram lidos como emanações do sagrado. O divino se alastrando pela terra com vigor e alegria: a presença mundana de um glorioso São Benedito. A festa da Marujada também foi considerada em sua natureza cultural, ou seja, fruto dos processos sociais que a constituem como fenômeno sociológico. Porém, é evidente que esse viés não foi enfatizado pelo fato de que a grande motivação desta pesquisa sempre foi minha busca de compreensão da grande comoção afetiva que essa festa movimentava. Há anos eu escutava Karine e seus companheiros de pesquisa falarem daquela Quatipuru como se fosse uma terra mágica. Fui levado até essa terra e pude presenciar a magia agir em mim e depois agir em todos que também me acompanharam nos dezembros de festa que passamos em campo. A magia, essa força sagrada que transforma, me capturou quando fui mascarado e capturou a todos os meus companheiros que levei para me auxiliarem na
pesquisa de campo e que hoje já planejam suas viagens a Quatipuru mesmo quando esta pesquisa já encerra o seu ciclo de existência. A Marujada transformou meus amigos em mascarados, marujos, e devotos de São Benedito. A força do santo preto já atua neles sem o meu intermédio e começa a dar frutos que eu não posso calcular, seja um santinho que é cotidianamente alimentado com seu café em terras que não conheço, seja a exposição de fotografias da festa que um amigo leva para outras terras do além Amazônia. Os afetos fluem como um rio que desagua invariavelmente no mar e se perde, de modo que não saberemos jamais por onde andarão suas águas. Neste ponto reside o potencial de abertura de possibilidades que este processo de pesquisa a mim revelou. Para além do nobre e necessário esforço etnográfico da escrita compreensivo dos objetos culturais com os quais o pesquisador se confronta em campo, há também um grande manancial afetivo que é mobilizado nos encontros que essa experiência oferece. Com o processo de pesquisa que culminou na escritura desta dissertação, pude perceber e explorar possibilidades de incorporação desse manancial ao próprio labor acadêmico, atribuindo ao sensível e ao estético o valor de conhecimento, pois mesmo quando a minha escritura parece tangenciar o que convencionalmente chamamos de “objeto de pesquisa”, estou convicto de que a leitura abre possibilidades indiretas de abordagem e compreensão dos contextos culturais estudados, o que considero como a fruição do símbolo. Nesse sentido, assim como o objeto estético teatral “O Império de São Benedito”, de Karine Jansen, me permitiu uma primeira entrada no contexto da Marujada de Quatipuru, a minha leitura busca um lugar no limiar das artes e da ciência, tal qual sinalizam as percepções comentadas acerca da etnocenologia, o que, em suma, permite o reconhecimento do sensível como porta de entrada para uma compreensão que se pretende profunda, rigorosa e respeitosa. Desde aquele dezembro de 2008, eu busquei dar vazão a este desejo de pesquisa, mas foi com a entrada no Mestrado em Artes Cênicas que pude perceber que meu objetivo era efetivamente constituir uma leitura que fosse fiel a meu estupor original no contato com a Marujada, especialmente seus mascarados. Este objetivo, aparentemente restrito e específico porque baseado numa experiência agudamente pessoal, é coerente na medida em que a escolha formal adotada é considerada no contexto das experiências no campo da Marujada desde a tese de Karine Jansen, sobretudo no que diz respeito aos impactos afetivos que a festa promove,
o
que
potencialmente
gera,
comprovadamente,
desdobramento
vários,
especialmente num nível estético. O desdobramento estético da experiência de contato com
uma festa popular religiosa em pesquisa é um fenômeno que alarga a compreensão do contexto pesquisado num nível simbólico, e, nesse sentido, esta dissertação como escritura se insere nesse movimento. Esta investigação me mostrou a possibilidade de, no espaço da academia, considerar os afetos na forma e no conteúdo das elaborações. A hipótese inicial de que os mascarados encarnavam uma face do sagrado na Marujada de São Benedito em Quatipuru justifica o objetivo de constituir a leitura da festa por meio da ampla exploração dos conteúdos simbólicos observados e incorporados por mim na experiência de pesquisa. Busquei abrir meu corpo e olhar para a força da comoção coletiva que os mascarados provocavam, tentando encontrar o elo que ali se estabelecia. Assim, foi pela energia arquetípica que recheia de vida o símbolo que pude dar nome ao misterioso fenômeno que faz a Marujada gritar vida em seus dias de festa Daí a minha ânsia na tentativa de tornar concreta a escrita que penso ser justa e, espero, adequada para tratar da Marujada. Daí a necessidade de buscar a leitura do que há de simbólico, portanto de fundo arquetípico na Marujada. Neste gesto, só o verbo encantado33 poderia conjugar as minhas orações ao glorioso São Benedito. Pois se o que está encantado é o que está oculto, desencantar a Marujada seria trair o sagrado, vulgarizando-a, ou pior, reduzindo-a a categorias e conceitos que não estão de acordo com sua potência. Apesar de a conclusão exigir certa objetividade na avaliação dos supostos resultados da pesquisa, talvez contraditoriamente, compartilho uma grande questão que me comove neste exato e cruel momento de escritura. Um bom mestre me ensinou que o segredo é o que mais valioso se pode guardar para resguardar um coração apaixonado. O segredo e suas relações tão íntimas com o sagrado. Isso me fez e faz pensar com muita dor sobre o que eu fiz de meus amores com esta escritura que me expõe tanto, mesmo quando eu me ponho a falar sobre o “outro”. Aos amores que estão em mim e que são como duplos dos que estão fora de mim, na vida, talvez eu devesse ter guardado segredo e não exposto à dissecação acadêmica. Terei eu dissecado friamente os meus amores? Com o coração partido, espero sinceramente que não. 33
Com reverência, cito a referência reinventada do Verbo Encantado, revista de contracultura que entre 1971 e 1972 circulou na cidade de Salvador (Bahia), e que teve como um de seus autores o ator, encenador e professor Armindo Bião. Nos primeiros de minha aventura soteropolitana, antes mesmo de estar vinculado oficialmente ao PPGAC da UFBA, eu trabalhei na digitação da tese de doutorado em Antropologia Social e Sociologia Comparada do professor Bião, intitulada “Théâtralité et spectacularité: Une aventure tribale contemporaine à Bahia” (Université Paris V René Descartes – Sorbonne). Foi por meio da leitura deste trabalho que entrei em contato com o Verbo Encantado, constituindo uma das primeiras encruzilhadas na qual eu encontraria o professor Bião.
Em minhas orações de corpo e de alma procurei acertar os ponteiros com os deuses e nesta dissertação sacrifiquei com rigor o bisturi, enterrando-o no meu quintal, e aguardando esperançoso que ele florescesse. Que deste bisturi morto e enterrado floresça uma flor noturna que dissipe eternamente uma densa névoa, turvando a visão de quem lê, pois os meus amores que são meus, mas que não são, têm encanto e devem ser resguardados da severidade dos olhos. Salve São Benedito e sua chama que (secretamente) arde.
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ANEXO
VÍDEO-DOCUMENTO “MASCARADOS”