O teatro do absurdo de Slavoj Zizek

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DO ABSURDO DE SLAVOJ ZIZEK

Fernando Luis Schuler

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que segue procura esboçar algumas ideias sobre uma ética da atividade intelectual. A leitura da obra de Zizek, em especial seus dois últimos livros publicados no Brasil, Vivendo ofim dos tempos e Em defesa das causas perdidas, funciona como uma espécie de campo de batalha. Encontro em Zizek o paradigma do oposto daquilo que defendo como uma perspectiva ética da vida intelectual, da prática do texto analítico, em especial no que diz respeito ao terreno da política. Alguém poderia retrucar dizendo que nada disso interessa ou diz respeito a Zizek,que não passa de um ideólogo,de modo que não há muito sentido em lhe exigir rigor, método ou mesmo algum apego à verdade. Sendo este o caso, o texto que segue não faz nenhum sentido. De fato fiquei em dúvida se valia a pena investir algum tempo analisando um escritor como Zizek. Não cheguei a uma boa conclusão. De todo modo, fui em frente. Zizekconcentra-se na tese de que o capitalismo está em estado terminal. Em seu penúltimo livro, Em defesa das causas perdidas, os motivos do fim do capitalismo eram essencialmente a crise financeira, e andava em voga falar da crise na Grécia. O tempo passou, O capitalismo não acabou e Zizek publicou um novo livro, Vivmdo afim dos tempos. O livro vai na mesma direção, assegurando que o capitalismo está à beira do "zero apocalíptico". A Grécia e a crise financeira saíram de cena, surgindo uma nova lista de razões: a "crise ecológica, a revolução biogenética, o crescimento vertiginoso das exclusões e divisões sociais e as contradições do próprio sistema"

A lista me pareceu incompleta. Zizek não explica porque a revolução biogenética seria mais ameaçadora do que a nanotecnologia ou a revolução robótica, ou quem sabe os recentes avanços da exploração em Marte. O livro traz uma série de exemplos de tecnologias com riscos apocalípticos muito além do campo biogenético. A cada tecnologia mencionada, a pergunta é sempre a mesma: o que está por trás disso?, suspeita que surge mesmo em relação a pequenos modernismos tecnológicos; tomemos o caso da inteligéncia artificial. Em geral, vemos como positivo o aumento da capacidade de processamento dos computadores e sua capacidade de resolver nossos problemas no trabalho e no dia a dia. Zizek olha mais adiante e nos alerta: "Eles se comunicarão, tomarão decisões etc., e nos apresentarão apenas os resultados de sua interação." "Eles obviamente, são os computadores. Fiquei em dúvida sobre o "etc.". Do que mais seriam capazes os comutadores? Zizek nos dá um exemplo: "quando tiramos dinheiro de um caixa eletrõnico, ele informa ao computador do banco, que manda a informação por e-mail ao nosso computador". Diante deste exemplo, fiquei pensativo. Há bancos mais avançados que já permitem ao cliente solicitar a suspensão do envio de e-mails. Casualmente, é o caso da instituição com a qual trabalho. Fui adiante. Em outro alerta, Zizek nos informa que assistiu a uma reportagem da CNN mostrando que "macacos com sensores implantados no cérebro aprenderam a controlar um braço robótico com o pensamento, usando-o para comer frutas e marshmellow". As pesquisas são conduzidas por uma equipe da ll

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Universidade de Pittsburgh liderada pelo Dr. Andrew Schwartz. Essa leitura me pro-

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equipes trabalhando mundo afora. O foco central é desenvolver neuropróteses para amputados e pessoas com paralisia. Há in-

de argumentação? Reúne um punhado de dados dispersos (evita séries estatísticas), menciona os riscos envolvidos e debita a responsabilidade na conta da peste privatista-capitalista. Numa variação estilística, substitui dados por exemplos. Exemplos de que as coisas não vão acabar bem. O método permite, no limite, demonstrar qualquer

contáveis matérias sobre isto em revistas e

coisa. No seu caso, a conclusão permanece

na internet. Zizek percebe algo estranho nisso tudo: "Pesquisas recentes indicam o fato estranho de que agéncias de defesa secretas dos Estados Unidos estão envolvidas em um amplo projeto de longo prazo para desenvolver meios de controlar as emoções e as atitudes humanas."Ele não informa que pesquisas são essas, qual sua relação com as pesquisas de neuropróteses,e quais são essas agéncias. Pode-se suspeitar que sejam péssimas agéncias secretas, visto que Zizek já sabe de tudo. Ele percebe claramente que há muita gente pesquisando sobre cérebro, e este é um tema perigoso. Qyem pode nos garantir que isso não será usado para apagar a memória de vítimas de rortura? Parece irrefutável. Zizek conclui: "o ideal que regula esse processo é o controle total do passado e do futuro em nível psíquico". Zizek é reconhecidamente um escritor prolixo 0á escreveu mais de 60 livros, e a velocidade se mantém). Neste ritmo, é bastante previsível que lhe falte tempo para pesquisar qualquer assunto com mais profundidade, e que ele tenda a se socorrer dos sites de notícias para captar a informação de que necessita. Seus livros funcionam, de certo modo, ao ritmo da internet, migrando com rapidez de um tema a outro. O método

constante: caminhamos para o apocalipse. Zizek desconfia dos experimentos de realidade expandida. Toma como exemplo o projeto do sixthsense, desenvolvido pelo MIT Media Lab. A ideia é acoplar um sensor a um smartphone, de modo que a pessoa possa apontar o aparelho para um objeto qualquer e receber informações mais detaIhadas sobre ele. O sujeito está passeando no Museu do Louvre, aponta o sensor para a Mona Lisa e surge uma ficha de dados sobre o quadro, projetada em um plano virtual. De maneira rudimentar, os museus já fazem isto com seus sistemas de áudio guia. O projeto é amplamente conhecido. Zizek percebe aí uma ameaça: "quando um racista encontra com um árabe pobre na rua, ele não 'se projeta' de certo modo no árabe e 'vê' nele rodos os seus preconceitos contra os árabes?" E logo a conclusão: é por isso que o sixthsellSe é uma ameaça ideológica, visto que o aparelho "imita e materializa o mecanismo ideológico do reconhecimento ... ".Tentei descobrir que diferença faria o sujeito racista estar ou não com o aparelho ligado ao cruzar com o árabe. Sem o aparelho, ele já é racista. O aparelhinho iria projetar informações ainda mais racistas? Se estivesse conectado à internet, o mais provável é que os dados fossem

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to que o brasileiro Miguel Nicolelis realiza pesquisas na mesma direção. Há muitas

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buscados na Wikipédia, o que até melhoraria a situação do árabe pobre. Imaginei um aparelhinho programado por Zizek. O que ele projetaria se alguém cruzasse com um sujeito de um grupo político do qual ele não gosta? Melhor nem pensar. E mesmo que isso fizesse algum sentido, qual a relação com o fim do capitalismo? Zizek volta suas baterias contra a computação em nuvem, que seria mais uma tec-

nologia a serviço da marcha privatista do ciberespaço global. Afirma ele:

do um catálogo de fornecedores de serviços de nuvem na internet. Mesmo desconsiderando a mentirinha, o que ele está sugerindo? Ele quer abrir o mercado para muitas empresas ou pensa que o serviço deveria ser oferecido pelo governo? Esta última opção me faz lembrar do Brasil nos anos 1970.Teríamos uma espécie de "Nuvembrás". Sendo o ciberespaço global, quem sabe a ONU se encarregaria do assunto, mas aí teríamos outro problema: quem controla a ONU? Zizek nos pediria para primeiro democratizá-la.

Os apologistas apresentam a computação em nuvem como o próximo passo lógico da "evolução natural" do ciberespaço, e embora de maneira tecnológico-abstrata seja verdadeiro, não há nada "natural"no fato de que duas ou três empresas, em posiçãO quase monopolisu, além de determinar os preços a seu bel-prazer, também possam filtrar os programas que oferecem, d~ndo a essa "universalidade" uma torção específica que depende de interesses comerciais e ideológicos. É verdade que a computação em nuvem oferece aos usuários uma riqueza inaudita de opções, mas essa liberdade de escolha não é mantida pela escolha de um provedor. com o qual ternos cada vez menos liberdade?

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A computação em nuvem é um serviço de armazenamento e processamento de dados. Em vez de guardar dados e baixar programas ou aplicativos no disco rígido do seu próprio computador, você contrata uma empresa para fazê-lo, por razões de segurança, mobilidade ou porque necessita de mais memória do que seu computador oferece. Zizek diz que duas ou três empresas monopolizam o mercado e "filtram programas a seu bel-prazer". Mentira pueril, que pode ser desmascarada simplesmente consultan-

Acho que não daria certo. Há milhares de empresas oferecendo serviços de nuvem. O Brasil anda cheio delas. Se eu contratar a Locaweb para armazenar meus dados, e ela subir muito o preço, troCOpara o UOL Host,e assim por diante. Não dá pra fazer isto na Eslovênia? De onde Zizek tirou a ide ia de que as empresas manipulam os preços como querem? E o que significa dar uma "torção específica à universalidade" por razões comerciais e ideológicas? Imaginei a moça do cal! centa da empresa ligando para Zizek. Do outro lado da linha, de retruca: "Nem pensar, vocês fazem uma torção tecnoabstrata da universalidade concreta!" Impassível, ela devolve: "Pois não, senhor, vamos estar encaminhando sua reclamação." Empresas fazem seu marketing, vendem seus serviços. As pessoas decidem se compram ou não. Qyeimei meus neurónios para saber como uma empresa faria uma torção ideológica da universalidade. Uma hipótese: ela teria um programa que rejeitaria um texto anticapitalista de Zizek. Difícil acontecer uma coisa dessas. Você pode en-


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tupir dezenas de nuvens californianas com palestras de Zizek (o YouTube está cheio delas) que ninguém o importunará. Se divulgar uma tese racista, aí sim você terá um problema (com razão). Fiquei igualmente sem entender a frase final. Por que diabos temos "cada vez menos liberdade" com o provedor que escolhemos? Seríamos gradativamente controlados pelas nuvens computacionais que contratamos? Lembrei da série Plall,ta dos Macacos, a que assistia na adolescência. Primeiro criamos as feras, e um belo dia elas assumem o comando. Zizek realmente parece pensar isto sobre robôs e computadores. A parte mais sugestiva do parágrafo, no entanto, surge no final: Os partidários da abt:rtura gostam de criticar a China pela tentativa de controlar o acesso à internet, mas nós não estamos nos tornando uma China, com nossas funções em "nuvem" de certo modo semelhantes ao Estado chinês?

A frase poderia servir como epígrafe do livro. Uma síntese da tese de Zizek. Ele está dizendo o seguinte: a China censura a internet, bloqueia o Google e outros sites de busca, pôe blogueiros na cadeia. Mas que ninguém critique: no capitalismo é "de certo modo" a mesma coisa, porque aqui vocês usam empresas de nuvem para armazenar seus dados. A crítica de Zizek aos avanços da tecnologia caberia em qualquer momento da história.Toda criança brasileira sabe do desgosto de Santos Dumont com o uso que se fez da aviação, e o fim trágico que deu à própria vida. Fiquei tentado a elencar avanços tecnológicos cruciais ao longo da história, com seus respectivos riscos, mas rapidamente

cheguei à descoberta do fogo, e percebi que seria cansativo para os leitores. Em seu livro recente, Abwldallu: Ih, future is b,tI" thall JOu thillk, Peter Diamandis expõe a tese de que assistiremos, nos próximos vinte anos, a um progresso tecnológico equivalente ao obtido pela humanidade nos dois últimos séculos. Diamandis argumenta que estamos ingressando em uma era de abundância. Ele talvez exagere, mas a percepção geral de cientistas e historiadores é de que vivemos tempos bastante promissores.! Zizek caminha na contramão. Podemos achar graça, mas é dificil assegurar que ele esteja errado. O mesmo não ocorre quando ele trata da outra ordem de razões para o fim do capitalismo: o "crescimento assombroso da exclusão e das divisões sociais". Zizek sustenta seu argumento com a premissa de que a situação social do planeta tem piorado nestes tempos de globalização econômica. Esta é uma tese bastante corriqueira no catastrofismo intelectual contemporâneo. E seguramente falsa. Escolhamos algum critério. A pobreza vem diminuindo rapidamente no planeta desde os anos 1980. O número de pessoas vivendo com menos de U$ 1,25 ao dia caiu de pouco mais de 50%, em 1981, para 15%, atualmente.2 15% é inaceitável, mas do que estamos falando mesmo? Esta-

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mos dizendo que, nas últimas três décadas, justamente nesses anos da globalização econômica, mais de um bilhão de pessoas ultrapassou a linha da extrema pobreza,ganhando novas perspectivas de vida. O fenômeno

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continentes. J effrey Sachs chamou o nosso tempo de era da convergência. Em menos de três décadas,o PIB dos Brics irá superar o do G 7. Isto significa maior equilíbrio global. Ou não? Poderíamos falar de longevidade, erradicação de doenças, acesso à educação. Fora nossos cabelos, hoje mais ralos e grisalhos, e nosso eventual mau humor, o que tornou o mundo um lugar pior para se viver nas últimas duas ou trés décadas? Zizek poderia explicitar seus critérios, argumentar, tentar demonstrar, por tais e tais razões, que o mundo vem piorando e está à beira do precipício. Não o faz. Prefere a saída fácil de recolher fatos ao bel-prazer e dar a tudo um colorido enragé. Zizek não é propriamente um mentiroso, em quem pese seu livro esteja repleto de mentirinhas. A certa altura de Vivendo o fim dos tempos, ele trata da guerra do Shindo Renmei, no Brasil dos anos 1940. A história foi magistralmente narrada por Fernando Morais em Corações sujos. A disputa dizia respeito à divisão, na comunidade japonesa de São Paulo, entre os "derrotistas" e "vitoristas" . Os primeiros reconheciam e os segundos se recusavam a acreditar na derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Zizek escreve que a guerra causou milhares de mortos e que o Estado deportou para o Japão os principais vitoristas. Ora, os mortos foram vinte e três, e ninguém foi depor-

tado para o Japão. Zizek teria contado uma mentira consciente, como faziam os jornai-

zinhos que Shindo Renmei publicava, com notícias da vitória do Japão? Ou seria apenas um descuido, quem sabe na expectativa de que pouca gente leria o livro no Brasil? Considero Zizek menos um mentiroso do que um bu/lshi//er, no sentido que Harry Frankfurt atribuiu ao conceito em seu livro On Bu/lshit. Um bu/lshi//ernão é um mentiroso, mas um sujeito que escreve sem muita

preocupação em verificar se o que está dizendo é verdade. Uma bullshít pode ser apenas um errinho factual, como o de Shindo Remnei,ou uma alusão conspiratória a neuropróteses e computação nas nuvens.

o efeito verdade Zizek tem uma estratégia de defesa sui generis contra qualquer acusação de inconsistência. Ele dirá que rigorosamente não pode ser criticado, visto que construiu um conceito próprio de verdade. Logo na apresentação de seu livro, ele esclarece que "a verdade que tratamos aqui não é a verdade objetiva" (Zizek, 2012, p. 14). A frase funciona como uma espécie de aviso: u eu escrever alguma coisa que não corrtsponda aos fatos, danem-u osfatos. Zizek criou O que ele chama de "verdade autorreferencial". Trata-se de uma verdade avaliada "não por sua precisão factual, mas pelo modo como afeta a posição subjetiva da enunciação". A coisa funciona mais ou menos assim: pode ser que não haja efetivamente nenhum problema com a biogenética, mas se todos acredita-

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rem que o problema existe, ele logicamente passa a existir.

a mesmo funciona com o capitalismo: ainda que o sistema não esteja nos estertores, se todo mundo acreditar na tese zizekiana, quem sabe ele vá mesmo pelos ares? Tomemos o exemplo de Marx: a "prova" de que o marxismo correspondia à verdade é dada pelo entusiasmo revolucionário que despertou (ou ainda desperta) no proletariado e que o conduz à revolução. mesmo, imagino, deveria valer para o liberalismo. Se todos acreditarem na tese de Fuku)'ama, a história poderia de fato terminar. Temos aí o que ele chama de "efeito-verdade". A filosofia funcionaria como o amor: da mesma forma como só enxergamos o objeto amoroso quando estamos apaixonados, só podemos enxergar a verdade zizekiana quando estivcnnos suficientemente embevecidos da crença nela. Ao invés do "ver para crer", devemos adotar o <lacreditar para ver".

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John Gra)', assim como eu, deu-se o trabalho de escrever uma crítica a Zizek. No início do texto, Gray trata da ideia da "verdade autorreferencial" e parece, como um bom e sóbrio acadêmico, levar a sério os argumentos de Zizek. Afirma que seus críticos deveriam compreender seus equívocos e omissões históricas, VIsto que "ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos". Além de dispensar a filosofia da ideia de verdade, dispensa a história dos fatos. Lendo estas coisas, percebi estar diante de um argumento incontestável. De fato, não faria sentido dizer: "Zizek está errado, a história não pode des-

considerar os fatos, assim como nossos atos de fala devem guardar alguma conexão com a realidade". Isso seria impossível, e penso que o mesmo ocorreu a Gra)'. Alguns parágrafos adiante, Gray parece ter perdido a sobriedade e chama Zizek de "prolixo, academicamente ardiloso, dado ao jogo de palavras, vazio e circense". Seu melhor momento é quando compara o texto de Zizek ao conhecido caso Sokal. Como é sabido, o flsico Alan Sokal enviou um artigo-paródia completamente nomeme para a revista de estudos pós-modernos SocialTexl, em 1996. texto tinha como título "Transgredindo as fronteiras: rumo a um. hermenêutica transformativa da gravidade quântica" e era repleto de jargões pós-modernos, que agradavam aos editores da revista,aind. que não tivessem o menor fundamento. Um bom "aplicativo de filosofia pós-moderna" pode fazer milagres. Zizek parece ter desses no seu computador quando escreve que "precisamos de uma noção mais radical de sujeito proletário, um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogilocartesiano, privado de seu conteúdo substancial" (Zizek, 2012, p. 196). A frase contém um jogo de palavras tal que o leitor fica em dúvida: "isto não quer dizer nada, ou não entendi direito?" Ele pode arriscar uma mterpretação. Há interpretações para todos os gostos. Há que se captar o sentido poético do texto, não é mesmo? Foi aí que o pessoal da Social Texl se deu mal.

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Gray poderia ter ido mais longe. Após a publicação de sua paródia pós-moderna, Sokal publicou um artigo na revista Língua Franca revelando o caráter fraudulento do

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ela mesmo, a ideia de efeito-verdade: se os leitores compram seus livros e acreditam no que ele escreve, quem dirá que aquilo tudo não é verdade? O verdadeiro Zizek pode até mesmo ser o sátiro (o falso Zikek), mas sua obra se converte em "verdade" dado o engajamento que produz. Zizek, diz Gray, ajustou a prática intelectual à fluidez, ao

A crítica de Sokal dirige-se precisamente ao tipo de texto praticado por Zizek. A recusa da realidade objetiva, da verdade objetiva ou do pensamento objetivo, fundamentado em alguma demonstração fática (passível de teste, comparação, refutação). O texto feito de frases obscuras, doses generosas de nonsense entremeadas de jargão esquerdista. Para escapar ele mesmo da retórica relativista, Sokal esclarece que não se trata de um problema "político", revelando ser ele mesmo um sujeito de "esquerda". Diz apenas que pretende ser de esquerda a partir de argumentos racionais, não apesar deles. Gray orienta-se no mesmo sentido da crítica de Sokal, mas propõe uma questão: e se Zizek fosse ele mesmo um sátiro, espécie de mestre da "autoparódia"? Neste caso (respondo eu) Zizek seria um gênio, visto desempenhar simultaneamente o papel do Sokal falso e do verdadeiro. Gray parece realmente levar a sério esta hipótese. O texto de Zizek pode ser "a reiteração interminável de uma visão essencialmente vazia", mas é um sucesso de público. Sua obra realiza,

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do mercado. Tornou-se uma celebridade pós-moderna. Não é o único, pensei. Para finalizar este texto, algumas observações sobre as ideias políticas de Zizek. Grayobservou que Zizekcritica o capitalismo sem, porém, propor nada parecido com uma alternativa. Afirma não ter encontrado uma única página, nas mais de mil que compõem o livro Le55than Nothing: Hegel and the Shadow o/Dia/ectica/ Materia/ism, em que Zizek se preocupe em definir, afinal de contas, no que consiste a sua utopia. Fico imaginando o que Gray espera de Zizek. Qye apresentasse um modelo de contrato político? Um modelo de instituições,como fez Hayek, com sua demarquia? Isto implicaria supor um Zizek preocupado com abstrações jurídicas. Quase acho graça dessa ideia. Imaginemos Zizek refu tando a teoria da justiça de Rawls, ou sugerindo algum modelo alternativo ao da democracia parlamentar. De [.,to, Zizek não se dá ao menor trabalho de explicitar como funcionaria a sua utopia anticapitalista. Ainda assim, parece perfeitamente possível saber do que ele está falando. Não acho que Zizek seja. inocente em relação ao tipo de política que defende, e suas incursões militantes ao redor do pla-

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neta dão conta disso. Tomemos as ideias de seu Em defesa das causas perdidas. O livro é uma homenagem a uma turma bem conhecida. Retratos de alguns deles povoavam os azulejos da cozinha do nosso apartamento, para o desespero de minha irmã, quando eu tinha lá meus 17 ou 18 anos. Falamos de SaintJust, passando por Lénin, Stalin, Mao, até Fidel e Che Guevara. Hitler ficou fora da lista por muito pouco. Ele tinha um "problema": não ter sido "suficientemente violento". O nazismo não foi "suficientemente radical, não ousou perturbar a estrutura básica do espaço social capitalista moderno". Por isso "teve que se concentrar em um inimigo externo inventado, os judeus". Zizek lamenta. Hitler foi um sujeito corajoso, mas do lado errado. Errou na escolha da "esséncia" a ser destruída. Escolheu os judeus,o certo seria o capitalismo. Foi um mau terrorista. Zizek recua na história e faz um elogio do terror jacobino. Os jacobinos exerceram o que chama de violéncia divina. Na tentativa de explicar o que isto significa, ele diz se tratar de "uma decisão (matar, arriscar ou perder a própria vida) tomada em absoluta solidão, sem nenhuma cobertura do grande Outro. Embora seja extramoral, não é imoral". Sentença típica do estilo zizekiano, mas vamos lá: em se tratando de uma decisão tomada em nome da justiça (ou, como gosta de acentuar Zizek, em nome da Verdade com "V" maiúsculo) por que ela não seria moral? Ilegal talvez, mas que importância teria a legalidade em uma discussão como essa? Pode a decisão de matar ou ser morto, de destruir ou ser destruído, ser "extramoral"? O que é exatamente uma decisão extramoral? Ro-

bespierre e Lênin não eram tipos que agem por impulso, e cada qual, em seu tempo, foi saudado como modelo de virtude. Mas então suas escolhas são extra morais, ainda que não imorais? Inútil prosseguir. Mais uma vez, estamos diante de uma performance fraseológica. O texto deve funcionar de modo que tudo pareça uma sofisticada metáfora. Retirado o palavrório, o que ele nos pede para acreditar? Qyem sabe a resposta está nos sans cu!!o!es que ilustram a capa do livro, conduzindo cabeças certadas na ponta de varas. Isto até seria fácil. Mas entâo devemos reeditar o terror revolucionário? Dependendo da situação, basta dizer: llão, é apenas uma metáfora. Ninguém mais tem senso de humor? Há um segredo para se ler Zizek sem constrangimentos: fazer de conta que entendemos qualquer coisa, sem fazer muitas perguntas. Roland Barthes dizia que o apaixonado carrega sempre um quéde ridículo. Zizek não foge à regra, com o detalhe de que O objeto de sua paixão poderia fazê-lo, se alguém o levasse a sério, um sujeito perigoso. Há passagens criativas. Em uma delas, ele explica uma das virtudes revolucionárias: a crença na independência do sujeito transcendental em relação aos indivíduos empíricos. Uma espécie de crença suprema da política radical, sua "loucura inumana", expressão que gosta de usar. Para exemplificar tal virtude, ele recorre a um discurso em que Che Guevara, em meio à crise dos mísseis, em 1962, sugere a alternativa da guerra atômica: "ele elogiou a disposição heroica do povo cubano de correr o risco de seu próprio fim". Ideia curiosa. Então O povo cubano ofereceu-se

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para morrer tostado na guerra atômica? Fizeram uma enquete? Não exatamente. Para que perder tempo com um punhado de eus empíricos cubanos, quando o sujeito transcendentaljá havia se manifestado? (No caso, o Comandante Fidel, a quem Kruschev não deu bola ao preferir negociar pacificamente com o Presidente Kennedy.) Aqui há um truque comum no texto de Zizek, que consiste em citar ícones da "política radical" como "prova" do próprio argumento radical. De fato, a retórica totalitária carrega todos os elementos imagináveis do apelo ao "inumano". O mais comum, para qualquer tiranete (seja de que ideologia for), é falar com alguma desenvoltura em nome da história. Q!1anto mais abstrato, grandioso e distante dos sujeitos empíricos, tanto melhor. Então aparece SaintJust com suas frases de botequim: "o que produz o bem geral é sempre terrível". A fraseologia de SaintJust levou ao resultado que conhecemos (que incluiu, no final, seu próprio pescoço). O problema é: citar heróis que amamos serve como uma prova das ideias que amamos? Em outra passagem ilustrativa, Zizek refere-se a outro de seus heróis. Diz que "nos julgamentos stalinistas, as vítimas foram responsabilizadas por determinados atos, forçadas a confessar ... Em resumo, embora possa parecer obsceno (e foi, de fato), elas foram tratadas como sujeitos éticos autônomos .. .n. O sujeito cai em desgraça por um motivo qualquer, é preso, torturado até mais não poder, assina uma confissão, é morto, enxovalhado e logo apagado da história. Zizek, não obstante, nos assegura que ele ao

menos foi tratado como um "sujeito ético autônomo". Ao menos isso. Zizek escreve coisas desse tipo por diversas razôes. Uma delas é que o custo é zero. Ele sabe que vive em uma democracia, que pode dizer qualquer coisa, e que jamais enfrentará um julgamento stalinista. Pode circular livremente pregando a "hipótese comunista". O pessoal assiste à palestra, se diverte e vai comer uma pizza. Enquanto isto, Liu Xiaobo permanece numa prisão chinesa não hipotética. Há momentos em que precisamos decidir sobre o que vamos rir e sobre o que não vamos achar graça. Isso diz respeito à ética da atividade intelectual. O discurso de Zizek pode ser irrelevante, mas isso não o torna menos eticamente delituoso, nos dois sentidos definidos por Weber.' Como prática científica (histórica ou sociológica), desdenha de qualquer base factual verificável; como discurso político, é irresponsável quanto às consequências que poderia provocar, se alguém lhe desse ouvidos. Como disse Gray, Zizek não gasta nem uma página explicando como seria sua utopia política. Nem seria preciso. O terror é, por definição, o espaço da não forma na política. HannahArendt bem observou a diferença entre a linguagem dos revolucionários franceses e a dos pais fundadores dos Estados Unidos da América. De um lado, a retórica abstrata e grandiloquente do destino humano, da necessidade histórica (que tanto parece encantar Zizek em suas citaçôes bíblicas de Robespierre, Saint Just); de ou-

~ Ver"A ciência como vocaçào" e ~A política como vocação.,

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tro, O discurso calmo e objetivo sobre como organizar as instituições. Suas limitações, riscos e a melhor maneira de superá-los. De um lado, a grande tragédia (ainda que dramaturgicamente insuperável) que leva à ditadura napoleõnica; de outro, a serena e bem-sucedida construção da república. Zizek, naturalmente, cala-se para esta última e declara sua paixão pela primeira. Zizek é um perfeito clone tardio da tradição revolucionária. Ele não pode ser objetivamente

um revolucionário, visto não

existir revolução em curso. Poderia tentar encontrar alguma, talvez na selva colombiana, ou uma em estado avançado, como na Coreia do Norte. Intuo que Zizek escaparia dizendo se tratar exemplos imperfeitos de revolução, não suficientemente radicais. Para um revolucionário universitário, toda revolução realmente existente será sempre imperfeita. Zizek poderia dizer que na verdade está envolvido em algo muito mais amplo, quem sabe na grande revolução mundial. É muito mais responsabilidade, ainda que inegavelmente mais seguro. De todo modo, ele se pretende um revolucionário para destruir esta civilização em estado terminal, cujo vértice central é o que ele chama pejorativamente de "ideologia dos direitos humanos". É curioso, visto que a tradição dos direitos humanos tem sido, ela mesma, o produto de sucessivas revoluções. Muito recentemente, Mandela liderou uma dessas revoluções. Há, portanto, revolucionários em ambos os lados da tradição dos direitos humanos. Talvez ninguém sintetize tão bem esta grande tradição revolucionária, na modernidade, como Thomas

Paine. Paine sempre esteve no lugar em que as revoluções de fato aconteciam. Em 1776, incendiou as colônias americanas com o seu "Senso Comum". Colocou o pescoço em risco na guerra revolucionária

contra

seu país de origem, a Inglaterra. De volta ao velho mundo, escreveu 0.<direitos dos homem, respondendo a Burke e sua critica conservadora à Revolução Francesa. É perseguido, atravessa o canal e é eleito deputado na Convenção francesa. Aproxima-se dos jacobinos, com a determinação sincera de levar o aprendizado republicano, colhido na América, à revolução. Seu primeiro embate com Danton dá-se em função de sua defesa de um judiciário independente. Combate a destruição dos direitos civis e a emergência do terror, até o fim patético em 9 Termidor. Termina preso durante todo o ano de 1794, e apenas por um lance de sorte não acaba na guilhotina. Trazer à tona a memória de Paine é uma forma de lembrar quem somos e quanto nos custou erguer uma civilização fundada em direitos. Zizek nos propõe uma questão: a civilização dos direitos humanos ou a hipótese do terror? Ambas imperfeitas. Nem as democracias liberais respeitam suficientemente os direitos humanos, nem a tradição do terror tem sido suficientemente radical, nos ensina Zizek. De qualquer forma, esta é a opção, e a escolha de Zizek é clara. Pouco mais de dois séculos atrás,. Paine se viu diante da mesma questão. Com uma diferença: ele de fato vivia uma revolução. Suas escolhas não eram retóricas e sim a diferença entre a vida e a morte. Sua opção é igualmente bem conhecida.

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Paine viveu entre dois mundos. À "esquerda" na Inglaterra de Burke, e à "direita" na França de Robespierre. Ao cabo, cuspido de ambos, intelectual de lugar nenhum. Arrisco dizer que é neste lugar nenhum, neste meio de caminho, que nasce a tradição mais generosa da política moderna. Contrariamente ao que supõe Zizek, não é "nossa" a

herança do terror. Nossa é a tradição que repudiou o terror e recusou a fraude de justificara crime com a ideologia. Nosso é o caminho trilhado por Paine e depois por Mill, no século XIX, e pela tradição liberal igualitarista, de Bobbio, Rawls e Sen, no nossa tempo. Um caminho que não abre mão da ideia da justiça e que não trata os direitos humanos como uma ideologia. Q;Ianto a Zizek e sua turma, sempre me vem a pergunta: por que não abrem um parque temático? Seria menos confortável do que a vida que levam hoje, animais domesticados que são, terroristas fora de época, condenados a vociferar em auditórios alegres mundo afora. Por que não investem o dinheiro que ganham comprando uma área de terra bem grande, reúnem-se todos e implantam ali uma espécie de Truman Show totalitário? Os cenários poderiam variar.

um final pasoliniano, para quem recorda de 120 dias de Sodoma. Por que não fazem isso, mostram alguma coragem, e deixam os covardes eus empíricos viverem tranquilos no mundo real, com seus pequenos direitos e, quiçá, visitando museus com seus aparelhi-

,

I I

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Fernando Luis schuler é doutor em Filosofia e mestre em Ciências politicas pela UFRGS. É diretor do Ibmec. no Rio de Janeiro. e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento.

Em um ano, viveriam em Paris, no auge do

terror; em outro, como camponeses na revolução cultural de Mao. A cada temporada se revezariam na fantasia do grande ditador. Lénin, Stalin, Mao, PaI Pot e, por que não, quebrar o tédio, vez por outra, com a turma do "lado errado", Idi Amin, Mussolini etc. Dançarão como sam cullotes, espetando cabeças de borracha, e fantasiados como Chaplin, em O Grande Ditador. Q;Iem sabe até

!


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