Considerações de dom Julio sobre dossie do Papa Bento XVI na Revista Cult - 07/03/2013

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Dossiê sobre o pensamento de Bento XVI Considerações de Dom Julio Endi Akamine no Encontro-debate da Revista Cult 07/03/2013


Dossiê sobre o pensamento de Bento XVI

Agradeço o convite que me foi feito para participar da apresentação desta edição da revista Cult. Agradeço sobretudo pela oportunidade de ler os artigos que compõem o presente dossiê. Falo como cristão, interessado pela teologia e pela reflexão da fé, é uma alegria consoladora encontrar em meio à maré de desinformações uma tábua sobre a qual a inteligência é instigada a se aprofundar e a fé pode se confrontar com artigos que a fazem pensar.


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O dossiê apresenta como abertura o Artigo “A última travessia”. Nele, o professor Magno Vilela, reflete sobre a renúncia do Papa Bento XVI à luz da renúncia de Celestino V. Ele tem razão! Renúncias – como um ato soberano e legítimo, feito em plena lucidez e fora de qualquer tipo de pressão – foram poucas, talvez somente duas: a de Celestino V (em 13 de dezembro de 1294) e a de Bento XVI (ocorrida em 28 de fevereiro de 2013). Os motivos da renúncia foram dados pelo próprio Papa Bento: julgou que um papa pode e deve renunciar “quando o vigor quer do corpo quer do espírito”, ao diminuir, afeta o exercício adequado do ministério. Ele confidenciou: “tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”. É lamentável que essas razões tenham sido totalmente ignoradas por muitos vaticanistas: falou-se em clima de guerra civil, em pressões da cúria romana, em dossiês secretos vazados para a imprensa. É alentador ler o artigo “A grande travessia”: ele se fundamenta em fontes de primeira mão, no caso, nas explicações do próprio Bento XVI.


O Artigo “O Papa da fé”, do teólogo Francisco Catão, é um aprofundamento sobre o tema da Fé. Refletindo sobre a Carta Porta Fidei, apresenta o pensamento do Papa sobre a relação entre as expressões objetivas da fé e o ato subjetivo de crer. A fé é uma adesão pessoal ao Deus que vem ao encontro do ser humano; nesse encontro interpessoal, o ser humano adere também a conteúdos objetivos cujo conhecimento é essencial para se dar o a adesão subjetiva como ato da Inteligência e da vontade. Entre o objetivismo racional e estrutural e o subjetivismo liberal e modernista da fé, Francisco Catão, à luz do pensamento de Bento XVI, sublinha que entre ato de crer e o conteúdo da fé a relação é de distinção sem separação e de unidade sem confusão. A fé é adesão subjetiva e pessoal, mas ela tem conteúdo porque o crente não crê em qualquer coisa. A fé não é o sacrifício da razão, não é a opção pelo irracional: “creio porque é absurdo”. Essa não é uma fórmula que interpreta a fé católica. Deus não é o absurdo e ele não exige do ser inteligente uma opção pelo irracional. Deus é mistério e permanece sempre mistério; mistério, por sua vez, que não é o irracional, mas a superabundância de sentido, de significado e de verdade. Bento XVI, no dia 21 de novembro de 2012, disse diante da multidão reunida no Vaticano para a catequese das quartas-feiras: “A fé permite um saber autêntico sobre Deus, que envolve toda a pessoa humana; é um saber, ou seja, um conhecer que confere sabor à vida, um novo gosto de existir, um modo jubiloso de estar no mundo... Este conhecimento de Deus através da fé não é unicamente intelectual, mas vital”.


O Artigo “Crítica da cultura” de Bernard Lauret nos põe diante do diálogo entre fé e cultura, referindo-se ao encontro organizado em 2004 entre o então Cardeal Joseph Ratzinger e o pensador Jürgen Habermas. Chamou-me a atenção as diferentes posições sobre a questão da autolimitação da razão moderna. Segundo Habermas a razão moderna se autolimita não porque seja incompetente sobre questões de fundo abordadas também pela religião. Ela se autolimita porque a razão não pode ter a pretensão de validade a menos que aceite as diversas disciplinas que exercem sua competência em um campo definido e limitado. Para Ratizinger a razão não somente deve se autolimitar, mas também deve ser lembrada de seus limites e precisa adquirir uma capacidade de escutar as grandes tradições religiosas da humanidade. Esse mesmo tema é ainda retomado pelo artigo “Diálogos com a filosofia contemporânea” do professor Juvenal Savian Filho, que é também o organizador do presente dossiê, quando escreve: “o paradoxo residiria no fato de a razão querer determinar seus limites, sem contraposição com nada de outro. Ela decidiria sobre tudo, mesmo quando quer determinar apenas o seu campo de atuação: afinal, relegando para o campo do irracional o que ela considera inescrutável, ela opera com critérios racionais, e, curiosamente, termina por defender seu primado antes contestado”.


O Artigo “Ética em tempos sombrios”, do professor João Mac Dowell tem uma afirmação que não deveria passar despercebida: “o agir cristão não seria um agir específico, mas um agir propriamente humano, levado à maturidade da humanização pela revelação de Cristo, para quem o encontro com Deus mostra o que significa ser plenamente humano”. O agir cristão não se contrapõem ao que é autentica e verdadeiramente humano, pelo contrário ele procura ser um agir plenamente humano. (Nos fazer mais humanos, nos fazer verdadeiramente humanos é o que persegue a ética cristã).

Exemplo dessa aderência do agir cristão como agir humano encontramos na citação da encíclica Spe salvi: Tal como o agir, também o sofrimento faz parte da existência humana. Certamente é preciso fazer todo o possível para diminuir o sofrimento: impedir o sofrimento dos inocentes, amenizar as dores, ajudar a superar os sofrimentos psíquicos. A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre. Isso vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. Uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a compaixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e também assumido interiormente, é uma sociedade cruel e desumana. Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por causa do amor e para se tornar pessoa que ama verdadeiramente: estes são elementos fundamentais da humanidade e seu abandono destruiria o próprio homem”.


O professor Juvenal Savian Filho apresenta em seu Artigo “Diálogos com a filosofia contemporânea” o Papa Bento XVI como um defensor da razão. Nessa defesa chega a citar autores que, para um desatento, aparentam estar muito distantes da fé: em sua saudação natalina aos membros da Cúria Romana mencionou Simone de Beuvoir. Em sua encíclica Deus Charitas est tem como interlocutor: Nietzsche; na encíclica Spe Salvi, o Papa entabula diálogo com Francis Bacon, Immanuel Kant, Marx e Engels, Max Horkheimer e Theodor Adorno.

Mera estratégia? Simples recurso artificial de erudição? Um exame mais atento de toda a obra de Bento XVI revela que nessa atitude de diálogo com a filosofia está a convicção de que a fé não age como um elemento extrínseco ou exógeno na filosofia, na cultura e nas tradições religiosas. Ela age como fermento, a partir de dentro e levando à plenitude a filosofia, as culturas e as religiões.

A fé pensa e dá o que pensar. Ela é razoável e emancipa a razão humana abrindolhe horizontes de pesquisa e descoberta mais amplos, verdadeiros e humanizantes. A fé não bloqueia a razão, antes solicita o ser inteligente a caminhar diretamente em busca da verdade sem jamais se cansar, apesar de toda a canseira que essa busca implica.


Por fim, o dossiê se conclui com o artigo “Entre Deus e os pobres”, de Helder Ferreira. O artigo traz as intervenções de vários teólogos sobre a posição de Ratzinger em relação à Teologia da Libertação. O debate sobre o uso do método filosófico da análise materialista da história na Teologia volta ao debate com posições bastante distintas entre os teólogos da atualidade. Intervém nesse debate: Clodovis Boff, João Batista Libânio, Frei Betto e Leonardo Boff. Li esse artigo reagindo: ele tem razão? Por que sim e por que não? Cabe ao leitor, aprofundar as razões apresentadas e se posicionar.

Agradeço mais uma vez a proveitosa e instigante leitura do presente dossiê. Gostaria sinceramente que outros assuntos da fé cristã fossem tratados com a mesma aprofundidade e amplidão de horizonte, a mesma honestidade intelectual e o mesmo rigor científico de buscar as fontes de primeira mão.


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