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Erving Goffman Com Ritual de interação a Editora Vozes traz ao leitor brasileiro mais um livro importante do sociólogo canadense Erving Goffman. Por meio de seus seis ensaios temos uma análise notável dos fatores que influenciam nosso comportamento e formam nossa identidade quando estamos em contato com outras pessoas. A principal realização de Goffman talvez seja expor com clareza, e um fino senso de ironia, várias noções que temos sobre nós mesmos e sobre os outros ao nosso redor, mas que normalmente seríamos incapazes de enunciar, ou mesmo de perceber conscientemente. Assim, sua leitura tem um efeito potencialmente transformador e enriquecedor - depois de ler Goffman, é impossível encarar o mundo social como fazíamos antes. Nossa perspectiva é alterada, e para melhor.

^EDITORA VOZES

RITUAL DE INTERAÇÃO Ensaios sobre o comportamento face a face

ISBN 978-85-326-4097-0

Uma vida pelo bom livro

vendas@vozes.com.br

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LOGIA


Colecão Sociologia Coordenador: Brasilio Sallumjr. - Universidade de São Paulo

Erving Goffman

Comissão editorial: Gabriel Co/m — Universidade de São Paulo Mys Barreira - Universidade Federal do Ceará José Ricardo Ramalho - Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcelo Ridenti — Universidade Estadual de Campinas Otávio Dulci - Universidade Federal de Minas Gerais - A educação moral Émile Durkheim - A pesquisa qualitativa — Enfoques epistemológicos e metodológicos

W.AA

- Sociologia ambiental John Hannigan - Ó poder em movimento — Movimentos sociais e confronto político Sidney Tarrow - Quatro tradições sociológicas Randall Collins - Introdução à Teoria dos Sistemas Niklas Luhmann - Sociologia clássica — Marx, Durkheim e Weber Carlos Eduardo Sell - O senso prático Pierre Bourdieu - Comportamento em lugares públicos — Notas sobre a organização social dos ajuntamentos Erving Goffman - A estrutura da ação social - Vols. I e II Talcott Parsons - Ritual de interação — Ensaios sobre o comportamento face a face Erving Goffman

Ritual de interação Ensaios sobre o comportamento face a face

Tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Goífman, Erving Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face a face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. - (Colecão Sociologia) Título original: Interaction ritual: essays on face-to-face behavior ISBN 978-85-326-4097-0 l. Interação social I. Título. 11-02684

CDD-302 índices para catálogo sistemático: l. Interação social: Sociologia 302

EDITORA VOZES Petrópolis


© 1967 by Erving Goffman Título original inglês: Interactíon Ritual — Essays on Jace-to-face behavior Publicada nos Estados Unidos pela Pantheon Books, uma divisão da Random House, Inc., Nova York, e simultaneamente no Canadá pela Random House of Canadá Limited, Toronto. Obra publicada originalmente pela Doubleday & Company, Inc. Direitos de publicação em língua portuguesa: 2011, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Diretor editorial Frei António Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Editoração: Dora Beatriz V. Noronha Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: Célia Regina de Almeida Juliana Teresa Hannickel ISBN 978-85-326-4097-0 (edição brasileira) ISBN 0-394-70631-5 (edição norte-americana) Editado conforme o novo acordo ortográfico.

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Permissões e agradecimentos

"On Face-Work: An Analysis of Ritual Elements in Social Interaction" ["Sobre a preservação da fachada: uma análise dos elementos rituais na interação social"] foi reimpresso com permissão de Psychiatry: Journal for the Study of Interpersonal Processes, vol. 18, n. 3, ago./1955, p. 213-231. Copyright © 1955 da William Alanson Whil.e Psychiatric Foundation Inc. "The Nature of Deference and Demeanor" ["A natureza da deferência e do porte"] foi reimpresso com permissão de American Anthrotwlogist, vol. 58, jun./1956, p. 473-502. Copyright © da American Anthropological Association. Todos os direitos reservados. "Embarrassment and Social Organization" ["Constrangimento e organização social"] foi reimpresso com permissão de The American Journal ofSociology, vol. 62, n. 3, nov./1956, p. 264-274. "Alienation from Interaction" ["Alienação da interação"] foi reimpresso com permissão de Human Relations, vol. 10, n. l, 1957 p 47-59. "Mental Symptoms and Public Order" ["Sintomas mentais e a ordem pública"] foi reimpresso com permissão do Walter Reed Army l nstitute of Research. "Where the Action Is" ["Onde a ação está"] foi preparado com a ajuda de um financiamento do Programa para o Desenvolvimento da Juventude da Fundação Ford e do Centro para o Estudo do Direito e da Sociedade, Universidade da Califórnia, Berkeley, sob um Financiamento do Escritório de Delinquência Juvenil e Desenvolvimento da Juventude, Administração de Bem-estar, Departamenio de Saúde, Educação e Bem-estar dos Estados Unidos em cooperação com o Comité Presidencial sobre Delinquência Juvenil e Crimes Juvenis. Também recebi apoio do Instituto de Desenvolvimento Humano, Universidade da Califórnia, Berkeley, e do Centro


de Questões Internacionais, Universidade Harvard. Edwin Lemert forneceu críticas detalhadas, o que me deixa muito grato. Os comentários sobre jogatina em cassinos de Nevada são baseados num estudo em progresso. Os primeiros quatro artigos foram publicados enquanto eu era um membro do Laboratório de Estudos Socioambientais, Instituto Nacional de Saúde Mental, e sou grato pelo apoio do Laboratório. Pelo apoio para publicar esta coleção de seis artigos, sou grato ao Centro de Questões Internacionais, Universidade Harvard.

Sumário

Introdução, 9 1 Sobre a preservação da fachada - Uma análise dos elementos rituais na interação social, 13 2 A natureza da deferência e do porte, 51 3 Constrangimento e organização social, 95 4 A alienação da interação, 110 5 Sintomas mentais e a ordem pública, 132 6 Onde a ação está, 142


Introdução

O estudo da interação face a face em ambientes naturais ainda não tem um nome adequado. Além disso, as fronteiras analíticas do campo continuam imprecisas. De alguma forma, mas apenas de alguma forma, estão envolvidos um breve período de tempo, uma extensão limitada no espaço, e os eventos são restritos àqueles que devem ser completados depois de iniciados. Há um emaranhado complexo com as propriedades rituais das pessoas e com as formas egocêntricas da territorialidade. Entretanto, podemos identificar o assunto em questão. Ele é a classe de eventos que ocorre durante a copresença e por causa da copresença. Os materiais comportamentais definitivos são as olhadelas, gestos, posicionamentos e enunciados verbais que as pessoas continuamente inserem na situação, intencionalmente ou não. Eles são os sinais externos de orientação e envolvimento - estados mentais e corporais que não costumam ser examinados em relação à sua organização social. O exame detalhado e sistemático desses "pequenos comportamentos" começou a se desenvolver, estimulado por estudos atuais impressionantes de animais e da linguagem, e apoiados pelos recursos disponíveis para o estudo da interação em "grupos pequenos" e pelas psicoterapias. Um dos objetivos ao se lidar com esses dados é descrever as unidades naturais da interação construídas a partir deles, começando com as menores possíveis - por exemplo, o movimento facial breve que um indivíduo pode fazer no jogo de expressar seu alinhamento com aquilo que está acontecendo - e terminando com acontecimenlos como conferências de uma semana, esses mastodontes interacionais que forçam até os limites aquilo que pode ser chamado de uma ocasião social. Um segundo objetivo é descobrir a ordem normativa que vale dentro dessas unidades, e entre elas, ou seja, a ordem


conxportamental encontrada em todos os lugares povoados, sejam eles públicos, semipúblicos ou privados, e estejam eles sob os auspícios de uma ocasião social organizada ou sob as coerções mais prosaicas de um mero ambiente social rotinizado1. Ambos objetivos podem progredir através da etnografia séria: precisamos identificar os incontáveis padrões e sequências naturais de comportamento que ocorrem sempre que pessoas entram na presença imediata de outras. E precisamos enxergar esses eventos como uma questão de análise por si só, analiticamente distinta de áreas vizinhas, como, por exemplo, relações sociais, pequenos grupos sociais, sistemas de comunicação e a interação estratégica. Defende-se aqui uma sociologia das ocasiões. A organização social é o tema central, mas aquilo que é organizado é a mescla entre pessoas e as atividades interacionais temporárias que podem surgir a partir disso. Está em questão aqui uma estrutura estabilizada normativamente, um "ajuntamento social", mas essa entidade é mutante, necessariamente evanescente, criada por chegadas e assassinada por partidas. Os primeiros cinco artigos deste livro aparecem na ordem de sua publicação original com apenas algumas mudanças editoriais; o sexto, abrangendo quase metade do volume, é publicado aqui pela primeira vez. Eu temo que eles não sejam lá muito "botânicos". Mas eles certamente enfocam uma questão geral que continua a ser de interesse para o etnógrafo, e que sempre terá que receber alguma consideração. Eu pressuponho que o estudo apropriado da interação não é o indivíduo e sua psicologia, e sim as relações sintáticas entre os atos de pessoas diferentes mutuamente presentes umas às outras. Ainda assim, já que são atores individuais que contribuem com os materiais mais básicos, sempre será razoável perguntar quais propriedades gerais eles precisam ter se quisermos esperar esse tipo de contribuição deles. Que modelo mínimo do ator é necessário se quisermos dar corda nele, enfiá-lo entre seus colegas, e ver emergir um tráfego de comportamento ordenado? Que modelo mínimo é necessário se

o estudante quiser antecipar as linhas pelas quais um indivíduo, qua participante em interações, pode ser efetivo, ou então desmorona? É disso que estes artigos tratam. Uma psicologia está necessariamente envolvida, mas ela é despojada e comprimida para se acomodar ao estudo sociológico das conversações, provas de atletismo, banquetes, julgamentos e vagabundagem na rua. Não, então, homens e seus momentos. Em vez disso, momentos e seus homens.

1. Eu realizei uma tentativa nesses moldes em Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010. 10

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1 Sobre a preservação da fachada* Uma análise dos elementos rituais na interação social

Todas as pessoas vivem num mundo de encontros sociais que as envolvem, ou em conta to face a face, ou em conta to mediado com outros participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende a desempenhar o que às vezes é chamado de linha - quer dizer, um padrão de atos verbais e não verbais com o qual ela expressa sua opinião sobre a situação, e através disto sua avaliação sobre os participantes, especialmente ela própria. Não importa que a pessoa pretenda assumir uma linha ou não, ela sempre o fará na prática. Os outros participantes pressuporão que ela assumiu uma posição mais ou menos voluntariamente, de forma que se ela quiser ser capaz de lidar com a resposta deles a ela, ela precisará levar em consideração a i mpressão que eles possivelmente formaram sobre ela. O termo fachada pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um conta to '•'•' Este capítulo foi escrito na Universidade de Chicago. Pelo apoio financeiro para escrevê-lo, eu sou grato a uma Bolsa de Saúde Pública dos Estados Unidos (n. M702[6]MH[5]) para um estudo das características da interação social dos indivíduos, liderado pelo Dr. William Soskin do Departamento de Psicologia, Universidade de Chicago. l . Face, no original em inglês. Em português não utilizamos este termo com a conotação que Goffman emprega aqui, que poderia ser resumida, de forma um tanto imprecisa, como "respeito próprio". É um termo de tradução particularmente complicada, porque, como veremos no decorrer do texto, ele é usado em contextos variados com significados variados. Quando isto ocorrer, o termo original será assinalado no texto [N.T.].

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particular. A fachada é urna imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados - mesmo que essa imagem possa ser compartilhada, como ocorre quando uma pessoa faz uma boa demonstração de sua profissão ou religião ao fazer uma boa demonstração de si mesma2. A pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imediata à fachada que um contato com outros permite a ela; ela catexiza sua fachada; seus "sentimentos" se ligam a ela. Se o encontro sustenta uma imagem da pessoa que ela dá por certo há muito tempo, ela provavelmente terá poucos sentimentos sobre a situação. Se os eventos estabelecem uma fachada para ela melhor do que ela poderia esperar, ela provavelmente se "sentirá bem"; se suas expectativas costumeiras não forem realizadas, espera-se que ela se "sinta mal" ou "sinta-se ofendida". De modo geral, o apego de uma pessoa a uma fachada particular, junto com a facilidade de comunicar informações falseadoras por ela e por outros, constitui uma das razões que fazem com que ela considere que a participação em qualquer contato com outros seja um compromisso. A pessoa também terá sentimentos sobre a fachada mantida para os outros participantes e, apesar desses sentimentos poderem ser de quantidade e direção diferentes daqueles que ela tem para sua própria fachada, constituem um envolvimento com a fachada dos outros que é tão imediato e espontâneo quanto o envolvimento que ela tem com sua própria fachada. A fachada pessoal e a fachada dos outros são construtos da mesma ordem; são as regras do grupo e a definição da situação que determinam quantos sentimentos devemos ter pela fachada e como esses sentimentos devem ser distribuídos pelas fachadas envolvidas. Podemos dizer que uma pessoa tem, está com ou mantém a fachada quando a linha que ela efetivamente assume apresenta uma imagem dela que é internamente consistente, que é apoiada por juí2. Para discussões sobre o conceito chinês de fachada, cf. os seguintes textos: CHIN HU, H. "The Chinese Conception of 'Face'". American Anthropologist, n.s. 46, 1944, p. 45-64. • YANG, M.C. A Chinese Village. Nova York: Columbia University Press, 1945, p. 167-172. • MACGOWAN, J. Um andManners ofModem China. Londres: Unwin, 1912, p. 301-312. • SMITH, A.H. Chinese Characteristics. Nova York: Felming H. Revell Co., 1894, p. 16-18. Para um comentário da concepção de fachada dos índios americanos, cf. MAUSS, M. The Gift. Londres: Cohen & West, 1954, p. 38. 14

zos e evidências comunicadas por outros participantes, e que é confirmada por evidências comunicadas por agências impessoais na situação. Em tais momentos, a fachada da pessoa claramente é algo que não está alojado dentro ou sobre seu corpo, mas sim algo localizado difusamente no fluxo de eventos no encontro, e que se torna manifesto apenas quando esses eventos são lidos e interpretados para alcançarmos as avaliações expressas neles. A linha mantida pôr e para a pessoa durante o contato com outros tende a ser de um tipo institucionalizado legítimo. Durante um contato de um tipo particular, um participante da interação com atributos conhecidos ou visíveis pode esperar ser apoiado numa fachada em particular, e pode sentir que é moralmente apropriado que isto aconteça. Tendo em vista seus atributos e a natureza convencionalizada do encontro, ele terá um pequeno conjunto de linhas abertas para ele escolher, e um pequeno conjunto de fachadas para escolher estará esperando por ele. Além disso, baseado em alguns atributos conhecidos, ele recebe a responsabilidade de possuir um número vasto de outros atributos. Seus coparticipantes provavelmente não terão consciência do caráter de muitos desses atributos até que ele aja, perceptivelmente, de uma forma que deprecie sua posse deles; nesse momento todos se tornam conscientes desses atributos e pressupõem que ele deliberadamente deu uma falsa impressão de possuí-los. Assim, apesar de a preocupação com a fachada enfocar a atenção da pessoa na atividade em curso, ela deve, para manter a fachada nessa atividade, levar em consideração seu lugar no mundo social além dela. Uma pessoa que consegue manter a fachada na situação em curso é alguém que se absteve de certas ações no passado que teriam sido difíceis de encarar com coragem [face up to] posteriormente. Além disso, ela teme perder a fachada agora em parte porque os outros podem tomar isto como um sinal de que não precisarão demonstrar consideração pelos seus sentimentos no futuro. Ainda assim, há uma limitação a essa interdependência entre a situação em curso e o mundo social mais amplo: um encontro com pessoas com as quais ela não terá mais interações no futuro a libera para assumir uma linha "altiva" que o futuro depreciará, ou a libera para sofrer humilhações que tornariam interações futuras com elas algo constrangedor demais para enfrentar. 15


Podemos dizer que uma pessoa está com a fachada errada quando, de alguma forma, trazemos alguma informação sobre seu valor social que não pode ser integrada, mesmo com esforço, com a linha que está sendo mantida para ela. Podemos dizer que uma pessoa estafara âefachada quando ela participa de um contato com outros sem ter uma linha pronta do tipo que esperamos que participantes de tais situações tenham. A intenção de muitos trotes é levar uma pessoa a mostrar uma fachada errada, ou nenhuma fachada, mas é claro que também existirão ocasiões sérias em que ela se encontrará, expressivamente, não a par da situação. Quando uma pessoa sente que está com fachada, ela tipicamente responde com sentimentos de confiança e convicção. Firme na linha que está assumindo, ela sente que pode manter a cabeça erguida e se apresentar a outros abertamente. Ela sente uma certa segurança e um certo alívio - como também pode ocorrer quando os outros sentem que ela está com a fachada errada, mas conseguem esconder essas sensações dela. Quando uma pessoa está com a fachada errada, ou fora de fachada, eventos expressivos estão sendo contribuídos para o encontro, mas eles não podem ser costurados facilmente ao tecido expressivo da ocasião. Se ela sentir que está com a fachada errada ou fora de fachada, provavelmente se sentirá envergonhada e inferior devido ao que aconteceu com a atividade por sua causa e ao que poderá acontecer com sua reputação enquanto participante. Além disso, ela pode se sentir mal porque esperava que o encontro apoiasse uma imagem do eu à qual ela se sente emocionalmente ligada e que agora encontra ameaçada. Uma falta de apoio apreciativo percebida no encontro pode chocá-la, confundi-la e momentaneamente incapacitá-la enquanto participante da interação. Seus modos e orientação podem cambalear, desabar e desmoronar. Ela pode ficar constrangida e mortificada; ela pode ficar com a fachada envergonhada [shamefaced]. A sensação, justificada ou não, que ela é percebida num estado de alvoroço pelos outros, e que ela não está apresentando uma linha utilizável, pode ferir ainda mais os seus sentimentos, assim como sua passagem de estar com a fachada errada ou fora de fachada para a fachada envergonhada pode adicionar mais desordem para a organização expressiva da situação. Seguindo o uso do senso

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comum, eu empregarei o termo aprumo para me referir à capacidade de suprimir e esconder qualquer tendência de ficar com a fachada envergonhada durante encontros com outros. Em nossa sociedade anglo-americana, assim como em algumas outras, a expressão "perder a fachada" [to loseface] parece significar estar com a fachada errada, estar fora de fachada, ou estar com a fachada envergonhada. A expressão "salvar a fachada"3 [to save one's face] parece se referir ao processo através do qual a pessoa mantém uma impressão para os outros de que ela não perdeu a fachada. Seguindo o costume chinês, podemos dizer que "dar fachada" [to give face] é possibilitar que outra pessoa assuma uma linha melhor do que ela seria capaz de assumir sozinha4, esta outra, portanto, ganha a fachada dada a ela, e esta é uma das formas pelas quais ela pode ganhar fachada. Enquanto um aspecto do código social de qualquer círculo social, podemos esperar encontrar um entendimento sobre até que ponlo uma pessoa deve ir para salvar sua fachada. Quando ela assume uma imagem do eu expressa através da fachada, os outros terão a expectativa de que ela atuará de acordo com essa fachada. De formas diferentes em sociedades diferentes, ela precisará mostrar respeito próprio, renunciando a certas ações porque elas estão acima ou abaixo dela, enquanto se força a realizar outras, mesmo que sejam muito custosas para ela. Ao entrar numa situação em que recebe uma fachada para manter, essa pessoa assume a responsabilidade de vigiar o fluxo de eventos que passa diante dela. Ela precisa garantir que uma ordem expressiva particular seja mantida - uma ordem que regula o fluxo de eventos, grandes ou pequenos, de forma que qualquer coisa que pareça ser expressada por eles será consistente com sua fachada. Quando uma pessoa manifesta tais compunções, principalmente por causa do dever a si mesma, falamos, em nossa sociedade, de orgulho; quando ela o faz por causa do dever a unidades sociais mais amplas, e recebe apoio destas unidades ao fazê-lo, falamos

'>. Em portuguí ; temos uma expressão que se encaixa bem com o que Goffman c|iicr dizer com to save face: "livrar a cara". No texto, preferi manter uma tradução lilcral para não destoar do conceito central de "fachada" [N.T.]. l. Cf. SMITH, A.H. Chinese Characteristics. Op. cit, p. 17nl. 17


O efeito combinado da regra do respeito próprio e da regra da consideração é que a pessoa tende a se conduzir durante um encontro de forma a manter tanto a sua própria fachada quanto as fachadas dos outros participantes. Isto significa que normalmente permitimos que a linha assumida por cada participante prevaleça, e que cada participante desempenhe o papel que ele pareça ter escolhido para si próprio. Estabelecemos um estado em que todos temporariamente aceitam a linha de todos os outros7. Esse tipo de aceitação mútua parece ser uma característica estrutural básica da interação, especialmente da interação em conversas face a face. Normalmente é uma aceitação "prática", e não "real", pois ela tende a ser baseada não em um acordo de avaliações sinceras expressas candidamente, e sim em uma disposição a oferecer juízos da boca para fora, com os quais os participantes não concordam realmente.

de honra. Quando essas compunções têm a ver com coisas de postura, com eventos expressivos derivados da forma pela qual a pessoa lida com seu corpo, suas emoções, e as coisas com as quais ela tem contato físico, falamos de dignidade, um aspecto do controle expressivo que é sempre louvado e nunca estudado. Seja como for, apesar de sua fachada social ser sua posse mais pessoal e o centro de sua segurança e prazer, ela é apenas um empréstimo da sociedade; ela será retirada a não ser que a pessoa se comporte de forma digna dela. Atributos aprovados e sua relação com a fachada fazem de cada homem seu próprio carcereiro; esta é uma coerção social fundamental, ainda que os homens possam gostar de suas celas. Assim como esperamos que um membro de qualquer grupo tenha respeito próprio, também esperamos que ele mantenha um padrão de consideração; esperamos que ele realize certos esforços para resguardar os sentimentos e a fachada dos outros presentes, e esperamos que ele faça isso voluntária e espontaneamente por causa de uma identificação emocional com os outros e com os sentimentos deles5. Como consequência, ele não estará inclinado a testemunhar a desfiguração [dcfacement] dos outros6. Em nossa sociedade, chamamos de "sem-coração" uma pessoa que consegue testemunhar a humilhação de outra mantendo impassivelmente um semblante frio, assim como aquela que consegue impassivelmente participar de sua própria desfiguração é considerada "sem-vergonha".

A aceitação mútua de linhas tem um efeito conservador importante sobre os encontros. Quando uma pessoa apresenta uma linha inicial, ela e as outras tendem a construir suas respostas posteriores a partir dela e, num certo sentido, ficam presas a ela. Se a pessoa alterar sua linha radicalmente, ou se a linha se tornar desacreditada, o resultado é a confusão, pois os participantes estarão preparados e comprometidos com ações que não são mais apropriadas. Normalmente, a manutenção da fachada é uma condição da interação, e não o seu objetivo. Objetivos comuns, como ganhar fa-

5. É claro que quanto mais poder e prestigio os outros tiverem, mais provável será que uma pessoa demonstre consideração para com os sentimentos deles, como sugere DALE, H.E. The Higher Civil Service in Great Britam. Oxford: Oxford University Press, 1941, p. 126n.: "A doutrina dos 'sentimentos' foi exposta para mim há muitos anos por um funcionário civil de grande eminência com um belo gosto pelo cinismo. Ele explicou que a importância dos sentimentos varia em alto grau com a importância da pessoa que sente. Se o interesse público requer que um funcionário novato seja removido de seu posto, não é preciso tomar cuidado com seus sentimentos; se o caso envolver um vice-diretor, eles devem ser considerados cuidadosamente; se for um secretário de Estado, seus sentimentos são um elemento fundamental na situação, e apenas um interesse público i iperativo pode suplantar seus requerimentos". 6. Vendedores, especialmente mascates de rua, sabem que, se eles assumirem uma linha que será depreciada a não ser que o cliente relutante compre alguma coisa, o cliente pode ser capturado pela consideração e acabar comprando algo para salvar a fachada do vendedor, e impedir o que normalmente resultaria num incidente.

7. É claro que um acordo superficial sobre a avaliação do valor social não significa igualdade; a avaliação mantida consensualmente sobre um participante pode ser bem diferente daquela mantida consensualmente sobre outro. Esse acordo também c compatível com a expressão de diferenças de opinião entre dois participantes, desde que ambos mostrem "respeito" pelo outro, orientando a expressão da discórdia de forma que ela transmita uma avaliação sobre o outro que o outro esteja disposto a transmitir sobre si mesmo. Casos extremos são oferecidos por guerras, duelos, e brigas de bar, quando ocorrem de forma cavalheiresca, pois eles podem ser conduzidos sob auspícios consensuais, com cada protagonista orientando sua ação de acordo com as regras do jogo, possibilitando assim que sua ação seja interpretada como uma expressão de um jogador limpo em combate aberto com um oponenic limpo. De fato, as regras e etiquetas de qualquer jogo podem ser analisadas como um meio através do qual a imagem de um jogador limpo pode ser expressa, assim como a imagem de um jogador limpo pode ser analisada como um meio através do qual as regras e etiqueta de um jogo são mantidas.

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chada, expressar livremente nossas crenças verdadeiras, introduzir informações depreciadoras sobre os outros, ou resolver problemas e realizar tarefas, são tipicamente perseguidos de forma consistente com a manutenção da fachada. Estudar o salvamento da fachada é estudar as regras de tráfego da interação social; aprendemos sobre o código que a pessoa segue em seu movimento pelos caminhos e projetos dos outros, mas não sobre para onde ela vai, nem por que ela quer chegar lá. Não aprendemos sequer por que a pessoa está disposta a seguir o código, pois um grande número de motivos diferentes pode levá-la a fazer isso. Ela pode querer salvar sua própria fachada por causa de sua ligação emocional com a imagem do eu que sua fachada expressa, por causa de seu orgulho ou honra, por causa do poder que seu estatuto presumido permite que ela exerça sobre os outros participantes, e assim por diante. Ela pode querer salvar a fachada dos outros por causa de sua ligação emocional com uma imagem deles, ou porque ela sente que seus coparticipantes têm um direito moral a esta proteção, ou porque ela quer evitar a hostilidade que poderá ser dirigida para ela se eles perderem sua fachada. Ela pode sentir que existe uma suposição de que ela é o tipo de pessoa que demonstra compaixão e simpatia pelos outros, de forma que, para reter sua própria fachada, ela pode se sentir obrigada a ter consideração pela linha assumida pelos outros participantes. Com preservação da fachada [face-work] eu quero designar as ações tomadas por uma pessoa para tornar o que quer que esteja fazendo consistente com a fachada. A preservação da fachada serve para neutralizar "incidentes" - quer dizer, eventos cujas implicações simbólicas efetivas ameaçam a fachada. Assim, o aprumo é um tipo importante de preservação da fachada, pois através do aprumo a pessoa controla o seu constrangimento e, assim, o constrangimento que ela e outros poderiam sofrer por causa do seu constrangimento. Mesmo que a pessoa que empregue ações para salvar sua fachada não conheça todas as consequências delas, elas frequentemente se tornam práticas habituais e padronizadas; elas são como jogadas tradicionais num jogo, ou passos tradicionais numa dança. Cada pessoa, subcultura e sociedade parecem ter seu próprio repertório característico de práticas para salvar a fachada. Em parte, é a esse repertório que as pessoas se referem quando perguntam como uma pessoa ou cultura "realmente" são. E, ainda assim, o conjunto 20

particular de práticas enfatizadas por pessoas ou grupos particulares parece ser retirado de um único esquema logicamente coerente de práticas possíveis. É como se a fachada, por sua própria natureza, só pudesse ser salva através de um certo número de formas, e como se cada agrupamento social precisasse fazer suas escolhas dentro dessa única matriz de possibilidades. Podemos esperar que os membros de todo círculo social tenham algum conhecimento da preservação da fachada e alguma experiência no uso dela. Em nossa sociedade, esse tipo de capacidade às vezes é chamado de ta to, savoir-faire, diplomacia ou habilidade social. Variações na habilidade social têm mais a ver com a eficácia da preservação da fachada do que com a frequência de sua aplicação, pois quase todos os atos que envolvem outras pessoas são modificados, prescritiva ou proscritivamente, por considerações sobre A fachada. Se uma pessoa quiser empregar seu repertório de práticas para salvar a fachada, obviamente ela deve, em primeiro lugar, ter consciência das interpretações que os outros podem ter colocado sobre os seus atos, e as interpretações que ela talvez deva colocar sobre os deles. Em outras palavras, ela precisa exercer a perceptividade8. Mas mesmo que ela perceba apropriadamente os juízos transmitidos simbolicamente e seja socialmente hábil, ela ainda precisa estar disposta a exercer sua perceptividade e habilidade; ela deve, resumindo, ser orgulhosa e considerada. É claro que, confessadamente, a posse de perceptividade e habilidade social leva com tanta frequência à sua aplicação que, em nossa sociedade, termos como "polidez" c "tato" acabam não distinguindo entre a inclinação para exercer l ais capacidades e as próprias capacidades.

H. Supostamente, a habilidade social e a perceptividade serão altas em grupos cujos membros frequentemente agem como representantes de unidades sociais mais amplas, como linhagens ou nações, pois o jogador, aqui, está apostando com uma fachada à qual os sentimentos de muitas pessoas estão ligados. Da mesma forma, podemos esperar que a habilidade social seja bem desenvolvida entre aqueles de alta posição e aqueles com quem estes têm relações, pois quanto mais fachada um participante da interação tiver, maior será o número de eventos que podem ser inconsislrnl.es com ela e, por isso, maior a necessidade de ter habilidade social para prevenir ou neutralizar essas inconsistências. 21


Eu já afirmei que a pessoa terá dois pontos de vista - uma orientação defensiva para salvar sua própria fachada e uma orientação protetora para salvar a fachada dos outros. Algumas práticas serão primariamente defensivas e outras primariamente protetoras, ainda que, de modo geral, possamos esperar que as duas perspectivas sejam assumidas ao mesmo tempo. Ao tentar salvar a fachada dos outros, a pessoa precisa escolher um método que não levará à perda de sua própria fachada; ao tentar salvar sua própria fachada, ela precisa levar em consideração a perda de fachada dos outros que sua ação pode causar. Em muitas sociedades há uma tendência a distinguir três níveis de responsabilidade que uma pessoa pode ter quanto a uma ameaça à fachada criada por suas ações. Primeiro, pode parecer que ela agiu inocentemente; sua ofensa parece ser não intencional e involuntária, e aqueles que percebem seu ato podem sentir que ela teria tentado evitá-lo se tivesse previsto suas consequências ofensivas. Em nossa sociedade, chamamos tais ameaças à fachada de/auxpas, gafes, disparates ou pisadas na bola. Segundo, a pessoa ofensora pode parecer ter agido com malícia e despeito, com a intenção de causar um insulto aberto. Terceiro, há ofensas incidentais; estas surgem como um efeito colateral não planejado, mas às vezes previsto da ação - uma ação que o ofensor realiza apesar de suas consequências ofensivas, mas não por causa de despeito. Do ponto de vista de um participante em particular, esses três tipos de ameaça podem ser introduzidos pelo próprio participante contra sua própria fachada, por ele contra a fachada dos outros, pelos outros contra a fachada dos outros, ou pelos outros contra a sua fachada. Assim, a pessoa pode se encontrar em muitas relações diferentes a uma ameaça à fachada. Se ela quiser lidar bem consigo própria e com os outros em todas as contingências, ela terá que possuir um repertório de práticas de salvamento da fachada para cada uma dessas relações possíveis à ameaça. Os tipos básicos de preservação da fachada O processo de evitação. A saída mais garantida para uma pessoa evitar ameaças à sua fachada é evitar contatos em que seria provável que essas ameaças ocorressem. Em todas as sociedades podemos 22

observar isto na relação de evitação9 e na tendência de conduzir certas transações delicadas através de intermediários10. Da mesma fornia, em muitas sociedades, os membros conhecem o valor de voluntariamente realizar uma retirada graciosa antes que uma ameaça à (achada prevista possa ter chance de ocorrer11. Quando a pessoa realmente arrisca um encontro, outras formas de práticas de evitação entram em jogo. Como medida defensiva, ela se mantém longe de tópicos e atividades que levariam à expressão de informações que seriam inconsistentes com a linha que ela está mantendo. Em momentos oportunos, ela mudará o assunto da conversa ou a direção da atividade. Muitas vezes, ela apresentará inicialmente uma atitude de acanhamento e compostura, suprimindo qualquer demonstração de sentimentos até que descubra que tipo de linha os outros estarão dispostos a apoiar para ela. Quaisquer afirmações sobre o eu serão feitas com uma modéstia beirando o menosprezo, com fortes qualificações, ou com uma nota de deboche; garantindo-se desta forma, ela terá preparado um eu para si mesma que não será depreciado pela exposição, fracassos pessoais, ou os atos imprevistos de outros. E se ela não garantir suas afirmações sobre si mesma, ela pelo menos tentará ser realista quanto a cias, sabendo que se não o fizer os eventos poderão depreciá-la e fa-íer com que ela perca a fachada. 9. Em nossa própria sociedade, um exemplo da evitação é encontrado no negro de classe média ou alta que evita certos contatos face a face com brancos para proteger ;i autoavaliação projetada por suas roupas e modos. Cf., p. ex., JOHNSON, C. PatIrrns of Negro Segregation. Nova York: Harper, 1943, cap. 13. A função da evitação para manter o sistema de parentesco em pequenas sociedades pré-letradas pode ser considerada um exemplo particular do mesmo tema geral. 10. Um exemplo é dado por LATOURETTE, K.S. The Chinese: Their History and i Xilture. Vol. 2. Nova York: Macmillan, 1942, p. 211: "Um vizinho ou grupo de vizinhos pode utilizar seus bons funcionários para ajustar uma disputa em que os anlíigonistas estariam sacrificando suas fachadas se tomassem o primeiro passo para abordar o outro. Um intermediário sábio pode realizar a reconciliação preservando :i dignidade de ambos". l l . Num artigo inédito, Harold Garfinkel sugeriu que, quando a pessoa percebe (|uc perdeu a fachada num encontro conversacional, ela pode sentir um desejo de (l csaparecer ou "sumir da face da Terra", e que isto pode envolver um desej o de não apenas ocultar a perda de fachada, mas também de voltar magicamente a um ponto no tempo em que teria sido possível salvar a fachada evitando o encontro. 23


Algumas manobras protetoras são tão comuns quanto essas manobras defensivas. A pessoa demonstra respeito e polidez, assegurando-se de estender às outras qualquer tratamento cerimonial que elas possam merecer. Ela emprega a discrição; ela não menciona fatos que possam, implícita ou explicitamente, contradizer e constranger as afirmações positivas feitas pelas outras12. Ela emprega circunlocuções e engodos, fraseando suas respostas com uma ambiguidade cuidadosa de modo a preservar a fachada dos outros, mesmo que não preserve o bem-estar deles13. Ela emprega cortesias, fazendo leves modificações de suas exigências quanto às outras, ou sua avaliação delas, para que elas possam definir a situação como uma em que seu respeito próprio não está ameaçado. Ao fazer uma exigência que menospreza os outros, ou ao imputar atributos não elogiosos a eles, ela poderá empregar um modo de gozação, permitindo que eles assumam a linha de pessoas generosas, capazes de relaxar seus padrões comuns de orgulho e honra. E, antes de se engajar num ato potencialmente ofensivo, ela poderá fornecer explicações sobre por que as outras não devem se sentir ultrajadas por isso. Por exemplo, se ela sabe que será preciso se retirar do encontro antes que ele termine, pode dizer por antecipação aos outros que pre12. Quando a pessoa conhece bem as outras, ela saberá quais assuntos não devem ser mencionados e em que situações elas não devem ser colocadas, e ela estará livre para introduzir as questões que quiser em outras áreas. Quando as outras são desconhecidas, ela muitas vezes inverterá a fórmula, restringindo-se a áreas específicas que ela sabe que são seguras. Nessas ocasiões, como Simmel sugere, "[...] a discrição não consiste, de maneira alguma, apenas no respeito pelo segredo do outro, por sua vontade específica de esconder isto ou aquilo de nós, mas em ficar longe do conhecimento de tudo aquilo que o outro não revela expressamente para nós" (The Sociology ofGeorg Simmel. Glencoe, 111. The Free Press, 1950, p. 320-321). 13. Viajantes ocidentais costumavam reclamar que nunca podiam confiar que chineses dissessem o que realmente queriam dizer, e que eles sempre diziam o que achavam que seu ouvinte ocidental queria ouvir. Os chineses costumavam reclamar que os ocidentais eram bruscos, grosseiros e mal-educados. Supostamente, em termos dos padrões chineses, a conduta de um ocidental é tão canhestra que ele cria uma emergência, forçando o asiático a esquecer qualquer tipo de resposta direta e se apressar em oferecer um comentário que possa resgatar o ocidental da posição comprometedora em que ele se colocou (cf. SMITH, A.H. Chine.se. Characteristics. Op. cit., cap. 8nl: "The Talent for Indirection"). Este é um exemplo de um grupo importante de mal-entendidos que surgem durante interações entre pessoas que vêm de grupos com padrões rituais diferentes. 24

cisará ir embora, para que as fachadas deles estejam preparadas para isto. Mas a neutralização do ato potencialmente ofensivo não precisa ser feita verbalmente; ela pode esperar um momento propício ou uma pausa natural - por exemplo, em conversas, uma calmaria momentânea em que nenhum orador poderia ser ofendido - e então ir embora, usando aqui o contexto, em vez das palavras, como uma garantia de não ter intenções ofensivas. Quando uma pessoa não consegue impedir um incidente, ela ainda pode tentar manter a ficção de que nenhuma ameaça à fachada ocorreu. O exemplo mais evidente disso é encontrado quando a pessoa age como se um evento que contém uma expressão ameaçadora simplesmente não ocorreu. Ela pode aplicar essa não observância cuidadosa a seus próprios atos - como quando ela não admite, através de nenhum sinal exterior, que seu estômago está roncando - ou aos atos cie outros, como quando ela não "vê" que alguém tropeçou14. A vida social em hospitais psiquiátricos deve muito a esse processo; os pacientes o empregam em relação às suas próprias peculiaridades, e os visitantes o empregam, muitas vezes com um desespero ténue, em relação aos pacientes. De modo geral, a cegueira diplomática desse tipo é aplicada apenas a eventos que, se forem percebidos, só podem ser percebidos e interpretados como ameaças à fachada. Um tipo menos espetacular, mas mais importante, de vista grossa diplomática é praticado quando uma pessoa abertamente reconhece um incidente como um evento que ocorreu, mas não como um evento que contenha uma expressão ameaçadora. Se não foi ela í\l pelo incidente, então sua cegueira precisará ser apoiada por sua clemência; se ela causou o feito ameaçador, então sua cegueira precisará ser apoiada por sua disposição em procurar uma Forma de lidar com o assunto, o que a deixa perigosamente dependente da clemência cooperativa dos outros. Outro tipo de evitação ocorre quando uma pessoa perde o conIrole de suas expressões durante um encontro. Em tais momentos, c Ia pode tentar não exatamente fazer vista grossa ao incidente, mas 14. Um belo exemplo disto é encontrado na etiqueta da praça de armas, que pode < i brigar aqueles que participam de um desfile a tratar qualquer um que desmaie como se ele simplesmente não estivesse presente. 25


sim esconder ou ocultar sua atividade de alguma forma, possibilitando, assim, que os outros evitem algumas das dificuldades criadas por um participante que não manteve a fachada. Da mesma forma, quando uma pessoa é pega fora de fachada porque não esperava ser envolvida numa interação, ou porque sentimentos fortes perturbaram sua máscara expressiva, os outros podem, de forma protetora, dar as costas a ela ou à sua atividade por um momento, para que ela tenha tempo de se recompor. O processo corretivo. Quando os participantes de uma ocasião ou encontro não conseguem evitar a ocorrência de um evento que é expressamente incompatível com os juízos de valor social que estão sendo mantidos, e quando o evento é do tipo que é difícil de ignorar, então os participantes provavelmente darão a ele o estatuto autorizado de um incidente - ratificando-o como uma ameaça que merece atenção oficial direta - e procederão de forma a tentar corrigir os seus efeitos. Nesse ponto, um ou mais participantes se encontram num estado estabelecido de desequilíbrio ou desgraça ritual, e deve-se fazer uma tentativa de restabelecer um estado ritual satisfatório para eles. Eu uso o termo ritual porque estou lidando com atos em que o ator, através do componente simbólico desses atos, mostra o quão digno ele é de respeito ou o quão dignos ele sente que os outros são de respeito. A imagem do equilíbrio é apta aqui porque a extensão e a intensidade do esforço coletivo se adapta bem à persistência e intensidade da ameaça15. Nossa fachada, então, é uma coisa sagrada, e a ordem expressiva necessária para mante-la é, portanto, uma ordem ritual. Eu chamarei de intercâmbio a sequência de atos colocada em movimento por uma ameaça reconhecida à fachada, terminando no

15. Antropólogos sociais parecem considerar esse tipo de imagem naturalmente apropriada. Percebam, p. ex., as implicações do seguinte enunciado de Margaret Mead em seu "Kinship in the Admiralty Islands". Anthropological Papers of the American Museum of Natural History, 34, p. 183-358: "Se um marido espanca sua mulher, o costume exige que ela o deixe e vá para seu irmão, real ou que exerça tal função, e permaneça lá por um período de tempo proporcional ao grau de sua dignidade ofendida" (p. 274). 26

restabelecimento do equilíbrio ritual16. Definindo uma mensagem ou jogada como tudo aquilo que é comunicado por um ator durante um turno de ação, podemos dizer que um intercâmbio envolverá duas ou mais jogadas e dois ou mais participantes. Exemplos óbvios em nossa sociedade podem ser encontrados na sequência de "Com licença" e "Certamente", e na troca de presentes ou visitas. O intercâmbio parece ser uma unidade concreta básica da atividade social, c fornece uma forma empírica natural de estudar a interação de todos os tipos. Práticas de salvar a fachada podem ser utilmente classificadas de acordo com sua posição na sequência natural de jogadas que compõem esta unidade. Tirando o evento que introduz a necessidade de um intercâmbio corretivo, quatro jogadas clássicas parecem estar envolvidas. Em primeiro lugar, há o desafio, através do qual os participantes assumem a responsabilidade de chamar a atenção ao erro de condula; como consequência, eles sugerem que as afirmações ameaçadas devem ser mantidas firmes e que o próprio evento ameaçador terá que ser resolvido. A segunda jogada consiste na oferta, através da qual um participante, normalmente o ofensor, recebe uma chance de corrigir a ofensa e restabelecer a ordem expressiva. Existem algumas formas clássicas de fazer essa jogada. Por um lado, podemos tentar mostrar que aquilo que manifestai nente pareceu ser uma expressão ameaçadora na realidade é um evento insignificante, ou um ato não intencional, ou uma piada que não deve ser levada a sério, ou um produto inevitável e "compreensível" de circunstâncias atenuantes. Por outro lado, podemos admitir o significado do evento e concentrar os esforços sobre o criador dele. Podemos dar informações para mostrar que o criador estava sob a influência de algo, e que não era dono de si, ou que ele estava seguindo as ordens de outra pessoa, e não 1.6. A noção de intercâmbio é retirada em parte de CHAPPLE, H.D. "Measuring l luman Relations". Genetic Psychol. Monographs, 22, 1940, p. 3-147, esp. p. 26-30. • HORSFALL, A.B. & ARENSBERG, C.A. "Teamwork and Productivity in a Shoe l?actory". Human Organization, 8, 1949, p. 12-25, esp. p. 19. Para mais referências sobre o intercâmbio enquanto unidade, cf. GOFFMAN, E. Communication Conduct in an Island Community. Chicago: University of Chicago, 1953, caps. 12 e 13, esp. p. 165-195 [tese de doutorado inédita]. 27


adindo por vontade própria. Quando uma pessoa afirma que um ato na uma brincadeira, ela pode afirmar que o eu que parecia estar por Irás do ato também fora projetado como uma brincadeira. Quando uma pessoa descobre de repente que ela manifestamente fracassou em capacidades que os outros pressupunham que ela tinha e reivindicava para si - como a capacidade de soletrar, de realizar tarefas corriqueiras, de falar sem impropriedades, e assim por diante - pode rapidamente adicionar, de forma séria ou não, que ela reivindica essas incapacidades como parte do seu eu. Desta forma, o significado do incidente ameaçador se mantém, mas ele pode agora ser incorporado suavemente ao fluxo dos eventos expressivos. Como um suplemento ou substituto para a estratégia de redefinir o ato ofensivo ou a si mesmo, o ofensor pode seguir dois outros procedimentos: ele pode fornecer compensações aos feridos - quando não foi sua própria fachada que ele ameaçou; ou ele pode fornecer punição, penitência e expiação para si mesmo. Essas são jogadas ou fases importantes no intercâmbio ritual. Ainda que o ofensor não consiga provar sua inocência, ele pode sugerir, através desses meios, que ele agora é uma pessoa renovada, uma pessoa que pagou pelo seu pecado contra a ordem expressiva e em que mais uma vez podemos confiar no mundo dos juízos. Além disso, ele pode mostrar que não trata levianamente os sentimentos dos outros, e que se os sentimentos deles foram feridos por ele, ainda que inocentemente, ele está preparado para pagar um preço por sua ação. Assim, ele assegura aos outros que eles podem aceitar suas explicações sem que tal aceitação constitua um sinal de fraqueza ou falta de orgulho da parte deles. Além disso, por seu tratamento de si mesmo, por sua autopunição, ele mostra que está claramente consciente do tipo de crime que ele teria cometido se o incidente fosse o que parecera ser à primeira vista, e que ele sabe o tipo de punição que deve ser infligida sobre alguém que cometesse tal crime. A pessoa suspeita mostra assim que é completamente capaz de assumir o papel dos outros em relação à sua própria atividade, que ela ainda pode ser usada como um participante responsável no processo ritual, e que as regras de conduta que ela parece ter quebrado ainda são sagradas, reais, e não foram enfraquecidas. Um ato ofensivo pode despertar ansiedade quanto ao código ritual; o ofensor apazigua essa ansiedade demons-

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l rando que tanto o código quanto ele, enquanto defensor do código, ainda funcionam. Depois do desafio e da oferta acontecerem, a terceira jogada pode ocorrer: as pessoas a quem a oferta é feita podem aceitá-la como um meio satisfatório de restabelecer a ordem expressiva e as fachadas apoiadas por essa ordem. Só então o ofensor pode terminar a parte principal de sua oferta ritual. Na jogada final do intercâmbio, a pessoa perdoada comunica um si uai de gratidão para aqueles que deram a ela a indulgência do perdão. As fases do processo corretivo - desafio, oferta, aceitação e agradecimento - nos dão um modelo do comportamento ritual interpessoal, mas esse modelo pode ser modificado de forma significativa. Por exemplo, as partes ofendidas podem dar ao ofensor uma chance de iniciar a oferta imediatamente, antes de fazer um desafio e antes que elas ratifiquem a ofensa como um incidente. Esta é. uma cortesia comum, concedida baseada na suposição de que seu receptor iniciará um autodesafio. Além disso, quando as pessoas ofendidas aceitam a oferta corretora, o ofensor pode suspeitar que isto foi feito por educação, ou seja, de má vontade, e por isso pode apresentar esponlaneamente ofertas corretivas adicionais, não esquecendo do assunlo até receber uma segunda ou terceira aceitação de sua desculpa repetida. Ou as pessoas ofendidas podem educadamente assumir o papel do ofensor e apresentar desculpas para ele que serão, forçosamente, aceitáveis para as pessoas ofendidas. Um desvio importante do ciclo corretivo padrão ocorre quando um ofensor desafiado abertamente se recusa a considerar o aviso e continua com seu comportamento ofensivo, em vez de consertar a alividade. Essa jogada transfere o jogo de volta para os desafiantes. Se eles aprovarem a recusa de suas exigências, ficará claro que seu desafio era um blefe e que o ofensor "pagou para ver". Esta é uma posição insustentável; eles não podem derivar uma fachada para si mesmos dela, e tudo que poderão fazer é vociferar. Para evitar esse destino, eles têm a opção de algumas jogadas clássicas. Por exemplo, eles podem apelar para uma retaliação violenta e mal-educada, destruindo ou a si próprios ou a pessoa que se recusou a ouvir seu aviso. Ou elas podem se retirar da ocasião visivelmente ressentidas justamente indignadas, ultrajadas, mas confiantes numa vindicação 29


definitiva. Ambos os métodos servem para negar ao ofensor seu estatuto enquanto participante da interação e, assim, negar a realidade do juízo ofensivo que ele proferiu. Ambas as estratégias são formas de resgatar a fachada, mas os custos são normalmente altos para todos os envolvidos. É em parte para prevenir tais escândalos que um ofensor normalmente oferece desculpas rapidamente; ele não quer que as pessoas afrontadas se comprometam com a obrigação de apelar a medidas desesperadas. Fica claro que as emoções têm um papel nesses ciclos de respostas, como quando expressamos angústia pelo que alguém fez para a fachada de outra pessoa, ou fúria pelo que foi feito para nossa própria fachada. Quero enfatizar que essas emoções funcionam como jogadas, e se encaixam tão precisamente na lógica do jogo ritual que seria difícil compreendê-las sem ele17. De fato, é provável que sentimentos expressos espontaneamente se encaixem no padrão formal do intercâmbio ritual de forma mais elegante do que sentimentos preparados conscientemente. Ganhando pontos - o uso agressivo da preservação da fachada Toda prática para salvar a fachada que consegue neutralizar uma ameaça em particular abre a possibilidade de que a ameaça seja introduzida voluntariamente com o objetivo de ganhar algo, em segurança, através dela. Se uma pessoa sabe que os outros responderão à sua modéstia com louvores, ela pode procurar obter elogios. Se sua avaliação do eu será testada contra eventos incidentais, então ela pode preparar eventos incidentais favoráveis. Se os outros estiverem dispostos a ignorar uma afronta a eles e agir com clemência, ou a aceitar desculpas, então ela pode se basear nisto para ofendê-los em segurança. Retirando-se repentinamente, ela pode tentar colocar os outros num estado ritualmente insatisfatório, deixando-os

17. Mesmo quando uma criança exige alguma coisa e não a recebe, é provável que ela chore e fique amuada não como uma expressão irracional de frustração, mas como uma jogada ritual, comunicando que ela já tem uma fachada que pode ser perdida, e que sua perda não deve ocorrer levianamente. Pais compreensivos podem até permitir tais exibições, vendo nessas estratégias grosseiras o começo de um eu social. 30

se debatendo num intercâmbio que não pode ser completado. Finalmente, com alguns custos pessoais, ela pode induzir os outros a ferir seus próprios sentimentos, forçando-os assim a sentir culpa, remorsos, e um desequilíbrio ritual prolongado18. Quando uma pessoa trata a preservação da fachada não como algo que ela precisa estar preparada para desempenhar, mas como algo que ela sabe que os outros realizarão ou aceitarão, enláo um encontro ou ocasião não é mais uma cena de consideração mútua, e sim uma arena em que se realiza uma disputa ou partida. O propósito do jogo é preservar a linha de todas as pessoas contra uma contradição imperdoável, enquanto tentamos marcar o maior número de pontos sobre nossos adversários e ganhar o máximo possível para nós mesmos. Uma plateia para o embate é quase uma necessidade. O método geral consiste na pessoa apresentar fatos lavoráveis sobre si mesma e fatos desfavoráveis sobre os outros, de lorma que a única resposta que os outros serão capazes de imaginar será algo que termine o intercâmbio num resmungo, uma desculpa esfarrapada, um riso para salvar a fachada do tipo "eu não ligo para piadas", ou uma resposta estereotipada do tipo "Ah é?" ou "Isso é o que você pensa". Os perdedores nesses casos terão que reduzir seus prejuízos, conceder tacitamente a perda de um ponto, c tentar se sair melhor no próximo intercâmbio. Pontos ganhos através da alusão a posições de classe social às vezes são chamados de "esnobadas"; pontos ganhos através da alusão à respeitabilidade moral são às vezes chamados de "alfinetadas"; em ambos os casos, estamos lidando com uma capacidade em realizar algo c|tie às vezes é chamado de "malícia" [bitchiness]. Em intercâmbios agressivos, o vencedor não apenas consegue apresentar informações favoráveis sobre si mesmo e desfavoráveis sobre os outros, mas também demonstra que, enquanto participante

18. A estratégia de manobrar outra pessoa para uma posição na qual ela não pode rofrigir os danos que causou é empregada com muita frequência, mas seu exemplo máximo enquanto modelo ritual de conduta é o suicídio por vingança. Cf., p. ex., IliFFREYS, M.D.W. "Samsonic Suicide, or Suicide of Revenge Among Africans". African Studies, 11, 1952, p. 118-122. 31


da interação, ele cuida de si melhor do que seus adversários. Muitas vezes, provas dessa capacidade são mais importantes do que todas as outras informações que a pessoa comunica durante o intercâmbio, de forma que a introdução de um "tiro" na interação verbal tende a implicar que seu causador tem um jogo de pernas melhor do que aqueles que são afligidos por seus comentários. Entretanto, se estes conseguirem aparar sua estocada e ainda ripostar com sucesso, o instigador do jogo precisará encarar não apenas o rebaixamento com que os outros responderam, mas também aceitar o fato de que sua suposição de superioridade no jogo de pernas era falsa. Ele aparece como um tolo; ele perde fachada. Assim, "fazer um comentário" é sempre uma aposta. É possível virar a mesa e o agressor pode perder mais do que teria ganho se sua jogada marcasse um ponto. Ripostas ou réplicas bem-sucedidas, em nossa sociedade, às vezes são chamadas de "nocautes" ou "viradas"; teoricamente, seria possível nocautear um nocaute, virar uma virada, e aparar uma riposta com uma contrarriposta, mas, com exceção de intercâmbios ensaiados, esse terceiro nível de ação bem-sucedida parece ser raro . A escolha da preservação da fachada apropriada Quando ocorre um incidente, a pessoa cuja fachada é ameaçada pode tentar restaurar a ordem ritual através de um tipo de estratégia, enquanto os outros participantes podem desejar ou esperar que uma prática diferente seja empregada. Quando, por exemplo, ocorre um pequeno percalço, revelando momentaneamente uma pessoa com a fachada errada ou fora de fachada, os outros muitas vezes es19. Em jogos de tabuleiro e de cartas, os jogadores rotineiramente levam em consideração as respostas possíveis de seus adversários às jogadas que estão prestes a fazer, e consideram até a possibilidade de que seus adversários saberão que eles estão tomando tais precauções. Em comparação, o jogo conversacional é surpreendentemente impulsivo; as pessoas rotineiramente fazem comentários sobre outros presentes sem preparar esses comentários cuidadosamente para evitar uma réplica bem-sucedida. Da mesma forma, apesar de fintas e sandbagging [no pôquer, ter uma mão boa, mas não apostar na expectativa de que alguém o faça primeiro para depois aumentar a aposta - N.T.] serem possibilidades teóricas durante conversas, elas não parecem ser aproveitadas com frequência. 32

tão mais dispostos e preparados para agir como se não tivessem vislo a discrepância do que a própria pessoa ameaçada. Muitas vezes, eles prefeririam que ela demonstrasse aprumo20, enquanto ela sente que não pode se dar ao luxo de ignorar o que ocorreu com a sua fachada e por isso se torna apologética e com a fachada envergonhada, se for a causadora do incidente, ou destrutivamente assertiva, se os outros são responsáveis por ele21. Mas, por outro lado, uma pessoa pode manifestar aprumo quando os outros consideram que ela deveria oferecer uma desculpa constrangida - que ela está se aproveilando indevidamente da obsequiosídade delas através de suas tentativas de desfaçatez. Às vezes uma pessoa pode não se decidir sobre qual prática empregar, deixando os outros na posição constrangedora de não saber que método eles terão que seguir. Assim, quando uma pessoa comete uma pequena gafe, ela e as outras podem ficar constrangidas não porque não são capazes de lidar com tais dificuldades, mas porque por um momento ninguém sabe se o ofensor ignorará o incidente, o reconhecerá chistosamente, ou empregará alguma outra prática para salvar a fachada.

20. O folclore atribui um aprumo enorme às classes altas. Se há alguma verdade nessa crença, ela pode estar no fato de que a pessoa de classe alta tende a participar de encontros onde ela tem uma posição superior à dos outros participantes e não apenas em relação à classe. O participante superior muitas vezes é um tanto independente da boa opinião dos outros, e pode se dar ao luxo de ser arrogante, apegani lo-se a uma fachada mesmo que ela não seja apoiada pelo encontro. Por outro lado, aqueles que estão sob o poder de um colega-participante tendem a se preocupar demais com a avaliação que ele faz deles, ou com sua transformação em testemunhas, c' por isso acham difícil manter uma fachada levemente errada sem se constranger e pedir desculpas. Podemos adicionar que pessoas que não percebem o simbolismo ilc eventos triviais podem se manter calmas em situações difíceis, demonstrando um aprumo que na realidade não possuem. .11. Assim, em nossa sociedade, quando uma pessoa sente que as outras esperam que ela esteja à altura de padrões aprovados de limpeza, asseio, justeza, hospitalidade, generosidade, opulência, e assim por diante, ou quando ela se vê como alr.uém que deveria manter tais padrões, ela pode onerar um encontro com desculpas repetidas por suas falhas, quando os participantes na realidade não se importam roín o padrão, ou não acreditam que a pessoa realmente não esteja à altura dele, ou rstão convencidos de que ela não está à altura dele e enxergam a própria desculpa como um esforço inútil de autoelevação. 33


Cooperação na preservação da fachada Quando uma fachada é ameaçada, é preciso realizar a preservação da fachada, mas não é de muita importância se ela é iniciada e desempenhada pela pessoa cuja fachada foi ameaçada, ou pelo ofensor, ou por uma mera testemunha22. A falta de esforço de uma pessoa induz a um esforço compensador de outras; uma contribuição de uma pessoa dispensa outras desta tarefa. Na verdade, há muitos pequenos incidentes em que o ofensor e o ofendido tentam iniciar uma desculpa simultaneamente23. A resolução da situação tendo em vista a satisfação aparente de todos é o primeiro requerimento; a distribuição correta da culpa normalmente é uma consideração secundária. Assim, termos como "tato" ou savoir-faire não conseguem distinguir se é a própria fachada da pessoa que sua diplomacia salva, ou se é a dos outros. Da mesma forma, termos como "gafe" e/aux pás não conseguem especificar se o ator ameaçou sua própria fachada, ou a dos outros. E é compreensível que se uma pessoa percebe que é incapaz de salvar sua própria fachada, os outros pareçam especialmente dispostos a protegê-la. Por exemplo, na sociedade educada, uni aperto de mão que talvez não devesse ter sido oferecido se torna um que não pode ser recusado. Podemos explicar assim a noblesse oblige através da qual esperamos que aqueles em posições al-

22. Assim, uma das funções de padrinhos em duelos reais, e também em duelos figurados, é fornecer uma desculpa para não lutar que ambos os combatentes podem se dar ao luxo de aceitar. 23. Cf., p. ex., TOBY, J. "Some Variables in Role Conflict Analysis". Social Forces, 20, 1952, p. 323-337: "Com adultos, há menos probabilidade de que questões essencialmente triviais produzam conflitos. A desculpa automática de dois desconhecidos que colidem acidentalmente numa rua movimentada ilustra a função integradora da etiqueta. Na realidade, ambas as partes da colisão dizem 'Eu não sei se fui responsável por esta situação, mas, se este for o caso, você tem direito de estar irritado comigo, um direito que peço que você não exerça'. Ao definir a situação como uma em que ambos os lados precisam se rebaixar, a sociedade permite que ambos mantenham o seu respeito próprio. Ambos podem muito bem verdadeiramente sentir 'Por que esse idiota não olha para onde anda?' Mas, abertamente, ambos representam o papel de culpados, mesmo que sintam que isto não é verdade" (p. 325). 34

ias contenham seu poder de constranger os inferiores24, e também o lato de que os deficientes muitas vezes aceitam cortesias quando são perfeitamente capazes de realizar o ato em questão sozinhos, e melhor. Já que cada participante de uma ocasião está preocupado, ainda (|ue por razões diferentes, em salvar sua própria fachada e também a dos outros, surgirá então naturalmente uma cooperação tácita para i (lie os participantes possam obter juntos seus objetivos em comum, mesmo que por motivos diferentes. Um tipo comum de cooperação tácita para salvar a fachada é a diplomacia exercida em relação à própria preservação da fachada. A pessoa não apenas defende sua própria fachada e protege a dos ounos, mas também age de forma a possibilitar e mesmo facilitar que os outros preservem suas próprias fachadas e a dela. Ela os ajuda a se ajudarem, e a ajudarem a ela. A etiqueta social, por exemplo, avisa que os homens não devem marcar encontros de réveillon com muita antecedência, senão a garota poderá ter dificuldades de dar i una desculpa gentil para recusar. Essa diplomacia de segunda or.',•!•. Independente da posição social relativa da pessoa, em um sentido ela tem podei' sobre os outros participantes e eles precisam contar com a sua consideração, i >nando os outros agem para com ela de alguma forma, baseiam-se numa relação social com a mesma, já que uma das coisas expressas pela interação é a relação en11 c seus participantes. Desta forma eles se comprometem, pois eles a colocam numa [Hisição capaz de depreciar as afirmações que eles expressam em relação à atitude dela para com eles. Assim, em resposta a relações sociais reivindicadas, esperamos i|iic- toda pessoa, de alta ou baixa posição, exerça a noblesse oblige e não se aproveite i l i i posição comprometida dos outros. Como as relações sociais são definidas parci.ilmente em termos de ajuda mútua voluntária, recusar um pedido de ajuda se torna uma questão delicada que pode potencialmente destruir a fachada de quem pede ( d . HOLCOMBE, C. The Real Chinaman. Nova York: Dodd/Mead, 1895, p. 274' / ' ) ) nos dá um exemplo chinês: "Grande parte da falsidade a que dizem que os i liineses, enquanto nação, são viciados é resultado das exigências da etiqueta. Um 'uno' franco e direto é o ápice da descortesia. Qualquer recusa ou negação deve ser .iniortecida e enfraquecida através de uma expressão de incapacidade que se lai i ir n ia. Nunca se demonstra uma falta de disposição para se fazer um favor. Em luH;II' dela, vemos uma sensação refinada de sofrimento devido a circunstâncias inevilnveis, mas bastante imaginárias, que tornam o favor completamente impossível, '.cculos de prática dessa forma de evasão tornaram os chineses inigualavelmente leríeis na invenção e apresentação de desculpas. É realmente muito raro encontrar mu deles que não consiga oferecer uma ficção muito bem tecida para ocultar uma verdade indesejável". 35


ciem pode ser exemplificada também através da prática disseminada da etiqueta de atributos negativos. A pessoa que tern um atributo negativo não aparente muitas vezes considera conveniente começar um encontro com uma admissão discreta de seu defeito, especialmente com pessoas que não têm essa informação sobre ela. As outras são, assim, avisadas por antecedência a não fazerem comentários depreciativos sobre seu tipo de pessoa, e são salvas da contradição de agir de forma amistosa com uma pessoa contra a qual elas estão involuntariamente sendo hostis. Essa estratégia também impede as outras de automaticamente fazer suposições sobre ela que a coloquem numa posição falsa, e a salva de uma clemência dolorosa ou de admoestações constrangedoras. A diplomacia em relação à preservação da fachada muitas vezes conta, para sua operação, com um acordo tácito para agir através da linguagem das dicas - a linguagem das indiretas, ambiguidades, pausas bem colocadas, piadas cuidadosas, e assim por diante25. A regra que trata deste tipo não oficial de comunicação é que o emissor não deve agir como se tivesse comunicado oficialmente a mensagem que insinuou, enquanto os receptores têm o direito e o dever de agir como se não tivessem oficialmente recebido a mensagem contida na insinuação. Desta forma, a comunicação insinuada é comunicação que pode ser negada; ela não precisa ser encarada de frente. Ela é um meio com o qual pessoa de que sua linha atual ou que a situação atual estão prestes a causar uma perda de fachada, sem que o próprio aviso se torne um incidente. Outra forma de cooperação tácita que parece ser muito usada em várias sociedades é a autonegação recíproca. Muitas vezes a pessoa não tem uma ideia clara do que seria uma partilha justa ou aceitável de juízos durante a ocasião, e por isso ela voluntariamente se priva ou deprecia enquanto favorece e elogia os outros, em ambos os casos levando os juízos, com segurança, além daquilo que provavelmente seria justo. Ela permite que os juízos favoráveis sobre si própria ve-

25. Comentários úteis sobre alguns dos papéis estruturais desempenhados pela comunicação não oficial podem ser encontrados numa discussão sobre a ironia e caçoadas de BURNS, T. "Friends, Enemies, and the Polite Fiction". American Sociológica! Review, 18, 1953, p. 654-662. 36

itham dos outros; e os juízos desfavoráveis sobre si própria são sua contribuição. Essa técnica "depois de você, Alphonse"26 só funciona, c claro, porque ao se privar ela pode prever com segurança que os outros a elogiarão ou favorecerão. Independente da alocação de favores que seja finalmente estabelecida, todos os participantes recebem antes uma chance de mostrar que eles não estão presos ou coagidos por seus próprios desejos e expectativas, que eles têm uma opinião apropriadamente modesta sobre si mesmos, e que podemos nos assegurar de que eles apoiarão o código ritual. A barganha negal iva, em que cada participante tenta fazer com que os termos do negócio favoreçam mais o outro lado, é outro exemplo; e, enquanto forma de troca, ela talvez seja mais comum do que a dos economistas. Quando uma pessoa realiza a preservação da fachada, junto com seu acordo tácito de ajudar as outras a realizar a delas, isto representa sua disposição em obedecer às regras básicas da interação social. Eis o símbolo de sua socialização enquanto um participante da interação. Se ela e as outras não fossem socializadas dessa forma, a interação na maioria das sociedades e na maioria das situações seria uma coisa muito mais perigosa para sentimentos e fachadas. Não seria prático para a pessoa se orientar para avaliações comunicadas simbolicamenIc de valor social, nem possuir sentimentos - quer dizer, não seria prático para ela ser um objeto ritualmente delicado. E, como eu sugerirei, se a pessoa não fosse um objeto ritualmente delicado, as ocasiões de conversa não poderiam ser organizadas da forma que normalmente são. Não surpreende que uma pessoa em que não se possa confiar para jogar o jogo de salvar a fachada cause problemas. Os papéis rituais do eu Até agora, eu implicitamente utilizei uma definição dupla do eu: o eu como uma imagem montada a partir das implicações expressivas do fluxo total de eventos numa ocasião; e o eu como um i i pó de jogador num jogo ritual que lida honrada ou desonradamenle, diplomaticamente ou não, com as contingências dos juízos na si16. Referência a uma tira em quadrinhos americana do início do século XX, em que os dois personagens, Alphonse e Gaston, eram tão educados que não conseguiam realizar nada, pois sempre deferiam a passagem ou a ação para o outro [N.T.]. 37


tuação. Um mandado duplo está envolvido. Enquanto objetos sagrados, os homens estão sujeitos a desfeitas e profanações; por isso, como jogadores do jogo ritual, eles precisaram se comprometer corn duelos, e esperar que uma salva de tiros errasse o alvo antes de abraçar seus adversários. Aqui temos um eco da distinção entre o valor de uma mão num jogo de cartas e a capacidade da pessoa que a joga. Precisamos manter essa distinção em mente, ainda que pareça que quando uma pessoa obtém uma reputação por jogar bem ou mal, essa reputação pode se tornar parte da fachada que depois ela precisa jogar para manter. Quando os dois papéis do eu são separados, podemos utilizar o código ritual implícito na preservação da fachada para aprender como os dois papéis estão relacionados. Quando uma pessoa é responsável por introduzir uma ameaça à fachada de outra, ela aparentemente tem direito, dentro de certos limites, a escapulir da dificuldade através da auto-humilhação. Quando realizadas voluntariamente, essas indignidades parecem não profanar sua própria imagem. É como se ela tivesse o direito da isolação, e pudesse se castigar enquanto atriz sem se ferir enquanto objeto de valor fundamental. Através da mesma isolação, ela pode se menosprezar e modestamente subestimar suas qualificações positivas, com a compreensão de que ninguém tomará seus enunciados como uma representação justa de seu eu sagrado. Por outro lado, se ela for forçada, contra a sua vontade, a se tratar dessas formas, sua fachada, seu orgulho e sua honra serão seriamente ameaçados. Assim, em termos do código ritual, a pessoa parece ter uma permissão especial para aceitar maus-tratos por suas próprias mãos, mas não tem o direito de aceitá-los vindos de outras pessoas. Talvez este seja um arranjo seguro porque não é provável que ela exagere no uso dessa permissão, enquanto os outros, se recebessem tal privilégio, teriam mais chance de abusar dele. Além disso, dentro de certos limites, a pessoa tem o direito de perdoar outros participantes por afrontas à sua imagem sagrada. Ela pode clementemente ignorar pequenas calúnias sobre sua fachada e, em relação a ofensas um tanto maiores, ela é a única pessoa que pode aceitar desculpas em nome de seu eu sagrado. Esta é uma prerrogativa que a pessoa pode assumir para si mesma com uma certa

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segurança, pois ela é exercida nos interesses das outras ou do empreendimento. É interessante notar que, quando uma pessoa comele uma gafe contra si mesma, não é ela quem tem permissão para perdoar o evento; apenas os outros têm tal prerrogativa, e é seguro que eles a tenham porque eles só podem exercê-la nos interesses dela ou nos interesses do empreendimento. Descobrimos, então, um sistema de pesos e contrapesos através do qual cada participante lende a receber o direito de lidar apenas com as questões nas quais ele não teria muitos motivos para trapacear. Resumindo, os direitos e deveres de um participante da interação são projetados para impedi-lo de abusar de seu papel de objeto de valor sagrado. Interação falada Muito do que foi dito até agora se aplica a encontros do tipo imediato e mediado, ainda que neste último a interação provavelmente será mais atenuada, obtendo-se a linha de cada participante a partir de coisas como declarações escritas e registros profissionais, l Entretanto, durante contatos pessoais diretos, operam condições inlormacionais únicas, e a importância da fachada se torna especialmente clara. A tendência humana de usar sinais e símbolos significa (|ue evidências de valor social e de avaliações mútuas serão comuniraclas por coisas muito pequenas, e essas coisas serão testemunhadas, assim como o fato de que foram testemunhadas. Uma olhadela descuidada, uma mudança momentânea no tom de voz, uma posição ecológica tomada ou não, tudo isso pode encharcar uma conversa de importância avaliativa. Deste modo, assim como não existem ocasiões de fala em que impressões inapropriadas não possam surgir, intencionalmente ou não, também não existem ocasiões de fala Ião triviais a ponto de não exigirem que cada participante demons111- uma preocupação séria de como ele lida consigo próprio e com os outros presentes. Fatores rituais presentes em contatos mediados aparecem aqui numa forma extrema. Parece que em qualquer sociedade, sempre que surge a possibilii lade física da interação falada, um sistema de práticas, convenções e regras de procedimentos entra em jogo, funcionando como um meio i Ir orientar e organizar o fluxo de mensagens. Valerá algum entendimento sobre como e quando será permissível iniciar a fala, entre 39


quem, e quais tópicos de conversação serão abordados. Um conjunto de gestos significativos é empregado para iniciar uma enxurrada de comunicação e como um meio para que as pessoas em questão se imputem como participantes legítimos27. Quando este processo de ratificação recíproca ocorre, as pessoas ratificadas estão naquilo que podemos chamar de estado de f ala - quer dizer, elas se declararam oficialmente abertas umas às outras para propósitos de comunicação falada e juntas garantem manter um fluxo de palavras. Também se emprega um conjunto de gestos significativos para permitir que um ou mais novos participantes se juntem oficialmente à conversa, para permitir que um ou mais participantes ratificados possam se retirar oficialmente, e para permitir que o estado de fala termine. Tendemos a manter e legitimar um único foco de pensamento e atenção visual, e um único fluxo de fala, como sendo oficialmente representativo do encontro. A atenção visual combinada e oficial dos participantes tende a ser transferida facilmente através de dicas de autorização formais ou informais, com as quais o orador atual sinaliza que está prestes a parar de falar, e o orador esperado sinaliza um desejo de começar a falar. Temos um entendimento sobre com quanta frequência e por quanto tempo cada participante falará. Os receptores comunicam ao orador, através de gestos apropriados, que estão dando a ele sua atenção. Os participantes restringem seu envolvimento em questões externas ao encontro, e observam um limite de envolvimento a qualquer mensagem particular do encontro,

27. Podemos compreender o significado desse estatuto analisando os tipos de participação não legitimados ou não ratificados que podem ocorrer na interação falada. Uma pessoa pode ouvir outras sem que estas saibam; ela pode ouvi-las quando elas sabem que isto está ocorrendo e quando escolhem ou agir como se ela não as estivesse ouvindo, ou sinalizar informalmente a ela que sabem que ela está ouvindo. Em todos esses casos, o forasteiro é efetivamente mantido à distância como alguém que não está participando formalmente da ocasião. É claro que códigos rituais exigem que um participante ratificado seja tratado de forma bem diferente do que um não ratificado. Assim, por exemplo, podemos ignorar apenas uma certa quantidade de insultos de um participante ratificado antes que essa prática de evitação faça com que as pessoas insultadas percam fachada; depois de um certo ponto elas precisam desafiar o ofensor e exigir reparos. Entretanto, aparentemente em muitas sociedades, muitos tipos de abusos verbais de participantes não ratificados podem ser ignorados sem que esta falta de desafio constitua uma perda de fachada. 40

garantindo assim que eles serão capazes de seguir a direçao em que o tópico da conversa os leva, seja ela qual for. Interrupções e pausas são reguladas para não perturbarem o fluxo de mensagens. Mensagens que não são parte do fluxo ratificado oficialmente são moduladas para que não interfiram seriamente com as mensagens ratificadas. Pessoas próximas que não são participantes desistem visivelmente, de alguma forma, de se aproveitar de sua posição comunicativa e também modificam sua própria comunicação, se houver, para não causar interferências difíceis. Permitimos que prevaleça um ethos ou atmosfera emocional particular. Tipicamente mantemos um acordo cortês, e participantes que possam ter uma discórdia real entre si falam temporariamente da boca para fora sobre opiniões que os façam concordar quanto a questões de princípio e fato. Seguimos regras para facilitar a transição, se houver, de um tópico de conversa 28 para outro . Essas regras de fala valem não apenas para a interação falada considerada como um processo contínuo, mas para uma ocasião de fala ou episódio de interação enquanto uma unidade naturalmente limitada. Essa unidade consiste da atividade total que ocorre durante o tempo em que um dado conjunto de participantes se ratificou para conversar e mantém um único foco de atenção em movimento29. As convenções que tratam da estrutura das ocasiões de conversa representam uma solução eficaz para o problema de organizar um fluxo de mensagens faladas. Ao tentar descobrir como essas convenções são mantidas em vigor como guias da ação, descobrimos evidências que sugerem uma relação funcional entre a estrutura do eu e a estrutura da interação falada. O participante socializado da interação acaba lidando com a inleração falada como faz com qualquer outro tipo, como algo que

28. Para um tratamento mais profundo da estrutura da interação falada, cf. GOFFMAN, 11 Communication Conduct in an Island Community. Op. cit. 29. Eu pretendo incluir conversas formais onde as regras de procedimento são prescritas explicitamente e aplicadas oficialmente, e onde apenas algumas categorias de participantes podem ter a permissão de falar - assim como conversas e hate-papos sociais em que as regras não são explicitas e o papel de orador circula continuamente entre os participantes. 41


deve ser realizado com cuidado ritual. Apelando automaticamente à fachada, ele sabe como se conduzir em relação à fala. Fazendo-se repetida e automaticamente a pergunta, "se eu agir ou não desta forma, será que eu ou os outros perderemos fachada?", ele decide, a cada momento, conscientemente ou não, como se comportar. Por exemplo, a entrada numa ocasião de interação falada pode ser considerada um símbolo de intimidade ou de propósito legítimo, e por isso a pessoa precisa, para salvar sua fachada, desistir de entrar numa conversa com um certo conjunto de outros a não ser que suas circunstâncias justifiquem aquilo que é expresso sobre ele por sua entrada. Quando ele é abordado para conversar, ele precisa assentir ao pedido dos outros para salvar a fachada deles. Uma vez engajado na conversação, ele deve exigir apenas a quantidade de atenção que for uma expressão apropriada de seu valor social relativo. Pausas indevidas se tornam sinais potenciais de não se ter nada em comum, ou de ter um domínio de si insuficiente para criar algo a dizer, e por isso devem ser evitadas. Da mesma forma, interrupções e falta de atenção podem comunicar desrespeito, e devem ser evitadas a não ser que o desrespeito implicado seja uma parte aceita da relação. É preciso manter um verniz de consenso através da discrição e de mentirinhas para que a suposição de aprovação mútua não seja depreciada. É preciso lidar com a retirada de forma que ela não comunique uma avaliação inapropriada30. A pessoa precisa restringir seu envolvimento emocional para que ela não apresente uma imagem de alguém que não tem autocontrole nem dignidade para se elevar acima de seus sentimentos. A relação entre o eu e a interação falada também é demonstrada quando examinamos o intercâmbio ritual. Num encontro conversacional, a interação tende a ocorrer em arrancos, um intercâmbio por vez, e o fluxo de informação e negócios é parcelado nessas unidades

30. Entre pessoas que já tiveram alguma experiência na interação entre si, encontros conversacionais muitas vezes terminam de forma a parecer que todos os participantes chegaram independentemente ao mesmo momento para se retirar. A debandada é geral, e pode ser que ninguém tenha consciência da troca de dicas que foi necessária para que tal feliz simultaneidade de acão fosse possível. Cada participante é assim salvo da posição comprometedora de mostrar disposição a passar mais tempo com alguém que não está tão disposto a passar tempo com ele. 42

rituais relativamente fechadas31. A pausa entre intercâmbios tende a ser maior do que a pausa entre falas num intercâmbio, e tende a existir uma relação menos significativa entre dois intercâmbios em sequência do que entre duas falas em sequência num intercâmbio. Esse aspecto estrutural da fala surge do fato que, quando uma pessoa emite um enunciado ou uma mensagem, por mais trivial ou corriqueira, ela se compromete, e compromete aqueles a quem se dirige, e num certo sentido coloca todos os presentes em perigo. Ao dizer algo, o orador se abre à possibilidade de que os receptores pretendidos o insultarão não prestando atenção a ele, ou pensando que ele é atrevido, tolo ou ofensivo pelo que disse. E se essa for a recepção, ele estará comprometido com a necessidade de empreender ações para salvar a fachada contra eles. Além disso, ao dizer algo o orador abre seus receptores pretendidos à possibilidade de que a mensagem será autocongratuladora, presunçosa, exigente, insultante, e de modo geral uma afronta a eles ou à concepção deles sobre o orador, forçando-os a tomar ação contra ele em defesa do código ritual. E se o orador louvar os receptores, eles serão obrigados a negar isso de forma apropriada, demonstrando que eles não têm uma opinião favorável demais sobre si mesmos e não estão ansiosos para garantir indulgências a ponto de colocar em perigo sua confiabilidade e flexibilidade enquanto participantes da interação. Assim, quando uma pessoa oferece uma mensagem, contribuindo assim com o que facilmente poderia ser uma ameaça ao equilíbrio ritual, outra pessoa presente é obrigada a demonstrar que a mensagem foi recebida e que seu conteúdo é aceitável para todos os envolvidos, ou que pode ser contra-atacado aceitavelmente. É claro que essa resposta de reconhecimento pode conter uma rejeição diplomática da comunicação original, junto com um pedido de modificação. Nesses casos, podem ser necessárias várias trocas de mensagens antes que o intercâmbio seja terminado com base em linhas modificadas. O intercâmbio termina quando é possível modificá-lo para que termine - ou

31. A separação empírica da unidade de intercâmbio às vezes é obscurecida quando a mesma pessoa que fala pela última vez num intercâmbio também fala para iniciar o próximo. Entretanto, a utilidade analítica do intercâmbio enquanto unidade se mantém. 43


seja, quando todos os presentes indicaram que foram aplacados ritualmente de forma satisfatória para eles32. Uma pausa momentânea entre intercâmbios é possível, pois ela surge em momentos em que não será considerada um sinal de algo desagradável. Então, de modo geral, uma pessoa determina como deve se comportar durante uma ocasião de conversa testando o significado potencialmente simbólico de seus atos em relação às minhas imagens que estão sendo mantidas. Entretanto, ao fazer isto, ela incidentalmente sujeita seu comportamento à ordem expressiva que prevalece e contribui para o fluxo bem ordenado de mensagens. Seu objetivo é salvar a fachada; seu efeito é salvar a situação. Então, do ponto de vista de salvar a fachada, é bom que a interação falada tenha a organização convencional que tem; do ponto de vista da manutenção de um fluxo bem ordenado de mensagens faladas, é bom que o eu tenha a estrutura ritual que tem. Entretanto, eu não quero dizer que outro tipo de pessoa relacionada a outro tipo de organização de mensagens não se sairia tão bem. E, o que é mais importante, eu não afirmo que o sistema atual não tenha fraquezas ou desvantagens; o que é de se esperar, pois na vida social sempre é o caso que um mecanismo ou relação funcional que resolve um conjunto de problemas necessariamente crie um conjunto próprio de dificuldades e abusos em potencial. Por exemplo, um problema característico na organização ritual de conta tos pessoais é que, apesar de uma pessoa poder salvar a fachada discutindo ou se retirando indignada de um encontro, isto ocorre ao custo da interação. Além disso, a ligação da pessoa com a fachada fornece um alvo para os outros; eles não apenas podem tentar feri-la de forma não oficial, mas podem até oficialmente tentar destruir completamente sua fachada. Muitas vezes, também, o medo da perda possível de fachada impede a pessoa de iniciar contatos em que informações importantes podem ser transmitidas e relações importantes restabelecidas; ela pode ser levada a buscar a segurança da solidão em vez do perigo dos encontros sociais. Ela pode fazer isso 32. A ocorrência da unidade de intercâmbio é um fato empírico. Além da explicação ritual para ele, podemos sugerir outras. Por exemplo, quando uma pessoa pronuncia um enunciado e recebe uma resposta imediata, isto permite que ela aprenda que seu enunciado foi recebido, e que foi corretamente recebido. Tal "metacomunicação" seria necessária por razões funcionais mesmo que não fosse por razões rituais. 44

mesmo que os outros sintam que seu motivo é um "falso orgulho" um orgulho que sugere que o código ritual está levando a melhor sobre aqueles cuja conduta é regulada por ele. Além disso, o complexo "depois de você, Alphonse" pode dificultar o término de um intercâmbio. E também, quando cada participante sente que precisa sacrificar mais do que foi sacrificado por ele, pode ocorrer um tipo de círculo de indulgências vicioso - bem parecido com o ciclo de hostilidades que pode levar a discussões abertas - com cada pessoa recebendo coisas que não quer e dando em troca coisas que preferiria manter. E, mais uma vez, quando as pessoas têm relações formais, elas podem gastar muita energia assegurando que não ocorram eventos que possam carregar efetivamente uma expressão inapropriada. Por outro lado, quando um conjunto de pessoas tem relações informais e sente que não precisa de cerimónias entre si, sua falta de atenção e interrupções podem ser abundantes, e a conversa pode se degenerar numa tagarelice feliz de sons desorganizados. O próprio código ritual requer um equilíbrio delicado, e pode ser facilmente perturbado por qualquer um que o mantenha avidamente demais ou de menos, em termos dos padrões e expectativas de seu grupo. Perceptividade insuficiente, savoir-faire insuficiente, orgulho e consideração insuficientes, e não podemos mais confiar que a pessoa seja alguém capaz de perceber uma dica sobre si mesma ou de dar uma dica que poupe os outros de constrangimentos. Tal pessoa se torna uma ameaça real à sociedade; não há muito que se possa fazer com ela, e muitas vezes ela consegue o que quer. Com perceptividade e orgulho excessivos, a pessoa se torna melindrosa, alguém que deve ser tratado com luvas de pelica, e precisa de mais cuidado dos outros do que estes podem achar que ela vale. Com savoir-faire e consideração demais, ela se torna alguém socializada demais, que deixa os outros com a sensação de que não sabem qual é a posição que eles têm com ela, nem o que devem fazer para realizar um ajuste a longo prazo eficiente em relação a ela. Apesar dessas "patologias" inerentes à organização da conversa, o encaixe funcional entre a pessoa socializada e a interação falada é viável e prático. A orientação da pessoa para a fachada, especialmente para a sua própria, é a vantagem que a ordem ritual tem sobre ela; mas a promessa de tomar cuidado ritual de sua fachada é parte da própria estrutura da fala. 45


Fachada e relações sociais Quando uma pessoa começa um encontro mediado ou imediato, ela já está em algum tipo de relação social com os outros em questão, e espera estar numa dada relação com eles quando este encontro em particular terminar. Isto, obviamente, é uma das formas pelas quais os contatos sociais são atrelados à sociedade mais ampla. Grande parte da atividade que ocorre durante um encontro pode ser entendida como um esforço da parte de todos para atravessar a ocasião e todos os eventos imprevistos e não intencionais que podem colocar os participantes sob uma luz indesejável, sem perturbar as relações dos participantes. E se as relações estiverem em processo de mudança, o objetivo será levar o encontro a um desfecho satisfatório sem alterar o curso de desenvolvimento esperado. Tal perspectiva explica bem, por exemplo, as pequenas cerimónias de saudações e despedidas que ocorrem quando as pessoas iniciam um encontro conversacional ou partem dele. Saudações permitem mostrar que uma relação ainda é o que era no término de uma coparticipação anterior, e, normalmente, que essa relação envolve uma supressão de hostilidades suficiente para que os participantes abaixem a guarda temporariamente para conversar. Despedidas resumem o efeito do encontro sobre a relação e mostram o que os participantes podem esperar uns dos outros quando se encontrarem da próxima vez. O entusiasmo das saudações compensa o enfraquecimento da relação causado pela ausência que acabou de terminar, e o entusiasmo das despedidas compensa o prejuízo que a separação está prestes a causar à relação33.

33. É claro que as saudações servem para esclarecer e fixar os papéis que os participantes assumirão durante a ocasião de conversa e para comprometer os participantes a esses papéis, enquanto as despedidas permitem terminar o encontro sem ambiguidade. Saudações e despedidas também podem ser usados para afirmar (e se desculpar por) circunstâncias atenuantes - no caso das saudações, circunstâncias que impediram os participantes de interagir até agora e, no caso das despedidas, circunstâncias que impedem que os participantes continuem sua demonstração de solidariedade. Essas desculpas permitem manter a impressão de que os participantes têm uma relação social mais afável do que pode ser o caso. Essa ênfase positiva, por sua vez, garante que eles agirão como se estivessem mais dispostos a entrar em contatos do que talvez realmente estejam, garantindo assim que canais difusos de comunicação potencial sejam mantidos abertos na sociedade. 46

Parece ser uma obrigação característica de muitas relações sociais que cada um dos membros garanta apoiar uma certa fachada para os outros membros em dadas situações. Assim, para prevenir uma perturbação dessas relações, é necessário que cada membro evite destruir a fachada dos outros. Ao mesmo tempo, frequentemente é a relação social da pessoa com outros que a leva a participar de certos encontros com eles, em que ela acabará dependendo deles para manter sua fachada. Além disso, em várias relações, os membros compartilham uma fachada, de forma que, na presença de terceiros, um ato inapropriado por parte de um membro se torna uma fonte de constrangimento agudo para os outros membros. Uma relação social, então, pode ser vista como uma forma pela qual a pessoa é forçada, mais do que o normal, a confiar sua autoimagem e fachada à diplomacia e boa conduta dos outros. A natureza da ordem ritual A ordem ritual parece ser organizada basicamente sobre linhas de acomodação, de forma que o imaginário usado para pensarmos sobre outros tipos de ordem social não é muito apropriado para ela. Para os outros tipos de ordem social, parece que empregamos um tipo de modelo de estudante: se uma pessoa quiser manter uma imagem particular de si e confiar seus sentimentos a ela, ela precisa trabalhar duro pelos créditos que comprarão essas melhorias do eu para ela; se ela tentar alcançar os fins através de meios inapropriados, trapaceando ou roubando, ela será punida, desclassificada da corrida, ou pelo menos forçada a começar de novo do zero. Este é um imaginário de um jogo difícil e chato. Na verdade, a sociedade e o indivíduo participam de um jogo mais fácil para ambos, mas que tem seus próprios perigos. Qualquer que seja sua posição na sociedade, a pessoa se isola através de cegueiras, meias-verdades, ilusões e racionalizações. Ela faz um "ajuste" ao se convencer, com o apoio diplomático de seu círculo íntimo, de que ela é o que quer ser e que ela não faria, para atingir seus objetivos, o que os outros fizeram para atingir os deles. E quanto à sociedade, se a pessoa estiver disposta a estar sujeita a um controle social informal - se ela estiver disposta a descobrir, a partir de dicas e olhadelas e pistas cuidadosas qual é o seu lugar, e 47


mantiver esse lugar - então não haverá nenhuma objeção a que ela mobílie esse lugar do jeito que quiser, com todo o conforto, elegância e nobreza que sua sagacidade obtenha para ela. Para proteger esse abrigo, ela não precisa trabalhar duro, nem se juntar a um grupo, nem competir com alguém; ela precisa apenas tomar cuidado com os juízos expressos aos quais ela se coloca numa posição de testemunhar. Algumas situações, atos e pessoas terão que ser evitados; outros, menos ameaçadores, não devem ser levados muito longe. A vida social é uma coisa ordenada e não atravancada porque a pessoa voluntariamente fica longe dos lugares e tópicos e momentos em que ela não é desejada e onde poderia ser depreciada. Ela coopera para salvar sua fachada, descobrindo que há muito a ganhar sem nada arriscar. Fatos fazem parte do mundo do estudante - eles podem ser alterados por um esforço diligente, mas não podem ser evitados. Na realidade, a pessoa protege, defende e investe seus sentimentos numa ideia de si, e ideias não são vulneráveis a fatos e a coisas, mas sim a comunicações. Comunicações pertencem a um esquema menos punitivo que os fatos, pois podemos desviar comunicações, retirar-nos delas, não acreditar nelas, convenientemente entendê-las mal, e transmiti-las diplomaticamente. E mesmo se a pessoa se comportar mal e quebrar sua trégua com a sociedade, a consequência não será necessariamente a punição. Se a ofensa for do tipo que os ofendidos possam ignorar sem perder muito de suas fachadas, então é provável que eles ajam com clemência, dizendo a si mesmos que eles se desforrarão do ofensor de outra forma em outro momento, mesmo que essa ocasião possa nunca surgir, e talvez não seja aproveitada se surgir. Se a ofensa for grande, as pessoas ofendidas podem se retirar do encontro, ou de encontros similares futuros, permitindo que sua retirada seja reforçada pelo pasmo que elas podem sentir quanto a alguém que quebra o código ritual. Ou talvez elas façam com que o ofensor seja retirado, para que não haja mais comunicação. Mas já que o ofensor pode resgatar grande parte da fachada com tais operações, a retirada muitas vezes não é uma punição informal por uma ofensa, meramente um meio de terminá-la. Talvez o maior princípio da ordem ritual não seja a justiça, e sim a fachada, e o que qualquer ofensor recebe não é o que ele merece, e sim o que sustentará

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pelo momento a linha com a qual ele se comprometeu, e através disto a linha com a qual ele comprometeu a interação. Durante este artigo, ficou implícito que, debaixo de suas diferenças culturais, as pessoas são iguais em todos os lugares. Se as pessoas tiverem uma natureza humana universal, não é nelas próprias que devemos procurar uma explicação dela. Em vez disso, devemos procurá-la no fato de que as sociedades, em qualquer lugar, se quiserem ser sociedades, precisam mobilizar seus membros como participantes autorreguladores em encontros sociais. Uma forma de mobilizar o indivíduo para esse propósito é através do ritual; ele é ensinado a ser perceptivo, a ter sentimentos ligados ao eu e um eu expresso pela fachada, a ter orgulho, honra e dignidade, a ter consideração, tato e uma certa quantidade de aprumo. Esses são alguns dos elementos de comportamento que devem ser enxertados na pessoa se quisermos fazer uso prático dela enquanto participante da interação e, em parte, quando falamos de natureza humana universal é a esses elementos que nos referimos. A natureza humana universal não é uma coisa muito humana. Ao adquiri-la, a pessoa se torna uma espécie de construto, criada não a partir de propensões psíquicas internas, mas de regras morais que são carimbadas nela externamente. Essas regras, quando seguidas, determinam a avaliação que ela fará sobre si mesma e sobre seus colegas participantes no encontro, a distribuição de seus sentimentos, e os tipos de práticas que ela empregará para manter um tipo especificado e obrigatório de equilíbrio ritual. A capacidade geral de ser limitado por regras morais pode muito bem pertencer ao indivíduo, mas o conjunto particular de regras que o transforma num ser humano é derivado de requerimentos estabelecidos na organização ritual de encontros sociais. E se uma pessoa ou grupo ou sociedade em particular parecer ter um cará ter único inteiramente próprio, é porque seu conjunto padrão de elementos da natureza humana é instalado e combinado de forma particular. Em vez de muito orgulho, pode haver pouco. Em vez de obedecer as regras, pode haver um grande esforço para quebrá-las err segurança. Mas se quisermos manter um encontro ou empreendim ^nto como um sistema viável de interação organizado por princípios rituais, então essas variações precisam ser mantidas dentro de certos limites e bem contrabalançadas por modificações

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correspondentes em algumas das outras regras e entendimentos. Da mesma forma, a natureza humana de um conjunto particular de pessoas pode ser especialmente projetada para o tipo especial de empreendimentos em que elas participam, mas ainda assim todas essas pessoas precisam ter dentro delas algo do equilíbrio de características necessárias para um participante utilizável em qualquer sistema organizado ritualmente de atividade social.

2 A natureza da deferência e do porte

Sob a influência de Durkheim e Radcliffe-Brown, alguns estudantes das sociedades modernas aprenderam a procurar o significado simbólico de qualquer prática social dada e a contribuição dessa prática para a integridade e solidariedade do grupo que a emprega, l vntretanto, ao voltar sua atenção para o grupo em vez do indivíduo, esses estudantes parecem ter negligenciado um tema apresentado no capítulo de Durkheim sobre a alma1. Lá, ele sugere que a personalidade do indivíduo pode ser vista como uma parcela do mana coletivo e que (como ele sugere em capítulos posteriores) os ritos reaI izados para representações da coletividade social às vezes serão reaIizados para o próprio indivíduo. Neste capítulo, eu quero explorar alguns dos sentidos em que a pessoa, em nosso mundo secular urbano, recebe um tipo de sacralidade que é exibido e confirmado por atos simbólicos. Realizarei uma tentativa de construir um andaime conceituai esticando e retorcendo alguns termos antropológicos comuns. Isto será usado para apoiar dois conceitos que penso serem centrais para esta área: a deferência e o porte. Através destas reformulações, tentarei mostrar que uma versão da psicologia social de Durkheim pode ser eficiente com uma roupagem moderna. Os dados para este capítulo foram retirados primariamente de um breve estudo observacional sobre pacientes psiquiátricos num

I . DURKHEIM, É. The Elementary Forms ofthe Rdigious Life. Glencoe: The Free l ' i ess, 1954, p. 240-272.

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hospital de pesquisas moderno2. Eu uso estes dados baseado na suposição de que um lugar lógico para aprender sobre propriedades pessoais é entre pessoas que foram trancafiadas por fracassar espetacularmente em mante-las. As infrações de propriedades delas ocorrem nos limites de uma enfermaria, mas as regras quebradas são bastante gerais, levando-nos para fora da enfermaria, na direção de um estudo geral de nossa sociedade anglo-americana. Introdução Uma regra de conduta pode ser definida como um guia para a acão, recomendada não porque ela t agradável, barata ou eficiente, mas porque é apropriada ou justa. As infrações caracteristicamente levam a sentimentos de desconforto e a sanções sociais negativas. As regras de conduta impregnam todas as áreas de atividade e são mantidas pelo nome e honra de quase tudo. Entretanto, sempre estará envolvido um agrupamento de adeptos - ou mesmo uma vida social corporativa - fornecendo através disto um tema sociológico comum. A ligação a regras leva a uma constância e padronização do comportamento; ainda que esta não seja a única fonte de regularida2. A Enfermaria A era formalmente dedicada à pesquisa farmacológica e continha dois controles normais, ambos rapazes menonitas de 19 anos que se opunham ao serviço militar, duas mulheres hipertensas de cerca de 50 anos, e duas mulheres de seus 30 anos diagnosticadas como esquizofrênicas e num grau avançado de remissão. Por dois meses, o autor participou da vida social da enfermaria na posição oficial de controle normal, comendo e socializando com os pacientes durante o dia e ocasionalmente dormindo no quarto de uma das pacientes. A Enfermaria B era dedicada ao estudo de garotas esquizofrênicas e suas mães, chamadas de esquizofrenogênicas: uma garota de dezessete anos, Betty, e sua mãe, a sra. Baum; Grace, de quinze anos, e Mary, de trinta e um, cujas mães visitavam a enfermaria na maior parte dos dias da semana. O autor passava parte dos dias da semana na Enfermaria B na posição de sociólogo da equipe. Dentro de certos limites, é possível tratar a Enfermaria A como um exemplo de uma enfermaria não psiquiátrica ordenada, e a Enfermaria B como um exemplo de uma enfermaria com pacientes psiquiátricos um tanto perturbados. Deve ficar bastante claro que apenas um aspecto dos dados será considerado, e que para cada evento citado interpretações adicionais seriam necessárias, por exemplo, interpretações psicanalíticas. - Eu agradeço aos administradores dessas enfermarias, Dr. Seymour Perlin e Dr. Murray Bowen, e suas equipes, pela cooperação e assistência, e o Dr. John A. Clausen e Charlotte Green Schwartz, então do Instituto Nacional de Saúde Mental, por sugestões críticas.

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de nas atividades humanas, ela certamente é importante. É claro que guias de conduta aprovados tendem a ser veladamente quebrados, evitados ou seguidos por razões que não seriam aprovadas, mas essas alternativas apenas aumentam o número de ocasiões em que as regras coagem pelo menos a superfície da conduta. As regras de conduta invadem o indivíduo de duas formas gerais: diretamente, como obrigações, estabelecendo como ele é moralmente coagido a se conduzir; indiretamente, como expectativas, estabelecendo como os outros são moralmente forçados a agir em relação a ele. Uma enfermeira, por exemplo, tem uma obrigação de seguir as ordens médicas sobre seus pacientes; por outro lado, ela (em a expectativa de que seus pacientes cooperarão docilmente, permitindo que ela realize essas ações neles. Essa docilidade, por sua vez, pode ser vista como uma obrigação dos pacientes para sua enfermeira, e demonstra o caráter interpessoal, ator-receptor de muitas regras: a obrigação de um homem muitas vezes será a expectativa de outro. Já que as obrigações envolvem uma coerção para agirmos de uma forma em particular, às vezes as representamos como coisas incómodas ou desagradáveis, que devem ser cumpridas, se o fizermos, cerrando os dentes em determinação consciente. Na verdade, a maioria das ações guiadas por regras de conduta são realizadas sem pensar, e o ator questionado diz que as realiza "sem motivo" ou porque ele "teve vontade". É apenas quando suas rotinas são bloqueadas que ele poderá descobrir que suas açõezinhas neutras são o tempo todo consistentes com as propriedades de seu grupo e que seu fracasso ao realizá-las pode se tornar uma questão de vergonha e humilhação. Da mesma forma, ele pode considerar suas expectativas quanto aos outros tão evidentes que é apenas quando as coisas dão inesperadamente errado que ele repentinamente descobrirá que tem motivos para indignação. Quando estiver claro que uma pessoa pode cumprir uma obrigação sem sentir que o faz, podemos ir além disto e ver que uma obrigação que é sentida corno algo que deve ser feito pode parecer para a pessoa obrigada ou uma coisa desejada ou uma coisa onerosa, resumindo, um dever agradável ou desagradável. Na verdade, a mesma obrigação pode parecer ser uni dever desejável num momento e um

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dever indesejável em outro, como quando uma enfermeira, obrigada a administrar medicamentos em pacientes, pode ficar feliz por isto quando tenta estabelecer uma distância social dos assistentes (que as enfermeiras podem considerar, num certo sentido, não serem "bons o bastante" para realizar tal atividade), mas incomodada por isto em ocasiões em que descobre que a dosagem deve ser determinada com base em ordens médicas ilegíveis. Da mesma forma, uma expectativa pode ser percebida pela pessoa que espera como uma coisa desejada ou não, como quando uma pessoa sente que será merecidamente promovida e outra sente que será merecidamente demitida. No uso comum, uma regra que o ator ou receptor percebe como algo pessoalmente desejável, independente de sua propriedade, é às vezes chamada de um direito ou privilégio, como farei aqui, mas esses termos têm implicações adicionais, sugerindo aquela classe especial de regras que um indivíduo pode invocar, mas não precisa fazê-lo. Também devemos notar que a obrigação agradável de um ator pode constituir a expectativa agradável de um receptor, como o beijo que o marido deve à esposa quando volta do escritório, mas que, como o exemplo sugere, todos os tipos de combinações são possíveis. Quando um indivíduo se envolve na manutenção de uma regra, ele tende a também se comprometer com uma certa imagem do eu. No caso de suas obrigações, ele se torna, para si mesmo e para os outros, o tipo de pessoa que segue essa regra em particular, o tipo de pessoa que naturalmente esperamos que o faça. No caso de suas expectativas, ele se torna dependente da suposição de que os outros realizarão apropriadamente as obrigações deles que o afetam, pois o tratamento que eles concedem ao indivíduo expressará uma concepção dele. Ao se estabelecer como o tipo de pessoa que trata as outras de uma certa forma, e é tratado por elas de uma certa forma, ele precisa garantir que será possível para ele agir e ser esse tipo de pessoa. Por exemplo, com certos psiquiatras parece haver um ponto em que a obrigação de dar psicoterapia para os pacientes, seus pacientes, transforma-se em algo que eles precisam fazer se quiserem manter a imagem que passaram a ter de si mesmos. O efeito dessa transformação pode ser visto nas contorções que alguns deles podem fazer nas fases iniciais de suas carreiras, quando podem se encontrar empregados para fazer pesquisa, ou administrar uma enfermaria, ou dar terapia para pessoas que prefeririam ser deixadas em paz.

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Então, de modo geral, quando uma regra de conduta é quebrada, descobrimos que dois indivíduos correm o risco de se tornarem desacreditados: um com uma obrigação, quem deveria ter sido governado pela regra; o outro com uma expectativa, quem deveria ter sido tratado de uma forma particular por causa desse governo. Tanto o ator quanto o receptor são ameaçados. Urn ato que está sujeito a uma regra de conduta é, então, uma comunicação, pois ele representa uma forma pela qual os eus são confirmados - tanto o eu para quem a regra é uma obrigação quanto aquele para quem é uma expectativa. Um ato que está sujeito a regras de conduta, mas que não se conforma a elas também é uma comunicação - muitas vezes ainda mais - pois infrações geram notícias, e muitas vezes de forma a deslegitimar os eus dos participantes. Assim, as regras de conduta transformam a ação e a inação em expressão, e é provável que algo significativo seja comunicado, independente de se o indivíduo segue as regras ou as quebra. Por exemplo, nas enfermarias que estudei, todos os psiquiatras pesquisadores tendiam a esperar que seus pacientes aparecessem regularmente para suas sessões terapêuticas. Quando os pacientes cumpriam essa obrigação, eles demonstravam que apreciavam sua necessidade de l ratamento e que seu psiquiatra era o tipo de pessoa que consegue estabelecer uma "boa relação" com os pacientes. Quando um paciente se recusava a comparecer à sua sessão terapêutica, outras pessoas na enfermaria tendiam a achar que ele estava "doente demais" para saber o que era bom para ele, e que talvez seu psiquiatra não fosse o tipo de pessoa que consegue estabelecer relações boas. Comparecendo ou não a suas consultas, os pacientes tendiam a comunicar algo importante sobre eles e seu psiquiatra para a equipe e os outros pacientes na enfermaria. Ao considerar a participação do indivíduo na ação social, precisamos entender que, num certo sentido, ele não participa como uma pessoa total, mas sim em termos de uma capacidade ou estatuto especial; resumindo, em termos de um eu especial. Por exemplo, pacienles que por acaso sejam mulheres podem ser obrigadas a agir de forma sem-vergonha diante de médicos que por acaso sejam homens, já (|ue é a relação médica, e não a sexual, que é definida como oficialmente relevante. No hospital de pesquisa estudado, havia pacientes e membros da equipe negros, mas esses indivíduos não estavam oficialmente (ou, mesmo de modo geral, não oficialmente) ativos nesse es55


tatuto de grupo minoritário. É claro que durante encontros face a face os indivíduos podem participar oficialmente em mais de uma capacidade. Além disso, quase sempre damos algum peso não oficial a capacidades definidas como oficialmente irrelevantes, e a reputação que ganhamos em uma capacidade fluirá para a reputação que ganhamos em nossas outras capacidades, e até certo ponto a determinará. Mas essas questões precisam de uma análise mais refinada. Ao lidar com regras de conduta é conveniente distinguir duas classes, simétrica e assimétrica3. Uma regra simétrica é aquela que leva um indivíduo a ter obrigações ou expectativas em relação a outros que estes outros têm em relação a ele. Por exemplo, nas duas enfermarias do hospital, assim como na maioria dos outros lugares em nossa sociedade, havia um entendimento de que nenhum indivíduo deveria roubar outro indivíduo, independentemente de seus respectivos estatutos, e todos os indivíduos da mesma forma podiam esperar não ser roubados por ninguém. Aquilo que chamamos de cortesias comuns e regras da ordem pública tendem a ser simétricas, como o são as admoestações bíblicas como a regra de não desejar a mulher do próximo. Uma regra assimétrica é aquela que leva os outros a tratar e serem tratados por um indivíduo de modo diferente daquele com que ele trata e é tratado por eles. Por exemplo, médicos dão ordens médicas para enfermeiras, mas enfermeiras não dão ordens médicas para médicos. Da mesma forma, em alguns hospitais dos Estados Unidos, as enfermeiras se levantam quando um médico entra na sala, mas os médicos normalmente não se levantam quando uma enfermeira entra na sala. Os estudantes da sociedade fizeram várias distinções entre tipos de regras, como, por exemplo, regras formais e informais; entretanto, para este capítulo, a distinção importante é aquela entre substância e cerimónia4. Uma regra substantiva é aquela que guia a conduta

3. THOULESS, R.H. General and Social Psychology. Londres: University Tutorial Press, 1951, p. 272-273. 4. Eu retirei esta distinção de DURKHEIM; É. "The Determination of Moral Facts". Sociology and Philosophy. Glencoe: Free Press, 1953, esp. p. 42-43. Cf. tb. RADCLIFFE-BROWN, A.R. Taboo - Structure and Function in Primitive Society. Glencoe: Free Press, 1952, p. 143-144. • PARSONS, T. The Structure of Social Action. Nova York: McGraw-Hill, 1937, p. 430-433. Às vezes a dicotomia é fraseada em termos de "intrínseco" ou "instrumental" contra "expressivo" ou "ritual". 56

em relação a questões consideradas significativas por si só, significância esta separada daquilo que a infração ou manutenção da regra expressa sobre os eus das pessoas envolvidas. Assim, quando um indivíduo se abstém de roubar outros, ele mantém uma regra substantiva que serve principalmente para proteger a propriedade desses outros, e apenas incidentalmente funciona para proteger a imagem que eles têm de si mesmos como pessoas com direitos de propriedade. As implicações expressivas de regras substantivas são oficialmente consideradas secundárias; essa aparência deve ser mantida, mesmo que em algumas situações especiais todos possam sentir que os participantes estavam preocupados principalmente com a expressão. Uma regra cerimonial é aquela que guia a conduta em questões consideradas de importância secundária ou até mesmo não existente por si só, tendo sua importância primária - pelo menos oficialmente - como um meio convencionalizado de comunicação através do qual o indivíduo expressa seu caráter ou transmite sua apreciação dos outros participantes na situação5. Esse uso difere do uso co5. Ainda que o valor substantivo de atos cerimoniais seja considerado bastante secundário, ele pode ser apreciável. Presentes de casamento na sociedade americana são um exemplo. É até possível dizer em alguns casos que, se quisermos transmitir um certo sentimento cerimonialmente, será necessário empregar um veículo simbólico que tenha uma certa quantidade de valor substantivo. Assim, na classe média baixa americana, entende-se que um investimento pequeno num anel de noivado, em lermos de investimento, pode significar que o homem dá um valor pequeno à sua noiva, em termos emocionais, mesmo que ninguém realmente acredite que mulheres e anéis são coisas semelhantes. Nesses casos em que fica claro demais que o valor subslantivo de um ato cerimonial é a única preocupação dos participantes, como quando uma garota ou uni funcionário recebe um presente significativo de alguém que não está interessado em relações apropriadas, então a comunidade pode responder com uma sensação de que seu sistema simbólico foi abusado. Um caso-limite interessante do componente cerimonial da atividade pode ser enconIrado no fenómeno da "galanteria", como quando uni homem calmamente dá passagem para deixar uma dama desconhecida entrar antes dele num bote salva-vidas, ou quando um espadachim, durante um duelo, graciosamente pega a arma caída de seu adversário e a oferece de volta a ele. Aqui, um ato que normalmente é um gesto cerimonial de valor substantivo insignificante é realizado sob condições em que se sabe que ele terá inesperadamente um grande valor substantivo. Aqui, por assim dizer, as formas da cerimonia são mantidas além do chamado do dever. Então, de modo geral, podemos dizer que todos os gestos cerimoniais diferem no grau em que têm valor substantivo, e que esse valor substantivo pode ser utilizado sistematicamente como parte do valor comunicativo do ato, mas que ainda assim a ordem cerimonial é diferente da ordem substantiva, e esta diferença é compreendida. 57


tidiano, em que "cerimónia" tende a implicar uma sequência extensa de ação simbólica altamente especificada realizada por atores veneráveis em ocasiões solenes, e onde é provável que sentimentos religiosos sejam invocados. Em minha tentativa de enfatizar o que há de comum a práticas como tirar o chapéu e coroações, eu forçosamente ignorarei as diferenças entre elas a um ponto que muitos antropólogos talvez possam considerar impraticável. Em todas as sociedades as regras de conduta tendem a ser organizadas em códigos que garantem que todos ajam apropriadamente e recebam o que merecem. Em nossa sociedade, o código que governa regras substantivas e expressões substantivas compreende nossa lei, moralidade e ética, e o código que governa regras cerimoniais e expressões cerimoniais é incorporado naquilo que chamamos de etiqueta. Todas as nossas instituições têm os dois tipos de códigos, mas neste capítulo eu restringirei a atenção ao cerimonial. Os atos ou eventos, quer dizer, os veículos ou fichas simbólicas que carregam mensagens cerimoniais têm caráter notavelmente variado. Eles podem ser linguísticos, como quando um indivíduo emite um enunciado de louvor ou depreciação sobre si mesmo ou outra pessoa, e o faz numa linguagem e entonação particular6; gestuais, como quando a orientação física de um indivíduo transmite insolência ou subserviência; espaciais, como quando um indivíduo precede outro através da porta, ou se senta à sua direita em vez da esquerda; incorporados em tarefas, como quando um indivíduo aceita uma tarefa graciosamente e a realiza na presença de outros com segurança e destreza; parte da estrutura comunicativa, como quando um indivíduo fala mais frequentemente que os outros, ou recebe mais atenção que eles. O importante é que a atividade cerimonial, como a atividade substantiva, é um elemento analítico que se refere a um componente ou função da ação, e não à ação empírica concreta em si. Apesar de algumas atividades com um componente cerimonial parecerem não ter um componente substantivo apreciável, percebemos que toda atividade de significância primariamente substantiva carregará de alguma forma algum significado cerimonial, desde que sua realização seja

6. GARVIN, P.L. & RIESENBERG, S.H. "Respect Behavior on Pronape: An Ethnolinguistic Study". American Anthropologist, 54, 1952, p. 201-220.

percebida por outros de alguma forma. A maneira pela qual a atividade é realizada, ou as interrupções momentâneas que são permitidas para trocarmos pequenas delicadezas, instilarão significância cerimonial na situação orientada instrumentalmente. Podemos nos referir aos veículos empregados por um dado grupo social para propósitos cerimoniais como seu idioma cerimonial. Normalmente diferenciamos sociedades de acordo com a quantidade de cerimonial injetado num dado período e tipo de interação, ou de acordo com a abrangência das formas e a minuciosidade de sua especificação; talvez fosse melhor distinguir as sociedades de acordo com se a cerimónia necessária é realizada como um dever desagradável ou, espontaneamente, como um dever despercebido e agradável. A atividade cerimonial parece conter certos componentes básicos. Como foi sugerido, um dos principais objetivos deste capítulo será delinear dois destes componentes, a deferência e o porte, e esclarecer a distinção entre eles. Deferência Com "deferência" eu me refiro ao componente da atividade que funciona como um meio simbólico através do qual se comunica regularmente apreciação para um receptor deste receptor, ou de algo do qual este receptor é considerado um símbolo, extensão ou agente7. Essas marcas de devoção representam formas pelas quais um ator celebra e confirma sua relação com um receptor. Em alguns casos, tanto o ator quanto o receptor podem na verdade não ser indivíduos, como quando dois navios se cumprimentam com quatro apilos breves quando se cruzam. Em alguns casos, o ator é um indivíduo, mas o receptor é algum objeto ou ídolo, como quando um marinheiro saúda o tombadilho superior ao embarcar no navio, ou quando um católico se ajoelha perante o altar. Entretanto, eu me

7. Parte do material conceituai sobre deferência usado neste capítulo é derivada de um estudo financiado por uma bolsa da Fundação Ford para um inventário preposicional da estratificação social dirigido pelo Professor E.A. Shils da Universidade de Chicago. Fico muito grato ao Sr. Shils por me orientar para o estudo do comporlamento da deferência. Ele não é responsável por qualquer uso equivocado que eu lenha feito de sua concepção. 59


preocuparei apenas com o tipo de deferência que ocorre quando tanto o ator quanto o receptor são indivíduos, estejam eles agindo ou não em nome de algo que não seja eles mesmos. Tal atividade cerimonial talvez seja vista mais claramente nas pequenas saudações, elogios e desculpas que pontuam o intercurso social, e podemos nos referir a ela como "rituais de estatuto" ou "rituais interpessoais"8. Eu utilizo o termo "ritual" porque essa atividade, por mais informal e secular que seja, representa uma forma pela qual o indivíduo precisa proteger e projetar as implicações simbólicas de seus atos enquanto estiver na presença imediata de um objeto que tenha um valor especial para ele9. O estudo de rituais de deferência parece poder ir em duas direções principais. Uma é escolher um dado ritual e tentar descobrir os fatores comuns a todas as situações sociais em que ele é realizado, pois é através de tal análise que podemos alcançar o "significado" do ritual. A outra é coletar todos os rituais realizados para um dado receptor, seja de quem vier o ritual. Cada um desses rituais pode então ser interpretado em busca do significado expresso simbolicamente que está incorporado nele. Juntando esses significados, podemos chegar à concepção do receptor que os outros são obrigados a manter sobre ele e para ele. O indivíduo pode desejar, ganhar e merecer deferência, mas de modo geral não é permitido que ele a dê pai a si mesmo, e ele é forçado a procurá-la nos outros. Ao procurá-la nos outros, ele descobre que tem mais motivos para procurá-los, e por sua vez a sociedade ganha uma garantia maior de que seus membros constituirão interações e relações entre si. Se o indivíduo pudesse dar a si mesmo a deferência que deseja, poderia haver uma tendência para a sociedade

8. Técnicas para lidar com essas obrigações cerimoniais são examinadas em "Sobre a preservação da fachada". 9. Essa definição segue a de RADCLIFFE-BROWN, A.R. Taboo... Op. cit. p. 123, exceto que eu ampliei seu termo "respeito" para incluir outros tipos de consideração: "Existe uma relação ritual sempre que uma sociedade impõe para seus membros uma certa atitude perante um objeto, em que tal atitude envolve algum grau de respeito expresso por um modo de comportamento tradicional com referência a esse objeto". 60

se desintegrar em ilhas habitadas por devotos solitários, todos venerando continuamente seu próprio altar. A apreciação comunicada por um ato de deferência implica que o ator possui um sentimento de estima pelo receptor, o que muitas vezes envolve uma avaliação geral do receptor. A estima é algo que o indivíduo constantemente tem para os outros, e conhece o bastante para ocasionalmente fingir que tem; mas ao ter estima por alguém, o indivíduo é incapaz de especificar detalhadamente o que tem de fato em mente. É claro que aqueles que prestam deferência para um indivíduo podem sentir que estão fazendo isso meramente porque ele é um exemplo de uma categoria, ou um representante de alguma coisa, e que eles estão dando a ele o que merece não por causa daquilo que "pessoalmente" pensam sobre ele, mas apesar disso. Algumas organizações, como as forças armadas, explicitamente enfatizam esse tipo de raciocínio para prestar deferência, levando a uma concessão impessoal de algo que é dirigido especificamente para a pessoa. Ao demonstrar facilmente uma estima que ele não tem, o ator pode sentir que está preservando um tipo de autonomia interna, mantendo-se à distância da ordem cerimonial através do próprio ato de mante-la. E é claro que, ao observar escrupulosamente as formas apropriadas, ele pode descobrir que está livre para inserir todo tipo de descaso, modificando cuidadosamente a entonação, pronúncia, ritmo, e assim por diante. Ao pensarmos sobre a deferência, é comum utilizarmos como modelo os rituais de obediência, submissão e conciliação que alguém sujeito à autoridade oferece para alguém que tem autoridade. A deferência passa a ser concebida como algo que um subordinado deve a seu superior. Esta é uma visão extremamente limitadora da deferência por dois motivos. Primeiro, há inúmeras formas de deferência simétrica que pessoas em igualdade social devem umas às outras; em algumas sociedades, por exemplo a tibetana, saudações entre indivíduos iguais de posição alta podem se tornar exibições prolongadas de conduta ritual, de abrangência e duração maiores do que o tipo de obediência que um governado pode dever a seu governante em sociedades menos ritualizadas. Da mesma forma, há obrigações de deferência que os superiores devem a seus subordinados; 61


altos sacerdotes no mundo inteiro parecem obrigados a responder a ofertas com algum equivalente de "Deus te abençoe, meu filho". Segundo, a estima que o ator tem pelo receptor não precisa ser do tipo de pasmo respeitoso; há outros tipos de estima que também são expressos regularmente através de rituais interpessoais, como a confiança, como quando um indivíduo dá as boas-vindas a estranhos que aparecem de repente em sua casa, ou o respeito pela capacidade, como quando o indivíduo aceita o conselho técnico de outro. Um sentimento de estima que tem um papel importante na deferência é aquele da afeição e pertencimento. Podemos ver isto em seu exemplo mais extremo na obrigação de um homem recém-casado em nossa sociedade de tratar sua noiva com deferência afetiva sempre que for possível transformar o comportamento ordinário numa exibição desse tipo. Nós a encontramos mais rotineiramente, por exemplo, como um componente em muitas despedidas nas quais, como em nossa sociedade de classe média, o ator será obrigado a infundir tristeza e arrependimento em sua voz, assim prestando deferência ao estatuto do receptor como alguém por quem outros podem ter carinho. Em estabelecimentos psiquiátricos "progressivos", uma demonstração deferente de aceitação, afeição e preocupação podem compor um aspecto constante e significativo da posição tomada por membros da equipe ao contatar pacientes. Na Enfermaria B, de fato, as duas pacientes mais jovens pareciam ter se acostumado tanto a receber tais ofertas, e duvidavam tanto delas, que às vezes respondiam de forma zombeteira, aparentemente num esforço de restabelecer a interação no que lhes parecia um nível mais sincero. Parece que o comportamento de deferência como um todo tende a ser honorífico t ter um tom polido, comunicando uma apreciação do receptor que, de muitas formas, é mais elogiosa ao receptor do que podem ser os sentimentos verdadeiros do ator. O ator tipicamente dá ao receptor o benefício da dúvida, e pode até esconder uma estima baixa por trás de uma meticulosidade adicional. Assim, os atos de deferência muitas vezes evidenciam linhas gerais ideais às quais podemos então, de vez em quando, referir a atividade real entre o ator e o receptor. Como um último recurso, o receptor tem o direito de fazer um apelo direto a essas definições honoríficas da situação, de insistir sobre suas reivindicações teóricas, mas se ele for precipitado o

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suficiente a ponto de fazer isso, é provável que a partir de então sua relação com o ator seja modificada. As pessoas sentem que o receptor não deve compreender o ator literalmente, nem obrigá-lo a mostrar suas intenções, e deve se contentar com a demonstração de apreciação em vez de uma expressão mais substantiva dela. Por isso, descobrimos que muitos atos automáticos de deferência contêm um significado vestigial, tendo a ver com uma atividade em que ninguém mais está engajado e implicando uma apreciação que há muito tempo não é mais esperada - e ainda assim sabemos que esses tributos antiquados não podem ser negligenciados impunemente. Além de um sentimento de estima, os atos de deferência tipicamente contêm uma espécie de promessa, expressando de forma truncada a admissão e compromisso do ator de tratar o receptor de uma forma particular na atividade que se seguirá. O compromisso afirma que as expectativas e obrigações do receptor, tanto substantivas quanto cerimoniais, serão permitidas e apoiadas pelo ator. Os atores prometem, assim, manter a concepção do eu que o receptor construiu a partir das regras em que está envolvido. (Talvez o protótipo aqui seja o ato público de vassalagem em que um indivíduo oficialmente reconhece sua subserviência ao seu senhor em certos assuntos.) Compromissos de deferência frequentemente são comunicados através de termos falados envolvendo identificadores de estatuto, como quando uma enfermeira responde a uma censura na sala de cirurgias com a frase "sim, doutor", significando através desse termo e do tom da voz que a crítica foi entendida e que, por menos palatável que a crítica seja, ela não causou rebeldia. Quando um suposto receptor não recebe atos de deferência previstos, ou quando um ator deixa claro que está prestando homenagens de má vontade, o receptor pode sentir que o estado de coisas que ele considerava evidente se tornou instável, e que o ator pode realizar um esforço de insubordinação para realocar tarefas, relações e poder. Trazer à tona um ato de deferência estabelecido, mesmo que antes seja preciso lembrar o ator de suas obrigações e das consequências da descortesia, é prova de que se a rebelião vier, virá dissimuladamente; recusar abertamente um ato de deferência esperado muitas vezes é uma forma de afirmar que a insurreição aberta começou.

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É preciso mencionar uma complicação adicional. Uni ato de deferência particular é algo que um ator, agindo numa certa capacidade, deve a um receptor, agindo numa certa capacidade. Mas é provável que esses dois indivíduos estejam relacionados através de mais do que um par de capacidades, e é provável que essas relações adicionais também recebam expressão cerimonial. Por isso, o mesmo ato de deferência pode mostrar sinais de tipos de estima diferentes, como quando um doutor, através de um gesto paternal, demonstra autoridade sobre uma enfermeira em sua capacidade de técnica subordinada, mas também afeição por ela como uma jovem que depende dele em sua capacidade de homem mais velho e compreensivo. Da mesma forma, um assistente, ao chamar alegremente um médico de "Doe"10 pode às vezes demonstrar respeito pelo papel médico e ao mesmo tempo solidariedade masculina com a pessoa que o desempenha. Precisamos assim, em todo este capítulo, manter em mente que um ato de comportamento de deferência não é uma única nota expressando uma única relação entre dois indivíduos ativos num único par de capacidades, e sim uma mistura de vozes respondendo ao fato de que o ator e o receptor estão em muitas relações diferentes entre si, e nenhuma delas normalmente recebe uma determinabilidade exclusiva e contínua da conduta cerimonial. Podemos citar um exemplo interessante dessa complexidade quanto às relações entre senhor e criado de um livro de etiqueta do século dezenove: Emita suas ordens com gravidade e gentileza, e de forma reservada. Que sua voz seja bem composta, mas evite um tom de familiaridade ou simpatia com eles. É melhor, ao falar com eles, usar uma tonalidade de voz mais aguda, e não permita que ela caia no final de uma sentença. O homem de melhor educação que tivemos o prazer de conhecer sempre empregava, ao falar com criados, formas de fala como as seguintes - "Eu te agradeceria por isto ou aquilo" "Esta coisa, por favor" -, com um tom gentil, mas uma tonalidade muito elevada. A perfeição dos modos, neste caso particular, é indicar através da sua linguagem que o ato é um favor, e através do seu tom que é algo evidente .

10. Abreviação informal de doctor, "doutor" em inglês [N.T.]. 11. ANÓNIMO. TheLaws ofEtiquette. Filadélfia: Carey/Lee and Blanchard, 1836, p. 188. 64

A deferência pode assumir várias formas, das quais tratarei apenas de dois agrupamentos amplos, os rituais de evitacão e os de apresentação. Os rituais de evitação, enquanto um termo, podem ser empregados para se referir às formas de deferência que levam o ator a manter distância do receptor e não violar o que Simmel chamou de "esfera ideal" que está ao redor do receptor: Apesar de diferir em tamanho em várias direções e diferir de acordo com a pessoa com quem mantemos relações, esta esfera só pode ser penetrada destruindo o valor de personalidade do indivíduo. Uma esfera deste tipo é colocada ao redor de um homem pela sua honra. A linguagem pungentemente designa um insulto à honra como "chegar perto demais"; o raio desta esfera demarca, por assim dizer, a distância cuja transgressão por outra pessoa insulta nossa honra12.

Toda sociedade pode ser lucrativamente estudada como um sistema de arranjos deferentes de distância, e a maioria dos estudos nos dão algumas evidências disto13. Evitar o nome próprio de outra pessoa talvez seja o exemplo mais comum da antropologia, e deveria ser tão comum quanto na sociologia. Aqui, devemos dizer, está uma das diferenças importantes entre classes sociais em nossa sociedade: não apenas as fichas através das quais a consideração pela privacidade dos outros é expressa são diferentes, mas também, aparentemente, quanto mais alta a classe mais extensos e elaborados serão os tabus contra o conta to. Por exemplo, num estudo de uma comunidade das Ilhas Shetland, o autor descobriu que, quando saímos dos centros urbanos de classe média na Grã-Bretanha para as ilhas rurais de classe baixa, a distância entre as cadeiras da mesa diminui a ponto de, nas Ilhas Shetland mais distantes, o contato corporal durante refeições e ocasiões sociais similares não ser considerado uma invasão da privacidade, e não ser preciso pedir desculpas por isso. E ainda assim, qualquer que

12. SIMMEL, G. The Sociology of Georg Simmel. Glencoe: Free Press, 1950, p. 321. 13. P. ex., HODGE, F.H. Etiquette: Handbook of American Indians. Washington: Government Printing House, 1907, p. 442. 65


seja a posição dos participantes numa ação, é provável que o ator sinta que o receptor tem alguma expectativa de inviolabilidade bem fundamentada. Quando um ator não precisa mostrar preocupação em penetrar a reserva pessoal normal do receptor, e não precisa ter medo de contaminá-lo através de qualquer penetração de sua privacidade, dizemos que o ator está em termos de familiaridade com o receptor. (A mãe que se sente livre para limpar o nariz de seu filho é um exemplo extremo.) Quando o ator precisa demonstrar circunspecção em sua abordagem do receptor, falamos de não familiaridade ou respeito. As regras que governam a conduta entre dois indivíduos podem, mas não precisam, ser simétricas em relação à familiaridade ou ao respeito. Parece haver algumas relações típicas entre a distância cerimonial e outros tipos de distância sociológica. Entre pessoas de estatuto igual, podemos esperar encontrar a interação guiada pela familiaridade simétrica. Entre superior e subordinado, podemos esperar encontrar relações assimétricas, tendo o superior o direito de exercer certas familiaridades que o subordinado não tem permissão de retribuir. Assim, no hospital de pesquisa, os médicos tendiam a chamar as enfermeiras pelos seus primeiros nomes, enquanto as enfermeiras respondiam com o tratamento "educado" ou "formal". Da mesma forma, em organizações comerciais americanas, o chefe pode atenciosamente perguntar ao ascensorista como vão os filhos deste, mas essa entrada na vida de outra pessoa pode ser bloqueada para o ascensorista, que pode agradecer pela preocupação, mas não retribuí-la. Talvez a forma mais clara disto seja encontrada na relação entre psiquiatra e paciente, onde o psiquiatra tem o direito de tocar em aspectos da vida do paciente que o próprio paciente não se permite tocar, enquanto obviamente este privilégio não é retribuído. (Há alguns psicanalistas que acreditam ser desejável "analisar a contratransferência com o paciente", mas esta, ou qualquer outra familiaridade da parte do paciente, é fortemente condenada pelos órgãos psicanalíticos oficiais.) Os pacientes, especialmente os psiquiátricos, podem não ter sequer o direito de questionar seu médico quanto à opinião dele sobre os seus próprios casos; entre outras coisas, isto os colocaria num conta to íntimo demais com uma área do conhecimento em que os médicos investem sua separação especial do público leigo que eles servem. 66

Apesar dessas correlações entre a distância cerimonial e outros tipos de distância serem típicas, precisamos ter bastante clareza quanto ao fato de que outras relações muitas vezes são encontradas. Assim, pessoas de estatuto igual que não se conhecem bem podem estar em termos de respeito recíproco, e não familiaridade. Além disso, há muitas organizações nos Estados Unidos em que as diferenças de posição são vistas como uma ameaça tão grande ao equilíbrio do sistema que o aspecto cerimonial do comportamento funciona não como uma forma de expressar iconicamente essas diferenças, mas como uma forma de cuidadosamente contrabalançá-las. No hospital de pesquisa que foi estudado, os psiquiatras, psicólogos e sociólogos faziam parte de um único grupo cerimonial em relação ao tratamento pelo primeiro nome, e essa familiaridade simétrica aparentemente servia para mitigar alguma sensação da parte dos psicólogos e sociólogos de que eles não eram membros iguais da equipe, o que realmente não eram. Da mesma forma, num estudo de gerentes de pequenas empresas, o autor14 descobriu que funcionários de postos de gasolina tinham o direito de interromper seu chefe, dar tapinhas em suas costas, zombar dele, usar seu telefone e tomar outras liberdades, e que essa permissividade ritual parecia fornecer um modo através do qual o gerente conseguia manter o ânimo e a honestidade de seus empregados. Precisamos perceber que organizações bastante semelhantes estruturalmente podem ter estilos de deferência muito diferentes, e que os padrões de deferência são parcialmente uma questão de moda variável. Em nossa sociedade, as regras que tratam da manutenção da distância são numerosas e fortes. Elas tendem a enfocar certos assuntos, como lugares físicos e propriedades definidas como "próprias" do receptor, o equipamento sexual do corpo, etc. Um foco importante de evitação por deferência consiste no cuidado verbal que os atores são obrigados a exercer para não trazer para a discussão assuntos que possam ser dolorosos, constrangedores ou humilhantes para o receptor. Nas palavras de Simmel: O mesmo tipo de círculo que envolve o homem - ainda que seja valorizado de forma muito diferente - é preen-

14. Artigo inédito preparado para Social Research, Inc., 1952. 67


chido por seus negócios e características. Penetrar esse círculo através de sua percepção constitui uma violação de sua personalidade. Assim como a propriedade material é, por assim dizer, uma extensão do seu eu, e qualquer interferência com nossa propriedade é, por essa razão, considerada uma violação da pessoa, também há uma propriedade privada intelectual, cuja violação causa uma lesão do eu no seu próprio centro. A discrição é simplesmente a sensação de que existe um direito em relação à esfera dos conteúdos imediatos da vida. É claro que a discrição difere em sua extensão com personalidades diferentes, assim como as posições de honra e propriedade têm raios diferentes em relação a indivíduos "próximos", e estranhos, e pessoas indiferentes15.

A evitação por deferência pode ser ilustrada pela Enfermaria A, onde as regras a esse respeito eram bastante institucionalizadas . O fato de que duas das pacientes tiveram experiência num hospital psiquiátrico do estado não era abordado nem em conversas sérias nem por brincadeira, exceto quando as próprias mulheres o traziam à tona; o mesmo ocorria com a idade dessas pacientes (que estavam nos meados de seus trinta anos). O fato de que os dois pacientes masculinos se opunham ao serviço militar nunca era abordado, nem mesmo por eles. O fato de que uma das pacientes era cega e outra negra nunca era discutido pelos outros na presença delas. Quando uma paciente pobre se recusou a participar de uma excursão dizendo ser indiferente, sua racionalização para não sair foi aceita e sua ficção foi respeitada, ainda que os outros soubessem que ela queria ir, mas tinha vergonha por não possuir um casaco apropriado. Não se perguntava sobre as sensações de pacientes prestes a receber drogas experimentais, ou que acabavam de receber drogas, a não ser que eles próprios abordassem o tópico. Mulheres solteiras, fossem pacientes ou enfermeiras, não eram questionadas diretamente sobre namorados. Informações sobre afiliações religiosas eram oferecidas, mas raramente requisitadas.

15. SIMMEL, G. The Sociology ofCeorg Simmel. Op. cit., p. 322. 16. Agradeço ao Dr. Seymour Perlin por chamar minha atenção a algumas destas evitações e por apontar sua importância.

A violação de regras tratando da privacidade e separação é um fenómeno que pode ser estudado de perto em enfermarias psiquiátricas porque normalmente os pacientes e a equipe causam muitas dessas violações. Às vezes ela surge daqueles que são considerados os requerimentos substantivos ou instrumentais da situação. Quando um paciente psiquiátrico é admitido num hospital, costumeiramente é feita uma lista com todos os seus pertences; isto requer que ele se entregue a outros de uma forma que ele pode ter aprendido a definir como uma humilhação. Periodicamente, seus pertences podem ser revistados num esforço geral para livrar a enfermaria de "objetos afiados", bebidas, narcóticos e outros contrabandos. A presença de uni microfone que se sabe que está escondido no quarto de todos os pacientes e ligado a um alto-falante na estação das enfermeiras é uma invasão adicional (mas que só ocorre nos hospitais mais novos); a censura de cartas para fora do hospital é outra. A psicoterapia, especialmente quando o paciente compreende que outros membros da equipe aprenderão sobre o seu progresso e receberão inclusive um relato detalhado sobre o caso, é outra invasão desse tipo; também o é a prática de fazer com que as enfermeiras e os assistentes "mapeiem" o curso das sensações e atividades diárias do paciente. Os esforços da equipe para "formar relações" com os pacientes, para quebrar períodos de retraimento no interesse da terapia, é outro exemplo. Formas clássicas de "tratamento de não pessoas" são encontradas, com os membros da equipe respeitando tão pouco a evitação por deferência que discutem intimidades de um paciente na presença dele como se ele simplesmente não estivesse lá. O banheiro não tem porta, ou, se tiver, ela não tem tranca; os dormitórios coletivos, especialmente no caso de pacientes de classe média, são outro ataque à privacidade. O tratamento dado a pacientes "muito perturbados" em muitos hospitais públicos grandes leva a uma direção semelhante, com a medicação forçada, pacotes de gelo aplicados ao corpo nu, ou o confinamento nu numa solitária vazia que pode ser observada pela equipe e outros pacientes. Outro exemplo é a alimentação forçada, em que um paciente mudo assustado que poderia desejar manter alguns alimentos longe de sua boca enfrenta um assistente que precisa garantir que os pacientes sejam alimentados.

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Podemos fazer um paralelo entre as invasões de privacidade que têm uma justificativa técnica instrumental e aquelas de uma natureza mais puramente cerimonial. Desta forma, pacientes "psicóticos" e "em atuação" são aqueles que muito provavelmente ultrapassarão os limites da polidez e farão perguntas constrangedoras para seus colegas e a equipe, ou que farão elogios que normalmente não teriam direito de fazer, ou realizarão gestos de apreciação como abraçar ou beijar, que são considerados inapropriados. Assim, na Enfermaria B, membros masculinos da equipe eram afligidos por enunciados como "Por que você se cortou ao barbear desse jeito", "Por que você sempre usa as mesmas calças, estou cansada delas", "Olhe toda essa caspa que você tem". Ao se sentar ao lado de uma das pacientes, um membro masculino da equipe poderia ter que se afastar continuamente para manter uma distância aparentemente segura entre ele e a paciente. Algumas das formas usadas pelos indivíduos na Enfermaria A para manter distância ficavam claras em contraste com a incapacidade dos pacientes da Enfermaria B de fazer isso. Na Enfermaria A, a regra de que os pacientes deviam ficar fora da estação das enfermeiras era obedecida. Os pacientes esperavam um convite ou, o que acontecia costumeiramente, ficavam na porta para poder falar com as pessoas na estação sem se aproximar demais. Assim, não era necessário que a equipe trancasse a porta da estação quando uma enfermeira estava lá. Na Enfermaria B não era possível manter três das pacientes fora da estação simplesmente com pedidos, e por isso a porta tinha que ser trancada para manter a privacidade. Mesmo assim, as paredes da estação eram efetivamente derrubadas por batidas e gritos contínuos. Em outras palavras, na Enfermaria A, o anel protetor que as enfermeiras e assistentes criavam ao redor de si quando se retiravam para a estação era respeitado pelos pacientes, o que não ocorria na Enfermaria B. Posso citar um segundo exemplo. Os pacientes na Enfermaria A tinham sentimentos conflitantes sobre alguns de seus médicos, mas cada paciente conhecia um ou dois médicos de que gostava. Assim, à mesa, nas refeições, quando um dos médicos favoritos passava, havia uma troca de cumprimentos; mas, em termos cerimoniais, apenas isso. Ninguém consideraria apropriado perseguir os medi-

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cos, atormentá-los e, de modo geral, invadir seu direito de separação. Entretanto, na Enfermaria B, a entrada de um médico muitas vezes era um sinal para algumas das pacientes saírem correndo na direção dele, tomando liberdades afetivas como segurar a mão dele ou envolvê-lo pelo ombro, e então andavam com ele no corredor, numa conversa afetiva de brincadeira. E muitas vezes, quando um médico se retirava atrás de uma das portas de escritórios da enfermaria, pacientes batiam na porta e olhavam pela janela de vidro, e se recusavam a manter a distância esperada de outras formas. Uma paciente da Enfermaria B, a Sra. Baum, parecia ter um talento especial para adivinhar o que seria uma invasão da privacidade de outras pessoas. Por exemplo, numa excursão de compras, ela entrava atrás do balcão ou examinava os conteúdos da sacola de um estranho. Outras vezes, ela entrava no carro de um estranho num cruzamento e pedia uma carona. De modo geral, ela dava ao estudante um lembrete constante do vasto número de atos e objetos diferentes que são usados como marcadores das fronteiras da privacidade, sugerindo que, no caso de algumas "desordens mentais", a sintomatologia é especificamente, e não apenas incidèntalmente, uma manutenção imprópria da distância social. A análise da evitacão por deferência foi às vezes prejudicada porque existe um outro tipo de evitação cerimonial, um tipo autoprotetor, que se parece com a coerção por deferência, mas é analiticamente bastante diferente. Assim como um indivíduo pode evitar um objeto para não poluí-lo ou profaná-lo, ele pode evitar um objeto para não ser poluído ou profanado por ele. Por exemplo, na Enfermaria B, quando a Sra. Baum estava num estado paranóico, ela se recusava a permitir que sua filha aceitasse um fósforo de um assistente negro, parecendo sentir que o conta to com um membro de um grupo contra o qual ela tinha preconceitos seria poluidor; da mesma forma, quando ela beijava os médicos e enfermeiras num bom humor de aniversário, ela dava a impressão de que tentava, mas não conseguia se forçar a beijar esse assistente. Parece que, de modo geral, evitamos uma pessoa de alta posição devido à deferência a ela, e evitamos uma pessoa de posição inferior devido a uma preocupação autoprotetora. Talvez a distância social às vezes cuidadosamente mantida entre iguais implique ambos os tipos de evita-

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cão por ambas as partes. De qualquer forma, a semelhança dos dois tipos de evitação não é profunda. Uma enfermeira que se mantém longe de um paciente por causa de uma compreensão simpática de que ele quer ficar sozinho tem uma certa expressão em seu rosto e corpo; quando ela mantém a mesma distância física de um paciente porque ele é incontinente e cheira mal, ela provavelmente terá uma expressão diferente. Além disso, as distâncias que um ator mantém por deferência a outros diminuem quando sua posição sobe, mas as distâncias autoprotetoras aumentam17. Eu sugeri os rituais de evitação como um dos principais tipos de deferência. Um segundo tipo, chamado rituais de apresentação, abrange atos através dos quais o indivíduo confirma especificamente aos receptores como ele os estima e como os tratará na interação prestes a ocorrer. As regras que tratam dessas práticas rituais envolvem prescrições específicas, e não proscrições específicas; enquanto os rituais de evitação especificam o que não deve ser feito, os rituais de apresentação especificam o que deve ser feito. Podemos retirar alguns exemplos da vida social na Enfermaria A mantida pelo grupo consistindo de pacientes, assistentes e enfermeiras. Eu acredito que esses rituais de apresentação não são muito diferentes daqueles encontrados em muitas outras organizações de nossa sociedade. Quando membros da enfermaria se cruzavam, normalmente trocavam saudações, cuja extensão dependia do período decorrido desde a última saudação e o período que parecia provável antes da próxima. Na mesa, quando os olhos se encontravam, um breve sorriso de reconhecimento era trocado; quando alguém partia para o fim de se17. As pesquisas sobre distância social surpreendentemente ignoram o fato de que um indivíduo pode manter distância de outros porque eles são sagrados demais para ele, assim como porque eles não são sagrados o bastante. A razão para esse erro persistente constitui um problema da sociologia do conhecimento. De modo geral, seguindo os alunos de Radcliffe-Brown, precisamos distinguir entre a "sacralidade boa", que representa algo puro demais para entrarmos em contato, e a "sacralidade má", que representa algo impuro demais para entrarmos em contato, contrastando ambos esses estados e objetos sagrados com questões ritualmente neutras (cf. SRINIVAS, M.M. Religion and Society Among the Coorgs of South índia. Oxford: Oxford University Press, 1952, p. 106-107). Radcliffe-Brown (Taboo... Op. cit.) não apresenta a cautela de que em algumas sociedades a distinção entre o sagrado bom e o sagrado mau é muito menos clara do que na nossa. 72

mana, um adeus envolvendo uma pausa na atividade sendo desempenhada e uma breve troca de palavras eram envolvidos. De qualquer forma, havia um entendimento de que, quando os membros da enfermaria estivessem numa posição física capaz de entrar em contato olho a olho de algum tipo, esse contato seria realizado. Parecia que qualquer outra coisa não demonstraria o respeito apropriado para o estado de relações que existia entre os membros da enfermaria. Práticas relacionadas a "perceber" qualquer mudança de aparência, estatuto ou reputação estavam associadas às saudações, como se essas mudanças representassem um compromisso da parte do indivíduo modificado que precisasse ser subscrito pelo grupo. Roupas novas, penteados novos, ocasiões de estar "bem-vestido" evocavam uma rodada de elogios, independente do que o grupo sentisse sobre a melhoria. Da mesma forma, era provável que qualquer esforço da parte de um paciente para fazer alguma coisa na sala de terapia ocupacional ou de desempenhar algo bem em outras formas fosse louvado pelos outros. Os membros da equipe que participavam do teatro amador do hospital eram elogiados e, quando uma das enfermeiras marcava casamento, fotos de seu noivo e da família dele eram vistas e aprovadas por todos. Através disto, um membro da enfermaria tendia a ser salvo do constrangimento de se apresentar para os outros como alguém cujo valor tinha crescido e receber uma resposta como alguém cujo valor tinha diminuído, ou permanecido o mesmo. Outra forma de deferência por apresentação era a prática da equipe e dos pacientes claramente pedindo para todo e qualquer paciente participar de excursões, terapia ocupacional, concertos, conversas durante as refeições, e outras formas de atividade em grupo. Recusas eram aceitas, mas todos os pacientem recebiam ofertas. Outra forma padrão de deferência por apresentação na Enfermaria A era a realização de pequenos serviços e assistências. As enfermeiras faziam comprinhas para os pacientes na cidade local; pacientes que voltavam de visitas residenciais pegavam outros pacientes em seu carro para evitar que eles tivessem que voltar por transporte público; pacientes masculinos consertavam as coisas que homens consertam bem, e as pacientes femininas devolviam o serviço. A comida vinha da cozinha já dividida em bandejas individuais, mas 73


em cada refeição uma negociação animada de troca de comida ocorria, incluindo doações em que aqueles que não gostavam de certos alimentos os davam para aqueles que gostavam. A maioria dos membros da enfermaria se revezava no transporte das bandejas de comida do carrinho da cozinha para a mesa, como o faziam trazendo torradas e café para os outros da mesa lateral. Esses serviços não eram trocados em termos de um calendário formal preparado para garantir justiça, e sim uma coisa não planejada, através da qual o ator conseguia demonstrar que os objetivos privados do receptor eram algo que os outros presentes participavam com simpatia. Eu mencionei quatro formas muito comuns de deferência por apresentação: saudações, convites, elogios e pequenos serviços. Através de todos eles, o receptor é informado que ele não é uma ilha isolada, e que os outros estão, ou desejam estar, envolvidos com ele e com suas preocupações pessoais particulares. Em conjunto, esses rituais fornecem um rastreamento simbólico contínuo de até que ponto o eu do receptor não foi fechado e obstruído em relação aos outros. Dois tipos principais de deferência foram ilustrados: rituais de apresentação através dos quais o ator representa concretamente sua apreciação do receptor; e rituais de evitacão, assumindo a forma de proscrições, proibições e tabus, que implicam em atos que o ator deve se abster de realizar se não quiser violar o direito do receptor de mante-lo a distância. Nós temos familiaridade com essa distinção devido à classificação de Durkheim do ritual em ritos positivos e negativos18. Ao sugerir que há coisas que devem ser ditas e feitas para um receptor, e coisas que não devem ser ditas nem feitas, deve ficar claro que há uma oposição e conflito inerente a essas duas formas de deferência. Perguntar sobre a saúde de um indivíduo, o bem-estar da família dele e o estado de seus negócios é apresentar a ele um sinal de preocupação simpática; mas, de certa forma, fazer essa apresentação é invadir a reserva pessoal do indivíduo, como ficará claro se um ator de estatuto errado fizer a ele essas perguntas, ou se um evento recente tornou tal questão dolorosa de responder. Como Durkheim sugeriu, "a personalidade humana é uma coisa sagrada; não ousamos violá-la nem infringir suas fronteiras, enquanto ao mesmo tem18. DURKHEIM, É. The Elementary Forms ofthe Rdigious Life. Op. cit., p. 299. 74

po o maior bem está na comunhão com os outros"19. Eu gostaria de citar dois exemplos das enfermarias dessa oposição inerente às duas formas de deferência. Na Enfermaria A, como nas outras enfermarias do hospital, havia um "sistema de toque"20. Certas categorias de pessoal tinham o privilégio de expressar sua afeição e intimidade com os outros através do ritual de contato corporal com eles. O ator coloca seus braços em torno da cintura do receptor, passa uma mão na sua nuca, acaricia o seu cabelo e a sua testa, ou segura a mão dele. É claro que conotações sexuais são oficialmente excluídas. A forma mais frequente que o ritual assumia era uma enfermeira estendendo tal confirmação por toque para um paciente. Não obstante, assistentes, pacientes e enfermeiras formavam um grupo em relação a direitos de toque, e esses direitos eram simétricos. Qualquer um desses indivíduos tinha o direito de tocar qualquer membro de sua própria categoria ou qualquer membro das categorias dos outros. (Na verdade, algumas formas de toque, como lutas de brincadeira ou jogos de braço de ferro eram intrinsecamente simétricos.) É claro que alguns membros da enfermaria não gostavam do sistema, mas isto não alterava os direitos dos outros de incorporá-los a ele. A familiaridade implícita em tais trocas era afirmada de outras formas, como o direito simétrico de chamar os outros pelo primeiro nome. Podemos adicionar que em muitos hospitais psiquiátricos os pacientes, assistentes e enfermeiras não formam um único grupo para propósitos cerimoniais, e a obrigação dos pacientes de aceitar o contato físico amigável da equipe não é retribuída. Além dessas relações de toque simétricas na enfermaria, também havia outras assimétricas. Os médicos tocavam outras categorias como um meio de transmitir apoio e conforto amigável, mas as outras categorias tendiam a sentir que seria presunçoso da parte de-

19. DURKHEIM, É. "The Determination of Moral Facts". Op. cit., p. 37. 20. A única fonte que conheço sobre sistemas de toque é a obra muito interessante de Edward Gross (Informal Relations and the Social Organization ofWork. Chicago: Chicago University Press, 1949 [tese de doutorado inédita] sobre os direitos de beliscar mulheres no papel de secretárias particulares num escritório comercial. 75


Ias retribuir o toque de um médico, quanto mais iniciar tal conta to com ele . Deve estar claro que se quisermos manter um sistema de toques, como ocorre em muitos hospitais dos Estados Unidos, e se os membros da enfermaria quiserem receber a confirmação e apoio que esse sistema ritual fornece, então pessoas que não sejam médicos que venham viver ou trabalhar na enfermaria devem se tornar intimamente disponíveis aos outros presentes. Os direitos de separação e inviolabilidade que são exigidos e concedidos em muitos outros estabelecimentos de nossa sociedade aqui precisam ser abandonados, nesse caso particular. O sistema de toque, para resumir, só é possível se os indivíduos abandonarem o direito de manter os outros a uma distância física. Um segundo exemplo do sentido em que as duas formas de deferência agem em oposição uma à outra tem a ver com a questão da participação social. Na Enfermaria A havia um sentimento forte de solidariedade de grupo entre todas as categorias não médicas - enfermeiras, assistentes e pacientes. Uma forma de expressão disto era através da participação conjunta em refeições, jogos de carteado, visitas a quartos, reuniões para assistir televisão, terapia ocupacional, e excursões. Normalmente, os indivíduos estavam dispostos não só a participar dessas atividades, mas também a fazê-lo com prazer e entusiasmo visíveis. Eles entregavam-se a essas ocasiões e, através dessa dádiva, o grupo florescia. No contexto desse padrão de participação, e apesar de sua importância para o grupo, era compreendido que os pacientes tinham o direito ao descontentamento. Apesar de ser considerado uma

21. O enfermeiro-chefe durante esse período iniciava toques no braço com o médico que atuava como administrador da enfermaria. Isto parecia criar uma percepção falsa e era considerado atrevimento. É interessante notar que o enfermeiro deixou o serviço. Devemos adicionar que em uma enfermaria do hospital, dedicada ao estudo profundo de um pequeno número de garotos altamente delinquentes, os pacientes e a equipe de todas as categorias, incluindo os médicos, aparentemente formavam um único grupo cerimonial. Os membros do grupo eram ligados por regras de familiaridade simétricas, de modo que era permissível que um garoto de oito anos chamasse o administrador da enfermaria por seu primeiro nome, brincasse com ele, e falasse palavrões na presença dele. 76

afronta à solidariedade de grupo chegar atrasado para o café da manhã, os atrasados eram censurados apenas levemente por isso. Uma vez na mesa, o paciente era obrigado a retribuir os cumprimentos que recebia, mas depois disto, se seu temperamento e modos expressassem claramente seu desejo de ser deixado em paz, não se faria nenhum esforço para atraí-lo para a conversa da mesa. Se um paciente pegasse sua comida da mesa e voltasse para o seu quarto ou para o salão de TV vazio, ninguém ia atrás dele. Se um paciente se recusasse a participar de uma excursão, faziam uma piadinha, avisando o indivíduo sobre aquilo que ele perderia, e não se falava mais nisso. Se um paciente se recusasse a jogar baralho num momento em que os outros jogadores precisavam de um quarto participante, protestos jocosos eram feitos, mas não continuados. E em qualquer ocasião, se o paciente parecesse estar deprimido, mal-humorado, ou mesmo um tanto desordenado, fazia-se um esforço para não perceber isso ou para atribuir isso a uma necessidade de cuidado e descanso físicos. Esses tipos de delicadezas e restrições de exigências pareciam servir a função social de manter a vida informal livre da contaminação de ser um "tratamento" ou uma prescrição, e significava que em alguns assuntos o paciente tinha o direito de impedir a intrusão quando, onde e como ele quisesse. Entretanto, fica claro que o direito de se retrair para a privacidade era um direito concedido à custa dos tipos de ato através dos quais esperava-se que o indivíduo demonstrasse suas relações com os outros na enfermaria. Há uma oposição inescapável entre mostrar um desejo de incluir um indivíduo e mostrar respeito pela sua privacidade. Como uma implicação desse dilema, precisamos perceber que o intercurso social envolve uma dialética constante entre rituais de apresentação e de evitação. É preciso manter uma tensão peculiar, pois esses requerimentos opostos da conduta precisam, de alguma forma, ser separados um do outro e apesar disso realizados juntos na mesma interação: os gestos que levam um ator para um receptor também precisam significar que as coisas não serão levadas longe demais. Porte Eu sugeri que o componente cerimonial do comportamento concreto tem pelo menos dois elementos básicos, a deferência e o 77


porte. A deferência, definida como a apreciação que um indivíduo mostra sobre outro para esse outro, seja através de rituais de evitação ou de apresentação, foi discutida e agora posso tratar do porte. Com "porte", quero me referir ao elemento do comportamento cerimonial do indivíduo tipicamente comunicado através da postura, vestuário e aspecto, que serve para expressar àqueles na presença imediata dele que ele é uma pessoa de certas qualidades desejáveis ou indesejáveis. Em nossa sociedade, o indivíduo de porte "bom" ou "apropriado" demonstra atributos como: discrição e sinceridade; modéstia em afirmações sobre o eu; espírito esportivo; controle da fala e dos movimentos físicos; autocontrole sobre suas emoções, apetites e desejos; aprumo sob pressão; e assim por diante. Quando tentamos analisar as qualidades comunicadas através do porte, alguns temas ficam aparentes. O indivíduo de porte bom possui os atributos popularmente associados com o "treinamento de caráter" ou "socialização", que são implantados quando um neófito de qualquer tipo é domesticado. Correia ou erroneamente, os outros tendem a usar tais qualidades como um diagnóstico, como evidência daquilo que um ator normalmente é em outros momentos e como realizador de outras atividades. Além disso, o indivíduo de porte apropriado é alguém que selou muitas avenidas de percepção e penetração que os outros poderiam levar a ele, e que por isso é improvável que seja contaminado por elas. Talvez o mais importante seja que o bom porte é aquilo que é requisitado de um ator se ele quiser ser transformado em alguém em que se pode confiar para se manter como um participante da interação, aprumado para a comunicação, e para agir de forma que os outros não se coloquem em perigo ao se apresentarem como participantes da interação com ele. Mais uma vez, devemos notar que o porte envolve atributos derivados de interpretações que outros fazem da forma pela qual o indivíduo cuida de si durante o intercurso social. O indivíduo não pode estabelecer esses atributos sozinhos garantindo verbalmente que ele os possui, apesar de às vezes ele tentar, impulsivamente, fazer isso. (Entretanto, ele pode se forçar a se conduzir de forma que os outros, através da interpretação deles de sua conduta, imputarão a ele os tipos de atributos que ele gostaria que os outros enxergas-

sem nele.) Então, de modo geral, através do porte, o indivíduo cria uma imagem de si, mas, para ser exato, esta imagem não é para os seus próprios olhos. É claro que isto não deve nos impedir de ver que o indivíduo que age com bom porte pode fazer isso porque coloca um valor apreciável sobre si mesmo, e que aquele que não consegue se portar apropriadamente pode ser acusado de não ter "respeito próprio" ou de se desvalorizar perante seus próprios olhos. Como no caso da deferência, um objeto no estudo do porte é coletar todos os atos cerimonialmente relevantes que um indivíduo em particular realiza na presença de cada uma das várias pessoas com quem ele entra em conta to, interpretar esses atos procurando o porte expresso simbolicamente através deles, e então juntar esses significados numa imagem do indivíduo, uma imagem dele aos olhos dos outros. As regras do porte, como as regras de deferência, podem ser simétricas ou assimétricas. Entre pessoas de posição igual, regras simétricas de porte parecem muitas vezes ser prescritas. Entre desiguais, podemos encontrar muitas variações. Por exemplo, em reuniões da equipe nas unidades psiquiátricas do hospital, os médicos tinham o privilégio de xingar, mudar o tópico da conversa, e de sentar em posições indignas; os assistentes, por outro lado, tinham o direito de participar de reuniões da equipe e de fazer perguntas durante elas (de acordo com a orientação de terapia-mifieu dessas unidades de pesquisa), mas implicitamente se esperava que eles se comportassem com maior circunspecção do que era necessário para os médicos. (Isto foi apontado por uma terapeuta ocupacional perceptiva que afirmou que ela era sempre lembrada que uma jovem psiquiatra meiga era na verdade uma médica pelo fato de que essa psiquiatra exercia essas prerrogativas de porte informal.) O caso extremo aqui talvez seja a relação entre mestre e criado vista nos casos em que valetes e empregadas são forçados a realizar de maneira digna serviços indignos. Da mesma forma, os médicos tinham o direito de perambular na estação das enfermeiras, vadiar no balcão de medicamentos da estação, e brincar com as enfermeiras; as outras categorias participavam dessa interação informal com os médicos, mas apenas depois dos médicos iniciá-la. 79


Na Enfermaria A mantinham-se padrões de porte que parecem ser típicos da sociedade de classe média americana. O ritmo de alimentação na mesa sugeria que ninguém presente estava ansioso demais para comer, com tão pouco controle sobre seus impulsos, ou tão ciumento de seus direitos, a ponto de engolir sua comida vorazmente ou pegar mais do que sua parte. No pinochle, o jogo de baralho favorito, os jogadores induziam os espectadores a ficarem com as cartas deles, e, com consideração, os espectadores recusavam a oferta, expressando assim que não tinham sido tomados pela paixão pelo jogo. Ocasionalmente, um paciente aparecia na sala comunitária ou em refeições vestindo um roupão de banho (uma prática permitida aos pacientes no hospital), mas normalmente era mantida uma moda casual, ilustrando que o indivíduo não estava aparecendo diante dos outros de forma desleixada, ou apresentando muito de si livremente demais. Poucas profanidades eram empregadas, e nenhum comentário sexual aberto ocorria. Na Enfermaria B o mau porte (para padrões de classe média) era muito comum. Isto pode ser exemplificado com o comportamento durante as refeições. Muitas vezes um paciente se atirava sobre um pedaço extra de comida, ou pelo menos encarava um pedaço extra cobiçosamente. Mesmo quando cada indivíduo na mesa podia receber uma parte igual, uma ansiedade exagerada era demonstrada pela prática de se pegar toda a parte de uma vez ao invés de esperar até uma porção ser ingerida. Ocasionalmente, pacientes vinham à mesa seminus. Um paciente frequentemente arrotava alto nas refeições, e era às vezes flatulento. De vez em quando, ocorriam manipulações bagunceiras de comida. Xingamentos e palavrões eram comuns. Os pacientes às vezes empurravam suas cadeiras para longe da mesa apressadamente e saíam correndo para outra sala, voltando para a mesa da mesma forma violenta. Às vezes eles emitiam sons altos sugando canudos em garrafas de refrigerante vazias. Através dessas atividades, os pacientes expressavam para a equipe e para seus colegas que seus eus não tinham um porte apropriado. Vale a pena estudar essas formas de desvio de conduta porque elas nos fazem perceber alguns aspectos do bom porte que normalmente consideramos evidentes; para aspectos ainda mais normal-

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mente considerados evidentes, precisamos estudar as enfermarias "dos fundos"22 em hospitais psiquiátricos típicos. Lá, os pacientes tendem a se desnudar, a serem incontinentes e a se masturbar abertamente; eles se coçam violentamente; babam e deixam o nariz escorrer sem se preocupar; hostilidades repentinas podem estourar, e imodéstias "paranóicas" podem ser projetadas; a fala ou a atividade motora podem ocorrer num ritmo maníaco ou deprimido, ou rápido demais ou devagar demais para serem consideradas apropriadas; homens e mulheres podem se comportar como se fossem do outro sexo, ou como se não fossem velhos o bastante para ter um sexo. Tais enfermarias, obviamente, são os ambientes clássicos do porte ruim. Podemos mencionar um último ponto sobre o porte. Sejam quais forem seus motivos para aparecer com um porte bom diante de outras pessoas, supomos que o indivíduo exercerá sua própria vontade para fazer isso, ou que ele cooperará docilmente se for a tarefa de outra pessoa ajudá-lo a esse respeito. Em nossa sociedade, um homem penteia seu próprio cabelo até que ele fique longo demais, e então vai para um barbeiro e segue instruções enquanto o cabelo é cortado. Essa submissão voluntária é crucial, pois serviços pessoais desse tipo são feitos próximo do centro da inviolabilidade do indivíduo e podem facilmente resultar em transgressões; o servidor e o servido precisam cooperar intimamente para que elas não ocorram. Entretanto, se um indivíduo não mantiver aquilo que os outros consideram uma aparência pessoal apropriada, e se ele se recusar a cooperar com aqueles encarregados de mante-la para ele, então é provável que a tarefa de torná-lo apresentável contra a sua vontade custe a ele, no momento, grande parte da sua dignidade e deferência, e isto, por sua vez, pode criar sentimentos complexos naqueles que se encontram forçados a fazer com que ele pague o preço. Este é um dos dilemas ocupacionais daqueles empregados para tornar crianças e pacientes psiquiátricos apresentáveis. É fácil ordenar aos assistentes a "vestir bem" e barbear os pacientes masculinos no dia das visitas e, sem dúvida, quando isto ocorre, os pacientes apa22. Em hospib _s psiquiátricos mais antigos, as "enfermarias dos fundos" [back wards] eram usadas para confinar os pacientes mentalmente mais comprometidos, muitas vezes em acomodações significativamente mais precárias do que as dos pacientes considerados mais recuperáveis [N.T.]. 81


recém mais favoravelmente, mas durante o processo de criação dessa aparência - nos chuveiros ou na barbearia, por exemplo - os pacientes podem ser submetidos a indignidades extremas. Deferência e porte Deferência e porte são termos analíticos; empiricamente, há muita sobreposição das atividades a que eles se referem. Um ato através do qual o indivíduo dá ou recusa deferência a outros tipicamente fornece meios para ele expressar o fato de ser um indivíduo com porte bom ou ruim. Podemos citar alguns aspectos dessa sobreposição. Primeiro, ao realizar um certo ato de deferência por apresentação, como ao oferecer uma cadeira a um convidado, o ator se encontra fazendo algo que pode ser feito com suavidade e segurança, expressando autocontrole e aprumo, ou com falta de jeito e incerteza, expressando um caráter irresoluto. Esta é, por assim dizer, uma conexão incidental e extrínseca entre deferência e porte. Ela pode ser exemplificada com informações recentes sobre relações entre médicos e pacientes, em que se sugere que uma das reclamações que um médico pode ter sobre alguns de seus pacientes é que eles não tomam banho antes de comparecer a um exame23; em que tomar banho é não só uma forma de prestar deferência ao médico, mas, ao mesmo tempo, é uma forma de o paciente se apresentar como uma pessoa limpa e de bom porte. Um outro exemplo é encontrado em atos como falar alto, gritar ou cantar, pois esses atos invadem o direito dos outros de serem deixados em paz enquanto ao mesmo tempo ilustram uma falta de controle sobre os sentimentos, ou seja, um porte ruim. A mesma conexão entre deferência e porte tem influência nas dificuldades cerimoniais associadas com a interação intergrupos: os gestos de deferência esperados por membros de uma sociedade às vezes são incompatíveis com os padrões de porte mantidos por membros de outra. Por exemplo, durante o século XIX, as relações diplomáticas entre a Grã-Bretanha e a Cl, na foram constrangidas

23. DICHTER, E. APsychological Study oftheDoctor-Patient Relationship. [si]: Califórnia Medicai Association/Alameda County Medicai Association, 1950, p. 5-6.

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pelo fato de que a prostração que o imperador chinês exigia de embaixadores visitantes era considerada, por alguns embaixadores britânicos, incompatível com seu respeito próprio . Uma segunda conexão entre a deferência e o porte tem a ver com o fato de que uma disposição a dar a outros o que eles merecem como deferência é uma das qualidades que o indivíduo deve expressar para os outros através de sua conduta, assim como uma disposição de se conduzir com bom porte é, de modo geral, uma forma de mostrar deferência àqueles presentes.

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Apesar dessas conexões entre deferência e porte, a relação analítica entre eles é de complementaridade, e não de identidade. A imagem de si cuja manutenção através da conduta o indivíduo deve aos outros não é o mesmo tipo de imagem que esses outros são obrigados a manter sobre ele. As imagens de deferência tendem a apontar para a sociedade mais ampla fora da interação, ao lugar que o indivíduo atingiu na hierarquia dessa sociedade. As imagens de porte tendem a apontar para qualidades que qualquer posição social permite a seus representantes uma chance de exibir durante a, interação, pois essas qualidades tratam mais da forma pela qual o indivíduo gerência sua posição do que ao cargo e local dessa posição em relação às posições possuídas pelos outros. Além disso, a imagem de si cuja manutenção através da conduta o indivíduo deve aos outros é um tipo de justificação e compensação pela imagem dele que os outros são obrigados a expressar através de sua deferência a ele. Ambas as imagens podem, na verdade, agir como uma garantia e contrapeso sobre a outra. Num intercâmbio que pode ser encontrado em várias culturas, o indivíduo defere a convidados para mostrar como eles são bem-vindos e como é alta a estima que ele tem por eles; eles, por sua vez, recusam a oferta pelo menos uma vez, mostrando através de seu porte que não são presunçosos, imodestos, ou ansiosos demais para receber favores. Da mesma forma, um homem começa a se levantar para uma dama, mostrando respeito pelo sexo dela; ela interrompe e detém o gesto dele, mostrando que não é gananciosa quanto a seus direitos nessa capacidade, e que está pronta para definir a situação como uma en24. DOUGLAS, R.K. Society in China. Londres: Innes, 1895, p. 291-296. 83


tre iguais. Então, de modo geral, ao tratar os outros deferentemente damos a eles uma oportunidade de lidar com a indulgência com porte bom. Através dessa diferenciação de função simbolizadora o mundo tende a ser banhado em imagens melhores do que qualquer um merece, pois é prático significar uma grande apreciação dos outros oferecendo a eles indulgências deferentes, sabendo que algumas dessas indulgências serão recusadas como uma expressão de bom porte. Há ainda outras relações complementares entre deferência e porte. Se um indivíduo sente que deve demonstrar um porte apropriado para ter direito a tratamento com deferência, então ele precisa estar numa posição de fazer isso. Ele precisa, por exemplo, ser capaz de esconder dos outros aspectos de si que o tornariam indigno aos olhos deles, e de se esconder deles quando estiver num estado indigno, seja mental, de vestuário, de postura ou de ação. Os rituais de evitação que os outros realizam para ele dão a ele espaço de manobra, permitindo que apresente apenas um eu digno de deferência; ao mesmo tempo, essa evitação faz com que seja mais fácil para eles se garantir que a deferência que possuem para mostrar a ele é justificada. Para mostrar a diferença entre deferência e porte eu tratei da relação complementar entre eles, mas mesmo esse tipo de relação pode ser exagerado. Quando um indivíduo não demonstra a deferência apropriada a outros, isto não necessariamente os libera da obrigação de agir com bom porte na presença dele, por mais descontentes que eles possam ficar por ter que fazer isso. Da mesma forma, quando um indivíduo não se comporta com o porte apropriado, isto nem sempre permite que aqueles na presença dele não precisem tratá-lo com a deferência apropriada. É separando a deferência e o porte que podemos compreender muitas coisas sobre a vida cerimonial, como, por exemplo, que um grupo pode se destacar por excelência em uma dessas áreas enquanto tem uma má reputação na outra. É por isso que podemos encontrar um lugar para argumentos como os de De Quincey ,

25. DE QUINCEY, T. "French and English Manners". Collected Writings ofThomas De Quincey. Vol. XIV. Edimburgo: Adams and Charles Black, 1890, p. 327-334 [org. por David Mason], 84

que um inglês demonstra grande respeito próprio, mas pouco respeito para com os outros, enquanto um francês demonstra grande respeito para com os outros mas pouco para si mesmo. Podemos ver, então, que há muitas ocasiões em que não seria apropriado para um indivíduo comunicar algo sobre si mesmo que os outros estão prontos para comunicar sobre ele para ele, já que cada uma dessas duas imagens é uma garantia e justificação para a outra, e não um reflexo dela. A noção de Mead de que o indivíduo toma para si a atitude que os outros tomam para ele realmente parece ser uma simplificação exagerada. Em vez disso, o indivíduo precisa confiar nos outros para completar o retrato dele, no qual ele pode apenas pintar algumas partes. Cada indivíduo é responsável pela imagem de porte de si mesmo e a imagem de deferência dos outros, de forma que, para expressar um homem completo, os indivíduos precisam dar as mãos numa corrente de cerimónias, cada um dando deferentemente, com porte apropriado, para o outro à direita o que será recebido deferentemente do indivíduo à esquerda. Ainda que possa ser verdade que o indivíduo tem um eu único completamente próprio, a evidência dessa posse é totalmente um produto de trabalho cerimonial conjunto, e a parte expressa através do porte do indivíduo não é mais significativa que a parte comunicada pelos outros através de seu comportamento deferente para ele. Profanações cerimoniais Há muitas situações e muitas formas em que a justiça da cerimónia pode não ser mantida. Há ocasiões quando o indivíduo percebe que ele recebe deferência que o identifica erroneamente, seja numa posição mais alta ou mais baixa do que ele considera correta. Há outras ocasiões em que ele percebe que está sendo tratado de forma mais impessoal e sem-cerimônia do que ele considera apropriado e sente que seu tratamento deveria ser mais pontuado com atos de deferência, mesmo que estes possam chamar a atenção à sua posição subordinada. Uma ocasião frequente de dificuldade cerimonial ocorre em momentos de contato entre grupos, já que sociedades e subculturas diferentes têm formas diferentes de comunicar a deferência e o porte, significados cerimoniais diferentes para o mesmo ato, e quantidades de preocupação diferentes quanto a coisas como 85


aprumo e privacidade. Livros de viagem como o da Sra. Trollope26 estão cheios de material autobiográfico sobre esses mal-entendidos, e às vezes parecem ter sido escritos principalmente para torná-los públicos. Dos muitos tipos de transgressões cerimoniais, há um que um artigo preliminar sobre a cerimónia é obrigado a considerar: é o tipo que parece ser perpetrado de propósito e parece empregar conscientemente a própria linguagem da cerimónia para dizer aquilo que é proibido. O idioma através do qual os modos de conduta cerimonial apropriada são estabelecidos necessariamente cria formas de profanação idealmente efetivas, pois é apenas em referência a propriedades especificadas que podemos aprender a considerar o que será a pior forma possível de comportamento. Profanações devem ser esperadas, pois cada cerimónia religiosa cria a possibilidade de uma missa negra27. Quando estudamos indivíduos que estão em termos familiares entre si, e não precisam de muita cerimónia, muitas vezes encontramos ocasiões em que formas cerimoniais padrão que são inaplicáveis à situação são empregadas de forma considerada jocosa, aparentemente como um meio de "tirar sarro" de círculos sociais nos quais o ritual é empregado seriamente. Quando sozinhas, enfermeiras no hospital de pesquisa às vezes se tratavam humoristicamente como "Senhorita" - e médicos em condições similares às vezes se chamavam de "Doutor" com o mesmo tom de voz jocoso. Da mesma forma, às vezes atores ofereciam uma cadeira ou a precedência numa porta de forma elaborada para receptores com quem na verdade estavam em termos de familiaridade simétrica. Na Grã-Bretanha, onde a fala e o estilo social são claramente estratificados, podemos encontrar um grande número de exemplos dessa profanação humorística dos rituais, com pessoas de classe alta gozando os gestos cerimoniais da classe baixa, e pessoas da classe baixa, quando sozinhas entre si, devolvendo completamente o favor. A prática talvez alcance sua 26. SRA. TROLLOPE. Domestic Manners oftheAmericans. Londres: Whittaker/Treacher, 1832. 27. Também parece existir um tipo de profanação cerimonial em relação a regras substantivas. No Direito, aquilo que às vezes é chamado de "ações de despeito" servem como exemplos, assim como o fenómeno do vandalismo. Mas, como foi sugerido anteriormente, eles representam formas pelas quais a ordem substantiva é abusada por propósitos cerimoniais.

maior expressão no teatro de revista, onde atores de classe baixa mimetizam lindamente a conduta cerimonial da classe alta para uma plateia cuja posição está em algum lugar intermediário. Parte da profanação de brincadeira parece ser dirigida não a forasteiros, mas ao próprio receptor, provocando-o ligeiramente ou testando os limites rituais a seu respeito. Devemos dizer que em nossa sociedade esse tipo de brincadeira é direcionado por adultos àqueles de estirpe cerimonial inferior - crianças, idosos, criados, e assim por diante - como quando um atendente afetuosamente despenteia o cabelo de um paciente ou participa de tipos mais drásticos de provocações28. Antropólogos descreveram esse tipo de permissividade numa forma extrema no caso de "cunhados que são esposos secundários em potencial"29. Por mais aparentes que as insinuações agressivas dessa forma de conduta possam ser, o receptor recebe a oportunidade de agir como se nenhuma afronta séria à sua honra tivesse ocorrido, ou pelo menos nenhuma afronta mais séria do que a de ser definido como alguém com quem é possível fazer piadas. Na Enfermaria B, quando a Sra. Baum recebia um lençol pequeno demais para sua cama, ela o usava para divertidamente ensacar um dos membros da equipe. A filha dela às vezes empregava a prática de estourar grandes bolas de chiclete o mais perto possível do rosto de um membro da equipe sem tocá-lo, ou de acariciar o braço e mão de um membro masculino da equipe numa paródia de gestos afetivos, alegremente propondo intercurso sexual com ele. Um tipo menos brincalhão de profanação ritual pode ser encontrado na prática de macular o receptor de uma forma, e de um ângulo, em que ele mantém o direito de agir como se não tivesse recebido a mensagem profanadora. Na Enfermaria B, onde os membros da equipe tinham a obrigação ocupacional de "se relacionar" com os pacientes e responder a eles de forma amigável, as enfermeiras às vezes murmuravam vituperações sotto você quando os pacientes

28. Cf. TAXEL, H. Authority Structure in a Mental Hospital Ward. Chicago: Chicago University Press, 1953, p. 68 [dissertação de mestrado inédita]. • WILLOUGHBY, R.H. TheAttendant in the State Mental Hospital Chicago: Chicago University Press, 1953, p. 90 [dissertação de mestrado inédita]. 29. MURDOCK, G.P. Social Structure. Nova York: Macmillan, 1949, p. 282. 87


eram penosos e difíceis. Os pacientes, por sua vez, empregavam o mesmo artifício. Quando uma enfermeira voltava as costas, às vezes os pacientes mostravam a língua, davam "bananas" ou faziam caretas para ela. É claro que estas são formas padrões de desprezo ritual em nossa sociedade anglo-americana, constituindo um tipo de deferência negativa. Podemos citar outros exemplos. Em uma ocasião a Sra. Baum, para a diversão dos outros presentes, virou as costas para a janela da estação, curvou-se e levantou a saia, num ato de desprezo ritual que aparentemente já foi mais prevalente como um insulto padrão do que é hoje em dia. Em todos esses casos, vemos que, apesar de se tomarem liberdades cerimoniais com o receptor, ele não é tão desprezado a ponto de ser insultado "na cara". Essa linha entre aquilo que pode ser comunicado sobre o receptor, enquanto estamos num estado de fala com ele, e aquilo que só pode ser comunicado sobre ele, quando não estamos falando com ele, é uma instituição cerimonial básica em nossa sociedade, garantindo que seja provável que a interação face a face seja mutuamente de aprovação. Podemos compreender a profundidade dessa linha em enfermarias psiquiátricas, onde pacientes severamente perturbados podem ser observados cooperando com membros da equipe para manter uma ficção leve de que a linha está sendo mantida. Mas é claro que há situações em que um ator comunica a profanação ritual de um receptor enquanto está oficialmente engajado numa conversa com ele ou de forma em que a afronta não pode ser ignorada facilmente. Em vez de registrar e classificar essas afrontas rituais, os estudantes tendem a cobrir todas elas com uma tenda psicológica, rotulando-as como "agressões" ou "explosões hostis", e passando para outras questões de estudo. Em algumas enfermarias psiquiátricas, a profanação ritual face a face é um fenómeno constante. Os pacientes podem profanar um membro da equipe ou um colega cuspindo nele, es tapeando seu rosto, jogando fezes nele, rasgando suas roupas, empurrando-o da cadeira, tirando comida de sua mão, gritando em seu rosto, molestando-o sexualmente, etc. Na Enfermaria B, de vez em quando, Betty estapeava e socava o rosto de sua mãe, e pisava nos pés descalços dela com sapatos pesados; e a ofendia, na mesa, com aqueles palavrões que crianças de classe média normalmente evitam em referência a

seus pais, muito menos na presença deles. Devemos repetir que, apesar destas profanações poderem ser, do ponto de vista do ator, um produto do impulso cego, ou ter um significado simbólico especial , do ponto de vista da sociedade como um todo e de seu idioma cerimonial, estas não são infrações impulsivas aleatórias. Em vez disso, esses atos são exatamente aqueles calculados para comunicar um desrespeito e desprezo completo através de meios simbólicos. Não importa o que esteja na mente de um paciente, o arremesso de fezes num atendente é um uso de nosso idioma cerimonial tão formidável, de certa forma, quanto uma mesura feita com graça e floreio. Sabendo disso ou não, o paciente fala a mesma linguagem ritual que seus captores; ele meramente diz aquilo que eles não querem escutar, pois o comportamento do paciente que não carregue um significado ritual em termos do discurso cerimonial diário da equipe simplesmente não será percebido pela equipe. Além da profanação dos outros, os indivíduos, por várias razões e em várias situações dão a aparência de se profanarem, agindo de forma que parece propositalmente planejada para destruir a imagem que os outros têm deles como pessoas dignas de deferência. A mortificação cerimonial da carne é um tema em muitos movimentos sociais. O que parece estar envolvido é não apenas um porte ruim, mas sim os esforços concentrados de um indivíduo sensível a altos padrões de porte para agir contra seus próprios interesses e explorar arranjos cerimoniais apresentando-se da pior forma possível. Em muitas enfermarias psiquiátricas, o que parece ser autoprolanação para a equipe e outros pacientes é uma ocorrência comum. Por exemplo, podemos encontrar pacientes mulheres que sistematicamente arrancaram todo o seu cabelo, apresentando-se a partir de então com uma aparência que certamente será grotesca. Talvez a forma extrema para nossa sociedade seja encontrada em pacientes que comem as próprias fezes e se lambuzam com elas31.

30. SCHWARTZ, M.S. & STANTON, A.H. "A Social Psychological Study of Incontinence". Psychiatry, 13, 1959, p. 319-416. H. WITTKOWER, E.D. & LA TENDRESSE, J.D. "Rehabilitation of Chronic Schizophrenics by a New Method of Occupational Therapy". British Journal of Medicai Psychoíogy, 28, 1955, p. 42-47.


E claro que a autoprofanação também ocorre no nível verbal. Assim, na Enfermaria A, os altos padrões de porte eram quebrados pela paciente cega que na mesa às vezes forçava sobre os outros presentes uma consideração de sua enfermidade falando, de forma comiserada, sobre como ela era inútil para todos e que, não importa o que fosse dito, ela ainda era cega. Da mesma forma, na Enfermaria B, Betty tendia a comentar sobre como ela era feia, gorda, e como ninguém a desejaria como namorada. Em ambos os casos, essas autodepreciações, levadas além do limite da autodepreciação educada, eram consideradas um peso sobre os outros: eles estavam dispostos a exercer uma evitação protetora por deferência em relação às limitações do indivíduo, e consideravam injusto serem forçados a uma intimidade contaminante com os problemas do indivíduo. Conclusões As regras de conduta que ligam o ator e o receptor são os laços da sociedade. Mas muitos dos atos orientados por essas regras ocorrem com pouca frequência, ou levam um longo tempo para serem consumados. Por isso, as oportunidades para afirmar a ordem moral e a sociedade poderiam ser raras. É aqui que as regras cerimoniais desempenham sua função social, pois muitos dos atos que são orientados por essas regras duram apenas um breve momento, não envolvem nenhuma despesa substantiva, e podem ser realizados em toda interação social. Não importa qual seja a atividade, e nem o quão profanamente instrumental ela seja, ela pode permitir muitas oportunidades para pequenas cerimónias desde que outras pessoas estejam presentes. Através desses costumes, guiados por obrigações e expectativas cerimoniais, um fluxo constante de indulgências se espalha pela sociedade, com os outros presentes lembrando constantemente o indivíduo de que ele precisa manter o controle sobre si enquanto uma pessoa de porte bom e afirmar a qualidade sagrada desses outros. Os gestos que às vezes chamamos de "vazios" talvez sejam, na realidade, as coisas mais cheias que existem. Por isso é importante ver que o eu é, em parte, uma coisa cerimonial, um objeto sagrado que precisa ser tratado com o cuidado ritual apropriado e que por sua vez precisa ser apresentado aos outros sob uma luz apropriada. Enquanto um meio através do qual este eu é es90

tabelecido, o indivíduo age com porte apropriado enquanto está em contato com os outros e é tratado pelos outros com deferência. Tão importante quanto o que foi dito acima é compreender que se o indivíduo quiser jogar esse tipo de jogo sagrado, então o campo precisa ser adequado a isso. O ambiente precisa garantir que o indivíduo não pagará um preço alto demais por agir com um porte bom e que ele receberá deferência. As práticas de deferência e porte precisam ser institucionalizadas para que o indivíduo consiga projetar um eu sagrado viável, e permanecer no jogo numa base ritual apropriada. Um ambiente, então, em termos do componente cerimonial da atividade, é um lugar onde é fácil ou difícil jogar o jogo ritual de ter um eu. Onde as práticas cerimoniais são completamente institucionalizadas, como eram na Enfermaria A, parece fácil ser uma pessoa. Quando essas práticas não estão estabelecidas, como até certo ponto não estavam na Enfermaria B, parece difícil ser uma pessoa. O porquê de uma enfermaria acabar sendo um lugar em que é fácil ter um eu e a outra se tornar um lugar onde isso é difícil depende em parte do tipo de paciente que é recrutado e do tipo de regime que a equipe tenta manter. Uma das bases pelas quais hospitais psiquiátricos em todo o inundo segregam seus pacientes é o grau de "doença mental" facilmente aparente. De modo geral, isto significa que os pacientes são classificados de acordo cem o grau em que violam as regras cerimoniais do intercurso social. Há razões práticas muito boas para se separar os pacientes em enfermarias diferentes dessa forma e, na verdade, uma instituição em que ninguém se incomoda em fazer isso é retrógrada. Entretanto, essa classificação muitas vezes significa que indivíduos que são desesperadamente incivis em algumas áreas de comportamento são colocados na companhia íntima daqueles que são desesperadamente incivis em outras áreas. Assim, os indivíduos menos prontos a projetar um eu sustentável são abrigados num meio onde fazer isso é praticamente impossível. É neste contexto que podemos reconsiderar alguns aspectos interessantes do efeito da coerção sobre o indivíduo. Se um indivíduo quiser agir com o porte apropriado e demonstrar a deferência apropriada, então será necessário que ele tenha áreas de autodeterminação. Ele precisa ter um suprimento consumível das pequenas indul91


gências que sua sociedade emprega em seu idioma de estima - como cigarros a dar, cadeiras a oferecer, comidas a fornecer, e assim por diante. Ele precisa ter liberdade de movimento corporal para que seja possível assumir uma posição que comunique o respeito apropriado pelos outros e o porte apropriado de sua própria parte; um paciente amarrado numa cama terá dificuldades para não se sujar, quanto mais para se erguer na presença de uma dama. Ele precisa ter um suprimento de roupas limpas apropriadas se quiser aparecer como se espera que uma pessoa de bom porte apareça. Essa aparência pode necessitar de uma gravata, um cinto, cadarços, um espelho e lâminas de barbear - todos objetos que as autoridades podem preferir não dar a ele. Ele precisa ter acesso aos talheres que sua sociedade define como apropriados para usar, e pode descobrir que é impossível comer carne circunspectamente com uma colher de papelão. E, finalmente, ele precisa ser capaz, sem grandes custos para si mesmo, de recusar certos tipos de trabalho, que agora às vezes são classificados como "terapia industrial", que seu grupo social considera infra dignitatem. Quando o indivíduo é sujeitado a coerções extremas, ele é automaticamente forçado a sair do círculo do apropriado. Os veículos simbólicos ou fichas físicas através dos quais as cerimónias costumeiras são realizadas não estão disponíveis para ele. Os outros podem demonstrar uma estima cerimonial p ira ele, mas se torna impossível para ele retribuir a demonstração m agir de forma a se tornar digno de recebê-la. Os únicos enunciados cerimoniais possíveis para ele são aqueles inapropriados. A história do cuidado de casos psiquiátricos é a história de dispositivos de coerção: luvas de restrição, camisas de força, correntes no chão e em cadeiras, algemas, mordaças, envoltórios úmidos, banheiros com supervisão, banhos de mangueira, roupas institucionais, alimentação sem garfos e facas, e assim por diante32. O uso desses dispositivos fornece informações importantes sobre as formas em que é possível retirar as bases cerimoniais de formação do eu.

32. Cf. THOMAS, W.R. "The Unwilling Patient". Journal of Medicai Science, 99, 1953 esp. p. 193. • WALK, A. "Some Aspects of the 'Moral Treatmenf of the Insane up to 1854". Journal oj'Medicai Science, 100, 1954, p. 191-201. 92

Como consequência, podemos obter dessa história informações sobre as condições que precisam ser satisfeitas se os indivíduos quiserem ter eus. Infelizmente, hoje ainda existem instituições psiquiátricas onde o passado de outros hospitais pode ser estudado empiricamente agora. Os estudantes da cerimónia interpessoal devem procurar essas instituições com urgência quase tão grande quanto aquela com que os estudantes de parentesco procuram culturas em desaparecimento. Neste capítulo, eu pressupus que podemos aprender sobre a cerimónia estudando uma situação secular contemporânea - aquela do indivíduo que se recusa a empregar o idioma cerimonial de seu grupo de forma aceitável e foi hospitalizado. Numa visão intercultural, é conveniente enxergar isto como um produto de nossa divisão de trabalho complexa que reúne os pacientes em vez de deixá-los em seu círculo local. Além disso, esta divisão de trabalho também reúne aqueles que têm a tarefa de cuidar destes pacientes. Somos levados assim ao dilema especial do trabalhador hospitalar: enquanto membro da sociedade mais ampla, ele deveria agir contra pacientes psiquiátricos, que transgrediram as regras dá ordem cerimonial; mas seu papel ocupacional o obriga a cuidar e exatamente dessas pessoas, e protegê-las. Quando a "terapia-miíieu" é enfatizada, essas obrigações adicionalmente requerem que ele comunique afeição em resposta à hostilidade; relação em resposta à alienação. Nós vimos que os trabalhadores hospitalares precisam testemunhar condutas inapropriadas sem aplicar as sanções negativas comuns, mas que eles precisam exercer uma coerção desrespeitosa sobre seus pacientes. Uma terceira peculiaridade é que os membros da equipe podem ser obrigados a realizar serviços aos pacientes como trocar meias, amarrar cadarços ou cortar unhas, que, fora do hospital, geralmente comunicam uma deferência elaborada. No ambiente do hospital, é provável que tais atos comuniquem algo inapropriado, já que o assistente ao mesmo tempo exerce certos tipos de poder e superioridade moral sobre aqueles por quem é responsável. Uma última peculiaridade na vida cerimonial dos hospitais psiquiátricos é que os indivíduos desmoronam, tornando-se unidades de substância cerimonial mínima, e os outros aprendem que aquilo que consideravam entidades supremas evidentes na verdade são manti93


das por regras que podem ser quebradas com certa impunidade. Tal compreensão, como aquelas transmitidas pela guerra ou pelo funeral de um parente, tende a não ser muito discutida, mas talvez tenda também a unir a equipe e os pacientes, sem querer, num grupo que compartilha um conhecimento indesejável. Resumindo, então, a sociedade moderna coloca os transgressores da ordem cerimonial num único lugar, junto com alguns membros comuns da sociedade que ganham a vida lá. Eles habitam um lugar de atos e entendimentos profanos, mas alguns deles ainda são fiéis à ordem cerimonial fora do ambiente hospitalar. De alguma forma, as pessoas cerimoniais precisam desenvolver mecanismos e técnicas para viver sem alguns tipos de cerimónia. Também sugeri que noções durkheimianas sobre a religião primitiva podem ser traduzidas para conceitos de deferência e porte, e que esses conceitos nos ajudam a compreender alguns aspectos da vida secular urbana. A consequência é que num certo sentido este mundo secular não é tão irreligioso quanto poderíamos pensar. Nós nos livramos de muitos deuses, mas o próprio indivíduo teimosamente continua a ser uma divindade de importância considerável. Ele anda com certa dignidade e recebe muitas pequenas ofertas. Ele tem ciúme da veneração que lhe é devida, mas, se for abordado no espírito certo, está pronto a perdoar aqueles que podem ter lhe ofendido. Por causa da posição relativa a ele, algumas pessoas o considerarão contagioso, enquanto outras o contagiarão, em ambos os casos percebendo que precisam tratá-lo com cuidado ritual. Talvez o indivíduo seja tão viável como um deus porque ele pode realmente compreender a importância cerimonial da forma em que é tratado, e, sozinho, pode responder dramaticamente àquilo que lhe é oferecido. Nos contatos entre tais divindades não é necessário intermediários; todos esses deuses são capazes de ser seu próprio sacerdote.

Constrangimento e organização social

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Um indivíduo pode reconhecer o constrangimento extremo nos outros e até em si mesmo através dos sinais objetivos de perturbação emocional: enrubescimento, balbucios, gaguejar, uma voz estranhamente aguda ou grave, a fala trémula ou entrecortada, suor, palidez, piscadelas, tremor das mãos, movimentos hesitantes ou vacilantes, distração e disparates. Como Mark Baldwin notou sobre a timidez, pode haver "um rebaixamento dos olhos, a cabeça pode se curvar, as mãos postas atrás das costas, os dedos podem batucar as roupas ou se torcer entre si, e a pessoa pode gaguejar, com certa incoerência da ideia expressa na fala"1. Também existem sintomas subjetivos: a constrição do diafragma, uma sensação de cambaleio, a percepção de gestos forçados e não naturais, uma sensação de tontura, boca seca, e tensão dos músculos. Em casos de embaraço leve, esses alvoroços visíveis e invisíveis ocorrem, mas de forma menos perceptível. Na opinião popular, é natural estar tranquilo durante a interação, e o constrangimento é um desvio lamentável do estado normal. O indivíduo, de fato, pode dizer que se sentiu "natural" ou "não natural" na situação, o que quer dizer que ele se sentiu confortável na interação ou constrangido nela. Aquele que frequentemente se constrange na presença de outros é considerado como al-

1. BALDWIN, J.M. Social and Ethical Interpretations in Mental Development. Londres: [s.e.], 1902, p. 212. 94

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guém que sofre de uma tola sensação de inferioridade injustificada, e que precisa de terapia". Para utilizar a síndrome do alvoroço na análise do constrangimento, precisamos primeiro distinguir os dois tipos de circunstâncias em que ela ocorre. Primeiro, o indivíduo pode ficar alvoroçado enquanto engajado numa tarefa que não tenha, por si mesma, nenhum valor particular para ele, com exceção de que seus interesses de longo alcance requerem que ele a realize com segurança, competência e diligência, e ele teme ser inadequado para a tarefa. O desconforto será sentido na situação, mas, num certo sentido, não por ela; de fato, muitas vezes o indivíduo não será capaz de lidar com ela simplesmente por estar tão ansiosamente tomado pelas eventualidades presentes além dela. É importante notar que o indivíduo pode "estremecer" mesmo que outras pessoas não estejam presentes. Este capítulo não se preocupará com essas ocasiões de vexame instrumental, e sim com o tipo que ocorre em relação clara com a presença real ou imaginária de outras pessoas. Acima de tudo, o constrangimento tem a ver com a figura que o indivíduo representa diante dos outros considerados presentes naquele momento. A preocupação crucial é a impressão que se dá sobre os outros no presente - qualquer que seja a base de longo alcance ou inconsciente dessa preocupação. Essa configuração flutuante daqueles presentes é um grupo de referência dos mais importantes.

2, Uma versão sofisticada é a posição psicanalitica de que o desconforto na interação social é um resultado de expectativas de atenção impossíveis baseadas em expectativas não resolvidas em relação ao apoio paterno. Supostamente, um dos objetivos da terapia é fazer com que o indivíduo enxergue seus sintomas sob a verdadeira luz psicanalitica, presumindo que talvez, a partir disto, ele não precisará deles (cf. SCHILDER, P. "The Social Neurosis". Psycho-Analytical Review, XXV, 1938, p. 1-19). • PIERS, G. & SINGER, M. Shame and Guilt: A Psychoanalytical and a Cultural Study. Springfield: Charles C. Thomas, 1953, esp. p. 26. • RANGELL, L. "The Psychology of Poise". International Journal of Psychoanalysis, XXXV, 1954, p. 313-332. • FERENCZI, S. "Embarrassed Hands". Further Contríbutíons to the Theory and Technique of Psychoanalysis. Londres: Hogarth, 1950, p. 315-316.

O vocabulário do constrangimento Um encontro social é uma ocasião de interação face a face, começando quando os indivíduos reconhecem que se moveram para a presença imediata uns dos outros e terminando com uma retirada aceitável da participação mútua. Os encontros variam consideravelmente em seus propósitos, função social, tipo e número de participantes, ambiente, etc. e, apesar de aqui tratarmos apenas de encontros conversacionais, obviamente existem aqueles em que nenhuma palavra é pronunciada. E ainda assim, pelo menos em nossa sociedade anglo-americana, não parece existir um encontro social que não possa se tornar constrangedor para um ou mais de seus participantes, gerando o que às vezes é chamado de incidente ou vexame. Ao escutar essa dissonância, o sociólogo pode fazer generalizações sobre as formas em que a interação pode degringolar e, por implicação, sobre as condições necessárias para que a interação seja correta. Ao mesmo tempo, ele recebe boas evidências de que todos os encontros são membros de uma única classe natural, receptivos a um único esquema de análise. O incidente constrangedor é causado por quem? Ele è constrangedor para quem? Esse constrangimento é sentido sobre quem? Nem sempre os participantes sentem constrangimento pelos apuros de um indivíduo; ele pode ocorrer por pares de participantes que estejam lendo dificuldades juntos, e mesmo pelo encontro como um todo. Além disso, se o indivíduo pelo qual sentimos constrangimento porventura é percebido como um representante responsável de alguma l acção ou subgrupo (como muito frequentemente ocorre na interação entre três ou mais pessoas), então é provável que os membros dessa facção se sintam constrangidos, e sintam isso por si mesmos. Mas enquanto uma gafe ou umfauxpas podem significar que um único indivíduo é ao mesmo tempo a causa de um incidente, aquele que se sente constrangido por ele, e aquele pelo qual ele sente constrangimento, este talvez não seja o caso típico, pois nessas questões as fronieiras do eu parecem ser particularmente fracas. Quando um indivíduo se encontra numa situação que deveria fazê-lo corar, os outros presentes normalmente também enrubescem com ele e por ele, mesmo que ele possa não ter um sentimento de vergonha ou apreciação das circunstâncias suficientes para corar sozinho.

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As palavras "constrangimento", "embaraço" e "desconforto" são usadas aqui num contínuo de significados. Algumas ocasiões de constrangimento parecem ter um caráter orgástico abrupto; uma introdução repentina do evento perturbador é sucedida por um pico imediato na experiência do constrangimento e então por um retorno lento à tranquilidade anterior, com todas as fases abrangendo um único encontro. Assim, um momento ruim danifica uma situação que seria, de outra forma, eufórica. No outro extremo, descobrimos que algumas ocasiões de constrangimento são mantidas no mesmo nível por todo o encontro, começando quando a interação começa e durando até o término do encontro. Os participantes falam de uma situação desconfortável ou desagradável, mas não de um incidente constrangedor. Neste caso, é claro, o encontro inteiro se torna para um ou mais dos participantes um incidente que causa constrangimento. O constrangimento abrupto pode muitas vezes ser intenso, enquanto o desconforto contínuo é costumeiramente mais leve, envolvendo alvoroços quase imperceptíveis. Um encontro que parece ter grande probabilidade de causar um constrangimento abrupto pode, por causa disso, lançar uma sombra de desconforto contínuo sobre os participantes, transformando o encontro inteiro num incidente. Ao formar um retrato do indivíduo constrangido, baseamo-nos em um imaginário mecânico: o equilíbrio ou o autocontrole podem ser perdidos, a estabilidade pode ser derrubada. Sem dúvida, o caráter físico dos alvoroços parcialmente evoca esse imaginário. De qualquer forma, um indivíduo completamente alvoroçado é alguém que não consegue, no momento, mobilizar seus recursos musculares e intelectuais para a tarefa diante de si, ainda que deseje fazê-lo; ele não consegue oferecer uma resposta para aqueles ao seu redor que permitirá a eles manter a conversação com facilidade. Ele e suas ações alvoroçadas bloqueiam a linha de atividade que os outros estavam seguindo. Ele está presente com eles, mas ele não está "em jogo". Os outros podem ser forçados a parar e voltar sua atenção para o impedimento; o tópico da conversa é negligenciado, e as energias são direcionadas para a tarefa de restabelecer o indivíduo alvoroçado, de cuidadosamente ignorá-lo, ou de sair da presença dele.

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Conduzir-se confortavelmente na interação e estar alvoroçado estão em oposição direta. Quanto mais houver de um, menos, de modo geral, haverá do outro; por isso, através do contraste, um dos modos de comportamento pode esclarecer características do outro. A interação face a face em qualquer cultura parece necessitar exatamente daquelas capacidades que o alvoroço parece certamente destruir. Assim, eventos que levam ao constrangimento e os métodos para evitá-lo e dissipá-lo podem fornecer um esquema de análise sociológica que atravessa culturas. O prazer ou desprazer que um encontro social gera para um indivíduo, e a afeição ou hostilidade que ele sente pelos participantes, podem ter mais do que uma relação com sua compostura ou falta dela. Elogios, aclamações e recompensas repentinas podem colocar o receptor num estado de confusão alegre, enquanto uma discussão acalorada pode ser provocada e mantida com o indivíduo sentindo-se composto e em controle total de si o tempo todo. E, o que é mais importante, há um tipo de conforto que parece ser uma propriedade formal da situação e que tem a ver com a coerência e determinação com as quais o indivíduo assume um papel bem integrado e persegue objetivos momentâneos que não têm nada a ver com o conteúdo das próprias ações. Uma sensação de embaraço per se parece sempre ser desagradável, mas as circunstâncias que a geram podem ter consequências imediatas agradáveis para aquele que é embaraçado. Apesar dessa relação variável entre desprazer e embaraço, pelo menos em nossa sociedade parecer alvoroçado é considerado prova de fraqueza, inferioridade, posição baixa, culpa moral, derrota e outros atributos nada invejáveis. E, como sugerido anteriormente, o alvoroço ameaça o próprio encontro ao perturbar a transmissão e recepção regular que sustenta os encontros. Quando o embaraço surge de qualquer uma dessas fontes, o indivíduo alvoroçado compreensivelrnente realizará algum esforço para ocultar seu estado dos outros presentes. O sorriso fixo, o riso vazio nervoso, as mãos ocupadas, o olhar para o chão que esconde a expressão dos olhos, tudo isso tornou-se famoso como sinais para ocultar o constrangimento. Nas palavras de Lorde Chesterfield: Eles estão envergonhados em companhia, e tão desconcertados que não sabem o que fazem, e tentam mil tru-

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quês para manter a compostura; e esses truques acabam se tornando hábitos. Alguns levam seus dedos ao nariz, outros coçam a cabeça, outros giram seus chapéus; resumindo, todo corpo desajeitado e de má estirpe tem seus truques3. Esses gestos são biombos que o indivíduo usa para se esconder enquanto tenta trazer seus sentimentos de volta ao ritmo, e a si próprio de volta ao jogo. Tendo em vista o desejo do indivíduo de ocultar seu constrangimento, tendo em vista o ambiente e sua habilidade em cuidar de si mesmo, ele pode parecer aprumado de acordo com alguns sinais óbvios, mas demonstrar estar constrangido de acordo com sinais menos aparentes. Assim, ao fazer um discurso público, ele pode conseguir controlar sua voz e passar uma impressão de tranquilidade, mas aqueles sentados ao seu lado na plataforma podem ver que suas mãos estão tremendo ou que tiques faciais estão desmentindo sua atitude bem composta. Como o indivíduo não gosta de se sentir ou parecer constrangido, pessoas de bom ta to evitarão colocá-lo nessa posição. Além disso, elas muitas vezes fingirão não saber que ele perdeu a compostura ou que tem motivos para perdê-la. Elas podem tentar suprimir sinais de reconhecimento de seu estado ou ocultá-los por trás do mesmo tipo de gesto de cobertura que ele pode empregar. Dessa forma eles protegem a fachada e os sentimentos dele, e supostamente facilitam que ele recupere a compostura, ou pelo menos mantenha a que lhe sobrou. Entretanto, assim como o indivíduo alvoroçado pode não conseguir ocultar seu constrangimento, aqueles que percebem seu desconforto podem fracassar em sua tentativa de ocultar seu conhecimento, e neste ponto todos perceberão que seu constrangimento foi visto e que essa visão deveria ter sido ocultada. Quando alcançamos esse ponto, o envolvimento costumeiro na interação pode chegar a um fim doloroso. Em toda essa dança entre aquele que oculta e aqueles de quem se oculta, o constrangimento oferece o mesmo problema e é tratado através das mesmas formas que qualquer outra ofensa contra a boa propriedade.

3. Letters ofLord Chesterfidd to His Son. Nova York: E.P. Dutton & Co., 1929, p. 80. 100

Parece haver um ponto crítico em que o indivíduo alvoroçado desiste de tentar ocultar ou minimizar seu desconforto: ele cai no choro ou em paroxismos de riso, tem um acesso de cólera, é acometido por uma fúria cega, desmaia, corre para a saída mais próxima, ou se torna completamente imóvel, como se estivesse em pânico. Depois disso, fica muito difícil recuperar a compostura. Ele responde a um novo conjunto de ritmos, característico da experiência emocional profunda, e dificilmente conseguirá passar mesmo uma leve impressão de que está unido aos outros na interação. Resumindo, ele abdica de seu papel como alguém que mantém encontros. O momento da crise é obviamente determinado socialmente; o ponto de ruptura do indivíduo é aquele do grupo a cujos padrões emocionais ele adere. Em ocasiões raras, todos os participantes de um encontro podem ultrapassar esse ponto e, em conjunto, serem incapazes de manter sequer uma ilusão de interação ordinária. O pequeno sistema social que eles criaram na interação desaba; eles se separam ou apressadamente tentam assumir um novo conjunto de papéis. Os termos "aprumo", "sangue frio" e "pose", referindo-se à capacidade de manter a compostura, devem ser diferenciados daquilo que é chamado de "gentileza", "tato" ou "habilidade social", a saber, a capacidade de evitar causar constrangimento a si próprio e aos outros. O aprumo tem um papel importante na comunicação, pois ele garante que aqueles presentes não fracassem em desempenhar seus papéis na interação e que continuarão, enquanto estiverem na presença uns dos outros, a receber e transmitir comunicações disciplinadas. Não surpreende que o teste de provocações seja algo por que lodo jovem passa até desenvolver uma capacidade de manter a compostura4. Também não deve surpreender que muitos de nossos jogos e esportes comemorem os temas da compostura e do constran-

4. Uma forma interessante de institucionalização desse teste nos Estados Unidos, especialmente na sociedade dos negros de classe baixa, é "jogar as dúzias" [brincadeira em que duas pessoas trocam insultos jocosos cada vez piores até que uma delas não tenha uma resposta à altura-N.T.] (cf. DOLLARD, J. "Dialectic of Insult". American Imago, 1,1939, p. 3-25. • BERDIE, R.F.B. "Playing the Dozens". Journal of Abnormal andSocial Psychology, XLH, 1947, p. 120-121. Sobre a provocação em gerul, cf. SPERLING, SJ. "On the Psychodynamics of Teasing". Journal oftheAmeriitin Psycho-analyitical Association, I, 1953, p. 458-483. 101


gimento: no pôquer, uma mão duvidosa pode ser lucrativa para o jogador capaz de apresentá-la calmamente; no judo, luta-se especificamente pela manutenção e perda da compostura; no críquete, os jogadores devem manter o autocontrole e o "estilo" sob pressão. É provável que o indivíduo saiba que certas situações especiais sempre o deixam desconfortável e que ele tem algumas relações "defeituosas" que sempre causam apreensão. Sua rotina diária de encontros sociais é, sem dúvida, em grande parte determinada por suas obrigações sociais principais, mas ele se esforça um pouco para encontrar situações que não serão constrangedoras e se desviar de situações que o serão. Um indivíduo que firmemente acredite que tem pouco aprumo, talvez até exagerando seu defeito, é tímido e acanhado; temendo todos os encontros, ele busca sempre encurtá-los ou evitá-los completamente. O gago é um exemplo doloroso disto, mostrando-nos o preço que o indivíduo pode estar disposto a pagar por sua vida social5. Causas do constrangimento O constrangimento tem a ver com expectativas não realizadas (mas não com aquelas do tipo estatístico). Levando em consideração suas identidades sociais e o ambiente, os participantes sentirão que tipo de conduta deveria ser mantida como a apropriada, por mais que eles possam não ter esperança de que ela realmente acontecerá. Um indivíduo pode firmemente esperar que certos outros o deixarão desconfortável, e ainda assim esse conhecimento pode aumentar seu embaraço em vez de diminuí-lo. Um estalo completamente inesperado de engenharia social pode salvar uma situação, sendo eficiente exalamente porque não foi previsto. Então, as expectativas relevantes para o constrangimento são morais, mas o constrangimento não surge da ruptura de qualquer expectativa moral, pois algumas infrações geram indignação moral resoluta, e nenhum desconforto. Em vez disso, devemos procurar aquelas obrigações morais que envolvem o indivíduo em apenas

5. Cf. HELTMAN, H.J. "Psycho-social Phenomena of Stuttering and Their Etiological and Therapeutic Implica tions". Journal of Social Psycliology, IX, 1938, p. 79-96. 102

uma de suas capacidades, aquela de alguém que desempenha encontros sociais. É claro que o indivíduo é obrigado a se manter bem composto, mas isto nos diz que as coisas estão indo bem, e não por que isto ocorre. E as coisas vão bem ou mal por causa daquilo que é percebido sobre as identidades sociais daqueles presentes. Durante a interação, esperamos que o indivíduo possua certos atributos, capacidades e informações que, em conjunto, se encaixem num eu que, ao mesmo tempo, é unificado coerentemente e apropriado para a ocasião. Através das implicações expressivas de seu fluxo de conduta, da simples participação, o indivíduo efetivamente projeta esse eu aceitável na interação, ainda que ele não o perceba, e que os outros não percebam que interpretaram sua conduta dessa forma. Ao mesmo tempo, ele precisa aceitar e honrar os eus projetados pelos outros participantes. Os elementos de um encontro social, então, consistem em reivindicações efetivamente projetadas de um eu aceitável e a confirmação de reivindicações semelhantes da parte dos outros. As contribuições de todos estão orientadas para elas, e são construídas tendo-as como base. Quando um evento coloca essas reivindicações em dúvida, ou as enfraquece, o encontro então se encontra alojado em suposições que não valem mais. As respostas que as partes prepararam agora estão fora de lugar e precisam ser engolidas, e a interação precisa ser reconstruída. Em tais momentos, o indivíduo cujo eu foi ameaçado (o indivíduo por quem se sente constrangimento) e o indivíduo que o ameaçou podem ambos se sentir envergonhados daquilo que causaram, compartilhando esse sentimento exatamente quando têm razões para se sentir separados. E essa responsabilidade conjunta é apropriada. Segundo os padrões da sociedade em geral, talvez apenas o indivíduo desacreditado deveria se sentir envergonhado; mas, pelos padrões do pequeno sistema social mantido através da interação, aquele que o desacredita é tão culpado quanto a pessoa que ele desacredita às vezes até mais, pois se ele estava posando como um homem de bom ta to, ao destruir a imagem de outro ele destrói a sua própria. Mas é claro que os problemas não terminam com o par culpado nem com aqueles que se identificaram em simpatia com eles. Não lendo nenhum objeto legítimo ou confirmado ao qual podem ancorar sua própria união, os oulros se enconlram sólios e embaraçados. É 103


por isso que o constrangimento parece ser contagioso, espalhando-se, depois de começar, em círculos cada vez maiores de embaraço. Há várias circunstâncias clássicas em que o eu projetado por um indivíduo pode ser desacreditado, causando vergonha e constrangimento sobre o que ele fez ou parece ter feito consigo mesmo e com a interação. Experimentar uma mudança repentina de posição, como através do casamento ou de uma promoção, é adquirir um eu que os outros indivíduos não admitirão completamente devido à sua ligação remanescente com o eu antigo. Pedir um emprego, um empréstimo de dinheiro, ou uma mão em casamento é projetar uma imagem do eu como digno, sob condições em que aquele que pode desacreditar a suposição pode ter bons motivos para fazê-lo. Fingir ter o estilo de superiores profissionais ou sociais é fazer reivindicações que podem muito bem ser desacreditadas pela falta de familiaridade com o papel. A própria estrutura física de um encontro normalmente recebe certas implicações simbólicas, às vezes levando um participante, contra a sua vontade, a projetar reivindicações sobre si mesmo que são falsas e constrangedoras. A proximidade física facilmente implica proximidade social, como sabe qualquer um que já tenha se encontrado numa reunião íntima em que não deveria estar, ou que tenha se encontrado forçado a "bater papo" fraternalmente com alguém superior ou inferior ou estranho demais para ser um irmão. Da mesma forma, se a conversa deve ocorrer, alguém deve iniciá-la, alimentá-la e terminá-la; e esses atos podem incomodamente sugerir posições e poder que não condizem com os fatos. Vários tipos de encontros recorrentes numa certa sociedade podem compartilhar da suposição de que os participantes alcançaram certos padrões morais, mentais e fisionómicos. A pessoa que não atinge esses padrões pode, em todos os lugares, encontrar-se forçada, sem querer, a fazer reivindicações de identidade implícitas que ela não pode cumprir. Comprometida em todos os encontros de que participa, ela realmente usa um sino de leproso. O indivíduo que mais se isola de contatos sociais pode então ser o menos isolado das exigências da sociedade. E, se ele apenas imagina que possui um atributo que o desqualifica, sua avaliação de si mesmo pode estar equivocada, mas, levando-a em consideração, sua fuga dos contatos 104

é compreensível. De qualquer forma, ao decidir se as bases da timidez de um indivíduo são reais ou imaginárias, não devemos procurar desqualificações "justificáveis", e sim o conjunto de características muito maior que realmente constrange encontros. Em todos esses ambientes, a mesma coisa fundamental ocorre: os fatos expressivos presentes ameaçam ou desacreditam as suposições que um participante descobre que projetou sobre a sua identidade6. A partir desse ponto, aqueles presentes descobrem que não podem nem ficar sem as suposições nem basear suas próprias respostas nelas. A realidade inabitável se encolhe até que todos se sintam "pequenos" ou deslocados. É preciso notar uma complicação adicional. Muitas vezes, ocasiões cotidianas importantes de constrangimento surgem quando o eu projetado é, de alguma forma, confrontado com outro eu que, ainda que válido em outros contextos, aqui não pode ser mantido em harmonia com o primeiro. O constrangimento então nos leva para a questão da "segregação de papéis". Cada indivíduo tem mais de um papel, mas ele é salvo do dilema de papéis pela "segregação da plateia", pois, normalmente, aqueles diante de quem ele desempenha um de seus papéis não serão os indivíduos diante de quem ele desempenha outro, permitindo que ele seja uma pessoa diferente em cada papel sem desacreditar nenhum dos dois. Entretanto, todo sistema social tem momentos e lugares em que a segregação de plateia se desfaz e onde indivíduos se confrontam com eus incompatíveis com aqueles que estendem um para o outro em outras ocasiões. Nesses momentos, o constrangimento, especialmente do tipo leve, demonstra estar localizado não no indivíduo, mas no sistema social em que ele tem vários eus. 6. Além de seus outros problemas, ele desacreditou sua reivindicação implícita de aprumo. Ele então sentirá que tem motivos para se constranger pelo seu constrangimento, mesmo que ninguém presente possa ter percebido os estágios anteriores de seu embaraço. Mas é preciso notar um senão. Quando um indivíduo, ao receber um elogio, se enrubesce de modéstia, ele pode perder sua reputação de aprumo, mas ganhar uma mais importante, a de ser modesto. Sentindo que não deve se envergonhar de seu vexame, seu constrangimento não o levará a se constranger. Por outro lado, quando o constrangimento é claramente esperado como uma resposta apropriada, aquele que não se constrange pode parecer insensível e por isso se constranger por causa dessa aparência. 105


O domínio do constrangimento Começando com considerações psicológicas, chegamos depois de alguns estágios a um ponto de vista sociológico estrutural. Temos precedentes de antropólogos sociais e suas análises de piadas e evitação. Pressupomos que o constrangimento é uma parte normal da vida social normal, e o indivíduo fica desconfortável não porque ele é pessoalmente desajustado, mas sim porque ele não o é; supostamente qualquer um em sua combinação de posições faria o mesmo. Num estudo empírico de um sistema social particular, o primeiro objetivo seria aprender quais categorias de pessoas ficam constrangidas em quais situações recorrentes. E o segundo objetivo seria descobrir o que aconteceria com o sistema social e o esquema de obrigações se o constrangimento não fosse incorporado sistematicamente nele. Podemos citar um exemplo da vida social de estabelecimentos de grande escala - prédios de escritórios, escolas, hospitais, etc. Aqui, em elevadores, corredores e cafeterias, em bancas de jornal, máquinas de refrigerantes, balcões de lanches e entradas, todos os membros estão muitas vezes em condições iguais, ainda que distantes7. Nos termos de Benoit-Smullyan, expressa-se o situs, e não o status ou o Zocus8. Atravessando essas relações de igualdade e distância está outro conjunto de relações que surge em equipes de trabalho cujos membros são classificados através de coisas como prestígio e autoridade, mas ainda assim unidos pela atividade conjunta e conhecimento pessoal uns dos outros. Em muitos estabelecimentos grandes, jornadas de trabalho escalonadas, cafeterias segregadas e medidas semelhantes ajudam a garantir que aqueles que têm posições distintas e estão próximos em um conjunto de relações não terão que se encontrar em situações fi-

7. Essa participação igual e conjunta numa grande organização é muitas vezes celebrada anualmente na festa do escritório e em esquetes dramáticos amadores, que são realizados excluindo-se declaradamente forasteiros e misturando as posições dos participantes. 8. BENOIT-SMULLYAN, É. "Status, Status Types, and Status Interrelations". American Sociológica! Review, IX, 1944, p. 151-161. De certa forma, a afirmação de pertencimento institucional igual é reforçada pela regra em nossa sociedade de que homens devem mostrar certas pequenas cortesias para mulheres; todos os outros princípios, como distinções entre grupos raciais e categorias profissionais, devem ser suprimidos. O efeito é a ênfase no situs e na igualdade. 106

sicamente íntimas quando deveriam esperar manter a igualdade e a distância. Entretanto, a orientação democrática de alguns de nossos estabelecimentos mais recentes tende ajuntar membros de posições diferentes da mesma equipe de trabalho em lugares como a cafeteria, o que causa desconforto. Não há como eles agirem de forma a não perturbar um dos dois conjuntos básicos de relações que eles têm uns com os outros. É muito provável que essas dificuldades ocorram em elevadores, pois neles indivíduos que não se sentem exatamente confortáveis para conversar precisam passar um tempo juntos demais para ignorar a oportunidade de conversas informais um problema que alguns, é claro, resolvem através de elevadores executivos especiais. O constrangimento, então, é incorporado ecologicamente ao estabelecimento. O indivíduo, por possuir eus múltiplos, pode descobrir que é necessário que ele ao mesmo tempo esteja presente e não esteja presente em certas ocasiões. O resultado é o constrangimento: o indivíduo se encontra sendo dilacerado, ainda que isto possa ocorrer de forma muito gentil. A oscilação de seu eu corresponde à oscilação de sua conduta. A função social do constrangimento Quando o eu projetado de um indivíduo é ameaçado durante a interação, ele pode, com aprumo, suprimir todos os sinais de vergonha e constrangimento. Nenhum alvoroço, nem os esforços para ocultá-lo, perturba o fluxo regular do encontro; os participantes podem proceder como se nenhum incidente tivesse ocorrido. Entretanto, quando as situações são salvas, algo importante pode ser perdido. Ao demonstrar constrangimento quando ele não pode ser nenhuma das duas pessoas, o indivíduo abre a possibilidade de no futuro poder efetivamente ser uma delas9. O papel dele na inte9. Um argumento semelhante foi apresentado por Samuel Johnson em seu artigo "Of Bashfulness". The Rambler, n. 139, 1751: "Normalmente é o caso que a segurança consegue acompanhar a habilidade; e o medo do malogro, que prejudica nossas primeiras tentativas, dissipa-se gradualmente quando nossa perícia avança em direção à certeza do sucesso, O acanhamento, então, que impede a desgraça, aquela curta vergonha temporária que nos protege contra o perigo da censura duradoura, não pode ser incluído apropriadamente como uma de nossas infelicidades". 107


ração atual pode ser sacrificado, e talvez até o próprio encontro, mas ele demonstra que, apesar de não conseguir apresentar um eu sustentável e coerente nesta ocasião, ele pelo menos está perturbado pelo fato e pode se provar digno em outro momento. Neste sentido, o constrangimento não é um impulso irracional destruindo o comportamento prescrito socialmente, e sim parte desse próprio comportamento ordenado. Alvoroços são um exemplo extremo dessa classe importante de atos que normalmente são bastante espontâneos e ainda assim nem mais nem menos necessários e obrigatórios que atos realizados constrangidamente. Por trás de um conflito de identidade está um conflito mais fundamental, um conflito de princípio organizacional, pois o eu, para muitos propósitos, consiste apenas da aplicação de princípios organizacionais legítimos para o nosso eu. Construímos nossa identidade a partir de reivindicações que, se forem negadas, dão-nos o direito de nos sentirmos justificadamente indignados. Por trás das reivindicações de um aprendiz de participação completa no uso de certas instalações da fábrica está o princípio organizacional: todos os membros do estabelecimento são iguais de certas formas qua membros. Por trás da reivindicação do especialista de reconhecimento financeiro apropriado está o princípio de que é o tipo de trabalho, e não meramente o trabalho, que determina a posição. Os balbucies do aprendiz e do especialista quando chegam à máquina de Coca-Cola ao mesmo tempo expressam uma incompatibilidade de , . . . . 1 0 princípios organizacionais . É provável que os princípios de organização de qualquer sistema social entrem em conflito em certos pontos. Em vez de permitir que o conflito seja expresso num encontro, o indivíduo se coloca entre os princípios opostos. Ele sacrifica sua identidade por um mo-

mento, e às vezes sacrifica o encontro, mas os princípios são preservados. Ele pode ser moído entre suposições opostas, impedindo assim uma fricção direta entre elas, ou ele pode ser quase esquartejado, de forma que princípios com pouca relação entre si possam operar juntos. A estrutura social ganha elasticidade; o indivíduo meramente perde compostura.

10. Em tais momentos às vezes ocorrem "caçoadas" [joshing]. Dizem que isto é um meio de liberar a tensão causada ou pelo constrangimento ou por que quer que tenha causado o constrangimento. Mas em muitos casos esse tipo de brincadeira é uma forma de dizer que aquilo que ocorre agora não é sério nem real. O exagero, o insulto fingido, as reivindicações falsas - tudo isto reduz a seriedade do conflito ao negar a realidade da situação. E é claro que é isto, de outra forma, que o constrangimento faz. É natural, então, encontrarmos o constrangimento junto com piadas, pois ambos ajudam a negar a mesma realidade. 108

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prias tendências de manutenção de fronteiras; ela é um pedacinho de compromisso com seus próprios heróis1 e vilões.

A alienação da interação

1. Introdução Quando o indivíduo em nossa sociedade anglo-americana se engaja num encontro conversacional com outras pessoas, ele pode ficar espontaneamente envolvido nele. Ele pode mergulhar de forma impensada e impulsiva na conversa e ser levado por ela, esquecido de outras coisas, incluindo de si mesmo. Esteja ele com um envolvimento intenso que não é perturbado facilmente, ou com um envolvimento leve do qual ele facilmente se distrai, o tópico da conversa pode formar o principal foco de sua atenção cognitiva e o orador atual pode formar o principal foco de sua atenção visual. O efeito hipnótico e vinculador de tal envolvimento é ilustrado pelo fato de que, enquanto assim envolvido, o indivíduo pode se engajar simultaneamente em outras atividades dirigidas a um objetivo (mascar chiclete, fumar, encontrar uma posição confortável na cadeira, realizar tarefas repetitivas, etc.), mas gerência esses envolvimentos laterais de forma abstraída, como uma fuga musical, para que eles não o distraiam de seu foco de atenção principal. É claro que o indivíduo, como uma criança ou um animal, pode ficar espontaneamente envolvido em tarefas solitárias não sociáveis. Quando isto ocorre, a tarefa se torna ao mesmo tempo leve e pesada, dando a seu realizador um senso firme de realidade. Entretanto, enquanto um foco principal de atenção a conversa é algo único, pois ela cria para o participante um mundo e uma realidade que tem outros participantes nela. O envolvimento conjunto espontâneo é uma unio mystico, um transe socializado. Precisamos também perceber que uma conversação tem vida própria e faz exigências em seu nome. Ela é um pequeno sistema social com suas pró110

Tomando o envolvimento conjunto espontâneo como um ponto de referência, eu quero discutir como esse envolvimento pode não conseguir ocorrer e a consequência desse fracasso. Eu quero tratar das formas pelas quais o indivíduo pode se alienar de um encontro conversacional, o desconforto que surge disto, e a consequência dessa alienação e desse desconforto para a interação. Como a alienação pode ocorrer em relação a qualquer conversa imaginável, talvez possamos aprender com ela algo sobre as propriedades genéricas da interação falada. 2. Obrigações de envolvimento Quando indivíduos estão na presença imediata um do outro, uma multidão de palavras, gestos, atos e eventos menores se torna disponível, desejada ou não, através da qual alguém que está presente pode, intencionalmente ou não, simbolizar seu caráter e suas atitudes. Em nossa sociedade prevalece um sistema de etiqueta que dirige o indivíduo a lidar com estes eventos de forma conveniente, projetando através deles uma imagem de si corre ta, um respeito apropriado pelos outros presentes e uma consideração adequada pelo ambiente. Quando o indivíduo quebra uma regra de etiqueta, intencionalmente ou não, os outros presentes podem se mobilizar para restaurar a ordem cerimonial, de forma parecida com aquela utilizada quando outros tipos de ordem social são transgredidos. Através da ordem cerimonial que é mantida por um sistema de etiqueta, a capacidade do indivíduo de ser levado por uma conversa se torna socializada, assumindo uma carga de valor ritual e função social. A escolha do foco principal de atenção, a escolha dos envolvi-

1. Um dos heróis é o dito que pode introduzir referências a questões mais amplas e importantes de uma forma inefavelmente apropriada ao momento de conversa atual. Como o dito espirituoso nunca mais será relevante da mesma forma, ofereceu-se um sacrifício à conversa, e prestou-se respeito à sua realidade única através de um ato que mostra o quão completamente o ator está atento à interação. 111


mentos laterais e a intensidade do envolvimento são confinadas por coerções sociais, de forma que algumas alocações de atenção se tornam socialmente apropriadas e outras alocações são inapropriadas. Há muitas ocasiões em que o indivíduo que participa de uma conversação descobre que ele e os outros estão presos juntos através de obrigações de envolvimento em relação à conversação. Ele passa a sentir que é definido como apropriado (e por isso ou desejável por si mesmo ou prudente) dar seu foco principal de atenção à conversa, e ficar espontaneamente envolvido nela, enquanto ao mesmo tempo ele sente que cada um dos outros participantes tem a mesma obrigação. Devido à ordem cerimonial em que suas ações estão inseridas, ele pode descobrir que qualquer alocação alternativa de envolvimento de sua parte será considerada uma descortesia e lançará um reflexo indesejado sobre os outros, sobre o ambiente, ou sobre si mesmo. E ele descobrirá que sua ofensa foi cometida na própria presença daqueles ofendidos por ela. Aqueles que quebram as regras da interação cometem seus crimes já na cadeia. A tarefa de ficar espontaneamente envolvido em alguma coisa, quando ela é um dever para si mesmo ou para os outros, é uma coisa difícil, como todos nós sabemos através de nossa experiência com tarefas monótonas ou ameaçadoras. As ações do indivíduo precisam acontecer para satisfazer suas obrigações de envolvimento, mas num certo sentido ele não pode agir exatamente para satisfazer essas obrigações, pois tal esforço necessitaria de que ele mudasse sua atenção do tópico da conversação para o problema de estar espontaneamente envolvido nela. Aqui, num componente de impulsividade não racional - não apenas tolerada mas na realidade exigida - descobrimos uma forma importante pela qual a ordem da interação distingue-se de outros tipos de ordem social. A obrigação do indivíduo de manter o envolvimento espontâneo na conversação e a dificuldade de fazer isso o colocam numa posição delicada. Ele é salvo por seus coparticipantes, que controlam suas próprias ações para que ele não seja forçado a sair do envolvimento apropriado. Mas, assim que ele for resgatado, ele terá que resgatar outra pessoa, e por isso seu trabalho de participante da interação se complica ainda mais. Aqui, então, está um dos aspectos fundamentais do controle social na conversação: o indivíduo deve 112

não apenas manter seu próprio envolvimento, mas também agir de forma a garantir que os outros mantenham o deles. É isto que o indivíduo deve aos outros em sua capacidade de participantes da interação, independentemente do que quer que seja devido a eles em quaisquer outras capacidades em que eles participem, e é esta obrigação que nos diz que, não importa que papel social um indivíduo desempenhe durante um encontro, ele além disso terá que cumprir o papel de participante da interação. O indivíduo terá razões aprovadas e não aprovadas para cumprir sua obrigação enquanto participante da interação, mas em todos os casos, para fazê-lo, ele precisa ser capaz de rápida e delicadamente assumir o papel dos outros e sentir as qualificações que a situação deles deve trazer para a sua própria conduta para que eles não sejam atrapalhados por ela. Ele deve, simpaticamente, ter consciência dos tipos de coisas nas quais os outros presentes podem se envolver espontânea e apropriadamente, e então tentar modular sua expressão de atitudes, sentimentos e opiniões de acordo com a companhia. Assim, como Adam Smith afirmou em sua Teoria dos sentimentos morais, o indivíduo deve frasear suas próprias preocupações, sentimentos e interesses de forma que eles sejam maximamente utilizáveis pelos outros como uma fonte de envolvimento apropriado, e esse dever importante do indivíduo enquanto participante da interação é equilibrado por seu direito de esperar que os outros presentes realizarão algum esforço para incitar suas simpatias e colocá-las ao comando dele. Essas duas tendências, a do orador de diminuir suas expressões e a dos ouvintes de aumentar seus interesses, ambas sob a luz das capacidades e exigências dos outros, formam a ponte que as pessoas constróem umas para as outras, permitindo-as se encontrar, através de um momento de fala, numa comunhão de envolvimento mantido reciprocamente. É essa fagulha, e não os tipos mais óbvios de amor, que ilumina o mundo. 3. As forr as de alienação Se tomar nos o envolvimento espontâneo conjunto num tópico de conversarão como um ponto de referência, descobriremos que a alienação em relação a esse ponto é bastante comum. O envolvimento conjunto parece ser uma coisa frágil, com pontos-padrão de 113


fraqueza e decadência, um estado instável precário que, provavelmente, em qualquer momento pode levar o indivíduo a alguma forma de alienação. Como estamos tratando do envolvimento obrigatório, as formas de alienação constituirão um desvio de comportamento de um tipo que pode ser chamado de "envolvimento erróneo" [misinvolvemení]. Podemos discorrer agora sobre algumas das formas-padrão de envolvimento erróneo alienante.

face. Na verdade, parece que todas as culturas têm histórias exemplares para ilustrar a dignidade e o peso que pode ser dado a essas realidades passageiras; em todos os lugares encontramos a celebração de um Drake que galantemente termina algum tipo de jogo antes de ir enfrentar algum tipo de Armada , e em todos os lugares temos algum fora da lei que é cativantemente civil com todos aqueles que rouba e com aqueles que depois o enforcam por isso3.

1) Preocupação externa. O indivíduo pode negligenciar o foco de atenção prescrito e focar sua preocupação principal em algo que não está ligado àquilo que está sendo discutido no momento, e que pode até não estar ligado às outras pessoas presentes, pelo menos em sua capacidade de colegas participantes. O objeto da preocupação do indivíduo pode ser algo com o que ele deveria ter parado de se ocupar ao entrar na interação, ou algo que só pode ser considerado apropriadamente mais tarde no encontro, ou depois do término deste. A preocupação também pode assumir a forma de um aparte furtivo entre o indivíduo e um ou dois outros participantes. O indivíduo pode até estar preocupado com um padrão vago de atividade profissional que ele não pode manter por causa de sua obrigação de participar da interação. O grau de ofensa da preocupação do indivíduo varia de acordo com o tipo de desculpa que os outros sentem que ele tem por ela. Em um extremo, está a preocupação que é considerada bastante voluntária, quando o ofensor passa a impressão de que poderia facilmente dar sua atenção para a conversação, mas propositadamente se recusa a fazê-lo. No outro extremo, há a preocupação "involuntária" , uma consequência do envolvimento compreensivelmente profundo do ofensor com assuntos vitais fora da interação. Indivíduos que têm desculpas que permitiriam que eles se retirassem de uma conversação muitas vezes permanecem leais e se recusam a fazer isto. Através desse ato eles demonstram um belo respeito pelos colegas participantes e afirm; m as regras morais que transformam pessoas socialmente responsáveis em pessoas que também são interativamente responsáveis. Obviamente, é através de tais regras e tais gestos reafirmadores que a sociedade se torna segura para os pequenos mundos sustentados em encontros face a

2) Consciência de si mesmo [self-consciousness]. Ao custo de seu envolvimento no foco de atenção prescrito, o indivíduo pode focar sua atenção mais do que deveria sobre si mesmo — o si mesmo como alguém que está se saindo bem ou mal, como alguém evocando uma resposta desejável ou indesejável dos outros. É claro que é possível que o indivíduo se estenda sobre si mesmo como um tópico de conversação - sendo autocentrado, desta forma -, mas ainda assim não exiba consciência de si mesmo. Parece que a consciência de si mesmo para o indivíduo não resulta de seu interesse profundo no tópico da conversação quando o tópico é ele mesmo, e sim quando ele dá atenção a si mesmo enquanto um participante da interação num momento em que deveria estar livre para se envolver no conteúdo da conversação.

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Devemos adicionar um enunciado geral sobre as fontes da consciência de si mesmo. Durante a interação, o indivíduo normalmente recebe, dos outros e de eventos impessoais na situação, uma imagem e avaliação de si que é pelo menos temporariamente aceitável para ele. Ele pode então voltar sua atenção para questões menos íntimas. Quando essa definição do eu é ameaçada, o indivíduo tipicamente retrai a atenção da interação num esforço apressado para corrigir o incidente que ocorreu. Se o incidente ameaça aumentar sua

2. Referência a Francis Drake, pirata e vice-almirante inglês que participou da batalha contra a Armada espanhola que fracassou em invadir a Inglaterra em 1588 [N.T.], 3. Mas diferentes estratos da mesma sociedade podem ter preocupações diferentes quanto a seus membros aprenderem a se projetar em encontros; a tendência a manter conversas vivas e animadas pode ser uma forma pela qual alguns estratos, não necessariamente adjacentes, são caracteristicamente diferentes de outros. 115


posição na interação, a fuga para a consciência de si mesmo pode ser uma forma de regozijo; se o incidente ameaça rebaixar sua posição e danificar ou desacreditar sua autoimagem de alguma forma, então a fuga para a consciência de si mesmo pode ser uma forma de proteger o eu e assoprar suas feridas. Enquanto fonte de consciência de si mesmo, a ameaça da perda parece ser mais importante e comum do que a ameaça de ganho. Seja qual for a causa da consciência de si mesmo, todos nós conhecemos as vacilações da ação e os alvoroços através dos quais ela é expressa; todos nós conhecemos o fenómeno do constrangimento. Podemos pensar a consciência de si mesmo como um tipo de preocupação com questões internas ao sistema social interativo e, como tal, ela recebeu mais consideração de senso comum do que outros tipos de preocupação interna. Na verdade, não temos palavras de senso comum para nos referir a estes outros tipos de envolvimento impróprio. Eu me referirei a duas formas deles como "consciência da interação" e "consciência dos outros" para enfatizar uma similaridade com a consciência de si mesmo. 3) Consciência da interação. Um participante de conversações pode se tornar conscientemente preocupado num grau inapropriado com a forma em que a interação, enquanto interação, está ocorrendo, em vez de se envolver espontaneamente com o tópico de conversação oficial. Como a consciência da interação não é tão famosa como a consciência de si mesmo, podemos citar algumas fontes dela como exemplos. Uma fonte comum de consciência da interação está relacionada com a responsabilidade especial que um indivíduo pode ter para que a interação "caminhe bem", quer dizer, evocar o tipo apropriado de envolvimento daqueles presentes. Assim, num pequeno ajuntamento social, pode-se esperar que a anfitriã se junte a seus convidados e se envolva espontaneamente na conversação que eles estão mantendo, mas, ao mesmo tempo, se a ocasião tiver problemas, ela, mais do que os outros, será considerada responsável pelo fracasso. Como consequência, ela às vezes se preocupa tanto com a maquinaria social da ocasião e com o desenrolar da noite como um todo, que fica impossível para ela se entregar à sua própria festa. 116

Podemos mencionar outra fonte comum da consciência de interação. Quando os indivíduos entram numa conversação, eles são obrigados a continuá-la até terem o tipo de base para se retrair que neutralizará as implicações possivelmente ofensivas de abandonar os outros. Enquanto engajados na interação, será necessário que eles tenham assuntos à disposição para conversar que se encaixem com a ocasião e também forneçam conteúdo suficiente para manter a conversa em ação; em outras palavras, eles precisam de suprimentos seguros4. Aquilo que chamamos de "papo furado" serve para este propósito. Quando os indivíduos acabam com seu papo furado, eles se encontram presos oficialmente num estado de fala mas sem nada para conversar; a consequência típica é a consciência da interação experimentada como um "silêncio doloroso". 4) Consciência dos outros. Durante a interação, o indivíduo pode se distrair devido a outro participante como um objeto de atenção exatamente como no caso da consciência de si mesmo, ele pode se distrair devido à preocupação com si mesmo . Se o indivíduo descobre que sempre que está na presença conversacional de certas outras pessoas, elas fazem com que ele tenha consciência demais delas à custa do envolvimento prescrito no tópico de conversação, então elas podem adquirir a reputação, aos seus olhos, de serem participantes defeituosos da interação, especialmente se ele sente que não está sozinho nos problemas que tem com eles. É provável que ele então impute certas características àqueles que são percebidos dessa forma, fazendo isto para explicar e justificar a distração que eles causam a ele. Será útil, para a nossa compreensão da interação, listar alguns dos atributos imputados dessa forma. Com os termos "afetação" e "insinceridade" o indivíduo tende a identificar aqueles que parecem fingir através de gestos aquilo que eles esperam que ele aceite como um fluxo expressivo não planeja4. O problema dos suprimentos seguros é analisado com mais profundidade em minha Communication Conduct in an Island Community. Chicago: University of Chicago, 1953, cap. XV [tese de doutorado inédita]. 5. A consciência dos outros é tratada breve, mas explicitamente em BALDWIN, J. Social andEthical Interpretatians in Mental Development. Londres: [s.e.], 1902, p. 213-214. 117


do de seu comportamento. A afetação, como sugere Cooley, "[...] existe quando a paixão por influenciar os outros parece desestabilizar o caráter estabelecido e dar a ele uma pose ou peculiaridade óbvia [...]. Assim, há pessoas em que nas conversações mais simples parecem ser incapazes de esquecer a si mesmas e entrar franca e desinteressadamente no assunto, consideradas, ao contrário, sempre preocupadas com o pensamento da impressão que estão causando, imaginando louvor ou depreciação, e normalmente posando um pouco para evitar esta ou ganhar aquela"6. Indivíduos afetados parecem principalmente preocupados em controlar a avaliação que um observador fará deles, e parecem parcialmente tomados pela sua própria pose; indivíduos insinceros parecem principalmente preocupados em controlar a impressão que o observador formará de sua atitude em relação a certas coisas ou pessoas, especialmente sobre si mesmos, t não parecem ser tomados pela própria pose. Podemos adicionar que, enquanto aqueles que supostamente têm consciência de si mesmo dão a impressão de estarem preocupados demais com o que acontecerá ou aconteceu com eles, aqueles que são considerados insinceros ou afetados dão a impressão de estarem preocupados demais com aquilo que eles podem realizar na ocasião que se seguirá e estão dispostos a fingir para realizá-lo. Quando o indivíduo percebe que outros são insinceros ou afetados, ele tende a sentir que eles se aproveitaram indevidamente de sua posição comunicativa para promover seus próprios interesses; ele sente que eles quebraram as regras básicas da interação. Sua hostilidade ao jogo sujo deles o leva a focar sua atenção sobre eles e seu delito à custa de seu próprio envolvimento na conversação. Ao tratar dos atributos imputados àqueles que fazem com que outra pessoa tenha consciência deles, precisamos dar importância ao fator da imodéstia. Em termos analíticos, a modéstia exagerada deveria contar igualmente como uma fonte de consciência dos outros, mas, empiricamente, a imodéstia parece ser muito mais importante. Aquilo que o indivíduo considera imodéstia nos outros pode se apresentar de muitas formas diferentes: indivíduos imodestos po-

6. COOLEY, C.H. Human Nature and the Social Order. Nova York: Charles Scribner's Sons, 1922, p. 196, 215. 118

dem parecer louvar a si mesmos verbalmente; eles podem falar sobre si mesmos e suas atividades de forma que pressupõe um interesse e familiaridade com sua vida pessoal maiores do que o indivíduo realmente possui; eles podem falar mais frequentemente e mais demoradamente do que o indivíduo considera apropriado; eles podem assumir uma posição "ecológica" mais proeminente do que ele acha que merecem, etc. Uma fonte interessante de consciência dos outros pode ser encontrada no fenómeno de "envolvimento exagerado". Durante qualquer conversa, estabelecemos padrões sobre até que ponto o indivíduo deve se permitir ser levado pela conversa, o quão completamente ele deve se permitir ser tomado por ela. Ele será obrigado a se impedir de ficar tão inchado de sentimentos e prontidão para agir a ponto de ameaçar as fronteiras relacionadas às emoções que foram estabelecidas para ele na interação. Ele será obrigado a expressar uma margem de não envolvimento, ainda que obviamente essa margem varie de acordo com a importância socialmente reconhecida da ocasião e de seu papel oficial nela. Quando o indivíduo se envolve exageradamente no tópico da conversação, e dá aos outros a impressão de que não tem um grau necessário de autocontrole sobre seus sentimentos e ações, quando, resumindo, o mundo da interação fica real demais para ele, então é provável que os outros sejam levados do envolvimento com a conversa a um envolvimento com o orador. A animação exagerada de uma pessoa é a alienação de outra. De qualquer forma, devemos ver que o envolvimento exagerado tem o efeito de momentaneamente incapacitar o indivíduo enquanto participante da interação; os outros precisam se ajustar a seu estado, enquanto ele se torna incapaz de se ajustar ao deles. E interessante notar que, quando o impulso do indivíduo envolvido exageradamente diminui um pouco, ele pode perceber seu delito e ganhar consciência de si mesmo, ilustrando mais uma vez o fato de que o efeito alienante que o indivíduo tem sobre outros normalmente é um efeito que ele não pode evitar sobre si mesmo. Independentemente disto, precisamos ver que a disposição a se envolver exageradamente é uma forma de tirania exercida por crianças, prima âonnas, e lordes de todos os tipos, que momentaneamente colocam seus próprios sentimentos sobre as regras morais que deveriam tornar a sociedade segura para a interação.

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Podemos mencionar uma fonte final de consciência dos outros. Se o indivíduo quiser se envolver num tópico de conversação, então, enquanto ouvinte, ele terá que oferecer sua atenção auditiva e normalmente também visual para a fonte da comunicação, ou seja, o orador, e especialmente à voz e rosto dele. (Este requerimento físico é enfatizado por regras sociais que muitas vezes definem a falta de atenção ao orador como uma afronta a ele.) Se o próprio aparato comunicativo do orador comunica informações adicionais durante o período da transmissão, então é provável que o ouvinte se distraia devido a fontes de estímulo concorrentes, percebendo demais o orador à custa daquilo que está sendo dito. As fontes dessa distração são bem conhecidas: o orador pode ser muito feio ou muito bonito; ele pode ter um defeito de fala como ter a língua presa, ou gaguejar; ele pode ter familiaridade inadequada com a linguagem, dialeto ou jargão que os ouvintes esperam ouvir; ele pode ter uma leve peculiaridade facial, como lábio leporino, contração das pálpebras, estrabismo; ele pode ter dificuldades comunicativas temporárias, como um torcicolo, rouquidão, etc. Aparentemente, quanto mais perto for o defeito do equipamento comunicativo sobre o qual o ouvinte deve focar sua atenção, menor o defeito precisa ser para desequilibrar o ouvinte. (Devemos adicionar que se o orador precisar dirigir sua atenção ao ouvinte, mas sem tomar consciência exagerada dele, defeitos na aparência do ouvinte podem perturbar o orador.) Esses pequenos defeitos no aparato comunicativo tendem a bloquear o indivíduo afligido da corrente de contatos diários, transformando-o num participante da interação defeituoso a seus olhos ou aos olhos dos outros. Para concluir esta discussão de fontes de distração alienantes, gostaria de propor uma cautela óbvia. Quando o indivíduo sente que os outros não estão envolvidos apropriadamente, ele sentirá que os outros se comportaram de forma não apropriada sempre em relação aos padrões de seu grupo. Da mesma forma, um indivíduo que faria com que certos outros tivessem consciência indevida dele por causa de sua insinceridade, afetação ou imodéstia aparentes passaria despercebido numa subcultura em que a disciplina conversacional fosse menos estrita. Assim, quando membros de grupos diferentes interagem uns com os outros, é bastante provável que pelo menos um dos participantes seja distraído do envolvimento espon-

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tâneo no tópico da conversação devido a algo que pareça a ele um comportamento não apropriado da parte dos outros7. É a essas diferenças de costumes expressivos que devemos olhar em primeiro lugar ao tentar explicar o comportamento inapropriado daqueles com quem estamos interagindo, em vez de tentar encontrar a fonte da culpa nas personalidades dos ofensores. 4. Sobre o caráter repercussivo das ofensas de envolvimento. Eu sugeri que o desencantamento com uma interação pode assumir a forma de preocupação, consciência de si mesmo, consciência dos outros, e consciência da interação. Essas formas de alienação foram separadas para propósitos de identificação. Em conversas reais, quando um tipo ocorre, os outros não estarão longe. Quando o indivíduo sente que ele ou outros participantes não estão alceando seu envolvimento de acordo com padrões que ele aprova, e como consequência eles estão comunicando uma atitude imprópria para a interação e os participantes, então é provável que seus sentimentos sejam atiçados pela impropriedade - como seriam se quaisquer outras obrigações da ordem cerimonial fossem quebradas. Mas as coisas não param por aí. Testemunhar uma ofensa contra obrigações de envolvimento, diferentemente de outras obrigações cerimoniais, faz com que a testemunha retire sua atenção da conversação e a volte para a ofensa que ocorreu durante ela. Se o indivíduo se sente responsável pela ofensa que ocorreu, é provável que ele sinta envergonhadamente consciência de si. Se os outros parecem ser responsáveis pela ofensa, então é provável que ele se sinta indignadamente consciente dos outros em relação a eles. Mas ter consciência de si ou dos outros é precisamente uma ofensa contra as obrigações de envolvimento. O mero ato de testemunhar uma ofen-

7. Por exemplo, no intercâmbio social entre habitantes tradicionais das Ilhas Shetland, o pronome "eu" tende a ser pouco utilizado; seu uso mais frequente por indivíduos do resto da Grã-Bretanha, e especialmente seu uso relativamente frequente por americanos, leva o habitante das Shetland a sentir que os forasteiros são imodestos e grosseiros. Podemos adicionar que o tato das Shetland muitas vezes impede que os forasteiros descubram que seu comportamento perturba os habitantes das ilhas. 121


Podemos mencionar uma fonte final de consciência dos outros. Se o indivíduo quiser se envolver num tópico de conversação, então, enquanto ouvinte, ele terá que oferecer sua atenção auditiva e normalmente também visual para a fonte da comunicação, ou seja, o orador, e especialmente à voz e rosto dele. (Este requerimento físico é enfatizado por regras sociais que muitas vezes definem a falta de atenção ao orador como uma afronta a ele.) Se o próprio aparato comunicativo do orador comunica informações adicionais durante o período da transmissão, então é provável que o ouvinte se distraia devido a fontes de estímulo concorrentes, percebendo demais o orador à custa daquilo que está sendo dito. As fontes dessa distração são bem conhecidas: o orador pode ser muito feio ou muito bonito; ele pode ter um defeito de fala como ter a língua presa, ou gaguejar; ele pode ter familiaridade inadequada com a linguagem, dialeto ou jargão que os ouvintes esperam ouvir; ele pode ter uma leve peculiaridade facial, como lábio leporino, contração das pálpebras, estrabismo; ele pode ter dificuldades comunicativas temporárias, como um torcicolo, rouquidão, etc. Aparentemente, quanto mais perto for o defeito do equipamento comunicativo sobre o qual o ouvinte deve focar sua atenção, menor o defeito precisa ser para desequilibrar o ouvinte. (Devemos adicionar que se o orador precisar dirigir sua atenção ao ouvinte, mas sem tomar consciência exagerada dele, defeitos na aparência do ouvinte podem perturbar o orador.) Esses pequenos defeitos no aparato comunicativo tendem a bloquear o indivíduo afligido da corrente de contatos diários, transformando-o num participante da interação defeituoso a seus olhos ou aos olhos dos outros. Para concluir esta discussão de fontes de distração alienantes, gostaria de propor uma cautela óbvia. Quando o indivíduo sente que os outros não estão envolvidos apropriadamente, ele sentirá que os outros se comportaram de forma não apropriada sempre em relação aos padrões de seu grupo. Da mesma forma, um indivíduo que faria com que certos outros tivessem consciência indevida dele por causa de sua insinceridade, afetação ou imodéstia aparentes passaria despercebido numa subcultura em que a disciplina conversacional fosse menos estrita. Assim, quando membros de grupos diferentes interagem uns com os outros, é bastante provável que pelo menos um dos participantes seja distraído do envolvimento espon-

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tâneo no tópico da conversação devido a algo que pareça a ele um comportamento não apropriado da parte dos outros7. É a essas diferenças de costumes expressivos que devemos olhar em primeiro lugar ao tentar explicar o comportamento inapropriado daqueles com quem estamos interagindo, em vez de tentar encontrar a fonte da culpa nas personalidades dos ofensores. 4. Sobre o caráter repercussivo das ofensas de envolvimento. Eu sugeri que o desencantamento com uma interação pode assumir a forma de preocupação, consciência de si mesmo, consciência dos outros, e consciência da interação. Essas formas de alienação foram separadas para propósitos de identificação. Em conversas reais, quando um tipo ocorre, os outros não estarão longe. Quando o indivíduo sente que ele ou outros participantes não estão alocando seu envolvimento de acordo com padrões que ele aprova, e como consequência eles estão comunicando uma atitude imprópria para a interação e os participantes, então é provável que seus sentimentos sejam atiçados pela impropriedade - como seriam se quaisquer outras obrigações da ordem cerimonial fossem quebradas. Mas as coisas não param por aí. Testemunhar uma ofensa contra obrigações de envolvimento, diferentemente de outras obrigações cerimoniais, faz com que a testemunha retire sua atenção da conversação e a volte para a ofensa que ocorreu durante ela. Se o indivíduo se sente responsável pela ofensa que ocorreu, é provável que ele sinta envergonhadamente consciência de si. Se os outros parecem ser responsáveis pela ofensa, então é provável que ele se sinta indignadamente consciente dos outros em relação a eles. Mas ter consciência de si ou dos outros é precisamente uma ofensa contra as obrigações de envolvimento. O mero ato de testemunhar uma ofen-

7. Por exemplo, no intercâmbio social entre habitantes tradicionais das Ilhas Shetland, o pronome "eu" tende a ser pouco utilizado; seu uso mais frequente por indivíduos do resto da Grã-Bretanha, e especialmente seu uso relativamente frequente por americanos, leva o habitante das Shetland a sentir que os forasteiros são imodestos e grosseiros. Podemos adicionar que o tato das Shetland muitas vezes impede que os forasteiros descubram que seu comportamento perturba os habitantes das ilhas. 121


sã de envolvimento, para não falar de sua punição, pode causar um crime contra a interação, transformando a vítima do primeiro crime em criminosa. Assim, durante a interacão falada, quando um indivíduo é afligido pelo desconforto, muitas vezes ele contamina os outros com a mesma doença. É preciso adicionar uma qualificação. O indivíduo pode se tornar envolvido erroneamente e ainda assim nem ele nem os outros podem perceber que isto acontece, e muito menos se tornar envolvidos inapropriadamente por causa dessa percepção. Ele comete uma ofensa latente que apenas aguarda que alguém a perceba para se tornar manifesta. Quando os outros finalmente percebem que ele está envolvido erroneamente, e comunicam o fato desse juízo para ele, ele pode como consequência se alvoroçar, consciente de si mesmo, como pode ocorrer quando ele descobre este fato sozinho. Assim, um indivíduo pode "despertar" de um devaneio e, constrangidamente, descobrir-se no meio de uma interacão, mas completamente alienado dela. 5. O fingimento de envolvimento Quando uma conversa não consegue capturar o envolvimento espontâneo de um indivíduo que é obrigado a participar dela, é provável que ele finja uma aparência de estar realmente envolvido. Ele precisa fazer isto para salvar os sentimentos dos outros participantes, e sua boa opinião, independentemente de seus motivos para querer efetuar esse salvamento. Ao fazer isto, ele tem um efeito amortecedor sobre as consequências repercussivas do envolvimento erróneo, garantindo que, apesar de ele estar descontente, seu descontentamento não contaminará os outros. Ao mesmo tempo, entretanto, ele ergue uma barreira entre si mesmo e o mundo que poderia se tornar real para ele. E essa barreira é composta daquele tipo especial de desconforto encontrado caracteristicamente durante a conversação; o tipo de desconforto que ocorre quando as obrigações de envolvimento não podem ser deixadas de lado, e nem realizadas espontaneamente; o tipo que ocorre quando o indivíduo é separado da realidade da interacão mesmo quando a interacão está ao seu redor. Enquanto uma forma de maquinação, o envolvimento fingido será julgado diferentemente de acordo com o motivo que o indiví122

duo alienado tem para maquiná-lo. Algumas demonstrações de envolvimento são consideradas cínicas porque o indivíduo parece não estar realmente interessado nos sentimentos dos outros, e sim naquilo que pode ser ganho ao levar os outros a uma crença de que capturaram a sua atenção. Ele passa a impressão de estar ocupado com a conversa, mas está realmente ocupado com a tarefa de passar essa impressão. Por outro lado, se o indivídualienado está genuinamente preocupado com os sentimentos dos o outros como algo importante em si mesmo, então qualquer ato que proteja esses sentimentos pode ser considerado uma forma de tato, e aprovado por isso. Devemos notar que muitas vezes a demonstração de envolvimento dada pelo participante cuidadoso não é tão boa quanto ele é capaz de dar. Algum poder quase que além dele o forçará a demonstrar aos outros e a si mesmo que esse tipo de interacão com esses participantes não é o tipo de coisa que captura sua atenção; alguém precisa perceber que ele está talvez acima ou além disso. Aqui encontramos uma forma de insubordinação realizada por aqueles que podem não estar realmente em posição para se rebelar. As formas de não esconder bem o envolvimento erróneo diplomaticamente escondido constituem, então, os sintomas do tédio. Alguns sintomas do tédio sugerem que o indivíduo não realizará nenhum esforço para terminar o encontro ou sua participação oficial nele, mas que ele também não dará muito ao encontro. A iniciação de envolvimentos laterais, como folhear uma revista ou acender um cigarro, são exemplos. Outros sintomas do tédio sugerem que o indivíduo está prestes a terminar sua participação oficial, e funcionam como um aviso diplomático disto8. Manifestar sinais de tédio é uma inconsideração. Mas, de certa forma, aquele que faz isto garante aos outros que não está fingindo alguma coisa que não sente; eles pelo menos sabem sua posição real

8. Há na verdade uma pequena literatura sobre "relações humanas aplicadas" detalhando formas pelas quais o superior pode indicar que uma entrevista terminou, permitindo que o outro inicie as despedidas, de forma a salvar sua fachada. 123


em relação a ele. Suprimir esses sinais completamente é considerado suspeito, pois isto impede que os outros obtenham o benefício de dicas informativas que podem dizer a eles qual é a realidade da situação. Assim, enquanto existe uma obrigação de fingir envolvimento, existe outra que induz o indivíduo a não fingi-lo muito bem. E um fato interessante que, quando o eu do indivíduo entediante está comprometido profundamente com a situação, como pode ocorrer, por exemplo, durante despedidas e juramentos de afeição, então é provável que o indivíduo entediado sinta uma compulsão forte a ocultar sinais de alienação e fingir completamente envolvimento. Assim, é nos momentos mais pungentes e cruciais da vida que o indivíduo é muitas vezes forçado a ser o mais calculista; estes também são os momentos em que o indivíduo entediante precisará mais de candura dos outros, e será mais incapaz de suportar recebê-la. Eu sugeri que uma demonstração de envolvimento pode ser fingida por participantes cínicos e cuidadosos; a mesma demonstração também pode ser fingida por aqueles que se sentem constrangidamente conscientes de si. Eles podem até enfeitar sua produção fingindo sinais de tédio. O indivíduo troca assim uma condição que coloca dúvida sobre ele próprio por uma que coloca dúvida sobre os outros. Há uma doutrina psicológica que !eva esta observação um passo adiante e afirma que, quando o indb íduo está convencido de que está entediado, ele pode estar tentando esconder de si mesmo que na verdade está constrangido9. Encontros conversacionais em que os participantes se sentem obrigados a manter envolvimento espontâneo, mas não conseguem fazer isso, são encontros em que eles se sentem desconfortáveis e podem gerar desconforto para os outros. O indivíduo reconhece que certas situações produzirão esta alienação nele e nos outros, e 9. Para versões psicanalíticas deste tema, cí. GREENSON, R. "On Boredom". Journal of ihe American Psychoanalytical Association, vol. l, p. 7-21. • FENICHEL, O. "The Psychology of Boredom", n. 26. The Collected Papers ofOtto Fenichd, primeira série. Nova York: Norton, 1953. Algumas observações interessantes sobre o culto do tédio e o lugar desse culto no mundo de um adolescente podem ser encontradas no romance de SALINGERJ.D. TheCatcherin theRye. Boston: Little/Brown, 1951. 124

que é muito improvável que outras situações façam isso. Ele reconhece que certos indivíduos são participantes defeituosos porque nunca estão prontos para se envolver espontaneamente em encontros sociais, e terá termos populares como "chato", "metido", "peixe morto", "estraga-prazeres" para se referir a esses participantes refratários. Aqueles que não conseguem manter conversas com seus superiores sociais podem ser chamados de grosseiros; enquanto aqueles que desdenham do envolvimento com inferiores podem ser chamados de esnobes; em ambos os casos as pessoas são condenadas por valorizar mais a posição que a interação. Como sugerido anteriormente, o indivíduo também conhecerá algumas pessoas defeituosas porque seus modos e atributos sociais dificultam o envolvimento apropriado dos outros. Também é claro que em qualquer interação desenvolve-se uma função de papel que garante que todos sejam e permaneçam envolvidos espontaneamente. Essa função de ignição pode ser preenchida por participantes diferentes em momentos diferentes da interação. Se um participante não conseguir manter a interação funcionando, outros participantes terão que se ocupar da parte dele. Indivíduos podem adquirir uma reputação de realizar bem este tipo de trabalho, criando gratidão ou ressentimento como alguém que é sempre a vida do encontro. 6. Generalizando o esquema 1) O Contexto de obrigações de envolvimento. Uma limitação que estabelecemos para nós mesmos é lidar com situações em que todos aqueles presentes estão oficialmente obrigados a se manter como participantes da conversação e a manter envolvimento espontâneo na conversação. Essa condição é frequente o bastante para servir como ponto de referência, mas não é preciso ser completamente limitado por ela. Na verdade, as obrigações de envolvimento são definidas em termos do contexto total em que o indivíduo se encontra. Assim, haverá algumas situações nas quais o envolvimento principal daqueles presentes deveria ser investido numa tarefa física; a conversação, se ocorrer, terá que ser tratada como um envolvimento lateral cujo começo e fim dependem das exigências atuais da tare125


ia que está sendo desempenhada. Haverá outras situações em que o papel e estatuto de um participante em particular será muito bem expresso por seu direito de tratar uma conversação de forma arbitrária, participando dela ou não, dependendo de sua inclinação no momento. Um pai às vezes tem esse direito em relação às conversas em torno da mesa mantidas por membros inferiores da família, que não têm esse direito. Eu gostaria de citar outra forma pela qual o indivíduo pode aceitar uma alocação diferente de envolvimento daquela que é esperada para os outros. Nas provocações que os jovens sofrem dos mais velhos, ou nos interrogatórios que empregados recebem de empregadores, a perda de compostura da parte dos subordinados pode ser aceita pelo superior como uma parte esperada e apropriada do padrão de envolvimento. Em tais momentos, o subordinado pode sentir que gostaria de estar envolvido espontaneamente na conversa, mas seu pânico o impede de fazê-lo, enquanto o superior pode sentir que, para ele, o foco apropriado de atenção, que ele pode manter confortavelmente, não é a conversa real e sim a situação mais ampla gerada pelo sofrimento cómico do inferior enquanto ele se debate na conversação10. Na verdade, se o subordinado demonstrar compostura nessas ocasiões, o superior pode se sentir afrontado e constrangido. Da mesma forma, haverá ocasiões em que sentimos que um indivíduo deveria, por respeito às dificuldades em que se encontra, estar preocupado ou envolvido exageradamente. Esse envolvimento erróneo pode perturbar um pouco a interação, mas um aprumo perfeito de sua parte poderia escandalizar tanto aqueles presentes a ponto de perturbá-la muito mais. Assim, embora seja verdade que às vezes um indivíduo será considerado um herói da interação

10. O sofrimento da pessoa com consciência de si mesma é, na verdade, um estímulo tão bom para evocar envolvimento espontâneo da parte daqueles que o testemunham que, durante conversas em que pode haver dificuldades para capturar o envolvimento daqueles presentes, os indivíduos podem se revezar para causar pequenas infrações contra a propriedade e para se constranger, garantindo assim o envolvimento. Daí o paradoxo de que se todas as regras de comportamento social correto forem seguidas com exatidão, a interação pode se tornar flácida, estéril e chata. 126

se permanecer envolvido numa conversação sob condições difíceis, em outras ocasiões tal lealdade será considerada temerária. Obrigações diferenciais em relação à mesma interação falada podem ser vistas mais claramente em interações de larga escala, como discursos públicos, em que é provável que encontremos especialização e segregação de papéis de envolvimento, com uma divisão entre participantes completos, de quem se espera que falem e escutem, e especialistas não participantes, cujo trabalho é se mover de forma discreta e cuidar de algumas das mecânicas da ocasião. Exemplos desses não participantes são empregados domésticos, mordomos, porteiros, estenógrafos e operadores de microfone. O alinhamento especial que esses funcionários têm para a situação é seu direito e dever particulares; ele é aceito abertamente por eles e para eles, e se eles se envolvessem manifestamente no conteúdo da fala eles na verdade causariam desconforto. Eles demonstram respeito pela ocasião ao tratá-la como um envolvimento lateral. Os próprios participantes, numa interação de larga escala, podem ter uma permissividade quanto ao envolvimento que não teriam numa conversa entre duas ou três pessoas, talvez porque quanto mais participantes houver para manter a ocasião, menos ela depende de qualquer um deles. De qualquer forma, descobrimos muitas vezes na interação de larga escala que é permissível que alguns participantes entrem por alguns momentos em apartes e discussões laterais, desde que modulem suas vozes e modos para demonstrar respeito aos acontecimentos oficiais. De fato, um participante pode até deixar a sala por um momento, e fazer isto de forma a comunicar a impressão de que seu foco de atenção principal ainda é mantido pela conversa, mesmo que seu corpo não esteja presente. Em tais ocasiões, o envolvimento principal e os laterais podem se tornar ficções mantidas oficialmente na aparência, enquanto padrões alternativos de envolvimento são realmente mantidos na prática. 2) Pseuáoconversações. Até o momento restringimos nossa atenção a interações que têm como seus atos comunicativos constitutivos os turnos de conversa tomados por participantes. Podemos estender nossa visão e tratar de interações parecidas com conversa127


coes em que os símbolos trocados não são discursos, e sim gestos estilizados, como na troca de cumprimentos não verbais11, ou jogadas de um certo tipo, como em jogos de cartas. Estas interações não faladas, mas parecidas com conversas, parecem ser similares, estruturalmente, com interações faladas, exceto que as capacidades que devem ser mobilizadas para desempenhar tal interação parecem ter mais a ver com o controle muscular dos membros do que é o caso na interação falada. 3) Interação desfocada. Eu sugeri que interações de fala, gestos e jogos são caracterizadas por um único foco de atenção cognitiva e visual principal que todos os participantes completos ajudam a manter. (É claro que o foco de atenção visual pode se mover de um participante para outro quando um orador cede seu papel de fala e volta ao papel de ouvinte.) Precisamos contrastar este tipo focado de interação com o tipo desfocado, onde os indivíduos em presença visual e auditiva uns dos outros cuidam de suas próprias vidas sem estarem ligados por um foco de atenção compartilhado. O comportamento de rua e a conduta em festas sociais grandes são exemplos. Quando examinamos interações desfocadas, descobrimos que as obrigações de envolvimento são definidas não em relação a urn foco conjunto de atenção cognitiva e visual, mas em relação a um papel que pode ser sugerido pela frase "indivíduo decoroso cuidan-

11. Este é um exemplo de conversa entre um psiquiatra e um paciente que é verbal apenas de um lado. "[...] durante uma análise de uma esquizofrênica muito perturbada com características depressivas, a paciente se escondeu por baixo de seu único traje, um cobertor, de forma a mostrar apenas a sobrancelha; não intimidado, eu continuei a conversa de onde tínhamos parado da última vez e notei as mudanças desse único membro visível, ainda que eloquente, cujas mudanças - um franzir, uma careta, surpresa, um lampejo de descontração, uma curva mais suave - indicavam as mudanças no humor e pensamentos dela. Minhas suposições mostraram-se correias, pois da próxima vez que ela exibiu seu rosto e usou sua voz, corroborou a linha geral de minhas apostas sobre o que ocorrera em sua mente. Essa sessão não foi um intercâmbio verbal - ela poderia até ser chamada de análise da sobrancelha -, mas havia uma tentativa de verbalizar, conceitualizar e concretizar no 'aqui e agora' aquilo que estava ocorrendo simultaneamente na mente dela" (RICHMAN, J. "The Role and Future of Psychotherapy with Psychiatry". Journal o/Mental Science, 96, 1950, p. 189). 128

do de sua própria vida sem interferir com a dos outros". Entretanto, quando mudamos para esse ponto de referência, descobrimos que todos os tipos de envolvimento erróneo que ocorrem durante a interação focada também ocorrem durante a desfocada, mas às vezes sob um nome diferente. Assim como um adolescente pode se tornar desconfortável e consciente de si mesmo ao falar com seu professor, ele também pode, ao entrar numa sala de aula cheia, sentir que está sendo observado criticamente e que seu modo de andar, que ele considera rígido e desajeitado, revela sua ansiedade social. Assim como podemos ter pessoas preocupadas na interação conversacional, também na interação desfocada podemos ter participantes "distraídos", que através de sua postura, expressão facial e movimentos físicos sugerem que estão momentaneamente "distantes", que deixaram cair momentaneamente a fantasia expressiva que se espera que os indivíduos utilizem sempre que estiverem na presença imediata de outros. E, é claro, o tédio também pode ocorrer durante a interação desfocada, como podemos observar em quase qualquer fila de indivíduos esperando para comprar um bilhete. E assim como substâncias como o álcool e a maconha podem ser empregadas para transformar uma conversa em algo que não é constrangedor ou entediante, elas também podem funcionar para tranquilizar indivíduos na cena mais ampla fornecida pela interação desfocada. Assim como um dito espirituoso pode honrar o momento conversacional, também o uso de roupas novas ou especiais, a oferta de alimentos caros ou raros, e o uso de flores perecíveis podem atrair a atenção ao valor único de uma ocasião social mais ampla. Claramente, então, há formas pelas quais a perspectiva empregada neste artigo pode ser usada para estudar a interação desfocada. Entretanto, não devemos esperar que a semelhança entre os dois tipos de interação seja completa. Por exemplo, parece que os indivíduos têm menos consciência de si mesmos em sua capacidade de participantes na interação desfocada do que como participantes de interação focada, especialmente a interação focada de tipo falado. De fato, na interação falada, o envolvimento espontâneo "normal" parece ser a exceção e a alienação de algum tipo a regra estatística. Isto é compreensível. Por um lado, requer-se que os participantes sejam levados espontaneamente pelo tópico da conversação; por

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outro lado, eles são obrigados a se controlar para que sempre estejam prontos a ficar dentro do papel de comunicador e atentos aos assuntos delicados que podem fazer com que os outros se sintam desconfortáveis. Por um lado eles são obrigados a obedecer todas as regras de conduta aplicáveis, e por outro eles são obrigados a tomar liberdades o bastante para garantir um nível mínimo de animação envolvente. Essas obrigações parecem estar em oposição umas às outras, exigindo um equilíbrio de conduta que é tão delicado e precário que a alienação e desconforto para alguém na interação são os resultados típicos. A interação desfocada não parece exigir a mesma delicadeza de ajuste. 7. Conclusão Muitos encontros sociais do tipo conversacional parecem compartilhar uma exigência fundamental: o envolvimento espontâneo dos participantes num foco oficial de atenção deve ser evocado e mantido. Quando esse requerimento existe e é cumprido, a interação "deslancha" ou é eufórica enquanto interação. Quando o encontro não consegue capturar a atenção dos participantes, mas não os libera da obrigação de se envolverem nele, então é provável que as pessoas presentes se sintam desconfortáveis; para elas a interação não deslancha. Uma pessoa que cronicamente torna a si mesma ou aos outros desconfortável na interação e perpetuamente mata encontros é um participante defeituoso; é provável que ele tenha um efeito tão daninho sobre a vida social ao seu redor que podemos simplesmente chamá-lo de uma pessoa defeituosa. Então, será importante saber sobre qualquer indivíduo se seu estatuto ou modos tendem a prejudicar a manutenção do envolvimento espontâneo na interação, ou a ajudá-la. Devemos notar que esta informação concerne ao indivíduo em sua capacidade enquanto participante da interação, e que, independentemente das outras capacidades em que ele possa estar ativo no momento, o papel de participante da interação é algo que ele será obrigado a manter. Os encontros sociais variam bastante quanto à importância que os participantes dão a eles, mas, sejam cruciais ou corriqueiros, todos os encontros representam ocasiões em que o indivíduo pode se tornar espontaneamente envolvido nos acontecimentos e derivar deles um 130

senso firme de realidade. E esse tipo de sentimento não é uma coisa trivial, independentemente do pacote de onde ele venha. Quando um incidente ocorre e o envolvimento espontâneo é ameaçado, então a realidade é ameaçada. A não ser que a perturbação seja resolvida, a não ser que os participantes da interação recuperem seu envolvimento apropriado, a ilusão de realidade será estilhaçada, o pequeno sistema social que é criado em cada encontro será desorganizado, e os participantes se sentirão desgovernados, irreais e anômicos. Tirando o senso de realidade que oferece, um encontro particular pode ter poucas consequências, mas precisamos enxergar que as regras de conduta que obrigam os indivíduos a serem capazes e estarem prontos a se entregar a tais momentos são de importância transcendente. Pessoas que obedecem a essas regras estão prontas para a interação falada, e a interação falada entre muitos tipos de pessoas em muitos tipos de ocasiões é necessária para realizar o trabalho da sociedade. O senso de realidade que foi discutido neste artigo toma sua forma em oposição a modos de alienação, a estados como a preocupação, a consciência de si mesmo e o tédio. Por sua vez, esses modos de desengajamento devem ser compreendidos em referência à questão central do envolvimento espontâneo. Quando vemos a forma pela qual um encontro falado pode conseguir ou não trazer seus participantes para ele, temos uma pista para seguir para a compreensão de outros tipos de compromissos — a carreira ocupacional do indivíduo, seus envolvimentos políticos, seu pertencimento à família -, pois haverá um sentido em que essas questões mais amplas aparecem em ocasiões recorrentes de interação focada e desfocada. Ao examinar as formas pelas quais o indivíduo pode perder o passo com o momento sociável, talvez possamos aprender algo sobre a forma pela qual ele pode ser alienado de coisas que ocupam muito mais o seu tempo.

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Sintomas mentais e a ordem pública'

As pessoas que atraem a atenção de um psiquiatra normalmente antes atraem a atenção de seus conhecidos leigos. Aquilo que os psiquiatras enxergam como doença mental é normalmente visto primeiro pelo público leigo como comportamento ofensivo - comportamento digno de escárnio, hostilidade e outras sanções sociais negativas. O objetivo da psiquiatria sempre foi interpor uma perspectiva técnica: a punição é substituída pela compreensão e tratamento; a preocupação com o círculo social que foi ofendido é substituída pela preocupação com os interesses do ofensor. Eu me abstenho de comentar aqui sobre o quão infeliz foi para muitos ofensores receber essa boa sorte médica. A psiquiatria freudiana introduziu uma peculiaridade importante nessa corrente médica. Em pequenos clássicos da análise, os freudianos mostraram que certos delitos particulares, agora chamados de sintomas, podem ser interpretados ou lidos como parte do sistema de comunicação e defesa do ofensor, especialmente uma reversão a modos de conduta infantis. O triunfo final dessa perspectiva psicológica técnica é a implicação de que o comportamento socialmente impróprio pode ser psicologicamente normal (como quando um homem demonstra força o bastante para encerrar uma relação conjugal doentia), e um comportamento socialmente apropriado pode ser realmente doente (como exemplificado pelas preocupações obsessivas e retraimento sexual de alguns químicos pesquisadores). Resumindo, para o psiquiatra, um sintoma inicial flagrante é meramente uma permissão para começar a escavar. Um efeito dessa abordagem esclarecida que o sociólogo pode deplorar é que o interesse nas próprias impropriedades, paradoxalmen* Reimpresso com permissão de Disorders of Communicatíon, vol. XLII, p. 262-269. Research Publications, A.R.N.M.D. Copyright © 1964 da Association for Research in Nervous and Mental Disease.

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te, diminui. (Afinal, um sintoma é apenas um sintoma, mesmo que ele marque o lugar onde começamos a escavar. Se, através de alguma incisão, conseguimos amputar um sintoma, e não fazemos nada sobre a dinâmica, é provável que outro sintoma apareça; ele pode ter um rosto bastante diferente, mas terá o mesmo olhar malicioso.) Ao se deslocar tão rapidamente do delito social para o sintoma mental, os psiquiatras tendem a não se sair muito melhor do que os leigos em sua avaliação da impropriedade de um certo ato - o que é defensível no caso de atos extremamente desviantes, mas não no caso de muitos deslizes mais suaves. Isto é inescapável, pois nós simplesmente não temos um mapeamento técnico dos vários padrões de comportamento aprovados em nossa sociedade, e a pouca informação que temos não é transmitida no treinamento de escolas de medicina. Os psiquiatras não conseguiram nos oferecer um esquema sistemático para identificar e descrever o tipo de delito representado pelo comportamento psicótico. No momento, há uma linguagem bastante especial se estabelecendo, envolvendo termos como "achatamento emocional", "postura inadequada", "maneirismo", "fora de contato", e outros, o que resolve o problema de ter que escrever notas clínicas apressadamente, mas é completamente desajeitada para o profissional. A linguagem moralista nas ciências sociais construída em torno da noção incrível de que as pessoas devem manter comunicação boa, clara, direta ou aberta entre si é ainda pior - como se a comunicação fosse um comprimido que devêssemos engolir porque é bom para a barriga. Um segundo efeito da abordagem psiquiátrica esclarecida que o sociólogo pode deplorar é que dela resultou uma versão da comunicação muito especial e limitada. Os psiquiatras, devido à sua inclinação à prática no consultório e uma preocupação (pelo menos até recentemente) com neuróticos em vez de psicóticos, tendem a se encontrar com seus pacientes em salas para duas pessoas. Pior, eles tendem a trabalhar sob o viés de cabine telefónica, ou seja, que aquilo em que o paciente estava engajado era de alguma forma um tipo de fala, de partilha de informação, e o problema é que a linha estava ocupada, a ligação defeituosa, a pessoa do outro lado é tímida, desconfiada, com medo de falar, ou insistindo em usar um código. Aparentemente a profissão exigia forte paciência e um bom ouvido. A hipnose e os "soros da verdade" também eram úteis para desbloquear as linhas. Recentemente, com a introdução de eletrodos corticais, progredimos, junto com a Bell Telephone, para um tipo de ligação 133


direta. Posso adicionar que poucas profissões conseguiram institucionalizar tão bem, e vender no mercado social, suas próprias fantasias daquilo que eles estavam engajados em fazer. De qualquer forma, há uma cegueira geral quanto ao seguinte fato: muitas vezes, o desvio de conduta do paciente é um fato público, no sentido de que qualquer um na mesma sala com ele sentiria que ele está se comportando inapropriadamente, e, mesmo que não qualquer um, pelo menos qualquer um na mesma conversação. É verdade que o paciente pode se comportar mal apenas porque as pessoas presentes são tomadas como substitutas das figuras realmente significativas. Mas qualquer que seja o alvo mais profundo do desvio de conduta, e por mais bem-sucedido que o psiquiatra seja em garantir que ele e seu paciente estão sozinhos no consultório, o desvio de conduta é uma coisa pública, potencialmente acessível e potencialmente uma preocupação para toda e qualquer pessoa que possa entrar na presença do paciente. E quando saímos do recinto profissional do psiquiatra, este fato se torna mais óbvio. A psicose é algo que pode se manifestar para qualquer um no local de trabalho do paciente, em sua vizinhança, em sua casa, e ela deve ser vista, pelo menos inicialmente, como uma infração da ordem social que prevalece nesses locais. O outro lado do estudo de sintomas é o estudo da ordem pública, o estudo do comportamento em lugares públicos e semipúblicos. Se quisermos aprender sobre um dos lados dessa questão, talvez devêssemos estudar o outro também. Eu sugiro, então, que o comportamento sintomático pode muito bem ser visto, em primeira instância, não como uma forma torturada de comunicação entre duas pessoas, e sim como uma forma de desvio de conduta social, no sentido em que Emily Post e Amy Vanderbilt reconhecem este termo. Eu quero, por um momento, voltar o relógio psiquiátrico e delinear uma abordagem levemente diferente para a sintomatologia e a comunicação. Começando com o delito social de um pré-paciente, eu proponho que examinemos a regra geral de conduta que o comportamento ofensivo infringe, e então tentemos preencher o conjunto de regras do qual aquela com que começamos é apenas um elemento, e ao mesmo tempo tentemos vislumbrar o círculo ou grupo social que mantém as regras e é ofendido pela infração de qual-

1. Autoras de livros de etiqueta populares nos Estados Unidos [N.T.. 134

quer uma delas. Quando esse trabalho estiver feito, podemos voltar ao ofensor individual para examinar novamente o significado para ele de seu comportamento ofensivo. Quando terminarmos essa análise, deveremos estar em posição para compreender o fato constrangedor de que um indivíduo que parece ser completamente louco num dia pode, no próximo, através da mágica da "remissão espontânea", voltar a ter uma conduta "sã". Também devemos ser capazes de encontrar termos que descrevam com elegância e aptidão os sintomas-padrão. E, como Harold Garfinkel sugeriu, devemos estar em posição (não desejável em si mesma, mas desejável como um teste de teoria) para programar a insanidade, quer dizer, reduzir ao mínimo as instruções que teríamos que passar para um sujeito experimental para permitir que ele agisse lindamente como um louco, vindo de dentro, por assim dizer. Apesar dos cientistas sociais classificarem o comportamento psicótico como um tipo de conduta imprópria, um tipo de desvio, há muitos anos, eles, como seus colegas médicos, não levaram muito a questão adiante. Um problema é que apesar de ser bastante fácil chamar o comportamento psicótico de desvio social, é ainda mais fácil enxergar que há muitos tipos de desvio social que não são exemplos de comportamento psicótico - mesmo que psiquiatras e psicólogos valentes tenham tentado chegar às raízes doentes de tudo, do crime à deslealdade política. Nós dizemos que criminosos comuns ofendem a ordem da propriedade privada; traidores ofendem a ordem política; casais incestuosos ofendem a ordem de parentesco; homossexuais ofendem a ordem do papel sexual; viciados em drogas talvez ofendam a ordem moral, e assim por diante. Precisamos, então, perguntar: que tipo de ordem social é relacionada especificamente ao comportamento psicótico? O comportamento psicótico, como sugerido, vai contra aquilo que pode ser pensado como a ordem pública, especialmente uma parte da ordem pública, a ordem que governa as pessoas em virtude delas estarem na presença física imediata umas das outras. Grande parte do comportamento psicótico é, em primeira instância, uma falha em seguir as regras estabelecidas para a conduta da interação face a face - quer dizer, regras estabelecidas ou pelo menos aplicadas por algum grupo de avaliação, julgamento ou policiamento. O comportamento psicótico, em muitos exemplos, é aquilo que podemos chamar de impropriedade situacional. 135


Tendo em vista que muitos sintomas psicóticos são exemplos de impropriedade situacional, precisamos nos perguntar se todas as impropriedades situacionais são exemplos de sintomas psicóticos. Se isto fosse o caso, teríamos uma forma sociologicamente fundamentada para diferenciar psicóticos de outras pessoas. Mas, obviamente, há muitas impropriedades situacionais aparentemente não relacionadas com a desordem mental. Há a conduta grosseira do estrangeiro cultural, o arrogante, o excêntrico, o insolente, o cruel, o celebrante, o bêbado, o idoso e o jovem. Levando isto em conta, precisamos nos perguntar se essas impropriedades situacionais que chamamos de sintomáticas têm alguma coisa em comum que ao mesmo tempo seja exclusiva delas. Na literatura, há algum esforço para sugerir tais atributos. Sugere-se que uma impropriedade situacional psicótica é um ato pelo qual não é fácil ter emparia, levando-nos a sentir que o ator é imprevisível e indigno de confiança, que ele não está no mesmo mundo que nós, que não podemos nos colocar no lugar dele. Por mais tentadora que seja essa abordagem, eu não creio que ela seja correta. A distinção aguda entre impropriedades situacionais sintomáticas e não sintomáticas é certamente parte de nosso aparato conceituai popular para olhar as pessoas; o problema é que ela não parece ter nenhuma relação fixa com o comportamento real ao qual ela é aplicada. Não há nenhum consenso, exceto em casos extremos, sobre em qual dos dois poios devemos classificar um comportamento. O acordo normalmente ocorre depois do fato, depois da aplicação do rótulo "doença mental", ou (no outro caso), depois de sua aplicabilidade ter sido completamente rejeitada. Por isso, eu sinto que uma análise sociológica da sintomatologia psicótica deve inevitavelmente ser um pouco insatisfatória, incluindo um conjunto de condutas percebidas como normais além do conjunto de condutas percebidas como psicóticas. Comecemos agora a olhar socialmente para os sintomas. Primeiro, exatamente o que é uma impropriedade situacional? Podemos enroscar esta questão perguntando: que tipos de eventos - apropriados ou inapropriados - podem ocorrer apenas em situações face a face? Algumas possibilidades são: 1) ataque físico e sexual, e interferências menos dramáticas com os movimentos corporais livres. Deixemos essas possibilidades de lado por um momento, ainda que obviamente o temor da ocorrência possível desses exemplos tenha um papel importante em nossa atitude para com os mentalmente doen136

tes. 2) comunicação face a face: verbal, envolvendo a emissão e recepção de mensagens, e não verbal, envolvendo a transmissão e recolhimento de informações sobre o informante. Eis aquilo que é distintivamente situacional ou de face a face sobre a comunicação verbal e não verbal entre pessoas que estão presentes entre si: 1) o apoio nos sentidos diretos ou sem auxílio e 2) o apoio em mensagens incorporadas, aquelas que só podem ser transmitidas porque o corpo do transmissor está presente. Como os estudantes da comunicação sugeriram, esses dois fatores em conjunto implicam que: 1) haverá uma simetria simultânea de papéis (emissor será receptor, transmissor será recoIhedor); 2) a comunicação será muito rica em qualificado rés; 3) haverá oportunidades consideráveis de retroalimentação. Por mais útil que possa ser esta análise das características comunicativas da interação face a face, ela ainda é derivada da suposição de que a interação face a face e a comunicação são mais ou menos a mesma coisa e que uma impropriedade na conduta situacional é de alguma forma uma patologia da comunicação. Entretanto, esta é uma suposição muito traiçoeira, e (como já foi sugerido) sua consonância com uma orientação profissional intelectualista de classe média a torna ainda mais traiçoeira. Eu quero afirmar que quando a comunicação falada ocorre, a fala ocorre, ou espera-se que ocorra, apenas quando aqueles presentes uns aos outros se juntam num tipo especial de associação ritualmente bem marcada, um tipo especial de amontoado que podemos começar a pensar como um círculo conversacional. Quando ocorre uma impropriedade, como uma gesticulação maneirista, isto se torna digno de nota, e é notado não porque algo está sendo comunicado, mas porque as regras que tratam de como devemos nos comportar quando na presença de outros são quebradas. A comunicação verbal e não verbal é algo afunilado através de outra coisa. Esta outra coisa são os padrões aprovados de modos e associação ou coparticipação em cujos termos os indivíduos são obrigados a regular seus encontros. Agir de forma psicótica é, com muita frequência, associar-se incorretamente com os outros na sua presença imediata; isto comunica alguma coisa, mas a infração em primeira instância não é de comunicação, e sim das regras de counião. São essas regras, e as unidades de associação resultantes, os modos sancionados resultantes de se encontrar e se separar, que supostamente fornecem um esquema naturalista em que muitos supostos sintomas psicóticos podem ser localizados e descritos sistematicamente. Quais são, então, as regras do comportamento apropriado 137


na presença de. outras pessoas? Quais são as unidades de associação, de encontros, que essas regras possibilitam e que fornecem o esquema em que todos os eventos face a face ocorrem, incluindo a comunicação face a face? A linguagem da sociologia tradicionalmente lida com organizações, estruturas, papéis e estatutos, e não está bem adaptada para descrever o comportamento de pessoas em virtude de sua presença entre si. O termo "interação", infelizmente, significa quase qualquer coisa, e as unidades de análise necessárias, se quisermos nos focar sobre a interação face a face, receberam pouca consideração. Precisamos então de uma tradução de termos estruturais para interacionais, enquanto mantemos a chave do método sociológico, o foco em regras e compreensões normativas. Com efeito, descrever as regras que regulam uma interação social é descrever sua estrutura. Enquanto um meio de começar a análise do comportamento face a face, podemos recomendar três unidades básicas de interação. A primeira é a ocasião social: um evento, como um jantar, que é planejado e rememorado como uma unidade, tem um horário e local de ocorrência, e estabelece o tom para aquilo que acontece durante e dentro dele. As ocasiões sociais parecem se misturar com aquilo que o psicólogo Roger Barker chama de ambientes de comportamento, especialmente no caso de ocasiões que são informais e que não são muito percebidas como entidades em si mesmas. Em segundo lugar, eu uso o termo ajuntamento para me referir a qualquer conjunto de dois ou mais indivíduos cujos membros incluem todos, e apenas aqueles, que no momento estão na presença imediata uns dos outros. Com o termo situação social eu me referirei ao ambiente espacial completo que transforma uma pessoa que nele penetre em um membro do ajuntamento que está (ou que então se torna) presente. As situações começam quando o monitoramento mútuo ocorre e terminam quando a penúltima pessoa parte. Quando as pessoas estão num ajuntamento, elas podem se unir para manter um foco conjunto de atenção visual e cognitiva, ratificando-se mutuamente como pessoas abertas umas às outras para a conversa ou seus substitutos. Eu chamo tais estados de fala de encontros ou engajamentos. Estes ajuntamentos focados devem ser diferenciados dos casos em que as pessoas estão presentes umas às outras, mas não engajadas diretamente na manutenção de um estado de fala, constituindo assim um ajuntamento desfocado. A interação

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focada é o tipo que ocorre num estado de fala; a interação desfocada é o tipo que ocorre, digamos, quando duas pessoas se entreolham enquanto aguardam um ônibus, mas não concederam à outra o estatuto de coparticipante num estado de fala aberto. As regras que regulam o início, a manutenção e o término de estados de fala, abrangendo uma parte importante daquilo que Bateson e Ruesch chamam de metacomunicação, foram razoavelmente analisadas na literatura, especialmente em relação a descrições de produções verbais supostamente psicóticas, e obviamente na pesquisa de grupos pequenos e em descrições de psicoterapia de grupo. De qualquer forma, esse aspecto da conduta situacional se encaixa muito bem com o viés ocupacional da sala de duas pessoas e a conversa em voz baixa que os psiquiatras utilizam em sua análise do comportamento psicótico. O que talvez tenha sido ignorado nessa área são as regras que governam os encontros entre aqueles que não se conhecem, as regras, quer dizer, que tratam da abordagem e aproximação de estranhos, e, além disso, as regras que tratam do estado de estar "com" alguém. As regras que tratam da interação desfocada - a pura e simples copresença na mesma situação - não foram muito analisadas sistematicamente; as poucas sugestões disponíveis vêm ou de descrições de retraimento, por exemplo as de Bleuler, ou de livros de etiqueta. Os sociólogos que se especializam no comportamento coletivo se focam em pânicos, protestos e multidões, com poucas ideias sobre a estrutura do tráfego humano pacífico em lugares públicos. O respeito que transforma meras fronteiras físicas como paredes e janelas em fronteiras comunicativas; a desatenção civil bem estruturada que é concedida às pessoas presentes, através da qual tratamos o outro como se ele tivesse sido visto, mas não como um objeto de curiosidade indevida; a manutenção da fachada e da aparência como se sempre estivéssemos prontos para receber orientações e informações do ambiente; a expressão da alocação apropriada de envolvimento como entre envolvimentos principais e laterais (como fumar) - essas exigências normativas da mera presença não receberam nenhuma sistematização. Da mesma forma, pouca atenção foi concedida ao gerenciamento de engajamentos acessíveis, quer dizer, engajamentos que são mantidos na mesma situação social em que há outros engajamentos e outras pessoas não engajadas. Nós apenas começamos a estudar, sob a influência de etologistas, as regras sobre espaçamento, através 139


das quais os círculos conversacionais e as pessoas não engajadas numa situação social dividem o espaço disponível de forma a maximizar certas variáveis, modulando o som apropriadamente. Não analisamos muito a dívida que um participante de um engajamento deve ao engajamento em relação à situação como um todo, uma dívida que as pessoas se recusam a pagar quando manifestam várias formas de descontentamento e distração; e nem, similarmente, tratamos muito da dívida que o engajamento como um todo deve à situação social e ocasião social - obrigando aqueles no engajamento a ficarem presos a ele, mas não serem levados longe demais pelo desenvolvimento progressivo da atividade do engajamento. Quando um paciente age de forma classicamente psicótica, ele está ativo em relação a essas várias regras e as unidades de associação que elas apoiam. Eu desejo afirmar agora que há um conjunto extremamente amplo de motivos e razões para o indivíduo que realiza tal conduta. Quando um paciente com danos cerebrais e um paciente funcionalmente doente manifestam desvios de conduta similares - por exemplo, quando não respondem ao início de um engajamento - a psiquiatria encontra razões para confirmar a crença de que a conduta pode ser uma coisa médica sintomática, seja a doença orgânica ou funcional. Mas isto certamente é uma inversão da natureza. É o comportamento do paciente orgânico que imita um delito socialmente estruturado, assim como o silêncio soturno de uma coruja é lido por nós como um sinal de sabedoria, e é o paciente funcional que manifesta o retraimento do contato em sua forma mais completa e original. Uma garota de classe média alta que ignora os assobios, cantadas e convites de jovens favelados exemplifica o ato de estar fora de contato de uma forma ainda mais comum. Eu não conheço nenhum desvio de conduta psicótico que não possa encontrar um igual na vida cotidiana na conduta de pessoas que não estão psicologicamente doentes e nem são consideradas como tal; e em todos os casos podemos encontrar uma multidão de motivos diferentes para se engajar no desvio de conduta, e uma multidão de fatores diferentes que modificarão nossa atitude quanto à sua realização. Eu desejo apenas adicionar que os hospitais psiquiátricos, talvez através de um processo de seleção natural, são organizados de forma a fornecer exatamente o tipo de ambiente em que participantes involuntários têm recurso à exibição de impropriedades situacionais. Se você retira das pessoas todos os meios costumeiros de expressar raiva e alienação, e as coloca num lugar onde elas nunca ti-

veram razão melhor para ter tais sentimentos, então o recurso natural será se agarrar ao que resta - impropriedades situacionais. Permitam-me tentar resumir o argumento. Quando as pessoas entram na presença física imediata umas das outras, elas se tornam acessíveis umas às outras de formas únicas. Surgem as possibilidades de ataques físicos e sexuais, de abordar e ser levado a estados de fala indesejados, de ofender e importunar através do uso de palavras, de transgredir certos territórios do eu do outro, de demonstrar descaso e desrespeito pelo ajuntamento presente e pela ocasião social sob cujos auspícios o ajuntamento ocorre. As regras da conduta de face a face que prevalecem numa dada comunidade estabelecem a forma que a counião face a face deve ocorrer, e resulta então uma espécie de "Paz do rei", garantindo que as pessoas respeitarão umas às outras através do idioma de respeito disponível, manterão seu lugar social e seus compromissos interpessoais, permitirão e não se aproveitarão do fluxo de palavras e pessoas e tratarão bem a ocasião social. As ofensas contra essas regras constituem impropriedades situacionais; muitos desses delitos prejudicam os direitos de todos os presentes e constituem ofensas transmitidas publicamente, independentemente do fato de que muitas parecem ser motivadas pela relação particular do ofensor com pessoas particulares presentes, ou mesmo com pessoas ausentes. Essas impropriedades não são, em primeira instância, um tipo linguístico de comunicação interpessoal, e sim exemplos de desvios de conduta públicos - um defeito não na transmissão de informação ou de relações interpessoais, mas do decoro e do porte que regulam a associação face a face. É neste mundo de formas sancionadas de associação que os sintomas psicóticos encontram seu lar natural, e é através da aquisição de um quadro sistemático das coerções da conduta pública aprovada que podemos obter a linguagem para falar bem e eficientemente sobre a sintomatologia. As regras para o comportamento enquanto na presença de outros e em virtude da presença de outros são as regras que possibilitam a comunicação face a face ordenada do tipo linguístico; mas essas regras, e as muitas infrações delas que os psicóticos e outros transgressores exibem sistematicamente, não devem em si mesmas ser tratadas antes de tudo como comunicações; elas são antes de tudo orientações (e sua perturbação) da organização social, a associação organizada de pessoas presentes umas às outras.

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Onde a ação está' Estar na corda bamba é a vida; o resto é espera1.

Há uma década o termo "ação" era usado, entre os jovens americanos urbanos não muito afeitos à gentileza, num sentido não parsoniano em referência a situações de um tipo especial, contrastadas com situações em que "não havia ação". Muito recentemente, esta locução tem sido usada por quase todo mundo, e o próprio termo tem sido flagelado sem misericórdia em comerciais e propagandas. Este artigo, então, lida com um termo que aponta para algo vivo, mas que está ele mesmo quase morto. A ação será definida analiticamente. Farei um esforço para descobrir onde ela pode ser encontrada e o que isto implica sobre estes lugares. 1. Chances Onde quer que a ação seja encontrada, também encontraremos chances. Comecemos então com um exemplo simples de uma chance, e continuaremos a partir dele. Dois garotos encontram uma moeda de cinco centavos no seu caminho, e decidem fazer um cara ou coroa para ver quem fica com

* Este capítulo apresenta algumas dificuldades de tradução. Goffman utiliza muitos termos originários de jogos de azar e cassinos dos Estados Unidos, termos que muitas vezes possuem tradução apenas aproximada em português. Eu indico entre colchetes os termos originais quando necessário, e adicionei várias notas para ajudar a esclarecer o significado de alguns deles. 1. Atribuído a Karl Wallenda, falando sobre voltar a se apresentar na corda bamba depois do acidente fatal de sua trupe em Detroit. [Karl Wallenda era o patriarca dos "Wallendas Voadores", uma trupe circense famosa nos Estados Unidos por suas apresentações de alto risco - N.T.]

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ela. Eles concordam, então, em entrar numa brincadeira [play] ou, como os probabilistas chamam, uma aposta [gamble] - neste caso, uma rodada do jogo [game] de cara ou coroa. Uma moeda pode ser usada como uma máquina de decisões, da mesma forma que uma roleta ou um baralho de cartas. Com essa máquina em particular, fica claro que enfrentamos um conjunto completamente conhecido de resultados possíveis: cara ou coroa, anverso ou reverso. O mesmo ocorre com um dado: na manufatura e no uso comuns2, ele apresenta seis lados diferentes como resultados possíveis. Tendo em vista os dois resultados possíveis quando uma moeda é arremessada, a probabilidade ou chance pode ser avaliada para cada um dos arremessos. As chances variam de "certa" a "impossível" ou, na linguagem da probabilidade, de l a 0. O que um jogador tem em mãos e corre o risco de perder é sua aposta. Aquilo que ele não tem e tem chance de ganhar com o jogo pode ser chamado de prémio. O desfecho [payofj] para ele é o prémio que ele ganha ou a aposta que ele perde. A aposta e o prémio juntos podem ser chamados de bolo [pot]. Nos jogos, a probabilidade teórica [theoretical odds] refere-se às chances de um resultado favorável comparadas com as de um resultado desfavorável, vendo a máquina de decisão como ideal; a proba-

2. Um dado pode ser usado como uma moeda se, por exemplo, chamarmos l, 2 e 3 de cara e 4,5 e 6 de coroa. Entre os tipos de dados de trapaça há dados com lados diferentes chamados variadamente de tops and bottoms, horses [com apenas 3 dos 6 números impressos], tees, tats [dados chumbados], soft rolls [dados que rolam mais que o normal], Califórnia fourteens [dados que favorecem o resultado 14], door pops [dados que favorecem 7 ou 11], Eastern pops [dados que favorecem 7], etc. Estes dados não têm números diferentes em cada um dos seis lados, e (como com uma moeda de faces iguais) permitem que um jogador aposte em um resultado que não está entre as possibilidades, e cuja ocorrência então é bastante improvável. É bom notar que dados, muito mais frequentemente que moedas, podem parar em suas bordas (quando param de rolar encostados em outros objetos) e podem sair do campo de jogo. O gerenciamento dessas contingências lamentáveis é um dos trabalhos dos membros de uma equipe de craps [jogo de dados mais popular nos cassinos americanos], especialmente o stickman [empregado responsável pela manipulação direta dos dados - N.T.], no sentido que suas correções verbais e físicas muito rápidas são planejadas para tornar perfeito um modelo físico muito imperfeito. 143


bilidade verdadeira [true odás] é uma versão teórica das probabilidades teóricas, envolvendo uma correção para os vieses físicos encontrados em qualquer máquina real - vieses que nunca podem ser totalmente eliminados ou totalmente conhecidos3. Por outro lado, a probabilidade dada ]given odds] ou pagamento [pay] refere-se ao tamanho do prémio comparado com o da aposta4. É bom notar que os resultados são definidos totalmente em termos do equipamento do jogo, e os desfechos em termos de recursos extrínsecos e variáveis comprometidos no momento com resultados particulares. Assim, com probabilidades teóricas e dadas, de certo modo o mesmo termo é empregado para cobrir duas ideias radicalmente diferentes. Avaliar o bolo em relação à chance, em média, de ganhá-lo, nos dá aquilo que os estudiosos da chance chamam de valor esperado do jogo. Subtrair o valor esperado da quantidade apostada dá uma medida do preço ou do lucro em média para se engajar no jogo. Expressar essa medida como uma proporção da aposta dá a vantagem ou porcentagem do jogo. Quando não há nem vantagem nem desvantagem, o jogo é considerado justo. Aqui, a probabilidade teórica é recíproca à probabilidade dada, de forma que aquele que dá ou coloca as probabilidades [gives or lays the odds], apostando uma soma grande na esperança de ganhar unia pequena, é compensado exatamente pela pouca chance de perder para o indivíduo que toma as probabilidades [takes the odds]. Há jogos que permitem a escolha de uma profusão de resultados diferentes, cada um deles pagando variadamente e podendo até ter desvantagens diferentes para o apostador. O craps de cassino5 é um exemplo. Outros jogos envolvem um conjunto de resultados possíveis favoráveis que pagam variadamente, de modo que o valor esperado do jogo deve ser calculado como uma soma de vários valores diferentes: as máquinas caça-níqueis e o bingo são exemplos.

3. Aqui e em outros pontos, ao discutir probabilidade eu agradeço a Ira Cisin. Ele é responsável apenas pelos enunciados correios. 4. Para aumentar a atração aparente de certas apostas, alguns desenhos de mesa de craps enunciam os ganhos não em termos de probabilidades dadas, mas em termos do bolo; assim, uma aposta cuja probabilidade dada é l em 4 será descrita como l para 5. 5. Jogo de dados popular nos Estados Unidos [N.T.]. 144

Enquanto um jogo é um modo de adquirir um prémio, ele é uma oportunidade; enquanto ele é uma ameaça à aposta, ele é um risco. A perspectiva aqui é objetiva. Um senso subjetivo de oportunidade ou risco é uma questão bastante diferente, já que ele pode, mas não precisa, coincidir com os fatos. Podemos definir ambos os nossos jogadores de cara ou coroa como pessoas em cujo curso de vida encontrar uma moeda não havia sido previsto. Sem essa descoberta, a vida teria seguido em frente como esperado. Então, cada garoto pode conceber sua situação como capaz de dar a ele um ganho ou de devolvê-lo ao que é apenas normal. Uma chance desse tipo pode ser chamada de oportunidade sem risco. Se um valentão abordasse um dos garotos e apostasse uma moeda vinda do bolso do próprio garoto (e isto acontece em bairros urbanos), poderíamos então falar de um risco sem oportunidade. Na vida cotidiana, riscos e oportunidades normalmente ocorrem juntos, e em todas as combinações. O indivíduo às vezes pode voltar atrás em sua decisão de seguir uma linha de atividade quando descobre que ela provavelmente fracassará. Aqui não há chance, seja ela arriscada ou oportunista. Para que a sorte esteja presente, o indivíduo deve garantir que está numa posição (ou é forçado a uma posição) de abandonar seu controle sobre a situação, fazendo, no sentido de Schelling, um compromisso6. Sem compromisso, sem chance. Uma nota sobre a determinação - definindo isto como um processo, e não um evento realizado. Assim que a moeda estiver no ar, o arremessador sentirá que forças decisivas começaram a trabalhar, e isto realmente ocorreu. É claro que é verdade que o período de determinação poderia ser ampliado para incluir a decisão de escolher cara ou coroa, ou ainda mais para incluir a decisão de jogar a moeda. Entretanto, o resultado (cara ou coroa) é determinado totalmente durante o tempo em que a moeda está no ar; uma ordem de fatos diferente, como quem escolherá cara ou quanto será apostado, é determinada am ;s do arremesso. Resumindo, uma característica essencial da sit ,ação de cara ou coroa é que um resultado indetermi6. SCHELLING, T.C. The Strategy of Conflict. Cambridge: Harvard University Press, 1960, esp. p. 24. 145


nado até certo ponto - o ponto de arremessar a moeda no ar - é clara e completamente determinado depois do arremesso. Uma situação problemática é resolvida. O termo "problemático" é tomado aqui no sentido objetivo de se referir a algo que ainda não foi determinado, mas está prestes a ser. Como já foi sugerido, a própria avaliação subjetiva do ator traz complicações adicionais. Ele pode não ter consciência de que algo está sendo determinado. Ou ele pode sentir que a situação é problemática quando na verdade a questão já foi determinada, e o que ele realmente enfrenta é a revelação ou exposição. Ou, finalmente, ele pode estar completamente orientado para aquilo que está realmente acontecendo - percebendo as probabilidades envolvidas e realisticamente preocupado com as consequências. Esta última possibilidade, onde temos um paralelo completo entre a situação objetiva e a subjetiva, será nossa preocupação principal. As forças causais durante o período de determinação e antes do resultado final são muitas vezes definidas como forças de "mera chance" ou "pura sorte". Isto não pressupõe algum tipo de indeterminismo absoluto. Quando uma moeda é arremessada, sua queda é determinada totalmente por fatores como o estado anterior do dedo do arremessador, a altura do arremesso, as correntes de ar (incluindo aquelas que ocorrem depois da moeda sair do dedo), e assim por diante. Entretanto, nenhuma influência humana, intencional e legítima, pode ser exercida para manipular a parte relevante do resultado7. Certamente existem situações de sorte em que ordens relevantes de determinação humanamente direcionada estão envolvidas em virtude de habilidade, conhecimento, ousadia, perseverança, e assim por diante. Isto, na verdade, marca uma diferença crucial entre jogos de sorte "pura" e aquilo que é chamado de competições: naqueles, quando a determinação está em jogo, os participantes podem apenas aguardar o resultado passivamente; nestas, é exatamente este período que requer o exercício intensivo e sustentado de ca-

7. Cf. o argumento de MACKAY, D. "The Use of Behavioral Language to Refer to Mechanical Processes". British Journal of the Philosophy of Science, XIII, 50, 1962, p. 89-103. • "On the Logical Indeterminacy of a Free Choice". Minei, 69, 1960, p. 31-40. 146

pacidades relevantes. De qualquer forma, ainda é o caso que, durante competições, algo de valor para ser apostado está sujeito à determinação; em termos dos fatos e muitas vezes também de sua percepção, as influências intencionadas e efetivas são insuficientemente influentes para tornar a situação não problemática. Uma característica crucial do cara ou coroa são suas fases temporais. Os garotos precisam decidir resolver a questão pelo cara ou coroa; eles precisam se alinhar fisicamente; eles precisam decidir o quanto do valor da moeda será apostado no arremesso e quem escolherá qual resultado; através da postura e de gestos eles precisam se comprometer com a aposta e assim passar do ponto sem volta. Esta é a fase de preparação [sciuaring-ofj] ou de aposta. Depois temos a fase de determinação ou de jogo, durante a qual as forças causais relevantes ativa e determinantemente produzem o resultado8. Chega então a fase de exposição ou de revelação, o tempo entre a determinação e a informação do resultado para os participantes. Esse período provavelmente será muito breve, variará de acordo com os conjuntos de participantes colocados em lugares diferentes em relação à maquinaria de decisão9, e possuirá um suspense especial próprio. Finalmente, há a fase de assentamento, começando quando o resultado é revelado e durando até que as perdas tenham sido pagas e os ganhos coletados. O período de que os participantes precisam numa certa jogada para se mover pelas quatro fases dela - preparação, determinação, exposição e assentamento - pode ser chamado de duração [span] da 8. No cara ou coroa esta fase começa quando a moeda é arremessada no ar e termina quando ela pousa na mão - um ou dois segundos depois. Nas corridas de cavalo, a determinação começa quando a barreira é aberta e termina quando se cruza a linha de chegada depois da última volta, depois de pouco mais de um minuto. Em corridas de ciclismo de sete dias, a fase de determinação dura uma semana. 9. Golpes em corridas de cavalo se baseiam na possibilidade de convencer a vítima de que o período entre um resultado na pista e seu anúncio para lugares distantes é longo o bastante para realizar uma aposta certa depois da corrida, quer dizer, "apostar no passado" - uma condição que pode realmente ocorrer e que tem sido explorada sistematicamente. Podemos adicionar que carteadores de 21 amigáveis em Nevada, depois de escolherem uma carta, às vezes olham para ela e caçoam de um jogador sobre um destino que já foi determinado e lido, mas cuja exposição é provocantemente atrasada. 147


jogada. O período entre jogadas pode ser chamado de pausas. O período de uma jogada deve ser diferenciado do período de jogo, a saber, a sessão, que é o tempo entre a realização da primeira aposta e o assentamento da última em qualquer ocasião que seja percebida como continuamente devotada ao jogo. O número de jogadas completadas durante qualquer unidade de tempo é o ritmo de jogo durante esse tempo10. A duração média das jogadas de um jogo estabelece um limite superior ao ritmo de jogo, assim como o comprimento médio das pausas; uma moeda pode ser arremessada 5 vezes em meio minuto; o mesmo número de decisões numa pista de cavalos exige mais de uma hora. Tendo em vista essas distinções nas fases do jogo, é fácil cuidar de uma característica dos jogos de azar simples que poderia de outra forma passar despercebida. Quando uma jogada é realizada, sua determinação, revelação e assentamento normalmente se seguem rapidamente, muitas vezes antes que outra aposta seja feita. Uma sessão de cara ou coroa consiste, então, de uma sequência de ciclos de quatro fases com pausas entre os ciclos. Tipicamente, o jogador mantém uma faixa de atenção e experiência contínua durante o curso de quatro ou cinco segundos de todas as jogadas, distraindo-se apenas durante as pausas, quer dizer, depois do assentamento de uma jogada e antes da realização de outra. A vida cotidiana normalmente é muito diferente. O indivíduo certamente faz apostas e confia na sorte durante a vida cotidiana, como quando, por exemplo, ele decide aceitar um emprego em vez de outro ou se mudar de um estado para outro. Além disso, em certas junturas ele pode ter que tomar várias decisões vitais ao mesmo tempo, e assim manter por um breve período um ritmo de apostas muito alto. Mas normalmente a fase de determinação - o período no qual as consequências de sua aposta são determinadas — será longa, às vezes se estendendo

10. Por exemplo, suponhamos que os garotos da moeda estejam engajados num jogo de morte súbita, com um arremesso determinando quem fica com a moeda. Se os dois garotos estiverem juntos nessa ocasião por uma hora, seu ritmo de apostas é de uma por hora. Se eles trocarem a moeda de cinco centavos por cinco de um centavo, e arremessarem uma delas de cada vez, e apenas uma vez, então o ritmo de apostas é cinco vezes maior do que era antes, ainda que a mudança de sorte resultante não seja maior, provavelmente até menor. 148

por décadas, seguidas de fases de revelação e assentamento que também são compridas. A propriedade distintiva dos jogos e competições é que, quando a aposta é feita, o resultado é determinado e o desfecho é concedido no mesmo sopro de experiência. Um único foco agudo de percepção é mantido em alta intensidade durante a duração inteira da jogada. 2. Consequencialidade Podemos, então, tomar alguns termos da análise tradicional do cara ou coroa11, mas esse esquema logo nos leva a dificuldades. O padrão para a medição da quantidade de uma aposta ou prémio é estabelecido ou imputado pela comunidade, o público em geral, ou o mercado prevalente. Um constrangimento para a análise de jogos é que pessoas diferentes podem ter sentimentos bastante diferentes sobre a mesma aposta ou o mesmo prémio. Adultos de classe média podem usar uma moeda de cinco centavos como uma máquina de decisões, mas dificilmente se darão ao trabalho de arremessá-la apenas para decidir quem fica com a máquina. Entretanto, garotos pequenos podem sentir que uma reivindicação de descobridor de uma moeda de cinco centavos é uma aposta enorme. Quando é preciso dar atenção a variações no significado que pessoas diferentes dão à mesma aposta (ou ao mesmo prémio), ou que o mesmo indivíduo dá em momentos diferentes ou sob circunstâncias diferentes, falamos de valor subjetivo ou utilidade. E assim como o valor esperado pode ser calculado como o valor médio que resta a um bolo de cinco centavos, também a utilidade esperada pode ser avaliada como a utilidade que um indivíduo designa a um bolo de cinco centavos ponderada pela probabilidade de sua vitória. A utilidade esperada de um bolo de cinco centavos deve ser distinguida claramente da utilidade esperada de arremessar por esse bolo; pois os indivíduos regularmente estabelecem um valor subjetivo - positivo ou negativo - para a excitação ou ansiedade gerada pelo arremesso. Além disso, depois do arremesso, o desprazer de

11. Um tratamento sólido, ainda que popular, pode ser encontrado em JEFFREY, R. The Logic ofDecision. Nova York: McGraw-Hill, 1965. 149


perder e o prazer de vencer provavelmente não se anulam completamente; a diferença, para qualquer lado, também deve ser reconhecida em média como parte da utilidade esperada da jogada 2. É possível usar padrões objetivos para alcançar o significado das apostas; mas precisamos usar a noção nebulosa de utilidade para alcançar o significado de apostar. Quando passamos da noção clara do valor esperado de um bolo para a noção que será relevante para nossas preocupações, a saber, a utilidade esperada de jogar pelo bolo, entramos em complexidades quase insolúveis. Quando um indivíduo afirma que um dado período de jogo envolve uma grande aposta, ou quando ele sente que é mais arriscado do que outros, podemos envolver um conjunto inteiro de considerações: a escala das apostas; o valor das probabilidades (e se ele as dá ou as toma); a brevidade do período de jogo; a pequenez do número de jogadas; o ritmo do jogo; a porcentagem paga para jogar; a variação de tamanho em relação a prémios associados com resultados favoráveis. Além disso, o peso relativo dado a cada uma dessas considerações variará bastante com o valor absoluto de cada uma das outras13. Para nós, isto significa que indivíduos e grupos diferentes têm fundamentos pessoais um tanto diferentes para medir o risco e a oportunidade; um modo de vida que envolva muito risco pode fazer com que o indivíduo se importe pouco com um risco que outra pessoa consideraria proibitivo14. Assim, por exemplo, tentativas de explicar a presença do jogo legalizado em Nevada às vezes citam a tradição mineradora do estado, um tipo de empreendimento que pode ser definido como realmente muito arriscado. O argumento é que

12. Nos jogos de azar, esses fatores não são independentes. Sem dúvida, parte da experiência obtida com o arremesso é derivada da diferença entre a satisfação de contemplar a vitória e o desprazer com a ideia da derrota. 13. Obras recentes, especialmente de psicólogos experimentais, adicionaram um conhecimento apreciável a essa área através de um estratagema que obriga os indivíduos a demonstrar uma preferência entre apostas envolvendo várias misturas de elementos. Cf., p. ex., COHEN, J. Behaviour in Uncertainty. Londres: George Allen and Unwin, 1964: cap. 3, "Making a Choice", p. 27-42. • EDWARDS, W. "Behavior Decision Theory". Annual Review ofPsychology, 12, 1961, p. 473-498. 14. Por esta e outras sugestões, eu agradeço a Kathleen Archibald. 150

tendo em vista que a própria economia do estado foi baseada em apostas com o solo, é compreensível que as apostas em cassinos nunca tenham sido encaradas com muita desaprovação. Nos jogos de azar simples e literais, então, a noção básica de "tentar a sorte" está salpicada de inúmeros significados variáveis e não totalmente realizados. Quando passamos dos jogos de azar para o resto da vida, a situação piora. No cara ou coroa, há razões a priori e empíricas para avaliar as chances de qualquer resultado realmente como cinquenta por cento. A validade definitiva desta avaliação não precisa preocupar aqueles que arremessam moedas. É isso que é bom sobre moedas. Entretanto, em muitas situações ordinárias, o indivíduo pode ter que encarar uma matriz de resultados que não pode ser completamente definida. (Isto pode surgir, por exemplo, se nossos garotos parassem diante de uma caverna profunda com vários túneis, tentando decidir o que poderia acontecer se eles tentassem explorá-la.) Além disso, mesmo quando o conjunto completo de possibilidades de resultados é conhecido, as chances que devem ser atreladas â cada uma delas podem estar sujeitas a apenas uma avaliação grosseira baseada em apelos vagos à experiência empírica15. Além do mais, o avaliador muitas vezes não perceberá bem o quão grosseira sua avaliação é. Na maioria das situações da vida, lidamos com probabilidades subjetivas e, por isso, no máximo uma medição geral muito frouxa, a utilidade esperada subjetivamente16.

15. Firmas de boa reputação que se especializam em dispositivos para trapaça em jogos de azar vendem dados de "formas" variáveis que dão ao cliente uma escolha entre cinco ou seis graus daquilo que chamam de "força". A classificação provavelmente é absolutamente válida. Mas nenhuma companhia jamais testou dados de qualquer suposta força por uma série de testes suficientemente longa para gerar níveis de confiança em relação à porcentagem favorável que estes dados sujos dão a seus usuários. 16. Na literatura, seguindo F. Knight (Ris/z, Uncertainty andProfit. Boston: Houghton Mifflin, 1921, esp. caps. 7 e 8), o termo "risco" é usado para uma decisão cujos resultados possíveis e probabilidades são conhecidos, e o termo "incerteza" quando as probabilidades dos vários resultados não são conhecidas ou sequer conheclveis. Cf. aqui LUCE, R. & RAIFFA, H. Games and Decisiom. Nova York: Wiley & Sons, 1958, p; 13ss.). Seguindo John Cohen, B. Fox (Behavioral Approaches toAccident Research. Nova York: Association for the Aid to Crippled Children, 1961, p. 151


Além do mais, enquanto jogadores de cara ou coroa normalmente jogam um jogo "limpo", e apostadores de cassino, um jogo levemente desvantajoso, os aspectos mais amplos da vida são muito menos equilibrados neste respeito para o indivíduo; haverá situações de grande oportunidade com pouco risco e de muito risco com pouca oportunidade. Ademais, a oportunidade e o risco podem não ser facilmente mensuráveis na mesma escala17. Há um problema importante na própria noção de valor - a noção que apostas e prémios podem ser medidos em quantidades. Uma moeda de cinco centavos tem um valor ratificado socialmente e um valor subjetivo, em parte por causa daquilo que sua vitória permite, ou sua perda impede, que o arremessador faça depois. Esta é a consequencialidade da aposta, a saber, a capacidade de um desfecho de fluir para além dos limites da ocasião em que ele é entregue e influenciar objetivamente a vida posterior do apostador. O período durante o qual essa consequencialidade é produzida é um tipo de fase de consequencialidade ou pós-jogo da aposta. Agora precisamos tratar de uma questão complicada. O "valor objetivo" e a "utilidade" são meios de estabelecer equivalentes instantâneos para consequências que na realidade serão sentidas com o passar do tempo. Isto ocorre ao se permitir que a comunidade ou o próprio indivíduo estabeleça uma avaliação deste futuro, e aceite ou dê um preço para ele agora. Eu desejo evitar esta sofisticação. Quando, por exemplo, um homem propõe matrimónio, é verdade que o desfecho é determinado assim que a garota toma sua decisão, revelado assim que ela dá sua resposta, e assentado quando o casamento 50) sugere usar o termo "perigo" [hazard] para chances objetivas péssimas, e "risco" para estimativas subjetivas de perigo. Fox iguala isto a uma distinção levemente diferente, aquela entre o risco percebido como inerente a uma situação e o risco percebido como algo assumido intencionalmente. Cf. tb. COHEN,J. Behaviour in Uncertainty. Op. cit., p. 63. 17. O conceito de utilidade, e as técnicas experimentais de uma escolha forçada entre unidades e pares ligados probabilisticamente podem tentar reduzir essas variabilidades a um único esquema. Entretanto, esses esforços podem ser questionados. Muitas jogadas reais são realizadas em conjunção necessária com o jogador não perceber o risco (enquanto foca a oportunidade) ou a oportunidade (enquanto lida com o risco). Estabelecer uma utilidade nessa falta de percepção para equilibrar as coisas não parece uma resposta apropriada. 152

é consumado ou o pretendente rejeitado se retira para cortejar outra pessoa. Mas num outro sentido, a consequência do desfecho é sentida por toda a vida que resta aos participantes. Assim como um "desfecho" é o equivalente de valor de um resultado, a "consequencialidade" é o equivalente humano de um desfecho. Passamos então de bolos e prémios, facilmente definíveis, para desfechos protelados, que só podem ser descritos vagamente. Esta é uma passagem dos bolos para a consequencialidade, e de apostas circunscritas para arenas mais amplas da vida. Alérn de todas estas limitações do modelo de cara ou coroa, há uma outra bastante central que podemos apenas tratar de forma preliminar agora. A experiência subjetiva desfrutada por garotinhos que jogam um cara ou coroa vem da sensação de exercer a vontade de forma leve. Uma decisão entre apostar ou não é feita sob condições onde nenhuma pressão externa força a decisão, e não apostar seria uma decisão fácil e bastante prática. Quando esta decisão é tomada afirmativamente, toma-se uma segunda sobre o resultado possível para se apostar - aqui um direito ilusório, mas ainda assim divertido, e certamente não ilusório em jogos que envolvem habilidade. Quando o resultado estiver definido, isto pode ser tratado como uma possibilidade que foi prevista, mas em que mesmo assim se apostou. Como consequência, a situação inteira pode facilmente ser vista prospectivamente como uma ocasião de sorte, uma ocasião gerada e governada pelo exercício de autodeterminação, uma ocasião para se arriscar e agarrar a oportunidade. Entretanto, na vida cotidiana o indivíduo pode nunca ter consciência do risco e da oportunidade que realmente existiram, ou pode perceber a aposta que estava fazendo apenas depois da jogada terminar. E quando a situação é abordada com seu cará ter de sorte em mente, o indivíduo pode descobrir que o custo de não apostar é tão alto que ele deve ser excluído como uma possibilidade realista, ou, quando a decisão é prática, que não há nenhuma escolha disponível sobre qual dos resultados possíveis ele apostará. Há alguma liberdade de escolha e autodeterminação presentes aqui, mas frequentemente não muita. O modelo do cara ou coroa pode ser aplicado a todas essas situações, mas apenas ignorando algumas diferenças importantes entre jogos de azar recreativos e apostas da vida real. Deixando de lado a questão da

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quantidade em jogo, nossos dois garotos que jogam cara ou coroa não estão engajados no mesmo tipo de jogo de azar que dois sobreviventes enfrentam sem nenhum prazer quando decidem mutuamente que a única forma de decidir sobre quem deve se sacrificar para deixar a jangada mais leve é um cara ou coroa; e eles, por sua vez, estão sujeitos à sorte de forma diferente da de dois passageiros doentes que são forçados por seus companheiros sadios a se submeter a uma decisão por cara ou coroa para ver qual dos dois não terá mais direito à reserva de água do bote salva-vidas. 3. Decisividade Um indivíduo prestes a sair de casa para comparecer a um compromisso percebe que está trinta minutos adiantado e tem algum "tempo livre" para utilizar ou aproveitar. Ele poderia aproveitar "bem" o tempo fazendo agora uma tarefa essencial que terá que ser feita em algum momento. Em vez disso, ele decide "passar" o tempo. Ele pega uma revista na mesa, senta numa cadeira confortável, e folheia algumas páginas até chegar a hora de partir. Quais são as características dessa atividade usada para passar o tempo? Abordemos esta pergunta através de outra: quais são os efeitos possíveis desse pequeno pedaço da vida do indivíduo sobre todo o resto dela? Obviamente, aquilo que ocorre durante o tempo "passado" pode não ter nenhuma consequência para o resto da vida do indivíduo . Muitas linhas de atividade alternativas podem ser desempenhadas e ainda assim sua vida continuará como está. Em vez de ler uma revista, ele pode ler outra; ou ele pode passar o tempo assistindo TV, tirando uma soneca, ou resolvendo um quebra-cabeça. Se ele descobrir que tem menos tempo livre do que pensara, ele pode facilmente encerrar sua vadiagem; se descobrir que tem mais, ele pode vadiar mais. Ele pode tentar encontrar uma revista que o interesse, não 18. Fate/ulness no original. O neologismo "decisividade" é usado aqui não com o significado de algo que precisa ser decidido, mas algo de caráter decisivo para a vida de um indivíduo, algo que influenciará seu destino (/ate) [N.T.]. 19. Mas é claro que sua escolha do meio para passar o tempo pode expressar algo sobre ele. 154

conseguir, e ainda assim perder pouco devido a esse fracasso, tendo meramente que encarar o fato de que ele está temporariamente sem nada para fazer. Sem ter nada para passar o tempo, ou nada suficiente para isso, ele pode simplesmente esperar. Momentos "desperdiçados", então, são inconsequentes. Eles são limitados e isolados. Eles não se derramam para o resto da vida, gerando um efeito nela. Em outras palavras, o curso da vida do indivíduo não está sujeito a seus momentos desperdiçados, sua vida é organizada de forma a ser impérvia a eles. As atividades para passar o tempo são selecionadas previamente como atividades que não podem emaranhar o indivíduo20. Passar o tempo muitas vezes envolve o indivíduo em atividades problemáticas. A decisão sobre revista ou TV pode ser apertada, e sua determinação pode só começar quando o indivíduo está prestes a se sentar. Temos aqui um comportamento problemático que não é consequente. (É interessante notar que isto é exatamente o que ocorre no cara ou coroa por cinco centavos. Nossos jovens apostadores podem colocar um grande valor subjetivo em ganhar a aposta, mas é muito difícil que o desfecho seja consequente.) Em contraste ao tempo livre [time ofj] temos o tempo ocupado [time on] e seu mundo do trabalho sério organizado coletivamente, que engrena os esforços do indivíduo nas necessidades de outras pessoas que contam com ele para suprimentos, equipamentos ou serviços para cumprir suas próprias obrigações. Fazem-se registros de sua produção e entregas, e ele recebe penalidades se não conseguir reali20. O tempo livre aparece em todos os tamanhos, de alguns segundos a alguns anos. Ele aparece entre tarefas profissionais; no trajeto entre a casa e o trabalho; em casa depois do jantar; fins de semana; férias anuais; aposentadoria. (Existe também em grande parte como fantasia - o tempo longe da vida comum que Georg Simmel chama de "a Aventura".) Quando se passa o tempo livre, isto supostamente é feito através de uma atividade escolhida livremente que possui um caráter de consumação própria, um fim em si mesmo. Independentemente do indivíduo preencher seu tempo livre com atividades consequentes ou não, ele normalmente precisa permanecer no lugar onde os deveres sérios e agendados estão localizados, ou precisa ao menos ser capaz de voltar a ele rapidamente. É bom perceber que o tempo livre para desperdiçar deve ser diferenciado de um vizinho próximo, o tempo que pessoas desempregadas são forçadas a esperar e não podem justificar como um alívio merecido de tarefas passadas ou iminentes. 155


zá-las. Resumindo, a divisão do trabalho e a organização do fluxo do trabalho conectam os momentos atuais do indivíduo aos próximos momentos de outras pessoas de forma bastante consequente. Entretanto, a consequencialidade de cuidar apropriadamente de nossos deveres em qualquer ocasião é muito pouco percebida. Certamente, os resultados são mais ou menos retratados antecipadamente, mas a probabilidade de sua ocorrência é tão alta que esse problema não parece precisar de muita atenção. Nada precisa ser pesado, decidido ou avaliado; nenhuma alternativa precisa ser considerada. Essa atividade é realmente consequente, mas ela é bem administrada; ela não é problemática. Incidentalmente, qualquer momento, seja trabalhado ou desperdiçado, terá esse elemento. É uma questão de consequencialidade absoluta que nossos garotos continuem a inalar e exalar e não batam suas cabeças numa parede de concreto; qualquer fracasso naquele e sucesso neste pode ter efeitos muito duradouros em todos os momentos vindouros de um garoto. Entretanto, continuar a respirar e não bater a cabeça numa parede são objetivos perseguidos de forma tão contínua e impensada, e realizados de forma tão certa e rotineira, que nunca é preciso considerar a consequencialidade de um lapso. As atividades de tempo livre, então, podem ser problemáticas, mas provavelmente serão inconsequentes, e as atividades de tempo ocupado provavelmente serão consequenl ;s, mas não problemáticas. Assim, ambos os tipos de atividade pedem facilmente ser rotineiros: ou nada de importante acontece, ou nada de importante que seja inesperado e imprevisto. Entretanto, uma atividade pode ser ao mesmo tempo problemática e consequente. Eu chamo tais atividades de decisivas [fateful], mas o termo "extraordinário" [evení/uí] também serviria, e trataremos aqui deste tipo de sorte. Precisamos admitir agora que apesar do tempo livre e o tempo de trabalho bem administrado tenderem a não ser decisivos, é parte da condição humana que algum grau de decisividade sempre será encontrado. É preciso ajustar contas com as bases primordiais da decisividade. Primeiro, há o tipo literário ou adventício de decisividade. Um evento que normalmente é bem administrado e não tem nada de no156

tável pode às vezes lançar decisividade no passado, dando a certos momentos anteriores uma capacidade atípica de ser o primeiro evento numa conjunção decisiva de dois eventos. Se um de nossos jovens apostadores precisar de cinco centavos para fazer uma ligação telefónica crucial no momento em que a moeda é encontrada, então a chance de ganhar o jogo pode se tornar decisiva. Da mesma forma, nosso indivíduo que passa o tempo pode ser tão absorvido por um artigo da revista a ponto de perder a noção do tempo21 e não se restabelecer até que seja tarde demais — uma mera irritação, a não ser que o compromisso perdido fosse importante. Ou, folheando a revista, ele pode encontrar um artigo sobre testes de inteligência com exemplos de perguntas. Seu compromisso é um exame em que uma das perguntas aparece. Um momento para se desperdiçar não está completamente separado dos momentos vindouros; ele pode ter conexões inesperadas com eles. Ainda que os indivíduos e suas atividades sempre estejam sujeitos a alguma decisividade adventícia, há algumas atividades cuja vulnerabilidade a este respeito é grande o bastante para servir como uma caracterização delas. Onde a coordenação e a ocultação são vitais, um conjunto inteiro de impedimentos menores inesperados perde sua qualidade costumeira de corrigibilidade e se torna decisivo. Histórias de crimes quase perfeitos e ataques de destacamentos militares quase expostos cultuam essa fonte de decisividade, assim como histórias de trapalhadas estratégicas: Maidstone, Inglaterra: ontem uma gangue de homens mascarados com cassetetes e martelos emboscou um carro carregando $28.000 para um banco local, mas eles agarraram o prémio errado - uma sacola de sanduíches.

21. Em nossa sociedade urbana é provável que o indivíduo verifique a hora periodicamente e possa quase sempre estimar a hora aproximada. Pessoas de sono leve podem até se orientar constantemente no tempo. Surpreso, em alguma ocasião, sobre "como o tempo voou", o indivíduo pode na verdade querer dizer apenas uma ou duas horas. Ao perceber que seu relógio parou, ele pode descobrir que na verdade ele parou há apenas alguns minutos, e que ele deveria estar olhando para o relógio constantemente. 157


O dinheiro estava trancado no porta-malas do carro e a sacola com o almoço do funcionário do banco estava no banco do passageiro .

estragar um golpe e realizá-lo com sucesso; aqui um ato se torna um feito24.

Ontem três ladrões que estragaram completamente o que deveria ter sido um assalto a banco simples em Rodeo foram condenados num Tribunal Federal local [...] Os três foram capturados por cerca de 40 policiais em 7 de janeiro quando se esforçavam para fugir com $7.710 enfiados num saco de lavanderia que eles tinham roubado do banco United Califórnia, o único banco em Rodeo [...] Pugh entrou com uma espingarda de cano curto e rendeu os 13 funcionários e dois clientes, enquanto Fleming, carregando uma pistola, foi ao cofre e começou a encher a sacola com notas e, infelizmente, moedas. As moedas não podem ser rastreadas - ele disse, esperto. Ele continuou a empilhar moedas até a sacola pesar cerca de 100 quilos. Então ele arrastou a sacola pelo chão até a porta - e a corda gasta arrebentou. Ambos os homens então carregaram a sacola pela porta, mas ela enganchou na porta e abriu um buraco, deixando um rastro de moedas atrás deles enquanto eles arrastavam a sacola para o carro de fuga, com Duren ao volante.

Em segundo lugar, independentemente de quão inconsequente e isolado o momento de um indivíduo seja, e o quão seguro e bem administrado seja seu lugar de deveres consequentes, ele precisa estar lá em carne e osso para o momento ser realmente seu, e essa é exatamente a mesma carne que ele precisa levar para onde quer que vá, junto com todos os danos que já tenham ocorrido a ela. Por mais cuidadoso que ele seja, a integridade de seu corpo sempre estará em algum tipo de perigo. Ao ler, ele pode escorregar de sua cadeira, cair no chão e se machucar. Isto é certamente improvável, mas se ele decidir passar o tempo num banho, ou se ele ganha a vida trabalhando com um torno mecânico, numa mina, ou em construções, a possibilidade de se machucar seria consideravelmente maior, como demonstrado por dados atuariais. O perigo físico é uma estreita linha vermelha que conecta cada um dos momentos do indivíduo a todos os outros. Um corpo está sujeito a quedas, golpes, venenos, cortes, tiros, esmagamento, afogamento, queimaduras, doenças, sufocação e eletrocussão. Um corpo é uma unidade de equipamento consequencial, e seu dono o está sempre colocando na linha de frente. É claro que ele pode utilizar outros bens capitais em muitos de seus momentos, mas seu corpo é o único que ele nunca pode deixar para trás.

Mas Duren estacionara perto demais do meio-fio, e os três não conseguiram abrir a porta para colocar o saque no carro. Eles finalmente conseguiram depois de mover o carro, e fugiram em alta velocidade - até a esquina. Lá o carro parou quando os três viram o aglomerado de carros do xerife, da polícia e da patrulha rodoviária . Esses erros são cotidianos e normalmente seriam absorvidos facilmente pela reserva para correção que caracteriza a maioria dos empreendimentos. O caráter especial da atividade criminosa (e de outras operações de tipo militar) é a escassez dessa reserva e daí o preço alto que deve ser pago pela desatenção e pelo azar. Esta é a diferença entre

22. San Francisco Chronide, 10/03/1966. 23. Ibid., 06/05/1966. 158

Um terceiro aspecto pertinente da condição humana trata da copresença. Uma situação social pode ser definida (em primeira instância) como qualquer ambiente de possibilidades de monitoração mútua que dure pelo tempo em que dois ou mais indivíduos se encontrem na presença física imediata uns dos outros, e se estende por todo o território em que tal monitoração mútua é possível.

24. Em mundos vicários ficcionais, as operações criminosas (assim como as operações secretas de vários agentes governamentais, estruturalmente similares) são realizadas face a uma longa sequência de impedimentos reais e ameaçados, e cada um deles tem uma grande probabilidade de arruinar tudo. O herói consegue sobreviver de episódio a episódio, mas apenas quebrando grosseiramente as leis da probabilidade. Entre jovens aspiaiites a tais papéis, aqueles com inclinações probabilísticas devem certamente ser desencorajados sutilmente. 159


Por definição, as atividades de um indivíduo devem ocorrer ou em situações sociais ou solitariamente. Será que isto faz diferença para a decisividade de seus momentos? Para o tipo especial de consequencialidade com o qual estamos preocupados, o tipo decisivo que envolve a importância problemática da atividade de um momento sobre o próximo, não deveria importar se o evento está situado socialmente ou não. Afinal, nossa preocupação é com os efeitos posteriores de uma ação, e não sua condição atual. Ainda assim, a diferença entre atividades solitárias e situadas socialmente tem uma relevância especial própria. Assim como o indivíduo sempre traz seu corpo para toda ocasião de sua atividade, e também a possibilidade de uma ligação fortuita de um evento já consequente a outro que, de outra forma, seria inócuo, ele também se traz como um defensor de padrões de conduta como competência física, honestidade, atenção, piedade e limpeza. O registro da manutenção desses padrões pelo indivíduo fornece uma base utilizada por outros para atribuir uma caracterização pessoal a ele. Posteriormente, eles empregam essa caracterização para determinar como tratá-lo - e isto é consequente. É claro que a maioria desses padrões é mantida impensada e consistentemente por adultos; é provável que eles só percebam essas normas quando um acidente estranho ocorre ou quando, em seus anos maduros e ritualmente delicados, eles tentem pela primeira vez cavalgar, patinar, ou se engajar em outros esportes que requeiram técnicas especiais para a manutenção do aprumo físico. Em alguns casos, desvios solitários de conduta resultam num registro de danos que podem depois ser relacionados ao ofensor. Entretanto, em muitos outros casos, não se encontra tal responsabilidade; ou os efeitos do desvio de conduta são efémeros (como em atos gestuais de desprezo), ou eles não podem ser relacionados a seu autor. É apenas a consciência do indivíduo que pode tornar tais atividades consequentes para ele, e esse tipo de consciência não se encontra em todos os lugares. Entretanto, quando a conduta ocorre numa situação social - quando, quer dizer, testemunhas estão presentes - então esses padrões se tornam imediatamente relevantes e introduzem algum risco, por menor que seja. 160

Podemos fazer um argumento similar sobre oportunidades de demonstrar qualidades pessoais excelentes. Sem nenhuma testemunha presente, os esforços do indivíduo podem ter poucos efeitos duradouros identificáveis; quando outros estão presentes, garante-se algum tipo de registro. Então, em situações sociais, riscos e oportunidades ordinários são complicados por expressões de caracterização. A obtenção de informação através dessa caracterização se torna disponível, muitas vezes disponível demais. As situações sociais tornam-se assim oportunidades para apresentar informações favoráveis sobre si mesmo, e também se tornam ocasiões arriscadas em que fatos desfavoráveis podem ser estabelecidos. Entre os vários tipos de objeto com os quais o indivíduo deve lidar durante sua presença entre outras pessoas, um merece atenção especial: as próprias outras pessoas. A impressão que ele cria através de seus negócios com elas e as características que elas imputam a ele como consequência têm uma importância especial para sua reputação, pois aqui as testemunhas têm um interesse pessoal direto naquilo que testemunham. Especificamente, sempre que o indivíduo está na presença de outros, ele se compromete a manter uma ordem cerimonial através de rituais interpessoais. Ele é obrigado a garantir que as implicações expressivas de todos os eventos locais sejam compatíveis com o estatuto que ele e os outros presentes possuem; isto envolve a polidez, a cortesia, e respostas punitivas a ofensas causadas pelos outros contra o eu. E a manutenção dessa ordem, seja durante o tempo livre ou o ocupado, é mais problemática do que pode parecer à primeira vista. Uma última palavra sobre situações sociais: a ordem cerimonial mantida pelas pessoas quando na presença imediata umas das outras faz mais do que garantir com que cada participante dê e receba o que merece. Através do exercício do porte apropriado, o indivíduo dá crédito e substância às próprias entidades de interação, como conversações, ajuntamentos e ocasiões sociais, e torna-se acessível e utilizável para a comunicação. Certos tipos de desvio de conduta, como a perda do autocontrole, perturbam gravemente a usabilidade do ator na interação face a face e podem perturbar a própria intera161


cão. A preocupação que os outros participantes têm pela ocasião social, e os fins que eles esperam que sejam obtidos através dela, juntos garantem que a propriedade do comportamento do ator receba algum peso. Eu afirmei que o indivíduo está sempre em algum tipo de perigo devido às ligações adventícias entre eventos, à vulnerabilidade de seu corpo, e à necessidade de manter as propriedades em situações sociais. Obviamente, é quando acidentes acontecem - acontecimentos impessoais não planejados com resultados incidentais ruins que percebemos essas fontes de decisividade. Mas é preciso considerar alguma coisa que não os acidentes. As capacidades físicas de qualquer adulto normal o equipam, se ele assim desejar, para perturbar imensamente o mundo imediatamente ao seu redor. Ele pode destruir objetos, a si mesmo, e outras pessoas. Ele pode se profanar, insultar e contaminar outros, e interferir com a movimentação livre deles. Crianças não são consideradas capazes de ignorar essas oportunidades fáceis (e de qualquer forma elas não são desenvolvidas o bastante para aproveitá-las totalmente) e são coagidas fisicamente para não cometerem travessuras. O desenvolvimento pessoal é o processo pelo qual o indivíduo aprende a ignorar essas oportunidades voluntariamente, mesmo enquanto sua capacidade de destruir o mundo imediatamente ao seu redor aumenta. E essa privação normalmente é aprendida tão bem, que os estudiosos da vida social não percebem as desistências sistemáticas que ocorrem rotineiramente na vida cotidiana, e o caos completo que resultaria se o indivíduo cessasse de ser um cavalheiro. Só apreciamos isto quando estudamos detalhadamente a perturbação notável de ambientes sociais produzida por crianças hipomaníacas, jovens vândalos, suicidas, pessoas patologicamente obcecadas por uma necessidade de autoflagelacão, e sabotadores hábeis. Apesar de podermos confiar que nossos jogadores de cara ou coroa não prenderão sua respiração nem baterão suas cabeças numa parede, nem cuspirão um no outro, nem se lambuzarão com sua própria matéria fecal, sabe-se que pacientes de hospitais psiquiátricos se engajam exatamente nesses comportamentos, demonstrando muito bem a transformação de atividades consequenciais não problemáticas em atividades decisivas. 162

4. Apostas práticas A condição humana garante que o extraordinário sempre será uma possibilidade, especialmente em situações sociais. Mas o indivíduo normalmente gerência seu tempo e o tempo livre de forma a evitar a decisividade. Além disso, grande parte do extraordinário que realmente ocorre é tratado de modos que não nos interessam aqui. Há muitas ocasiões de decisividade não evitada que são resolvidas de forma a permitir que os participantes não percebam as chances que eles de fato estavam arriscando. (A ocorrência de tais momentos, por exemplo, quando dirigimos, é em si mesma um assunto interessante para estudos.) E grande parte da decisividade que ocorre como consequência de eventos estranhos e improváveis é tratada retrospectivamente; o indivíduo redefine sua situação como decisiva apenas depois do fato, e apenas assim ele compreende em que conexão a decisividade tinha que ocorrer. As decisividades retrospectiva e não percebida são abundantes, mas elas não serão analisadas aqui. Ainda assim, obviamente, há nichos extraordinários na vida social em que a atividade é tão enfaticamente problemática e consequente que é provável que o participante se oriente prospectivamente para a decisividade, percebendo nesses termos aquilo que está ocorrendo. É aqui que situações decisivas sofrem uma transformação sutil, reorganizadas cognitivamente pela pessoa que precisa passar por elas. É aqui que o esquema de referência empregado por nossos dois garotinhos é trazido para a vida séria por homens sérios. Tendo em vista a necessidade prática de seguir um curso de ação cujo sucesso é problemático e de aguardar passivamente o resultado dele, é possível que o indivíduo descubra uma alternativa, por mais custosa que seja, e então se defina como alguém que escolheu livremente entre esta certeza indesejável e a incerteza possível. É pegar ou largar, mas isto é o bastante para permitir que a situação seja lida como uma em que a autodeterminação é central. O perigo é redefinido como risco assumido; as possibilidades favoráveis como oportunidades agarradas. As situações decisivas se tornam empreendi-

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mentos arriscados, e a exposição à incerteza é concebida como uma aposta prática feita voluntariamente25. Consideremos agora as ocupações em que enfrentamos consequencialidade problemática e em que seria fácil definir a atividade de um indivíduo como uma aposta prática feita voluntariamente: 1) Há papéis no comércio que são financeiramente perigosos ou pelo menos instáveis, sujeitando o indivíduo a ondas relativamente grandes de sucesso e fracasso a curto prazo; entre eles temos os especuladores imobiliários e de ações, pescadores comerciais26, garimpeiros.

25. Os teóricos das decisões atualmente demonstram que quase qualquer situação pode ser formulada utilmente como uma matriz de desfechos englobando todos os resultados possíveis, e cada resultado é designado com um valor que por sua vez é pesado em relação à probabilidade de ocorrência. O resultado é que condutas que poderiam ser concebidas como automáticas e não problemáticas, ou como uma resposta obrigatória a exigências inflexíveis e tradicionais, podem ser remodeladas como uma decisão racional tomada voluntariamente em relação a alternativas definidas. Além disso, como a escolha é feita entre resultados que têm apenas uma certa probabilidade de ocorrer ou, se forem certos, então apenas urna certa probabilidade de serem satisfatórios, a decisão pode ser vista como um risco calculado, urna aposta prática. (Caracteristicamente, a matriz de desfechos trata da mesma forma um resultado possível cuja probabilidade é um produto da natureza, como quando uma decisão sobre uma invasão leva em consideração a probabilidade de tempo bom ou ruim em todos os pontos de desembarque possíveis, ou cujas características probabilísticas foram introduzidas intencionalmente através de equipamentos para apostas, como quando uma das alternativas disponíveis envolve jogar dados por um prémio especificado.) A resistência a esse tipo de formulação pode ser atribuída a uma falta de inclinação a encarar todas as escolhas que estão implicadas num ato. A aceitação dessa formulação envolve uma certa quantidade de associação com o diabo; aceita-se as chances, mas elas não são acariciadas. Qualquer que seja a consequência social e política dessa perspectiva da teoria das decisões, podemos antecipar um resultado puramente cultural, a saber, uma tendência de perceber cada vez mais a atividade humana como uma aposta prática. Podemos, como um parênteses, adicionar que a bomba atómica pode ter um efeito um tanto similar - a transformação das ideias sobre uma sociedade futura em ideias sobre as chances de haver uma sociedade futura, chances estas que variam a cada mês. 26. Cf. BARTH, F. "Models of Social Organization". Royal Anthropologícal Instituís Occasional Paper, 23, 1966, p. 6. Glasgow: The University Press. 164

2) Há papéis na indústria que são fisicamente perigosos: mineração, trabalho em construções grandes27, pilotos de testes, tapadores de poços. 3) Há os empregos de "promoção" [hustZing] em empresas comerciais nas quais vendedores e promotores trabalham por comissões ou por contratos sob condições de competição acirrada. Aqui a renda e o prestígio podem ser ganhos e perdidos rapidamente devido a pequenas contingências traiçoeiras: uma falta de esforço temporária, o clima, o humor passageiro de um comprador. 4) Há empregos de performance ocupados por políticos, atores, e outros artistas ao vivo que, durante cada aparição no palco, precisam trabalhar para ganhar e manter uma plateia sob condições em que muitas contingências podem estragar o espetáculo e colocar a reputação do showman em perigo. Aqui, também, qualquer falta de esforço e qualquer pequeno acidente podem facilmente ter consequências sérias. 5) Há a vocação do soldado28 e a do policial - posições na vida pública que se encaixam fora das categorias de trabalho normais, e fazem o encarregado ser oficialmente responsável por sofrer perigo físico nas mãos de pessoas que pretendem causar isto. O fato de que essas vocações são classificadas fora das posições civis parece reforçar a noção de autodeterminação. 6) Há a vida criminosa, especialmente das variedades menores de não extorsão, que oferece oportunidades consideráveis, mas contínua e renovadamente sujeita o indivíduo a contingências terríveis - perigo físico, o risco de perder a posição civil, e flutuações amplas em relação ao pão de cada dia29. "Ganhar a

27. Uma descrição recente é TALESE, G. TheBndge. Nova York: Harper & Row, 1965. 28. Que compreende, é claro, um dilema interessante: na batalha, é preciso manter uma tradição de honra e de assumir riscos, mas atrás das linhas a organização necessita de homens firmes em uniformes de flanela cinza. Cf. JANOWITZ, M. The Professional Soldier. Nova York: The Free Press, 1960, p. 35-36. 29. Um retrato autobiográfico útil da sorte envolvida continuamente na vida de um trombadinha de favela especializado em assaltos pode ser encontrado em WILLIAMSON, H. Husíler! Nova York: Doubleday, 1965. Cf. tb. BROWN, C. Manchild in the Promised Land. Nova York: Macmillan, 1965, para a versão do Harlem. 165


vida" nas ruas requer uma orientação constante a oportunidades imprevisíveis e uma prontidão para tomar decisões rápidas em relação ao valor esperado de planos propostos — e todos eles sujeitam o indivíduo a grandes incertezas. Como já foi visto, chegar e sair da cena de um crime sujeita os participantes ao jogo decisivo daquilo que normalmente seriam pequenos incidentes. 7) Uma outra fonte de decisividade pode ser encontrada em arenas, em esportes profissionais cujos atletas colocam dinheiro, reputação e segurança física em risco ao mesmo tempo: o futebol, o boxe e touradas são exemplos. A vocação de Stirling Moss também o é: [...] o automobilismo em seu maior nível, na companhia mais rápida e competitiva, dirigindo em grandes prémios, é o esporte mais perigoso do mundo. É uma das atividades humanas mais arriscadas. O automobilismo mata homens. Em um ano recente a taxa de mortalidade foi de vinte e cinco por cento, ou um em cada quatro. Isto pode ser comparado com as taxas de mortalidades citadas para pilotos de caças e soldados paraquedistas . 8) Finalmente, há os esportes recreativos sem espectadores que estão cheios de riscos: alpinismo, caça de grandes animais, mergulho sem equipamento, paraquedismo, surfe, trenós, exploração de cavernas. 5. Adaptações Momentos não extraordinários foram definidos como momentos que não são consequencialmente problemáticos. Eles tendem a ser monótonos e não estimulantes. (Quando sentimos ansiedade durante tais momentos, isto ocorre por momentos extraordinários que estão prestes a acorrer.) Mas há muitas boas razões para considerarmos confortável esse cará ter não extraordinário e desejá-lo, privando-nos voluntariamente de apostas práticas com seus riscos e oportunidades - estas simplesmente porque muitas vezes estão relacionadas ao risco. Isto é uma questão de segurança. Em situa-

30. MOSS, S. & PURDY, K. Ali but My Life. Nova York: Bantam, 1964, p. 10. 166

coes não extraordinárias, podemos administrar cursos de ação com confiança e atingir nossos objetivos progressiva e previsivelmente. Através dessa autoadministração, o indivíduo permite que outras pessoas o incluam em seus próprios planos de forma ordenada e efetiva. Quanto menos incerta for sua vida, mais a sociedade pode aproveitá-lo. É compreensível, então, que o indivíduo faça esforços realistas para minimizar o caráter extraordinário - a decisividade - de seus momentos, e que ele seja encorajado a fazê-los. Ele utiliza suportes31. Uma técnica básica é o cuidado físico. O indivíduo se comporta de forma a minimizar o perigo remoto de danos acidentais a seu corpo. Ele não inclina demais a cadeira, nem devaneia ao atravessar um cruzamento movimentado32. Atividades desimportantes fazem as mesmas exigências que atividades obrigadas e sérias tanto quanto ao problema de exercer cuidado físico quanto sobre a necessidade de fazer isto. Sempre é preciso exercer algum cuidado. Tomar cuidado é uma condição constante do ser. Por isso, o cuidado é uma das preocupações centrais que os pais, em todas as sociedades, devem inculcar em seus filhos33 - a injunção de "tomar cuidado" e não se envolver desnecessariamente em decisividades evitáveis. Outro meio de controlar a decisividade, que é quase tão empregado quanto o cuidado físico, é às vezes chamado de providência: uma orientação incremental a objetivos de longo alcance expressa através de atos que têm consequências aditivas de longo prazo muito pequenas. O trabalho de investir na poupança é um exemplo; a aquisição de estabilidade num emprego e a obtenção de promoções através da aquisição gradual de treinamento são outros. Criar uma

31. "Copings" no original. "Coping mechanism" ou "coping behavior" são termos usados para se referir aos artifícios, ou suportes, empregados pelos seres humanos para lidar com situações difíceis [N.T.]. 32. Obviamente, grande parte desse cuidado é inserido no ambiente através do planejamento de segurança. Cadeiras são construídas de forma a limitar a possibilidade de quebra, bancos de forma a limitar a possibilidade de que virem, etc. Até os carros estão começando a ser planejados de forma a minimizar ferimentos possíveis. 33. Sugerido por Edward Gross. 167


família grande talvez possa ser incluído. A questão importante aqui é que o esforço de qualquer dia em particular, por envolver um incremento bastante pequeno, pode ser sacrificado sem ameaçar muito o conjunto. Esta é a solução calvinista para a vida: quando o indivíduo divide as atividades dos seus dias em atividades que não têm nenhum efeito e atividades que têm uma consequência contributiva muito pequena, nada pode realmente dar errado. Outro meio padrão de se proteger contra a decisividade são os seguros de qualquer forma, como quando compramos velas e fusíveis extras para nosso lar, motoristas compram pneus extras, e adultos compram planos de saúde. Dessa forma, o custo de problemas possíveis pode ser espalhado facilmente através de todo o curso da vida de um indivíduo, uma "conversão de uma perda contingente maior numa taxa menor fixa"34. Os sistemas de cortesia e etiqueta também podem ser vistos como formas de seguro contra decisividades indesejadas, desta vez ligados a ofensas pessoais que um indivíduo pode inadvertidamente causar a outros. A administração segura da interação face a face depende particularmente desse tipo de controle. É bom notar que a disponibilidade e aprovação dessas medidas de redução de risco criam uma nova contingência, uma nova base para a ansiedade. Quando um evento desfavorável ocorre durante um momento que não deveria ser extraordinário, e o evento ultrapassa a fronteira do momento e contamina partes da vida futura do indivíduo, ele enfrenta uma perda dupla: a perda inicial em questão, e a perda adicional de aparecer a si mesmo e aos outros como alguém que não conseguiu exercer o tipo de controle inteligente, o tipo de "cuidado", que permite a pessoas razoáveis minimizar perigos e evitar remorsos. Esses, então, são alguns dos meios - em grande parte de evitacão - que o indivíduo realisticamente utiliza como suportes para lidar com situações de decisividade. Precisamos agora tratar de uma questão diferente, mas que é facilmente confundida com esta — o comportamento defensivo.

34. KNIGHT, F. Risk, Uncertainty and Profit. Op. cit, p. 246. 168

Atividades decisivas previstas criam ansiedade e excitação. Isto está implícito na noção de que é provável que a utilidade daquilo que é apostado seja bem diferente da utilidade de apostá-lo. E também, como sugerido, o indivíduo muitas vezes sente remorsos quando algo indesejado acontece cuja chance de ocorrer ele não conseguiu reduzir, e desapontamento quando algo desejável não acontece e cuja ocorrência ele poderia ter garantido. Qualquer prática que administre a resposta emocional associada com a decisividade — emoções como ansiedade, remorso e desapontamento — pode ser chamada de uma defesa5. Quando passamos da consideração da administração da decisividade para a administração de uni estado emocional associado a ela, precisamos revisar novamente as fases de uma jogada. Pois com efeito há situações em que respondemos a fases objetivamente inconsequentes de uma jogada com uma sensação de que elas são decisivas. Nosso indivíduo, prestes a abrir uma carta com os resultados de um exame, pode se sentir excitado e ansioso a ponto de se engajar em pequenos rituais de expiação e controle antes de pousar seus olhos sobre a notícia terrível. Ou, quando a enfermeira se aproxima dele com informações sobre o estado de sua esposa e o sexo de seu bebé, ele pode sentir que o momento é decisivo; como ocorreria quando a equipe do hospital volta com notícias obtidas de uma biópsia realizada nele para avaliar se um tumor é benigno ou maligno. Mas deve estar claro que esses momentos não são realmente decisivos, e sim apenas de revelação. Em cada um desses casos o destino do indivíduo já foi determinado antes dele entrar na situação de obtenção de notícias; ele é simplesmente informado sobre aquilo que já está ocorrendo, sobre algo que, nesse momento, ele não pode fazer nada a respeito. Abrir uma carta ou analisar uma amostra de

35. A distinção entre suporte e defesa foi emprestada de MECHANIC, D. Students under Stress. Nova York: The Free Press, 1962, p. 51. Uma distinção um tanto semelhante é empregada por ANDERSON, B. "Bereavement as a Subject of CrossCultural Inquiry: An American Sample". Anthropology Quarterly, XXXVIII, 1965, p. 195: "O comportamento direcionado à pressão é orientado para remover, resolver ou aliviar as próprias circunstâncias invasoras; o comportamento direcionado à tensão para aplacar o desconforto físico ou psicológico que é produzido por esses acontecimentos". 169


biópsia não podem gerar nem determinar uma condição, apenas revelar o que já foi gerado36. Assim como revelações podem criar a excitação e preocupação sobre um destino sendo gerado, isto também ocorre com assentamentos, ou seja, ocasiões em que questões cruciais que já foram determinadas de uma certa forma são finalmente executadas. Assim, na Europa moderna, os últimos passos de um condenado não eram decisivos, mesmo que cada passo o tenha trazido mais perto da morte; sua execução era meramente dramática, e o julgamento era realmente decisivo. No século XVIII, quando muitas sentenças de morte eram aprovadas e a maioria delas comutadas, o julgamento não era tão decisivo quanto o período que se seguia a ele. Obviamente, nos dias de hoje, com sua agitação contra a pena capital, o período pós-julgamento se tornou novamente bastante decisivo. Podemos agora voltar a tratar de defesas, ainda que de modo passageiro, para relacionar um tópico muito discutido com o assunto deste artigo. O tipo mais óbvio de defesa talvez seja aquele que não tem nenhum efeito objetivo no destino, como no caso de superstições rituais. O comportamento considerado verdadeiro sobre boxeadores servirá como exemplo: Já que a maioria dos embates é imprevisível, os boxeadores normalmente têm superstições que servem para criar confiança e segurança emocional entre eles. Às vezes o empresário ou treinador usa essas superstições para controlar o lutador. Um lutador acreditava que, se comesse certos alimentos, ele certamente venceria porque esses alimentos lhe davam força. Outros insistem em vestir o mesmo roupão com que venceram sua primeira luta; um deles usava um cober36. É claro que quando o destino não é uma questão de vida ou morte imediata, a mera informação sobre aquilo que ocorreu pode iniciar o trabalho de ajuste aos danos, de modo que não conseguir aprender agora sobre uma perda eventual pode ser decisivo em si mesmo. Aqui, a revelação do destino não pode causar aquilo que é revelado, mas pode causar o momento de esforços reconstitutivos. Da mesma forma, se a rapidez da resposta do indivíduo à situação tem importância estratégica em sua competição com outras partes, então o momento de sua descoberta sobre o resultado pode ser decisivo, mesmo que a revelação do resultado não possa influenciar esse resultado em particular. 170

tor indígena para entrar no ringue. Muitos têm amuletos, ou consideram importante entrar no ringue depois do adversário [...] Alguns insistem que, se uma mulher observar seu treinamento, isso traz azar. Um boxeador, para mostrar que não era supersticioso, passava debaixo de uma escada antes de cada luta até isto se tornar um rito mágico em si mesmo. De forma consistente com esta atitude, muitos intensificam suas atitudes religiosas e têm Bíblias em seus armários. Um lutador tinha um rosário dentro de sua luva. Se ele perdesse o rosário, ele passava a manhã antes da luta na igreja. Apesar de essa atitude supersticiosa poder ser importada da cultura local ou étnica, ela é intensificada entre os próprios boxeadores, sejam eles brancos ou negros, lutadores de preliminares ou campeões37.

Apostadores exibem superstições similares, ainda que menos religiosas38. Claramente, é provável que qualquer prática realista com o objetivo de evitar ou reduzir o risco - qualquer suporte - terá o efeito colateral de reduzir a ansiedade e o remorso; para resumir, é provável que ela tenha efeitos defensivos. Uma pessoa que friamente recorre a uma matriz de teoria dos jogos quando enfrenta uma decisão vital está reduzindo um risco doloroso a um risco calculado. Seu esquema mental lhe traz paz de espírito. Como um cirurgião competente, ele pode sentir que está fazendo tudo que é possível fazer e, por isso, pode aguardar o resultado sem angústia ou recriminação. Da mesma forma, uma apreciação clara da diferença entre a fase de determinação de uma jogada e a revelação e assentamento dela pode ajudar o indivíduo a lidar com a ansiedade produzida na duração da atividade; tais distinções podem ter funções defensivas. Não surpreende, então, que, quando não se encontra imediatamente uma base causal para descontar o caráter determinado da situação, ela pode ser procurada; e quando ela não pode ser encontra37. WEINBERG, K. & AROND, H. "The Occupational Culture of the Boxer". American Journal o/Sociology, LXVIII, 1952, p. 463ss. 38. Na sociedade moderna, tais práticas tendem a ser empregadas apenas com uma ambivalência considerável e sem dúvida estão em grande declínio. Para a mudança da situação a respeito de um grupo tradicionalmente supersticioso, pescadores comerciais, cf. TUNSTALL, J. The Fishermen. Londres: Macgibbon & Kee, 1962, p. 168-170. 171


da, é imaginada. Assim, por exemplo, vemos que eventos determinados localmente podem ser interpretados como a consequência de determinações anteriores. Encontramos uma versão desse "determinismo defensivo" na crença no destino, na predestinação e em kismet - a noção de que os principais resultados de nossas vidas já estão escritos, e não há nada que possamos fazer para melhorar ou piorar nossas chances. A máxima do soldado é um exemplo: "eu não morrerei até chegar a minha hora, então para que me preocupar?"39 Assim como a causalidade pode ser procurada fora da situação, ela também pode ser procurada em forças locais que servem da mesma forma para aliviar nosso senso de responsabilidade. Está envolvido aqui um tipo de bode expiatório, relacionado à função de alojar a eficácia causal naquilo que é visto como as partes duradouras e autónomas da personalidade de um indivíduo, transformando assim um evento decisivo em algo que "já se esperava". Ao sofrer um acidente devido à falta de cuidado, o indivíduo pode dizer: "eu sou assim mesmo; faço isso o tempo todo". Quando está prestes a realizar um exame crucial, o indivíduo pode se tranquilizar dizendo a si mesmo que o exame será justo, e que por isso tudo depende do trabalho que ele realizou ou não como preparação. Além disso, a crença na sorte pura pode proteger o indivíduo do remorso de saber que algo poderia e deveria ter sido feito para se proteger. Aqui temos a posição oposta ao determinismo defensivo - um tipo de indeterminismo defensivo -, mas as consequências são bastante similares. "Não é culpa de ninguém", o indivíduo diz. "Foi só azar"40.

39. Cf. a discussão sobre o destino de W. Miller em "Lower Class Culture as a Generating Milieu of Gang Delinquency".Journai of Social hsues, XIV, 1958, p. 11-12. As raízes religiosas obviamente são encontradas em João Calvino e no puritanismo ascético. 40. Um exemplo é citado em COHEN, J. Behaviour in Uncertainty. Op. cit, p. 147: "A possibilidade de se apoiar na 'sorte' pode ser um grande conforto em outras circunstâncias. Em 1962, as universidades britânicas rejeitaram cerca de 20.000 inscrições. A maior parte dessas pessoas reconciliou essa rejeição com seu orgulho dizendo que a oferta de uma vaga na universidade depende tanto de sorte quanto de mérito. Descreve-se os rejeitados como gente que 'envia inscrições como um apostador coloca moedas numa máquina de caça-níqueis, certos de que o grande prémio um dia chegará'". 172

Obviamente, então, uma afirmação tradicional de suporte e defesa pode ser aplicada em relação à decisividade. Mas isto negligencia um fato mais amplo sobre a adaptação a encarar chances. Quando examinamos de perto a adaptação à vida realizada por pessoas cuja situação é constantemente decisiva, digamos, apostadores profissionais ou soldados da linha de frente, descobrimos que a percepção das consequências envolvidas acaba sendo amortecida de forma especial. O mundo que é apostado é, afinal, apenas um mundo, e o apostador pode aprender a se desfazer dele. Ele pode se ajustar aos altos e baixos de seu bem-estar descontando sua relação anterior ao mundo e aceitando uma relação arriscada com aquilo que os outros têm segurança de ter. As perspectivas parecem ser inerentemente normalizadoras: quando as condições são encaradas totalmente, podemos construir uma vida a partir delas, e quando isto ocorre de baixo para cima, são os altos, e não os baixos, que são vistos como temporários. 6. Ação Apesar de ser possível lidar com todos os tipos de decisividade através de suportes e defesas, ela não pode ser evitada completamente. E, o que é mais importante, existem, como sugerido, algumas atividades cuja decisividade é realmente apreciável se combinarmos a quantidade arriscada, a taxa de chances, e o caráter problemático do resultado. É aqui, obviamente, que o indivíduo provavelmente perceberá a situação como a entrada numa aposta prática arriscar voluntariamente chances sérias. Tendo em vista as reivindicações de obrigações mais amplas que comprometem alguns indivíduos com aquilo que eles podem perceber como empreendimentos arriscados, às vezes a necessidade é transformada em virtude. Isto é outro ajuste defensivo à decisividade. Aqueles com deveres decisivos às vezes se consideram homens de respeito próprio que não têm medo de se colocar na linha de frente. Em todos os encontros (afirmam eles) estão prontos para colocar seu bem-estar e reputação em perigo, transformando encontros em confrontos. Eles têm um desprezo mais ou menos secreto por aqueles com empregos seguros e confiáveis que nunca precisam encarar testes reais de si mesmos. Eles afirmam que não apenas 173


estão dispostos a permanecer em empregos cheios de oportunidades e riscos, mas que buscaram esse ambiente deliberadamente, recusando-se a aceitar alternativas seguras, sendo capazes, dispostos e até inclinados a viver no desafio . Dizem que ladrões e batedores de carteiras talentosos, cuja habilidade sempre é exercida sob pressão, desprezam pequenos trombadinhas, pois a única arte de que estes precisam para sua vocação é uma certa malícia indigna42. Os criminosos também podem depreciar compradores de objetos roubados como "ladrões sem coragem"43. Da mesma forma, carteadores de cassinos de Nevada podem começar seus turnos sabendo que são eles que precisam encarar as intenções duras dos jogadores de ganhar, e ficar friamente no caminho deles, bloqueando consistentemente a habilidade, a sorte e as trapaças para não perderem a reputação precária que têm com os gerentes. Tendo que enfrentar essas contingências todos os dias, eles se sentem separados dos funcionários dos cassinos que não estão na linha de tiro. Em alguns cassinos há carteadores especiais que são trazidos para um jogo para ajudar a natureza a corrigir as séries custosas de boa sorte que os jogadores ocasionalmente experimentam, ou para remover a incerteza que o supervisor [pit boss] pode sentir quando um grande apostador começa a jogar seriamente. Esses carteadores praticam artes que exigem delicadeza, velocidade e concentração, e o trabalho pode facilmente ser estragado visivelmente. Além do

41. E. Hemingway (Death in the Aftemoon. Nova York: Scribners, 1932, p. 101) sugere que homens dessa estirpe, com pouca inclinação a fazer cálculos precisos, têm sua própria doença: "a sífilis foi a doença dos cruzados na Idade Média. Supostamente ela foi trazida para a Europa por eles, e esta é uma doença de todas as pessoas que levam vidas em que predomina o desprezo pelas consequências. Ela é um acidente industrial, esperado de todos aqueles que vivem vidas sexuais irregulares e em cujos hábitos mentais preferem se arriscar a usar profiláticos, e é um fim, ou fase, a ser esperado por todos os fornicadores que levam suas carreiras longe demais". A penicilina enfraqueceu esse caminho para a hombridade. 42. SHAW, C. "Juvenile Delinquency - A Group Tradition". Bulletin of the State University of lowa, 23, n. 700, 1933, p. 10, apud CLOWARD, R. & OHLIN, L. Delinquency and Opportunity. Nova York: The Free Press, 1960, p. 170. 43. BLACK, S. "Burglary", II. The New Yorker, 14/12/1963, p. 117. 174

mais, é provável que o jogador nesse momento esteja profundamente comprometido e procurando aberta e até beligerantemente num campo pequeno as provas que têm que estar lá. Os "mecânicos" de dados e cartas habilidosos compreensivelmente desenvolvem desprezo não apenas por não carteadores, mas também por meros carteadores44. Os pequenos pescadores que eu conheci nas Ilhas Shetland tinham um sentimento parecido; durante cada uma das cinco ou seis jornadas de um dia de pescaria, eles se sujeitavam a uma aposta séria por causa da variabilidade extrema da pesca45. Espiar a rede quando o guincho a trazia para fora d'água com seus peixes era uma emoção, e aqueles que a experimentavam sabiam que era algo que seus colegas da ilha não eram homens o bastante para querer suportar regularmente. É interessante notar que Sir Edmund Hillary46, que veio a praticar uma vocação realmente arriscada, nos deu a seguinte opinião sobre o trabalho que sustentava a ele e seu pai, a saber, a apicultura: Era uma vida boa - uma vida de ar puro e sol e trabalho físico duro. E, numa maneira singular, era uma vida de incertezas e aventura; uma luta constante contra os caprichos do clima e uma correria louca quando todas as nossas 1.600 colmeias decidiam enxamear ao mesmo tempo. Nós nunca sabíamos como seria nossa safra até extrair o último quilo de mel das colmeias. Mas durante todos os meses excitantes do fluxo de mel, o sonho de uma safra excepcional nos motivava durante as horas longas e duras de trabalho. Eu acho que éramos otimistas incuráveis. E durante o inverno eu muitas vezes perambulava por nossas lindas colinas cobertas de arbustos e aprendia um

44. Com alguma reverência, carteadores citam como um modelo de referência os "mecânicos" de vinte-e-um em Nova York que trabalhavam ao lado do antro da máfia Murder Incorporated, e diariamente jogavam com clientes que provavelmente seriam visivelmente intolerantes de qualquer carteador que fosse apanhado trapaceando. Certamente, aqueles que eram capazes de sobreviver a tal ocupação devem ter se sentido homens de aprumo considerável, à altura de qualquer outra pessoa imaginável nesse departamento. 45. Estudo de Campo, 1949-1950. 46. Líder da primeira expedição a chegar ao topo do Monte Everest [N.T.]. 175


pouco sobre confiar em mim mesmo, e sentia as primeiras agitações leves do interesse pelo desconhecido47.

Quando nos deparamos com essas posições podemos suspeitar que elas estão tentando adoçar coisas ruins - elas seriam mais uma questão de racionalizações do que de descrições realistas. (É como se a ilusão da autodeterminação fosse o pagamento que a sociedade dá aos indivíduos em troca de sua disposição a realizar trabalhos que os expõem ao risco.) Afinal, mesmo com papéis ocupacionais arriscados, a escolha ocorre principalmente no momento em que o papel é aceito, e outros mais seguros são descartados; quando o indivíduo se compromete com um nicho particular, é mais provável que o fato de ele ter que encarar aquilo que ocorre lá expresse coerções firmes do que redecisões diárias. Aqui o indivíduo não pode escolher abandonar as apostas na sorte sem consequências sérias para sua posição ocupacional48. Entretanto, há atividades decisivas que são definidas socialmente como aquelas em que um indivíduo não está sob nenhuma obrigação de continuar a desempenhar depois de começar a fazê-lo. Nenhum fator extrínseco o compele a encarar o destino em primeiro lugar; nenhum objetivo intrínseco dá razões úteis para sua participação continuada. Sua atividade é definida como um fim em si mesmo, procurada, aceita e completamente sua. Seu registro durante a performance pode ser reivindicado como a razão pela participação, sendo assim uma expressão direta e irrestrita de sua composição verdadeira e uma base justa para a reputação. Com o termo ação eu me refiro a atividades que são consequentes, problemáticas e realizadas por aquilo que é considerado seu

47. HILLARY, E. High Adventure. Nova York: Dutton, 1955, p. 14. 48. Dean MacCannell sugeriu que há pessoas que apostam os próprios empregos, como quando um vigia noturno arrisca ir ao cinema durante seu turno e gosta da aposta tanto quanto do filme. Entretanto, esses empregos são caracteristicamente "meros" empregos, ocupados e abandonados rapidamente por pessoas que não são especificamente qualificadas para eles e que não são qualificadas para nada melhor. Quando esses trabalhos são sujeitos a uma supervisão apenas errática, podem ocorrer as apostas com o emprego. 176

próprio bem. O grau de ação - sua seriedade ou realidade [realness] depende do quão completamente essas propriedades são enfatizadas e está sujeito às mesmas ambiguidades relacionadas à mensuração do que aquelas descritas no caso das chances. A ação parece ser mais marcada quando as quatro fases da jogada - preparação, determinação, exposição e assentamento - ocorrem num período de tempo breve o bastante para estar contido num feixe de atenção e experiência contínuo. É aqui que o indivíduo se liberta para o momento passageiro, apostando seu estado futuro naquilo que transpira precariamente nos segundos que virão. Em tais momentos, é provável que um estado emocional especial seja despertado, emergindo transformado em excitação. O local da ação pode mudar fácil e rapidamente, como qualquer jogo de dados flutuante prova; na verdade, se uma briga de facas começar ao lado de uma mesa de dados, a ação pode mudar de local enquanto muda de tipo, e ainda assim os participantes aplicarão a mesma palavra, como se a ação numa situação fosse por definição a ação mais séria naquela situação no momento, independentemente de seu conteúdo49. Ao fazer a pergunta famosa: "Onde está a ação?", um indivíduo pode estar mais preocupado com a intensidade da ação que encontra do que com o seu tipo. Quem quer que participe na ação o faz em duas capacidades bastante distintas: como alguém que arrisca ou aposta algo valioso, e como alguém que precisa realizar quaisquer atividades que sejam exigidas. Nesta última capacidade, o indivíduo normalmente precisa estar sozinho50, arriscando sua reputação de competên-

49. Assim, N. Polsky ("The Hustler". Social Problems, XII, 1964, p. 5-6) sugere que um jogo de sinuca entre jogadores habilidosos por uma aposta pequena ficará em segundo lugar em relação a um jogo entre jogadores menos hábeis que estão apostando quantias mídores. 50. A capacidadí de realizar tende a ser imputada ao indivíduo, mas há situações, como molestarr ntos de gangues, em que essa capacidade claramente é derivada dos reforços visívei, que ele pode invocar prontamente. Além disso, há algumas situações cuja ação surge porque um conjunto de atores se comprometeu a realizar atos intricadamente coordenados - como em alguns roubos recentes. O próprio cálculo das interdependências face a várias contingências se torna uma fonte de ação. 177


cia oin jogos' 1 . Mas na primeira capacidade ele pode facilmente compartilhar sua aposta com outras pessoas ou mesmo deixá-las "ficar" com ela totalmente. A ação, então, normalmente é algo do qual podemos ter um "pedaço"; o realizador da ação tipicamente é um único indivíduo, mas o grupo que ele representa pode conter uma escalação de membros comprometidos conjuntamente que varia rapidamente. Entretanto, para a análise, é conveniente focar no caso em que o realizador fica com sua ação inteira, e não pega a de mais ninguém. É claro que foi no mundo dos jogos de azar que o termo "ação" começou enquanto gíria, e o jogo de azar é o protótipo da ação. Nos cassinos de Nevada podemos encontrar os seguintes usos: "ação de dólar", refere-se a pequenos apostadores e seus efeitos na renda do dia; e "ação boa [ou real, ou grande]" refere-se a rendas maiores. Diz-se que carteadores que são intimidados por grandes apostadores são incapazes de "dar cartas para a ação", enquanto carteadores frios são "capazes de lidar com a ação". Naturalmente, carteadores novatos são "retirados da ação" e, quando as apostas se tornam grandes e variadas numa mesa de craps, o melhor dos apostadores próximos ao carteador pode ser "colocado ao lado da ação". Dizem que cassinos que tentam evitar jogos de limites altos "não querem a ação". Um grande apostador conhecido por "deixar" muito dinheiro pode ser recebido calorosamente num cassino porque "gostamos da ação dele". Supervisores, sempre preocupados em mostrar que de alguma forma merecem o seu salário, "ficam de olho na ação" a uma distância segura. Um trapaceiro conhecido, ou alguém capaz de "contar cartas" em vinte-e-um, pode ser ordenado a deixar o cassino permanentemente com a frase "não queremos a sua ação". Jogadores indecisos "atrasam a ação", e aquele que não consegue cobrir tudo aquilo que é considerado uma boa aposta pode fazer com que outro jogador pergunte se ele pode "aguentar o resto da ação".

51. É bastante possível que um indivíduo esteja mais preocupado com sua reputação como um realizador do que com o valor objetivo do bolo em jogo. Por exemplo, carteadores de cassino, especialmente no começo da carreira, podem achar mais difícil dar as cartas para uma grande aposta durante seu turno do que administrar uma aposta do mesmo tamanho como um cliente depois do trabalho. 178

Gerentes de cassino merecedores podem ser recompensados "recebendo um pedaço da ação", ou seja, uma parte da propriedade ("pontos"). É provável que em cassinos com apenas um aglomerado de mesas (um "buraco" ["pit"]) exista uma mesa que, devido à sua localização ou apostas máximas especiais, seja chamada de "mesa da ação", assim como em cassinos grandes existe aquilo que é chamado "buraco de ação" com apostas mínimas altas52. Apesar de a ação ser independente do tipo e relacionada com a quantidade, esta, por si mesma, não pode ser tomada como um simples produto do tamanho de cada aposta pelo número de jogadores apostando. Isto fica muito claro no craps. Uma mesa cujo único jogador está fazendo apostas de cem dólares pode ser vista como tendo mais ação do que outra mesa cujos vinte jogadores estão fazendo apostas de cinco e dez dólares. Uma mesa "entupida" de jogadores fazendo muitos tipos diferentes de apostas pode ser vista como tendo mais ação do que outra mesa em que dez jogadores estão apostando um agregado maior através de apostas simples. Similarmente, dizer que um carteador pode "cuidar da ação" pode significar ou que ele pode dar as cartas friamente para um apostador muito grande, ou que ele pode dar as cartas veloz e precisamente quando é necessário fazer rapidamente um grande número de cálculos e desfechos. Outro aspecto do uso do apostador do termo "ação" surge do fato de que a ação e as chances que ela envolve podem constituir a fonte do ganha-pão diário do apostador. Assim, quando ele pergunta onde a ação está, ele não está meramente procurando situações de ação, mas também situações em que ele pode praticar sua ocupação. Algo semelhante é encontrado na concepção do ladrão e da prostituta de onde a ação está - a saber, onde os riscos para se ganhar a vida estão disponíveis atual e amplamente53. Aqui, comprimida or-

52. Da mesma forma, N. Polsky ("The Hustler". Op. cit, p. 5) relata que certos salões de sinuca são identificados nacionalmente como "salas de ação", e dentro de um salão haverá uma ou duas mesas reservadas informalmente para a ação. 53. Sugerido por BECKER, H. The Dictionary of American Underworld Lingo. Nova York: Twayne, 1950 (org. por GOLDIN, H.; O'LEARY, F. & LIPSIUS, M.). Define ação como: Atividade criminal. "Aparece hoje à noite, Joe, tem ação - um jogo (roubo) no Brooklyn".

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gulhosamente em uma palavra, temos uma reivindicação de uma relação muito especial com o mundo do trabalho. Sem dúvida foram os apostadores que aplicaram em primeiro lugar seu termo a situações fora de jogos de azar, iniciando assim uma difusão de uso que não apostadores recentemente estenderam ainda mais. Mas quase sempre o uso parece apropriado. Subjacente à diversidade aparente de conteúdo está uma única propriedade analítica que pode ser sentida com certeza por pessoas que poderiam ser incapazes de definir com precisão aquilo que sentem. Não há lugar melhor para ver essa difusão de uso do que a promoção recente da ação em nossa mídia de massa. Na verdade, contribuintes da mídia recentemente ajudaram a esclarecer o significado interno do termo e a mostrar sua aplicabilidade a novos conjuntos de situações, dando uma ênfase especial à cultura popular atual. Assim, um anúncio de jornal para o "Dia dos Adolescentes" no Whiskey à Go Go (sem álcool, música ao vivo), declara: Dance a música Big Beat do Whiskey à Go Go original WHISKEY À GO GO, ONDE A AÇÃO ESTÁ!54

Herb Caen, reportando sobre acontecimentos na Baía Leste, afirma que: O Sr. Larry Lawrence, pres. do Hotel dei Coronado, e o acionista Al Schwabacher Jr. se encontraram na Cabana P'Alto outro dia, e é por isso que há um boato por aí dizendo que Al pode comprar um pedaço da ação histórica do Coronado55.

Caen também escreve: Você sabe onde a ação está nas noites? Em Oakland, é lá que ela está. Ou pelo menos foi o que pareceu ontem, num bar de strip-tease na Praça Jack London, onde o prefeito de Oakland, John Houlihan, e o milionário Bernie Murray se envolveram num empurra-empurra que termi-

54. San Francisco Chronide, 07/08/1965. 55. Ibid., 22/07/1965. Herb Caen foi um famoso jornalista americano, conhecido, entre outras coisas, por popularizar os termos beatník e hippie [N.T.]. 180

nou com Sua Excelência caído de bunda no meio da pista de dança - com as dançarinas dançando o /ntg56 sobre e ao redor de sua figura deitada [,..]" 57

O Lãs Vegas Sun, sob uma foto da competição, relata: AÇÃO DE BRIDGE - espectadoras assistem com atenção a especialistas em bridge competindo no Hotel RivieraJ8.

Durante outro torneio, uma chamada de coluna no Sun afirma: Ação de Gin9 vai para a segunda rodada60. E o colunista do mesmo jornal relata: A dança sexy de Shirley Jones do filme Elmer Gantry no Flamingo hoje em dia é a ação mais explosiva desde Juliet Prowse [...]61.

Uma chamada de capa da revista Newsweek: SINATRA: Onde a ação está62. Um anúncio colorido na revista Look: 7-UP [...] ONDE TEM AÇÃO! Seven-up é a bebida natural para a turma da ação! Ela tem a faísca que dança [...] e a ação que manda a sede embora. Procure isso. 7-UP [...] onde tem ação!63

E um anúncio na revista Califórnia Living, mostrando uma garota passando batom, e sugerindo que "a boca de uma garota está sempre se movendo", tem como título: Onde a ação da beleza está64.

56. Tipo de dança parecido com o twist, em moda por um breve período nos anos 1960 [N.T.].

57. San Francisco Chronide, 24/09/1965. 58. Lãs Vegas Sun, 10/02/1965. 59.Jogo de cartas americano semelhante ao buraco [N.T.]. 60. Lãs Vegas Sun, 04/12/1965. 61. Ibid., 20/04/1965. 62. Newsweek, 06/09/1965. 63. Look, 24/08/1965. 64. Califórnia Living, 07/11/1965. A ação também aparece em outras partes inesperadas do corpo. Meu vendedor de bebidas, promovendo uma cerveja holandesa im181


Uma foto de capa de página inteira da mesma revista exibe duas modelos numa seção de uma loja de departamentos decorada como um ponto de encontro de adolescentes, sobre um título que diz: Confira a ação da moda65. E um artigo sobre a venda pelo departamento de polícia de San Francisco de artigos recuperados de roubos que não foram reivindicados relata que o leiloeiro "mantém o ritmo acelerado para centenas de compradores fazendo ofertas": Se não há honra entre ladrões, também não há um denominador comum dos roubos. Confira a ação no leilão da polícia para ver por quê .

Colunistas financeiros, é claro, também recorrem ao termo: Se foi o pânico para vender que tomou o mercado em outubro de 1929 e maio de 1962, então hoje certamente estamos nas garras do pânico para comprar. Pelo menos é assim que Shearson, Hammill & Co. enxergam o vale-tudo atual. Aparentemente a principal motivação no momento é o medo de perder ou ter perdido uma grande oportunidade de compra - observa a firma de corretagem. Em grande parte, todo dia os compradores de ações - não usaremos o termo "investidores" - estão indo para onde a ação está, e ela não é difícil de encontrar. Para qualquer um que deseje um pouco da ação, Shearson aconselha o seguinte: [...]67. Grandes vendas ocorreram durante a primeira hora e os registros de cotações começaram a não conseguir acompanhar a ação68.

portada barata, abre uma garrafa para mim, coloca perto do meu rosto, e diz: "Experimenta esta ação". 65. Ibid., 13/02/1966. 66. Califórnia, 17/04/1966. 67. WATSON, L. San Francisco Chronide, 23/04/1966. 68. Boston Travder, 22/08/1966. 182

Aqueles que escrevem sobre contratos governamentais podem empregar o termo, evocando uma imagem de ocasiões em que decisões, alocações e oportunidades muito boas estão em pleno processo de determinação: The Chronide descobriu ontem que a firma de investimentos do poderoso lobista Tom Gray ganhou um pedaço de $40.000 da ação quando a Junta de Supervisores aprovou uma extensão de $2 milhões do estacionamento Fifth and Mission69.

Essas ênfases jornalísticas têm importância. O culto dos carros fornece um bom exemplo. Encontramos um apoio para este mundo no automobilismo profissional e o esporte público organizado ao redor dele. Outro apoio é a propaganda, e eu cito dois exemplos de uma brochura em cores recentemente impressa pela Buick: Pense num carro cheio de ação, com linhas clássicas, ágil como um gato, e luxuoso como não se pode sequer imaginar. O carro em que você está pensando é o Riviera da Buick. Temos aqui uma mistura única de performance flamejante (325 cavalos) e equilíbrio sólido que diferencia o Riviera de todos os outros carros. Em outras palavras, é um carro que estaria igualmente em casa em estradas e pistas de corrida. A ÊNFASE ESTÁ NA AÇÃO! Um carro só ganha vida quando você gira a chave para ligar o motor. Este é o melhor momento de ter um Buick. Com qualquer um dos seis motores e quatro transmissões da Buick, você comprou um pedaço de ação que não parará nunca.

Essas duas fontes de publicidade contribuem para a fabricação, venda e uso de carros esportivos e sedas rápidos, e isto por sua vez fornece equipamentos oficiais para transformar as estradas em ce-

69. "Uma parte de $40.000 da Ação". San Francisco Chronide, 04/08/1966, p. 1. 183


nas tlc ação, lugares onde habilidade, impaciência e veículos caros podem ser exibidos sob condições seriamente arriscadas70. Neste ensaio, a ação será considerada principalmente no contexto da sociedade dos Estados Unidos. Apesar de sem dúvida todas as sociedades terem cenas de ação, foi nossa própria sociedade que encontrou uma palavra para ela. É interessante notar que percebemos a ação num momento em que - comparado com outras sociedades - nós diminuímos bastante na vida civil a ocorrência de decisividade do tipo sério, heróico e zeloso. Uma última palavra sobre a disseminação de palavras. Na jogatina de cassinos, quando um jogador faz uma aposta grande e a perde, ele às vezes se refere ao que fez como "uma furada" [blowing it]. Então, engajar na ação sem sucesso é "furá-la". A implicação é que uma aposta desejável (neste caso monetária) que possuíramos agora foi perdida, e que nem a posse da aposta nem sua perda eram particularmente justificadas ou legítimas. Furar uma aposta grande passa uma má impressão sobre si mesmo, mas não tão ruim que seja inadmissível acusar-se facilmente de ter feito isso. É este complexo que acabou sendo generalizado. Funcionários de cassinos novos no emprego sentem que haverá um grande lucro se eles conseguirem "chegar lá", mas que não há nenhuma forma prática de garantir que eles chegarão. Durante essa

70. Dirigir muitas vezes se torna urna forma de ação, e a relação entre práticas de direção cotidianas com o mundo idealmente perigoso das pistas de corrida, e o mundo de promoção de sonhos da publicidade de carros é um tópico social importante, talvez percebido suficientemente apenas por aqueles que têm um interesse profissional em diminuir as taxas de acidentes. Cf., p. ex., JONES, M. "Who Wants Safe Driving". The Observer, Resenha de Fim de Semana, 16/08/1964, p. 17. • COHEN, J. Behaviourin Uncertainty. Op. cit.: cap. 5, "GamblingwithLife on the Road". • ROBERTS, J.; THOMPSON, W. & SUTTON-SMITH, B. "Expressive Self-Testingin Driving". Human Organization, 25, l, 1966, p. 54-63. Dirigir para "ganhar tempo" poupa uma quantidade notavelmente pequena de tempo, mas gera uma corrente de ação subjacente; muitas vezes parece que estamos poupando tempo para experimentar riscos. Algumas pessoas gostam de viagens aéreas pela mesma razão. Elas programam sua partida para o aeroporto de forma a minimizar a espera quando chegarem lá, e incidentalmente se certificam de haver algum perigo de perder o voo e, uma vez no avião, eles apreciam uma sensação de um leve perigo de vida durante

fase difícil, há muitas pequenas infrações de regras que servem como justificativa suficiente para demissão: chegar alguns minutos atrasado para o turno; recusar uma tarefa indigna; errar no manuseio das fichas; ser irreverente quanto a uma perda da casa; expressar impaciência sobre o ritmo do próprio progresso, e assim por diante. Quando a habilidade e reputação são adquiridas, a estabilidade é apenas um pouco mais segura: séries de má sorte; suspeitas infundadas de roubo; mudanças na administração; tudo isso pode resultar em justificativas para uma demissão repentina. A perda de um emprego devido a algo que também pode, de fato, ser visto como um lapso insignificante também é uma "furada". Em contraste à perspectiva de classe média que tende a definir a posição ocupacional como algo que só pode ser adquirido e perdido merecidamente, a situação ocupacional para o funcionário de cassinos tende a oscilar muito rapidamente entre "chegar lá" e "furar", e nenhum desses estados é visto como particularmente justificado. Essa perspectiva se espalhou para outras áreas da vida, e um carteador pode falar sobre ter furado seu casamento ou sua chance de uma educação universitária. A lógica dessa atitude vigorosa diante das características fundamentais da vida, que implica uma defesa profunda para a vida com ação, pode ser entendida em referência à organização social de Nevada: a relativa facilidade de divórcios e casamentos; a presença de um número muito grande de pessoas que fracassaram profissional ou conjugalmente; uma tradição de fronteira de não se fazer perguntas sobre a história ou o ganha-pão atual das pessoas; a possibilidade clara de conseguir um emprego equivalente no outro lado da rua depois de ser demitido; a alta visibilidade de um grande número de empregados de cassinos conhecidos por terem trabalhado recentemente em empregos melhores em outros cassinos; o fato de que rodadas esporádicas de jogos grandes significam a realização esporádica da experiência ideal de uma cultura, de forma que, por mais longos e magros que sejam os dias entre rodadas, esse uso do próprio dinheiro pode ser o melhor que Nevada pode oferecer. De qualquer modo, a ação não é o único termo que parece ter se dissemina185


( l o a partir das mesas de jogos. Há uma família de termos que parece estar envolvida, e a família inteira parece estar migrando71. 7. Onde a ação está Eu afirmei que a ação é encontrada sempre que o indivíduo voluntariamente arrisca chances consequentes percebidas como evitáveis. Normalmente, a ação não será encontrada durante a rotina de trabalho dos dias úteis, em casa ou no emprego. Pois aqui as coisas tendem a ser organizadas de forma a deixar as chances de fora, e aquelas que permanecem não são obviamente voluntárias. Onde, então, encontramos rotineiramente a ação? Permitam-me resumir as sugestões já feitas de passagem. Primeiro, os competidores encontram ação no esporte competitivo comercializado. Talvez porque essa atividade seja encenada para uma plateia e assistida por diversão, sentimos que não poderia existir uma razão completamente séria para se engajar na atividade em si. E também o fato de que amadores realizam essas atividades espetaculares sozinhos, privadamente e sem receber por isso, como recreação, reforça a noção de que os profissionais estão engajados numa vocação autodeterminada de livre e espontânea vontade. Isto é o caso mesmo que esteja claro que interesses profissionais e comerciais podem ser apostados de forma organizada sobre o resultado do espetáculo. Apesar de um piloto de corridas poder ganhar a vida ao volante, e a decisão de uma companhia de manter ou cancelar um modelo de automóvel pode depender do resultado de uma

71. Além de "ação" e "furar", precisamos contar a frase "chegar lá" [having it made] como sendo uma fonte de renda, merecida ou não, que permite uma vida de pouco trabalho e despesas consideráveis, e um sentido da frase "ter um esquema" [to have something goingfor oneselj], a saber, algum tipo de vantagem, como quando um funcionário de cassino diz que nunca joga vinte-e-um a não ser que tenha um esquema com o carteador - incidentalmente, uma condição de jogo que é muito difícil de evitar. Eu não tratarei aqui de um termo usado por funcionários de cassino em muitos contextos: to hustle. Este é um membro adotado da família de termos de cassino, originário de um negócio mais antigo. [To hustle, em cassinos, significa "fraudar", mas o termo surgiu em relação à prostituição, onde significa "conseguir clientes para uma prostituta" - N.T.]

corrida72, ainda sentimos que os pilotos poderiam escolher outros tipos de emprego, ou pelo menos se abster da corrida atual, e que esse tipo de chance é, de alguma forma, voluntário. O próximo lugar da ação que devemos analisar são os esportes arriscados sem espectadores73. Não se recebe nenhum pagamento por esse esforço; nenhuma identidade publicamente relevante é consolidada por ele; e ele não incorre em nenhuma obrigação no mundo sério do trabalho. Na ausência das pressões normais para se engajar numa atividade, é supostamente fácil pressupor que a autodeterminação está envolvida e que as chances enfrentadas o são apenas devido ao desafio que resulta. É interessante notar que alguns desses esportes vigorosos são dominados por cidadãos jovens e sólidos que podem se dar ao luxo de dedicar tempo, viagens e equipamento a eles. Essas pessoas parecem desfrutar do melhor de dois mundos, aproveitando a honra de se arriscar sem ameaçar muito seus envolvimentos rotineiros dos dias úteis. Os próximos da lista são os lugares de ação mais comercializados - lugares de localização conveniente em que equipamentos e o campo para seu uso podem ser alugados, recebendo um leve grau de ação. Casas de boliche, salões de sinuca, parques de diversão e centros de fliperama fornecem arranjos em que o custo do jogo e o valor do prémio geram um contexto levemente decisivo para a exibição da competência. Apostas j mblicas em corridas de cavalos e em cassinos permitem que o apostador demonstre vários atributos pessoais,

72. Por exemplo, a participação dos Corvette na corrida de Sebring de 1956, como descrita pelo piloto John Fitch (com C. Barnard), The Day that Corvette Improved the Breed, p. 271-286, apud BEAUMONT, C. NOLAN, W. Omnibus of Speed. Nova York: Putnam and Sons, 1958: "Eu sabia que uni fracasso em Sebring provavelmente significaria o fim do interesse da Chevrolet em produzir carros de corrida" (p. 286). 73. É característico que "vale a pena assistir" aos esportes recreativos arriscados, que eles frequentemente serão assistidos, e que o realizador precisa aceitar essa audiência. Ele deve ser capaz de realizar seu papel enquanto é assistido; mas ele não deve realizá-lo apenas para ser assistido e deve realizá-lo mesmo que não haja espectadores. Não importa o quão grande seja a multidão que assiste a um esportista, nem o quanto ele esteja fascinado com o fascínio deles, o papel deles não é ratificado; eles não podem exigir que ele agende sua performance nem a complete depois de ter começado. Eles têm o direito que ele ignore o fato deles estarem assistindo, mas o dever de aceitar que ele os ignore. 187


mus a « n u custo considerável. As atrações de "vertigem" em feiras e l >;u ([ucs de diversão resolvem abertamente nosso dilema em relação a ação ao oferecer um perigo com garantias de não ser realmente perigoso - o que Michael Balint descreveu bem como a excitação segura dos arrepios [thrills]: Em todas as diversões e prazeres deste tipo podemos observar três atitudes características: (a) uma quantidade de medo consciente, ou pelo menos uma percepção de perigo externo real; (b) uma exposição voluntária e intencional de si a esse perigo externo e ao medo gerado por ele; (c) enquanto ao mesmo tempo existe uma esperança mais ou menos confiante de que o medo pode ser tolerado e desejado, o perigo passará, e que seremos capazes de voltar sãos e salvos. Essa mistura de medo, prazer, e esperança confiante face ao perigo externo é o que constitui o elemento fundamental de todos os arrepios".

Há um tipo final de ação comercializada envolvendo participação direta que eu chamarei de "estar nos holofotes" [fancy milling]75. Os adultos em nossa sociedade podem sentir um gostinho de mobilidade social consumindo produtos valiosos, desfrutando de entretenimen-

74. BALINT, M. Thrills and Regressions. Londres: The Hogarth Press/The Institute of Psycho-Analysis, 1959, p. 23. Balint prossegue fa: ;ndo este comentário interessante (p. 23-24): "Examinemos rapidamente de que ;orma outros arrepios se parecem com aqueles oferecidos em parques de diversão. Alguns estão ligados à alta velocidade, como em todos os tipos de corridas, equitação, automobilismo, patinação, esqui, tobogãs, velejar, voar, etc. Outros estão ligados a situações expostas, como várias formas de saltos e mergulhos, escaladas, asa-delta, domesticar animais selvagens, viajar para terras desconhecidas, etc. Finalmente, há um grupo de arrepios ligados a formas de satisfação estranhas ou mesmo completamente novas, ou na forma de um novo objeto ou de um método desconhecido de prazer. O objeto novo óbvio é uma virgem, e é impressionante como quantos arrepios reivindicam este adjetivo. Falamos de terra virgem, um pico virgem, ou um caminho virgem para o pico, velocidades máximas virgens, e assim por diante. De modo geral, qualquer parceiro sexual novo é um arrepio, especialmente se ele ou ela pertence a outra raça, cor ou credo. As novas formas de prazer incluem, entre outros: comidas novas, roupas novas, costumes novos, até formas novas de atívidades sexuais 'perversas'. Em todos esses fenómenos encontramos os mesmos três fatores fundamentais descritos acima: o perigo externo objetivo gerando medo, a exposição voluntária e intencional a ele, e a esperança confiante de que no fim tudo dará certo". 75. A necessidade de tratar desse modo de ação foi recomendada por Howard Becker.

tos caros e na moda, passando tempo em ambientes luxuosos e se misturando com pessoas de prestígio - e ainda mais se tudo isto ocorrer ao mesmo tempo e na presença de muitas testemunhas. Essa é a ação do consumo. Além disso, a mera presença num ajuntamento grande e apertado de pessoas em uma festa pode trazer não apenas a excitação gerada por multidões, mas também a incerteza de não se saber exatamente o que está prestes a acontecer, a possibilidade de flertes, que podem eles mesmos levar à formação de relacionamentos, e a experiência animada de estar a um cotovelo de distância de alguém que realmente consegue encontrar uma ação real na multidão. Quando esses vários elementos de estar nos holofotes são combinados, e o indivíduo compara o prestígio e a brevidade da participação contra o custo de chegar à cena e a taxa de despesas necessárias durante cada momento de participação, o resultado é um tipo de ação difusa - ou melhor, um sabor da ação - por mais limitada que seja a decisividade76. O indivíduo traz para si mesmo o papel de realizador e o de espectador; ele é a pessoa que se engaja na ação, mas ao mesmo tempo ele é a pessoa que provavelmente não será afetada permanentemente por ela. Aqui os cassinos de hotéis oferecem um exemplo extremo. Eles não apenas disponibilizam apostas monetárias, mas esse tipo de ação é recoberto com a ação de consumo. Temos uma breve penetração na vida dos ricos. Limusines estacionadas por choferes são amontoadas na entrada. Depois da entrada, o ambiente é luxuoso. Bebidas caras são servidas nas mesas, muitas vezes sem custos para o consumidor. Um bufe de qualidade pode ser oferecido, permitindo uma glutonaria de alto nível. Encoraja-se um sistema de gratuidade que eleva seus usuários e faz com que garçonetes de pouca roupa, escolhidas por sua aparência, sejam um tanto acessíveis. Um sistema de sinais operados no "buraco" permite que essas garotas entreguem drinques, cigarros e aspirinas em qualquer lugar do estabelecimento se necessário. "Mensageiros" de bingo" e garotas que trocam dinheiro são organiza-

76. Os serviços em tais lugares precisam ser caros se o objetivo for facilitar esse tipo de ação. Os proprietários aceitam isto, mas por outras razões. 77. Funcionários encarregados de levar as apostas de bingo para serem processadas [N.T.]. 189


• Io:, para ficar à disposição da mesma forma. Na mesa facilita-se o contato com pessoas conhecidas nacionalmente e com os grandes gastadores. Também existe a proximidade daquilo que alguns chamariam de elemento gangster. Garante-se acesso fácil a entretenimentos de fama nacional, e até alguma proximidade física com os apresentadores. O bar é "enfeitado" com garotas do coro vestidas com suas roupas de fora do palco. As clientes femininas sentem que podem experimentar com a alta costura esportiva, reivindicando uma imagem e estilo que talvez elas não tentassem em casa devido à modéstia. Resumindo, a oportunidade para enobrecimento efémero é abundante. Entretanto, se o cliente quiser se sentar durante esse enobrecimento, é muito provável que ele tenha que se sentar numa mesa de jogos. Então temos um ambiente rico, mas cada minuto dele provavelmente custará arriscar um dinheiro considerável. Outros estabelecimentos de serviços públicos também parecem cada vez mais recobrir seus serviços com escolhas indulgentes até então consideradas irrelevantes. Assim, nossos jatos adicionaram garotas bonitas, comida razoável, filmes e bebidas grátis78. Postos de gasolina oferecem agora não apenas combustível, mas a companhia de mulheres frentistas atraentes por um momento. E, é claro, temos a moda recente do topless, que traz, junto com comida, garçonetes que são garantidamente atraentes79. 78. Num artigo sobre "The 'Secrets' of Air Hostesses" ["Os 'segredos' das aeromoças"] (San Francisco Chronicle, 04/04/1966), sob a manchete "Those Cupcakes in the Sky" ["Esses docinhos no céu"], lemos: "- O que queremos de nossas aeromoças é uma atratividade discreta [diz Nancy Marchande, uma loira escultural encarregada das garotas da PSA]. Ao escolher uma aeromoça, prestamos atenção particular à aparência dela. - Os passageiros, disse Lawrence [o presidente das linhas aéreas Braniff, uma das líderes em merchandising aéreo] merecem mais do que uma viagem segura e confortável. Eles merecem um pouco de diversão. A definição de Lawrence de diversão a bordo incluiu pintar a frota de j atos da Braniff em várias cores de ovos de páscoa, e redecorar loucamente os interiores das aeronaves, dos postos de venda de passagens e das salas de espera. Mas ele reservou a maior diversão para as aeromoças da companhia. Ele contratou o famoso estilista italiano Milio Pucci, o inventor da calça bailarina, para criar um vestido de aeromoça com 'charme, excitação e surpresa'". 79. Acho que o caso mais claro do recobrimento de indulgências é TheHarry's Shoeshine Palace, em San Francisco (como relatado no San Francisco Chronicle, 26/07/1966), que oferece engraxates de topless por $2 e uma carteira de identidade. De Sade ficaria impressionado com essa promoção de seus princípios. 190

Certos segmentos de cada comunidade parecem responder melhor do que outros à atração desse tipo de ação. Vale a pena notar que os indivíduos respondem não como membros de uma comunidade local, mas como membros da sociedade mais ampla de mentalidade parecida, mas sem qualquer outra relação. Forasteiros na cidade podem perguntar ao motorista de táxi onde a ação está e provavelmente conseguirão entrar quando chegarem lá. Uma camaradagem de indivíduos que, de outra forma, seriam estranhos, está envolvida, uma coalizão temporária contra a sociedade dos respeitáveis na qual aquele que procura ação provavelmente tem amigos e relacionamentos. Os mecanismos tradicionais de conhecimento de pessoas e convites pessoais não são necessários para restringir a participação; em vez disso, servem os riscos da participação. Apesar de ser possível e desejável procurar onde a ação está examinando a organização social de modo geral, estou preocupado aqui com um esforço muito mais específico. Eu quero examinar os arranjos sociais reais através dos quais a ação é disponibilizada. O mundo social opera de forma que qualquer indivíduo que esteja fortemente orientado para a ação, como alguns apostadores, pode perceber as potencialidades de chances em situações que outros enxergariam como sem decisividade; a situação pode até ser estruturada de forma a manifestar essas possibilidades80. A chance não é meramente procurada, e sim esculpida. Devemos adicionar que é provável que a forma de chance encontrada aqui seja um risco considerável ao bem-estar corporal em troca da oportunidade de um ganho insignificante. A única cena de decisividade que quase qualquer um tem condições de produzir é alguma versão da "roleta russa", e ela é uma cena que exemplifica muito bem o risco como um fim em si mesmo. É in-

80. Sugerido por Sheldon Messinger. O exemplo clássico, popularizado por Damon Runyon [autor americano conhecido por seus contos sobre Nova Iorque na época da Lei Seca - N.T.], é o pequeno apostador da Broadway que reconstitui perceptualmente o ambiente ao seu redor em uma série contínua de resultados apostáveis prestes a serem determinados sobre os quais ele oferece proposições. O herói cultural aqui é John W. "Apostou-um-milhão" Gates, o rei do arame farpado, que, em 1897, num trem entre Chicago e Pittsburgh, aparentemente ganhou 22 mil dólares apostando em corridas de gotas de chuva, usando a janela do trem como pista (cf. ASBURY, H. Suckefs Progress. Nova York: Dodd Mead, 1938, p. 446). 191


teressante notar que atualmente, através do LSD e outras drogas, está disponível um meio de se arriscar voluntariamente o bem-estar psíquico para se chegar além da consciência normal. O indivíduo aqui usa sua própria mente como o equipamento necessário para a ação81. As pessoas que acenam com o suicídio usam seus corpos numa aposta, mas aqui, como com as drogas, o risco enquanto tal não parece ser o principal propósito do empreendimento . O interesse geral recente sobre os efeitos deletérios do fumo e do colesterol são um exemplo mais leve da mesma possibilidade; a esses vários sabores podemos adicionar o sabor extra de não dar a mínima83. Nos casos examinados até agora, a chance está na atitude do próprio indivíduo - sua capacidade criativa de redefinir o mundo ao seu redor como suas possibilidades de decisão. Tratemos agora das possibilidades de ação que exigem mais do ambiente e são facilitadas mais diretamente pela organização. Podemos encontrar um começo simples nas apostas em cassinos, já que estes são lugares, antes de tudo, cuja organização física e social é planejada para facilitar a ocorrência da ação. A eficiência desses arranjos precisa ser compreendida e apreciada. Tudo que um jogador precisa fazer é entrar num cassino (cassinos fora das ruas provavelmente não necessitarão nem que urna porta seja aberta) e colocar dinheiro numa área de preparação ou compromisso. Se o carteador ainda não estiver jogando, ele imediatamente começará a fazê-lo, uma pausa momentânea que é ela mesma evitada por muitos cassinos que contratam funcionários apenas para manter jogos mortos correndo. Em poucos segundos, o jogador pode se plugar em atividades bastante significativas; tomadas estão disponíveis. Além disso, jogos de cassino têm uma duração notavelmente curta, permitindo uma taxa de jogo muito alta. Uma jogada de caça-níqueis leva apenas 4 ou 5 segundos. Uma rodada de vinte-e-um pode levar apenas 20 segundos, devido a técnicas de manipulação 81. Sugerido por Nancy Achilles. 82. Os vários tipos de aposta com a vida desfrutados por aqueles inclinados ao suicídio são discutidos em FARBEROW, N. & SCHNEIDMAN, E. The Cry for Help. Nova York: McGraw-Hill, 1961, esp. p. 132-133. 83. Sugerido por Dean MacConnell. 192

das cartas que todos os carteadores aprendem a empregar84. Em todos os jogos de cassino também é possível se engajar em mais de uma jogada ao mesmo tempo e, no caso dos caça-níqueis e do craps, espalhar as apostas múltiplas de forma que temos um compromisso e o início da determinação de uma aposta enquanto outra está nas fases posteriores do processo de determinação. Um jogo, o bingo, disponível na maioria dos cassinos, é organizado especificamente para que em quase todas as regiões do cassino seja possível fazer apostas e acompanhar a determinação. Placares do bingo são colocados em vários lugares e atualizados simultaneamente de forma eletrônica. "Mensageiros" de bingo [keno runners] coletam apostas e entregam desfechos em todos os lugares do cassino, exceto os banheiros. As fases do jogo não coincidem com nenhuma outra atividade do cassino. Assim, não importa o que um indivíduo esteja fazendo, nem onde ele esteja fazendo, ele pode sobrepor sua atividade com o bingo e sempre ter pelo menos um número de bingo "valendo para ele"85. Um jogador pode se empenhar em todos os tipos de cálculos e adivinhações sobre como administrar sua aposta, e isto pode ou não envolver suportes, defesas, ou ambos. Mas ele também pode, se quiser, simplesmente empurrar uma pilha de dinheiro ou fichas não contadas na direção geral da área de compromisso e o carteador escrupulosamente fará o resto. (Eu vi um carteador ajudando um homem cego a jogar, e também um homem artrítico demais para segurar suas próprias cartas.) Um grande conjunto de esforços do jogador é assim bem cuidado pela mesma organização do jogo. Isto significa que um jogador pode começar assistindo com muita atenção tudo o que acontece, fazendo cálculos elaborados, perceber que está ficando completamente exaurido depois de oito ou nove horas de jogo, ou bêbado a ponto dos funcionários precisarem apoiá-lo para

84. N. Polsky ("The Hustler". Op. cit, p. 6) sugere que em "salas de ação" jogos de bilhar são escolhidos e até modificados para aumentar a taxa de ação, que senão seria baixa demais. Entretanto, jogos de cinco minutos ainda parecem ser os de menor tempo, a não ser quando se aposta em tacadas individuais. 85. Na sociedade americana como um todo, as corridas de cavalos, apostas em loterias, e o mercado de ações são meios pelos quais um indivíduo pode ter uma ou duas coisas "valendo para ele" todos os dias. O bingo tem um caráter de sobreposição um tanto similar, mas cada jogada leva apenas alguns minutos. 193


que cie não caia de sua cadeira, e mesmo assim, fazendo apenas alguns gestos relevantes, continuar ativo em sua capacidade de apostador. A organização do jogo nos cassinos é planejada para fornecer ação não apenas a pessoas de posições sociais muito diferentes, mas também a pessoas em estados fisiológicos muito diferentes. Além desses vários arranjos organizacionais, temos o fato central de que cassinos, dentro de limites muito amplos, rotineiramente cobrem apostas de qualquer tamanho. O jogador pode, então, arriscar seu capital independentemente de seu tamanho. Ele tem garantida a oportunidade de encarar a excitação de um risco e oportunidades financeiras um pouco maiores do que a maioria das pessoas de sua posição se sentiriam confortáveis em aceitar. Os cassinos concretamente incorporam arranjos para permitir que o indivíduo se force até os limites de sua própria tolerância para ganhos e perdas, garantindo assim um teste real e difícil, pelo menos a seus próprios olhos. Podemos mencionar alguns arranjos específicos fora de cassinos para gerar eficientemente oportunidades de ação. Um bom exemplo pode ser encontrado nas convenções associadas com touradas. Aqui, o estilo e a graça dos movimentos e da postura, o conhecimento do trabalho, e o domínio do touro, três qualidades centrais exibidas em touradas, recebem pontos de acordo com o perigo ao eu que é voluntariamente introduzido pelo indivíduo durante os movimentos. É preciso então forçar a segurança a seus limites extremos: Nas touradas modernas não é suficiente que o touro seja simplesmente dominado pela muleta para que a espada possa matá-lo. O matador precisa realizar uma série de passos clássicos antes de matar se o touro ainda for capaz de avançar. Nestes passos, o touro deve passar pelo corpo do matador ao alcance do chifre. Quanto mais perto o touro chegar do homem depois do convite e direção deste, maior o arrepio que o espectador recebe86. A tourada é a única arte em que o artista corre risco de vida e em que o grau de brilho da apresentação fica aos

86. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Life, 05/09/1960, p. 86. 194

cuidados da honra do lutador. Na Espanha, a honra é uma coisa muito real. Chamada de pundonor, isto significa honra, probidade, coragem, respeito próprio e orgulho numa única palavra87.

Um conjunto de arranjos um tanto parecido pode ser encontrado como a base da ação no automobilismo. Tipicamente, a diferença na mera capacidade de velocidade dos carros de classes similares não é relevante o bastante para ganhar corridas. Um piloto vence quando se aproxima mais frequentemente dos limites em que a velocidade fará com que ele perca o controle do carro do que os outros pilotos, devido a diferenças de coragem ou competência88. De fato, é a possibilidade de reestruturar atividades rotineiras para permitir que limites sejam forçados que transforma atividades rotineiras num campo de ação. Por exemplo, em estradas os carros normalmente se espalham num padrão cuja estabilidade é produzida por cada motorista avaliando aquilo que os outros motoristas não ousariam fazer, e então com efeito patrulhar esses limites; mantemos assim o nosso lugar no tráfego. "Ganhar tempo" na estrada quando o tráfego está pesado significa forçar além do ponto que os outros motoristas consideram que protege sua posição . Para que o esforço de testar os limites seja possível, o equipamento que o ator usa pode ter que ser restrito apropriadamente. Afinal, touradas dificilmente testariam um homem se ele usasse um cartucho de rifles Weatherby 460 em vez de uma capa e uma espada. Da mesma forma, se quisermos que a travessia do oceano seja um desafio, precisamos usar jangadas em vez de navios de cruzeiro. Se quisermos transformar um peixe numa oportunidade de luta, então

87. HEMINGWAY, E. Death in theAfternoon. Op. cit, p. 91. 88. MOSS, S. & PURDY, K. AU but My Life. Op. cit., p. 22: "O piloto mais rápido é aquele que pode se aproximar mais do ponto em que os pneus do carro perdem aderência da pista e fazem com que a máquina entre numa derrapagem incontrolável. (A palavra-chave aqui é 'incontrolável'. Em boa parte do tempo, o piloto deliberadamente solta o carro e permite que ele derrape, mas sob controle.)" 89. É claro que melhorias nas estradas e na dirigibilidade dos carros meramente permitem que o motorista seja "expressivo" em velocidades maiores; quaisquer que sejam as condições do tráfego, o território do outro sempre estará lá para ser forçado. 195


l >n•<-isiimos escolher a vara, a linha e o anzol com os maiores limites l xissivris, o que muitas vezes acontece90. Se quisermos que a caça de animais grandes seja não apenas cara, mas também arriscada, então miras telescópicas dificilmente parecem "justas", de fato, talvez seja até melhor substituir o rifle por um arco e flecha. Arranjos que evocam esforços marginais geram a possibilidade de ação. Podemos analisar mais um arranjo de ação. Ele é encontrado quando podemos criar uma série através de vitórias em rodadas consecutivas, de forma que cada rodada seguinte adiciona a mesma probabilidade adicional de terminar a série enquanto adiciona mais do que o valor da rodada anterior à série como um todo. Por exemplo, no boliche, a reputação do indivíduo enquanto jogador está relacionada ao placar máximo que ele atingiu. E o placar depende do número de strikes durante qualquer série ou conjunto de jogadas, aumentando mais do que linearmente com o número de strikes consecutivos. Além disso, uma próxima jogada de placar máximo tende a ser assimilada mentalmente àquilo que o indivíduo já realizou, e por isso o fracasso em realizá-la constitui um "furo" de uma sequência de pontos que o jogador "tinha valendo". Enquanto o ganho possível com cada jogada aumenta, isto também ocorre com a dificuldade de manter a habilidade. Algo semelhante é encontrado nas apostas de cassino ligadas à prática de "deixar correr", a saber, apostar todos os ganhos da aposta anterior na próxima jogada, e continuar fazendo isto por uma série de jogadas. Aquele que consegue acumular seus ganhos dessa forma muitas vezes recebe respeito como alguém que tem "coragem", está "quente" e "sabe quando apostar". E como a aposta (num jogo de dinheiro constante) é dobrada todas as vezes, a quinta ou sexta vitória seguida será muito mais pesada do que a segunda ou terceira. E assim o jogador descobre que o ganho monetário e psíquico aumenta mais do que aritmeticamente, enquanto ao mesmo tempo precisa enfrentar oportunidades completamente novas de perda total. 90. GILBERT, B. "The Moment-of-Truth Menace". Esquire, dez./1965, p. 117. O artigo de Gilbert é uma descrição de até que ponto os esportistas vão para encontrar um ambiente natural que possa ser transformado num desafio através da limitação apropriada de equipamentos. A exploração de cavernas e caiaques em correntezas são usados como exemplos.

Precisamos tratar de um último assunto em relação à base organizacional da ação. Anteriormente eu sugeri que as pessoas presentes numa situação social podem servir não apenas como testemunhas, mas também como os próprios objetos sobre os quais o indivíduo age, e que seu histórico em relação a isto terá importância especial. Quando esses atos que envolvem os outros implicam chances decisivas criadas intencionalmente apenas para que possam ser arriscadas, então temos um tipo especial de ação em que as próprias pessoas que estão presentes para o ator fornecem o campo para sua ação. Hemingway nos dá uma ilustração maravilhosamente rude, que também recebemos de artistas de circo que atiram facas, e garotinhos que atiram bolas de neve: Uma das atrações que Mary preparara no parque foi uma cabine de tiros que ela alugara de um circo itinerante. António ficara um pouco chocado em 1958 quando Mário, o chofer italiano, segurara cigarros numa ventania para que eu arrancasse as pontas acesas com uma espingarda .22. Na festa, António prendeu cigarros em sua boca para que eu acertasse as cinzas. Fizemos isso sete vezes com as espingardinhas da galeria de tiros e no final ele estava fumando rapidamente os cigarros para ver qual era o menor tamanho que conseguiríamos deixá-los. Ele finalmente disse: - Ernesto, fomos o mais longe que dá. Este último quase arranhou meus lábios. O marajá de Cooch-Behar também se viciou nessa diversão alegre. Ele começou, conservadoramente, usando uma piteira, mas a abandonou imediatamente pela escola das baforadas. Eu parei enquanto ainda estava no lucro e me recusei a atirar em George Saviers porque ele era o único médico na casa e a festa acabara de começar. Ela foi longe91.

Enquanto uma pessoa fornece um campo de ação para outra, esta outra pode, por sua vez, usar o primeiro indivíduo como seu campo de ação. Quando encontramos essa reciprocidade de uso e o objetivo é exercer algum tipo de perícia ou habilidade, falamos de

91. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Op. cit., 12/09/1960, p. 76. 197


uma competição ou duelo. O que ocorre nessas cenas pode ser chamado de ação interpessoal91. A ação interpessoal ocasionalmente parece apenas duplicar o tipo comum. Num duelo de pistolas, por exemplo, um indivíduo é o campo de alvo passivo para o outro, enquanto, ao mesmo tempo, o outro é o campo de alvo passivo para o primeiro - com exceção, é claro, dos pequenos estratagemas de ficar num ângulo que apresente a menor superfície possível para o adversário, e usar os braços como um escudo para o coração. De fato, um duelo de pistolas pode ser analisado como um arranjo para juntar duas funções separáveis: a competição de alvos e um esquema de desfecho para vencedores e perdedores. Entretanto, é mais frequente que a reciprocidade seja mais íntima e interessante. O próprio ato através do qual um participante exerce suas capacidades face a outra pessoa pode em si mesmo fornecer o campo para a ação competidora ou de retaliação do outro. A impressão que um participante transmite será retirada da impressão que o outro transmite. Mesmo nas diversões de tiro de Hemingway, temos um gostinho disto: a frieza demonstrada por António ao se submeter ao papel de alvo requer para seu campo de ação os esforços de atirador de Hemingway. Assim como existem arranjos sociais para garantir a ação, também há arranjos para garantir a ação interpessoal. Um exemplo importante é a prática disseminada de desvantagens [handicapping] 92. Normalmente, os arranjos de competições requerem que os participantes estejam face a face, mas existem, por exemplo, competições de corte entre dois pretendentes à mesma mão em que os adversários nunca se encontram; há competições na coluna de cartas ao editor e há outras (como Hemingway sugere), onde o histórico de uma das partes, que pode estar ausente no momento, se torna o contexto da ação do outro (HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Op. cit. 05/09/1960, p. 91-92): "Touradas não valem nada sem rivalidade. Mas com dois grandes toureiros ela se torna uma rivalidade mortal. Porque quando um deles faz algo que ninguém mais consegue fazer, e pode fazê-lo regularmente, e isto não é um truque, mas sim uma apresentação mortalmente perigosa que só é possível devido a nervos, juízo, coragem e arte perfeitos, e este toureiro aumenta sua letalidade continuamente, então o outro, se tiver qualquer falha temporária de nervos ou de juízo, será gravemente ferido ou morto se tentar igualá-la ou superá-la. Ele terá então que recorrer a truques, e quando o público aprender a diferenciar os truques das coisas verdadeiras ele perderá a rivalidade, e terá muita sorte se ainda estiver vivo ou capaz de se apresentar". 198

em competições . Esse dispositivo garante que, por mais díspares que os competidores sejam, todos terão mais ou menos a mesma chance de ganhar ou perder, e isto dependerá de seus próprios esforços até o limite. Garantimos assim que o resultado não apenas seja imprevisível e, assim, capaz de manter a atenção, mas também uma questão de esforço marginal, com a vitória obtida pelo competidor que chega mais perto de seus limites do que os outros. Esse esforço extrafinal determina o resultado. Uma competição com desvantagens, então, é um arranjo muito bem calculado para transformar dois indivíduos em campos de ação um para o outro, com o detalhe adicional de que o sucesso de uma pessoa precisa ser equilibrado pelo fracasso da outra. Podemos adicionar que uma limitação autoimposta de equipamentos na caça e na pesca também pode ser vista como um tipo de desvantagem: a presa é transformada num adversário, e o resultado é uma competição "justa" (ou melhor, quase justa). Jogos limpos requerem presas limpas94. Em vários jogos e esportes, então, os indivíduos podem usar uns aos outros como campos de ação, normalmente, numa arena segregada, removidos física e temporalmente da vida séria. Mas obviamente o uso mútuo uns dos outros como um campo de ação é mais geral. Como uma ponte dos jogos até o mundo, examinemos as relações entre os sexos. Todas as situações de ação descritas até agora são cenas muito mais de atividade masculina do que feminina; de fato, a ação em nossa cultura ocidental parece pertencer ao culto da masculinidade apesar da existência de toureiras, mulheres pilotos, e da preponderância de mulheres nas máquinas de caça-níqueis dos cassinos95. Há

93. GOFFMAN, E. "Fun in Games", p. 67. In: Encounters. Indianápolis: BobbsMerrill, 1961. [Em esportes como o golfe, a prática de handicapping consiste em fazer com que os jogadores com um histórico superior comecem a partida com algumas tacadas de desvantagem em relação aos competidores com menos experiência e habilidade. -N.T.] 94. Trocadilho intraduzível: "Fair games (jogos) requirefairgame (presas)" [N.T.]. 95. A masculinidade, enquanto valor, parece ser especialmente importante na sociedade latina, e como um valor ela dificilmente pode ser dissociada de sua base nos aspectos biológicos do sexo. Cf. PITT-RIVERS, J. "Honour and Social Status". Honour and Shame. Chicago: University of Chicago Press, 1966, cap. l, p. 45 [org. por 199


registros de alguns duelos lutados por mulheres europeias, mas esses encontros parecem ser considerados uma perversão do belo sexo, e não seu ornamento96. Mas, obviamente, as mulheres estão envolvidas de forma especial em um tipo de ação: elas são os campos de jogo para a ação sexual e de corte. Homens adultos podem definir uma mulher como um objeto com o qual se deseja iniciar uma relação potencialmente sexual. O risco é a recusa, a união com pessoas de posição inferior, a responsabilidade, a traição de relacionamentos anteriores, ou o desprazer de outros homens; a oportunidade é o tipo de confirmação do eu que apenas o sucesso nessa área consegue trazer. Essa ação às vezes é chamada de "paquera" [making oiti'7]. Em nossa sociedade, há horários e locais especiais para a paquera: festas, bares98, bailes, hotéis turísticos, parques, salas de aula, eventos públicos, encontros de associações, pausas para café em escritórios, reuniões de igrejas, e ruas públicas de má reputação. A paquera em si é de dois tipos, de acordo com se o círculo em que ela ocorre contém pessoas que se conhecem ou não. Entre os que se conhecem, encontramos trocas de flertes e o início de casos; entre os que não se conhecem, intercâmbios de sinais de interesse e propostas. PERISTIANY, J.]: "Assim, a coibição é a base natural da pureza sexual, assim como a masculinidade é a base natural da autoridade e da defesa da honra familiar. O ideal do homem honrado é expressado pela palavra hombria, 'hombridade' [...] A masculinidade significa coragem, seja ela empregada para fins morais ou imorais. É um termo ouvido constantemente no pueblo, e o conceito é expressado como a quintessência física sexual do homem (cojones). A noção contrária é transmitida pelo adjetivo manso, que significa inofensivo, mas também castrado. Sem essa base fisiológica, obviamente não se pode esperar que o sexo frágil possua tal conceito, e isto é excluído das exigências da honra feminina". Supostamente as contrapartes femininas das virtudes masculinas clássicas envolvem a modéstia, a coibição e a virgindade, cuja exibição parece envolver qualquer coisa que não a ação. 96. BALDICK, R. The Duel. Londres: Chapman and Hall, 1965, cap. 11, "Women Duelists", p. 169-178. 97. O termo making out, no século XXI, significa "beijar", conotação que não existia quando Goffman redigiu este livro, e não mais "paquerar" [N.T.]. 98. Uma afirmação parecida é encontrada em CAVAN, S. Liquor License. Chicago: Aldine, 1966. Cf. tb. ROEBUCK, J. & SPRAY, S. "The Cocktail Lounge: A Study of Heterosexual Relations in a Public Organization". American Journal of Sociology, jaó/1967. 200

Entre os que não se conhecem, a facilitação organizacional da paquera assume muitas formas: a instituição de anfitriãs sociais em hotéis, bares de telefone, a mediação de balconistas de bar para a rotina do compro-um-drinque-para-você, etc. Eu analisarei em maior detalhe a situação nos cassinos de Nevada. As mesas de cassinos são, por definição, abertas para qualquer adulto com dinheiro para gastar. Apesar da impessoalidade aparente da operação, estranhos na mesma mesa descobrem que uma leve camaradagem é gerada por uma exposição ao destino conjunta e mutuamente visível. Grandes apostadores, com um envolvimento implicado por causa do tamanho de suas apostas, e o estatuto implicado dos visivelmente endinheirados, tornam-se um tanto acessíveis a colegas apostadores e mesmo a espectadores. A responsabilidade mútua imputada pelo resultado (no sentido limitado, mas constante, em que isto é imputado) aumenta a exposição e conexão moral. E entre os sexos prevalece uma abertura adicional. Homens quase sempre podem dar alguns conselhos gratuitos a mulheres na vizinhança, juntando-se gradualmente a, elas numa coalizão de esperança contra o carteador. Além disso, se ocorre de uma mulher jogar de uma forma que pode ser interpretada como lucrativa para todos, pode-se facilmente "colocar" uma aposta por ela e aumentar o envolvimento mútuo. Da mesma forma, depois que se conhece uma mulher, ela pode receber apostas de presente sem comprometer abertamente sua posição. Então, parece natural que ela fique com tudo ou parte de suas vitórias. Assim, as mesas fornecem a primeira jogada no jogo dos relacionamentos, e também uma cobertura muito graciosa sob a qual pagamentos em dinheiro podem ser feitos como adiantamento para favores sociais e sexuais realizados posteriormente de forma não comercial. É assim que se facilita organizacionalmente a paquera. Devemos notar que há muitos homens que se intimidam quanto a se envolver ativamente na paquera, mesmo quando estão em lugares estabelecidos para esse propósito. Há muitos outros que buscam tais oportunidades em qualquer lugar, seja na casa, em locais de trabalho, ou em conta tos de serviços. E eles encaram todos os dias com

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tais potencialidades em mente". Esses homens orientados cronicamente precisam ser classificados junto com aqueles que estão dispostos a transformar qualquer evento numa proposição de aposta, ou qualquer tarefa em uma competição de força, habilidade ou conhecimento. Tentativas de iniciar um relacionamento potencialmente sexual são, obviamente, apenas uma forma da ação interpessoal que ocorre na comunidade como um todo. Outro tipo importante ocorre quando o indivíduo serve como um campo de ação em virtude de sua capacidade de receber e causar ferimentos tanto físicos quanto verbais. Para encontrar aqueles que favorecem esse esporte, provavelmente teremos que procurar "forasteiros" que, como adolescentes, ainda não foram costurados muito fortemente em estruturas organizacionais. Supostamente, é entre eles que essas atividades decisivas causarão as menores perturbações e serão mais toleráveis; é um caso de ter pouco a perder, ou ter pouco a perder por enquanto, um caso de estar bem organizado para a desorganização. O estudo de gangues de esquina de jovens urbanos agressivos e alienados nos dá uma ilustração: O tempo acelerado dos testes de relacionamentos em esquinas, em contraste com, por exemplo, grupos de trabalho, surge em parte porque os líderes não controlam quantidades importantes de propriedade, porque eles podem conceder poucos privilégios ou imunidades, e porque não há pressões institucionais externas que coagem os membros a aceitar a disciplina da gangue100.

Entre tais jovens a noção de "barato" ["leicfes"] tem sua importância mais clara. Aqui, a cultura e o refinamento dos esportes reconhecidos não está presente para mascarar a gratuidade dos riscos tomados; a própria comunidade é transformada num campo para a ação, utilizando especialmente iguais, adultos desprotegidos, e pessoas percebidas como símbolos da autoridade policial. Walter Miller nos dá uma boa descrição:

99. Apesar de a noção de ação certamente ser relevante para contatos heterossexuais, ela parece ser ainda mais para contatos homossexuais. A sociedade gay aparentemente destaca a "transa de uma noite" (ou, melhor, transa de parte da noite) muito mais do que a sociedade heterossexual, tendo uma taxa correspondentemente alta de contingência e risco em relação à formação de relacionamentos. 100. SHORT, J. & STROTBECK, F. Group Process and Gang Delinquency. Chicago: University of Chicago Press, 1965, p. 196. 202

Muitas das características mais típicas da vida de classe baixa estão relacionadas à busca de excitação ou "arrepio". Estão envolvidos aqui o uso altamente prevalente do álcool por ambos os sexos e o uso disseminado de todo tipo de jogos de azar -jogar "nos números" [playing the numbers]101, apostar em corridas de cavalos, dados, cartas. A jornada pela excitação encontra o que talvez seja sua expressão mais vívida na prática altamente padronizada da "noite na cidade" recorrente. Essa prática, designada por vários termos em áreas diferentes ("ir para a balada", "ganhar a noite", "pular de bar em bar") envolve um conjunto padronizado de atividades em que o álcool, a música, e aventuras sexuais são componentes fundamentais. Um grupo ou indivíduo sai para "rodar" por vários bares ou clubes noturnos. A bebedeira continua progressivamente durante a noite. Os homens tentam "catar" mulheres, e as mulheres jogam o jogo arriscado de insinuar avanços sexuais. Lutas entre homens envolvendo mulheres, apostas, e afirmações de bravura física, em várias combinações, são consequências frequentes de uma noite rodando por bares. O potencial explosivo desse tipo de aventura com sexo e agressão, frequentemente levando a "confusões", é buscado semiexplicitamente pelo indivíduo. Já que sempre há uma boa possibilidade de que estar na noite terminará em brigas, e te., a prática envolve elementos de risco voluntário e perigo desejado102.

101. Um tipo de loteria ilegal muito popular entre negros do Harlem, em Nova York, na primeira metade do século XX, com algumas semelhanças com o jogo do bicho no Brasil [N.T.]. 102. MILLER, W. "Lower Class Culture as a Generating Milieu of Gang Delinquency". Op. cit, p. 11. Uma das primeiras descrições sobre o tema da excitação na delinquência é encontrada em THRASHER, F. The Gang. Chicago: University of Chicago Press, 1927, cap. 5: "The Quest for New Experience". Uma versão mais atual é encontrada em H. Finestone ("Cats, Kicks and Color". Social Problems, 5, 1957, p. 5), que descreve um grupo que combina o desdém pelo mundo do trabalho com uma preocupação muito forte com a expressão da frieza diante de problemas. Da mesma forma, as "preocupações focais" que Miller atribui à cultura urbana de classe baixa (confusão, agressividade, inteligência, excitação, destino, autonomia) parecem muito apropriadas para apoiar o envolvimento na ação. 203


Um estudioso de italianos de classe baixa de Boston nos dá outra descrição: Para aquele que procura a ação, a vida é episódica. O ritmo da vida é dominado pelo episódio aventureiro, em que ápices de atividade e sensações são alcançados através de comportamento excitante e às vezes libertino. O objetivo é a ação, uma oportunidade de arrepio, e a chance de enfrentar e superar um desafio. Ele pode ser procurado num jogo de cartas, numa briga, num interlúdio sexual, numa competição de bebedeira, numa sessão de apostas, ou numa troca rápida e furiosa de tiradas e insultos. Qualquer que seja o episódio, aquele que procura a ação o faz resolutamente, e vive o resto de sua vida numa preparação quieta - e muitas vezes taciturna para esse clímax, na qual diz-se que ele normalmente está ít i matando tempo -n 103. 8. Caráter Começando com um garoto arriscando a sorte, passamos para a consequencialidade; de lá chegamos à decisividade do tipo zeloso (notando que isto poderia levar à construção da situação como uma aposta prática realizada voluntariamente); e de lá chegamos à ação uma espécie de atividade em que a autodeterminação é celebrada. E vimos que a decisividade, evitada por muitas pessoas, é aprovada, por algum motivo, por outras, e existem até aquelas que constróem um ambiente no qual elas podem desfrutá-la. Algo significativo e peculiar parece estar envolvido na ação. A descrição de Hemingway da situação humana de um de seus toureiros favoritos nos dá uma dica sobre aquilo que devemos procurar:

103. GANS, H. The Urban Villagers. Nova York: The Free Press, 1962, p. 29. Ele apresenta uma outra discussão sobre o apelo da ação nas p. 65-69. Na literatura, muitas vezes se argumenta que os jovens adolescentes precisam desenvolver e demonstrar a hombridade e que a busca da ação serve para isso. Neste capitulo, eu argumento que a hombridade é um complexo de qualidades que é melhor chamar de "caráter", e que é isto que deve ser tratado na análise da "representação" adolescente. De qualquer forma, como Bennett Berger aponta ("On the Youthfulness of Youth Culture". Social Research, 30,1963, p. 325-327), a orientação para a ação envolve uma preocupação não apenas com a masculinidade, mas também com a juventude. 204

Nós conversáramos sobre a morte sem morbidez, e eu dissera a António o que eu pensava sobre ela, o que é inútil, já que nenhum de nós sabe nada sobre ela, eu podia ser sinceramente desrespeitoso sobre a morte e às vezes comunicar esse desrespeito a outras pessoas, mas eu não estava lidando com ela neste momento. António a enfrentava pelo menos duas vezes por dia, às vezes todos os dias da semana, viajando longas distâncias para fazer isso. Todo dia ele deliberadamente provocava o perigo dela para si mesmo, e prolongava esse perigo para além dos limites em que ele normalmente pode ser suportado, através de seu estilo de tourear. Tudo que ele sabia era tourear e ele fazia isso tendo nervos perfeitos, sem nunca se preocupar. Pois o seu modo de lutar, sem truques, dependia de entender o perigo e controlá-lo através da forma pela qual ele se ajustava perfeitamente à velocidade do touro, ou à falta dela, e o controle do touro através de seu pulso que era governado por seus músculos, seus nervos, seus reflexos, seus olhos, seu conhecimento seu instinto e sua coragem. Se houvesse qualquer coisa errada com os seus reflexos, ele não poderia lutar dessa forma. Se sua coragem falhasse pela menor fração de segundo, o feitiço seria quebrado e ele seria arremessado ou chifrado. Além disso, ele precisa brigar com o vento que poderia lhe expor ao touro e matá-lo caprichosamente a qualquer momento. Ele sabia de todas essas coisas fria e completamente, e nosso problema era reduzir o tempo que ele tinha para pensar sobre elas ao mínimo necessário para que ele se preparasse para enfrentá-las antes de entrar na arena. Este era o compromisso regular de António com a morte que precisamos enfrentar todos os dias. Qualquer homem pode ser capaz de enfrentar a morte, mas se comprometer a trazê-la o mais perto possível enquanto realiza certos movimentos clássicos, e fazer isso de novo e de novo e depois causar ele mesmo a morte, com uma espada, de um animal que pesa meia tonelada e que você ama, é mais complicado do que simplesmente encarar a morte. É encarar sua apresentação como um artista criativo todo dia e sua necessidade de funcionar como um matador habilidoso. António precisava matar rápida e misericordio-

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samente e ainda assim dar ao touro uma chance completa de matá-lo quando ele passava por cima do chifre pelo menos duas vezes por dia104.

Se examinarmos momentos em que um indivíduo arrisca tais chances, seja como parte de trabalho sério ou de brincadeiras perigosas, algumas capacidades, algumas propriedades de sua composição parecem ter relevância intrínseca ou "primária": em trabalhos de construção de estruturas altas, cuidado e equilíbrio; no alpinismo, a "condição" e resistência; nas touradas, o senso de oportunidade e o julgamento perceptivo; na caça esportiva, a mira; nos jogos de azar, um conhecimento das probabilidades; e em todos os casos, a memória e experiência. Muitas vezes essas capacidades primárias podem ser criadas através de treinamento. É importante notar que as mesmas capacidades podem ser exercidas durante circunstâncias inconsequentes, quando os aspectos arriscados de ocasiões reais são completamente evitados ou meramente simulados. Encontramos assim sessões de treino, tiro ao alvo, testes, jogos de guerra e ensaios de palco. O treinamento organizado usa extensivamente esse tipo de simulação. Aqui, uma atuação boa ou má não precisa ser decisiva por si mesma nem em seu efeito na reputação do ator. Da mesma forma, as capacidades primárias podem muitas vezes ser exercidas em ocasiões em que a performance efetiva é atingida fácil e impensadamente, quando, resumindo, os resultados são consequentes, mas não problemáticos. É sob circunstâncias percebidamente decisivas - consequentes e problemáticas - e apenas em relação próxima a elas que aparece um segundo conjunto de capacidades ou propriedades. Uma sensação repentina de um indivíduo sobre algo que poderá acontecer logo pode ter um efeito notável em seu comportamento, em relação tanto a laços sociais quanto realização de tarefas. No caso das relações com os outros, o comportamento baseado em princípios que ele consegue exibir durante ocasiões ordinárias pode desmoronar. A consciência rápida daquilo que os seus princípios custam a ele no momento pode fazer com que sua decência costumeira falhe e, no calor e pressa do momento, o interesse próprio sem disfarces pode

104. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Li/e, 12/09/1960, p. 75-76. 206

se intrometer. Ou, pelo contrário, o alto custo repentino do comportamento correto pode servir apenas para confirmar sua integridade. Da mesma forma, na parte da realização de tarefas, o fato de ele imaginar a consequência de fracassar ou ser bem-sucedido para si mesmo pode afetar fortemente sua capacidade de exercer as capacidades primárias em questão. As possibilidades iminentes podem deixá-lo nervoso, incapaz de utilizar o que sabe, e incapaz de realizar ações organizadas105; por outro lado, o desafio pode fazer com que ele mobilize suas energias e se saia melhor do que o esperado. Em contraste ao amigo de Hemingway, António, temos José Martinez que, ao estrear como matador em Múrcia, desmaiou quando o 106 touro entrou na arena . Essas capacidades (ou falta delas) para agirmos de forma correta e firme diante de pressões repentinas são cruciais; elas não especificam a atividade do indivíduo, mas sim como ele se portará nesta atividade. Eu me referirei a essas propriedades de manutenção como um aspecto do carãter do indivíduo. A prova de incapacidade de se comportar efetiva e corretamente sob a pressão da decisividade é um sinal de caráter/raco. Aquele que manifesta uma habilidade média e esperada não parece ser muito julgado em termos de caráter. A prova de uma capacidade destacada de manter o autocontrole total quando as cartas estão na mesa - seja em relação a tentações morais ou a realização de tarefas - é um sinal de caráter forte.

105. J.L. Austin ("Pleas for Excuses" (Phílosophical Papers. Oxford: Oxford University Press, 1961, p. 141 [org. por URMSON, J. & WARNOCK, G.]), discutindo os vários "departamentos nos quais o negócio de fazer ações é organizado", sugere: "Há, por exemplo, o estágio em que temos que realmente desempenhar alguma ação em que embarcamos - talvez tenhamos que realizar certos movimentos corporais, ou fazer um discurso. Enquanto realmente fazemos essas coisas (costurando a ação) precisamos prestar (alguma) atenção àquilo que estamos fazendo e tomar (algum) cuidado para nos precaver contra perigos (prováveis): podemos precisar usar juízo ou tato: precisamos exercer controle suficiente sobre nossas partes corporais, e assim por diante. A desatenção, o descuido, erros de juízo, grosseria, falta de jeito - todos estes e mais outros são males (com desculpas anexas) que afetam um estágio específico na maquinaria da ação, o estágio executivo, o estágio em que estragamos as coisas". 106. Relatado por McCABE, C. San Francisco Chronide, 02/06/1966. 207


Tanto as propriedades primárias quanto aquelas do caráter contribuem para a reputação que um indivíduo adquire; ambas são, portanto, consequentes. Mas há diferenças importantes entre as duas. Como foi sugerido, as qualidades primárias podem ser expressas numa situação que não é decisiva; as qualidades do caráter - nos aspectos considerados aqui - só emergem em eventos decisivos, ou pelo menos eventos considerados decisivos subjetivamente. Podemos aprovar, desaprovar ou sermos moralmente neutros quanto a qualidades primárias. Entretanto, as propriedades de caráter sempre são julgadas a partir de uma perspectiva moral, simplesmente porque uma capacidade de se mobilizar para o momento está sempre sujeita à avaliação social. E, em contraste com as propriedades primárias, as marcas de caráter tendem a ser avaliadas em extremos, referindo-se a fracassos completamente inesperados ou sucessos extraordinários; a mera conformidade com os padrões normais não é o problema. Finalmente, diferente de traços primários, os de caráter tendem a ser "essencializadores", colorindo totalmente nosso retrato da pessoa caracterizada dessa forma, e (como veremos depois) uma única expressão tende a ser considerada uma base adequada para um julgamento. Analisemos algumas das principais formas de caráter importantes para o gerenciamento de eventos decisivos. Primeiro, há as várias formas de coragem, a saber, a capacidade de visualizar um perigo imediato e ainda assim levar adiante o curso de ação que traz o perigo. As variações são estabelecidas pela natureza do risco, por exemplo, físico, financeiro, social ou espiritual. Assim, entre apostadores profissionais, há respeito por uma qualidade chamada de "arriscar tudo", a saber, uma disposição a se submeter às regras do jogo enquanto se arrisca uma porção significativa do capital atual do indivíduo - supostamente com a graça para aceitar a vitória ou derrota circunspectamente. É bom notar que os interesses servidos por ações corajosas podem ser bastante egoístas; a questão é a prontidão do ator a enfrentar grandes riscos. Há a combatividade [gameness], a capacidade de se manter numa linha de atividade e continuar a despejar todos os esforços nela independentemente de percalços, dor ou fadiga, e isto não é devido a uma insensibilidade bruta, mas devido à força de vontade e determinação internas. Os boxeadores nos dão um exemplo: 208

Há também um culto de um tipo de coragem perseverante, chamada de "coração lutador", o que significa "nunca admitir a derrota". O lutador aprende cedo que a coragem que ele exibe - a habilidade, se necessário, de cair lutando - caracteriza o boxeador respeitado e que agrada às plateias. Ele precisa se agarrar à esperança de que pode vencer com mais alguns golpes107.

Devemos adicionar que as pessoas não estão sozinhas, e talvez não estejam nem em primeiro lugar, nessa questão de mostrar coração. Touros criados apropriadamente o exibem maravilhosamente; é por isso que eles aceitam as batalhas feitas para eles e continuam a lutar mesmo de uma posição cada vez mais fraca, e é por isso que touradas podem existir. Cavalos de corrida, sob uma leitura especial do termo "classe", também podem ter coração108. Uma característica fundamental de caráter pessoal do ponto de vista da organização social é a integridade, significando aqui a propensão a resistir à tentação em situações em que haveria muito lucro e alguma impunidade ao se esquecer de padrões morais momentaneamente. A integridade parece ser especialmente importante durante atividades decisivas que não são testemunhadas por outros. Apesar das sociedades diferirem enormemente nos tipos de caráter que aprovam, nenhuma sociedade poderia persistir por muito tempo se seus membros não aprovassem e encorajassem essa qualidade. Todos tendem a reivindicar um alto padrão de integridade, por mais rara que seja a realização dele; a excelência neste quesito é considerada evidente, e pessoas que fracassam são aquelas que são designadas, neste caso, como tendo caráter fraco109. (Portanto, podemos encontrar exemplos de integridade nos menores cantinhos da vida: quando um vendedor promove um produto inadequado com menos persuasão do que poderia aplicar; quando uma garota não cancela um encontro que uma oportunidade repentina tornou desvan-

107. WEINBER' , K. & AROND, H. "The Occupational Culture of the Boxer". Op. cit, p. 462. 108. Cf. SCOTT, M. TheRacing Game. Chicago: Aldine, 1968. 109. Eu agradeço a Marvin Scott pelas sugestões tratando do lugar especial da integridade enquanto uma propriedade de caráter. 209


tajoso; quando uma criança admite ter causado uma ofensa que seria atribuída a outras pessoas; quando um motorista de táxi ou barbeiro entrega três dólares em notas quando uma dívida de dois dólares é paga com uma nota de cinco.) Comentários um tanto semelhantes podem ser feitos sobre a "autodisciplina", a capacidade de se abster de um envolvimento excessivo nos prazeres fáceis da mesa seja num bar, num restaurante, ou num cassino. Anteriormente, sugeri que as próprias situações sociais carregam algumas implicações quanto à reputação, especialmente em relação aos padrões que os participantes são obrigados a manter em seus negócios uns com os outros. Eu disse que essa consequencialidade normalmente não era problemática. Entretanto, aqui precisamos ver que as circunstâncias às vezes causam isso. Por exemplo, a manutenção contínua da ordem cerimonial pode ocasionalmente tornar-se muito cara, produzindo o privilégio questionável de exibir uma versão especial da integridade. Nesses momentos, o indivíduo terá que decidir se cederá ou não à pressão, se deixará os padrões escorregarem ou não. A galanteria se refere à capacidade de manter as formas da cortesia quando as formas estão cheias de substância. Ela é demonstrada quando Douglas Fairbanks110, no meio de um duelo cinemático até a morte, pega a espada que seu adversário deixara cair e a entrega de volta com um gesto cortês, para impedir que uma vantagem sem significado estragasse a oportunidade de uma expressão válida. Outros esportes apresentam oportunidades semelhantes: Foi em 1902 que o então campeão britânico Selwyn F. Edge, pilotando na corrida Paris-Viena, teve um pneu furado e foi forçado a parar para consertá-lo. Entretanto, ele logo descobriu que a bomba de ar que trouxera não funcionava. Sem ela, o pneu não poderia ser enchido e o carro não poderia prosseguir. Nesse momento, o exuberar te Conde Louis Zborowski apareceu na estrada num Mt xedes, olhou rapidamen-

110. Ator americano do inicio do século XX, conhecido principalmente por seu papel como Zorro [N.T.]. 210

te para a situação, parou ao lado do carro de Edge e jogou sua própria bomba de ar para o rival. Edge acabou vencendo a copa Gordon Bennett. Zborowski foi o segundo"1.

É interessante notar que os exemplos de galanteria são normalmente do tipo que citei, e negligenciam o lugar dessa propriedade na vida cotidiana. Na verdade, um lojista é galante quando ele desnecessária e polidamente aceita a devolução de uma grande venda a um turista que repentinamente mudou de ideia. Da mesma forma, um passageiro numa lista de espera é galante quando ele voluntariamente cede o penúltimo lugar para que um casal jovem, próximo na fila, possa ficar junto sem ter que esperar o próximo voo"2. É claro que a galanteria não é a única qualidade de caráter encontrada em conexão com a manutenção cara e problemática da ordem cerimonial. Assim como o indivíduo deve cortesias a outros, estes também as devem a ele e, se não o tratarem apropriadamente, ele pode descobrir que precisa arriscar atos de retaliação para mostrar que eles não podem se aproveitar dele. No mundo contemporâneo, a polícia nos dá excelentes exemplos deste tema, já que às vezes eles sentem que precisam empenhar seus punhos, seus cassetetes e até seus revólveres para garantir uma boa deferência daqueles que eles prendem ou abordam de outra forma113.

111. DAVIS, S. "Chivalry on the Road". In: BEAUMONT, C. & NOLAN, W. Omnibus ofSpeed. Op. cit., p. 32-33. 112. Em cassinos, a galanteria é institucionalizada como o direito e dever especial do supervisor. Apostas cujo resultado é questionado são julgadas por ele, e o estilo tradicional e preíerido é sugerir gentilmente ao cliente como a culpa poderia ser ou é dele, e então, depois de limpar assim o nome do carteador, permitir graciosamente que a decisão vá contra a casa. Eu vi supervisores se comportarem dessa forma quando a aposta era grande o bastante para fazer uma diferença apreciável na conta da mesa nesse turno. Aqui, é claro, o próprio cassino está preocupado em adquirir e manter uma reputação daquilo que neste contexto é chamado de "classe", o oposto de ser "barato". (Encontra-se um tratamento geral do caráter organizacional em SELZNICK, P. Leadership in Administration. White Plains: Row, Petterson, 1957, esp. p. 38-42.) 113. Cf. WESTLEY, W. "Violence and the Police". American Journal of Sociology, LIX, 1953, p. 39-40. 211


Atos de retaliação desse tipo pressupõem, é claro, que a pessoa ofendida tem grande autoridade e recursos. Quando isto não é o caso, então ela pode se sentir obrigada a sacrificar sua própria substância para manter as aparências. O resultado é uma galanteria invertida: não uma cortesia cara, mas um desprezo caro. No extremo mítico, empregado zelosamente em muitos romances de ação, o herói, despido e amarrado numa cadeira, cospe ou pelo menos faz uma careta para o vilão que ameaça morte e tortura; o herói voluntariamente exacerba uma situação precária para demonstrar aversão pela presunção e estilo do vilão. De forma mais realista, descobrimos que serviçais de todos os tipos sabem que se o valor de seu serviço ou de seu eu é questionado, eles podem majestosamente recusar qualquer pagamento ou até mesmo pedir ao cliente para levar sua freguesia para outro lugar - uma questão de cortar o próprio nariz para destruir a fachada de outra pessoa. Normalmente não apreciamos tais vitórias de Pirro, e nem a qualidade de cará ter considerada responsável por arrancá-las. E sem dúvida tais incidentes não ocorrem frequentemente no mundo real. Mas histórias de sua ocorrência estão em todos os cantos, e parecem ter um papel significativo para manter o respeito próprio dos serviçais e o comedimento daqueles a quem eles servem. De todas as qualidades de caráter associadas com o gerênciamento da decisividade, a mais interessante para este ensaio é a compostura, quer dizer, o autocontrole, o domínio de si e o aprumo. Esse atributo é duplamente consequente, pois ele causa diretamente o funcionamento de uma propriedade primária e é ele mesmo uma fonte de reputação. A compostura tem um lado comportamental, uma capacidade de executar tarefas físicas (tipicamente envolvendo o controle dos músculos das mãos) de forma suave, organizada e autocontrolada sob circunstâncias decisivas. Ganhar dinheiro com sinuca é um exemplo: Por outro lado, o jogador precisa ter "coração" (coragem). O sine qua non é que ele seja um bom "jogador de dinheiro", que possa dar o seu melhor quando o jogo vale ação pesada (o que muitos jogadores não conseguem). E ele também não deve deixar uma jogada azarada ou distrações na plateia perturbá-lo. (Ele pode fingir ser abalado em tais ocasiões, mas isso é apenas parte de seu truque.) E a quali212

dade de seu jogo também não pode deteriorar quando, seja por um erro de cálculo ou algum outro motivo, ele se encontra muito atrás do que gostaria de estar114.

Podemos citar um exemplo do que esta capacidade não é: Noite passada, um homem nervoso vestindo uma capa impermeável e óculos escuros estava no guichê de pagamento da loja Safeway, na Rua Mission, 4940. Enfiando a mão no bolso, ele retirou uma pistola automática de calibre 32. Ou pelo menos tentou. A arma ficou presa no bolso, disparando um tiro no rodapé da cabine do caixa. Uns 15 clientes e dez funcionários encararam o homem. Ele lambeu os lábios, nervoso. - Isto é um assalto - ele balbuciou para a caixa Rose Catelli, 30, moradora da Rua Naples, 579. - Quero todo o dinheiro do cofre. E então ele deu as costas e saiu correndo da loja, com o gerente Vai Andreacchi e o funcionário Tom Holt em perseguição. Sem sequer olhar para trás, o atirador disparou freneticamente três ou quatro tiros enquanto correu meio quarteirão até um beco na Rua London, pulou em seu carro, e fugiu rapidamente115.

A compostura também tem aquilo que é considerado um lado afetivo, o autocontrole emocional necessário para se lidar com os outros. Na verdade, o que parece estar envolvido é o controle físico dos órgãos empregados para falar e gesticular. Sir Harold Nicolson, discorrendo sobre as qualidades necessárias a um diplomata profissional, nos dá exemplos: Uma terceira qualidade essencial para o diplomata ideal é a qualidade da calma. O negociador não apenas deve evitar demonstrar irritação quando enfrenta a estupidez, desonestidade, brutalidade ou presunção daqueles com quem é seu dever desagradável negociar, mas ele deve deixar de lado todas as hostilidades pessoais, todas as predileções pessoais, todos os entusiasmos, preconceitos, vaidades, exageros, dramatizações e indignações morais. [...]

114. POLSKY, N. "The Hustler". Op. cit., p. 10. 115. San Francisco Chronicle, 17/11/1963. 213


A qualidade da calma, aplicada ao diplomata ideal, deve se expressar em duas direções principais. Em primeiro lugar, ele deve ter bom humor, ou pelo menos ser capaz de manter seu mau humor sob controle perfeito. Em segundo lugar, ele deve ser muito excepcionalmente paciente. As ocasiões em que diplomatas perderam a paciência são lembradas com horror por gerações de seus sucessores. Napoleão perdeu a paciência com Metternich no Palácio Marcolini em Dresden em 26 de junho de 1813, e jogou seu chapéu no carpete com resultados deveras infelizes. Sir Charles Euan Smith perdeu a paciência com o Sultão do Marrocos e rasgou um tratado na presença imperial. O Conde Tattenbach perdeu a paciência na Conferência de Algeciras e expôs seu país a uma grave humilhação diplomática. Herr Stinnes perdeu a paciência em Spa116.

Esses homens "explodiram", deixaram de ser seus próprios mestres, tornando-se, junto com seus princípios, sujeitos ao controle de outros. Junto ao valor de movimentos suaves e emoções serenas, podemos examinar o valor da calma e prontidão mentais, ou seja, a presença de espírito. Esta competência é importante para a execução apropriada de muitas tarefas impessoais, como, por exemplo, provas. Estas são supostamente um dispositivo de amostragem para descobrir um resultado justo e esperado. Mas, na verdade, a nota numa prova depende da mobilização de memória e conhecimento sob pressão, e então a confecção de uma resposta abrangente e ordenada num tempo não exatamente confortável; o oposto disto é às vezes chamado de "dar um branco"117. A presença de espírito também é importante em tarefas que envolvem outras pessoas direta-

mente. Esse tipo de presença de espírito é aquilo que pessoas conhecidas como espirituosas têm, e a pessoa tímida não tem. Livros de mots famosas, afirmações brilhantes de tato, e "cala-bocas" e humilhações eficientes testemunham o interesse geral nessa disposição. A compostura tem ainda outro lado, a capacidade de contemplar a mudança abrupta do destino - o próprio, e por extensão, o dos outros - sem perda de controle emocional, sem se "abalar"118. A compostura também tem um lado corporal, às vezes chamado de dignidade, quer dizer, a capacidade de manter o decoro corporal face a custos, dificuldades e impulsos imperativos119. Aqui, o esporte do surfe (ainda mais do que o esqui) tem interesse especial. O aprumo físico e a dignidade da postura ereta devem ser mantidos numa prancha chata e estreita contra forças retumbantes que desafiam até o limite a capacidade humana para esse tipo de autocontrole corporal. Aqui a manutenção do aprumo físico não é meramente uma condição para a performance efetiva, mas um propósito central dela. Podemos mencionar um último aspecto da compostura: a confiança de palco - a capacidade de suportar os perigos e oportunidades de aparecer perante grandes plateias sem medo, constrangimento, vergonha ou pânico. Por trás disto está o tipo especial de aprumo relacionado a lidar com a contingência de estar sob a observação de outros enquanto se desempenha um papel em que é fácil perder crédito. Uma variação interessante ocorre no mundo secreto de espiões, agentes à paisana e criminosos, no qual pode ser necessário "agir naturalmente" perante uma plateia crítica quando se sabe que em alguns poucos segundos o show inteiro pode acabar. O que

116. NICOLSON, H. Diplomacy. Nova York: Oxford University Press, 1964, p. 62.

118. Uma análise desta questão é oferecida em GLASER, B. & STRAUSS, A. Awaremss ofDying. Chicago: Aldine, 1965, p. 226-256, cap. 13: "Awareness and the Nurse's Composure".

117. Como parte da socialização, provas escolares podem ser importantes não por causa daquilo que os alunos precisam aprender para fazê-las, mas sim por causa daquilo que eles podem aprender ao fazê-las. Pois aqui, pelo menos em nossa sociedade, está talvez o treinamento inicial mais importante para a realização de tarefas difíceis sob condições de tempo limitado, de forma que a falta de compostura mental por si mesma provavelmente desperdiçará um tempo limitado e aumentará sua própria produção. É interessante notar que, em nossa sociedade, testes formais que requerem compostura física sob circunstâncias difíceis parecem aparecer apenas muito mais tarde na vida, se é que aparecem.

119. A dignidade pode criar noticias. Vejamos um relato do Sun-Times (com foto), 17/04/1953: "Viviane Romance, uma estrela de cinema francesa que se recusou a deixar um ator cuspir em seu rosto e xingá-la numa cena de um filme, foi multada em $11.428 por quebra de contrato em Paris. A estrela disse que tal ação estava 'abaixo de sua dignidade'". Um bom exemplo de conduta que alguns considerariam indigna pode ser encontrado no livro Picture, de L. Ross (Nova York: Dolphin, 1962) em que ela descobre as tarefas ignóbeis que Albert Band aparentemente realizava como assistente de John Huston e Gottfried Reinhardt. Cf. esp. p. 32-57, 91-97. [Band, Huston e Reinhardt foram diretores de cinema - N.T.]

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se segue foi escrito sobre um dos melhores arrombadores de Nova York, logo depois de realizar um roubo muito grande no décimo andar de um hotel: Ele desceu as escadas para o nono andar e pegou o elevador até o térreo. Com aquilo que a polícia chama de "coragem de arrombador", ele deixou que o porteiro chamasse um táxi para ele. - Foi a primeira vez na minha vida que não pude dar uma gorjeta para o porteiro - ele disse para a polícia. - Meus bolsos estavam tão cheios de jóias que eu não consegui pegar nenhum trocado. Foi muito constrangedor120.

Está envolvido aqui um conjunto importante de suposições. Pessoas que têm boas razões para temer serem presas a qualquer momento são inclinadas a fugir correndo ou pelo menos ficar constantemente de olho em perigos possíveis. Essas tendências bastante naturais podem ser mantidas sob controle, mas raramente sem deixar algum traço de agitação. Então, as autoridades, procurando aquele realmente culpado entre os aparentemente inocentes, estarão corretamente inclinadas a vistoriar pessoas que pareçam desconfiadas, ou ansiosas sem nenhuma causa visível. Parecer tímido, então, é estragar o disfarce de "parecer com qualquer um". Mas se o indivíduo sentir que sua aparência o está denunciando, ele sentirá que tem mais motivos para ter medo. Suprimir o impulso de sair do recinto que este novo medo causa gerará sinais ainda maiores de falta de naturalidade que, por sua vez, terão seu efeito circular. A compostura, em todas as suas dimensões diferentes, tradicionalmente é associada com a ética aristocrática. Entretanto, recentemente uma versão dessa qualidade tem sido bastante promovida por elementos urbanos vulgares sob o rótulo de cooíness121. Sir Harold talvez não aprovasse a locução, mas seus conselhos para um diplo-

120. BLACK, S. "Burglary", II. Op. cit., p. 118. 121. Literalmente, "frieza", mas sem tradução para o português na acepção em que Goffman o emprega (o termo é utilizado no original por jovens brasileiros) - o mais próximo que temos é a expressão "ficar frio". É bom notar que na época em que Goffman publicou este ensaio, o termo, como ele diz, era utilizado principalmente por classes mais baixas. Hoje em dia, no início do século XXI, seu uso já se generalizou entre jovens de todas as classes [N.T.]. 216

mata itinerante poderiam ser expressos com precisão dizendo "Querida, fique fria"122. O ponto importante aqui é que descobrimos que a compostura é uma preocupação e um valor em muitas culturas diferentes e através de muitos estratos diferentes. Parece haver duas razões principais para isto. Primeiro, sempre que um indivíduo está na presença imediata de outros, especialmente quando ele está envolvido cooperativamente com eles - como, por exemplo, na manutenção conjunta de um estado de fala - sua capacidade enquanto um participante competente da interação é importante para eles. A ordem social mantida no ajuntamento retira seus ingredientes, sua substância, de pequenos comportamentos disciplinados. Sua contribuição de um porte apropriado se mistura com a contribuição dos outros para produzir uma copresença organizada socialmente. Ele precisará manter controle sobre si mesmo se quiser se tornar disponível para as questões do momento e não as perturbar. A falta de compostura o desqualificará para esses deveres e ameaçará o mundo sustentado conjuntamente em que os outros sentem que têm direito de estar. Segundo, esteja ou não o indivíduo na presença de outros, qualquer tarefa que ele realize envolve o uso fácil e treinado de faculdades humanas - mente, membros e, especialmente, músculos das mãos. Muitas vezes, esse gerenciamento precisa ser adquirido e mantido sob circunstâncias muito especiais: qualquer fracasso temporário de controle devido à preocupação sobre a situação criará razões para ainda mais constrangimento e, por isso, ainda mais falta de jeito, e assim por diante até o indivíduo ficar abalado demais para

122. Mas a cooíness contemporânea parece ter nuances próprias. O estilo empregado pressupõe que, apesar da cooíness ser uma característica pessoal, aquele que a possui está numa relação alienada com ela, já que mante-la é sempre problemático. Assim como podemos perder a carteira, podemos perder a cooíness. O termo também é estendido para cobrir não apenas o envolvimento em questões perturbadoras, mas o envolvimento em qualquer coisa - aparentemente, sob a pressuposição de que para aqueles cuja posição social é vulnerável, qualquer preocupação por qualquer coisa pode ser infeliz, e a indiferença é a única posição defensível. Finalmente, na frase "esfria aí" [to cool íí], comunica-se uma injunção contra comportamentos que poderiam excitar respostas indesejáveis de outras pessoas e assim, por extensão, aumentar a ameaça contra nossa própria situação e, em consequência, contra nossa cooíness. 217


lidar com a tarefa. Engolidores de espadas são um exemplo claro. O toque e a temperatura da lâmina fazem com que aqueles que não têm prática tenham náuseas, o que certamente impossibilita a tarefa. Quando essa resposta consegue ser suprimida, o aprendiz descobre que a espada faz com que sua garganta se feche bastante. Ele precisa de mais treino para relaxar esses músculos e permitir que a espada passe sem tocá-los. Quanto mais a espada toca, maior a chance de um espasmo involuntário, o que, obviamente, aumentará a quantidade de toques123. (É claro que, correspondentemente, quanto mais bem composto o engolidor, menos a espada tocará e menos restrita será a passagem, e assim por diante.) Como foi sugerido, um apuro similar ocorre sob condições de tempo limitadas. A falta de jeito pode desperdiçar tempo, o que torna a situação mais difícil, o que por sua vez provoca ainda mais descompostura. Já que as pessoas em todas as sociedades precisam levar a cabo boa parte de suas atividades em situações sociais, devemos esperar que a capacidade de manter apoio à ocasião social sob circunstâncias difíceis seja aprovada universalmente. Da mesma forma, já que indivíduos em todas as sociedades e estratos precisam realizar tarefas, a compostura requerida por isto será uma preocupação em qualquer lugar. Eu listei várias bases de caráter forte: coragem, combatividade, integridade, compostura. Deve estar claro que elas podem ser combinadas, produzindo decorações para a vida moral da comunidade. Um operador de telégrafo que polidamente se recusa a abandonar seu navio naufragando, e afunda enquanto friamente improvisa reparos no transmissor, combativamente se motivando mesmo com suas mãos queimadas, combina em seu feito quase tudo que a sociedade pode pedir de uma pessoa. Ele transmite uma mensagem importante, mesmo que ninguém receba seu SOS. Desejo agora voltar à sugestão de que, apesar das propriedades de caráter serem encontradas tipicamente durante momentos decisivos, elas também são exibidas durante ocasiões de mera decisividade subjetiva, quando um destino que já está determinado está sendo revelado e assentado. Os sentimentos gerados durante esses momentos podem exigir poderes de autocontrole para serem bem 123. Cf. MANNIX, D. Memoirs ofaSwordS-wallawer. Nova York: Ballantine, 1964, p. 94-98. 218

gerenciados. E, é claro, esse domínio de si será especialmente importante quando outros estão imediatamente presentes, já que a interação ordenada que eles mantêm seria colocada em perigo pela descompostura do indivíduo cujo destino está em jogo. Não podemos encontrar nenhum exemplo melhor do que as qualidades exibidas por alguém prestes a ser enforcado, guilhotinado, fuzilado, ou submetido à câmara de gás. As execuções ocorrem sob condições nas quais a plateia é bastante instável, e em que a cooperação física e a equanimidade psíquica são exigidas do homem condenado para as coisas correrem suavemente. O saber sobre execuções registra, como consequência, pessoas que lutaram, se contorceram, cuspiram, uivaram, desmaiaram e tiveram incontinência durante os momentos antes de serem despachados, provando sua falta de caráter: "O povo de York testemunhou outro enforcamento desagradável quando Joseph Terry lutou, gritou e mordeu quando o carrasco tentou colocar o nó em volta de seu pescoço. Seis homens vieram para o cadafalso para segurá-lo e finalmente a corda foi forçada em sua cabeça, mas em outro embate o capuz caiu. Neste momento a plataforma caiu. Terry saltou e conseguiu colocar um pé na borda do cadafalso, agarrando-se a um dos postes da forca com seu braço. Aqui ele conseguiu enfrentar os esforços conjur tos do carrasco e de seus assistentes por um minuto antes deles conseguirem derrubá-lo. Ele morreu com seu rosto coberto de contorções assustadoras"124. 124. ATHOLL, J. Shadow ofthe Gallows. Londres: John Long, 1954, p. 77. A história das execuções normalmente é escrita em termos evolucionistas, começando com mortes cruéis indicadas para vários crimes e chegando até a nossa época, onde a morte humanitária é administrada para muito poucos crimes, e há muita pressão para se abolir totalmente a pena de morte. Na verdade, a história das execuções poderia ser melhor escrita em termos de interação, pois a evolução das técnicas de execução tem muito a ver com o desenvolvimento de dispositivos e práticas para garantir uma ocasião social tranquila. Tendo em vista que a plateia, o carrasco e a vítima estarão ansiosos, como se pode realizar o ato de forma a facilitar o autocontrole dos três tipos de participantes? A história das práticas de execução é a história da resposta se acumulando lentamente. Vejamos a arte dos enforcamentos, por exemplo. Desenvolveram-se forcas que podem ser erguidas silenciosamente durante a noite no pátio da prisão para minimizar visões e sons medonhos; uma "tabela de quedas" de acordo com o peso e condição do pescoço, de forma que a exten219


Em contraste, as histórias contam de outras atrações que trocaram gracejos com a plateia, mantiveram as delicadezas sociais, ajudaram o carrasco no ajuste do nó e, de modo geral, facilitaram as coisas para todos os presentes. O humor da forca realmente ocorre, como quando um aristocrata, prestes a ser guilhotinado, recusa o copo de rum tradicional, dizendo: "Eu perco todo o meu senso de direção quando bebo"125. As dificuldades procedimentais que vítimas de execuções indispostas podem causar, e sua tendência geral de ir para a morte cooperativamente, demonstram o desejo que as pessoas têm de exibir caráter forte. O homern condenado normalmente coopera; ele tem espírito esportivo; ele não é uma criança; ele aceita que perdeu o jogo sem ressentimento nem caindo no choro126, e pode até demonstrar um coração de lutador, desdenhando com uma careta colocar sua aposta final de forma tradicional, quer dizer, com piedade, orações, e um pedido para que aqueles que ficam o perdoem e sejam perdoados127. Este tipo de graça é o ato socializado final e terrível, pois o são da queda livre nem deixaria o homem se contorcendo nem arrancaria a cabeça dele, e sim quebraria seu pescoço com precisão - projetando-se um nó e um tipo de corda para facilitar este ajuste; correias para os braços para impedir que o homem obstrua a queda; e alçapões que ficam presos até que a corda seja puxada, que abrem rapidamente quando isto ocorre, e (num dos toques mais interessantes) projetados para não ficarem oscilando para frente e par? trás numa reverberação pesarosa da queda. Pode-se argumentar que o caráter rn nanitário da execução dificilmente seria importante para a vítima, já que a questão de como alguém logo será despachado pode muito bem ser considerada sem importância em comparação com o fato de que alguém está prestes a ser despachado. São apenas aqueles que ficam para trás que podem se confortar sabendo que o fim foi praticamente indolor e que ninguém sentiu prazer com o negócio terrível de prepará-lo e testemunhá-lo. 125. KERSHAW, A. A History ofthe Guillotine. Londres: John Calder, 1958, p. 71. 126. É claro que não são apenas crianças que podem ser maus esportistas e perder sua equanimidade e, assim, seu caráter quando perdem um jogo. Como uma enxadrista profissional relatou: "Em um jogo, uma jogadora holandesa perdeu de repente sua rainha para uma russa. Ela saiu correndo do palco chorando" (Senhorita Lisa Lane, apud "Talk of the Town". The New Yorker, 19/09/1964, p. 43). 127. Em correlação com a tendência na direção de execuções "humanitárias", tem havido um declínio nos pedidos de graça e caráter que colocamos sobre os condenados. Na câmara de gás em prisões americanas, pode-se pedir que a vítima respire profundamente logo depois que o cianeto é liberado, mas ninguém pediria que ela apresentasse suas últimas palavras da forma que era costumeira nos séculos XVII e XVIII. Sobre últimas palavras, cf. ATHOLL, J. Shadow ofthe Gallows. Op. cit, p. 56. 220

homem condenado tranquiliza a situação social, apoiando a parte mais evanescente de nossa vida social - suas ocasiões sociais - exatamente quando ele quase não pode compartilhar mais daquilo que está apoiando. Afinal, há outras pessoas presentes. Passemos pelos dentes da eternidade se for preciso, mas não os limpe com os dedos. Compreensivelmente, durante os tempos de execuções públicas, a conduta do dia final do condenado era observada de perto e contribuía muito para sua reputação póstuma. Heróis podiam então nascer, ser confirmados e assassinados enquanto morriam. Em comunidades nas quais a possibilidade de execução não é insignificante, ainda encontramos esse interesse, como Claude Brown sugere em suas memórias do Harlem: Parecia que um monte de gente da vizinhança, manos que a gente conhecia, que foram para a escola conosco, estavam sendo fritados [na prisão de] Sing Sing. Tinha virado um hábito na vizinhança ir falar com as mães e parentes desses manos que foram para a cadeira elétrica em Sing Sing. Eu lembro que quando eu era mais jovem, quando eu estava [na prisão] Warwick, e logo depois que eu saí, ouvia falar que gente que eu conhecia tinha ido pra cadeira. Todo mundo queria saber o que eles tinham dito porque a gente queria descobrir algo para nós mesmos. A gente queria descobrir se tinha valido a pena no último minuto, se eles achavam que tinha valido a pena, agora que eles iam morrer. Quando eu era mais novo, alguns anos depois de Warwick, eu queria saber se esses manos eram mesmo durões. Eu acho que a maioria dos caras da minha idade olhava pra eles como heróis quando eles estavam sendo fritados em Sing Sing. A gente queria saber as últimas palavras deles. Alguém me disse que quando eles fritaram Pirulito - Pirulito era um mano meio doido, e a gente chamava ele de Pirulito porque ele gostava de doces - logo antes dele morrer, ele disse: - Bom, parece que esta foi a última lambida do Pirulito. Foi isso. Todo mundo admirava ele pela forma que ele se despediu. Ele não gritou, nem nada disso128.

128. BROWN, C. Manchild in the Promised Land. Op. cit., p. 211. 221


Ao revisar algumas das qualidades que influenciam a forma em que um indivíduo atuará em ocasiões desesperadas, sugeri uma conexão entre ação e caráter. A relação não deve ser exagerada. Aqueles que apoiam uma moralidade provavelmente sentem que ela pode ser levada longe demais, mesmo que a sociedade possa se beneficiar do exemplo oferecido pela devoção extrema. Também devemos admitir que há certas qualidades de caráter valorizadas positivamente obtidas quando nos aferramos a uma tarefa que não é dramática por um longo período de tempo e, consequentemente, a conduta durante qualquer dado momento não pode conter uma expressão completa da característica. Além do mais, durante a decisividade zelosa, como quando homens guerreiam, o tipo de graça e intrepidez de destaque individual exibido por apostadores e pilotos de corrida não será o bastante. Como William James notou em seu elogio das virtudes militares, há uma necessidade de abandonar interesses privados e demonstrar obediência a ordens129. Uma crise pode exigir não apenas as qualidades de caráter que levam um indivíduo a superar outros e se destacar, mas também aquelas que o levam a se submergir nas necessidades imediatas do todo. Mesmo o interesse próprio pode exigir a demonstração disciplinada de qualidades muito pouco heróicas. O jogador de sinuca por dinheiro nos oferece um exemplo: O jogador precisa se abster de conseguir realizar muitas das tacadas extremamente difíceis. Isso não é fácil, porque é difícil de resistir ao arrepio de fazer uma tacada complicada que causa aplausos da plateia. Mas o jogador precisa resistir, senão ficaria mais difícil de acreditar em seus erros em tacadas mais comuns130.

Aqui a qualidade mais profunda de caráter é conseguir parecer, sob pressão, que se tem menos graça do que realmente é o caso. Finalmente, como já foi sugerido, há as qualidades de caráter associadas tradicionalmente com a feminilidade. Estas obrigam a mulher a se retrair de todas as disputas para preservar sua pureza, garantindo que mesmo seus sentidos não serão maculados. Quando a ação é ne-

129. JAMES, W. "The Moral Equivalent of War". Essays on Faith and Morais. Nova York: Meridian, 1962, p. 323. 130. POLSKY, N. "The Hustler". Op. cit, p. 9. 222

cessaria para garantir essa virtude, supostamente ela é realizada pelo homem que protege a mulher.

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Eu sugeri que quando o indivíduo está numa situação social ele está exposto a julgamentos dos outros presentes, e que isto envolve que eles o avaliem em relação a capacidades primárias e qualidades de caráter. Nenhum quadro dessas contingências de reputação estaria completo sem tratar das crenças populares que predominam na sociedade em relação à natureza das pessoas, pois essas crenças oferecem o esquema de referência para os julgamentos de características feitos em relação ao indivíduo testemunhado. Primeiro, com propriedades de caráter, diferente das propriedades primárias, uma única expressão tende a ser considerada definitiva. Já que propriedades de caráter são evocadas apenas nas ocasiões raras em que a decisividade não foi evitada, manifestações posteriores de corroboração ou correção não são imediatamente prováveis. Precisaremos forçosamente confiar numa única amostra. E, o que é mais importante, faz parte do imaginário dessas características que nenhuma exceção é permitida. É exatamente quando ele está mais tentado a se desviar, que o indivíduo tem a oportunidade mais clara de ser constante e assim demonstrar seu caráter; essa constância-apesar-de-tudo é, de fato, a essência do caráter. Dizer que imputações leigas são impulsivas e infundadas, e que com o passar do tempo e em várias situações o indivíduo talvez não mantenha de fato o caráter que manifesta atualmente é verdade, mas não importa aqui. Eu não estou preocupado em saber se um certo indivíduo possui ou não uma característica específica, mas em como noções sobre o caráter funcionam na vida cotidiana. Em nossos negócios com outra pessoa pressupomos que o caráter que ela expressa atualmente é um ré trato completo e duradouro dela, e ela ao lidar conosco faz exatamente a mesma suposição de como ela será vista. É claro que desculpas são oferecidas, explicações dadas e exceções concedidas; mas este trabalho é feito em relação à pressuposição anterior de que a demonstração atual é crucial, e de qualquer forma muitas vezes é incompletamente efetiva. Segundo, uma vez que a evidência de caráter forte tenha sido estabelecida, ela não precisa ser reestabelecida intencionalmente, pelo menos não imediatamente; por enquanto, o ator pode se basear no 223


seu histórico. Ele pode confiar que os outros pressuporão que se a ocasião correta surgir ele assumirá as implicações de seus modos e agirá com caráter. Mas isto, é claro, traz seu próprio perigo para a vida moral, pois nós tendemos a operar em termos de visões otimistas de nós mesmos, que seriam desacreditadas se um dia as testássemos. Terceiro, existe a crença de que uma vez que o indivíduo tenha falhado de forma particular, ele se torna essencialmente diferente a partir daquele momento e deveria simplesmente desistir. Um soldado doutrinado com a ideia de que ele tem uma vontade, e que vontades ou se mantêm totalmente ou são completamente quebradas, pode tender, por causa disso, a divulgar tudo que sabe durante um interrogatório inimigo a partir do momento em que ele tiver divulgado alguma coisa131. Da mesma forma, pode-se dizer que um toureiro perde todo o seu valor depois da primeira chifrada132. E também, em corridas de cavalos, existe a discussão sobre jóqueis que "perdem a coragem" e passam a correr mal, ou até a se recusar a correr. Histórias exemplares falam de jóqueis famosos que, sentindo que perderam a coragem, proclamaram esse fato e se aposentaram dos páreos133. Histórias parecidas são contadas sobre mergulhadores de grandes profundidades. E a ficção detetivesca muitas vezes descreve policiais e marginais durões que recebem um espancamento severo e depois nunca recuperam seu brio anterior. E, é, claro, há a crença comum de que, depois que descobrimos e pagamos o preço de um homem, torna-se impossível confiar nele e é melhor que ele passe a aceitar subornos pequenos, mas frequentes. Junto com a crença na "capacidade de perda" da coragem, na destra tibilidade da fibra moral, e em "ele-nunca-mais-será-o-mesmo", há uma outra: depois de não ter coragem ou fibra moral por muito tempo, um indivíduo pode adquirir repentinamente "energia" ou "coração", e a partir deste ponto continuar a tê-la:

131.BIDERMAN, A. "Social-Psychological Needs and Involuntary Behavior as Illustrated by Compliance in Interroga tion". Sociometry, 23, 1960, p. 138-139. Um outro relato é apresentado em GOFFMAN, E. Asylums. Nova York: Doubleday Anchor, 1961, p. 89-90. 132. Cf., p. ex., HEMINGWAY, E. Death m the Afternoon. Op. cit., p. 89. 133. LEACH, J. "Unseated by Nerves". The Observer, 03/03/1963. 224

Cayetano Ordonez, Nino de Ia Palama, sabia lidar com a muleta perfeitamente com ambas as mãos, era um ator lindo com um grande senso artístico e dramático da/aena , mas ele nunca mais foi o mesmo depois de descobrir que os touros carregavam passagens pelo hospital, inevitáveis, e a morte, talvez, em seus chifres, além de notas de cinco mil pesetas entre sua cernelha. Ele queria as notas, mas não estava disposto a se aproximar dos chifres para pegá-las quando descobriu a penalidade que era aplicável pelas pontas deles. A coragem percorre uma distância tão curta; do coração para a cabeça; mas quando ela some ninguém sabe para onde ela vai; para uma hemorragia, talvez, ou para uma mulher, e é ruim estar no negócio das touradas quando ela se some, seja lá para onde quer que ela tenha ido. Às vezes ela é recuperada de outro ferimento, o primeiro pode trazer o medo da morte e o segundo afastá-lo, e às vezes uma mulher a leva e outra a traz de volta. Os toureiros ficam em suas profissões confiando em seu conhecimento e em sua habilidade de limitar o perigo, e torcem para que a coragem volte, e às vezes ela volta, mas, na maioria das vezes, não135.

Na ficção e nos mitos, a redenção muitas vezes é alcançada apenas no ato que dá ao indivíduo força suficiente para morrer por seus princípios, e o falecimento do redimido serve para manter as pressuposições contraditórias de que uma queda da graça é permanente e que uma pessoa quebrada pode se consertar. Tendo em vista a crença de que o caráter pode ser adquirido e perdido dramaticamente, o indivíduo claramente terá razões para ir em frente com uma situação arriscada independentemente do custo material ou físico provável para si mesmo, manifestando assim aquilo que às vezes é chamado de orgulho. É interessante notar que nossas crenças sobre a coragem permitem um pouco de ajuda de fora nesta questão: muitas vezes sentimos que uma dose rápida de uma bebida forte permitirá que um homem desempenhe uma ação

134. Em espanhol, termo usado para indicar o conjunto de passos realizados durante uma tourada [N.T.]. 135. HEMINGWAY, E. Death in the Afternoon. Op. cit., p. 222. 225


difícil melhor e mais facilmente, e um número surpreendente de situações permite tal fortificação136. Tendo em vista esses argumentos sobre a natureza do caráter, é possível entender melhor por que a ação parece ter um apelo peculiar. Claramente, é durante momentos de ação que o indivíduo tem o risco e a oportunidade de exibir para si mesmo e às vezes para outros seu estilo de conduta quando as cartas estão na mesa. O caráter é apostado; uma única boa exibição pode ser considerada representativa, e uma exibição ruim não pode ser desculpada ou tentada de novo facilmente. Exibir ou expressar caráter, fraco ou forte, é gerar caráter. O eu, resumindo, pode ser sujeito voluntariamente à recriação. Sem dúvida essa permissão é praticável, do ponto de vista da sociedade, porque, como fica ilustrado claramente em relação com a "aposta" dos apostadores, o preço de fazer tais demonstrações provavelmente oferece um freio automático contra aqueles que poderiam ser inclinados demais a exibi-las. De qualquer forma, aqui está a chance de mostrar graça sob pressão; aqui está a oportunidade de ser medido pela medida dos homens de Hemingway. Podemos começar a ver que a ação não precisa ser percebida, em primeira instância, como uma expressão de impulsividade ou irracionalidade, mesmo quando o resultado é risco sem nenhum prémio aparente. Certamente arriscamos uma perda através da ação; mas pode haver um ganho real de caráter. É nesses termos que a ação pode ser vista como um risco calculado137. Afirmações (incluindo a minha) de que a ação é um fim em si mesmo devem ser entendidas como locuções. Arriscar-se seriamente de forma voluntária é um meio de manter e adquirir caráter; isto é um fim em si mesmo apenas em relação a outros tipos de propósito. Considerar a ação literalmente como um fim em si mesmo seria trivializar e truncar a explicação social. E agora começamos a ver o caráter como ele realmente é. Por um lado, ele se refere àquilo que é essencial e imutável sobre o indi-

víduo - aquilo que é característico dele. Por outro lado, ele se refere a atributos que podem ser gerados e destruídos durante momentos decisivos. Nesta segunda visão o indivíduo pode agir de forma a determinar as características que doravante serão suas; ele pode agir de forma a criar e estabelecer aquilo que será imputado a ele. Toda vez que um momento ocorre, então seus participantes se encontrarão com outra pequena chance de fazer um nome para si mesmos. Daí um paradoxo. O caráter é ao mesmo tempo imutável e mutável. Mas é assim que nós o concebemos. Também deve estar bem claro que nossa falta de lógica sobre essa questão tem seu valor social. A organização social, em todos os lugares, tem os problemas do ânimo e da continuidade. Os indivíduos precisam chegar a todas suas pequenas situações com algum entusiasmo e preocupação, pois é em grande parte através desses momentos que a vida social ocorre, e, se não houvesse um esforço renovado em cada um deles, a sociedade certamente sofreria. A possibilidade de criar reputação é a espora. Mas ainda assim, se a sociedade quiser persistir, o mesmo padrão precisa ser mantido de uma ocasião social real para outra. Aqui a necessidade é de regras e convencionalidade. Os indivíduos precisam se definir em termos de propriedades já aceitas como deles, e agir confiavelmente em termos delas. Para satisfazer as exigências fundamentais de ânimo e continuidade, somos encorajados a acreditar numa ilusão fundamental. Ela é nosso caráter. Algo inteiramente nosso que não muda, mas que ao mesmo tempo é precário e mutável. As possibilidades relacionadas ao caráter nos encorajam a renovar nossos esforços em cada momento de atividade da sociedade do qual nos aproximamos, especialmente seus momentos sociais; e é precisamente através dessas renovações que as rotinas antigas podem ser mantidas. Permite-se que pensemos que há algo a ganhar nos momentos que enfrentamos para que a sociedade possa enfrentar os momentos e derrotá-los.

136. A prática de execuções é uma ilustração. Cf., p. ex., KELLER, A. (org.). The Hongmaris Diary. Londres: Philip Allen, 1928, p. 8, sob a frase stãrkenden Trunfe, ["drinque de restauração" - N.T.] 137. Este argumento foi feito recentemente em relação ao risco envolvido em relações sexuais extraconjugais e brigas de gangues. Cf. STRODTBECK, F. & SHORT, J. "Aleatory Risks Versus Short-run Hedonism in Explanation of Gang Action", Social Problems, 12, 1964, p. 127-140.

9. Competições de caráter Começando com a noção de tarefas ocupacionais decisivas, podemos enxergar a ação como um tipo de evocação auto-orientada de forma ritualizada da cena moral que surge quando tais tarefas são exercidas. A ação consiste de tarefas arriscadas realizadas "por si mesmas". A excitação e a exibição de caráter, os efeitos colaterais

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das apostas práticas, de cenas decisivas sérias, tornam-se, no caso da ação, o propósito tácito de todo o show. Entretanto, nem as tarefas decisivas nem a ação nos dizem muito sobre as implicações mútuas que podem ocorrer quando a exibição de caráter de uma pessoa tem importância direta sobre a de outra, e também não aprendemos sobre o esquema de compreensão que possuímos para lidar com tais ocorrências. Para isto, precisamos nos voltar para a ação interpessoal. Durante ocasiões desse tipo de ação, não é apenas o caráter que está em jogo - prevalece aqui uma decisividade mútua. Cada pessoa estará pelo menos incidentalmente preocupada em estabelecer evidências de caráter forte, e as condições serão tais que só permitirão isto à custa do caráter dos outros participantes. O próprio campo que o primeiro usa para expressar o caráter pode ser a expressão de caráter do outro. E algumas vezes as propriedades primárias em jogo podem elas mesmas ser transformadas abertamente numa conveniência, servindo marcadamente apenas como uma ocasião para uma batalha através do caráter, e por ele. O resultado é uma competição de caráter, um tipo especial de jogo moral. Esses engajamentos ocorrem, é claro, em jogos e esportes nos quais os adversários estão equilibrados e são necessários esforços marginais para vencer. Mas as competições de caráter também são encontradas sob condições planejadas menos obviamente para competições, sujeitando a todos nós a um fluxo de pequenas perdas e ganhos. Todo dia, podemos tentar marcar pontos de várias formas, e todo dia podemos ser derrubados de várias formas. (Talvez um pequeno resíduo permaneça de cada uma dessas atribulações, de forma que, no momento em que um indivíduo se aproxima de outro, seus modos e seu rosto podem revelar as consequências que são normais para ele, e sutilmente dirigir a interação num caminho que se desenvolve e termina como sempre parece ocorrer com ele.) Barganhas, ameaças, promessas - seja no comércio, na diplomacia, na guerra, em jogos de cartas ou relações pessoais — permitem que um competidor oponha sua capacidade de desmontar intenções e recursos contra a capacidade do outro de provocar ou adular aquilo que é secreto para que possa ser lido. Sempre que indivíduos pedem ou dão desculpas, proferem ou recebem elogios, insultam ou são insultados, o resultado pode ser uma competição de autocontrole. Da mesma forma, os pequenos flertes tácitos que ocorrem entre amigos 228

e entre estranhos produzem uma competição de indisponibilidade ainda que normalmente não mais que isto. E quando ocorrem gracejos ou "observações", alguém terá demonstrado mais aprumo que outra pessoa. Os territórios do eu têm fronteiras que não podem ser patrulhadas literalmente. Em vez disso, as disputas de fronteiras são buscadas e desfrutadas (muitas vezes com alegria) como um modo de estabelecer onde estão as fronteiras de uma pessoa. E essas disputas são competições de caráter. Entretanto, se quisermos apreciar a importância de competições de caráter, precisamos nos afastar de jogos e escaramuças em direção às características constitutivas da vida social. Precisamos examinar o investimento que um indivíduo é obrigado a fazer em expectativas legítimas que por um acaso são suas, especialmente expectativas informais, e os meios disponíveis na sociedade para estabelecer autoridade, posição hostil, domínio e estatuto. No jogo entre virtude e posição, encontramos um código que atinge o centro do eu, e que vale a pena tentar formular idealmente. Quando duas pessoas estão mutuamente presentes, a conduta de cada uma pode ser lida para se chegar ao conceito que ela exprime em relação a si mesma e à outra. O comportamento copresente se torna assim tratamento mútuo. Mas o próprio tratamento mútuo tende a se tornar socialmente legitimado, de forma que cada ato, seja substantivo ou cerimonial, se torna a obrigação do ator e a expectativa do outro. Ambos os participantes são transformados num campo em que o outro necessariamente pratica conduta boa ou má. Além do mais, ambos não apenas desejarão receber o que merecem, mas descobrirão que são obrigados a fazer com que isso aconteça, obrigados a policiar a interação para garantir que recebam o que é justo. Quando ocorre uma competição sobre qual tratamento do eu e do outro deve prevalecer, cada indivíduo se engaja em oferecer evidências para estabelecer uma definição de si mesmo à custa daquilo que pode restar para o outro. E essa disputa constrangerá não apenas o desejo de um lugar satisfatório nas definições que prevalecem, mas também o direito de receber tal lugar e o dever de insistir nele. Está envolvida aqui uma "questão de princípio", ou seja, uma regra cuja santidade é derivada não apenas da conduta real orientada por ela, mas também de sua implicação simbólica como uma regra de

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um. conjunto inteiro de regras, estando o sistema inteiro ameaçado"". A insistência por um lugar desejável é assim coberta e fortalecida pela insistência por nosso lugar de direito, e isto é ainda mais endurecido pela obrigação de fazê-lo, para que o padrão inteiro de regras não se deteriore. Podemos então nos engajar em honra, a saber, aquele aspecto da composição pessoal que faz com que o indivíduo zelosamente entre numa competição de caráter quando seus direitos foram violados - um curso que se torna mais necessá. 139 rio seguir quanto maiores parecerem os custos prováveis . O jogo tipicamente começa com um jogador ofendendo uma regra moral, cuja aplicação particular o outro jogador se comprometeu a manter pessoalmente, normalmente porque ele ou aqueles com quem ele se identifica são os alvos da ofensa. Esta é a "provocação". No caso de pequenas infrações, é provável que o ofensor ofereça uma desculpa imediata, que restaura tanto a regra quanto a honra do ofendido; o ofendido precisa apenas comunicar sua aceitação para abortar o jogo inteiro - na verdade, ele pode se desculpar também ao mesmo tempo, ou aceitar a desculpa antes que ela seja oferecida, demonstrando mais uma vez a grande preocupação das pessoas em ficar fora desse tipo de ação. (Uma questão estrutural importante aqui é que é mais fácil oferecer uma desculpa em nossa capacidade de guardião dos direitos dos outros, quando esta é autoiniciada, do que é aceitar uma afronta em nossa capacidade de protetor de nossa própria santidade.) Um término semelhante do jogo ocorre quando o ofendido comunica um leve desafio (o bastante para mostrar que ele possui honra), chamando a atenção do ofensor para aquilo que aconteceu, o que é seguido por uma sequência de desculpas e aceitação. Pede-se e oferece-se "satisfação", e não se gera muito caráter, ainda que cada lado possa mais uma 138. Cf. o argumento de FRIED, C. "Reason and Action". Natural Law Fórum, vol. 11, 1966, p. 13-35. 139. O caso principal aqui é o duelo de honra do século XVI. Um cavalheiro zelava por sua honra, mas apenas um pequeno número de pessoas era socialmente qualificado a ponto de obrigá-lo a satisfazer sua honra através de um duelo, e então, é claro, os problemas de arranjar um horário, lugar e equipamento mutuamente satisfatórios eram tão grandes que em países como a Inglaterra poucos duelos realmente aconteciam. Cf. BRYSON, F. The Point of Honor in Sixteenth-Century Italy: An Aspect of the Life of the Gentleman. Nova York: Institute of French Studies/Columbia University, 1935. • BALDICK, R. TheDuel. Op. cit. 230

vez afirmar que é uma pessoa socializada apropriadamente com piedade apropriada para as regras do jogo. Entretanto, mesmo quando a ofensa é incomum e profunda, consequências sérias podem ser evitadas. A pessoa ofendida pode abertamente expressar seu sentimento de que o ofensor não é o tipo de pessoa cujos atos precisam ser levados a sério140; o ofensor, ao ser desafiado, pode recuar com um dito espirituoso, de forma que, mesmo que uma parte dele perca fama, é outra parte dele que está causando isso - e fazendo isso tão bem a ponto de rebater a reivindicação do desafiante de ter que realizar um trabalho autorrestaurador. Já que um desafio pode ser comunicado e recusado com as menores dicas, descobrimos aqui um mecanismo geral de controle social interpessoal. Um indivíduo que saiu levemente de linha é lembrado da direção que ele está tomando e de suas consequências antes que qualquer dano sério tenha sido causado. O mesmo mecanismo parece ser empregado para o estabelecimento de uma hierarquia social em relação a vários tipos de direitos. Se a competição realmente quiser começar, o desafio comunicado pelo ofendido precisa ser sério, e o outro jogador precisa claramente se recusar a dar satisfações. Quando ambas essas respostas estão presentes, elas juntas transformam retrospectivamente o significado da ofensa inicial, reconstituindo-a como o começo daquilo que às vezes é chamado de um "encontrão" [run-in]. Isto é sempre algo que envolve duas pessoas, diferente de um "incidente", que pode envolver centralmente apenas uma pessoa. O resultado é o combate moral, com as propriedades de caráter entrando em jogo como algo que pode ser ganhado ou perdido141. Os encontrões en140. Caixas de banco já impediram assaltos a banco ao simplesmente se recusar a levar a sério o bilhete de ameaça entregue a eles por pretensos assaltantes armados. Da mesma forma, policiais podem enfrentar ameaças de pistolas contra si mesmos simplesmente dando as costas ao atirador, removendo a base de competição (CF. San Francisco Chronicle, 26/07/1965, p. 3: "Cop Turns His Back - And Disarms a Gunman"). 141. Os duelos tradicionais eram mais complexos devido à regra de escolha de armas. Se o ofendido desafiasse o ofensor a um duelo, este último normalmente teria a escolha de armas, uma vantagem injusta para alguém que já tinha feito algo errado. E por isso o ofendido insultava abertamente o ofensor, "desmentindo-o", e com essa provocação o ofensor original seria então forçado a desafiar o ofendido. Através dessa cooperação extensa, a escolha de arma podia cair no lado certo. 231


volvem a própria vítima em todas as fases do processo de sanção. Nesse tribunal, o queixoso deve agir como juiz e carrasco. Como é característico da ação em geral, o indivíduo sozinho é aqui a unidade eficaz de organização. Deve estar aparente que o significado dessas várias jogadas é parcialmente derivado da orientação que o jogador traz a elas e as leituras que ele faz retrospectivamente delas142. Portanto, haverá uma folga na definição da situação, e um certo grau de consenso mútuo será necessário antes que um encontrão completo possa ocorrer. No mundo de hoje, quando um encontrão realmente ocorre, é provável que uma competição de caráter se siga imediatamente, se ela tiver que ocorrer. Entretanto, nos mitos e rituais, as partes muitas vezes se retiram para se encontrar novamente num lugar designado, mantendo voluntariamente um compromisso com o destino do tipo corpóreo e também de caráter. Em ambos os casos, testemunhas são necessárias e sempre precisam se abster cuidadosamente de interferir. (Isto garante que a competição seja considerada "justa", uma cena válida para o jogo de caráter.) Quando o encontrão ocorreu e a competição começou, as implicações de caráter do jogo podem se desenrolar de formas diferentes, e não necessariamente com restrições "de soma zero". Um dos lados pode sofrer uma derrota evidente em base das propriedades de caráter: ele mostra que estava blefando o tempo todo e não está realmente preparado para realizar o ato que ameaçou; ou ele perde a coragem, dá as costas e foge, deixando seu adversário na posição confortável de não ter que demonstrar até que ponto ele seriamente estava preparado a levar a competição; ou ele desmorona enquanto um adversário, rebaixa-se e implora misericórdia, destruindo seu próprio estatuto enquanto uma pessoa de caráter na pressuposição básica de que ele então será indigno como um adversário e não mais se qualificará como um alvo de ataque. Ambos os lados podem sair com honra e afirmando um bom caráter - aparentemente, um resultado obtido cuidadosamente na

142. Sugerido por BOURDIEU, P. "The Sentiment of Honour in Kabyle Society" In: PERISTIANY, J. Honour and Shame. Op. cit., p. 200. 232

maioria dos duelos de honra formais, uma realização considerável já que ferimentos também normalmente eram evitados. E supostamente ambos os lados podem perder, assim como um lado pode perder enquanto o outro ganha pouco. Assim, essa excelente competição de caráter, o "racha" , pode terminar com ambos os veículos virando, nenhum veículo virando, ou com um virando tão rápido que seu motorista perde muita honra, mas seu adversário não recebe nenhum crédito em particular144. Obviamente, o resultado de caráter da competição é bastante independente daquilo que pode ser visto como o resultado "manifesto" da peleja. Um jogador superado pode combativamente dar tudo que tem para sua situação sem saída e então cair corajosamente, ou orgulhosamente, ou insolentemente, ou graciosamente, ou com um sorriso irónico nos lábios145. Um suspeito de crimes pode manter-se frio diante de técnicas elaboradas empregadas por equipes de investigadores policiais, e depois receber a condenação do juiz sem piscar. Além disso, um jogador enfrentando um adversário que se equipara a ele pode sofrer severamente enquanto seu adversário se humilha usando técnicas desonrosas, mas decisivas, perdendo assim um duelo, mas ganhando caráter. Da mesma for143. ["Chícken run" no original - um tipo de "racha" de carros em que dois motoristas dirigem em direções opostas em alta velocidade, indo um ao encontro do outro, até que um deles vire o carro para evitar um acidente, perdendo assim a competição-N.T.] 144. Uma apresentação ficcional do racha automobilístico pode ser encontrada em G. Elliott, Parktilden Village (Nova York: Signet, 1961:42-43). Um tratamento analítico elegante é oferecido por T.C. Schelling, Arms and Influence (Nova York: Yale University Press, 1966:116-125). É bom notar que, antes que o jogo possa ser jogado, as pessoas precisam saber como o equipamento acessível para elas pode ser usado para esse propósito. Alguns garotos de classe média não sabem que um cigarro aceso segurado entre as mãos de dois garotos diferentes até queimar a carne oferece uma possibilidade perfeita para o jogo. (O primeiro a retirar a mão perde, obviamente, e automaticamente termina a provação para os dois.) A competição de prender a respiração parece ser mais conhecida. 145. Uma das razões para que resgates inesperados sejam usados em histórias de ação é que apenas desta forma o herói pode receber uma chance de demonstrar que, mesmo diante de dificuldades quase insuperáveis, ele não pedirá arrego. Personagens secundários têm a permissão de provar isto de forma mais definitiva, sendo dispensáveis para a história. 233


ma, um indivíduo que se opõe a um adversário fraco pode ganhar o cará ter de valentão através do próprio ato de ganhar a partida. E um valentão que empata realmente está perdido, como esta notícia de Fresno, Califórnia, ilustra: Ontem de manhã uma garçonete e um bandido jogaram uma partida de "pagar para ver" com pistolas carregadas e, apesar de nenhum disparo ter ocorrido, a garçonete venceu. A ação aconteceu no The Bit, um oásis proletário de vinho e cerveja no sul da cidade, onde a amável Joan O'Higgins estava trabalhando atrás da bancada. De repente um bandido enorme entrou no estabelecimento, pediu uma cerveja, exibiu uma pequena pistola e ordenou à senhorita O'Higgins esvaziar a caixa registradora. A garçonete colocou $11 no bar, uma quantidade que não satisfez o bandido, cuja altura foi estimada em um metro e noventa e cinco. - Me dá o resto - ele exigiu. A garçonete O'Higgins abriu uma gaveta com a sacola principal de dinheiro e a pistola calibre .22 embaixo dela. Ela apontou a arma para o homem e perguntou: - E agora, o que você quer fazer? O bandido, percebendo que encontrara um oponente à altura no The Bit, piscou quando viu a arma e saiu, deixando sua cerveja e os $11 para trás146.

Assim como uma jogada está sujeita à interpretação, também um resultado de caráter pode ser lido diferentemente por participantes diferentes. Em negociações entre nações, por exemplo, pode ser que não surja nenhum critério sem ambiguidade para um acordo sobre quem ganhou e quem perdeu147. A pontuação em alguns casos pode ser tão flexível que cada lado pode manter sua própria visão do resultado final. Desta forma, algumas lutas entre gangues de rua ri-

146. San Francisco Chronicle, 14 de julho de 1966. 147. F. Iklé, How Nations Negotiate (Nova York: Harper & Row, 1964:164ss.). Cf. tb. BOURDIEU, p. 207, apud PERISTIANY, J. Honour and Shame. Op. cit. 234

vais podem terminar com ambos os times sentindo que ganharam"". Esse tipo de presunção é facilitado por uma mistura variável de preocupação com o resultado físico ou manifesto, permitindo que um time enfatize o placar em atributos primários, enquanto o outro o faz em propriedades de caráter. O caubói dos duelos do Velho Oeste é especialmente instrutivo para demonstrar a cooperação e o respeito às regras necessários da parte de todos os participantes para que o jogo possa conseguir gerar caráter e ameaçá-lo, ou seja, para que o caráter entre no jogo. Ambos os lados devem levar o jogo a sério; ambos, como sugerido, precisam se tornar disponíveis, entregando-se voluntariamente para o jogo. Durante o combate que resulta, o herói, se acabar tendo uma vantagem fácil, deve desistir dela com desdém, restringindo-se a um meio de luta que não deixará que o vilão tenha nenhuma forma de escapar das expressões de caráter que resultarão. E o herói, depois de vencer um desafio ou um duelo, pode logo dar as costas ao adversário, sabendo que sua superioridade, uma vez estabelecida, não será desafiada de novo imediatamente, e que de qualquer forma tomar cuidados demais é algo indigno149. Tendo em vista essas sugestões sobre a dinâmica dó jogo de caráter, analisemos brevemente algumas das implicações. Aquele que deseja evitar eventos decisivos precisa evitar encontrões ou rastejar em segurança para longe daqueles que não foram evitados - seja ele o ofensor ou o ofendido. Quase todo mundo rasteja dessa forma, ainda que se diga que os oficiais do Kaiser quase nunca o faziam. Mesmo Casanova, que, de acordo com seu próprio relato, era um espadachim formidável e um cavalheiro de grande caráter, admite tais retiradas, comentando sobre elas durante uma ocasião em que a honra acabara de forçá-lo a um duelo com um desconhecido: 148. SHORT,J. & STRODTBECK, F. "Why GangsFight". Transaction, 1,1964, p. 26. 149. Essa estranha confiança decisiva no jogo limpo do inimigo recém-derrotado tem uma função social óbvia. Sem essa confiança, o domínio e a hierarquia não forneceriam um mecanismo social prático para estabelecer uma ordem temporária. Se os adversários em um encontrão começassem uma nova competição logo depois de terminar a primeira, nenhuma ordem poderia ser estabelecida. Todos estariam sempre engajados ou em lutar, ou em ficar de guarda cuidadosamente. De qualquer forma, a "autoexposição terminal" da parte do vencedor é uma jogada padrão para terminar uma ampla variedade de competições - embates de luta livre, touradas, duelos de caubóis, etc. 235


Tivemos um jantar agradável e conversamos alegremente juntos sem dizer uma palavra sobre o duelo, com a exceção de uma dama inglesa que disse, não me lembro em relação a que, que um homem de honra nunca deve se arriscar a se sentar para jantar num hotel a não ser que ele se sinta inclinado, se necessário, a lutar. A observação era muito verdadeira na época, quando era preciso sacar uma espada por qualquer palavra fútil e se expor às consequências de um duelo se não quiséssemos que até as damas apontassem o dedo do escárnio para nós130.

Uma outra implicação se segue à primeira. Ela tem a ver com "competições de competição". A tendência do indivíduo de evitar ocasiões em que o caráter é ameaçado o expõe a ser forçado por outra pessoa a entrar numa competição sobre se haverá ou não uma competição. O agressor, sabendo que sua vítima provavelmente procurará quase qualquer meio de evitar um acerto de contas, pode forçá-la a admitir uma exibição de sua fraqueza diante de testemunhas, enquanto o agressor demonstra sua própria bravura. O agressor, numa competição, pode começar ou cometendo uma ofensa que o outro não pode ignorar com facilidade, ou respondendo a uma ofensa pequena ou até microscópica de forma a atrair o ofensor quase inocente para uma peleja151. Se a vítima ainda se recusa a entrar na batalha, o agressor pode provocá-la com atos 150. The Memoirs ofjacques Casanova. Vol. 2. Nova York: Dover, 1961, p. 958. 151. L. Yablonsky (The Violent Gang. Nova York: Macmillan, 1962, p. 208-209), ao descrever tipos de membros de gangues, relata o extremo lógico: "[...] Outros jovens que podem ser incluídos na categoria de pertencimento marginal a gangues são os indivíduos sociopatas quase sempre prontos para lutar com qualquer gangue disponível. Eles procuram ou provocam a violência simplesmente, como eles descrevem, 'pelo barato ou ação'. Eles não são necessariamente membros de qualquer gangue violenta em particular, mas em alguns aspectos eles são membros de todas elas. Eles se juntam a gangues porque, para eles, gangues são uma oportunidade conveniente e de fácil acesso para a violência. Quando a gangue, enquanto um instrumento, não é apropriada, eles 'inventam' sua própria fornia de violência (por exemplo, os três homens que chutaram um homem até a morte por 'assobiar uma canção de que a gente não gostava'). Por exemplo, num padrão típico utilizado por esse tipo de jovem, ele se aproxima de um desconhecido com a provocação 'O que você disse sobre a minha mãe?' A vítima é então agredida antes que possa responder à pergunta, e é claro que não há nenhuma resposta apropriada para impedir o ataque". 236

cada vez mais insuportáveis, num esforço aparente ou para encontrar seu pavio ou para demonstrar que ela não tem um pavio. Falamos aqui de "incitar", "instigar", "afrontar"; quando o agressor é um subordinado, falamos de "insolência". Devemos repetir que, apesar deste tipo de agressão poder não ser comum, pelo menos na vida cotidiana de classe média, não obstante todos os contatos face a face entre indivíduos são ordenados por vários sinais antecipados de respeito mútuo, e essa ordenação pode facilmente ser transformada por um agressor num campo perigoso de ação interpessoal decisiva. Por exemplo, em qualquer lugar que o indivíduo vá, ele implanta uma exigência tácita de que os outros presentes manterão respeitosamente seus olhos, vozes e corpos longe do círculo imediatamente ao seu redor. Em todos os lugares, essas cortesias territoriais são mantidas automática e impensadamente; mas em todos os lugares elas oferecem muitos meios à disposição para um agressor (através da falha clara e demorada em conceder essas considerações) testar a honra do indivíduo. Da mesma forma, desconhecidos em lugares públicos são unidos por algumas obrigações mínimas de ajuda mútua, estabelecendo o direito de, por exemplo, perguntar a hora ou orientações para algum destino, ou até de pedir uni cigarro ou um trocado. Ao conceder tal pedido, o indivíduo pode perceber que seu maço inteiro de cigarros é tomado calmamente, ou todos os trocados em sua mão, enquanto seu olho é mantido pelo agressor para que a afronta seja ancorada numa percepção mútua reconhecida mutuamente. Vendedores ambulantes em ruas de favelas podem perder uma fruta em seus carrinhos da mesma forma insolente152. A acomodação mútua que ordena o tráfego humano pode então ser vista como algo que deixa vulnerável aqueles que a consideram autoevidente. Eu gostaria de citar por extenso uma ilustração ficcional oferecida por William Sansom. O cenário é um "clube" de bebidas londrino. O herói, e narrador, que toca piano no clube, é abordado de repente: Quando uma voz acima de mini diz: - Tu não vai tocar mais, amigo? 152. Apesar desses vários "logros" serem dirigidos contra um indivíduo, este muitas vezes serve em parte como símbolo de um grupo mais amplo - o mundo adulto, a autoridade policial, brancos, etc. 237


É um jovem que eu nunca vi antes, um garoto quase novo demais para estar num bar. A cabeça dele verga como um calombo de ossos num pescoço fino demais para suportá-lo. Ele veste roupas exageradas, e um tipo especial de penteado, como um porco-espinho. Ele empina seus ombros para que pareçam maiores. Os olhos dele são opacos como escamas de peixe morto. Ele cerra seus dentes como se estivesse enjoado. - Num instante. - eu digo a ele. O tom dele foi realmente insolente, mas a juventude serve como desculpa para muitas coisas. - Não demore muito então, amigo - ele diz, ainda me encarando fixamente com seus olhos de peixe morto. Então, atrás dele, eu começo a ver uma espécie de irmão gémeo - mas ele era apenas outro jovem vestindo o mesmo tipo de roupas. E então eu vi que havia mais seis ou sete no bar, ou sentados de pernas esticadas na mesa. Eu olhei para Belle [a proprietária] e ela deu de ombros, sem esperanças, do outro lado do salão - como se esse fenómeno repentino estivesse além de suas capacidades. - Nossa - eu disse para Marie, ignorando o jovem, que ainda estava parado ali olhando para mim -, temos companhia esta noite. - Vocês têm - o garoto disse tristemente -, vocês certamente têm - e ele foi embora para o bar, andando num passo conscientemente rígido. Lá ele disse alguma coisa para os outros, e todos eles olharam para mim e sacudiram a cabeça - mais urna vez, tristemente, como se eu estivesse realmente numa situação muito ruim [... ] Nós os observamos por um momento. Todas as olhadelas e gestos eram cuidadosamente agressivos. Eles esticavam as pernas forçando Andrew, que carregava uma bandeja de drinques, a dar a volta - e o observaram em silêncio enquanto ele fazia isso. Um deles se inclinou e pegou uma bandeja de batatas fritas da mesa de outra pessoa sem sorrir, e claramente sem se desculpar. Outro, no bar, começou a atirar caroços de azeitona nas garrafas. Belle pediu que parasse. Ele se desculpou com um gesto exagerado e atirou outro imediatamente.

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- Pelo amor de Deus, toque alguma coisa. - Belle disse. Eu me levantei. Falar sobre eles tão abertamente fora um erro. Eles sabiam que estavam sendo discutidos, e agora, quando me dirigi ao piano, viram que suas ordens foram obedecidas. Dava quase para sentir eles se exibindo. Então eu comecei a tocar as notas de algodão da Humoresque para distraí-los um pouco. É claro que não funcionou. A qualidade comum de todos esses jovens é sua vigilância. Eles sentam e observam tudo com um desgosto obtuso. Isto dá a eles aquele famoso olhar "murcho". Quando o meu tinido se estabeleceu, um deles perambulou na minha direção, mãos nos bolsos, queixo para baixo, e parou acima de mim. Ele simplesmente pronunciou, como uma ordem, o nome de um hit do momento. Tirando essa grosseria clara, o maior bicho-papão dos pianistas é alguém pedir outra música quando eleja está tocando - por isso eu cerrei meus dentes e tentei fechar meus ouvidos. Ele empurrou meu braço direito com seu cotovelo fazendo com que eu parasse de tocar e disse simplesmente: - Anda. - E repetiu, mais alto, seu pedido"153. Eu estou sugerindo que comportamentos insignificantes podem ser empregados como um convite sério para um encontrão ou acerto de contas. Um tipo de ato truncado deve ser mencionado especificamente. É o uso do estilo de ficar em pé ou andar como um convite ampfo para a ação para todos os outros presentes. Daí temos um "passo de delinquente" que, na verdade, comunica um desafio à autoridade dos adultos presentes, afirmando simultaneamente não apenas que a primeira jogada foi feita mas também que ela não foi enfrentada por aqueles a quem ela foi e é direcionada154. O caminhar especial do toureiro na arena, sandunga, é a estilização da mesma expressão.

153. SANSOM, W. TheCautious Heart. Nova York: Reynal & Co., 1958, p. 100-102. 154. Sobre esta e outras jogadas mistas empregadas por delinquentes, cf. o estudo útil de WERTHMAN, C. Ddinquency and Authority. Berkeley: University of Califórnia, 1964, p. 115 e cap. LV, "Gang Members and the Police" [dissertação de mestrado]. 239


a longo prazo. O papel da ação é longevo, mas seus realizadores duram apenas brevemente, exceto na televisão.

Já que são expressões ou comunicações, e não questões substantivas, que estão envolvidas nesses jogos, não há muito que impeça o símbolo de ter sua duração e visibilidade cada vez mais atenuadas até praticamente desaparecer. Como consequência, pode haver uma sequência de jogadas entre dois jogadores e o estabelecimento de um vencedor sem quase nenhuma atividade visível, como foi sugerido, é claro, na análise da comunicação de G.H. Mead. Anteriormente, eu sugeri que um indivíduo pode ganhar uma reputação, entre seus colegas, de alguém que procura a ação - sempre de olho em qualquer garota desejável que ele encontre, ou pronto para "tirar satisfação" da menor afronta, ou de ver uma aposta em qualquer coisa que aconteça. Da mesma forma, um indivíduo pode adquirir a reputação de sempre estar disponível para outros para um tipo particular de ação interpessoal, pronto a qualquer momento para servir como um teste definitivo de qualquer um que busque definição. O "pistoleiro" do Velho Oeste normalmente é retratado como o exemplo arquetípico. Jogadores de sinuca famosos também se encontram selecionados para esse papel. Gates "Apostou-um-miIhão"155 aparentemente atraía apostadores da mesma forma156. Hoje em dia, a polícia, estando comprometida (como já foi sugerido) com a obtenção de deferência imediata de todos os civis que encontra, e com obrigar essa exigência com uma disposição imediata de invocar sanções físicas, às vezes se encontra forçada nesse papel de testador. Estrelas de cinema que representam papéis de heróis durões podem ser utilizadas como testadores por aqueles que os encontram por acaso em lugares públicos. Músicos de jazz famosos que permitem "duelos de piano" são outro exemplo, pelo menos para aqueles que escrevem sobre eles. Não importa se um indivíduo constantemente procura competições de caráter ou é constantemente procurado para elas - podemos prever que ele não durará muito; qualquer um que tenha tais inclinações será um dia removido da competição pela operação da probabilidade. Quando cada jogada envolve uma aposta considerável, aquele que se arrisca persistentemente não deve planejar muito

157. Esses atos de insolência e insubordinação clara devem ser contrastados com atos corporais de deferência, atos que também são especializados, mas que servem para afirmar a d aposição atual do ator de aceitar o status quo.

155. Cf. nota 80 [N.T.]. 156. Cf. BEEBE, L. The Big Spenders. Nova York: Doubleday, 1966, p. 85.

158. Cf. BRYSC N, F. The Point of Honor in Sixteenth-Century Italy... Op. cit, cap. IV. Como sugerido, o ofendido não podia desafiar o ofensor porque isto daria ao ofensor a escolha das armas. Assim, pressupunha-se que os ofensores eram honrados o bastante para permitir sua manipulação para o papel de desafiador.

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Assim como existe a especialização de pessoas, existe a especialização de sinais. Afrontas particulares podem ser definidas como aquelas que um indivíduo honrado não deve tolerar. Há pontos críticos reconhecidos por todos aqueles envolvidos como pontos em que as coisas terão ido longe demais; quando eles são atingidos, a pessoa ofendida deve recusar desculpas, sentir as coisas seriamente, e tomar medidas para restabelecer a ordem normativa se quiser preservar sua honra. Entre as várias palavras que um caubói honrado pode ouvir, ele precisa, por mais pacíficas que sejam suas intenções, reconhecer aquelas poucas que todos sabem que são palavras "de briga". Quando tal função especializada é concedida a atos, eles podem ser empregados por agressores como uma chamada inevitável à ação. Realizados de forma calculada e clara, esses atos testam a honra do receptor, quer dizer, sua prontidão independentemente do preço a manter os códigos pelos quais ele vive. Todas as partes compreendem a ofensa real como algo incidental, uma mera conveniência; a importância principal do ato é servir como um teste frontal da reivindicação tácita de honra do indivíduo157. Assim, um enunciado convencionalizado, "O senhor mentiu na minha cara", era a mentita tradicional - o ato através do qual uma pessoa ofendida forçava o ofensor a desafiar o orador a um duelo158. Cuspir no rosto do outro é um exemplo mais comum e menos cavalheiresco. Nas relações raciais americanas atuais, o uso por um branco da palavra "preto" [nigger] é igualmente provocador. Outros atos servem como testes em grupos mais circunscritos. Um professor numa escola de favela urbana que afirma a regra da escola contra atrasos fica vulnerável a um aluno que entra atra-

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sacio e o encara friamente para enfatizar o desafio1"9. Esses atos de teste são jogadas favoritas em competições de competição. Assim como um teste pode ser criado a partir de um ato ofensivo realizado por um indivíduo contra outro, ele também pode ser gerado pela exigência, sob ameaça, que um indivíduo aja de uma forma que ele considera inapropriada. Para estabelecer um indivíduo numa posição subordinada, um agressor pode coagi-lo a realizar abertamente uma obediência ou serviço indigno baseado na pressuposição que, uma vez que ele ceda a isto, ele poderá (e sabe que poderá) a partir de então atender a qualquer exigência feita a ele160. Como ocorre com o jóquei, consideramos que a "coragem" foi perdida, mas dessa vez em relação à atividade interpessoal e sua ordem cerimonial. E, é claro, enquanto ambas as parte compartilharem essas crenças, o jogo social será jogado dessa forma. Ao analisar a ação, eu disse que, apesar de haver uma relação entre ação e cará ter, algumas formas de cará ter surgem em oposição ao espírito da ação. A mesma qualificação deve ser feita em relação à ação interpessoal e competições de caráter. Há situações em que a recusa de um indivíduo de ser envolvido numa peleja de honra é aprovada, e os desafiantes são acusados de "imaturidade". Sempre é possível para o indivíduo se recusar a aceitar o esquema de referência ritual inteiro e, além do mais, fazer isso de forma ousada, especialmente quando seus semelhantes apoiam este estilo de resposta: Mas devemos enfatizar que, apesar dos estereótipos em vigor, nem todas as gangues juvenis são orientadas para conflitos, e os sistemas de valor podem variar entre elas, como entre outros agrupamentos humanos. Uma gangue "de escapismo" [retreatest], que constrói seu sistema de valores ao redor do efeito das drogas, apresenta um contraste dramático. Apesar de serem criticados e ridicularizados repetidamente por outras gangues devido à sua covardia e falta de hombridade, os escapistas raramente respondiam a pro159. Um incidente deste tipo é descrito em WERTHM \N, C. Delinquency and Authority. Op. cit., p. 68-69. 160. Cf. o tratamento de "testes de obediência" em GOFFMAN, E. Asylums. Op. cit., p. 17-18. 242

vocações, e sempre fugiam do combate. Eles não se preocupavam com sua reputação de lutadores - pois não a tinham - e não a consideravam importante - na verdade, eles pensavam que as gangues orientadas para conflitos eram "caretas". Ao serem desafiados diretamente a se juntar a outras gangues de brancos para repelir os protestos de negros "entrando n'água" numa praia de Chicago161, eles "viajaram" com pílulas e jogaram baralho despreocupadamente durante todo o incidente"162.

161. Até os anos 1960, negros não podiam se banhar nas praias de Chicago. No inicio dessa década houve protestos organizados em que grupos de negros entravam sem permissão na água dos Grandes Lagos [N.T.]. 162.SHORT, J. & STRODTBECK, F. "Why Gangs Fight". Op. cit., 27-28. Cf. tb. seu "The Response of Gang Leaders to Status Threats". American Journal ofSociology, LXVIII, 1963, p. 576-577. Um exemplo literário é oferecido no romance de Louis Auchincloss, Sybil (Nova York: Signet, 1953, p. 122-123). Um homem (Philip), em seu clube com sua amante, chama um conhecido em particular (Nicholas Cummings) e pergunta se ele gostaria de conhecê-la. Nicholas se recusa, e o seguinte diálogo ocorre: "- É melhor tomar cuidado, Cummings - ele disse ameaçadoramente. - Você está falando sobre a moça com quem pretendo casar. Mas Nicholas simplesmente continuou a encará-lo com seu olhar gelado. - É difícil para as pessoas saberem disso, não é - ele perguntou -, quando você ainda está casado com minha prima? Houve uma pausa pesada. - Bom, de qualquer forma - Philip disse cuidadosamente, sem saber quais são as exigências da honra numa situação tão constrangedora - é melhor você parar com essas piadinhas sobre Julia. A não ser que você queira perder os dentes. Entretanto, Nicholas foi impiedoso. - Você considera o termo 'amante' uma 'piadinha'? - ele perguntou. - Sinto muito. Achei que era preciso. Você não vai negar que ela é sua amante, vai? Porque eu devo te dizer que, como advogado de sua esposa, ainda que ela não tenha me pedido isto, eu me ocupei em descobrir exatamente qual é sua relação com a senhorita Anderson. A palavra 'amante' parece explicá-la perfeitamente. Você tem alguma melhor? De qualquer forma, eu devo insistir no meu direito de descrevê-la dessa forma sempre que eu tiver ocasião de discutir os seus negócios com aqueles que possam estar preocupados com isto. Se você tiver alguma objeção, você está livre para pedir um ressarcimento, seja legalmente num processo de calúnia, ou ilegalmente, como você ameaça, através de um ataque à minha pessoa. Philip agora respirava com dificuldade. Não havia nenhuma regra para lidar com uma pessoa que desafiava de forma tão ousada os preceitos mais elementares da boa camaradagem. - Você gostaria de ir lá fora - ele perguntou - e resolver esta questão como um cavalheiro? - Não, eu certamente não gostaria -, respondeu Nicholas. - Eu não vim para o meu clube para te dar uma oportunidade de começar uma briga na rua. Philip ficou parado por mais um momento, olhando para ele, incerto. - Ah, vá para o inferno - ele respondeu. - Malditos advogados - ele disse quando se afastou. Pilantras. Todos eles". 243


Algo semelhante ocorre em bares de classe média, onde uma pessoa ofendida pode sentir que seria indigno dela "pedir satisfações", pelo menos com o adversário particular do momento - democratizando assim a noção cavalheiresca de que só vale a pena desafiar nossos semelhantes sociais. A vítima se contentará em passar um breve sermão a seu adversário sobre o quanto ele é "doente". Em mundos sociais nos quais a honra é altamente valorizada, e os homens devem estar preparados para arriscar suas vidas para salvar suas fachadas, as modas da moralidade podem mudar rapidamente, e o ato de provar tais atributos como nossa "masculinidade" podem ter sua importância reduzida163. Houve até o desenvolvimento do ideal literário do "anti-herói", que confiantemente recusa todas as oportunidades de exibir virtudes custosas, demonstra um orgulho subterrâneo em escapar de suas obrigações morais, e nunca se arrisca. É claro que quando um indivíduo recusa um desafio com frieza, 163. C. Brown (Manchild in thePromtsed Land. Op. cit.,p. 211,253-256, 261) oferece uma boa descrição das formas pelas quais jovens do Harlem nos anos de 1930 e 1940 aprendiam sobre a necessidade de defender seu dinheiro e suas mulheres com lutas letais, e como, nos anos 1950, em conjunção com a importância crescente das drogas, o poder coercivo do código declinou notavelmente. Esta é apenas uma versão pequena de histórias maiores. O duelo de honra, por exemplo, ainda que bastante popular na França, ocorria muito raramente nos estados do Norte, sendo bastante rejeitado pelos cidadãos. Na Inglaterra, em 1844, o artigo do Decreto do Motim, que obrigava os oficiais a manterem sua honra através de duelos, foi derrubado e substituído por decretos que os proibiam. O terceiro dos novos artigos esboça muito bem a perspectiva antiofensa moderna: "Expressa-se aprovação da conduta daqueles que, tendo o infortúnio de ofender, ou ferir ou insultar outros, explicam francamente, desculpam-se ou oferecem indenização por isso, ou daqueles que, ao serem ofendidos, aceitam cordialmente explicações ou desculpas francas pelas ofensas; ou, se tais desculpas não são oferecidas nem aceitas, submetem a questão ao oficial em comando; e, finalmente, todos os oficiais e soldados são absolvidos de desgraças e desvantagens se, estando dispostos a oferecer ou aceitar tais indenizações, recusam-se a aceitar desafios, pois eles terão apenas agido como é apropriado para o caráter de homens honrados, e realizaram seu dever como bons soldados que se sujeitam à disciplina" (apud BALDICK, R. The Duel. Op. cit., p. 114). Este é o comentário de Baldick: "De forma surpreendentemente repentina, esses artigos, que foram, reconhecidos como constituindo um 'Código de Honra' britânico, combinados com a determinação óbvia de juizes e júris para condenar duelistas por assassinato, com o sarcasmo da imprensa, e com a pressão cabal da opinião pública, conseguiram suprimir os duelos na Grã-Bretanha [...] o duelo como uma instituição honrada, respeitada e próspera deixou de existir, para todos os propósitos, na Grã-Bretanha na metade do século XIX" (ibid.). 244

ou não fica raivoso por uma ofensa, ele está demonstrando autocontrole sob circunstâncias difíceis, e assim estabelece um certo caráter, mas não do tipo heróico. Resumindo, apesar das competições de caráter que podem ser disputadas sem envolver a força física não serem incomuns, as variedades clássicas do pugilato e do duelo de caubóis pertencem, em grande parte, a locais cinematográficos. Não obstante, a lógica de lutas e duelos é uma característica importante de nossa vida social cotidiana. A possibilidade, por menor que seja, de que as coisas possam degenerar nessa direção oferece às pessoas presentes mutuamente uma razão de fundo para ocultar expressões de hostilidade; aqui elas têm um guia constante para aquilo que não se permitirá que aconteça. (De fato, uma piada sobre "resolver lá fora" pode ser usada como uma jogada estratégica para restabelecer a falta de seriedade se houver um desenvolvimento ameaçador no discurso social.) Através de várias acomodações conjuntas, a voz de nossa razão prevalece ao custo de quase nenhuma desonra. 10. Conclusões A visão sociológica tradicional do homem é otimista. Quando você faz com que a besta deseje objetivos delineados socialmente sob os auspícios do "interesse próprio", é preciso apenas convencê-la a regular suas atividades de acordo com um conjunto elaborado de regras básicas. (Eu quero adicionar que entre essas regras são importantes as "propriedades situacionais", ou seja, padrões de conduta através cuja manutenção significa que ela expressa respeito pela situação atual.) Correspondentemente, o principal problema que o indivíduo pode causar é não adquirir desejos apropriados, ou voluntariamente não respeitar as regras para obter quaisquer desejos que ele tenha adquirido. Mas obviamente é preciso tratar de outras dificuldades. Este ensaio cuidou de uma delas. Esteja um indivíduo preocupado em atingir um objetivo pessoal ou manter uma norma reguladora, ele precisa estar em comando físico de si mesmo para fazer isso. E há momentos em que sua atenção às contingências na situação perturba seus negócios com os tópicos em questão: sua capacidade de realizar tarefas mentais e físicas ordinárias é abalada, e sua obediência costumeira a princípios morais básicos é enfraquecida. A própria inteligência que permite a ele ten245


tar prever e fazer cálculos na busca de seus objetivos, as próprias qualidades que fazem dele algo mais complexo do que uma simples máquina, garantem que em certos momentos aquilo que ele inteligentemente traz à mente perturbará sua capacidade de agir e atrapalhará sua moralidade normal. A habilidade de manter o autocontrole sob circunstâncias difíceis é importante, como o são, portanto, a frieza e firmeza moral necessárias para que isto seja feito. Se a sociedade quiser utilizar o indivíduo, ele precisa ser inteligente o bastante para apreciar os riscos sérios em que ele está envolvido e ainda assim não se tornar desorganizado ou desmoralizado por essa apreciação. É apenas então que ele trará para momentos da atividade da sociedade a estabilidade e continuidade que eles exigem para manter a organização social. A sociedade apoia esta capacidade através de pagamentos morais, atribuindo caráter forte àqueles que demonstram autocontrole, e fraco àqueles que são facilmente distraídos ou derrotados. Podemos compreender então o paradoxo de que quando um feito imoral é realizado por um plano bem executado que exclui tentações impulsivas, podemos quase admirar o culpado; podemos pensar que ele tenha um caráter muito mau, enquanto apreciamos que ele não tem caráter fraco164. Uma oportunidade central de demonstrar caráter forte é encontrada em situações decisivas, e tais situações necessariamente arriscam o indivíduo e seus recursos. (Um destino já decidido que agora está sendo assentado também é útil, mas ainda mais caro.) É provável então que o ator evite esses riscos e tente rastejar para longe de ocasiões que ele não evitou. Afinal, em nossa sociedade, devemos sobreviver aos momentos, e não vivê-los. Além disso, a própria atividade decisiva muitas vezes perturba rotinas sociais e não pode ser tolerada em grandes quantidades por organizações. (Assim, na Europa, os duelos prosperaram sob monarquias, mas os monarcas e seus principais generais lideraram as tentativas de conter a instituição, parcialmente devido ao custo que os duelos causavam a oficiais importantes.) Na vida doméstica e profissional, a maior parte desses perigos parece ter sido eliminada com segurança.

164. Um bom exemplo recente é oferecido pelos heróis do planejamento que executaram o Grande Roubo de Trem na Inglaterra. Sobre o respeito que eles obtiveram, cf. GOSLING, J. & CRAIG, D. The Great Train Robbery. Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1965, p. 173-175. 246

Entretanto, há alguma ambivalência quanto à vida segura e sem momentos. Alguns aspectos do caráter podem ser afirmados facilmente, mas há outros que não podem ser nem expressados nem ganhos em segurança. Pessoas cuidadosas e prudentes devem então abandonar a oportunidade de demonstrar alguns atributos valorizados; afinal, dispositivos que livram os momentos do indivíduo da decisividade também os livram de novas informações a seu respeito - livram-nos, resumindo, de expressões significativas. Como resultado, a pessoa prudente perde conexão com alguns dos valores da sociedade, alguns dos próprios valores que retraiam a pessoa como ela deveria ser. Por isso, algumas apostas práticas podem ser procuradas, ou, se não procuradas, pelo menos aproveitadas quando elas ocorrem no curso regular das atividades. E realizamos atividades que são consideradas fora da rotina normal, evitáveis se quiséssemos, e cheias de riscos e oportunidades dramáticos. Isto é a ação. Quanto maior a decisividade, mais séria a ação. A decisividade coloca o indivíduo numa relação muito especial com o tempo, e a ação séria o leva a essa relação voluntariamente. Ele precisa se preparar para estar numa posição de entrar nela, e então entrar. As circunstâncias em que ele se arremessa dessa forma precisam envolver questões que são problemáticas e consequentes. E - no caso mais puro - suas atividades sob essas circunstâncias precisam ser resolvidas ou pagas pela duração atual daquilo que para ele é uma experiência subjetivamente contínua15. Ele deve se expor ao tempo, a segundos e minutos passando fora de seu controle; ele deve se entregar à resolução rápida e certa de um resultado incerto.

165. As pessoas diferem em até que ponto elas prendem a respiração por uma experiência continua. Fanáticos e crentes verdadeiros parecem estar inclinados a esticar um pouco as coisas, mantendo uma duração de experiência e entusiasmo quando outros exalariam e passariam para outras jogadas da vida. É claro que poetas e religiosos tendem a argumentar que se o indivíduo compara o tempo bastante considerável em que ele precisa passar morto com o tempo relativamente breve em que ele pode andar e passear pelo mundo, ele poderia muito bem encontrar uma razão para enxergar toda a sua vida como um jogo muito decisivo de duração muito curta, e cada segundo dele deveria enchê-lo de ansiedade sobre aquilo que está sendo gasto. E, na verdade, nosso tempo razoavelmente breve está se esgotando, mas parece que só conseguimos prender nossa respiração por segundos e minutos dele. 247


E ele deve se entregar ao destino nessa forma quando ele poderia evitá-lo a um custo razoável. Ele precisa apostar. A ação séria é um passeio sério, e passeios desse tipo são praticamente sempre excluídos da vida cotidiana. Como foi sugerido, todo indivíduo participa de atos consequentes, mas a maioria desses atos não é problemática, e quando eles o são (como quando se toma uma decisão profissional que afeta a vida do indivíduo), a determinação e assentamento dessas apostas muitas vezes chegam depois de décadas, e então já estarão obscurecidos pelos desfechos de muitas de suas outras apostas. A ação, por outro lado, traz o risco e a resolução no mesmo momento aquecido da experiência; os eventos da ação inundam o agora momentâneo com suas implicações para a vida que se segue. A ação séria é um meio de obter alguns dos benefícios morais da conduta heróica sem assumir todos os riscos de perda que a oportunidade de heroísmo normalmente envolve. Mas a própria ação séria envolve um preço considerável. Isto pode ser minimizado pelo indivíduo ao participar da ação comercializada, em que a aparência de decisividade é gerada de forma controlada numa área da vida calculada para isolar suas consequências do resto da vida. O custo dessa ação pode ser apenas uma pequena taxa e a necessidade de sair da cadeira, ou da sala, ou da casa. É aqui que a sociedade oferece uma outra solução para aqueles que querem elevar seu caráter, mas diminuir seus custos: a manufatura e distribuição de experiência indireta através da mídia de massa. Quando examinamos o conteúdo da experiência indireta comercializada, descobrimos uma uniformidade assustadora. Apostas práticas, competições de caráter e ação séria são retratados. Estas podem envolver faz de conta, biografias, ou uma visão de outra pessoa atualmente exercendo uma atividade decisiva. Mas parece que é apresentado sempre o mesmo catálogo morto de exibições animadas . Em 166. James Bond recebe uma missão decisiva. Ele se dirige a seus superiores num clube exclusivo e lida muito firmemente com seus recursos. James Bond aluga um quarto num hotel chique num balneário chique numa parte chique do mundo. James Bond conhece uma garota inatingível e então rapidamente conquista a garota, e depois disso ele demonstra como consegue superar friamente o assassinato dela no quarto. James Bond enfrenta um adversário com carros, cartas, helicópteros, pistolas, espadas, arpões, engenhosidade, conhecimento de vinhos, judo e habilidade verbal. James Bond esnoba o homem prestes a torturá-lo com um ferro quente, etc. 248

todos os lugares, recebemos oportunidades para nos identificarmos com pessoas reais ou fictícias engajadas em vários tipos de decisividade, e para participarmos indiretamente dessas situações. Por que a decisividade, em todas as suas variedades, é um ingrediente tão popular da vida ilusória? Como foi sugerido, ela oferece excitação sem custo, se o consumidor puder se identificar com o protagonista167. Esse processo de identificação parece ser facilitado por dois fatores. Primeiro, atos decisivos, por definição, envolvem o ator no uso de facilidades cujo agente completo e eficaz é o próprio ator. Um único indivíduo é aquele que toma as decisões e as executa, a unidade relevante de organização. Supostamente, é mais fácil se identificar com um indivíduo, real ou fictício, pelo menos na cultura burguesa, do que com um grupo, uma cidade, um movimento social, ou uma fábrica de tratores. Segundo, a decisividade envolve um jogo de eventos que podem ser iniciados e realizados num espaço e tempo pequenos o bastante para serem completamente testemunhados. Diferente de fenómenos como a ascensão do capitalismo ou a Segunda Guerra Mundial, a decisividade é algo que pode ser assistido e retratado em sua totalidade, do começo ao fim em uma sessão; diferente desses outros eventos, ela é inerentemente apropriada para ser assistida e retratada. Vejamos a seguinte história contada por um jornalista negro, atravessando os Estados Unidos de carro para escrever uma matéria sobre como seria tal viagem para uma pessoa como ele:

167. É claro que há grandes diferenças através do tempo e entre culturas diferentes em relação àquilo que as pessoas se permitirão desfrutar indiretamente. Eu não acho que assistir a execuções hoje seja considerado um grande privilégio, mas não há dúvida de que isto já foi um exemplo melhor de arrepios através de participação indireta. Assim, na Inglaterra do século XVIII: "A curiosidade dos homens sobre a morte levou os intelectuais e as pessoas de destaque a se fascinarem com o cadafalso. Pepys era um espectador frequente, e dizem que Boswell, o biógrafo de Johnson, usou seu grande dom para fazer amigos com os famosos com o Protetor de Newgate simplesmente para conseguir bons lugares nos enforcamentos. Em uma ocasião, quando ele pôde cavalgar para Tyburn com o condenado, ele se sentiu tão sortudo quanto um torcedor moderno com um par de ingressos para uma decisão mundial dos pesos pesados. Seu prazer foi compartilhado por Sir Joshua Reynolds, na carruagem atrás dele" (ATHOLL, J. Shadow ofthe Gallows. Op. cit., p. 53). 249


Eu não fiquei muito tempo em Indianápolis, nem em Chicago, que agora estava nas garras de um inverno terrível nos Lagos. Então eu estava atravessando Ohio, dirigindo devagar, cinto de segurança apertado na minha cintura. No meio da tarde eu vi um carro da polícia se aproximando. Eu olhei para meu velocímetro e vi setenta, o limite. Eu me mantive nessa velocidade, esperando que o policial me ultrapassasse, mas quando olhei para trás vi que ele estava dirigindo no meu ritmo. Então ele sinalizou para que eu parasse. Depois do Kentucky, eu fora seguido por policiais ou patrulheiros na Georgia, Tennessee e Mississippi; eu fora parado em Illinois e na Califórnia. Seguido, parado, e informado que eu era um homem negro sozinho num carro grande, t vulnerável para diabo. Eu não aguentava mais. Eu arranquei o cinto de segurança e abaixei a janela. Isso não me deu espaço suficiente, por isso eu praticamente chutei a porta para abri-la. - Qual é o problema? - eu gritei para o policial. Ele não respondeu enquanto andava para o carro. E então eu decidi entrar com tudo - meu corpo, também, se ele o quisesse -, pois eu não toleraria mais abusos. - Mostre-me seus documentos. - Eu perguntei qual é o problema. - Isso não era o que ele queria. Segundo o ritual, eu tinha que ter entregue meus documentos para ele sem nenhuma palavra. - Eu quero ver seus documentos. Eu os dei para ele, sentindo o fedor de um homem prestes a exercer a insolência da profissão. Era o velho jogo: "você é negro, eu sou branco, e também sou um tira". Ele mexeu nos documentos e então, inclinando-se casualmente sobre a janela, disse: -John, qual é a sua profissão? Eu ri. O que é que a profissão tem a ver com uma suposta violação de tráfego? Será que a natureza do meu trabalho indicaria para ele se eu tinha dinheiro o bastante para suborná-lo? Será que era para ele saber que eu era o "tipo certo" de negro, aquele que tem conexões políticas que poderiam deixar as coisas ruins para ele? Será que eu de-

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via ser desempregado e estar transportando drogas, um cadáver ou meninas através da divisa do estado? Policiais e patrulheiros dos Estados Unidos, quando vocês tiverem um dia devagar, sempre poderão encontrar um ou dois negros passeando pelo seu estado. Alegrem esse dia agindo abertamente como vocês são. - Meu nome - eu gritei - é Senhor Williams. - Eu tenho certeza de que tiras e patrulheiros usam o primeiro nome com muitas pessoas brancas, mas eu saquei este aqui. "John" era sinónimo de "garoto"168. Ele tirou o braço da janela. Eu joguei minha autorização de viagem nele. Eu o observei enquanto ele a leu, e pensei, não, eu não sou o "tipo certo" de negro, nem vou te subornar, e estou a cinco segundos de me comprometer completamente - o que significa a cinco segundos de te quebrar a cabeça. Ele me olhou do topo da página. - Sr. Williams, o senhor estava andando a oitenta na estrada. Quando eu te alcancei, o senhor estava a oitenta e quatro. -Você está mentindo. Eu estava a setenta. Oitenta? Prenda-me e prove isso. - Sr. Williams - Estou cansado de toda esta perseguição de vocês. - Sr. Willif ms - Vocês exageram tanto com essas palhaçadas que vão acabar se dando mal. Outros carros diminuíam quando passavam por nós. O patrulheiro agora parecia ansioso. Sim, minha raiva me fazia tagarelar, mas eu estava pronto para ir. E mais, apenas pelos insultos que eu falei, ele teria me prendido se estivesse certo. Em vez disso, ele voltou para o seu carro e eu segui em frente — a setenta milhas por hora" .

168. Nos Estados Unidos, especialmente nos estados do sul, quando um branco usa o termo "garoto" ("feqy") para se referir a um negro, isto quase sempre tem uma conotação racista [N.T.]. 169. WILLIAMS, J. "This Is My Country Loo", II. Holiday, set./1964, p. 80. 251


O Sr. Williams realmente teve essa experiência e depois ele a disponibilizou, e disponibilizou a si mesmo, numa revista popular. Uma reportagem dramática cobre muito bem os eventos relevantes, como o faria uma versão dramática de palco. Nós, leitores, nos envolvemos indiretamente, confortavelmente distantes de nossa vida normal. O que para ele é uma competição de caráter, um momento da verdade, para nós é um meio de massagear nossa moralidade. Quaisquer que sejam as razões para nosso consumo de experiência indireta, a função social de fazer isto é clara. Recebemos em segurança homens honrados em suas cenas de decisividade com os quais nos identificamos sempre que damos as costas a nossos mundos reais. Através desta identificação, o código de conduta afirmado em atividades decisivas - um código caro ou difícil demais de manter completamente na vida cotidiana - pode ser esclarecido e reafirmado. Asseguramos um esquema de referência para julgar atos cotidianos, sem termos que pagar suas penalidades. A mesma figura-para-identificação muitas vezes participa dos três tipos de atividade decisiva: tarefas perigosas, competições de caráter e ação séria. Portanto, podemos facilmente passar a acreditar numa conexão intrínseca entre elas, de forma que aquele a quem o caráter leva a um tipo de atividade decisiva será o tipo de pessoa no tipo de vida que também considera necessário e desejável participar dos outros dois aspectos. É fácil deixar de rer que a afinidade natural do herói para todos os tipos de decisividade provavelmente não pertence a ele, mas sim àqueles entre nós que participam indiretamente de seu destino. Nós moldamos e preenchemos essas figuras românticas para satisfazer nossa necessidade, e nossa necessidade é de economia - uma necessidade de entrar em contato indireto com o maior número de bases de caráter possível pelo mesmo preço de entrada. Um indivíduo vivo desencaminhado o bastante para procurar todos os tipos de decisividade apenas adiciona carne e ossos para algo que surgiu como um pacote para consumo. Isso sugere que regras de organização social podem apoiar e ser apoiadas por nosso mundo indireto de decisividade exemplar. Portanto, o herói de caráter provavelmente não será o homem na rua: Pensem na pressão sobre nosso vocabulário moral se pedíssemos a ele para produzir mitos heróicos de contado-

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rés, programadores e executivos de recursos humanos. Nós preferimos caubóis, detetives, toureiros e pilotos de corrida, porque esses tipos incorporam as virtudes que nosso vocabulário moral está equipado para celebrar: realização individual, aventuras e intrepidez1™.

Já que o retrato é necessário, é preciso encontrar um lugar para o retratista. Por isso, nas bordas da sociedade, há poças de pessoas que aparentemente acham razoável se engajar diretamente nos feitos arriscados de uma vida honrada. Ao se remover cada vez mais da substância de nossa sociedade, elas parecem agarrar cada vez mais certos aspectos de seu espírito. Sua alienação de nossa realidade as liberta para serem sutilmente induzidas a perceber nossas fantasias morais. Como já foi sugerido sobre delinquentes, elas de alguma forma cooperam ao encenar uma cena na qual projetamos nossa dinâmica de caráter: O delinquente é o homem renegado. Sua conduta pode não apenas ser vista negativamente, como um dispositivo para atacar e derrogar a cultura respeitável; mas ela pode ser vista positivamente como a exploração de modos de comportamento que são tradicionalmente simbólicos da masculinidade desimpedida, aos quais a cultura de classe média renuncia porque são incompatíveis com seus objetivos, mas que não deixam de ter uma certa aura de glamour e romance. É por isto que eles também entram na cultura respeitável, mas apenas em formas disciplinadas e atenuadas como os esportes organizados, em jogos de fantasia ou faz de conta, ou indiretamente como em filmes, televisão e histórias em quadrinhos. Não permitimos que eles interfiram com os negócios sérios da vida. O delinquente, por outro lado, ao renunciar a estes negócios sérios, como definidos pela classe média, está mais livre para desviar estas correntes subterrâneas de nossa tradição cultural. O ponto importante para nosso propósito é que a resposta delinquente, por mais "errada" e "reles" que seja, ainda faz parte do

170. BERGER, B. "The Sociology of Leisure: Some Suggestions". Industrial Relations, vol. l, n. 2, 1962, p. 41. L, Yablonsky (The Violent Gang. Op. cit., p. 226-227) afirma algo semelhante numa discussão daquilo que ele chama de "herói sociopata". 253


conjunto de respostas que não ameaçam sua autoidentificação como um homem171.

Apesar das atividades decisivas muitas vezes serem respeitáveis, há muitas competições de caráter e cenas de ação séria que não o são. Mas estas são as ocasiões e lugares que mostram respeito pelo caráter moral. Não encontramos locais de adoração apenas em cordilheiras que convidam o alpinista, mas também em cassinos, salões de sinuca e pistas de corrida; pode ser que a sensibilidade moral seja fraca exatamente nas igrejas, onde há uma grande garantia de que nada decisivo ocorrerá. Ao procurar onde a ação está, chegamos a uma divisão romântica do mundo. Em um lado estão os lugares seguros e silenciosos, o lar, o papel bem regulado nos negócios, na indústria e nas profissões; no outro estão todas as atividades que geram expressão, exigindo que o indivíduo dê a cara para bater e se coloque em perigo por um momento passageiro. É a partir desse contraste que confeccionamos quase todas nossas fantasias comerciais. É a partir desse contraste que delinquentes, criminosos, apostadores profissionais e esportistas ganham seu respeito próprio. Talvez este seja o pagamento em troca do uso que fazemos do ritual de suas exibições. Um último ponto: a experiência indireta restabelece nossa conexão com os valores relacionados ao caráter. O mesmo ocorre com a ação. Então, a ação e a experiência indireta, tão diferentes na superfície, parecem estar aliados de perto. Posso citar alguma evidência. Vejamos as roupas. Roupas femininas são planejadas para serem "atraentes", o que deve significar, num ou outro sentido, que o interesse de homens não especificados deve ser atraído. E com essa atração, temos a base para um tipo de ação. Mas a probabilidade real

171. COHEN, A. Delinquent Boys.Glencoe: The Free Press, 1955, p. 140. Aqui dificilmente poderíamos encontrar um exemplo melhor do que o escritor Norman Mailer. Seus romances apresentam cenas de deveres decisivos, competições de caráter e ação séria; seus ensaios expõem e exaltam os riscos, e aparentemente em sua vida pessoal ele demonstra uma certa tendência a definir tudo, de seus casamentos a seus encontros sociais, em termos da linguagem e estrutura do jogo da luta. Quaisquer que sejam as recompensas e os custos da orientação da vida a apostas, ele parece tê-los colhido. É claro que, nessa mitificação da própria vida, Hemingway foi o campeão anterior. 254

dessa ação ocorrer muitas vezes é muito baixa. Reforçamos assim fantasias, mas não a realidade. Uma versão mais clara dessa mesma provocação indireta é o grande número recente de vendas, para caubóis sem cavalos, de chapéus de vaqueiro, botas de salto alto, calças Levfs e tatuagens172. Delinquentes que carregam facas e são "maquinados" exibem da mesma forma uma orientação maior à ação, mas aqui talvez as aparências tenham mais chance de se intrometer na realidade. As loterias, os "números" e o bingo de cassinos são expressões comercializadas de apostas improváveis oferecidas a um preço muito pequeno. O valor esperado da jogada é, obviamente, muito menor até do que o preço, mas recebemos uma oportunidade para fantasias agradáveis de ganhos milionários. Aqui a ação é, ao mesmo tempo, indireta e real. Quando as pessoas vão para onde a ação está, elas muitas vezes vão para um lugar onde há um aumento não das chances enfrentadas, mas das chances pelas quais elas serão obrigadas a se arriscar. Se a ação realmente ocorrer, é provável que ela envolva alguém como elas, mas outra pessoa. Então, elas foram para um lugar onde o envolvimento de outra pessoa pode ser assistido de perto e desfrutado indiretamente. E claro que a comercialização representa a mistura final entre fantasia e ação. E ela tem uma ecologia. Nos fliperamas de assentamentos urbanos e balneários de verão pode-se alugar cenas em que o cliente pode ser a estrela de apostas animadas por serem muito levemente consequentes. Aqui, uma pessoa atualmente sem conexões sociais pode inserir moedas em máquinas de habilidade para demonstrar às outras máquinas que ela tem qualidades de caráter aprovadas socialmente. Esses pequenos espasmos nus do eu ocorrem no fim do mundo, mas lá no fim estão a ação e o caráter.

172. Cf., p. ex., POPPLESTONE, J. "The Horseless Cowboy". Trans-Actions, mai.jun./1966. 255


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