A divina arte das artes

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4. A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

ÃO há dúvida de que o livro impresso consubstanciou a mais importante estratégia de afirmação de uma nova política e de uma nova cultura nos séculos XV e XVI, no entanto, ao cumprir a primordial missão literária dos seus autores, esse mesmo livro assumiu o estatuto de objecto de arte. E Jorge Peixoto chama a atenção para o facto quando defende a ideia de que “o livro tem um valor em si” e, por isso, naturalmente “provoca a mesma emoção estética que qualquer notável pintura ou escultura” 100. Mas, se já Albino Forjaz de Sampaio afirmava que a tipografia foi um veículo de beleza 101 e Aquilino Ribeiro referia que a idade de ouro do livro tinha sido indiscutivelmente o século XV e os três primeiros quarteirões do século XVI, para apelar ao reatamento da tradição de uma arte que “tão barbaramente se mercantilizou” 102, a verdade é que o trabalho de muitos estudiosos, ao longo dos anos, pouco ultrapassou a tendência para organizar a melhor bibliografia geral portuguesa, descurando, quase sempre, o papel relevante do livro no âmbito da história da arte. Sobre esta questão, José V. de Pina Martins, nalguns dos seus trabalhos sobre o livro antigo, foi chamando à atenção dos investigadores e deu múltiplos e interessantes contributos, no entanto, o tom crítico com que sempre o fez, ou pelo menos, em tempos, o terá feito, e o nível de exigência que colocou no desafio à concretização de “um estudo global do livro português manuscrito e impresso, em todas as suas implicações fundamen-

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Jorge Peixoto – História do livro impresso em Portugal. Separata do Arquivo da Bibliografia Portuguesa. Coimbra: Tipografia da Atlântida, 1967, p. 13. 100

Albino Forjaz de Sampaio – Op. cit. P. 18. 101

Aquilino Ribeiro – «O Livro Moderno». Anais das Bibliotecas e Arquivos. Lisboa: Biblioteca Nacional, s. II, vol. II, n.º 5, Janeiro/Março, 1921, p. 7. 102


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José V. de Pina Martins – «Para a história da cultura portuguesa do Renascimento: a iconografia do livro impresso em Portugal no tempo de Dürer». Arquivos do Centro Cultural Português. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian. Vol. V, 1972, p. 80. 103

tais, culturais e estéticas, económicas e tecnológicas” 103, nunca nos parecem nem justos nem tão pouco correctos, dado que a sua convicção no aparecimento de “um grande investigador”, que dominasse todas as áreas do conhecimento, ultrapassa o domínio da investigação objectiva e pluridisciplinar. Pelo contrário, o que, na nossa opinião, faria verdadeiramente sentido era o entendimento entre investigadores e a colaboração entre universidades, tendo em conta a necessidade da criação de um centro de estudos, onde o esforço de todos fosse partilhado por todos, permitindo, assim, a definição de estratégias para a produção de uma verdadeira e completa história do livro em Portugal. Quanto a nós, integrado no contexto alargado da história e da teoria do design gráfico, continuaremos a dar conta do nosso interesse pela arte tipográfica em Portugal, sobretudo levantando as dúvidas que achamos dever levantar, ou despertando para possíveis novas leituras sobre a importância artístico-cultural do livro no âmbito da transição dos estilos e da sua relação com o gosto dominante. Entretanto, ultrapassada que está a questão da importância da descoberta dos caracteres móveis e toda a discussão em torno da data e do local onde foi o primeiro livro impresso no nosso país, valerá a pena referir, por um lado, as razões que contribuíram para a maior ou menor qualidade gráfica das edições portuguesas e, por outro, os impressores e as obras que, do ponto de vista estético, marcaram os nossos livros antigos. Nesta perspectiva, e se quisermos começar por comentar a eventual debilidade da nossa indústria tipográfica, é necessário recordar que, apesar do vasto território colonial, raras foram as vezes que, em termos editoriais, o país ultrapassou as barreiras geográficas naturais de Portugal continental e os limites de uma reduzida população com elevado índice de analfabetismo, o

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que, naturalmente, não tornava fácil a vida dos tipógrafos independentes, limitava aqueles que imprimiam por encomenda régia ou do Clero, assim como desmotivava os autores, muitas vezes obrigados a editar os seus trabalhos no estrangeiro, nomeadamente em Salamanca, Paris, Lyon, Veneza ou Antuérpia. Conjunto de factos que, de resto, como veremos, continuará a verificar-se ao longo de toda a história das artes gráficas em Portugal, dando razão a vários protestos e reivindicações dos nossos tipógrafos. Em todo o caso, na análise desta matéria, justifica-se que tenhamos em conta a possibilidade da maioria daqueles que se envolveram com a produção dos nossos primeiros livros não serem tipógrafos ou impressores e muito menos fundidores, desenhadores ou gravadores. E, portanto, não devemos descartar a hipótese de se terem feito acompanhar de colaboradores também estrangeiros, aos quais, eventualmente, se juntaram alguns portugueses. Isto porque o livro impresso herda do manuscrito a cooperação estreita entre o copista e o iluminador ou rubricador e a história mais recente revela que não é fácil encontrarmos muitos exemplos de profissionais de artes gráficas que concentrem em si mesmo as competências relativas a todas as artes e ofícios necessários à criação e à produção de um suporte tipográfico. Mesmo quando se refere a itinerância dos primeiros «operários» do livro há que ter em conta que os chamados impressores continuavam a depender muito dos ilustradores – os primeiros sobretudo ligados ao conhecimento da escrita e os segundos especializados no desenho e na gravura –, embora se perceba que o domínio das letras, à época, proporcionasse uma dignidade e um estatuto social muito mais elevado do que o dos seus companheiros, provavelmente vistos como mestres artesãos e não tanto como artistas, o que, inevitavelmente, terá permitido o reconhecimento de uns e o esquecimento dos outros, fossem estes compagnons de route

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Marshall McLuhan – A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, EDUSP, 1972. 104

ou apenas artífices autóctones. Mais tarde, quando a tipografia se assume como uma verdadeira indústria, os efeitos são ainda mais perversos, dado que se criam grandes centros impressórios, espalhados algures pela Europa, onde se imaginam e fundem a maioria dos tipos móveis e onde se abrem grande número de vinhetas e tarjas decorativas, bem como as gravuras/ilustrações de que dependem as principais edições de referência teológico-eclesiástica e pedagógico-literária. Neste contexto da especialização dos ofícios e, portanto, na divisão do trabalho, mas também da aproximação à normalização e a estandardização do material e do equipamento imprescindível à impressão de livros, como defende Marshall McLuhan, na sua Galáxia de Gutenberg 104, despoleta aquela que pode ser considerada a primeira revolução industrial, o que conduz ao aparecimento de um conjunto de novas actividades, onde se inscrevem os industriais tipográficos e os livreiros/editores, e o que empurra para o anonimato os chamados artistas, reduzidos que passam a estar ao trabalho mecânico da composição e da impressão. De resto, não terá sido por acaso que uma espécie de renascimento da gravura em madeira apenas tenha acontecido já no século XIX, quando, para mais facilmente cativar o interesse do público, a estratégia dos responsáveis pela edição das publicações periódicas passou pela necessidade da criação de escolas de gravura e a respectiva reformulação da comunicação, agora suportada simultaneamente e de forma equitativa pelas estruturas linguística e gráfico-ilustrativa. De acordo com esta lógica, mais uma vez, levantam-se muitas dúvidas sobre a autoria de muitas das gravuras impressas nos nossos cimélios. É verdade que, como veremos, é possível encontrarmos no livro estrangeiro algumas (poucas) gravuras

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iguais às impressas em Portugal, no entanto, sobretudo quando nos referimos às tarjas decorativas, apercebemo-nos de que, apesar do repertório gráfico e temático ser, em muitos casos, o mesmo, porém as gravuras não são iguais. Têm semelhanças, por vezes, dado o seu carácter mais ingénuo, parecem ter sido abertas a partir de modelos espanhóis, alemães, franceses ou italianos, e, se nos debruçarmos sobre o depuramento formal das mesmas, é possível admitirmos que os seus autores ainda trilhavam os caminhos de uma experiência que os seus congéneres a trabalharem fora do nosso país já tinham percorrido. Por tudo isto, a nossa visão sobre a «nacionalidade» das gravuras impressas nas páginas dos livros antigos portugueses tem vindo a evoluir, de tal forma que, cada vez mais, estamos convencidos de que não é fácil nem lícito afirmar peremptoriamente que a maioria das referidas imagens tem proveniência estrangeira. Não há dúvida de que um número substancial dessas mesmas gravuras terá sido importado dos ditos centros impressórios ou transportadas pelos tipógrafos que passaram ou se estabeleceram em Portugal, no entanto, depois da observação minuciosa de algumas delas, as dúvidas têm tido tendência para aumentar. Assim sendo, se tivermos em conta os vários factores que antecedem a própria criação e reprodução das referidas imagens; se as colocarmos lado a lado para entendermos como evoluíram do ponto de vista estético e técnico; e se observarmos os pormenores que caracterizam as diferenças entre elas; nalguns casos particulares, temos a sensação de penetrar num campo curioso e até surpreendente de testemunhos implícitos e explícitos. Todavia, para entrarmos por esta porta tão estimulante, há que ter consciência de que o desenho constitui uma estrutura complexa e que, portanto, exige esforço analítico e

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ferramentas específicas de análise, alguma sensibilidade, mas também perspicácia. Concretamente, quando estamos perante os nossos livros antigos, não podemos esquecer que a identificação de componentes como as resultantes do espaço, do tempo e da ideologia é tão válida e tão importante para a interpretação de um texto, como para a de uma imagem. Mas, ler um texto ou uma imagem passa também pela interpretação das suas características técnico-formais e dos seus objectivos comunicacionais.

4.1

4.1 Evangelhos e epistolas con suas exposições en romance – pormenor de três das ilustrações impressas por Rodrigo Álvares. Porto: 1497.

Como todos sabemos, o contexto dos interesses do homem da Idade Média pelas letras e pelas artes altera-se quando esse mesmo homem se afirma moderno, humanista e disposto à revivescência dos valores da antiguidade clássica, e essas diferenças acentuam-se quando, por exemplo, mudamos de país, dado que a cultura, o conhecimento científico, o gosto e as próprias estruturas sociais não evoluem exactamente e naturalmente ao mesmo ritmo. No mesmo sentido, é compreensível, por um lado, a oposição entre a anatomia da escrita angulosa e algo confusa, presente nos letterings góticos, e a da escrita redonda e bastante mais legível, protagonizada pelos letterings renascentistas, e, por outro, a diferença da anatomia da natureza representada nos dois períodos subsequentes. Quando olhamos para a capitular utilizada nas Constituiçõees ã do Porto e para que fez ho Senhor dom Diogo de Sousa bpo as gravuras que ilustram os Evangelhos e epistolas con suas exposições en romance, ambas impressas em 1497 por Rodrigo Álvares, verificamos que estamos perante imagens com propósitos distintos. A primeira, apesar de nos remeter para a simbologia específica do Clero, nomeadamente do Clero

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4.2 Constituiçõees que fez ho Seã do nhor dom Diogo de Sousa bpo Porto – página impressa na oficina de Rodrigo Álvares. Porto: 1497.

4.2

representado pelo bispo do Porto, dada a representação da mitra papal sobre o escudo nacional, surge, sobretudo, por uma motivação decorativa; as segundas, integram a atitude ilustrativa clássica, tendo em conta a preocupação do artista em valorizar a identificação preceptiva de cada uma, ou de cada grupo, de personagens – principais e/ou secundárias – com a sua própria figuração.

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Todavia, nos exemplos dados são também notórias e significativas as diferenças formais. No primeiro caso, observamos um quadrado onde, entre elementos decorativos de factura linear, se inscreve uma capital concebida a partir de uma circunferência e cuja composição geral se estrutura no quadro dos modelos de tipologia renascentista. Quanto ao segundo caso, trata-se de um conjunto de representações de cenas de género, onde, deliberadamente, o autor terá procurado dar ênfase à expressão do gesto e à postura física, em detrimento de uma representação fundamentada na observação directa da realidade visível, o que nos garante um modo de ver e a consequente forma de comunicar do homem da Idade Média. Quer isto dizer que no mesmo espaço, no mesmo tempo, e até na mesma obra é possível coexistirem dois estilos opostos e até contraditórios.

4.3

4.3 Evangelhos e epistolas con suas exposições en romance – pormenor de três das ilustrações impressas na oficina de Rodrigo Álvares. Porto: 1497.

Entretanto, não podemos perder de vista que as imagens analisadas são reproduções impressas de desenhos abertos na madeira, ou seja, imagens que resultaram de uma técnica muito específica, como é o caso da gravura. E sobre isto vale a pena perceber ainda que a um bom desenho pode não corresponder uma boa gravura, e vice-versa, assim como um bom desenhador não é obrigatoriamente um bom gravador, tanto como um gravador pode não ser necessariamente um bom desenhador. Por outro lado, se é possível afirmar que um bom desenho ou uma boa gravura não significam uma boa ilustração, também pode acontecer que, quando pensamos estar a analisar um desenho impresso, nos séculos XV ou XVI, por vezes, cheguemos à conclusão de que esse suposto desenho pode ter resultado de uma técnica mista, ou seja, de uma gravura à qual, posteriormente, se acrescentaram pormenores como grafismos ou textos. Dito isto, o historiador corre bastante risco quando decide afirmar que a capitular de Rodrigo Álvares é portuguesa, devido à

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presença do escudo nacional, ou, em sentido contrário, quando opta por julgá-la estrangeira, devido à sua «superioridade artística». Do mesmo modo, pressupor que as ilustrações da referida obra de Rodrigo Álvares são genuinamente portuguesas, dada a sua ingenuidade e rudeza, pode também ser uma forma de alimentar o erro. Ainda a propósito destas contradições, talvez seja interessante, e até elucidativo, observar as gravuras impressas, quase meio século mais tarde, por Vasco Diaz Tanco de Frejenal, em Cõstituições sinodaes do bispado do Porto. Neste caso concreto, e exactamente ao contrário do que sucede nos trabalhos de Rodrigo Álvares, por um lado, é visível a rudeza da capitular que inicia o prólogo, mas, por outro, é perceptível o cuidado formal com que foi aberta a ilustração da «Paixão de Cristo». Ao darmos atenção a estes pressupostos, torna-se possível levantar um conjunto de dúvidas sobre muito do que se tem dito e, sobretudo, escrito a propósito das imagens dos nossos livros antigos. Por exemplo, sabendo nós que as primeiras páginas impressas com caracteres móveis seguem os modelos manuscritos e que, como já referimos, em determinados casos, a algumas dessas mesmas páginas de texto foram acrescentados grafismos e até pinturas de capitulares, uma das hipóteses que podemos colocar para justificar o depuramento formal da referida capitular de Rodrigo Álvares é a de que, eventualmente, se pode tratar apenas de um simples desenho e não de uma imagem resultante da impressão de uma gravura em madeira. Bem, alguns estudiosos dirão que entrámos no plano da especulação pura, no entanto, parecem-nos elucidativos, por exemplo, o caso do espaço aberto no texto de uma das páginas do Missale Bracarense, impresso em Lisboa, por Nicolau da Saxónia, em 1498, ou a forma como João Pedro de Cremona resolveu, ou não, a junção das tarjas decorativas que

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4.4

4.5

4.4 – 4.5 Cõstituições sinodaes do bispado do Porto – página do prólogo e gravura impressas na oficina de Vasco Diaz Tanco de Frejenal. Porto: 1541.


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4.6 Missale Bracarense – página impressa na oficina de Nicolau da Saxónia. Lisboa: 1498.

4.6

fazem parte das molduras dos rostos da Grãmatica Pastrane e da Legeda ã que fala de todolos feytos e payxoões dos sãtos martires, respectivamente impressos em 1512 e 1513, e da gravura inserida no fl. 4v do livro terçeyro das Ordenações, datado de 1514. No primeiro caso, podemos admitir que o referido espaço estaria programado para uma gravura ou um desenho, que, por razões que se desconhecem, pelo menos na edição à nossa disposição, nunca foi efectuado. Quanto

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4.7 Grãmatica Pastrane – rosto impresso na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1512.

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à edição da referida Grãmatica, com excepção da solução falhada do canto superior direito, onde é possível ver uma espécie de «tapa-buracos», não há dúvida de que Pedro de Cremona, através do desenho, tentou minorar o desfasamento entre as tarjas utilizadas. Por outro lado, no que diz respeito aos restantes exemplos, estamos perante algumas situações curiosas, mas bastante claras desta mesma circunstância, ou seja: a moldura da Legeda ã dos sãtos martires tem duas versões

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4.8

4.8 – 4.9 Legeda ã que fala de todolos feytos e payxoões dos sãtos martires – páginas impressas na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1513.

4.9

– uma que resulta da impressão directa da montagem original das tarjas, onde são visíveis os desfasamentos e o lapso da inversão da tarja que fecha a base da moldura, e a outra que é melhorada através de filetes desenhados sobre a própria gravura já impressa; relativamente à inserida no fl. 4v do Livro terçeyro das Ordenações e a que nos é dado ver numa das páginas da Legeda ã dos sãtos martires – ambas supostas ilustrações do Rei D. Manuel –, voltamos a confirmar que,

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4.11

ã 4.11 Legeda que fala de todolos feytos e payxoões dos sãtos martires – gravura impressa na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1513.

4.10 Livro terçeyro das Ordenações – gravura impressa na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.10

em termos práticos, e a posteriori, era vulgar os impressores retocarem ou acrescentarem elementos gráficos às imagens transferidas para o papel. E este, ao fim e ao cabo, pode entender-se como um exercício bastante vulgarizado, sobretudo em obras de pequenas tiragens – basta, por exemplo, observarmos atentamente a moldura da primeira página do segundo livro de Os autos dos apl’os, impressa por Valentim Fernandes, em 1505. Se repa-

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4.12 Os autos dos apl’os – página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1505.

4.12

rarmos na junção da tarja vertical, colocada no lado direito do observador*, com a que fecha a moldura na base, podemos constatar que houve intervenção manual do impressor. A dita * É possível ver esta mesma gravura na edição de outras obras, como, por exemplo, em Marco Paulo e em O primeyro livro das Ordenações, ambas impressas por Valentim Fernandes, respectivamente em 1502 e 1512.

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4.13 Vita Christi – página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1495.

4.13

tarja vertical, que, em 1495, havia surgido completa em Vita Christi, sob a responsabilidade do mesmo Valentim Fernandes, é, agora, utilizada serrada. Quanto à tarja horizontal, que se conjuga com a anterior, não é mais do que aquilo que restou da original, então dividida em duas. Porém, a nítida dificuldade em disfarçar a colagem das peças obrigou o impressor a redesenhar a junção, do mesmo modo que terá tido necessidade de

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4.14 Tarjas decorativas utilizadas inteiras ou serradas, de acordo com várias composições.

96 Os autos dos apl’os, 1505, Valentim Fernandes

Vita Christi, 1495, Valentim Fernandes

Marco Paulo, 1502, Valentim Fernandes

Ordenações, 1512, Valentim Fernandes

Vita Christi, Valentim Fernandes, 1495

Marco Paulo, 1502, e Ordenações, 1512, Valentim Fernandes

Ordenações, 1512, Valentim Fernandes

Ordenações, 1512, Valentim Fernandes

Grãmatica Pastrane, 1497, Valentim Fernandes

Ordenações, 1512, Valentim Fernandes

Sacrametal, 1502, Sãtos martires 1513 (2 vezes) ã e Ordenações (3.º livro), 1514, Pedro Cremona

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fazê-lo relativamente à junção da mesma tarja horizontal com a tarja vertical, visível do lado esquerdo. E o mesmo se pode dizer a propósito da ligação da tarja horizontal superior com a vertical do lado direito. Estamos, portanto, perante uma actuação que revela como os nossos impressores ultrapassavam algumas das dificuldades técnicas impostas por uma arte que, em Portugal, dava os primeiros passos e cujo aperfeiçoamento iria exigir algumas décadas de exercício. Claro que era possível darmos outros exemplos semelhantes, no entanto, este mesmo conjunto de tarjas decorativas, nas suas variadas composições, dá-nos oportunidade para referir mais algumas curiosidades interessantes. Por exemplo, uma delas é que não é difícil encontramos mais do que uma versão da mesma tarja decorativa. Se voltarmos a reparar no enquadramento no rosto do livro 4.º de Vita Christi e, concretamente, na gravura que, do lado esquerdo, faz parte do conjunto das três que fecham a moldura da base, e a compararmos com o topo da tarja vertical, colocada no lado direito do observador, é possível verificarmos que a primeira parece resultar de uma secção da segunda, o que, não sendo verdade, nos permite supor que as gravuras em tarja eram abertas em réguas, cuja dimensão permitia que fossem divididas e serradas de acordo com a mancha da página; que essas mesmas gravuras em tarja tinham vários modelos, com alterações gráficas mínimas; ou que, adquiridas em centros impressórios estrangeiros, davam, em Portugal, origem a outras semelhantes – porventura, abertas pelos próprios impressores responsáveis pela edição das obras, por gravadores anónimos que os acompanhavam nas campanhas de trabalho, ou por gravadores portugueses não identificados.

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4.15 Marco Paulo – página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1502.

4.15

Outro caso curioso é, por exemplo, a gravura que, do lado direito, faz parte do conjunto das três que fecham a moldura da base do referido rosto do livro 4.º de Vita Christi, dado que, apesar de uma ligeira alteração na própria abertura da madeira, podemos afirmar que é a mesma que foi utilizada por Valentim Fernandes, em 1502 e 1512, respectivamente em Marco Paulo e O primeiro livro das Ordenações, mas, por outro lado, também é possível concluir que, apesar da semelhança, esta não

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4.16 Grãmatica pastrane – página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1497.

4.16

é um fragmento da que foi impressa na base da moldura dos já referidos Os autos dos apl’os. Se até agora demos exemplos de casos em que apenas está envolvido um único protagonista, a verdade é que podemos descobrir outros, onde se intrometem mais do que um impressor e que nos exigem alguma meditação. A este propósito, se quisermos continuar a usar Os autos dos apl’os como espaço

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4.17 O primeiro livro das Ordenações – página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1512.

4.17

António Ribeiro dos Santos – Op. cit. P. 56. 105

de análise, podemos, por exemplo, referir a sua tarja vertical, do lado esquerdo do observador. Com efeito, esta foi uma gravura já utilizada em 1497, na Grãmatica Pastrane, e, em 1512, voltaria a fazer parte de O primeiro livro das Ordenações, embora, desta vez, mutilada do pelicano “ferindo o peito para alimentar seus filhos”, imagem associada a D. João II 105. E, se até aqui não apresentamos qualquer novidade relativamente à forma como eram utilizadas e reutilizadas as gravuras, o mesmo já não se pode dizer quando verificamos que Pedro de Cremona

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utiliza uma tarja muito semelhante, à de Valentim Fernandes, em obras como Sacrametal, de 1502, Grãmatica Pastrane, de ã 1512, Legeda ã que falade todolos feytos e payxoões dos sãtos martires, de 1513, e Livro terçeyro das ordenações, de 1514. Imediatamente, dada a reprodução em espelho das referidas gravuras, fomos tentados a considerar que a segunda teria tido origem no desenho impresso da primeira, no entanto, ao fazermos uma observação atenta de ambas as gravuras, voltamos a confirmar que o mesmo reportório gráfico pode dar origem a gravuras iguais ou semelhantes e, portanto, abertas de acordo com a teoria de que essa poderia ser uma prática levada a cabo por artistas, estrangeiros ou portugueses, que, como temos vindo a referir, podem ter ficado no anonimato; e que Pedro de Cremona, no caso concreto, não utilizou a gravura do seu companheiro. De resto, apesar de, em 1504, os nomes de Valentim Fernandes e Pedro de Cremona constarem do cólofon do Cathecismo Pequeno, o que dá a ideia de terem sido colaboradores, temos a convicção de que essa mesma colaboração só terá acontecido em situações que, a partir de determinada altura, deixam entender algumas dificuldades ou até mesmo a possibilidade de Valentim Fernandes não ter condições pessoais ou profissionais para levar os seus trabalhos até ao fim. Nos três primeiros anos de quinhentos, tanto Valentim Fernandes como Pedro de Cremona imprimem nas suas próprias oficinas e de forma independente. Como vimos, em 1504, ambos terão participado na edição do Cathecismo Pequeno, e, em 1505, com a chancela do primeiro é dado à estampa Os autos dos apl’os. No entanto, na primeira página do segundo livro desta obra, a fechar no topo a moldura decorativa, encontramos uma gravura utilizada por Pedro de Cremona na página do prólogo do Sacrametal, obra esta impressa em 1502. E este pormenor ã

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4.18

4.18 Legeda que fala de todolos ã feytos e payxoões dos sãtos martires – página impressa por João Pedro de Cremona. Lisboa: 1513.


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4.19 Sacrametal ã – página do prólogo impressa na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1502.

4.19

levanta-nos dúvidas relativamente à verdadeira identidade do responsável pela produção daquele segundo livro. Bem, como temos defendido, existiriam tarjas decorativas produzidas em série, que os tipógrafos podiam adquirir em centros impressórios estrangeiros; e sabe-se que estes mesmos artistas, entre si, comercializariam ou trocariam material tipográfico; todavia, esta mesma gravura não volta a surgir em mais nenhum livro de Valentim Fernandes, enquanto

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Pedro de Cremona vai dar-lhe utilização na edição de 1512 ã dos sãtos martires (duas da Grãmatica Pastrane, na Legeda vezes) e no Livro terçeyro das Ordenações. Por outro lado, Valentim Fernandes possui uma gravura da mesma série – com a mesma dimensão e o mesmo registo gráfico-decorativo –, que utilizou em 1497, na primeira edição da Grãmatica pastrane, gravura essa, em 1526, reutilizada por Germão Galharde no rosto (exemplar a) da Ordenaçam da ordem do juizo, o que retira lógica à utilização da que pertencia ao seu colega Pedro de Cremona. Desta conjugação de factos, a que se junta o interregno de sete anos em que Valentim Fernandes não imprime livros*, para em 1512 retomar a actividade de impressor**, assumindo a responsabilidade da edição das Ordenações manuelinas – trabalho que terá ficado a meio e, por isso, entregue a Pedro de Cremona –, leva-nos a suspeitar de que, pelo menos, o segundo livro de Os autos dos apl’os, e de resto, na sequência do que já havia acontecido em 1504, a propósito da impressão do Cathecismo Pequeno, terá sido impresso com a participação de Pedro de Cremona. * Salvo se a teoria de Artur Anselmo estiver certa, a propósito da possibilidade de Valentim Fernandes, em 1510 ou 1511, ter imprimido a versão portuguesa dos Evangelios e epistolas com sus exposiciones em romance, de Guilherme de Paris, uma obra impressa em Salamanca, em 1493, por artista desconhecido. No entanto, tendo em conta tudo o que já foi dito sobre a possibilidade de Pedro de Cremona ter trabalhado em Salamanca e de lá ter trazido o material tipográfico com que imprimiu livros no nosso país, temos que admitir a ideia de que também terá trazido algumas propostas de edição, onde se poderá incluir a acima referida. ** Dado que em 1505 a febre tifóide despoletou na cidade de Lisboa, dando origem a uma epidemia que, em 1507, se generalizou a todo o país, sendo responsável por inúmeras mortes, é natural que muitas pessoas, sobretudo estrangeiros, tivessem abandonado Portugal. E neste caso terão estado certamente os nossos impressores, Valentim Fernandes e Pedro de Cremona.

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4.20

4.21

4.25

4.22

4.23

4.26

4.24

4.20 – 26 Gravuras de Reportorio ã dos tepos e portugues, Valentim ã Fernandes. Lisboa: 1518.

Alguns estudiosos tenderão a contrariar esta tese com o argumento de que o nome de Pedro de Cremona não consta do cólofon da referida obra, no entanto, como todos sabemos, no século XVI é possível encontrarmos várias obras, sobretudo segundas edições, onde não consta senão o nome do impressor da primeira edição. Mas, a acrescentar a esta sequência de acontecimentos, merece também ponderação o facto de Valentim Fernandes, depois das

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4.28

ã ã 4.28 Reportorio dos tepos e portugues – pormenor de gravura do rosto impresso na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1518.

4.27 Reportorio dos tepos e ã ã portugues – ilustrações dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho impressas na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1518.

4.27

Ordenações, ter apenas impresso mais três livros, o primeiro dos quais, O compromisso da confraria da Misericordia, datado de 1516, por sinal, com a colaboração de Hermão de Campos, o segundo, Ars virginis Mariae in quinque libros distributa, também de 1516, e, finalmente, em 1518, o Reportorio dos tepos e portugues, uma obra na qual terá colocado grande ã ã empenho dado o número de ilustrações que utilizou. O que quer dizer que, eventualmente, por razões de saúde, perda

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4.29 Reportorio dos tepos e porã ã tugues – ilustrações dos meses de Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro impressas na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1518.

4.29

de notoriedade social e/ou profissional, ou porque tenha decidido dedicar-se por inteiro ao rendível negócio ligado à transacção de especiarias entre Portugal e a Alemanha, a sua produção tipográfica, que já não era muita e exigia a participação de outros intervenientes, passou a ser pontual e insignificante.

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4.31

4.30 – 31 Glosa famosissima – rosto e gravura impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1501.

4.30

No mesmo contexto de dúvidas sobre a origem e paternidade das imagens utilizadas nos nossos livros, as chamadas «composições figurativas» têm assumido maior protagonismo, nomeadamente em estudos e artigos que vêm sendo publicados desde o século XIX 106. Mário da Costa Roque deixou-nos um interessante trabalho sobre a Glosa famosissima, impressa em

107

Ver, por exemplo, Tito de Noronha – Ensaios sobre a Historia da Imprensa. Lisboa: Typographia Franco-Portugueza, 1857; ou, do mesmo autor, A imprensa Portugueza durante o seculo XVI. Porto: Imprensa Portugueza, 1874. 106


A divina Arte das Artes

4.32

4.32 Glosa famosissima – gravura impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1501.

4.33 O primeiro livro das ordenações – rosto impresso na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1512. Mário da Costa Roque – A Tipografia em Portugal – Glosa famosissima sobre las coplas de Dõ Jorge Marã Lisboa: Inspecção Superior das riq. Bibliotecas e Arquivos, 1963; e do mesmo autor, «Dois pseudo-retratos de D. Manuel I e de D. Diogo Ortiz de Villegas: considerações bibliográficas. Arqueologia e História. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, s. 8, vol. VII, 1956, p. 37-91

4.33

107

Ernesto Soares – Art. cit. P. 149-151. 108

José V. de Pina Martins – Art. cit. P. 121. 109

110

José Pacheco – Op. cit.

1501, por Valentim Fernandes, onde analisa com perspicácia algumas gravuras, como a «morte», o «juízo final» e «o escritor» 107; sobre esta última gravura também Ernesto Soares já havia feito algumas referências importantes 108; e José V. de Pina Martins acrescentou mais alguns argumentos à análise destas e doutras imagens, como as que fazem parte das Ordenações manuelinas 109. Relativamente a este conjunto de gravuras também nós já tivemos oportunidade de fazer algumas considerações 110, e, por isso, retomar uma temática que, com maior ou menor

108


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.34 Livro primeiro das ordenações – rosto impresso na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.34

convicção, tende para o consenso à volta da ideia de que a maioria das imagens insertas nos nossos cimélios tem origem estrangeira, só faz sentido porque consideramos importante referir alguns pormenores e focar aspectos que, do ponto de vista estético, particularmente caracterizam as ilustrações do corpus legislativo manuelino. Ao tomarmos como exemplo a página do rosto dos livros 1.º, 2.º e 3.º das Ordenações manuelinas, verificamos que à sua volta se têm levantado algumas dúvidas, nomeadamente quando se analisam as tarjas que enquadram as duas prin-

109


A divina Arte das Artes

4.35 Regimento de como os contadores das comarcas – rosto impresso na oficina de João Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.35

cipais gravuras de referência simbólica nacional: o escudo, encimado por paquife, coronel e serpe alada, e a esfera armilar com uma faixa onde se pode ler «Spera in Deo et fac bonitatem». De facto, conforme descrição de Joaquim Anselmo, esta moldura repete-se no Regimento de como os contadores das comarcas, impresso no mesmo ano e também por Pedro de Cremona, embora com a particularidade de apresentar três das tarjas invertidas relativamente às das Ordenações. Todavia, ao contrário do que diz o mesmo autor, a referida moldura já não é utilizada na segunda edição do referido Regimento, dado à estampa por Luís Rodrigues,

110


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.37

4.37 Marca tipográfica do impressor/ /livreiro Luís Rodrigues.

4.36 Regimento de como os contadores das comarcas – rosto impresso na oficina de Luís Rodrigues. Lisboa: 1539.

4.36

em 1539. A verdade é que, apesar das semelhanças do enquadramento e até das próprias gravuras, do ponto de vista gráfico-decorativo, aquela não constitui uma “cópia fiel e integra” 111 da edição de 1514. O escudo das Armas Reais e a esfera armilar mantêm-se, embora dispostos de uma forma que contraria as regras da heráldica, nomeadamente quando a serpe alada é impressa virada para a direita, de resto, como a de O primeiro livro das ordenações, dado à estampa em 1512, sob a responsabilidade de Valentim Fernandes; estas duas imagens diferenciam-se das utilizadas por Pedro de Cremona por um recorte técnico-formal marcado por uma

111

António Joaquim Anselmo – Bibliografia das obras impressas em Portugal no século XVI. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1926, p. 307, col. 1 111


A divina Arte das Artes

maior exuberância e um maior dinamismo; o conjunto das oito tarjas decorativas, no tumulto da composição dos seus elementos fitomórficos, opõe-se à estabilidade formal da moldura utilizada na primeira edição do livro; assim como a capitular e alguns pormenores da própria ortografia se alteram de acordo com um registo gráfico que nos permite afirmar tratar-se de um trabalho impresso posteriormente, já sob a responsabilidade de Luís Rodrigues, e não de João Pedro Buonhomini de Cremona, como consta do próprio texto que introduz o título e os conteúdos tratados na própria obra.

4.38

4.38 Artis grãmatice precepta stepham militis – edição sevilhana de 1503.

Curiosamente, as tarjas decorativas utilizadas em 1514 irão protagonizar um novo e interessante debate relacionado com a data do primeiro livro impresso por Germão Galharde, e do qual falaremos mais tarde. Quanto às seis gravuras que ilustram as Ordenações, talvez valha a pena começar por voltar a olhar para a impressa no verso do fl. 4 do Livro terçeyro. De acordo com a utilização desta gravura nos Artis grãmatice precepta stepham militis, edição sevilhana de 1503 112, não ficam dúvidas de que a sua origem é estrangeira, de resto, como vários estudiosos portugueses procuraram demonstrar*. No entanto, na nossa opinião, esta certeza fica marcada por algumas incoerências relativamente ao seu autor e ao seu percurso. Primeiro porque não terá voltado a ser impressa em Espanha, depois * Com base na Artis grãmatice precepta referenciada por vários autores, como La Rosa y Lopez, em 1888, Haebler, em 1903, e Vindel, em 1946,

Manuel Saraiva Barreto – Sobre os Artis Grammaticae Praecepta de Estêvão Cavaleiro. Separata Humanitas. Coimbra; Faculdade de Letras de Coimbra. Vol. 33-34, 1981-1982. 112

e que é possível encontrar na Biblioteca Colombina, em Sevilha, Mário da Costa Roque, Ernesto Soares e José V. de Pina Martins consideraram sempre que a referida obra teria sido impressa em 1493, no centro impressório de Salamanca, por tipógrafo desconhecido.

112


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.40

4.39 – 40 Ordenaçam da ordem do juizo – duas versões do verso do rosto impressas na oficina de Germão Galharde. Lisboa: 1526.

4.39

porque surge em 1512 nas páginas da Grãmatica Pastrane, e repete-se, sempre pela mão de Pedro de Cremona, ainda em 1513 e depois em 1514, respectivamente na Legeda ã dos sãtos martires e Ordenações manuelinas, bem como, em 1526, já sob a responsabilidade de Germão Galharde, na Ordenaçam da ordem do juizo. Ou seja, conhecendo nós a importância

113


A divina Arte das Artes

do centro impressório de Sevilha, nomeadamente no que diz respeito à relação entre o material tipográfico ali produzido e aquele que foi utilizado nos nossos primeiros livros, temos de admitir que esta cidade fez parte do percurso de alguns impressores que viriam a estabelecer-se em Portugal ou que, a propósito de algumas campanhas editoriais, visitaram o nosso país. Neste caso concreto tudo indica terem estado Valentim Fernandes e o próprio João Pedro de Cremona.

4.41

4.41 Pormenor da divisa de D. Leonor, viúva de D. João II.

Tendo em conta todas estas considerações e desconhecendo o lugar onde Cremona terá trabalhado antes de 1501, data da impressão do seu primeiro livro em solo português, e para onde terá partido em 1505, levado pelo despoletar da febre tifóides em Lisboa, somos tentados a pensar na possibilidade de que o impressor italiano, depois de algum tempo em Tomar, terá trabalhado em Sevilha, onde pode ter colaborado com o editor Lázaro de Gazanis e o impressor João Pegnicer na produção gráfica de Artis grãmatice precepta stepham militis. De resto, esta hipótese ganha expressão dado que a referida gravura impressa em Espanha é exactamente a mesma que acabaria reproduzida nos livros portugueses citados. Quer isto dizer que existe um bloco de madeira com um desenho aberto que não voltará a ser utilizado no país vizinho, porque, tal como outro material tipográfico, terá chegado ao nosso país pela mão de Pedro de Cremona e por cá terá ficado. Por outro lado, se a imagem do monarca sentado na cadeira real com o ceptro numa mão e a esfera armilar na outra não tivesse saído de Espanha, é perfeitamente natural que voltasse a ser impressa noutros livros castelhanos e, neste caso, não era muito plausível que, aquela que terá começado por ser uma suposta alegoria à astronomia, tivesse servido de modelo às

114


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.43

4.43 Marca tipográfica de André de Burgos.

4.42 Marca tipográfica do francês Jean Antoine Huguetan II, entre 1649-1680.

4.42

restantes gravuras das Ordenações, bem como também não era provável que o próprio D. Manuel I tivesse assumido a esfera armilar* como emblema pessoal, mais tarde adoptado como símbolo do «novo reino». Trata-se, portanto, de uma gravura cujo interesse e importância tem chamado a atenção de muitos investigadores e, com toda a legitimidade, proporcionado várias teses. Para Ribeiro Guimarães é admissível que a personagem principal represente a Rainha D. Leonor 113; para os espanhóis é tida como Isabel a * Esfera armilar que, para além de emblema de D. Manuel, faria história como marca tipográfica de vários impressores, como foi o caso do espanhol André de Burgos, ou o dos franceses Gilles Hardouyn, entre 1491 e 1521, e de Gilles, Jacques II, Jean Antoine I e Jean Antoine II, todos eles fazendo parte de várias gerações de uma família de apelido Huguetan, que atravessou os séculos XVI e XVII.

115

Ribeiro Guimarães – «Anotações bibliográficas». Jornal do Commercio, n.º 5244, 19.04.1871, p. 2, col. 5; Brito Aranha – A imprensa em Portugal nos seculos XV e XVI: As Ordenações d’el-Rei D. Manuel. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898, p. 17-23. 113


A divina Arte das Artes

4.44 Marca tipográfica do francês Jean Antoine Huguetan I, entre 1589-1649.

4.44

«católica»; e para outros, como é o caso de Joaquim Anselmo, poderá representar D. Manuel I ou até D. João III 114. A verdade é que o «real» poder desta imagem está na sua própria ambiguidade: para além do conteúdo analógico, esta imagem contém uma outra mensagem que tende para a construção de um discurso dependente de uma leitura de carácter subjectivo, e, portanto, aberto a várias interpretações.

António Joaquim Anselmo – Ob. cit. P. 149, col. 1 e p. 165, col. 2. 114

Nesta perspectiva, atendendo a que o ano de 1493 – data da primeira impressão da referida gravura, em Salamanca – marca o início da discussão sobre o domínio dos mares, cujas conversações, entre Portugal e Espanha, concluiriam, no ano seguinte, com o estabelecimento do Tratado das Tordesilhas e, em 1495, com a convenção que adiaria o traçado da linha de divisão do mundo, definido no referido acordo entre os Reis Católicos e D. João II, pode dizer-se que, com excepção de D. Leonor, porque não encontramos qualquer lógica nesta invocação, estamos perante um monarca emblemático, que

116


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

admitimos representar cada um, nenhum e todos eles, nomeadamente Isabel e D. João II, porque são os principais intérpretes do poder que lhes é consignado na própria mensagem «Deo in Celo tibi autem in mundo»; D. Manuel I, porque, em 1495, ao suceder a D. João II, é ele que vai pôr em prática o plano estabelecido para o zarpar das caravelas e, depois, porque adopta o modelo simbólico-ideológico reflectido na dita gravura, ao transpô-lo para os cinco livros das Ordenações, pela mão de Pedro de Cremona, aquele que admitimos ser a chave deste enigma, dada a sua condição de italiano, que lhe permitia uma privilegiada proximidade às revivescências da representação clássica greco-romana, nomeadamente às imagens de características idealistas; finalmente, D. João III, porque acaba por ser o herdeiro natural do Império, embora aquela gravura tenha sido recuperada apenas mais uma vez, como vimos, por Germão Galharde, a propósito da impressão de Ordenaçam da ordem do juizo, em 1526, e apesar do mesmo impressor, três anos antes, em Manipulus Curatorum, ter apresentado uma gravura do próprio D. João III, numa teatralidade semelhante à da que está presente nas Ordenações, embora mais de acordo com a personalidade e as opções que lhe deram o cognome de «O Piedoso», sobretudo pela oposição aos artifícios e à sumptuosidade da corte de «O Afortunado», aspectos patentes na alteração radical do cenário, figurinos e adereços, onde se registam a substituição da arquitectura gótica por uma de carácter renascentista, um monarca que não se distingue das restantes personagens pelas «vestiduras reais», sem jóias, uma singela cadeira de braços sobre um estrado de características efémeras e o escudo nacional e a esfera armilar, aparentemente suspensos por simples cordéis.

4.45

4.45 Marca tipográfica dos franceses Gilles e Jacques II Huguetan, entre 1536-1544.

4.46

Quanto às restantes gravuras que ilustram as Ordenações manuelinas, depois de tantas descrições e interpretações icono-

117

4.46 Marca tipográfica do francês Gilles Hardouyn, entre 1491-1521.


A divina Arte das Artes

4.47 Manipulus curatorum – rosto impresso na oficina de Germão Galharde. Coimbra: 1523.

4.47

gráficas, mas também algumas conjecturas alheias à lógica da experiência prática do processo gráfico-tiopográfico, levadas a cabo por distintos investigadores, julgamos que será pertinente voltar a meditar na cronologia da sua impressão. E para isso, somos obrigados a retomar alguns dos factos que têm a ver com a passagem de Valentim Fernandes e de Pedro de Cremona pelo nosso país.

118


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

Uma das certezas que temos é a de que Valentim Fernandes ã foi o responsável pela impressão dos livros primeiro e segudo das Ordenações, respectivamente datados de 17 de Dezembro de 1512 e de 19 de Novembro de 1513, o que nos permite concluir que passou mais de um ano entre a edição do primeiro e a edição do segundo, ou seja, demasiado tempo para satisfazer a necessidade da divulgação de um corpus legislativo previsto para cinco volumes. Entretanto, sabemos que Pedro de Cremona, em meados de 1513, já está em Portugal para, em Agosto, terminar a impressão da Legeda ã dos sãtos martires e, perto do final do ano, a segunda edição da Grãmatica Pastrane. O que demonstra que o seu processo de trabalho é muito mais rápido e eficiente do que o do seu colega alemão. Por esta e outras razões a que já aludimos, por solicitação directa do Rei D. Manuel I ou, como defende Artur Anselmo 115, contratado pelo próprio Valentim Fernandes, ter-lhe-á sido dada a incumbência de imprimir os restantes três livros que faltavam para completar as chamadas Ordenações. Entre o princípio de Janeiro e o final de Junho de 1514, o compromisso é cumprido. E as datas de 27 de Fevereiro, 11 de Março, 24 de Março e 28 de Junho, referentes, respectivamente, à impressão do Regimento de como os contadores das comarcas, Livro terçeyro das ordenações, Livro quarto das ordenações e Livro quinto das ordenações provam que o italiano, por um lado, tal como anteriormente já alvitrámos, não podia trabalhar sozinho e que, por outro, necessariamente tinha que ser possuidor de uma grande experiência e de um considerável conjunto de caracteres e outro material tipográfico, para, antecipadamente, ter abertas várias e morosas gravuras em madeira e depois, na sequência do processo,

119

Artur Anselmo – Origens da Imprensa em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 188. 115


A divina Arte das Artes

poder paginar, compor, imprimir e encadernar vários livros num tão curto espaço de tempo.

116

Id., Ibid.

José V. de Pina Martins – Art. cit. P. 159. 117

Ana Maria Alves – A Iconologia do Poder Real no Período Manuelino: à procura de uma linguagem perdida. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1985, p. 41. 118

Porém, perante o conjunto dos cinco livros, dois de Valentim Fernandes e três de João Pedro de Cremona, a questão da falta de identidade gráfica, mais do que certamente da necessidade de alterar alguns pormenores do conteúdo ou da resposta ao desejo do Rei D. Manuel I possuir um exemplar em pergaminho de todos os livros das Ordenações 116, terá sido razão mais do que suficiente para a decisão de reeditar os dois primeiros volumes. Em consequência disto, percebe-se que os quatro meses que separam a data da impressão do Livro quinto da do Livro primeiro, e os quinze dias que separam a impressão deste da ã do Livro segudo, constituem períodos perfeitamente razoáveis e dentro dos limites do que era necessário para a edição de dois livros que se ajustavam ao grafismo dos anteriores e que, inclusivamente, exigiam a abertura de duas novas e importantes gravuras. Neste contexto, dissipam-se as dúvidas de Pina Martins, relativamente ao facto da gravura do Livro terçeyro apresentar um rei com uma pequena barba 117, dado que esta terá sido a primeira a ser desenhada e aberta e de acordo com uma moda que, justamente, à data, tinha sido adoptada pelo próprio Rei D. Manuel 118. Por razões estéticas ou para manter e afirmar a retórica registada na gravura impressa no verso do 4.º fl. do Livro terçeyro, como vimos, a única que não foi aberta propositadamente para esta obra, a verdade é que as restantes aparecem despojadas da dita barba, ou seja, livres das limitações propostas pelas tentativas do retrato, dado que esta era também uma tentativa para que a «constituição» do Reino perdurasse para além de qualquer monarca, ficando, assim, associada não à imagem do Rei D. Manuel I, mas aos atributos do Poder Real.

120


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.48 Livro terçeyro das Ordenações – gravura impressa na oficina de Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.48

Perante esta leitura, é possível que, mais uma vez, se desfaçam as dúvidas de Pina Martins, quando não entende qual a razão que terá levado Pedro de Cremona a iniciar a impressão das Ordenações pelo Livro terçeyro 119, mas também as suas certezas quando afirma que a representação do Rei com e sem barba é prova suficiente de que o artista gravador “não pretendeu retratar ao vivo D. Manuel”. Provavelmente, num dos casos terá pretendido, nos outros terá evitado.

121

José V. de Pina Martins – Op. cit. P. 153. 119


A divina Arte das Artes

120

Ana Maria Alves – Op. cit. P. 36.

José V. de Pina Martins – Art. cit. P. 159. 121

No que diz respeito aos juízos estéticos proferidos sobre as gravuras em questão, ao contrário do que pretendem afirmar Ana Maria Alves e Pina Martins, nomeadamente quando a primeira fala da “verdadeira unidade estilística” 120 das gravuras dos livros 1.º, 3.º e 4.º, e o segundo, “por possuir menos interesse” 121, exclui a do 1.º dessa mesma unidade estilística, de resto, ambos contrariando-se na tese comum de que todas elas terão sido abertas pelo mesmo gravador, nós não temos qualquer dúvida de que as referidas gravuras mantêm uma grande identidade nos registos gráfico e iconográfico, decalcando-se, primeiro, na representação dos elementos primários do desenho e, depois, na técnica da utilização das goivas, formões ou outros objectos cortantes de que se terá servido o artista para abrir os blocos de madeira. Há, como já vimos, um modelo de referência, ou seja, a gravura que admitimos ter vindo de Salamanca com Pedro de Cremona – basta observarmos com atenção alguns pormenores ao nível da representação do panejamento, da anatomia humana e outros, como os elementos decorativos dos braços da cadeira, as texturas, a lógica da geometria ao serviço do ilusionismo cenográfico, etc. Por outro lado, cada uma delas repete sempre qualquer coisa das restantes. A mensagem principal: «a Deus deve-se a adoração no Céu, a ti, porém, na terra», que procura uma clara e premeditada identificação gráfico-ideológica com Jesus Cristo, representante de Deus na terra e protector do povo, é um desses exemplos, no entanto podemos referir outros como a gramática do espaldar da cadeira, do estrado, do plano do chão ou do plano vertical mais afastado, a coroa e o ceptro reais, o colar e a insígnia em cruz, o escudo nacional e a esfera armilar adossados a uma arquitectura de referência gótico-manuelina. Depois, quando se desvalorizam os méritos do gravador, atribuindo-lhe uma “técnica rudimentar”, para responsabilizá-lo

122


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

ã das Ordenações 4.49 Livro segudo – gravura impressa na oficina de Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.49

pelo carácter “arcaizante” das imagens 122, nós não podemos estar mais em desacordo, porque consideramos este um núcleo extraordinário de gravuras em madeira que, infelizmente, não fizeram escola, e, por isso, não voltámos a ver impressas outras do mesmo nível artístico-iconográfico, senão já em meados do século XIX, depois de um exigente esforço, agora sim, de aproximação à evolução da gravura tipográfica estrangeira. Se não forem tomadas em conta as imagens que resultaram de gravuras abertas em metal, como erradamente tem

123

122

Id. – Ibid. P. 160.


A divina Arte das Artes

4.50 Marco Paulo – de Nicolao Veneto, página impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1502.

4.50

acontecido com a maioria das que se atribuem a Albert Dürer, bastará compararmos as nossas com os melhores exemplos que, supostamente, nos chegaram de fora, como são os casos das utilizadas em Vita Christi, Estoria de muy nobre Vespasiano emperador de Roma, Grãmatica Pastrane, etc. E se há alguma gravura que, do conjunto das cinco principais, possamos destacar por um menor investimento do artista no

124


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.51 Estoria de muy nobre Vespasiano emperador de Roma – pormenor de gravura impressa na oficina de Valentim Fernandes. Lisboa: 1496.

4.51

âmbito do depuramento formal ou até de uma certa desvalorização relativamente à desproporção perspéctica, esta é a que ilustra o Livro terçeyro. São visíveis as falhas de interpretação volumétrica, dada a falta de representação de algumas sombras; o plano vertical mais afastado do observador foi desprezado, enquanto o horizontal se limita a uma simples quadrícula; e algumas das personagens surgem no espaço fora do contexto das relações com as restantes, contrariando, por isso, a regulação das profundidades, que, neste caso, se traduz na persistência medieval do confronto entre as figuras socialmente mais importantes – o Rei, os desembargadores, os homens de letras e os juízes – e as menos importantes, como os escrivães ou os alabardeiros. Todavia, há que ter em conta que esta é a primeira gravura da série a ser aberta e, portanto, é também natural que apresente algumas lacunas no registo gráfico, posteriormente superadas pelo artista na produção das outras quatro. Ainda assim, relativamente à observação do ênfase dado às figuras da «Casa Real», em detrimento dos actores secundários ou dos figurantes, valerá

125


A divina Arte das Artes

4.52 Livro quarto das Ordenações – gravura impressa na oficina de Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.52

a pena meditar na possibilidade de estarmos perante um caso curioso de duas histórias narradas em sobreposição – uma delas, a mais importante do ponto de vista do objectivo da comunicação, que sugere a cena do protocolo relativo à definição da justiça, subordinada a uma hierarquia, com o Rei a ocupar o topo da pirâmide, e a outra, a menos relevante, que se reduz à ilustração do próprio acto judicial. De resto, se esta tese, no caso da gravura do Livro terçeyro, pode não ser completamente sustentável, porém, aplica-se de forma

126


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.53 Livro primeiro das Ordenações – gravura impressa na oficina de Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.53

ã clara à do Livro segudo. Aqui, não há dúvida de que as «leis e ordenações tocantes às igrejas, mosteiros e pessoas religiosas» se volta a centrar na figura do Rei, que assegura o poder sobre os próprios representantes da Igreja, enquanto, e apenas como pano de fundo, várias são as imagens que correm coladas à vida real e de forma independente ao acto protocolar, o que significa que estamos perante a lógica de uma narrativa em dois planos: um deles teatral, limitado a um espaço dramático definido por quatro paredes e um palco,

127


A divina Arte das Artes

que obriga a uma gestão exigente dos gestos, das palavras e dos silêncios; e o outro, cinematográfico, que, pelo contrário, no espaço livre dos campos e dos mares, se reporta à acção movimentada e sonora do quotidiano esforçado do povo, no cumprimento de algumas das suas muitas actividades, como, por exemplo, a agricultura e a pesca. Trata-se de uma gravura de uma singular invenção, que demonstra a grande capacidade de ver, interpretar e comunicar do desenhador/gravador. Se repararmos, as várias cenas que ilustram o referido quotidiano entrecruzam-se numa perspectiva coerente com o homem da charrua, o batedor de caça, aquele empunha a enxada e, finalmente, o pescador, todos eles a serem representados nas dimensões que as distâncias relativas obrigam – pormenor que se repete com a figuração dos animais e das árvores, ao ponto de todos os objectos que se encontram nos planos mais afastados serem apenas pontuados de forma rápida, sem uma anotação textural expressiva, reduzidos que são praticamente ao sinal de contorno, numa tentativa inteligente de aproximação à perspectiva aérea, de resto, objectivo difícil de atingir sobretudo porque a gravura em madeira não permite senão as chamadas reproduções planas, ou seja, os altos contrastes. Todavia, para além destes, outros aspectos merecem referência pela sua singularidade. São, por exemplo, o movimento expresso através das posturas físicas das pessoas e dos animais, que, no caso concreto dos bovinos e de um dos cães, saem para além dos limites do desenho; os pormenores do arrastamento da terra pelo arado; o cão cuja pata surge por detrás do batedor ou o outro que desaparece numa toca de coelho; enfim, tudo isto numa formulação gráfica de cariz lúdico-ilustrativo bastante invulgar para a época e que, na nossa opinião, já tinha tido expressão na gravura que ilustra

128


A gravura como processo de divulgação ideológico-imagética

4.54 Livro quinto das Ordenações – gravura impressa na oficina de Pedro de Cremona. Lisboa: 1514.

4.54

o Livro quarto. Com efeito, neste encontro do Rei com o povo apercebemo-nos de que as limitações do protocolo voltam a dar lugar à informalidade, que o silêncio e os gestos estudados se perdem no ruído dos pregões dos vendedores e no regatear entre homens de negócios, e que os gestos estudados são substituídos pelo movimento frenético de uma feira, onde a alegria dos homens simples parece colar-se ao aparente sorriso do próprio Rei, por contraste com a sua expressão de autoridade, devoção ou misericórdia, respectivamente no

129


A divina Arte das Artes

contacto com magistrados, desembargadores ou militares, religiosos ou presos agrilhoados. Não porque possamos afirmar que este conjunto importante de gravuras tem um desenhador português por detrás da sua concepção, ou um gravador português por detrás da sua abertura na madeira, mas porque é indiscutível que se identificam com o carácter português e manuelino, nós continuamos a defender que terão sido pensadas em Portugal, de acordo com uma estratégia ideológico-imagética muito clara, onde se adivinha a presença e o acompanhamento das várias fases do processo de produção pelo próprio Rei D. Manuel I, primeiro quando é feita a opção por um modelo de representação do Poder Real que, como vimos, vem de Salamanca pela mão de João Pedro de Cremona, mas que, de resto, corre com fluência no resto da Europa, nomeadamente em experiências como as levadas a efeito, por exemplo, em Informatio Puerorum, uma gramática inglesa do princípio do século, ou em Claros varones de España com las letras, de Hermando del Pulgar, impresso também no princípio do século, por Estanislao Polono, em Sevilha; depois quando as personagens são meticulosamente escolhidas e formalmente representadas de acordo com a sua condição de humildes executores dos poderes atribuídos pelo Rei; mas também quando este mesmo Rei supostamente decide que a barba é um sinal excessivo e supérfluo no contexto da afirmação de um conjunto de leis que estão para além de si próprio, ou quando ao sorriso do povo se associa um monarca poderoso mas não contestado, justo e solidário. Por tudo isto, são portuguesas as imagens; em Portugal terão sido desenhadas e abertas as gravuras que lhe estão relacionadas; e português ou estrangeiro, vindo de Salamanca ou

130


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