H.P. Lovecraft Contos

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H.P. LOVECRAFT _ CONTOS _

Design e Ilustrações

Arthur Ferreira


Autor

H.P. Lovecraft

Tradução

http://hplovecraft.com.br/contos

Design Gráfico

Arthur Ferreira

Capa e Ilustrações Arthur Ferreira Professor(a)

Roberta de Freitas •

Este livro é fruto da disciplina Tópicos Especiais em Produção Editorial do curso de Design Gráfico - UVA 2018.1



SUMÁRIO Apresentação

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Dagon

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A tumba

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APRESENTAÇÃO H. P. Lovecraft, foi um escritor estadunidense que revolucionou o gênero de terror, atribuindo-lhe elementos fantásticos típicos dos gêneros de fantasia e ficção científica. Lovecraft chamava seu princípio literário de “cosmicismo” ou “terror cósmico”, pelo qual a vida é incompreensível ao ser humano e o universo é infinitamente hostil aos seus interesses. Suas obras expressam uma profunda indiferença às crenças e atividades humanas, assim como uma atitude profundamente pessimista e cínica, muitas vezes desafiando os valores do Iluminismo, do Romantismo, do Cristianismo e do Humanismo. Os protagonistas de Lovecraft eram o oposto dos tradicionais por momentaneamente anteverem o horror da última realidade e do abismo. Durante sua vida, Lovecraft teve um número relativamente pequeno de leitores. No entanto, com o passar das décadas, sua reputação foi se elevando e, agora, o autor é considerado um dos escritores de terror mais influentes do século XX. Dagon e A Tumba foram os dois primeiros contos escritos por H.P. Lovecraft e suas primeiras histórias já como adulto, ambas escritas no verão de 1917 e publicadas em 1919 e 1922 respectivamente

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CAPÍTULO 1

DAGON POR H.P. LOVECRAFT


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E

stou escrevendo isto sob uma grande tensão mental, já que nesta noite eu não deverei mais existir. Sem um centavo, e no fim do meu suprimento de remédio que por si só consegue tornar minha vida tolerável, eu já não consigo suportar mais a tortura; e devo me atirar dessa janela do sótão em direção a rua esquálida lá embaixo. Não pense que por causa da minha escravidão à morfina eu seja um fraco ou um degenerado. Quando você tiver lido estas páginas rabiscadas às pressas você poderá imaginar, porém nunca perceber completamente, o motivo pelo qual eu preciso ter o completo esquecimento ou a morte.

Foi num dos trechos mais abertos e pouco frequentados do extenso Pacífico, que o paquete do qual eu era comissário de bordo foi vítima de um navio corsário alemão. A grande guerra estava até então bem no seu início, e as forças oceânicas dos Hunos não haviam afundado completamente para as suas degradações posteriores; de modo que nossa embarcação se tornara um legítimo prêmio, enquanto nós da tripulação fomos tratados com toda a equidade e consideração devida a nós como prisioneiros navais. Era tão liberal, de fato, a disciplina dos nossos captores, que cinco dias após termos sido tomados, eu consegui escapar sozinho num pequeno barco com água e suprimentos para um bom período de tempo. Quando finalmente me encontrei à deriva e livre, eu não tinha a mínima ideia do que me rodeava. Nunca um navegador competente, eu só podia adivinhar vagamente pelo sol e pelas estrelas que eu estava um pouco ao sul do Equador. Da longitude eu nada sabia, e nenhuma ilha ou linha costeira estava à vista. O tempo se manteve firme, e por incontáveis dias eu flutuei sem direção debaixo do sol escaldante; esperando ou por algum navio passageiro, ou ser atirado às praias de alguma terra habitável. Mas nem navio ou terra apareceu, e eu comecei a me desesperar em minha solidão sobre a vastidão ondulante de interminável azul. A mudança aconteceu enquanto eu dormia. Seus detalhes eu jamais saberei; já o meu sono, apesar de perturbado e infestado de sonhos, era contínuo. Quando finalmente acordei, foi para 10


me encontrar sugado pela metade numa extensão viscosa de lama negra infernal, que se estendia em monótonas ondulações até onde minha vista alcançava, e na qual meu barco estava enterrado com certa distancia. Embora alguém pudesse muito bem imaginar que a minha primeira sensação seria de surpresa com uma transformação tão prodigiosa e inesperada de cenário, eu estava na realidade mais horrorizado do que surpreso; pois havia no ar e no solo apodrecido uma característica sinistra que me gelou até o âmago. A região estava pútrida com as carcaças de peixes em decomposição, e de outras coisas menos descritíveis que eu vi protuberando da desagradável lama da planície sem fim. Talvez eu não devesse esperar transmitir em meras palavras o horror inexprimível que pode habitar num silêncio absoluto e na imensidão estéril. Não existia nada ao alcance do ouvido, e nada a vista salvo uma vasta extensão de lodo preto; contudo a própria plenitude da quietude e a homogeneidade da paisagem me oprimiram com um medo nauseante. O sol estava brilhando de um céu que me parecia quase preto em sua crueldade sem nuvens; como se refletisse o pântano manchado sob os meus pés. Enquanto eu me rastejava em direção ao barco encalhado, eu percebi que apenas uma teoria poderia explicar minha situação. Através de alguma de uma convulsão vulcânica sem precedentes, uma parte do fundo do oceano devia ter sido jogada para a superfície, expondo regiões que durante inúmeros milhões de anos haviam ficado escondidas sob profundezas aquáticas insondáveis. Tão grande era a extensão da nova terra que se elevara abaixo de mim, que eu não pude detectar o mais tênue ruído do oceano, por mais que forçasse os ouvidos. Também não havia qualquer ave marinha para devorar as coisas mortas. Durante muitas horas eu fiquei sentado pensando e remoendo no barco, que estava caído de lado e proporcionando um pouco de sombra à medida que o sol se movia pelos céus. No decorrer do dia o chão perdeu um pouco da sua viscosidade, e pareceu 11


que provavelmente, num curto espaço de tempo, se tornaria seco o suficiente para o propósito de viajar. Naquela noite eu dormi, mas pouco, e no dia seguinte fiz para mim mesmo um pacote contendo comida e água, preparações para uma jornada terrestre em busca do mar desaparecido e de um possível resgate. Na terceira manhã eu achei o solo seco o suficiente para caminhar sobre ele com facilidade. O odor dos peixes era enlouquecedor; mas eu estava preocupado demais com coisas mais graves para me importar com um mal tão leve, e parti corajosamente rumo a um objetivo desconhecido. Durante todo o dia eu caminhava firmemente na direção oeste, guiado por um outeiro distante que se elevara mais alto que qualquer outra elevação no deserto ondulado. Naquela noite eu acampei, e no dia seguinte ainda viajei em direção ao outeiro, embora aquele objeto parecesse estar pouca coisa mais perto do que da primeira vez em que eu o espiei. Pela quarta noite eu atingi a base do monte, que acabou sendo muito mais alto do que parecera à distância; um vale interposto destacava seu perfil da superfície geral. Exausto demais para subir, eu dormi na sombra da colina. Não entendo por que meus sonhos foram tão agitados naquela noite; mas antes da curva fantasticamente acentuada da lua minguante ter-se erguido muito acima do lado oriental da planície, eu fui acordado num suor frio, determinado a não dormir novamente. Tais visões as quais eu havia experienciado eram demais para suportar novamente. E sob o brilho do luar eu percebi o quão imprudente eu havia sido por viajar durando o dia. Sem o brilho do sol abrasador, minha jornada teria me custado menos energia; na verdade, eu agora me sentia bastante capaz para realizar a subida que me havia intimidado ao entardecer. Apanhando minhas provisões, eu parti para a crista da elevação. Eu já disse que a monotonia constante da planície ondulada era uma fonte de horror vago para mim, mas acho que meu horror foi maior quando alcancei o cume do monte e olhei para o outro lado, para um imensurável fosso ou desfiladeiro, cujos recessos 12


negros a lua ainda não havia se erguido o suficiente para iluminar. Eu me senti no limiar do mundo, olhando sobre sobre a borda para um caos insondável de noite eterna. Pelo meu terror passaram curiosas reminiscências do Paraíso Perdido, e da hedionda ascensão de Satã pelos reinos indecorosos das trevas. À medida que a Lua subiu mais alto no céu, eu comecei a notar que as encostas do vale não eram tão perpendiculares quanto eu havia imaginado. Ressaltos e afloramentos da rocha forneciam apoios razoavelmente fáceis de pés para uma descida, enquanto após um mergulho de algumas centenas de pés, o declive se tornou bastante gradual. Impelido por um impulso que não consigo definitivamente analisar, desci com dificuldade pelas rochas e parei na encosta menos íngreme abaixo, fitando as profundezas tenebrosas onde nenhuma luz havia jamais penetrado. De repente minha atenção foi capturada por um vasto e singular objeto na encosta oposta, que se erguia abruptamente a cerca de cem jardas à minha frente; um objeto que brilhou esbranquiçadamente sob os recentes raios agraciados da Lua crescente. Que isso fosse meramente um pedaço gigantesco de rocha, eu logo me assegurara; mas eu estava consciente de uma distinta impressão de que seu contorno e posição não eram de todo o trabalho da Natureza. Um exame mais minucioso me encheu de sensações que não consigo expressar; pois apesar de sua enorme magnitude, e sua posição num abismo que ficara escondido no fundo do mar desde que o mundo era jovem, eu percebi sem sombra de dúvidas que o estranho objeto era um monólito bem moldado cujo volume maciço havia conhecido o artesanato e talvez a adoração de criaturas vivas e pensantes. Pasmo e assustado, mas não sem uma certa excitação de um prazer científico ou arqueológico, eu examinei meu entorno mais de perto. A Lua, agora perto do zênite, brilhava estranhamente e vividamente acima das escarpas altas que cercavam o abismo, revelando o fato de que um um extenso corpo d’água corria em seu fundo, até se perder de vista em ambas as dire13


ções, e quase lambia meus pés enquanto eu estava na encosta. Do outro lado do abismo, as pequenas ondas lavavam a base do monólito ciclópico; sobre cuja superfície eu podia agora distinguir tanto inscrições quanto esculturas brutas. A escrita estava num sistema de hieróglifos desconhecido para mim, e diferente de tudo que eu já vira em livros; consistindo em sua maior parte de símbolos aquáticos convencionalizados como peixes, enguias, polvos, crustáceos, moluscos, baleias, e coisas assim. Diversos caracteres obviamente representavam coisas marinhas que eram desconhecidas para o mundo moderno, mas cujas formas em decomposição eu havia observado na planície erguida do oceano. Foram os entalhes pictóricos, porém, que mais me encantaram. Claramente visível através da água interveniente por conta do seu tamanho, havia um arranjo de baixos-relevos cuja temática teria provocado a inveja de Doré. Imagino que aquelas coisas deviam supostamente ilustrar homens – ao menos, um certo tipo de homens; embora as criaturas fossem mostradas divertindo-se como peixes nas águas de alguma gruta marinha, ou venerando algum santuário em forma de monólito que também parecera estar submerso. De seus rostos e formas eu não ouso falar com detalhes; sua mera recordação me deixa aturdido. Grotesco além da imaginação de um Poe ou de um Bulwer, eles eram abominavelmente humanos em seu contorno geral, apesar das mãos e pés palmados, dos lábios chocantemente largos e flácidos, dos olhos saltados e vítreos, e outras feições ainda menos agradáveis de se lembrar. Curiosamente, eles pareciam ter sido cinzelados muito fora de proporção em relação ao cenário de fundo; pois uma das criaturas era mostrada no ato de matar uma baleia, representada com um tamanho pouco maior do que o seu. Eu comentei, como digo, sobre seu jeito grotesco e estranho tamanho; mas num momento achei que eram apenas os deuses imaginários de alguns pescadores primitivos ou tribos marítimas; alguma tribo cujos derradeiros descendentes teriam perecido muitas eras antes do primeiro ancestral do Homem de Piltdown ou do Neandertal ter nascido. Extasiado diante daquele inesperado vislumbre de um passado além da concepção do 14


mais ousado antropólogo, eu fiquei ali meditando enquanto a Lua lançava curiosos reflexos no silencioso canal à minha frente. Então de repente eu a vi. Com apenas uma leve agitação para indicar sua subida à superfície, a coisa emergiu para fora das águas escuras. Enorme, polifêmica e repugnante, ela disparou como um monstro estupendo do pesadelo para o monólito, sobre o qual jogou seus gigantescos braços escamosos, enquanto inclinava a cabeça horripilante produzindo sons ritmados. Pensei ter enlouquecido então. De minha subida frenética da encosta e do penhasco, e da minha delirante jornada de volta ao barco encalhado, pouco me recordo. Creio que cantei muito, e ri estranhamente quando era incapaz de cantar. Eu tenho vagas recordações de uma grande tempestade algum tempo depois de alcançar o barco; de qualquer forma, sei que ouvi o estrondo de trovões e outros ruídos que a natureza expressa somente em seus humores mais selvagens. Quando saí das trevas eu estava num hospital em São Francis­co; levado pelo capitão de um navio americano que recolhera meu barco no meio do oceano. Em meu delírio eu falei muito, mas descobri que minas palavras receberam pouca atenção. Sobre qualquer afloramento de terra no meio do Pacífico, meus salvadores não sabiam nada a respeito; nem eu julguei necessário insistir em algo de que sabia que eles não poderiam acreditar. Procurei certa vez um famoso etnólogo, e o diverti com perguntas curiosas sobre a antiga lenda filistina de Dagon, o DeusPeixe; mas logo percebendo que ele era um racionalista irremediável, eu não pressionei meus inquéritos. É durante a noite, especialmente quando a lua está muito curva e minguante, que eu vejo a coisa. Tentei a morfina; mas a droga me deu apenas um alívio temporário, e me arrastou para suas garras como um escravo sem esperança. Então agora eu pretendo acabar com tudo, tendo escrito um relato completo para a informação ou a desdenhosa diversão de meus semelhantes. 15


Muitas vezes me pergunto se tudo não teria passado de pura fantasmagoria — uma simples fantasia febril enquanto eu jazia, castigado pelo sol e delirante naquele barco sem cobertura, depois da minha fuga do navio de guerra alemão. Isso eu me pergunto, mas sempre me vem uma visão terrivelmente pavorosa em resposta. Não consigo pensar no mar profundo sem estremecer com as coisas inomináveis que podem neste exato momento estar arrastando-se e espojando-se em seu leito viscoso, adorando seus antigos ídolos de pedra e cinzelando a sua própria e detestável semelhança em obeliscos submarinos de granito encharcado. Eu sonho com o dia em que elas poderão ascender acima dos vagalhões para arrastar para o fundo com suas garras fétidas, os remanescentes de uma humanidade debilitada, exaurida pela guerra — o dia em que a terra deva afundar, e o fundo negro do oceano erguer-se em meio a um pandemônio universal. O fim está próximo. Ouço um ruído à porta, como se um imenso corpo escorregadio a estivesse serrando. Ele não deve me encontrar. Deus, aquela mão! A janela! A janela!

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CAPÍTULO 2

A TUMBA POR H.P. LOVECRAFT



A

o relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, mediante os quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio. Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho habitado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível; passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos, e a percorrer os campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali; mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar os eventos sem analisar as causas. Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer; desde que, à falta da camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não são, ou não mais estão, vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante singular, em cujas profundezas crepusculares eu 20


passava grande parte de meu tempo; lendo, pensando, e sonhando. Pelas suas encostas cobertas de musgo ensaiei meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos grotescamente retorcidos se teceram minhas primeiras fantasias de juventude. Eu bem vim a conhecer as dríades dessas árvores, e não raro assisti às suas danças selvagens sob os raios vacilantes de uma lua pálida – mas acerca dessas coisas não devo falar agora. Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro do declive; a tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família cujo último descendente direto fora depositado em seus negros recessos muitas décadas antes do meu nascimento. O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e descolorido pelas névoas e pela umidade de gerações. Escavada na encosta, apenas a entrada da construção é visível. A porta, uma pesada e proibitiva laje de pedra, pende de dobradiças de metal enferrujado, e ligeiramente aberta jaz lacrada numa forma estranhamente sinistra por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um desastroso golpe de relâmpago. Daquela tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão, os habitantes mais velhos da região às vezes falam entre sussurros e vozes inquietas; aludindo ao que chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer vagamente o já forte fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombra e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante; na qual a família havia reparado quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras lavadas pelas chuvas. 21


Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei com a semi-oculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogênea massa de verde; quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de verdura úmida e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa tal ambientação a mente perde suas perspectivas; tempo e espaço tornam-se triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem insistentemente contra a consciência enfeitiçada. Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques místicos do vale; a conceber pensamentos que não preciso discutir, e a conversar com coisas que não preciso nomear. Com apenas dez anos, eu tinha visto e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia; e já era espantosamente maduro em certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente entreaberta, e os entalhes fúnebres sobre o arco, não despertaram em mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu temperamento peculiar, de todo contato com adros e cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o mato na encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e especulação; e seu interior frio e úmido, para dentro do qual eu espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente irracional que me trouxe até este inferno de confinamento. Encorajado por uma voz que deve ter vindo da medonha alma da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam minha passagem. Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo experimentei espremer meu corpo magro através do pouco espaço disponível; mas ambos os planos não surtiram efeito. Curioso no início, tornei-me frenético; e quando ao anoitecer retornei a casa, jurara aos 22


cem deuses da mata que a qualquer custo um dia haveria de forçar minha entrada nas profundezas escuras e gélidas que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os dias vem até meus aposentos certa vez disse a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei o julgamento final a cargo de meus leitores depois que souberem de tudo. Os meses subsequentes à minha descoberta foram gastos em tentativas fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem como em investigações cuidadosamente guardadas acerca da natureza e da história da construção. Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um menino, aprendi muito; embora uma discrição habitual não me permitisse contar a ninguém sobre o meu conhecimento ou minha resolução. Talvez seja importante mencionar que não fiquei nem um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico. Minhas idéias bastante originais acerca da vida e da morte tinham me levado a associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que respira; e senti que a grande e sinistra família da mansão incendiada estava de algum modo representada dentro do espaço de pedra que eu procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos exóticos e festins pagãos de épocas passadas ocorridos dentro do vestíbulo ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pela tumba, em frente a cuja porta eu me sentaria durante horas diariamente. Um dia acendi uma vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver a não ser um lance descendente de degraus de pedra úmida. O odor do lugar me repelia e ao mesmo tempo me enfeitiçava. Sentia como se já o tivesse conhecido, num passado remoto anterior a toda lembrança; anterior mesmo à habitação deste corpo que agora possuo. No ano seguinte àquele em que vi a tumba pela primeira vez, deparei-me, no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução corroída das Vidas Paralelas. Ao ler a vida de Teseu, fiquei por demais impressionado com a passagem em que se fala da enorme pedra sob a qual o menino herói haveria de en23


contrar as pistas sobre seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente para erguer seu enorme peso. Essa lenda teve o efeito de dissipar minha aguda impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a hora ainda não chegara. Mais tarde, eu disse a mim mesmo, devo crescer para adquirir força e habilidade que me permitirão destrancar facilmente a porta que os grilhões encerram; mas até lá seria melhor me conformar com o que me parecia ser a vontade do destino. Consequentemente minhas vigílias diante do portal úmido tornaram-se menos persistentes, e grande parte do meu tempo era despendida em outras atividades igualmente estranhas. Às vezes eu me levantava em silêncio durante a noite, saindo às escondidas para andar por esses cemitérios ou locais de sepultamentos dos quais meus pais me mantiveram afastado. O que eu fazia lá não posso dizer, pois agora não estou seguro da realidade de certas coisas; mas sei que no dia seguinte a essas rondas noturnas eu costumava pasmar os que me cercavam exibindo conhecimento de assuntos quase esquecidos durante muitas gerações. Foi depois de uma noite dessas que surpreendi a comunidade com uma ideia inusitada acerca do enterro do rico e celebrado Squire Brewster, personagem da história local que fora sepultado em 1711, e cuja lápide de ardósia, exibindo um crânio gravado e ossos cruzados, estava lentamente se transformando em pó. Num lance de fantasia infantil aventei não somente que o coveiro, Goodman Simpson, teria roubado os sapatos de fivelas de prata, as calças de seda, e as roupas de baixo de cetim do falecido antes do enterro; mas que o próprio Squire, não totalmente inanimado, teria se virado duas vezes em seu caixão coberto de terra no dia seguinte ao do sepultamento. Mas a ideia de entrar na tumba nunca me saiu dos pensamentos; sendo mesmo estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que minha própria ascendência materna mantinha ao menos um ligeiro vínculo com a supostamente extinta família dos Hydes. Último de minha raça paterna, eu era igualmente o último dessa linhagem mais antiga e mais misteriosa. Comecei a sentir que a tumba era minha, e a esperar ansiosamente pelo 24


momento em que poderia atravessar a porta de pedra e descer na escuridão por aqueles degraus de pedra lodosa. Adquiri o hábito de ouvir com atenção através do portal semiaberto, preferindo as horas da quietude noturna para essa estranha vigília. Quando adquiri mais idade, abri uma pequena clareira no matagal que recobria a fachada manchada de mofo do declive, permitindo que a vegetação circundante cercasse e envolvesse o espaço como as paredes e teto de um caramanchão silvestre. Essa clareira se tornou meu templo, a porta fechada meu santuário, e era aqui que eu me deitava sobre o solo musgoso, pensando estranhos pensamentos e sonhando estranhos sonhos. A noite da primeira revelação estava bastante abafada. Devo ter adormecido de cansaço, pois foi com uma clara sensação de despertar que ouvi as vozes. Hesito em falar desses acentos e timbres; não falarei de sua qualidade; mas posso dizer que apresentavam espantosas diferenças de vocabulário, pronúncia, e modos de expressão. Cada matiz dialetal da Nova Inglaterra, desde as ásperas sílabas dos colonos puritanos até a retórica precisa de cinqüenta anos atrás, parecia representado naquele colóquio sombrio, conquanto somente mais tarde eu notasse esse fato. Naquela hora, decerto, minha atenção foi desviada desse aspecto por um outro fenômeno; um fenômeno tão fugaz que eu não poderia jurar acerca de sua realidade. Mal me dei conta de que enquanto eu despertava, uma luz foi imediatamente apagada dentro do sepulcro escuro. Não creio que fiquei perplexo ou tomado por pânico, mas sei que fui transformado profunda e permanentemente naquela noite. Logo que voltei a casa, dirigi-me imediatamente a uma arca carcomida no sótão, onde encontrei a chave que no dia seguinte removeu com facilidade o obstáculo que eu tentara forçar por tanto tempo em vão. Foi sob o brilho de um suave entardecer que entrei pela primeira vez na cripta da encosta abandonada. Como se enfeitiçado, meu coração vibrava de um contentamento que mal consigo descrever. Assim que fechei a porta atrás de mim e desci os degraus encharcados à luz da minha solitária vela, era como se eu já soubesse o caminho; e embora a vela crepitasse na atmosfera 25


sufocante do lugar, eu me sentia singularmente em casa naquele ar mofado e sepulcral. Olhando ao meu redor, avistei muitas lajes de mármore sustentando esquifes, ou os restos de esquifes. Alguns destes estavam lacrados e intactos, mas outros já haviam quase se desfeito, deixando apenas as alças de prata e as placas isoladas em meio a alguns montículos curiosos de pó esbranquiçado. Sobre uma das placas li o nome de Sir Geoffrey Hyde, o qual viera de Sussex em 1640 e morrera aqui uns poucos anos mais tarde. Numa alcova conspícua havia um caixão desocupado e bastante bem preservado, adornado apenas com um nome que me fez sorrir e estremecer. Um impulso inusitado me levou a subir na larga laje, apagar minha vela e a me deitar dentro da caixa vazia. À luz cinzenta da aurora cambaleei para fora da cripta e tranquei a corrente da porta atrás de mim. Já não era mais um jovem, embora apenas vinte e um invernos houvessem esfriado minha estrutura corpórea. Aldeões madrugadores que observaram meu progresso até minha casa olhavam-me de maneira estranha, e espantavam-se com os sinais de irreverente euforia que viram num homem cuja vida era conhecidamente solitária e austera. Não compareci perante meus pais sem antes passar por um sono longo e restaurador. Desde então passei a ir à tumba a cada noite; vendo, ouvindo, e fazendo coisas que não devo jamais revelar. Meu modo de falar, sempre suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à mudança; e o arcaísmo de dicção que subitamente adquiri foi logo notado. Mais tarde uma estranha audácia e imprudência apareceram em meu comportamento, até que inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem do mundo apesar da minha reclusão ao longo da vida. Minha língua, silenciosa de costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield ou com o cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar erudição, totalmente distinta do saber fantástico e monacal sobre o qual me fartara em minha juventude; bem como a cobrir as guardas de meus livros com fáceis epigramas de improviso, os quais evocavam acentos 26


de Gay, Prior e a engenhosidade vivaz dos Augustanos. Certa manhã durante o desjejum cheguei à beira do desastre ao declamar com acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma jovialidade Bacanal do século XVIII; uma peça de jocosidade Georgiana nunca registrada num livro, que dizia mais ou menos o seguinte: Tragam aqui, meus rapazes, seus canecos de cerveja, E bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja; Encham seus pratos de bifes, empilhando-os em montanha, Pois só beber e comer é o que da vida se ganha: Então encham suas taças, Pois a vida logo passa; Quando estiver morto ao rei ou à amada não há um brinde faça! Anacreonte tinha um nariz vermelho, se diz; Mas o que é um nariz vermelho se você é alegre e feliz? Deus me castigue! Melhor ser vermelho agora que estar, Branco como um lírio e morto antes do ano acabar! Venha, Betty, em festa, Beije-me na testa; No inferno não há filha do estalajadeiro como esta! Que o jovem Harry ainda esteja de pé nos causa surpresa, Logo há de perder a linha e entrar debaixo da mesa; Mas encham bem suas taças, passem-nas de mão em mão — Melhor embaixo da mesa do que debaixo do chão! Que reine o festim Que bebam por mim: Sob sete palmos de terra não se ri tão bem assim! Que o diabo me carregue, se mal consigo andar, E maldito eu seja se consigo de pé ainda falar! Aqui, patrão, mande Betty chamar um carro que eu vou; Correr para casa, enquanto minha esposa não chegou! Alguém me sustente; Antes que eu me sente, Que enquanto eu estiver sob a terra estou feliz e contente. 27


Por essa época é que adquiri meu medo atual ao fogo e aos temporais. Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um indizível horror; e me retiraria para os recantos mais profundos da casa assim que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um de meus abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão que se incendiara, e na imaginação eu reconstituía a estrutura tal qual teria sido em seus primórdios. Em certa ocasião, deixei pasmado um aldeão ao conduzi-lo secretamente até um sub-porão de teto baixo, de cuja existência eu parecia saber a despeito do fato de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas gerações. Por fim aconteceu o que eu há muito temia. Meus pais, alarmados com a alteração das maneiras e aparência de seu único filho, começaram a exercer sobre meus movimentos uma amável espionagem a qual ameaçava resultar em desastre. Não contei à ninguém acerca de minhas visitas à tumba, tendo guardado meu propósito secreto com zelo religioso desde a infância; mas agora me via forçado a ter cautela quando penetrava os labirintos da depressão brenhosa, onde eu poderia despistar um possível seguidor. Minha chave para a cripta eu a mantinha pendurada num cordão no pescoço, como um segredo que só eu conhecia. Nunca trouxe para fora do sepulcro qualquer das coisas que encontrei por entre aquelas paredes. Certa manhã quando saí da tumba úmida e prendi as correntes do portal com pouca firmeza, percebi numa macega próxima a face horrorizada de um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo; pois meu recanto fora descoberto, e o objetivo de minhas jornadas noturnas fora revelado. O homem não me abordou, de modo que me apressei a chegar em casa a fim de descobrir o que ele reportaria ao meu preocupado pai. Seriam minhas incursões para além do portal trancado reveladas ao mundo? Imagine com que espanto deleitoso ouvi meu espião informar a meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado a noite na clareira em frente à tumba; meus olhos baços de sono fixados na fenda da porta entreaberta trancada por cadeados! Que milagre ocorrera a ponto de iludir assim esse observador? 28


Convenci-me de que um agente sobrenatural me protegera. Na audácia que tal circunstância enviada do céu me dava, passei a ir sem nenhuma dissimulação à cripta; na confiança de que ninguém testemunharia minha entrada. Durante uma semana provei à saciedade as alegrias daquele convívio sepulcral o qual não devo descrever, até que a coisa aconteceu, e me vi arrastado para este maldito lugar de tristeza e melancolia. Não devia ter me aventurado a sair naquela noite; pois indícios de trovões relampejavam nas nuvens, e uma fosforescência infernal subia do pântano ao fundo do vale. O chamado dos mortos, também, estava diferente. Em vez da tumba na encosta, era o porão chamuscado no topo da elevação no qual o demônio que o presidia me acenava com dedos invisíveis. Quando saí de um matagal intermediário para o plaino diante da ruína, descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual sempre esperara vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se erguia no alto como uma visão arrebatadora; todas as janelas a brilhar com o esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam as carruagens da elite de Boston, enquanto a pé se aproximava um numeroso ajuntamento de janotas empoados provenientes das mansões vizinhas. Misturei-me a essa multidão, conquanto estivesse certo de pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes. Para além do saguão havia música, gargalhadas, e vinho em todas as mãos. Reconheci muitas faces; embora eu deveria tê-las melhor reconhecido se não estivessem ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. Em meio a essa turba selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o mais debochado. Alegres blasfêmias jorravam de meus lábios, e em chocantes gracejos eu desprezava as leis de Deus, do homem, ou da natureza. Súbito, o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra do imundo festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a companhia turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor ardente envolveram a casa; e os participantes, tomados pelo pavor de uma iminente calamidade que parecia transcender os limites da natureza desgovernada, fugiram aos gritos noite adentro. Somente eu permaneci, preso ao meu assento por um medo 29


humilhante que nunca antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de minha alma. Queimado vivo até às cinzas, meu corpo disperso aos quatro ventos, eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! Não estava meu caixão já preparado para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a eternidade entre os descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu exigiria minha herança de morte, mesmo que minha alma vagasse através das eras à procura de uma nova habitação corpórea que a representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta. Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de Palante! Quando a aparição da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a gritar e a me contorcer loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era o espião que me seguira até a tumba. A chuva caía torrencialmente, e sobre o horizonte na direção sul viam-se os clarões dos relâmpagos que há pouco tinham passado sobre nossas cabeças. Meu pai, a face transtornada de pesar, estava ao lado enquanto eu ordenava aos berros que me colocassem na tumba; avertendo freqüentemente os meus captores para me tratarem com a máxima consideração. Um círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma carga violenta dos céus; e era nesse local que um grupo de aldeões curiosos estava a examinar com lanternas uma caixa pequena de fabricação antiga, que a explosão do raio trouxera à luz. Cessando minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os espectadores enquanto olhavam o pequeno tesouro, e obtive permissão para compartilhar de suas descobertas. A caixa, cujo fecho tinha se partido com o golpe que a desenterrara, continha muitos papéis e objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Tratava-se da miniatura em porcelana de um homem jovem usando uma peruca caprichosamente encaracolada, a qual portava as iniciais “J. H.” Quanto à face, sua conformação era tal como se eu estivesse a me olhar no espelho. No dia seguinte trouxeram-me a este quarto que tem grades nas janelas, mas tenho sido informado sobre certas coisas por um velho servente de mentalidade rude, por quem nutro simpatia 30


desde a infância, o qual tal como eu mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei relatar de minhas experiências na cripta trouxe-me apenas sorrisos de piedade. Meu pai, que me visita com freqüência, assevera que em tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes, e jura que quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre esteve ao longo de cinqüenta anos. Ele até mesmo chega a dizer que toda a comunidade sabia de minhas idas ao túmulo, e que eu era muitas vezes vigiado enquanto dormia na clareira da encosta, meus olhos semicerrados fixos na fenda que conduz ao interior. Contra essas afirmações não tenho nenhuma prova tangível, até porque a chave para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores. As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros noturnos com os mortos ele as reputa como meros frutos de minha vida pregressa de onívoros estudos em volumes antigos da biblioteca da família. Não fosse pelo meu velho serviçal Hiram, eu hoje estaria convencido de minha loucura. Mas Hiram, leal até o fim, conservou sua fé em mim e fez aquilo que me impele a trazer a público pelo menos uma parte de minha história. Há uma semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta da tumba em sua posição perpetuamente semicerrada, e desceu com uma lanterna até as profundezas sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um velho mas ainda vazio caixão cuja inscrição deslustrada continha a única palavra “Jervas”. Nesse caixão e nessa cripta é que me prometeram que serei enterrado.

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