CAPSR - Centro de Apoio à População em Situação de Rua

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CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ARTHUR DA COSTA MENESES LIMA



CAPSR Centro de Apoio à População em Situação de Rua


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca Universitária Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

L696c

Lima, Arthur. CAPSR - Centro de Apoio à População em Situação de Rua / Arthur Lima. – 2017. 179 f. : il. color. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Tecnologia, Curso de Arquitetura e Urbanismo, Fortaleza, 2017. Orientação: Profa. Dra. Márcia Gadelha Cavalvcante. 1. Centro de Apoio. 2. População em Situação de Rua. 3. Morador de Rua. 4. Psicologia AMbiental. I. Título. CDD 720


UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO TG0063 - PROJETO DE GRADUAÇÃO

CAPSR Centro de Apoio à População em Situação de Rua Profa. Márcia Gadelha Cavalcante

Prof. Ricardo Figueiredo Bezerra

Arq. Paulo Henrique Hissa Peixoto

Arthur da Costa Meneses Lima



AGRADECIMENTOS O início de tudo começa fora de mim. Minha história não é minha originalmente, ela foi -me dada por graça e Amor, e eu prontamente a recebi. Deus foi extremamente bondoso e gracioso comigo quando me concedeu a dádiva das oportunidades que tive e tentei agarrar. Uma delas foi o contato com a arquitetura. Ele tem guardado-me, guiado-me, abençoado-me e iluminado-me durante toda a minha vida, e na arquitetura não foi diferente. O primeiro OBRIGADO eu digo a Ele, que primeiro se fez Amor e Graça em mim/para comigo. O curso de Arquitetura e Urbanismo me deu presentes valiosíssimos, os quais eu nunca vou esquecer, cultivo-os até e hoje e pretendo continuar desfrutando deles por mais longos anos. Marília Aguiar, a primeira amizade arquitetônica e que tanto me acrescenta, até muito mais fora da faculdade, sobre a qual me faltam palavras para expressar nosso sentimento mútuo. Olívia Patrício, que firmou parceria comigo para a vida toda e tem divido vários e importantes momentos da vida acadêmica, pessoal, emocional e profissional! Manoella Linhares, Leonardo Ribeiro, especificamente, por terem sido pontes abençoadas que me levaram mais longe na vida profissional, possibilitando-me as melhores experiências de estágios (os melhores escritórios onde estagiei, onde aprendi bastante, foram por causa deles, eles me indicaram!). A cumplicidade e o bem-querer da Thays Gama, da Wynie Araújo, Beatriz Fontenele, Renan Braga, Mariana Ferreira, Lia Gadelha, Amanda Holanda, Lucas Tavares, Josyane Osório fizeram toda a diferença nos meus dias. A minha jornada nessa graduação foi mais linda por causa de vocês! Quero registrar, separadamente, minha gratidão pela Jéssica Chaves. Além de tudo o que compartilhamos durante todos esses anos de faculdade, nessa etapa final e de extrema importância para mim, ela esteve de braços e peito abertos, solícita, incapaz de negar a ajuda que fosse, e o tempo todo torcendo por mim e me encorajando a seguir em frente. Você fez esse TFG acontecer junto comigo, Jessie-cat! Agradeço com todo o meu coração à Profa. Márcia Cavalcannte, que aceitou esse desafio junto comigo, não hesitou em nenhum momento, orientou-me academica e pessoalmente, deu-me “uma luz” quando tudo parecia sombrio, “comprou” minhas ideias malucas e descabidas para esse trabalho e me incentivou sempre a seguir e ser firme nas minhas decisões durante esse um ano que trabalhamos juntos. Não poderia ter tido uma orientação melhor! Por fim, quero fechar esse momento com dedicação de amor e gratidão mais sincera e honesta: à minha família. Meu pai, Ivan, e minha mãe, Mônica, em momento nenhum dos meus 26 anos desacreditaram de mim. Deram-me a liberdade devida, educaram-me dar melhor forma que uma pessoa poderia ser educada dentro das nossas circunstâncias. Todos os meus sonhos e do meu irmão, Ivens, eles se propuseram a sonhar junto, a apoiar, a suportar, a alimentar, a incentivar e motivar, a não nos permitir deixar “a peteca cair”. Eles sonham até mais alto e mais longe que nós mesmos e vislumbram um futuro de paz para nós. Quero nunca perder esse amor! Obrigado por me colocarem aqui e trabalhem junto comigo, algumas vezes até mais do que eu mesmo, para me manter caminhando e seguindo em frente! Agradeço ao Ivens, meu irmão e meu melhor amigo, meu exemplo de homem íntegro e de paz, meu modelo e ao qual eu recorro quando preciso de um bom referencial. Ao Paulo Victor, obrigado pela boa surpresa de uma das melhores fases da minha vida!

MUITO OBRGADO



SUMÁRIO PARTE I - APRESENTAÇÃO 01. Introdução 02. Tema 03. Justificativa 04. Objetivos 05. Metodologia

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PARTE II - ZÉ NINGUÉM, JOÃO SEM NOME E MARIA LOUCA 06. População em Situação de Rua - Panorama Naciona 07. População em Situação de Rua - Panorama Local

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PARTE III - O HOMEM MANUAL E O HOMEM INTELECTUAL SE DESCOBBREM 08. Referências Teóricas 09. O Homem Manual e o Homem Intelectual se Descobrem

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PARTE IV - CAPSR 10. Referências Projetuais 11. Terreno e Legislação Urbana 12. Partido Arquitetônico 13. Projeto Arquitetônico

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PARTE V - CONSIDERAÇÕES FINAIS 14. Conclusão 15. Referências Bibliográficas

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02. morador de rua 02

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01. morador de rua 01


PARTE I APRESENTAÇÃO



01. INTRODUÇÃO Este Trabalho Final de Graduação (TFG) tentou tratar com sensibilidade o crítico assunto sobre moradores de rua, sem-teto e desabrigados tão presentes e marcantes no cotidiano de Fortaleza. Eles são reais, seu número é crescente com o passar do tempo e à medida que a cidade se expande. Porém, mesmo assim, são ignorados e tratados como se não existissem. Se por vezes sua presença é reconhecida, eles são, então, tratados como sujeira e doença e precisam urgentemente ser higienizados, esterilizados ou simplesmente expurgados da sociedade, do espaço público e do direito à cidade. Assim sendo, procuramos uma abordagem mais humana sobre essa população em situação de rua e sobre uma arquitetura voltada para pessoas que vivem nesta realidade, atendendo suas demandas, tentando refletir sua cultura e seu estilo de vida. A vontade de fugir de um TFG convencional, onde o foco está em solucionar problemas técnicos ao se produzir um projeto de arquitetura, nasceu da minha curiosidade, enquanto aluno, por temas e discussões que se encaixam na Psicologia Ambiental. Tive contato com essa disciplina logo no início da graduação, mas essa abordagem, permito-me dizer mais humana, nunca mais cruzou o meu caminho dentro do curso de Arquitetura e Urbanismo, e tenho consciência de, mesmo antes de concluir o curso, que esse tipo de discussão não está presente no exercício profissional da arquitetura. Os problemas técnicos da edificação, tanto em normas da construção como no cumprimento da legislação vigente, são fundamentalmente necessários de serem resolvidos. Porém, onde está a nossa preocupação com os usuários enquanto humanos, dotados de emoções, de memória, de sentidos, de interesses, de curiosidades, de compaixão? Como podemos abordar o usuário como humano senão através de sua humanidade? E como abordar sua humanidade senão considerando sua biologia e sua psicologia? Nossos sistemas sensoriais afetam diretamente nossa cognição e nossos sentimentos. Aliás, eles são interdependentes. Por isso, esforçamo-nos bastante para nos manter atentos a detalhes e elementos que normalmente são negligenciados ou passam desapercebidos durante o processo de projeto, desde sua formulação, concepção em níveis abstratos e de planejamento, até serem refletidos e concretizados no ato de desenhar e projetar; para, desta forma, conceber uma arquitetura mais humana, mais sensível, mais empática e mais generosa com nós mesmos, enquanto sociedade. Nosso estudo está, principalmente, baseado no trabalho e nos estudos do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa. Com teorias bem estruturadas em conceitos de psicologia ambiental, estudos do espaço, do homem e suas trocas mútuas, ele argumenta e sugere uma abordagem de arquitetura diferente e, muitas vezes, divergente às abordagens comerciais e fictícias atuais. Além dele, trouxemos para o trabalho algumas teorias do antropólogo norte-americano Edward T. Hall,

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o mesmo tipo de abordagem sobre o binômio homem-espaço, mas com um discurso mais técnico, que conversa mais próximo da biologia, da física e da química. No que se refere à responsabilidade social, procuramos também esclarecer e enfatizar a natureza cidadã e dotada de direitos regidos por lei da população em situação de rua.

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02. TEMA Estudo sobre a importância do espaço na transformação do indivíduo em sociedade, através de um projeto de arquitetura de um centro de apoio, pousada popular e setores de acompanhamento psicossocial e capacitação profissional voltado para pessoas em situação de rua.

03. JUSTIFICATIVA A escolha pelo programa de centro de apoio se dá em razão da considerável quantidade de pessoas sem-teto, moradores de rua, na cidade de Fortaleza e a falta de equipamentos voltados para atender às necessidades básicas de descanso dessas pessoas. Geralmente, elas ficam à mercê de acaso como andarilhos urbanos, ou se valem de projetos sociais e/ou outros tipos de filantropia. O município de Fortaleza, até há pouco, não tinha estudos e estatísticas oficiais corretas sobre sua população em situação de rua. O levantamento do ano de 2008, informa um número de 1.718 moradores de rua, mas levou em consideração apenas indivíduos acima de 18 anos. Porém, como se é sabido, existem crianças e adolescentes também em situação de rua, acompanhadas ou não da família. Em matérias de jornais locais, Diário do Nordeste e O Povo, foram divulgados números como 3.241 e 4.500 para a quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de Fortaleza. Os principais motivos para a incerteza desse dado são a falta de equipes especializadas e capacitadas para esse levantamento e a impossibilidade de acompanhamento de alguns indivíduos, o que não permite saber se a pessoa saiu da situação de rua ou não. A Prefeitura Municipal de Fortaleza dispõe de três abrigos institucionais, com 50 vagas cada, e uma Pousada Social, com 80 vagas, totalizando apenas 230 vagas; dois Centros POP, com 30 vagas diárias em média cada um. Mesmo sem saber ao certo o número dessa população em situação de rua, se 1.718 ou 4.500, esse número de 230 vagas ainda é incompatível com o número oficialmente levantado, ainda que considerando a rotatividade dessas vagas. Mais a frente, na PARTE II, vamos explicar cada equipamento e como se diferenciam.

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04. OBJETIVOS Em matéria do jornal Diário do Nordeste de 2015, um homem em situação de rua afirmou “Na rua, ninguém dorme realmente. Leva a noite a tirar cochilo. Acorda por briga, por medo, por fome”. Também divulgado no Diário do Nordeste e no O Povo, tem-se os números referentes aos moradores de rua de Fortaleza de 79,8% admitindo o uso de drogas e 54,4% afirmando ter sofrido violência. Contudo, existe um processo necessário a ser cumprido para que o acolhimento e acompanhamento dos moradores de rua seja eficaz. Tendo em vista essa realidade, a urgente demanda existente, a exposição que esses indivíduos sofrem e, ainda, sua constante vulnerabilidade, o centro de apoio se faz necessário na medida que oferece segurança, higiene e alimentação durante o dia. A Pousada Social, por sua vez, vem acolhê-los, por tempo indeterminado, não só durante o dia, mas também durante a noite, proporcionando-lhes leito confortável, além da segurança, da higiene e da alimentação, também oferecidas pelo CentroPOP. Ademais, aprimorando e ampliando o serviço de alimentação já ofertado pelo Restaurante Popular existente, constatamos a necessidade de um restaurante específico atrelado aos serviços do CentroPOP e da Pousada Social. Voltando a atenção para a marginalização e exclusão dessas pessoas, a proposta de um setor de acompanhamento psicossocial e um de capacitação profissional se apresenta como contraponto a essa realidade excludente, como tentativa de atuação prática na reinserção dos mesmos na sociedade, devolvendo-lhes o sentido de identidade e valoração social, e em condições de atuação ativa e autônoma nesse processo de ressocialização. Como objetivos gerais temos: Oferecer acolhimento e acompanhamento digno e eficaz a pessoas em situação de rua, sem-teto ou desabrigadas. Oferecer condições salubres e confortáveis de acesso à alimentação, higiene e segurança desses indivíduos, garantindo assim sua dignidade como cidadãos. Trabalhar e devolver a essas pessoas o sentido e o sentimento de dignidade e direito à cidade. Auxiliar na ressocialização das mesmas. Promover uma arquitetura de acolhimento, materializada em espaços de abrigo, convivência e socialização.

Como objetivos específicos temos: Ajudar na devolução de suas identidades pessoais e sentimento de pertencimento. Incentivá-las e conscientizá-las da necessidade de seu papel de agentes ativos e autônomos no seu processo de ressocialização e recobramento de identidade, dignidade e (re)valoração social. Ofertar e promover espaços terapêuticos, favoráveis a experiências reais e significativas entre o homem e o cosmos, o homem e o ambiente no qual ele está inserido, o homem e a matéria que o compõe e

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compõe o mundo, através de espaços multissensoriais.  Dotar de sentido e importância os seus papeis como cidadãos e seres em sociedade através de espaços de produção manual: obras, peças e produtos de arte ou comerciais e comercializáveis.

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05. METODOLOGIA A partir da análise do tema escolhido e à medida que as pesquisas se desenvolveram e as demandas foram esclarecidas, a metodologia do trabalho foi se adequando. Percebeu-se a falta de pesquisas e documentos que pudessem alimentar nossos estudos e vimos a imprescindível necessidade de fazermos pesquisa de campo com muito mais frequência do que pensávamos. Cronologicamente, começamos com a leitura sobre argumentações a respeito da intrínseca relação do homem com o espaço e o tempo e como seu organismo trabalha e age nos diferentes ambientes. Em seguida, partimos para a leitura a respeito da população de rua e logo começamos, em paralelo, a pesquisa de campo com visitas a equipamentos privado, a Casa São Franciso - Albergue Shalom, e públicos, os quais estão sob administração e gestão da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), que são: a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA), os dois CentrosPOP de Fortaleza, um no bairro Centro e outro no Benfica, e a Pousada Social, no bairro Centro; esses três últimos sendo pertencentes à SETRA. As visitas a esses prédios da PMF foram planejadas para serem feitas com levantamentos de dados através de visitas guiadas, entrevistas, acesso e leitura de documentos para a obtenção de dados mais específicos sobre a cidade Fortaleza, levantamento arquitetônico e levantamento fotográfico, em cada um dos equipamentos citados. Todavia, infelizmente, só nos foram permitidas pela PMF as visitas guiadas e as entrevistas. A leitura de documentos e os levantamentos arquitetônicos e fotográficos foram terminantemente proibidos. Todos os dados coletados sobre o município de Fortaleza foram oriundos das entrevistas e dos arquivos digitais disponibilizados pela SETRA. Dados mais gerais sobre o panorama nacional foram adquiridos digitalmente no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e fisicamente na Secretaria Estadual do Trabalho e Desenvolvimento Social (SETAS). Quando prédio privado, por sua vez, os levantamentos arquitetônicos e fotográficos foram liberados. A escolha do terreno para o projeto aconteceu durante esse momento de pesquisas teóricas e de campo. Depois da fase de pesquisas, desenvolvemos o programa de necessidades e partimos para o partido do projeto. Após as definições de terreno, programa de necessidades e partido arquitetônico, iniciamos o processo de projeto propriamente e a organização e documentação dos desenhos e textos componentes deste caderno.

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PARTE II​

ZÉ NINGUÉM, JOÃO SEM NOME E MARIA LOUCA



Cobertores sujos de restos de comida desbotados pelo tempo de um passado sem passado. Tempo suspenso. Sob esses cobertores, homens e mulheres dormem como se não percebessem o sol que quase engole a terra. Prédios, carros, asfalto. Pessoas andam apressadas desviando-se uma das outras, como num balé improvisado. Buzinas, ônibus, freios, prédios, prédios. Concreto. Nada concreto. Tudo móvel, rápido, líquido. Líquido de suor, saliva, urina, lágrima líquido de esgoto, líquido de cerveja, do café, líquido da chuva. A mistura desses líquidos todos é o cheiro da rua, cheiro de tudo que é descartado, sujo, tudo que não tem história. Os homens e mulheres dos cobertores desbotados sabem os segredos da rua, conhecem o cheiro da rua como se fosse o próprio cheiro do seu corpo, cheiro das coisas esquecidas. Nós, “de frente pro crime” (Bosco & Blanc, 1975), sem pressa, vamos cada qual para nosso canto; olhamos o corpo no chão e fechamos a janela. E fica lá o corpo estendido no chão. Num cantinho de paisagem, tão desbotado quanto seu cobertor. Todavia, se, por um descuido, abrimos nossa janela e observamos, como tomados pela diferença desses homens e mulheres, “a maioria negros [e pardos] que moram em lugar nenhum” (Baptista, 1999, p.97). Uma unha enorme, pontuda, uma unha asquerosa destaca-se. Por causa da unha nos demoramos olhando aquele corpo, terceiro a arrebentar nossas vidraças. Ficamos sem a proteção daquela coisa invisível que nos separava. Essa unha parece querer penetrar nosso corpo, perfurar, invadir. Nós vemos nosso corpo como uma grande abertura, um umbigo do mundo furado, vísceras expostas, olhos, carnes, músculos, ossos. Tudo passa a sangrar em nosso corpo. O encontro com a diferença atravessa nosso corpo como flecha, como arma de guerra destruindo uma organização, uma estrutura pré-definida. Ficamos nós e nosso corpo sem órgãos (Deleuze & Guattari, 1980/2012a). Quando nossa cidade-corpo é invadida por esses corpos máquina de guerra, nasce em nós um outro corpo, uma cidade-corpo sem fronteiras, sem muros, sem limites. Uma cidade-nômade a deslizar por todos os espaços. (FÉLIX-SILVA et al., 2016)

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05. morador de rua 05

06. morador de rua 06

07. morador de rua 07

08. morador de rua 08

09. morador de rua 09

10. morador de rua 10

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Como diferentes que são, as pessoas em situação de rua construíram cidades diferentes. Suas paisagens são diferentes. Seus apegos, suas origens, seus destinos fugiram do fluxo principal, suas trajetórias não são lógicas nem consequentes. O território da sua cidade é composto por “paisagens psicossociais nômades” (FÉLIX-SILVA et al., 2016), espaços fluidos de desencontros, desvios, recuos, entroncamentos, indefinidos, indeterminados. “Cada paisagem carrega em si a potência da diferença, na medida que cada uma é, também, uma cartografia da cidade, seus espaços, cheiros, movimentos, singularmente vividos pelas pessoas em situação de rua” (FÉLIX-SILVA et al., 2016). Contudo, nós, estrangeiros na sua cidade, colonizadores ferozes, tendemos a querer subjugá-los e conquistá-los, em vez de coabitarmos, como eles nativos. Nossos olhos enxergam “descartáveis urbanos, maloqueiros, catadores, sofredores de rua” (VARANDA E ADORNO, 2004, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016). Para nós, seus espaços não são diferentes, espaços novos, ricos, mas são “espaços esquizofrênicos” (FÉLIX-SILVA et al., 2016). Para Almeida et al. (2015, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016), sua “invisibilidade social persiste e se institucionaliza através de equipamentos sociais que visam retirar as pessoas da rua, mas não oferecem reais possibilidades para a transformação de suas vidas”. Pallasmaa (2013, p.62) também afirma: “Como Freud e seus seguidores observaram, nossa cultura tende a enfatizar aquilo que pode ser controlado e a negar o que não pode”. Muitas são as teorias e previsões, equivocadas, a respeito da reação das pessoas em situação de rua ao serem acolhidas, tratadas e ajudadas seja por filantropia ou políticas públicas. A falsa previsão de que eles são acomodados e preguiçosos, para não usar a adorada palavra “vagabundos”, nos encaminha como sociedade para direções opostas ao que realmente são posturas solidárias e caridosas de atenção e compaixão para com essas pessoas. Sabemos que ninguém, no fundo, queria realmente estar na rua. Seja qual for o motivo do processo de rualização, uma pessoa em situação de rua jamais desejou ou deseja passar pelas constantes provações e tribulações, até mesmo absurdos e desumanidades horrendas, colocando em risco a própria vida. É verdadeiro que algumas dessas pessoas romperam com o sistema vigente por não conseguirem se adequar a ele, por mais doloroso que o esforço seja. Porém, infelizmente, a realidade nas ruas tem um peso gravitacional demasiado forte para se sair com a mesma facilidade que entrou. Um pequeno desentendimento ou confusão tanto pessoal quanto em conjunto é, geralmente, a bola inicial de uma avalanche de problemas subsequentes. Para piorar, a sociedade que, em tese, deveria ter um senso apurado de empatia e compaixão, avançou e se organizou de várias formas, mas parece que a humana foi negligenciada. Penso que pela alienação e manipulação constrangedora que sofremos diariamente, com o tempo, deixamos escapulir os sentimentos essencialmente humanos da vida em coletivo porque mergulhamos de cabeça na relativização do cosmos. O mundo contemporâneo globalizado funciona mais como um imenso país unificado, e as linhas de limites e fronteiras físicas e emocionais estão borradas o suficiente para nos enganar durante nossa caminhada, que hoje é mais virtual e fictícia que essencialmente vivida. Desta forma, relativizando até o próprio homem, o indivíduo do séc. XXI

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com facilidade consegue desumanizar o próximo e coisifica-lo. E é assim que fazemos no nosso dia-a-dia, mesmo que não percebamos, com as pessoas de rua. Tiramos-lhes seus direitos, valores, legais e sociais, sem o mínimo de remorso, absortos em nossa individualidade ferrenha. Todavia, o instinto de sobrevivência humano lhes força à adaptação. Antes que a rua lhe engula, eles transformam-na de algoz em mãe. “Rua-mulher que fez de seu ventre um lugar possível”, “que acolheu, calada, sua fuga” (FÉLIX-SILVA et al., 2016). Sua nova mãe lhes concede um novo mundo. A cidade se transforma no ateliê “dos artesãos da rua, que transformam o descartável em matéria-prima para o seu ofício, a arte de ‘fazer de tudo’ como forma de ganhar a vida”, “arte de surpreender com sua vida nômade, sem espaços estriados, sem vidros, tijolos, paredes, sem cama, sem teto” (FÉLIX-SILVA et al., 2016). A lógica dos limites que vivemos e criamos não faz sentido para eles. Sua existência é sem muros, grades ou cercas. Exceto as situações de rua militarizada ou policiada, na sua cidade tudo é aberto, é transitório, de passagem, é fluxo. Vida que vem e vai. Vida nômade. A rua como a mãe dos órfãos, mãe que cria, acolhe qualquer um; rua que não exclui ninguém, não se precipita em pré-julgamentos ou noção de norma – de onde vem, o que vai fazer, qual é a cor, qual é o sexo, qual é o nome. A rua apaga pegadas do passado, estabelecendo novas conexões, onde o doméstico, privado, familiar, vai dando lugar ao aberto, ao conectivo, como as artérias expostas da cidade, onde os encontros acontecem no sangue quente das ruas, na febre alta dos afetos. (FÉLIX-SILVA et al., 2016)

Ao contrário do que geralmente pensamos, a cidadania da população em situação de rua é respaldada por lei. Eles são dotados de dignidade e tem seus direitos e deveres protegidos constitucionalmente. Embora as práticas das políticas públicas ainda estejam amadurecendo, mesmo com determinações legais bem estruturadas, desde recentemente essa parcela da população tem sido considerada e não podemos retroceder, apesar de alguns gestores municipais desvairados e desumanos pelo Brasil. Existe uma certa lógica que percorre todas as escalas desse problema, desde a municipal até a nacional, e assim, independente de qual escala, as características e o perfil da população em situação de rua se assemelham de região para região. Existe um interesse coletivo que as pessoas de rua saiam de suas situações miseráveis. Se por um interesse higienista para com a cidade ou por amor ao próximo, sabemos, contudo, que a ajuda quer chegar até eles. Talvez, o erro esteja justamente na motivação da ajuda. A motivação ignorante determina exatamente os desvios que levam ao destino errado. Infelizmente, não existe preocupação em conhece-los de perto. A linguagem empregada é sempre a que “permite falar no lugar dos outros, pensar por eles, fazer com que sejam ou desapareçam, decidir seu destino” (PELBART, 2013, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016). A “unha asquerosa” incomoda, nos aponta para longe, enquanto deveríamos penetrar suas vísceras, percorrer suas veias. Tudo isso nos direciona para práticas e métodos incoerentes com a realidade paralela que as pessoas de rua vivem. Queremos

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nos impor, subjuga-los. Eles resistem. Decidimos então fechar os olhos, jogá-los no escuro, fingir que são invisíveis, e estigmatizamos a pobreza e a miséria, porque isso nos incomoda. E aí reside o sofrimento ético-político das pessoas em situação de rua. Sawaia discorre sobre esse sofrimento e sobre três configurações na dialética inclusão/exclusão da população em situação de rua: 1ª – as pessoas que resistem à exclusão, que são as que estão cientes que são excluídas, querem sair dessa situação e desenvolvem potência de ação para sair; 2ª – as pessoas que são cientes da exclusão e querem sair, mas afirmam que não podem sair dessa condição de vulnerabilidade por que não há condições; 3ª – as pessoas que não querem sair da situação de rua, relatando que acham bom viver assim (SAWAIA, 2008, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016)

Sawaia (2008, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016) ainda questiona se “a afirmação de não querer sair da rua é experiência de liberdade”. Outro questionamento relevante é se “a autorrepressão interioriza tão profundamente a servidão e a miséria que [a pessoa de rua] já nem se quer sabe desejar uma coisa quando ela lhe é oferecida” (BAUDRILLIARD, 1995, apud FÉLIX-SILVA et al., 2016).

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Relata Moisés: “Tenho medo dessa copa, porque ouvi falar de um grupo de extermínio que vem para fazer a ‘limpeza’ da cidade, tenho medo de a gente morrer. Somos gente como qualquer um. Paulo grita: “Viver na rua é uma desgraça!”. [Ele] Busca um emprego melhor que o possibilite sair da rua. Sente também medo de dormir nas ruas: “Eu me escondo nos cantos”. Esconder-se nos cantos é uma forma de Samaritana pedir licença para dormir sem medo de ser acordada com o corpo quente sangrando fios de pólvora. Dormir torpe para nem ao menos sonhar que desaprendeu a sonhar. Zaqueu, há 30 anos em situação de rua, prefere esse modo de vida. Trabalha, durante o dia, carregando caixas na feira, à noite, enquanto a feira dorme, ele dorme com ela na calçada. Às vezes, seu irmão passa pela feira e o convida a voltar para casa. Zaqueu, contudo, prefere as calçadas e marquises, prefere o cheiro da rua e seu movimento: “Quando cheguei, aqui, nas ruas era tudo areia e calçada. Nada de asfalto”. A rua passou junto à vida de Zaqueu.

A resistência, então, ocorre como força, ou como potência de ação. Como força ativa e potência de vida. Quando a potência de ação é investida de ideologia, a ação pode cair no ativismo. Quando agir é sinônimo de potência de vida, a vida flui. A vida como obra de arte. Resistência, muitas vezes, doloridas, alucinógenas, delirantes, criativas. Resistência, por vezes, cheias de esperança. A força dos corpos desses personagens nômades é arte bruta. Ao contrário de seguir um modelo normativo dado a priori, os personagens nômades caminham pelo deserto da experimentação de outras possibilidades de vida, a partir das composições afetivas no encontro com o outro. A força-desejo resistindo em ser capturada numa determinada lógica. Perguntamos [a Mateus] como era dormir na rua em dias de chuva: “Quando chove, me cubro com um plástico e gosto de ficar ouvindo o barulho da chuva, sentindo os pingos”. Respostas como a de Nicodemos. Perguntamos-lhe: como você está? E ele responde em meio a gargalhadas, segurando sua bicicleta e alisando a barba: “Tô vivendo... e tô gostando!” (FÉLIX-SILVA et al., 2016)

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11. morador de rua 11

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12. morador de rua 12

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13. morador de rua 13

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14. morador de rua 14

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15. morador de rua 15

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16. morador de rua 16

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ARQUITETURA E A CIDADE FLUIDA Félix-Silva et al., ao citarem Guattari, colocam que “a rua e a arquitetura ‘são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação” (GUATARRI, 1992/2012, apud FÉLIX-SILVA, 2016). Nesse modo de interpretar a cidade, o espaço público não é uma mera consequência casual de um conjunto de ações sistematizadas; mas é produto subjetivo do desejo de existir e habitar na cidade. Mesmo num cenário extremo, a esperança ainda pulsa, e o desejo pela vida nos tira da sobrevivência para a vivência. Às vezes, esse desejo pulsante se revela em modos de vida diferentes e posicionamentos políticos diferentes. Posicionamento de resistência. Esses desejos pulsantes constroem uma cidade e uma arquitetura subjetivas. Em vez de nos colocarmos em posição de cidade atacada, por que não aceitar seu convite para lançarmos um olhar ético e estético, talvez até político, para as ruas e marquises da cidade? Poderíamos finalmente perceber essas paisagens psicossociais nômades. Félix-Silva et al. (2016) discorre sobre a casa e a cidade paralela das pessoas de rua: “Em alguns lugares, as pessoas deixam suas esteiras, colchonetes, roupas e outras coisas penduradas nas árvores, árvores guarda-roupas. Um museu aberto na rua. A exposição da vida do morador”. O convite a lançar um novo olhar nos proporciona enriquecer nosso significado de cidade com as outras cidades simultâneas à padronizada. Muitas vezes, nossa cidade é padronizada com espaços exclusivamente privados, esquecidos de espaço público. Contudo, quando na rua, “os acenos nos lembram de que também fazemos parte da rua” (FÉLIX-SILVA et al., 2016), assim como os nômades urbanos. Nós rejeitamos as cidades não-padronizadas porque são cidades deformadas pela ação de “corpos que pisam, dormem, choram, fazem amor e reviram o sentido hegemônico [do espaço padronizado], produzindo um lugar para habitar na incerteza do trânsito de carros e corpos apressados” (FÉLIX-SILVA et al., 2016, alteração do autor). A cidade não-padronizada também é política. É resistência política na medida que rompe com as instituições e deseja continuar ou não em situação de rua. O nomadismo característico da cidade não-padronizada das pessoas em situação de rua seria o “gesto de pensar em movimento e agir para além e aquém do perambular pelas ruas e do se fixar num sexo, num gênero, numa família, num grupo étnico, numa identidade racial, numa cidade, numa praça, numa casa, numa feira, na calçada de um hospital, de uma loja ou de uma catedral”, tudo isso anonimamente e sem se sujeitar aos dispositivos da sociedade de controle.

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06. POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA PANORAMA NACIONAL Segundo o Decreto Federal No 7.053 de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua: Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Dos seus princípios, diretrizes e objetivos: ...atendimento humanizado e universalizado; e respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência. ...responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento; (...) implantação e ampliação das ações educativas destinadas à superação do preconceito, e de capacitação, dos servidores públicos para melhoria da qualidade e respeito no atendimento deste grupo populacional; e democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos. ...desenvolver ações educativas permanentes que contribuam para a formação de cultura de respeito, ética e solidariedade entre a população em situação de rua e os demais grupos sociais, de modo a resguardar a observância aos direitos humanos; (...) implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua à alimentação à alimentação, com qualidade; e disponibilizar programas de qualificação profissional para as pessoas em situação de rua, com o objetivo de propiciar o seu acesso ao mercado de trabalho.

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No ano de 2005, foi realizado o 1o Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, e reconheceu-se a falta de dados estatísticos nacionais sobre essas pessoas, apesar de esse levantamento ser possível, e, por isso, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) estabeleceu a realização dessa contagem para 2007. Nesse encontro, foi verificado que as histórias das pessoas de rua são caracterizadas por perdas, exclusão e desqualificação. Essas pessoas cultivam um sentimento de autoexclusão e, assim, não se reconhecem como sujeitos de direitos. São frequentes relatos de dependência de substâncias psicoativas, principalmente do álcool, mostrando que o processo de drogadização condiciona suas perdas. Ficou evidente também que não existe uma única causa para a rualização. Quanto ao gênero, as mulheres são as mais vulneráveis, apesar de comporem minoria. O tema trabalho foi discutido tanto como causa de vulnerabilidade dos sujeitos, levando-lhes às ruas quando ficam desempregados, como tema central para a garantia de processos de inclusão e resgate de autoestima, na medida que o trabalho e a qualificação são essenciais para a garantia de condições materiais de vida. Houve, ainda em 2005, relatos sobre discursos das pessoa de rua cheios de sentimentos de fracasso por não ingressarem no mercado de trabalho e acabar frustrando as expectativas dos familiares. Eles próprios demonstram perceber serem estigmatizados pela sociedade, que os classifica como “incômodos”. Para eles, violência não é somente a física — também por parte da polícia, mas também é o descaso e o desrespeito com que são tratados pela sociedade. Foi afirmado que as políticas de atendimento não atendiam às suas demandas nem confluiam para suas necessidades, tornado-se ineficazes sobre os problemas vivenciados por eles. As políticas não eram integradas — não são até hoje, as quais não investem no fortalecimento e autonomização do sujeito. A discriminação estende-se ao serviços públicos, e os servidores são despreparados para a prestação de atendimento. Percebeu-se a distância do Estado — em todas as três instâncias, federal, estadual e municipal, o qual não conhece suas realidades. Infelizmente, existe uma descontinuidade das políticas públicas com as trocas de governo (em São Paulo, por exemplo), e o poder público demonstra dificuldade na execução das mesmas; enquanto as Oragnizações Não-Governamentais (ONGs) são as principais executoras. Dentre outras alternativas para a solução do problema de moradia, foram apontados insturmentos como a locação social e a bolsa aluguel, os quais podem ser utilizados durante o período de reorganização dos sujeitos. Em 2007, como previsto antes, o MDS iniciou o 1o Censo e Pesquisa Nacional Sobre a População em Situação de Rua, que durou de outubro de 2007 a janeiro de 2008. Ele foi realizado em 71 municípios, 23 capitais desses, e todos com população acima de de 300.000 habitantes. Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Porto Alegre realizaram seu próprio censo. Foram considerados apenas indivíduos maiores de 18 anos, e, para a devida pesquisa, foram considerados pessoas em situação de rua aqueles que:

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17. morador de rua 17

fonte: http://ittc.org.br/recolhimento-compulsorio-de-moradores-de-rua/

18. morador de rua 18

fonte: http://hypescience.com/wp-content/uploads/2014/08/caes-e-moradores-de-rua-8.jpg

19. morador de rua 19

fonte: http://biguanews.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Revista-Brazil-com-Z-1.jpg

20. morador de rua 20

fonte: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/cebi. org.br/wp-content/uploads/2017/04/10113901/br-pobreza-santa-cecilia-sao-paulo1.jpg

21. morador de rua 21

fonte: http://www.hypeness.com.br/wp-content/uploads/2015/01/semprequis8.jpg

22. morador de rua 22

fonte: http://www.hypeness.com.br/wp-content/uploads/2015/01/semprequis5.jpg

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utilizam, em um dado momento, como local de moradia ou pernoite, espaços de tipos variados, situados sob pontes, marquises, viadutos, à frente de prédios privados e públicos, em espaços públicos não utilizados à noite, em parques, praças, calçadas, praias, embarcações, estações de trem e rodoviárias, à margem de rodovias, em esconderijos abrigados, dentro de galerias subterrâneas, metrôs e ourtas construções com áreas internas ocupáveis, depósitos e prédios fora de uso e outros locais relativamente protegidos, do frio e da exposição à violência; (...) pessoas que dormem em albergues e abrigos, de forma preferencial ou ocasional, alternando o lugar de repouso noturno entre estas instituições e os locais de rua. (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2010. p.96)

Crianças e adolescentes foram desconsiderados, porque esse estudo requer o emprego de metodologias diferenciados com um elevado grau de especificidade. Foi encontrado então o número de 31.922 pessoas para a população nacional em situação de rua. Em 2011, 2012 e 2013, o Sistema Único de Assitência Social (SUAS) realizou censos internos para analisar as lacunas e os avanços no aprimoramento da Política Nacional da Assitência Social e avaliar a qualidade dos serviços públicos referentes ao setor de assistência social. Foram encontrados dados sobre os baixos índices de acessibilidade nos prédios de Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), com 17% e 10%, respectivamente, de acordo com a NBR 9.050 da ABNT. O Serviço Especializado de Abordagem Social pontuou 61% dos indivíduos atendidos como pessoas que utilizavam espaços públicos como forma de moradia e/ou sobrevivência. No primeiro levantamento sobre os CentrosPOP, foram numeradas 90 unidades, distribuídas em 21 estados. A contagem dos seus funcionários foi de 13,2 profissionais por equipe, e 50% dos seus trabalhadores não possuíam vínculo empregatício permanente. [gráficos]

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PANORAMA NACIONAL GÊNERO

%

homem

IDADE (homens)

82 18-24

mulher

18 25-54 55-

CAUSA

alcoolismo e/ou drogas

%

OCUPAÇÃO (remunerada)

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL

%

COR

%

ESCOLARIDADE

%

16.2 brancos

29.5 ensino fundamental

69.5 pardos

curso formal e 39.1 profissionalizante

13.3 pretos

27.9 analfabetos

25.4

%

%

%

ALIMENTAÇÃO

35.5 catador de recicláveis

no mínimo 1 27.5 alimentação por dia

desemprego

29.8 flanelinha

não conseguem se alimentar todos os 14.1 dias

desavenças familiares

29.1 contrução civil

HIGIENE (banho)

79.6 rua

19 albergue/abrigo

63.5 3.8

32.6

31.4

6.3

banheiros públicos

14.2

limpeza

4.2

casa de parentes ou amigos

5.2

carregador/estivador

3.1

pedinte

15.7

sem ocupação

29.1

23. tabela 01 - perfil nacional da população em situação de rua fonte: caderno de estudos, no 13, MDS. consultar bibliografia.

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07. POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA PANORAMA LOCAL A população em situação de rua (psr) é uma parcela real da população urbana de toda grande cidade. Muitos e diversos são os motivos para a rualização de um indivíduo, e as tensões das desigualdades sociais mantém a dinâmica do processo crescente, junto com a cidade, de ida de mais pessoas para a rua. Embora, o processo de rualização exija uma decisão do indivíduo de ir para a rua, na maioria das vezes, essa é a única opção que lhes resta. À semelhança de cidades dos países ditos desenvolvidos, as capitais brasileiras começaram há algum tempo a experimentar esse êxodo intraurbano de saída de edificação privada como domicílio para o espaço público como lugar de habitação. A população em situação de rua começou a surgir no país na região Sudeste nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nos anos 2000, iniciaram Grupos Tutoriais para discutir estratégias para a psr, e, em 2007, foram criados Centros de Atendimento à população em situação de rua. Em Fortaleza, esses centros aconteceram de 2007 a 2010. Em 2009, ocorreu o Decreto Federal Nº 7053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Nos equipamentos públicos criados em decorrência do Decreto Nº 7053/2009, os educadores sociais eram, primeiramente, artistas diversos; as atividades desenvolvidas eram diversas. A partir de 2010, então, conforme novas determinações do Governo Federal, foram criados os CentrosPOP, que atuam até hoje na maioria das capitais brasileiras. Os primeiros centros de atendimento à psr em Fortaleza possuíam, precariamente, guarda-volumes, ofereciam serviços de higiene pessoal para os usuários e oficinas educacionais. Contudo, devido não só à dificuldade de vida dos usuários, mas à dificuldade do trabalho demandado, até hoje, a desistência de profissionais é alta. E uma das principais razões é a gestão pública, apesar de em Fortaleza esse tipo de prática das políticas públicas ter sido iniciado há mais de uma década. A própria Prefeitura Municipal de Fortaleza devota pouca atenção a esse departamento. Inicialmente, a proximidade do departamento responsável pela psr estava mais próximo do Setor Público de Saúde que do de Educação, talvez, pela forte relação do processo de rualização com o de drogadização. Antes, a preocupação com a sobrevivência era muito maior que a preocupação com o futuro dessas pessoas. Com o amadurecimento das práticas das políticas públicas em questão e com o

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aperfeiçoamento dos outros equipamentos do Setor de Assistência Social, em espacial do CAPES ad, que é voltado para adictos, o trabalho com a psr foi se aproximando mais do Setor de Educação. Todavia, devido a motivos claros de vida insalubre nas ruas, ainda persistem problemas de saúde consideráveis entre a psr. Os índices de tuberculose e de infecção por HIV são altíssimos na psr, e as pessoas de rua são 65 vezes mais propensas a “pegar” tuberculose. Apesar de todas as dificuldades, Fortaleza é pioneira no Nordeste no trabalho com psr. Recife, por exemplo, não possui equipamentos voltados à psr. Infelizmente, os programas só atendem Fortaleza e não alcançam ainda a Região Metropolitana.

• • • À luz das determinações do Governo Federal, a Prefeitura Municipal de Fortaleza possui três tipos de equipamentos específicos voltados para o trabalho direto com a psr: CentrosPOP, Pousada Social e Abrigos Institucionais. Esses três equipamentos pertencem à Célula de Proteção Social Especial (PSE), departamento dentro da Secretaria Municipal do Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA). A PSE é o departamento no Setor de Assistência Social, determinado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), destinado a trabalhar com os níveis de média e alta complexidade. Nos níveis de baixa (Proteção Social Básica) e média complexidade, os vínculos familiares e comunitários não foram rompidos; nos níveis de alta complexidade, os vínculos familiares e comunitários foram rompidos. A psr é um nível de alta complexidade. Diferentemente dos equipamentos de trabalho direto, a PSE não trabalha com os usuários (pessoas em situação de rua). Os três equipamentos de trabalho direto com a psr estão divididos conforme sua função específica dentro do processo de resgate dessas pessoas da rua. O primeiro equipamento, e responsável pelo primeiro contato da pessoa de rua com as práticas das políticas públicas, é o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (CentroPOP). Os CentrosPOP têm a função básica do atendimento técnico, que é: esclarecer e informar a pessoa de rua sobre sua condição e suas possibilidades de mudança dentro do cenário atual, fazer seu cadastro no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e oferecer serviços de acesso à documentação oficial, higiene pessoal, alimentação e atividades socioeducativas. Os CentrosPOP funcionam em horário comercial e não oferecem serviço de abrigo (pernoite ou acomodação). A vida nas ruas é bastante vulnerável, e as pessoas de rua muito comumente tem seus documentos extraviados. Infelizmente, a Guarda Municipal, provavelmente por despreparo, é a principal e maior causa do extravio da documentação pessoal oficial das pessoas em situação de rua. Ademais, é de praxe o tratamento hostil e violento com o qual a polícia aborda as pessoas de rua sem nenhuma avaliação prévia sobre a necessidade desse tipo de postura. A sociedade geral, também, é a principal origem de reclamações oficiais à polícia contra a psr. Desta forma, o serviço de acesso à documentação se faz importante dentro do primeiro contato com a psr. Em Fortaleza, existem dois CentrosPOP, o CentroPOP-Centro e o

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CentroPOP-Benfica. O centro de referência do Centro foi o primeiro e existe há dez anos. A primeira etapa do atendimento é a escuta qualificada. Esse primeiro atendimento é feito por um assistente social, um psicólogo e um advogado. Após o primeiro contato, acontece o encaminhamento, de acordo com a demanda específica do usuário. Os Centros POP de Fortaleza possuem em torno de 20 funcionários, dentre eles: dois psicólogos, dois assistentes sociais, dois advogados, cinco educadores na abordagem de rua, um coordenador, dois seguranças, uma secretária e duas cozinheiras. A equipe de abordagem de rua trabalha em campo todos os dias. No serviço de alimentação, o centro de referência oferta quatro refeições: as três refeições principais e um lanche da tarde. No tangente à documentação e cadastro, após o cadastro no SUAS, as pessoas de rua podem pleitear uma vaga no Programa Bolsa Família, as quais tem 80% de concessões no programa. Para que o indivíduo avance no processo de desrualização através dos instrumentos públicos, existe um caminhamento determinado pela gestão pública. Esse caminhamento acontece sempre conforme avaliação dos profissionais do atendimento técnico (assistentes sociais, psicólogos e advogados). Começando no CentroPOP, o indivíduo de rua pode avançar para a Pousada Social e o Centro de Convivência. Após a fase na Pousada Social, ele pode chegar ao Abrigo Institucional, o qual define a última etapa do processo de desrualização. A diferença básica entre os três equipamentos é a acolhida. O CentroPOP acolhe sem abrigar. A Pousada Social abriga por tempo indefinido, e o Abrigo Institucional abriga com estada permanente. Os centros de referência possuem 20 vagas diárias cada um. A classificação de estada indefinida da Pousada Social se dá em razão de que o indivíduo não se encontra sob a responsabilidade pessoal de desrualização. Isto é, para a pessoa de rua alcançar a Pousada Social basta que ela tenha cadastro no SUAS e que haja disponibilidade de leito. Não existe uma exigência da PMF de que essa pessoa queira e se comprometa em sair da rua. Ela pode, então, por exemplo, dormir quatro dias seguidos na pousada e um quinto dia na rua, se quiser. A Pousada Social possui 80 vagas. Os Abrigos Institucionais, por sua vez, acolhem as pessoas que, após passarem pela Pousada Social e por uma avaliação técnica, decidiram sair da rua. Nesse momento, a estada do indivíduo no abrigo é definida e é dado-lhe um prazo de no máximo seis meses de acomodação, enquanto ele “resolve a sua vida”. Seu acompanhamento pelos profissionais é mais próximo nesse momento e é necessário que ele se comprometa consigo mesmo em mudar de vida. Caso esse comprometimento seja perdido, o indivíduo tem de ser dispensado do abrigo. Na Pousada Social acontece o mesmo, caso necessário e conforme decisão da coordenação, a pessoa precisa deixar a pousada. Os abrigos de Fortaleza são: o de homens, no bairro Jacarecanga, com 30 vagas, mas operando com 50; o de mulheres e famílias, no bairro Parangaba, com 30 vagas, mas operando com 50; e o de passagem, no bairro Benfica, com também 30 vagas, mas operando com 50. O Centro de Convivência, que ocorre junto com a Pousada Social, diferentemente dos outros, não é determinação federal, é iniciativa da PMF. As funcionárias dos centros de referências, por sua vez, entendendo a posição da mulher como a mais vulnerável, defendem que a mistura de mulheres e famílias no

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24. morador de rua 23

fonte: https://catracalivre.com.br/wp-content/uploads/2014/09/CATRCA10.jpg

25. morador de rua 24

fonte: http://www.vampir.com.br/wp-content/uploads/2010/06/mendigo.png

26. morador de rua 25

fonte: https://protouro.files.wordpress.com/2013/02/ sem-abrigo.jpg?w=500

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mesmo abrigo é prejudicial, pois as famílias geralmente compõem de homens também, atrapalhando no conforto e na privacidade das mulheres que não compõem família. Defendem, então, a ideia de se criar mais um Abrigo Institucional e separar abrigo de mulheres de abrigo de famílias.

• • • Nas visitas técnicas feitas aos dois centros de referência e à PSE na SETRA, pudemos nos inteirar melhor sobre as especificidades do trabalho e da prática das políticas públicas com a psr. Um elemento forte e determinante na vivência das pessoas em situação de rua é a territorialização. A rualização tem relação íntima com o processo de drogadização. O fato é que a territorialização do meio-ambiente urbano público é definida pelo tráfico de drogas e pela violência. Como afirmado anteriormente, a cidade dos moradores de rua é dividida diferentemente da cidade política. As divisões e as fronteiras são delimitadas pelas comunidades que se formaram nas ruas, de acordo com o tráfico dominante na respectiva região da cidade. Quem domina o tráfico da Praça do Ferreira define quem são seus “inquilinos”. O mesmo acontece nas marquises da loja Acal da Rua Tristão Gonçalves, e na Praça da Bandeira, e etc. Na medida que esses traficantes são rivais, as comunidades também são contrárias. Seu objetivo é expandir seu mercado ilegal. Sua linguagem é de violência, e por isso, quem dorme na Acal não pode dormir na Praça do Ferreira, e vice-versa, como também se aplica às outras comunidades. As duas maiores comunidades de Fortaleza são a da Praça do Ferreira e a da Acal. Devido a essa demanda territorial, os próprios funcionários da PSE defendem que é necessário um Centro de referência em cada regional, já que um morador de uma praça no Centro não poderia chegar até o CentroPOP-Benfica por motivos de ameaças de morte. Além disso, existe uma demanda maior do que a capacidade do próprio centro de referência. O do Benfica, por exemplo, atende sozinho, com 20 vagas diárias, às Secretarias Regionais IV, V e VI. Ou seja, a demanda é municipal, não apenas do Centro e da parte de orla entre o Moura Brasil e o Mucuripe (as duas regiões de maior concentração de população em situação de rua do município de Fortaleza). Assim sendo, a capacidade de vagas de cada CentroPOP seria definida através de estudos e proporcional à demanda de cada regional.

• • • A exclusão, de acordo com uma funcionária do CentroPOP-Benfica em nossa entrevista, começa no número de vagas. Quanto menor o número de vagas, maior a quantidade de critérios para admissão de pessoas nos centros de referência. Eles precisam filtrar ao máximo o público que entra nos equipamentos. Se esse número fosse maior, seria mais fácil admiti-los e, por conseguinte, a abrangência do trabalho seria maior tmabém. Ela completa: “Quando nós dizemos ‘não

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tem mais vaga’, nós percebemos na cara deles, na expressão deles, que é como se acabasse a esperança deles”. Além da exclusão por vagas, ela reconhece a exclusão por discriminação social e pelas próprias políticas divergentes dentro da gestão pública. Ela explica com o exemplo de um ocorrido frequente: os usuários que não conseguiam entrar nas 20 vagas diárias do CentroPOP-Benfica ficavam nas calçadas às sombras das árvores; os vizinhos reclamavam para a prefeitura, justificando que eles se amontoavam nas suas calçadas e pediam o corte das árvores que serviam de sombreamento. Então, a própria PMF que deveria olhar por eles na calçada do seu próprio equipamento, tentando melhorar o seu serviço público, mandava cortar as árvores em questão. Não apenas se contradiziam no seu serviço à sociedade em assistência social, como em serviço público ambiental, na medida que diminuía arbitrariamente as sombras das ruas imediatas ao CentroPOP-Benfica, tornando-as extremamente desagradáveis do ponto de vista de conforto ambiental. Os usuários, na medida que podem, independente da situação em que se encontram, tentam manter-se nas ruas mais próximas possíveis ao centro de referência. A vizinhança continua reclamando. Um vizinho do centro de referência, engenheiro, chegou a dizer uma vez para uma funcionária: “Você é vagabunda também! Trabalha em lugar de vagabundo, é vagabunda também!” A prioridade de atendimento e de interesse dos usuários é para alimentação e descanso. Eles chegam ao centro com altos níveis de intranquilidade psicológica, além da fome. Por conseguinte, quando estão nas atividades pedagógicas desenvolvidas no CentroPOP, eles geralmente dormem enquanto isso, ou não conseguem se concentrar. Por outro lado, não existem espaços para descanso dos usuários. Logo, descansam nas cadeiras das atividades pedagógicas. Esses dois serviços de alimentação e descanso acabam por “sugar” toda a atenção dos trabalhos dos CentrosPOP. Perguntei, então, se seria válido, além de centro de referência em cada regional, uma Pousada Social e um Restaurante Popular. A resposta foi positiva. O centro poderia, assim, focar nas atividades pedagógicas, se a alimentação passasse a ser responsabilidade do restaurante.

• • • Nas visitas aos CentrosPOP, além da entrevista sobre a realidade da psr em si, pude fazer uma análise visual dos prédios e perguntar sobre os aspectos arquitetônicos e formais das edificações. Os prédios dos dois centros de referência se assemelham bastante. Nos dois: os espaços são pequenos e incompatíveis com a demanda; o conforto térmico é deficiente, os prédios são bastante quentes e não possuem condicionamento artificial de ventilação; não existe acessibilidade para pessoas com necessidades especiais (PNE); o mobiliário está em ótimo estado, apesar de o prédio precisar de reparos na pintura, com infiltrações e revestimentos; o pátio é o espaço de maior permanência dos usuários por ser o ambiente aberto; e possuem armários e guarda-volumes para a guarda de pertences e objetos pessoais. No CentroPOP-Centro, especificamente, a sala que serve às oficinas educativas e como sala de reuniões possui um cheiro característico (semelhante ao “cheiro da rua”). Na entrevista com a coordenadora da PSE para trabalhos com população em situa-

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ção de rua, perguntei se havia projeto para os equipamentos em questão. Ela disse que não. A PMF não está disposta a comprar terreno nem imóvel para abrigar moradores de rua. Os prédios devem ser alugados e estar em excelentes condições, para que não gastem com reparos e reformas. A escolha dos prédios é feita pela própria coordenadora, assistente social, e ela não tem o auxílio de nenhum arquiteto para essa tarefa. Todos os prédios da prefeitura para pessoas de rua são alugados. Por este motivo, infelizmente, o CentroPOP-Mucuripe nunca foi implantado porque os proprietários dos imóveis, quando descobrem que seu prédio vai ser alugado para moradores de rua, rejeitam a proposta de aluguel. Nos prédios visitados, podemos ver claramente que os usuários forçam para que as funções se adaptem ao prédio, já que ele é sua única opção de espaço. Tudo isso atrapalha no desempenho das funções dos equipamentos. Até mesmo na privacidade dos atendimentos técnicos, porque os outros usuários podem ouvir e/ou ver alguém sendo atendido. A limitação do espaço acaba por limitar também a oferta de atividades socioeducativas e pedagógicas. Uma funcionária afirmou que “não pra se locomover no espaço durante uma oficina”. Falta mobiliário adequado até para atividades simples como caça-palavras ou palavras-cruzadas. Por vezes, os usuários precisam usar o próprio colo como apoio para escrever (quando sabem escrever). O analfabetismo e o semianalfabetíssimo ocorrem com frequência e eles sentem o peso da falta de educação de base. Isso eles combinam com o sentimento de falta de construir algo na vida e mexe diretamente com sua autoimagem e autoestima. Eles sentem a necessidade de construir algo concreto e consistente para a vida, que eles possam desenvolver no futuro depois da vida na rua, um trabalho, algum tipo de ocupação. Infelizmente, esse tipo de capacitação não é ofertado nos CentrosPOP. O que facilitaria até mesmo a mudança de um usuário para um Abrigo Institucional, considerando seu comprometimento com a saída da rua através do ofício. Perguntei ainda aos funcionários que entrevistei, qual o espaço, para eles, ideal para abrigar os equipamentos voltados para pessoas em situação de rua. As respostas foram: espaço que proporciona diversos tipos de experiências, porque o espaço condiciona a experiência; espaço que permita atividades esportivas; espaços que façam eles se descobrirem física, psico e profissionalmente, um usuário descobre que um talento, pode trabalha-lo e, assim, muda suas perspectivas de vida.

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CASA SÃO FRANCISCO – ALBERGUE SHALOM Tivemos a oportunidade de visitar um equipamento privado voltado ao trabalho com pessoas em situação de rua. Esse equipamento é a Casa São Francisco, o Albergue Shalom, pertencente à Comunidade Católica Shalom. Esse albergue abriga 25 homens e não admite mulheres. Seu funcionamento é feito por seis profissionais: quatro educadores sociais, um assistente administrativo e um coordenador. O albergue se mantém de filantropia, isso é, de doações feitas diretamente ao albergue ou de parte das doações gerais feitas à instituição religiosa, a qual separa uma quantidade para seu albergue. À semelhança dos prédios da prefeitura, a Casa São Francisco também funciona em prédio alugado. Seu espaço é dividido em pátio frontal de entrada, pátio lateral de garagem, recepção, capela, sala de televisão, biblioteca, banheiros masculino e feminino para visitantes, secretaria, coordenação, padaria (inoperante), cozinha e despensa, refeitório, dormitório com beliches e armários pessoais, banheiro e vestiário para os usuários (quatro lavatórios, quatro chuveiros e quatro sanitários), área de serviço e oficina. Os abrigados são admitidos por meio de cadastro e acompanhamento. Num sistema mais brando que a rigidez da PMF, concedem-lhes um prazo de 60 dias para dar início aos primeiros passos na mudança de vida. Diferente da Pousada Social da prefeitura, que fecha os portões às 20h, o Albergue Shalom fecha os portões às 22h. A única exigência realmente feita aos usuários é a “folha corrida”, e eles não podem estar foragidos nem sendo procurados pela polícia. O albergue não possui assistente social nem psicólogo por falta de recursos que possam pagar, nem existem voluntários. A manutenção e os reparos necessários são feitos pelos próprios usuários. Na oficina, eles produzem vassouras artesanais. Anteriormente, na padaria, eles produziam bolos também, mas a produção nunca foi significativa. Com a atual crise econômica, a produção caiu 90% devido à queda na procura. Num momento passado, o albergue realizava um sopão a cada dois meses para os moradores de rua. Há um tempo, esse sopão vem acontecendo onde a comunidade decidir, quase sempre fora do albergue. Sobre sua biblioteca, um ex-abrigado da Casa São Francisco passou em sexto lugar para o Curso de Economia da Universidade Federal do Ceará, estudando apenas pelos livros da biblioteca da casa. As atividades do albergue giram em torno da laborterapia e de estudos bíblicos. Tive oportunidade também de conversar com os então moradores do albergue. Conheci o L. L. tem 26 anos de idade, e está há 18 anos na rua. Seus pais são separados, cada um tem sua família. Nem seu pai nem mãe querem o acolher mais, porque ele não faz parte de nenhuma das famílias. A família dele não existe mais, não é nem uma nem a outra. Já morou no albergue antes, mas se amigou de uma moça, mas o albergue não aceita mulheres; Leo então voltou para a rua para ficar junto com sua parceira. Conheci também o A. A. tem 39 anos e seus apelido nas ruas era “Romeiro”, porque andava por toda Fortaleza a pé, sem se importar com a distância. Divorciou-se duas vezes, tem três filhos e um neto. Não possui vínculos com nenhumas das ex-mulheres nem com os filhos nem com o neto, o qual não conhece. Toma conhecimento de alguma informação nas raras vezes que conversa com algum parente. Ex-viciado em crack, estava recém egresso de uma internação de

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nove meses para tratamento de dependência química. É técnico em enfermagem, mergulhador profissional, e trancou o curso de biologia (nunca mais voltou para a graduação). Perdeu família, casa, carro, moto e todo o resto dos bens no processo de drogadização. Vivia descalço nas ruas e já andou do Centro até a Messejana. Já teve várias vezes os pés abertos em ferimentos (em “carne viva”) de tanto caminhar sem calçados sob efeito de drogas. A. diz: “Usar drogas nas proporções de chegar na rua é voltar à Idade da Pedra. Você só quer saber de três coisas: se abrigar, dormir e se drogar. Você não se importa mais com nada. Você tendo essas três coisas, nada mais importa”; “a noite é muito perigosa pra quem tá na rua, você vai dormir e não sabe se vai acordar”; “rua é lei da selva. Prevalece o mais forte”. A. contou sobre a violência comum e que nem choca mais, que acontece nas ruas e da qual nós não nos damos conta. Ele confirmou que existe a violência territorial. Existe estupro contra mulheres e homens, violência gratuita, contra a mulher, pessoas incendiárias, portando armas brancas, armas de fogo, bombinhas, etc. Uma firmação dele que me chamou bastante atenção e me lembrou do conceito de cidade nômade e mapa afetivo foi a de que existe “aquele cheiro da rua. Você chega [ao abrigo] fedendo, e é um fedor que não sai. Uma inhaca que dura meses pra sair”. A. ainda conta que “a rua te engole. A rua te impõe um jeito, o jeito dela. E quando você é acolhido com amor... É como se fosse uma UTI. Você chega ‘morrendo’, e eles te acolhem, te cuidam, te medicam, te limpam... Aí você volta a viver de novo. Ele afirma que o maior obstáculo para sair das ruas não é o preconceito escancarado nem os próprios traumas do sujeito, é o preconceito mascarado na falta de apoio, na falta de uma mão amiga, na ajuda que é negada. Por outro lado, a melhor condição para a reabilitação do indivíduo é estar num lugar rico em fontes de revitalização: uma boa vizinhança familiar, poucos focos de violência e criminalidade próximos, proximidade a equipamentos de assistência social, religiosos, de segurança, educacionais e de saúde. A melhor situação para trabalhar a autoestima é se sentir útil.

27. albergue shalom - produção de vassouras

28. albergue shalom - produção de vassouras

fonte: acervo pessoal do autor

fonte: acervo pessoal do autor

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30. albergue shalom - capela fonte: acervo pessoal do autor

29. albergue shalom - entrada

31. albergue shalom - sala de televisĂŁo

fonte: acervo pessoal do autor

fonte: acervo pessoal do autor

32. albergue shalom - dormitĂłrio

33. albergue shalom - banheiro

34. albergue shalom - cozinha

35. albergue shalom - refeitĂłrio

fonte: acervo pessoal do autor

fonte: acervo pessoal do autor

fonte: acervo pessoal do autor

fonte: acervo pessoal do autor

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• • • A maioria das pessoas rompeu com o sistema vigente. Por isso, o interesse pelos Abrigos Institucionais é bem menor do que pelos centros de referência e pela pousada, já que não têm interesse em voltar ao sistema social. A interferência pela divergência de objetivos pessoais entre os próprios usuários é grande e por motivos variados. Uma pessoa pode até mesmo “achar” que quer sair da rua apenas por um momento de desespero, mas no fundo não tem interesse nenhum em retornar à vida social padrão. Perceber essas nuances na demanda do trabalho com psr é função dos profissionais do atendimento técnico. Por esta razão, é importante haver a separação, inclusive física, dos três equipamentos, centro de referência, pousada social e abrigo. Caso contrário, seria muito difícil gerir e manter ordenado o trabalho em questão. Assim sendo, baseados em tudo que foi exposto, podemos sintetizar a demanda principal da população em situação de rua como sendo um centro de referência e uma pousada social. Como tentativa de melhorar o serviço ofertado alterando o espaço disponível, constatamos a necessidade de acrescentar ao programa de centro de referência um setor de capacitação pessoal e profissional, espaços de descanso e relaxamento e melhores espaços e condições de alimentação e atividades pedagógicas. Considerando a demanda territorial, notamos que um modelo replicável pode ser de grande valor. O interesse maior em aumentar a oferta de serviços e, consequentemente, a abrangência do trabalho com a psr é de oferecer novas possibilidades. O espaço limitado dos atuais equipamentos serve de paliativo, mas não de alicerce bem estruturado e forte para se levar à frente a construção de uma nova história, de um recomeço. Pallasma, ao citar Louis Kahn, relata: O espírito do início é o momento mais maravilhoso de qualquer coisa. Pois é no início que está a semente de todas as coisas que devem seguir. Uma coisa não está pronta para iniciar a menos que possa conter tudo aquilo que um dia poderá dela brotar. Esta é a característica de um início, caso contrário, não há início – é um falso início. (KAHN, 1991, apud. PALLASMAA, 2013, p.118)

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Em 2014, a SETRA, em conjunto com pesquisadores e estatísticos da Universidade Federal do Ceará (UFC), desevolveu o 1o Censo e Pesquisa Municipal sobre População em Situação de Rua, totalizando uma população de 1.718 pessoas. Contudo, o coordenador do CentroPOP-Centro falou em entrevista conosco de mais de 5.000 prontuários feitos. A incerteza sobre esse número ainda persiste.

36. tabela 02 - perfil local da população em situação de rua fonte: 1o censo e pesquisa municipal sobre população em situação de rua, SETRA, PMF.

PANORAMA LOCAL GÊNERO

homem mulher

%

IDADE (homens)

79.8 adulto 20.2 idoso menor

CAUSA

%

OCUPAÇÃO (remunerada)

alcoolismo e/ou drogas

26.2 vendas

problemas financeiros

15.3 construção civil

problemas familiares

60.7 atividades de rua

problemas de saúde outros

3.8 outras atividades 17.5 sem ocupação

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM FORTALEZA

%

COR

83.1 brancos

%

ESCOLARIDADE

18.2 ensino fundamental

9.8 pardo e negro

curso formal e 80 profissionalizante

7.1 indígena

1.8 analfabetos

ALIMENTAÇÃO (local da refeição)

%

13.7 cata em lixeiras 12 restaurante popular 34.4 pede na rua 8.2 CentroPOP 31.7 praça

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%

HIGIENE

95.1 rua

%

68.7 s/n 10.4 %

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90.7 albergue/abrigo

95.6

83.6 CentroPOP

79.2

casa de parentes ou 76.5 amigos

97.3

72.7 igrejas

94.8



PARTE III O HOMEM MANUAL E O HOMEM INTELECTUAL SE DESCOBREM



08. REFERÊNCIAS TEÓRICAS Este Trabalho Final de Graduação está, principalmente, baseado no trabalho e nos estudos do arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa. Com teorias bem estruturadas em conceitos de psicologia ambiental, estudos do espaço, do homem e suas trocas mútuas, ele argumenta e sugere uma abordagem de arquitetura diferente e, muitas vezes, contrária às abordagens comerciais e fictícias atuais. Pallasmaa tem uma visão bem humanizada acerca da arquitetura e da arte da edificação. Não é apenas sobre inovação tecnológica e o homem se deixando levar pelo processo demasiado rápido de transformações dos séculos XX e XXI, mas, dentro desse contexto, o homem recobrando consciência e autonomia nas suas experiências existenciais, nas suas ações, modificadoras do espaço e do tempo, tudo isso que foi perdido com a evolução da sociedade, retomando uma arquitetura e um urbanismo que refletem uma cultura e um estilo de vida reais, guiados pela sustentabilidade, em todos os âmbitos. Do seu trabalho, tomamos como base três de seus livros: Os Olhos da Pele, As Mãos Inteligentes (Bookman, 2013) e A Imagem Corporificada (Bookman, 2013), que podem ser analisados como uma série, tendo em vista que a primeira obra originou as outras duas respectivamente. O primeiro, tem como ideia central os argumentos que comprovam o ofuscamento dos sentidos pela visão e a submissão dos outros órgãos perante os olhos. Com o avanço das tecnologias e com os rumos que a vida em sociedade tem tomado, nossa cultura ocidental está passiva sob o comando quase que total do mundo visual. As imagens visuais dominam nosso cotidiano. Os estímulos visuais imperam nosso mundo sensorial e fazem nosso corpo inteiro se sujeitar aos olhos. O que não temos em mente é que nosso mundo visual é consequência dos nossos outros sentidos. Identificamos a agradabilidade, a temperatura, a cor, o peso, a textura, a aspereza, o perigo ou a segurança, o desejo ou a repulsão de um objeto visualmente percebido apenas porque em nossos primeiros anos de vida construímos nosso mundo através de nossas experiências táteis, olfativas, auditivas, dentre outras. Somente com essas experiências e colhendo dados e conhecimento existenciais é que construímos nossas imagens visuais. Sem os outros sentidos não saberíamos interpretar e pensar com nossos olhos, e nosso mundo visual seria confuso e sem lógica. Nossos sentidos ocorrem simultâneos e interdependentes. Contudo, devido à importância exacerbada que devotamos à visão, nossos outros sentidos passam a operar apenas inconscientemente, e, por isso, acabamos por negligenciá-los. O segundo livro trata da interrelação das nossas mãos com nosso cérebro. Ainda baseado no complexo sensual que é nosso organismo, Pallasmaa defende aí a teoria de que o aperfeiçoamento da capacidade cerebral se deu em decorrência do aperfeiçoamento das mãos humanas, não

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37. os olhos da pele

fonte: http://geros.com.br/loja/media/catalog/product/ cache/1/image/9df78eab33525d08d6e5fb8d2713 6e95/o/s/os-olhos-da-pele.jpg

38. as mĂŁos inteligentes

fonte: http://static.fnac-static.com/multimedia/Images/PT/NR/dd/0a/0b/723677/1507-1/ tsp20131021184531/As-Maos-Inteligentes.jpg

39. a imagem corporificada

fonte: http://statics.livrariacultura.net.br/products/ capas_lg/336/5169336.jpg

40. a dimensĂŁo oculta

fonte: http://static.fnac-static.com/multimedia/PT/ images_produits/PT/ZoomPE/3/3/2/9789727081233/ tsp20110207202716/A-Dimensao-Oculta.jpg

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o contrário, como se costuma acreditar. No processo evolutivo do homem, o desenvolvimento de ferramentas e habilidades manuais exigiu que nossas mãos também se modificassem. A nossa forma de interagir e perceber o mundo mudou, e nossas experiências existenciais vividas foram alimentando um conhecimento empírico que demandou um melhoramento e uma otimização dos nossos sistemas biológicos e psicológicos. Na própria história do homem é possível ver a promoção do raciocínio e da consciência andando paralela ao desenvolvimento de ferramentas, de habilidades, da própria linguagem e nos ajuntamentos e agrupamentos organizados. O finlandês, no segundo livro, continua defendendo a totalidade sensorial do homem, porém foca na ação das mãos integrada com a atividade cerebral. Ele expande o conceito de conhecimento como uma simples apreensão verbal para o conceito mais amplo de estado. O organismo se encontra no mundo, ele está no mundo, então ele adquire conhecimento a partir dessa experiência vivida. Se pensamos em arte e em arquitetura, vemos, através da ótica de Pallasmaa, que as obras nos tempos atuais estão caminhando por caminhos menos férteis e, assim, tornam-se fadadas a serem vazias, pobres, não passando de um mero estímulo visual. Sem essa sensibilidade para o nosso corpo, que não é somente olhos, produzimos peças e prédios sem sensação de vida nenhuma, sem correlação nenhuma com nossas culturas, ou nossos estilos de vida ou nossa memória e tradição. O último dos três livros, A Imagem Corporificada, é resultado do caminhamento das duas pesquisas anteriores. O trabalho discute então a imagem e o imaginário na arquitetura. Como temos equivocadamente trabalhado e aplicado um conceito raso de imagem e, como conseguinte, temos distorcido e empobrecido nosso imaginário e nossa capacidade de imaginação. Isso é refletido em todas as nossas esferas sociais, e na arquitetura não é diferente. A obsessão pela “beleza”, por imagens que “encham os olhos”, sem nenhum compromisso ou preocupação com conceitos essenciais da história, da arte e da vida em si, cria um mundo fictício, fantasioso, construído em puras imagens visuais. Somos cada vez mais aprisionados e colonizados por padrões forçados a nós e a nossos corpos, e temos nos privado, assim, de exercitarmos e mantermos nosso imaginário saudável e ativo. Somos bombardeados a todo instante por imagens manipuladoras e que nos submetem a processos automáticos e apassivadores. Precisamos ser controlados por imagens ideológicas, políticas, de consumo, de entretenimento para que se mantenha a ordem e o sistema vigente dominante se mantenha no poder. Nossa energia deve então ser concentrada num imaginário libertador, autônomo, fugindo de padrões forçados e manipulatórios, concentrados em imagens poéticas, que fazem-nos pensar, questionar, analisar, raciocinar, supor, argumentar. Imagem não é somente um estímulo sensorial captado na retina. Imagem é um objeto total, seja uma coisa ou um indivíduo, que percebemos de maneira total com nosso corpo inteiro e apreendemos por fim uma definição de algo, que é parte compositiva do nosso imaginário. Por sua vez, nosso imaginário não é um momento de devaneio que experimentamos, mas todo o conjunto de imagens, com as quais alimentamos nosso mundo mental, que nos fazem identificar, pensar, raciocinar, julgar, escolher, sentir compaixão e empatia.

Além de Juhani Pallasmaa, temos nos respaldado também nos estudos do antropólogo

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estadunidense Edward T. Hall em seu livro A Dimensão Oculta. Em seus discursos, podemos encontrar informações sobre pesquisas biológicas e antropológicas relacionadas diretamente com processos psicológicos e culturais. Situações e experiências existenciais refletidas diretamente no corpo humano e em outros organismos vivos, e essas mesmas alterações metabólicas afetando o psicológico do homem. A cultura e a linguagem têm papeis centrais nos seus estudos e pesquisas. Hall cria conceitos de como o homem se relaciona com o espaço através da sua cultura e como isso é refletido nas ações e nas modificações que ocorrem no espaço e no tempo. Como os estímulos visuais, olfativos, auditivos, gustativos e todos os outros influenciam diretamente nosso metabolismo e o metabolismo de outros animais. Um exemplo é como o sistema endócrino dos animais colapsa e seu metabolismo se desmonta quando os indivíduos experimentam superpopulação no grupo em que estão inseridos. Uma espécie de alces, quando experimentam um crescimento desenfreado de sua população, tem seu sistema endócrino alterado ao ponto de produzir descontroladamente hormônios que os levam ao suicídio; e como consequência vemos que retornam a um controle populacional a medida que os alces vão se matando. Outros estudos encontrados nesse livro relacionam tecnicamente o funcionamento dos nossos órgãos receptores de estímulos imediatos com a maneira que nós operamos, ou seja, com nossa cultura. Podemos tomar como exemplo o mundo olfativo dos árabes, o qual torna comum o hábito de banhar o outro com seu hálito; enquanto, para nós brasileiros, isso é um hábito extremamente desagradável. Finalmente, somado a esses dois autores principais, nos guiamos por outros autores que acrescentaram de alguma forma para o enriquecimento do trabalho em questão. Tentamos ao máximo trazer esses conhecimentos para nosso projeto e, desta forma, mostrar que arquitetura vai muito além de escolher uma cor tendência determinada pela Pantone® para utilizar no projeto de um dormitório ou sugerir um brise da Hunter Douglas® muito utilizado em obras de destaque, obviamente sem descreditar nem desmerecer a alta qualidade dos produtos dessas duas marcas. Arquitetura trabalha com nosso corpo inteiro, com nossas sensações, com nossas emoções, com nossa memória, com nossa cultura; e existe uma possibilidade de melhorarmos nossa realidade, se nos propormos a fazer uma arquitetura sensível, humanamente sensível. É essa arquitetura humanamente sensível que nós tentamos aqui com o projeto do Centro de Apoio à População em Situação de Rua. É sobre melhorar as condições individuais das pessoas de rua e suas condições sociais, como elas se veem dentro da sociedade e como a sociedade as aceita (ou as rejeita) no seu coletivo.

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09. O HOMEM MANUAL E O HOMEM INTELECTUAL SE DESCOBREM O homem, depois de longos milênios, depois de vencer inúmeros desafios e dominar com excelência incontáveis recursos que descobriu e conheceu, desenvolveu métodos e artifícios que lhe serviram e lhe servem para continuar avançando nos diferentes âmbitos da vida individual e coletiva. A partir de suas experiências práticas e das ciências e teorias criadas em consequência, ele aumentou em muito o conhecimento a respeito de si, de seu corpo e de sua psique, e do ambiente à sua volta. Inventou coisas, instrumentos, utilitários, ferramentas. Desvendou o que era mistério e resolveu problemas. Entretanto, nosso conhecimento a respeito de nós mesmos tornou-se tão mecânico e materialista quanto nossa atual cultura industrial. Os processos da vida tornaram-se tanto automáticos como os processos de produção e consumo que regem o cotidiano contemporâneo. Nossos corpos se transformaram em máquinas de produzir, e criamos um culto demasiado estetizado e erotizado para eles. Desvinculamos nossa inteligência e criatividade de nosso corpo, e este acabou se transformando em uma cápsula onde habitamos, do mesmo modo como nosso corpo habita nossa casa. O que precisamos retomar hoje é a consciência de que somos nós próprios entidades corpóreas e mentais ao mesmo tempo. Corpo e mente formam uma unidade integrada e um não ocorre sem o outro. Isso é o que nos torna um organismo tão mais maravilhoso. Por sua vez, nossa natureza corpórea e sensual está subjugada aos padrões ditos aceitáveis e tornou-se território exploratório e manipulatório comercial. Publicidade, entretenimento e valor social ditam as regras. Se não alcançamos o físico ideal, nossos corpos se tornam culpa e fracasso e são colocados contra nós mesmos. Nossos sentidos são explorados pela manipulação consumidora e eles mesmos são os sentidos negligenciados como condição existencial fundamental e objetivo educacional. Juhani Pallasmaa (2013, p.12) pressupõe que “antes do advento de nossa atual cultura industrial, as situações de vida cotidiana e os processos de amadurecimento e educação ofereciam uma base experimental mais completa para o crescimento e o aprendizado”. Isso porque ele considera a maior interação do homem com o mundo natural e suas relações mais íntimas com a família e os outros indivíduos e com os animais, o que, para ele, ofereceu “uma ampla

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interação com o mundo das causalidades físicas”. Muito provavelmente, os sensos de compaixão e empatia foram mais aguçados que no dia-a-dia individualizado de hoje. Da mesma forma, nossas capacidades de inteligência e criatividade foram colocadas à parte de nós, como se fossem elementos tão distantes que precisam ser acionados quando necessário, sem nenhuma relação com nossa existência física. Porém, ao contrário do que normalmente se pensa, nós, como parte constituinte do mundo, não acontecemos sem nossas experiências físicas, e nosso entendimento sobre isso não acontece sem nossa imaginação. A falta de imaginação nos impediria de percebermos o mundo, de sentir empatia e compaixão, e de fazer escolhas e julgamentos éticos. Imagem e imaginário são comumente reduzidos a uma percepção visual e a um momento fantasioso ou de devaneio. As imagens, contudo, não são apenas percepção visual, imediata, mas uma síntese das experiências existenciais vividas, alimentadas por todos os outros sentidos – o que Juhani Pallasmaa chama de imagem corporificada – em nós. Nossos sentidos não percebem os estímulos um de cada vez. Eles ocorrem simultâneos, a polifonia dos sentidos de Gaston Bachelard. Eu vejo ao mesmo tempo que escuto, cheiro, degusto, sinto textura, temperatura, peso, cor, equilibro-me, oriento-me, etc. Maurice Merleau-Ponty (1964, p.48, apud PALLASMAA, 2013, p.51) defende: “minha percepção não é a soma de dons visuais, táteis e auditivos: percebo, de maneira total, com todo o meu ser: pego uma estrutura única da coisa, uma maneira de ser única, que se comunica com todos os meus sentidos de uma vez”. E desta forma, construímos nosso próprio mundo, o que Edward T. Hall define como mundo perceptivo. O que acontece, infelizmente, com nossa imaginação hoje é que, como nosso corpo, ela também vem sendo subjugada e está sendo substituída por um imaginário externo, em vez de estimulada. Ela tem se tornado passiva porque temos consumido as imagens produzidas em massa e instantâneas. Os objetivos atuais da comunicação são, dentre outros, alcançar o maior número de receptores no menor tempo possível, e, para isso, as imagens e os textos têm sido cada vez mais simplificados. O impacto deve ser instantâneo e sem esforços. Isso reduz as nuances e achata o espaço individual de imaginação. Até mesmo nossas paisagens urbanas e naturais, igualmente às nossas paisagens mentais, são dominadas pela indústria da imagem. Muito mais que para fins puramente de informação, educação e entretenimento, as imagens são produzidas e empregadas indiscriminadamente para fins de manipulação comercial, ideológica e política. Nosso comportamento e vida individual têm sido secretamente controlados por recursos que vão muito além do modo visual. Hoje, aplica-se um marketing multissensorial que manipula ou condiciona desejos, sentimentos e experiências por meio de cheiros, sons, gostos e sensações táteis, nos colonizando por todos os nossos sentidos. Podemos dividir as imagens em relação à liberdade individual do sujeito em dois tipos opostos: um grupo de imagens emancipadoras, inspiradoras, que atribuem poderes, e outro grupo de imagens manipuladoras, condicionadoras, determinantes. Este é formado por imagens de condicionamento político e de consumo, que confina, enfraquece e restringe a escolha, a liberdade e a individualidade do indivíduo. São imagens que canalizam sua atenção para um padrão forçado,

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fonte: http://www.tate.org.uk/sites/default/files/styles/width-720/public/images/fase-four-movements-steve-reich_0.jpg?itok=2KxEFz8i

45. anne teresa de keersmaeker - fase: four movements to the music of steve reich 1982

55 fonte: https://www.ufrgs.br/arteversa/wordpress/wp-content/uploads/2015/04/050-dragon-heads.jpg

44. marina abramovic 02

fonte: https://www.ufrgs.br/arteversa/wordpress/wp-content/uploads/2015/04/050-dragon-heads.jpg

43. marina abramovic 01

fonte: https://2.bp.blogspot.com/-YQ5YzgAc7Ck/ULDdDMtCjbI/AAAAAAAACQ4/ fXERJUaVW0E/s400/Frase+copiada+de+campanha+do+governo+americano+Am erica+love+it+or+leave+it+iniciada+no+Brasil+em+abril+de++1970.jpg

42. cartaz governo mĂŠdici

fonte: http://www.portaldemarcelino.com.br/portal/ wp-content/uploads/2014/03/Anuncio_Mais_Medicos_Populacao.jpg

41. cartaz mais mĂŠdicos


muitas vezes baseado no sentimento de culpa e inferioridade do sujeito. Tornamo-nos mais incertos de nós mesmos e mais dependentes de autoridade. Aquele grupo, por sua vez, é constituído por imagens poéticas, libertadoras, emancipadoras, que abre e fortifica através do fortalecimento da imaginação, afeto e emoção pessoais. O imaginário poético estimula nossa noção de existência, independência, autonomia. Imagens poéticas são imagens de liberdade e integridade individuais. O imaginário externo instantâneo e imposto a nós tem forçado seus padrões também na arquitetura. Parece-se criar um mundo de ficções arquitetônicas, demasiadamente longe dos fundamentos e objetivos da arte da edificação. “Trata-se de um mundo arquitetônico alienado, sem gravidade e materialidade, tato e compaixão”, nas palavras de Pallasmaa (2013, p.19). As primeiras arquiteturas eram reflexo da cultura e do estilo de vida. As arquiteturas de hoje, parece, são nada mais que exercícios gráficos, sem vida real. Fachadas temáticas e produzidas de uma cultura fictícia criam um mundo fantasioso, enquanto a arquitetura deveria, na verdade, fortalecer nossa experiência do real, na interação cultural e social. Isso é a sensação de vida da obra de arte da arquitetura. Entramos e ocupamos o espaço, e o espaço nos entra e nos ocupa; uma troca real de sensações e estímulos. Pallasmaa defende: “ A imagem de arquitetura é, fundamentalmente, um convite à ação; por exemplo, o piso convida à movimentação e atividade, a porta é um convite para entrar ou sair, a janela, para olhar para fora, a mesa, para se reunir em volta”. Arquitetura não é ficção, é realidade. A arquitetura tem sido, por toda a história, uma mediadora entre a escala humana e o cosmos imensurável, entre divindades e mortais. Espaços, dimensões e detalhes de arquitetura advém essencialmente de características ergonômicas do homem, fazendo nosso corpo dialogar diretamente com o edifício, assim como com nossa mente e nossa memória. Toda nossa natureza sensual (todos os nossos sentidos) “pensam”. São eles que estruturam nossas relações com o mundo, mesmo que não estejamos cientes dessa atividade perpétua. Não estamos cientes disso porque temos a tendência de supor o conhecimento residindo em conceitos verbalizados, falados ou escritos. Porém, um entendimento de uma situação de vida, de uma reação a uma situação de vida também é conhecimento. Como então aprenderíamos com os nossos erros, senão pela apreensão dos fatos e condições que vivemos? E muitas vezes não adquirimos essa concepção por uma “receita” documentada. Esse pensamento se encaixa ainda melhor quando falamos do aprendizado de uma habilidade prática. Capacidades práticas não se baseiam principalmente em ensinos verbais. Os seres humanos temos os neurônios-espelho, parte do sistema nervoso responsável por identificar os outros corpos dos outros indivíduos e pelo aprendizado mimético. Habilidades práticas, deste modo, são adquiridas mais por mimese corporal, pela transferência das aptidões dos músculos do professor para os músculos do aprendiz, puro ato de percepção sensorial.

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O ensino da sabedoria existencial na educação ocorre principalmente por meio do desenvolvimento da personalidade de uma pessoa, a qual frequentemente é um reflexo da individualidade própria do aluno. Esta sabedoria sobre a vida é um lento acúmulo de experiências, uma maturação gradual da personalidade e uma internalização – mais uma vez eu usaria a palavra corporificação – de um senso de responsabilidade e ambição. Por ambição não estou me referindo a aspirações ou objetivos sociais, mas ao senso interno que uma pessoa tem de responsabilidade e honra e ao desejo que cada um tem de ultrapassar os limites das habilidades e dos conhecimentos anteriores (PALLASMAA, 2013, p.123)

No exercício de práticas artísticas e de criação, a arte tange as duas esferas pessoal e mundana de realidade. O foco está tanto no mundo mental do indivíduo quanto no mundo externo a ele, e o produto, a obra de arte, articula esses dois limites. Realidades individual e mundana são experimentadas tanto pelo autor, artista, como pelo observador, ouvinte ou usuário. Mesmo na atual cultura tecnológica, a apreensão da existência na vida cotidiana não advém de teorias randômicas, mas transcende a consciência, um conhecimento silencioso, que está misturado com os ambientes e comportamentos do dia-a-dia. “As revoluções na história da arte sempre implicam uma reconexão com as tendências invisíveis do universo e da mente humana”, afirma Pallasmaa (2013, p.21). Os conceitos a serem apresentados neste trabalho vêm refletir os pontos de vista pelos quais não vemos o corpo humano dissociado da mente. O artista (o corpo) produz a obra de arte através da experiência existencial (a mente). A obra de arte (o corpo) constitui o produto juntamente com o conhecimento adquirido (a mente). E para tanto, iremos nos basear nos pensamentos defendidos por Juhani Pallasmaa: as mãos (o corpo) têm papel fundamental no aperfeiçoamento da inteligência (a mente). É evidente que urge uma mudança no ensino com relação à importância da esfera sensorial, para que possamos nos redescobrir como seres físicos e mentais completos, para que possamos utilizar de modo integral nossas capacidades e nos tornemos menos vulneráveis à manipulação e exploração. Nas palavras do filósofo Michel Serres, “se uma revolta está por vir, ela terá de vir dos cinco sentidos. A inteligência, o raciocínio e as habilidades manuais também precisam ser redescobertas. E, o que é ainda mais importante, o entendimento completo e sem preconceitos da existência humana corpórea é o pré-requisito para uma vida digna. (PALLASMAA, 2013, p.22)

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• • • De acordo com a definição universal, a mão é a parte distal do braço além do pulso em humanos e primatas, a qual inclui a palma e os dedos. O braço, por sua vez, opera em coordenação dinâmica com o pescoço, as costas e as pernas, ou seja, com todo o corpo. Minhas mãos são oferecidas por mim para me apresentar e me representar, introduzindo-me a alguém, estendendo-a ao fazer um juramento, documentando minhas digitais em um cadastro oficial. Os esportes treinam a ação integrada das mãos com o corpo inteiro. Podemos considerar ainda as funções neurais associadas às mãos como parte constituinte dessas. As mãos integram nossas ações e pensamentos. Os movimentos corporais e a atividade cerebral são interdependentes. A medicina e a antropologia têm afirmado em teorias e pesquisas que as mãos têm papel fundamental no desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da inteligência. Tem-se visto, em contrapartida ao que se pensa costumeiramente, que a versatilidade móvel e a capacidade de aprendizado se dão em decorrência das funções e capacidades cerebrais, que é mais provável que o cérebro tenha se aperfeiçoado como consequência do aperfeiçoamento das mãos e seu uso. Os estudos acerca do desenvolvimento da linguagem têm notado com mais atenção sua relação com o desenvolvimento das aptidões manuais, já que se observa a simultaneidade do início da manufatura de ferramentas na história da humanidade com o surgimento e desenvolvimento de sistemas linguísticos (note que não me refiro às convenções de linguagem escrita do Oriente, mas aos primeiros registros de linguagem encontrados na pré-história). A possibilidade de o cérebro humano ter evoluído como consequência do aumento do uso de ferramentas já era considerada, sendo, do ponto de vista evolutivo, os comportamentos e estruturas humanos um complexo de interações onde uma alteração em uma afeta o outro. E as teses que defendem a vinculação da linguagem com a produção e utilização de ferramentas implicam na inter-relação das mãos com o cérebro. O neurologista Frank R. Wilson (1998, p30, apud PALLASMAA, 2013, p.36) defende: “É praticamente certo que as estruturas sociais complexas – e a linguagem – se desenvolveram gradualmente associadas à difusão, do desenho, da manufatura e do uso de ferramentas extremamente elaboradas”. Então, o refinamento posterior das mãos levou ao desenvolvimento dos circuitos do cérebro humano.  Há um conjunto de evidências cada vez maior de que o Homo sapiens precisou, devido às suas novas mãos, não apenas da sua capacidade mecânica de manipulação refinada e do uso de ferramentas, mas, à medida que o tempo passou e os eventos se sucederam, de um ímpeto no redesenho e na realocação dos circuitos cerebrais. A nova maneira de mapear o mundo foi uma extensão das antiquíssimas representações do cérebro do controle da gravidade e da inércia na locomoção (WILSON, 1998, p.59, apud PALLASMAA, 2013, p.37)

Deste modo, a medida que a subjetividade do homem emergia, o refinamento e o desenvolvimento das ferramentas aumentava. É conjecturado que o homem chega à história com o pro-

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gresso da linguagem, mas não se considera que antes do pensamento da fala houve o pensamento em termos de ferramentas. O uso e a operação de artefatos é, antes de ato mecânico, ato subjetivo, de conscientemente usar instrumentos mecânicos para fins mecânicos, tornando, assim, o uso de ferramentas um ato de subjetividade. Até que a linguagem se desdobrasse em fala, os objetos e as peças de uso mecânico foram otimizadas subjetiva e conscientemente. A nossa linguagem, inclusive, foi moldada diretamente pelas ações das mãos, em verbos e advérbios e substantivos, etc. A linguagem tem embasamento em metáforas do corpo do homem e nas diversas formas como ele se relaciona com o espaço. Julian Jaynes, psicólogo, defende que a consciência humana não é resultado evolucionário, e sim um aprendizado processual de uma mentalidade alucinatória primitiva, através de eventos catastróficos e cataclísmicos. O imaginário humano explodindo em erupção de incontáveis imagens mentais coletadas, por meio da sua totalidade sensual (sensorial), nas adversidades vividas. O psicólogo ainda identifica o surgimento de uma consciência humana propriamente dita na época dos primeiros registros escritos, há aproximadamente três mil anos. As próprias categorias da linguagem são criadas por atos manuais intencionais, de modo que os verbos derivam dos movimentos das mãos, os substantivos dão nomes às coisas e os advérbios e adjetivos, assim com as ferramentas manuais, modificam os movimentos e objetos. Aqui o foco está particularmente em como as experiências do toque e a empunhadura (...) conferem à linguagem seu poder direcionador. (ARMSTRONG, STOKOE, WILCOX, 1995, apud SENNETT, 2008, p. 180, apud PALLASMAA, 2013, p.39)

As ferramentas e instrumentos inventados funcionam como extensões do nosso corpo. O computador é uma extensão de parte do cérebro, o garfo é uma das extensões das mãos, as rodas estendem as pernas e os pés, o telefone estende a voz. Um usuário competente não vê suas mãos e a ferramenta como entidades distintas. É como se existisse um órgão-ferramenta. Logo, um grande pintor pinta a si mesmo, e o pincel é extensão da sua mão e sua mente. Um grande músico toca suas emoções. Um grande escultor talha seu próprio mundo háptico. Então, a partir das extensões, o homem canalizou e deslocou a evolução do seu corpo para os artefatos, acelerando tremendamente, deste modo, o processo evolucionário. O avanço tecnológico proporcionado e experimentado por nós mesmos levaria tantos milhões de anos se fosse puramente natural no nosso organismo. Trabalhando com o cérebro e pensando com as mãos, o trabalho artesanal é resultado de treinamento, experiência e habilidade manual, além de compromisso e decisões pessoais. O ofício dialoga diretamente e constantemente com o pensamento. Existe um ritmo entre a resolução de problemas e a busca por problemas. A habilidade prática envolve a imaginação com as mãos, pois o exercício artesanal abrange a projeção de determinada intencionalidade e uma versão imaginada do objeto ou da tarefa concluída. É imprescindível que o artesão relacione a ideia com a execução, o pensamento com a elaboração, a identidade própria com o trabalho, a ação com a matéria, o

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orgulho com a humildade. Escritórios comedidos optam pela segurança de padrões tradicionais e testados, enquanto ateliês mais audaciosos experimentam e inovam com métodos e materiais e suas combinações. O estado criativo é uma condição de imersão tátil. Se comparado o projeto à caça ou à pesca, não tenho como saber ao certo o que pegarei ou mesmo se pegarei alguma coisa. Em primeiro lugar, que todas as habilidades, até mesmo as mais abstratas, começaram como práticas corporais; em segundo, que o entendimento técnico se desenvolve por meio dos poderes da imaginação. O primeiro argumento foca o conhecimento ganho pelas mãos com o toque e o movimento. O argumento sobre a imaginação começa com a exploração da linguagem que busca dirigir e guiar as habilidades corporais. (SENNETT, 2008, p.35, apud PALLASMAA, 2013, p.55)

Um ofício é uma habilidade específica aprendida. A excelência e a perfeição nesse ofício advêm de um processo. Mãos, olhos e mente colaboram sem parar e inconscientemente. O desempenho é aperfeiçoado, a percepção e a ação se transformam em sistema coordenado de reação e resposta, o senso de identidade do artista toma conta da obra, e a identificação do autor com a obra é completa. Um jogador que arremessa, chuta ou pega a bola o faz porque o complexo olhos-mãos-mente já calculou instantânea e inconscientemente movimentos, velocidades, posições relativas no espaço e fez uma série de planejamentos estratégicos. Essa ação só pode ser realizada em uma fração de segundos porque toda a ação já foi corporalizada pelos repetidos e incontáveis treinamentos e repetições. A ação já faz parte do senso de identidade do atleta, não é mais uma situação de tarefa externa a ele e desvinculada de seu corpo. Treinar uma habilidade consiste em gastar muito tempo e repetição incessante, quase que tédio, culminando numa espécie de meditação. Uma consciência focada deve ser momentaneamente relaxada para ser substituída por internalizações. A solidão na infância escancara nossa mente para a imaginação e para um processo de jogos, fantasias e observação. Esta condição nos confere apreensão das causalidades entre as coisas. Portanto, a superestimulação que as crianças sofrem de pais e professores pode atrapalhar sua capacidade de imaginar, inventar e formar sua autoidentidade. Tomando por exemplo atividades criativas artísticas, a matéria prima do artista é, antes de matéria física, matéria mental. Matéria que é nada, nada que tenha sido antes; e tudo, tudo em potencial, tudo aquilo que aguarda para existir. O escultor não reproduz apenas uma forma ou uma textura, pensada ou imaginada. Ele percebe a sua essência, ele internaliza seu caráter e toca sua superfície quando produz a peça, sente sua aspereza, seu peso, sua temperatura, e, por fim, o produto é dotado de sensação de vida. É projeção da essência metafísica do objeto. Além disso, além da correlação do produto representado com o objeto percebido, ele reflete o ritmo dos traços através da sua musculatura, e aquele instante é registrado como imagem háptica na memória muscular. Ademais, se produzo a peça de arte, produzo ainda três imagens em categorias diferentes: a imagem que surge na peça, a imagem memorizada no cérebro e a imagem registrada na memória muscular através do ato de criar e produzir. Nenhuma das três são fotografias instan-

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46. cozinheiros em um cruzeiro

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47. escultor manuel pereira da silva

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48. rendeiras tecendo

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49. jogadoras em partida de voleibol

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tâneas, são sim registros de um processo no tempo: de percepção sucessiva, avaliação, medição, correção e reavaliação. O ato de criação-produção é dialético, uma vez que é processo de observação e expressão. A perspectiva é sempre dupla, é olhando para fora e para dentro ao mesmo tempo; é o mundo externo do objeto de atenção e o mundo interno mental do autor. A peça criada carrega partes do autor e representa, simultaneamente, uma vista do mundo real ou imaginado, investigando o passado e a memória do criador. O produto de nossas mãos é expressivo e cheio de emoções. Ele reflete nossos julgamentos, nossas certezas, nossas escolhas, nossas preferências, nossas paixões, nossas afeições. Se não isso, o contrário, o que condenamos, o que repudiamos, nossas dúvidas, nossas ansiedades.

• • • Meu contato com o mundo acontece através da minha pele. Pallasmaa argumenta o fato de nosso desenvolvimento embrionário, enquanto ainda nos desdobramos em direção a feto, se dar através de especializações de células da pele. Os primeiros conjuntos de células formados a partir da fecundação são grupos celulares da pele, a partir deles é que as multiplicações celulares ocorrem, e, assim, começam a surgir os outros órgãos. Logo, nossos olhos, ouvidos, boca, nariz, músculos, labirinto, e todo o resto do nosso organismo é especialização da pele. Portanto, todos os nossos sentidos têm origem primeira no nosso mundo háptico e estão vinculados à tatilidade. A córnea mesma é formada por uma camada de pele modificada. O tato é o nosso primeiro meio de comunicação e, por isso, considerado o “pai de todos os sentidos”. É através dele que consigo integrar o mundo com as minhas experiências, numa continuidade tátil de identidade visual. Meu corpo me lembra de quem eu sou e onde eu me situo no mundo. A imagem do corpo é influenciada principalmente pelas experiências do tato e da orientação nas primeiras fases de nossas vidas. Nossas imagens visuais são desenvolvidas posteriormente e, para seu significado, dependem de nossas experiências primitivas que ocorreram por meio do tato. (BLOOMER, MOORE, 1977, p.44, apud PALLASMAA, 2013, p.103)

Em geral, não estamos cientes de que uma experiência visual está enraizada numa experiência tátil. Por meio da nossa memória háptica, conseguimos tocar o objeto com os olhos mesmo antes de tocá-lo com as mãos. A imagem visual que apreendemos do objeto sob nossa atenção é percebida depois de julgarmos seu peso, textura, temperatura, cor, etc. Essa interrelação dos mundos visual e háptico é constante e nos faz tocar com os olhos algo que está longe e ver com as mãos algo que está perto. Esse nível inconsciente de tato no mundo visual é terrivelmente negligenciado na arquitetura em detrimento da imagem meramente visual. Nossos prédios são produzidos para agradar os olhos, mas não possuem, em quase nenhum nível, sensibilidade para

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acomodar nosso corpo por inteiro (PALLASMAA, 2013). As experiências olfativas, auditivas, táteis, gustativas, de equilíbrio, ou qualquer outra são ofuscadas por uma imagem agradável, porém meramente visual. Não há sensibilidade de recorrer à nossa memória, ao nosso passado, à nossa cultura, ao que nós já vivemos. As imagens arquitetônicas e urbanas compõem e constroem, por fim, um mundo fictício. Por outro lado, nas palavras de Pallasmaa (2013, p.105), “uma boa obra de arquitetura gera um complexo indivisível de impressões, nossas sensações evocadas, como as experiências de movimento, peso, tensão, dinâmica estrutural, contraponto formal e ritmo, as quais se tornam nossa medida daquilo que é real”. O encanto dos prédios e objetos está na mediação das experiências pelas quais eles foram produzidos. Eles refletem o processo físico de criação e produção desde a mão do arquiteto e do designer até a mão do marceneiro, da costureira, do escultor, do artesão. As flexibilidades de movimento e as dimensões ergonômicas são fruto do toque do arquiteto nas mãos do usuário ao definir o puxador da porta, da pisada do designer de tênis nos pés do atleta, ou na pegada do fabricante de vassouras pelas mãos da dona de casa que faz faxina. Toda essa evocação de memórias sensoriais e experiências existenciais é que vai determinar a qualidade da nossa arte e, portanto, da nossa arquitetura. Existe uma ressonância e uma interação entre o espaço e a pessoa que o experimenta. Se, como profissional de arquitetura, eu rejeito a sabedoria da memória e da tradição, lanço-me num campo fértil para uma uniformidade terrível ou uma anarquia incontrolável. Toda arte tem sua essência, sua expressão característica, e são exatamente suas estruturas internas que definem seus limites. No caso da arte da arquitetura, a própria linguagem tectônica é que vai definir a linguagem dos materiais e dos processos de construção que vou utilizar como arquiteto. Mais uma vez sobre a qualidade da obra, Pallasmaa (2013, p.118) argumenta que as boas obras de arquitetura “nem sempre são requintadas em termos estéticos, já que apresentam uma profunda e perturbadora capacidade de provocar emoções e levantar questões, em vez de dar respostas bem formuladas”. É preciso fugir do maneirismo estético vazio e reaproximar-se da essência ontológica da construção, dos motivos originários do ato de construir, domesticando o tempo e o espaço, compreendendo o mundo de forma animista e reconhecendo a construção como metáfora do modo de viver. Desta forma, nosso corpo e nossos sentidos pensam conforme o fundamento de identificar e processar as informações sobre como nos situamos no mundo e os comportamentos sensíveis relativos a ele. Isso transforma o conhecimento, e ele passa a ser não apenas palavras aprendidas, mas vai mais profundo, e se torna um estado de consciência (ou inconsciência). O estado em que um organismo se relaciona com o mundo. Existe então uma fusão da memória com o objeto percebido, e mesmo as tarefas abstratas implicam numa articulação do mundo conosco. Como afirmam George Lakoff e Mark Johnson (1999, p.6, apud PALLASMAA, 2013, p.120): “A mente não é apenas corpórea, mas corpórea de tal modo que nosso sistema conceitual se baseia em grande parte nas características comuns que nossos corpos têm com os ambientes em que vivemos”. Corporificamos as imagens em nós, através de nossos corpos, e a partir delas conseguimos expressar nossa

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sensação de vida nas nossas ações, sejam essas tarefas concretas ou abstratas, pois não somos apenas observadores externos ou teóricos do mundo.

• • • O mundo em que vivemos se aproxima mais de uma esfera quimérica do que de uma descrição científica, tendo em vista que esse mundo é o mundo físico real somado às interpretações que nós damos individual ou coletivamente. A partir de minhas memórias e experiências existenciais, eu dou determinadas interpretações que me ajudam a compor de forma ordenada o mundo físico real o qual eu experimento. Embora eu dote o mundo de sentido com minhas opiniões e através dos meus pontos de vista, também dou sentido ao mundo juntamente com os outros membros de um grupo ao qual eu pertenço. Até mesmo nações compartilham características do espaço existencial, as quais formam suas identidades coletivas e sensos de união. Partindo desse pressuposto, posso analisar a arquitetura como um instrumento para domesticar o espaço e o tempo e deixa-lo “com a minha cara”. A arquitetura reflete justamente nossas interpretações do mundo físico. A minha forma de abordar o real me condiciona a, ao pensar e construir o espaço, moldá-lo à minha maneira. Seu homem transforma o espaço em um lar para si, a arquitetura dá enfim um significado cultural ao homem. Pallasmaa (2013, p.136) também sugere: “Embora todas as obras [de arte e de arquitetura] comoventes sejam únicas, elas refletem aquilo que é geral e compartilhado pela experiência existencial humana. Desta maneira, a arte é tautológica; ela continua repetindo a mesma expressão básica diversas vezes: como nos sentimos como seres humanos neste mundo”. Por isso, se nossa experiência de arte é decorrente de nossas experiências corporificadas, da nossa capacidade de projeção e identificação, seja a obra agradável ou não, a falsidade existencial na arquitetura nos leva à alienação e ao empobrecimento do sentido de identidade própria. Retomando a discussão sobre o imaginário, se não conseguíssemos imaginar o resultado de nossas ações, não seríamos capazes de usar nossas mãos com excelência, de modo significativo. Contudo, a partir do momento que nós aceitamos um imaginário externo padronizado, formado por inacabáveis imagens manipulatórias e insignificantes, nós nos isentamos da tarefa de analisar e julgar o mundo e, assim, arrasamos nosso mundo imaginativo. Tudo o que pode ser imaginado já está ali pronto diante de mim: imagens que provocam esforço algum de entendimento, imagens desvinculadas de contextos reais. Logo, não precisamos investir nossas emoções nem atitudes éticas naquilo que é percebido. Como então nossa arquitetura pode ser sensível e humana? Como poderia eu me identificar com um espaço que não carrega nem traduz nenhum contexto vivido, nenhuma tradição, nenhuma experiência existencial humana (leia-se coletiva)? Pallasmaa (2013, p.138) discorda dessa nova forma de imaginar atual: “Entorpecidos pela comunicação em massa, já conseguimos assistir as mais revoltantes crueldades sem qualquer envolvimento emocional. O dilúvio de imagens que cresce e esmaga os sentidos e as emoções, suprime e embota a imagina-

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ção, a empatia e a compaixão”. Uma experiência de arte e arquitetura significativa consiste na troca mútua entre o sujeito e o objeto: eu projeto minhas emoções na obra ou no espaço, e ele me concede sua aura emancipadora que liberta meus pensamentos e minhas preocupações. Logo, o espaço imaginário sugerido pela obra torna-se real e se incorpora ao meu mundo experimental existencial. A arquitetura evoca meus sentimentos, não é um simples jogo formal e estético vazio, ela surge de um peso e um senso autêntico de vida. Ela não inventa um significado, mas, na verdade, tem o poder de nos comover por meio da evocação de sensações já enraizadas em nossas memórias corporificadas. O que acontece, infelizmente, hoje, é a normalização da arte da edificação, suprimindo qualquer sentimento ou emoção extrema, como a comoção, a melancolia, o êxtase, a enorme alegria. Pallasma (2013, p.142) afirma: “Uma obra profunda é sempre um mundo e um microcosmos completo”. Para tanto, para que esse senso de vida anime a obra, é necessária a colaboração simultânea sempre entre escritor e leitor, arquiteto e usuário, pintor e observador, em diversos níveis. Logo, existe uma demanda inconsciente de bons observadores para apreciarem uma boa pintura; é preciso bons leitores para apreciarem bons livros, e bons usuários para apreciarem boas construções. Todavia, como poderemos estar bem qualificados como bons receptores, se mergulhamos no consumismo desenfreado e, por isso, temos perdido a capacidade de ler, de contemplar e de habitar? Em As Mãos Inteligentes, Pallasmaa (2013, p.150) defende: “O ponto que desejo enfatizar é que um encontro emocional com a arquitetura é indispensável tanto para a criação de uma arquitetura significativa como para sua apreciação e entendimento”. Nosso mundo imaginativo é o alvo da atual cultura de consumo e manipulação. Os novos produtos inovadores são ambientes temáticos e condicionamento comercial falsamente dotados de sensação de vida, quando, na verdade, vendem uma sensação de vida fictícia, que nunca nos pertenceu. Assim, a arte e arquitetura têm como missão “defender a autonomia da experiência individual e oferecer uma base existencial para a condição humana” (PALLASMAA, 2013, p.152). É preciso zelar pela independência e autenticidade da experiência humana; significados diferentes, critérios de experiências sensoriais e qualidade existencial, quando, em nosso momento, tudo é igual, parecido, monótono, insignificante e inconsequente. É preciso manter as diferenças e a articulação hierárquica e qualitativa do espaço existencial.

• • • O antropólogo norte-americano Edward T. Hall criou o termo proxemia para designar as teorias e observações inter-relacionadas “relativas ao uso que o homem faz do espaço como elaboração especializada da cultura” (1977, p.13). Segundo ele, nossa impressão que temos do mundo é definida pela língua que falamos. Nós sintetizamos a realidade externa conforme a estrutura dessa língua, e nossa mente, então, está programada como um computador e só funciona de acordo com o programa. Sendo assim, já que dois idiomas sintetizam o mesmo evento de formas

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50. jüdisches museum 01

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51. jüdisches museum 02

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52. siegessäule

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53. coliseu

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diferentes, é imprescindível o peso das filosofias e crenças que estruturam a cultura de um grupo falante da mesma língua. Ao considerarmos a língua como estrutura fundamental de uma cultura, como um de seus alicerces, consideramos automaticamente os filtros que selecionam os elementos dinâmicos da vida cotidiana de um grupo. A linguagem usada pelos indivíduos desse grupo implica num peneiramento específico (ou típico) dos elementos do mundo externo capturados pelo seu sistema sensorial. Pessoas de culturas diferentes, além de falarem línguas diferentes, habitam mundos sensoriais diferentes. O que é percebido por uma, é desapercebido por outra, e isso acontece porque esses filtros são culturalmente padronizados. O meio ambiente urbano e arquitetônico é o produto da utilização prática desses padrões, é a concretização da cultura, já que são fruto da forma como os indivíduos empregam seus sentidos. A partir da análise da produção da arquitetura e de como o espaço urbano tem se alterado e se reorganizado em um determinado povo, é possível se chegar a conclusões palpáveis de como ele se articula. O homem conseguiu chegar na posição de quem verdadeiramente tem a capacidade de criar o mundo onde vive. Os etólogos se referem a esse mundo como seu biótipo (HALL, 1977, p.15). Contudo, esse conceito não se aplica somente a grandes escalas regionais ou nacionais. Ele se reflete claramente em escalas bem menores, urbanas, de bairros, ou mesmo comunidades. Por isso, podemos identificar uma certa homogeneidade e uma certa “lógica” dentro de um bairro, e diferenciar dois bairros dentro da mesma cidade. Se formos mais profundo, isso significa que criamos tipos diferentes (e contrários) de pessoas nas várias microrregiões urbanas e rurais. Dentro da cidade, onde as disparidades são mais evidentes, essas interações culminam em problemas de renovação urbana e na integração das minorias na cultura dominante. Por que, então, não pensamos como as pessoas relacionam-se com seu biótipo, e biologicamente falando? Se tomarmos como exemplo a aglomeração de animais, sabemos que as interações ali naquele grupo se intensificam e atingem níveis altos de estresse cada vez maiores. À medida que o estresse vai aumentando, tanto o estresse psicológico quanto o emocional, ocorrem mudanças na química do corpo, as quais são negligenciadas. A natalidade diminui, enquanto a mortalidade aumenta, até atingir o colapso populacional. Em vertebrados de sangue quente, esses ciclos de controle e descontrole populacionais, de aumento e colapso, são considerados normais. Ademais, ao contrário do que se acredita comumente, o abastecimento de comida só se relaciona indiretamente com esses ciclos. Assim, é preciso que arquitetos, planejadores urbanos e construtores convençam-se de que, para evitar a catástrofe, devem começar a ver o homem como um interlocutor do seu ambiente, um ambiente que estes mesmos planejadores, arquitetos e construtores estão agora criando com pouca referência às necessidades proxêmicas do homem. (HALL, 1977, p.17)

Quando aplicamos esses conceitos às populações urbanas de uma cidade, e percebemos que as altas densidades em “bairros ricos” são ordenadas e as aglomerações em “bairros pobres”

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(deixei de lado termos mais politicamente corretos) são angustiantes, tocamos um ponto crucial da vida em grupo: o território. Territorialidade é um conceito básico do comportamento dos organismos vivos e definido “como o comportamento através do qual um organismo, de modo característico, reivindica uma área e a defende contra membros de sua própria espécie” (HALL, 1977, p.19). Esse conceito foi criado por H. E. Howard em 1920. Em outras palavras, a territorialidade funciona como uma espécie de bolha invisível, a qual nos envolve e define nosso espaço próprio. Ao definir um espaço a ser ocupado por um objeto (animal ou ser humano), ela garante o controle e a propagação de uma espécie porque regula sua densidade. Ela determina os lugares adequados para cada tipo de atividade, seja para lazer, abrigo, trabalho, etc. A medida que ela mantém um grupo unido e estabelece o espaçamento adequado, garante também a comunicação entre os membros do grupo, e as mensagens acerca da presença de alimento ou inimigos ou algum outro recurso pode ser transmitida dentro do agrupamento. Além disso, se o território já foi reivindicado e o objeto está familiarizado com o terreno que ocupa, ele já internalizou reações, as quais passaram a ser reflexas, e isso lhe dá vantagem dentro do próprio terreno sobre um objeto estranho àquele espaço. O homem criou formas mais concretas e menos instintivas de manutenção da sua territorialidade. Nós podemos usar cercas ou muros, ou mesmo fronteiras, para delimitar o nosso terreno, nosso pedaço de terra ou nosso pedaço de chão, mas também fazemos uso de leis e normas que nos garantem a propriedade, e qualquer que violá-las está passível de punição. Com isso, temos a diferenciação entre tipos de propriedade privada e propriedade pública. A expressão ‘livre como um pássaro’ é uma forma resumida da concepção do homem quanto à sua relação com a natureza, que vê os animais como seres livres para errar pelo mundo, enquanto ele próprio é prisioneiro da sociedade. Estudos de territorialidade mostram que o contrário está mais próximo da realidade e que os animais estão, muitas vezes, aprisionados em seus territórios próprios. (HALL, 1977, p.20)

Baseado nesses conceitos, Hall conseguiu enumerar outros conceitos mais específicos como distância de fuga, distância de ataque, distância pessoal, distância social, espécie de contato, espécie de não-contato (1977, p.22-25). Por exemplo, a distância pessoal determina o espaçamento normal entre um indivíduo e os outros indivíduos de sua espécie; enquanto a distância social “amarra” o grupo como um todo, e perder-se do grupo não implica somente perde-lo de vista ou não mais ouvi-lo, mas significa ultrapassar limites psicológicos, os quais mantém realmente os indivíduos agrupados. Espécies de contato são aquelas que visivelmente agrupam seus membros com distâncias pessoais significativamente próximas, e espécies de não-contato são aquelas cujos membros precisam de uma distância considerável entre si. A organização social é estruturada diretamente pela territorialidade e seus espaços característicos. Hall, em seus estudos, também notou que as distâncias características são direta-

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mente proporcionais ao tamanho do indivíduo. Outro fator que se pode observar em quase todo o reino animal que regula as distâncias características é a posição hierárquica que o indivíduo ocupa dentro de um grupo (sob determinada análise). Animais dominantes tendem a ter distâncias pessoais maiores que os de posições mais baixas, enquanto esses cedem espaço àqueles. Ele observou também que essas distâncias características podem, muitas vezes, ser determinadas em medições reais do nosso sistema métrico, e raramente ocorre flexibilização. Do ponto de vista comportamental, a agressão é um componente notório de regulação espacial. Hall (1977, p.24) afirma que “parece haver uma relação entre agressão e ostentação, de modo que os animais agressivos exibem-se com maior vigor”. Assim como Juhani Pallasmaa (2013), Edward T. Hall (1977) defende que nós vivemos o mundo que “criamos” para nós a partir de nossas experiências vividas, nunca o mundo real. As forças físicas encontram nossos receptores sensoriais, há uma seleção das informações coletadas pelos nossos filtros culturalmente padronizados e, só então, o mundo vai fazendo sentido para nós. Portanto, devemos aprender sobre nossos receptores sensoriais e como nossa cultura modifica as informações externas para que possamos entender como o homem funciona. Hall enxerga uma relação entre a qualidade e a quantidade de informação e o estado evolucionário do sistema receptor. O tato é o sentido mais antigo e a reação a estímulos é critério básico da vida. Ele também supõe que o olfato foi se tornando menos importante que a visão a medida que o homem, na escala evolutiva, ou seja, seus ancestrais, foram saindo mais do chão e habitando mais as árvores, onde a visão é condição imprescindível. Talvez por isso, a visão foi dominando nosso mundo perceptivo, enquanto os outros sentidos foram sendo deixados de lado. Outra observação notável é através da fisiologia. Pode-se constatar que o nervo óptico contém quase dezoito vezes mais neurônios que o nervo coclear; e isso leva a acreditar que o olho transmite mais informações ou informações mais complexas que o ouvido. É provável que o olho seja mil vezes mais efetivo no recolhimento de informações em indivíduos alertas que o ouvido. Em distâncias reais, “até cerca de seis metros, o ouvido é bastante eficiente. (...) O olho nu, por outro lado, recolhe um número extraordinário de informações dentro de um raio de cem metros e é ainda bastante eficiente para a interação humana a dois quilômetros” (HALL, 1977, p.50). Se consideramos ainda os instrumentos que usamos para estender nossos sistemas sensoriais, a televisão é muito mais complexa de se construir que o rádio e foi aperfeiçoada muito depois desse. Os japoneses compõem uma população grande e considerável que não dispõe, porém, de amplos espaços. Eles aprenderam então a aproveitar ao máximo seus espaços, e isso se dá pelo aumento da experiência cinestésica no ambiente japonês. Convencionalmente, o que se entende por espaço necessário é o espaço concreto mínimo exigido pela sua ocupação. Qualquer espaço que exceda esse mínimo é tratado como “fricote” (HALL, 1977, p.58). A ocupação do espaço, muitas vezes, é definida pelas funções desempenhadas dentro dele, critérios puramente técnicos. É comum que resistamos ao conceito de exigências adicionais porque desconfiamos fortemente dos sentimentos subjetivos como fonte de dados. Podemos usar apenas uma fita métrica para medir

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se uma pessoa alcança ou não alguma coisa, mas devemos aplicar uma série de estudos e padrões para verificar a validade de uma sensação de confinamento, por exemplo. Há grandes diferenças em como experimentamos nossos espaços, e, por isso, a cultura determina nossas necessidades espaciais. O que eu faço ou posso fazer dentro de um determinado espaço indica a minha maneira de experimentá-lo. Portanto, o senso de espaço do indivíduo está inter-relacionado com seu senso próprio de eu, que, por sua vez, está em íntima e constante transação com o meio ambiente. Por conseguinte, nosso desenvolvimento cinestésico, tátil, visual, térmico está sujeito a ser inibido ou estimulado pelo meio ambiente. A relação do homem com seu meio ambiente depende de seu aparelhamento sensorial e mais da maneira como este é condicionado a reagir. (...) Nossos espaços urbanos dão pouca excitação ou variação visual e virtualmente nenhuma oportunidade para construir um repertório cinestésico de experiências sensoriais. Parece que muitas pessoas se encontram carentes, cinestesicamente, ou mesmo confinadas. (HALL, 1977, p.66)

Reconhecer que o homem aprende enquanto experimenta e que isso influencia no seu aprendizado é peça-chave no entendimento humano. Isso também favorece uma maior adaptabilidade do indivíduo e a exploração de experiências do passado. Sobre a visão, por exemplo, é importante apreendermos a diferença de campo visual e mundo visual (HALL, 1977, p.68), a primeira sendo a imagem retiniana, composta por padrões de luz em mudança constante e registrados pela retina, e o segundo, como aquilo que percebemos com nosso imaginário e compomos com as imagens do campo visual. Contudo, nossa capacidade de interpretar as imagens, os padrões de luz na retina, é o que sugere que alimentamos e corrigimos essas leituras com dados colhidos pelos outros sentidos. São justamente as leituras dos outros sentidos, ocorrendo simultaneamente e em consonância com a visão, inter-relacionados e formando uma só interpretação totalizada, que estabilizam nosso mundo visual. Sem as noções táteis, cinestésicas, gustativas, auditivas, emocionais, não conseguiríamos manter contato com a realidade e passaríamos a alucinar. Nós precisamos entender que nós aprendemos a ver assim como aprendemos a falar ou escrever. Não conseguimos aceitar isso porque não vemos conscientemente, efetivamente. Porém, se compreendermos esse fato poderemos esclarecer a duvidosa teoria de uma realidade estável e uniforme, registrada por um sistema visual receptor passivo, e que sugere que todas as pessoas veem a mesma coisa e, por isso, pode servir como ponto de referência universal.

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PARTE IV CAPSR



10. REFERÊNCIAS PROJETUAIS Tendo em vista a escassa quantidade de projetos com esse tipo de programa, as referências projetuais usadas no trabalho focam prioritariamente (como conceito formal) em elementos da nossa cultura local e em conceituações artísticas. Encontramos dois projetos nacionais voltados para a população em situação de rua: uma obra de menos destaque, porém de autoria reconhecida, o Albergue da Boa Vontade de Affonso Eduardo Reidy; o outro é um Trabalho Final de Graduação (2014), o Centro de Apoio ao Morador de Rua da aluna Marilia M. R. Garcia, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Alguns elementos desse último se adequaram bem às demandas deste projeto que está sendo apresentado assim como algumas soluções técnicas. Vale ressaltar que a arte é importante no desenvolvimento deste estudo, tanto em referências de pinturas como esculturas, tanto em referências de cores e traços como em harmonias e ritmos, tanto em processos práticos como em raciocínios e filosofias e conceitos de arte e seu impacto no homem. Os dois pintores e artistas plásticos que foram referências para nós são os abstracionistas Hércules Barsotti e Luiz Sacilotto. Enfocando a realidade local e a tipologia urbana do Centro de Fortaleza, tomamos como referências arquitetônicas alguns de nossos prédios ecléticos: de fachadas ritmadas, simétricas, generosas fenestrações, de gabarito baixo (dois ou três andares). Contudo, não pretendemos uma réplica dos elementos da fase eclética das edificações fortalezenses, mas uma releitura dos conceitos e da essência do Estilo Eclético na cidade, especialmente no Centro, adaptando o novo prédio ao meio ambiente construído pré-existente. Uma referência que acrescentou muito ao projeto, porém, sem ser fundamentalmente de desenho, foi o Museu da Pessoa. Esse museu é virtual na sua essência e contribuiu muito para enriquecimento do programa de necessidades do CAPSR. Não com elementos de desenho de arquitetura, mas com sensibilidade social empregados no processo de projeto, o Museu da Pessoa foi referencial de como um espaço tão simples e prático na sua estrutura pode ser tão relevante para sociedade como um todo e para as culturas universal e específica de um grupo.

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ALBERGUE DA BOA VONTADE – AFFONSO EDUADRO REIDY O Albergue da Boa Vontade não é formado por um programa de centro de apoio exatamente, mas um programa arquitetônico voltado para pessoas em situação de rua. Essa parcela da população urbana não tem a atenção da sociedade nem do Poder Público, menos ainda tinha na década de 1930. Contudo, o Boa Vontade foi produto de um concurso, em 1931, para a cidade do Rio de Janeiro (RJ), cujos vencedores foram Affonso Eduardo Reidy e Gerson Pinheiro. O albergue foi então localizado no Bairro da Saúde, bem próximo ao centro da cidade. O prédio de dois pavimentos e ângulos retos é articulado por um grande pátio interno térreo de 556m², o qual é cortado por duas alas centrais do pavimento superior. Reidy e Pinheiro tiraram partido desse pátio e dos três átrios que se formaram com o arranjo do primeiro pavimento. No térreo, a massa da edificação é perimetral no desenho do retângulo, e, no pavimento superior, é disposta modularmente com alternância de cheios e vazios, formando assim quatro alas alternadas por três átrios. Esse jogo de alternâncias de cheios e vazios ajudou no aproveitamento de luz natural e sombras e no aproveitamento de ventilação cruzada para os dormitórios. O prédio, hoje, abriga o Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), o qual acabou modificando bastante o arranjo dos espaços, devido a sua nova demanda de uso. Infelizmente, algumas modificações espaciais foram equivocadas, e isso levanta uma questão importante no tocante à recuperação de edificações e os novos usos que lhes damos. Podemos citar os quartos de internação que foram locados no térreo, em comunicação direta com as áreas de maior circulação e convivência, as quais promovem constantes ruídos e desconfortos acústicos. Por outro lado, o CPRJ encontrou a dificuldade de fluxo de macas e leitos móveis entre o térreo e o pavimento superior dada a exclusividade de escadas como circulação vertical. As maiores alterações no prédio foram feitas no térreo.

54. albergue da boa vontade 01

fonte: http://www.leonardofinotti.com/projects/albergue-da-boa-vontade/image/27606-160120-001d

55. albergue da boa vontade 02

fonte: http://www.leonardofinotti.com/projects/albergue-da-boa-vontade/image/27606-160120-002d

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fonte: http://www.geocities.ws/reidy_web/albergue.html

58. albergue da boa vontade 05

fonte: http://www.geocities.ws/reidy_web/albergue.html

57. albergue da boa vontade 04

fonte: http://www.leonardofinotti.com/projects/albergue-da-boa-vontade/image/27606-160120-003d

56. albergue da boa vontade 03


CENTRO DE APOIO AO MORADOR DE RUA – MARILIA M. R. GARCIA O projeto do Centro de Apoio ao Morador de Rua é um Trabalho Final de Graduação do ano de 2014, de autoria da então aluna Marília M. R. Garcia do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, São Paulo (SP). A área do projeto totaliza 7.238m². Marília Garcia, assim como nós, resolveu trazer à luz novamente aquelas pessoas que um dia foram descartadas ao escuro e imperceptível. Ela teve a sensibilidade de notar e dar mais uma vez importância àqueles que foram e são marginalizados e negligenciados pela sociedade e pelo Poder Público porque, muito bem colocado da parte dela, simplesmente não são mais público de consumo nem de retorno financeiro ou político. Contudo, eles são reais e compõem a realidade da cidade assim como, da mesma forma que todos nós, contribuem pra o (re)desenho da paisagem urbana. Garcia começou com a ideia de um abrigo para moradores de rua. Porém, talvez pelo próprio trabalho que é desenvolvido com essa população, a aluna constatou que o programa de um centro de apoio pode ser mais adequado às demandas que um abrigo institucional, já que esse último é uma das partes finais no processo de desrualização, ou de retirada das ruas. Tendo em vista que o centro de apoio pode incorporar mais instrumentos que auxiliam como subsídios sociais, psicológicos e de profissionalização, ela decidiu também incrementar o programa com espaços voltados para programas públicos existentes como o Pronatec/Pop Rua, Bom Prato e Poupatempo. O terreno escolhido para locar o projeto foi a união de dois estacionamentos em frente à Praça da República, em São Paulo (SP), e próxima da região da Sé, área crítica da cidade com relação aos problemas de rualização e drogadização. Com a intenção de aumentar a ligação da cidade com o espaço público da praça, o projeto iniciou com a abertura de um de eixo de circulação, que corta o terreno e encontra, quase que perpendicularmente, a Praça da República. Depois, com a decisão de abrir outra saída de metrô, mais um eixo cortou e moldou a mancha de ocupação do terreno. À medida que o programa ia se desenvolvendo, a verticalização e a volumetria do prédio foram se adaptando, resultando num bloco em “L”, onde uma “perna” detém a maior concentração da massa da edificação que a outra, e uma praça, de pequeno porte e que serve de corredor e intermediária para acessar a Praça da República. No fim das contas, a praça do centro de apoio acaba servido como um pátio aberto para os usuários do equipamento, além de servir bem ao público em geral. O programa do centro foi pensado para oferecer serviços de higiene, alimentação, atividades diversas e pernoite, permitindo o atendimento de 1.500 pessoas por dia; todos os serviços num equipamento só, distribuídos em subsolo, pavimento térreo e três pavimentos superiores. Dentre os serviços e espaços pensados, podemos listar com destaque: o guarda-volumes, o canil, o veterinário e controle de zoonoses no subsolo; o bicicletário, o generoso refeitório, o departamento médico, o cabeleireiro, a central de doações e a biblioteca no térreo; os dormitórios e fraldário no primeiro pavimento superior; a horta comunitária e o palco no segundo pavimento superior; a imensa sala para atividades diversas no terceiro pavimento superior. O programa do Centro de Apoio ao Morador de Rua é bem extenso e sonha com um atendimento ordenado de mais de mil pessoas ao dia, talvez possível para uma megalópole como São Paulo.

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59. centro de apoio ao morador de rua 01

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

60. centro de apoio ao morador de rua 02

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

61. centro de apoio ao morador de rua 03

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

62. centro de apoio ao morador de rua 04

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

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63. centro de apoio ao morador de rua 05

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

64. centro de apoio ao morador de rua 06

fonte: marília garcia, centro belas artes de são paulo, 2014

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HÉRCULES BARSOTTI Hércules Barsotti (1914-2010) foi um artista paulistano, pintor essencialmente geométrico e abstracionista. Foi um dos poucos artistas brasileiros a se dedicar exclusivamente às geometrias, e por quase 60 anos. Nos anos 1930, Barsotti estudou desenho e pintura com Enrico Vio, e mais tarde, ainda na mesma década, cursou química industrial. Na década seguinte, decide-se pela pintura e com ela fica até o fim do seu trabalho. Sua produção é fundamentalmente racionalista, e ele integrou o grupo de arte concreta. Indo sempre contrário às metáforas, figurações e ideias de representação, ele perseguiu a objetividade, atuando sobre a percepção através da exploração das cores em ilusões e ambiguidades. Começou pintando em preto e branco, depois, na década de 1960, começa a ampliar sua paleta. Não gostava e, por isso, nunca usou uma tinta assim como ela vinha no tubo, mas prezava pelo exercício da liberdade de criação de novos tons sem restrições. Trabalhou bastante com a justaposição de cores, o impreciso e o variável, sem perder o traço geométrico e continuando as tensões dos limites entre plano e espaço. Chegou ainda a usar areia fina na superfície de algumas telas, e os instrumentos de desenho técnico, como régua e compasso, lhe serviam para tirar qualquer subjetividade do desenho, já que o Concretismo propõe a verdade das formas visuais: o ponto, a linha, o plano e o volume são uma verdade em si e não devem servir de representação para nada. Barsotti expôs em mostras, exibições e exposições, em galerias, museus e centros culturais tanto dentro quanto fora do Brasil. Manteve-se ativo até o fim da vida.

65. barsotti - branco, preto (1962) fonte: coleção rose e alfredo setúbal

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66. barsotti - impulsos circulantes i (1973) fonte: acervo não identificado

67. barsotti - proposição formativa ii (1974) fonte: coleção josé olympio

68. barsotti - entidade múltipla ii (1966) fonte: coleção particular

69. barsotti - unidade sequencial xiii (1984)

fonte: acervo do museu de arte contemporânea da universidade de são paulo

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LUIZ SACILOTTO Luiz Sacilotto (1924-2003), paulista de Santo André (SP), pertenceu também, assim como Hércules Barsotti, ao grupo concretista na arte brasileira. Ele mesmo se denominava como “o mais concreto entre os artistas concretos”. Usando e abusando de linguagens simples, seu foco estava nos processos, nos materiais e nas reduções dos meios de expressão, explorando articulações e fragmentações, estruturações, superposições, cortes e dobras, segregações e unidades, tramas, relevos, harmonias e interrupções rítmicas, continuidade, proximidade e semelhança. Usou carvão, aquarela, nanquim, grafite, guache, óleo, esmaltes, em papel, papelão, metal, madeira, cimento, tela e recortes de vinil. Na década que compreende 1938 e 1948, Sacilotto estuda pintura e desenho e já começa a trabalhar como desenhista. Logo em 1946 participa de uma mostra com mais outros três artistas, que ocorreu no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ). Trabalhou, respectivamente, nos escritórios dos arquitetos Jacob Ruchti e Vilanova Artigas. Na década dos anos de 1950, participa da criação do Grupo Ruptura e, a partir desses anos, começa sua caminhada com o Concretismo. Expôs nos grandes museus nacionais, como os de arte moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, e apresentou seu trabalho em exibições fora do país, como a XXVI Bienal de Veneza e na mostra Konkrete Kunst (1960) em Zurique. No período pós Golpe Militar, 1965 em diante, depois de apresentar na VIII Bienal Internacional de São Paulo, ele destrói esses trabalhos expostos e interrompe sua atividade artística. Todavia, envolve-se com trabalhos com crianças e com trabalhos de inserção da arte em espaços públicos. Em 1974, retoma a pintura e, nas duas últimas décadas de vida, devido ao derrame que sofreu, produziu trabalhos com colagens.

70. sacilotto - concreção 5942 (1959)

fonte: acervo do museum of fine arts (houston, eua) - adolpho leirner collection

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71. sacilotto - vibração ondular (1953) fonte: acervo da pinacoteca do estado de são paulo

72. sacilotto - sem título (1956)

fonte: acervo do museu de arte contemporânea da universidade de são paulo

73. sacilotto - concreção 8995 (1989) fonte: coleção particular

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EDIFICAÇÕES ECLÉTICAS DO CENTRO DE FORTALEZA A nossa intenção de fazer uma arquitetura “com a nossa cara” nos levou a observar com cuidado a tipologia do Centro de Fortaleza. A tipologia do começo da formação da cidade e que podemos encontrar até hoje são as edificações ecléticas, que também foram além do perímetro do Centro e estão presentes em outros bairros. Procuramos não nos deter nos ornamentos e tentamos fugir dos excessos e do que julgamos não ser relevante para o projeto do CAPSR. Já que estamos em outro momento da cidade e da sociedade, tentamos não imitar, mas fazer uma releitura do estilo, adotando os elementos essenciais presentes nos prédios ecléticos: simetria vertical, repetição, ritmo, portada, platibanda, moldura das esquadrias e a sacada. Tudo isso foi uma busca por um apelo visual familiar, que atingisse a memória coletiva e facilitasse o sentimento de identificação do público com o equipamento.

74. museu do ceará 01

fonte: http://static.somosvos.com.br.s3.amazonaws.com/ uploads/2015/12/crea_museudoceara_baixa-1.jpg

75. museus do ceará 02

fonte: hhttp://hotsite.diariodonordeste.com.br/diariouploads/uploads/3fb0316a6d67ad63784362a06e814c15. jpg

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76. museu da indĂşstria 01

fonte: http://static.somosvos.com.br/2015/wp-content/uploads/2016/05/12095032/v%C3%B3s-crea-museu-da-ind%C3%BAstria-14.jpg

77. museu da indĂşstria 02

fonte: http://www.oestadoce.com.br/wp-content/uploads/2016/03/hotel-do-norte.png

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MUSEU DA PESSOA O Museu da Pessoa surgiu em 1991 em São Paulo (SP). A internet ainda não era popular, mas mesmo assim eles já se denominavam museu virtual. Seu objetivo era constituir uma Rede Internacional de Histórias de Vida. O espaço tinha função de registrar a história de toda e qualquer pessoa da sociedade, pois entendiam que trabalhando assim, com tantas histórias diferentes, eles contribuem para uma transformação cultural e social. O museu tem como missão e objetivo valorizar a diversidade cultural e a história de cada indivíduo como patrimônio da humanidade. Isso é contribuir para uma cultura de paz. As narrativas contribuem para a criação de perspectivas diversas da sociedade e podem ser fonte de conhecimento, lido ou escutado, favorecendo a expansão da visão de mundo das pessoas. O museu já realizou cerca de 250 projetos de Memória Empresarial, Memória Educacional, Memória de Desenvolvimento Comunitário e Memória Cultural. Até o ano de 2013, o Museu da Pessoa tinha inspirado a construção de outros três museus, em Portugal, no Canadá e nos Estados Unidos, e liderado campanhas internacionais. As áreas de memórias são institucional, educacional, de comunicação e desenvolvimento comunitário. As linhas de ação são Conte sua História, Museologia, Educativo e Memória Empresarial, esta última trabalha o registro, a sistematização, a preservação e a divulgação das memórias de organizações. Qualquer pessoa no Museu da Pessoa, além de visitante, pode tornar-se parte do acervo ao contar sua história, e curador também, na medida que pode criar suas próprias coleções de histórias, imagens e vídeos. Com seu trabalho de regisstrar e documentar pessoas, isto é, suas histórias e suas memórias, e, assim, enfatizar a relevância de cada cidadão na media que exalta-lhe seu valor humano e social, o museu inspirou a Sala das Memórias do CAPSR. A Sala das Memórias é explicada mais adiante no capítulo treze (13. PROJETO ARQUITETÔNICO).

78. museu da pessoa 01

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79. museu da pessoa 02

fonte: http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/images/ novas/oficinadomeuseudapessoa.jpg

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fonte: https://i.ytimg.com/vi/cHl_bjmrGe0/maxresdefault.jpg

82. museu da pessoa 05

fonte: http://f.i.uol.com.br/empreendedorsocial/images/15345140.jpeg

81. museu da pessoa 04

fonte: https://catracalivre.com.br/wp-content/uploads/2013/06/ museu_da_pessoa_-_divulgacao.jpg

80. museu da pessoa 03


11. TERRENO E LEGISLAÇÃO URBANA A escolha do terreno para abrigar o projeto do Centro de Apoio à População em Situação de Rua (CAPSR), aconteceu através de uma matriz e deveu-se, principalmente, por seus critérios físicos. Inicialmente, a decisão pelo Centro está fundamentada no fato de que a população em situação de rua de Fortaleza está presente, em predominância e maior número nesse bairro e, em segundo lugar, na região de orla da Av. Beira Mar. Devido à notável quantidade de espaços subutilizados no bairro central e, também, a grande oferta de espaços públicos livres, várias praças e parques, preferimos o Centro a bairros como a Praia de Iracema, o Meireles ou o Mucuripe. O constante desinteresse político e financeiro pelo Centro também se apresentou como fator de decisão. Consideramos que um equipamento que, além de servir de acolhida digna para essas pessoas de rua, reitera o acesso e o uso dos nossos espaços públicos pode ser de grande influência para a reorganização do nosso espaço urbano, principalmente para se repensar e reconsiderar um bairro tão importante e significativo da nossa história e cultura locais. Se antes a realidade era outra, hoje, o Centro é basicamente dominado por comércios e serviços e a habitação é escassa. De dia, um fervilhar frenético de troca, compra e venda; de noite, ao relento, a tristeza e a miséria de faces desumanizadas pela vida e pela própria sociedade. Após a confirmação pelo Bairro Centro, analisamos como se dão os seus usos e comprovamos a predominância de comércios e serviços. Podemos notar também, através do MAPA 02, que essa predominância de equipamentos comerciais se concentra no centro do bairro e dentro do perímetro do Centro Histórico; enquanto as habitações se colocam na periferia do bairro, mais entre o perímetro do Centro Histórico e o perímetro do Centro Expandido. Outra classificação nos usos do Centro e que apenas constatamos ser verdadeiro é a imensa quantidade de estacionamentos espalhados pelo bairro. Estacionamentos são considerados espaços urbanos subtilizados. Por subutilizados entendemos aqueles espaços urbanos com pouca ocupação, temporária ou parcial, que não contemplam o seu potencial construtivo, os quais podem também se encontrar em processo deteriorativo, desestabilizador ou de ociosidade (CLEMENTE, 2012). Por conseguinte, levando em consideração essa enorme quantidade de estacionamentos e o grande fluxo de carros tanto de passeio, pequeno porte, quanto de carros pesados, grande porte e de carga, focamos em terrenos ocupados por estacionamentos que servissem para implantar o projeto do centro de apoio, podendo assim oferecer uma troca de um terreno subutilizado e gerador de demanda de trânsito de

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N

LOCALIZAÇÃO CENTRO

Caucaia

Maracanaú Eusébio Pacatuba Itaitinga Aquiraz Maranguape

Legenda esc. 1/500000

0

7.5

15

22.5

30 km

Bairros de Fortaleza Centro de Fortaleza Municípios Ceará Oceano mapa 01 - localização do bairro centro na cidade de fortaleza

ZONEAMENTO

CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO DE RUA

ZONA

ÍNDICE DE APROVEITAMENTO (básico/máx/mín)

TAXA DE PERMEABILIDADE

TAXA DE OCUPAÇÃO

TAXA DE OCUPAÇÃO DO SUBSOLO

ALTURA MÁXIMA

ÁREA MÍNIMA

TESTADA MÍNIMA

PROFUNDIDADE MÍNIMA

ZOP1 - Zona de Ocupação Preferencial 1

3.0/3.0/0.25

30%

60%

60%

72m

125m²

5m

25m

ZPA1 - Zona de Proteção Ambiental 1

0.0/0.0/0.0

100%

0%

_

_

_

_

_

tabela 03 - zoneamento incidente no terreno

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mapa 02 - mapa de usos do bairro centro

N

MAPA DE USOS

0

Legenda esc. 1/25000 Usos Praças

Centro

Estacionamento

Bairros entorno

Residencial

Recursos hídricos

Comercial

Oceano

Misto Institucional Saúde Industrial Educação Religioso Lazer Hotelaria

89

250

500

750

1000m


veículos por um equipamento essencialmente social e espaço urbano livre. A partir de um planejamento sobre o nosso programa de necessidades, baseado na pesquisa desenvolvida, iniciamos um estudo de leiaute para esses espaços listados e encontramos uma área aproximada que o Centro de Apoio à População em Situação de Rua poderia ocupar. Desta forma, poderíamos ter uma noção do tamanho do terreno que estávamos procurando no Centro. A área aproximada que encontramos foi de 2.495,54m². Logo, começamos a procurar estacionamentos com essa área ou área aproximada. Conseguimos então listar quatro terrenos de estacionamento (como podemos ver no MAPA 03). Consideramos ainda para análise do tamanho do terreno a taxa de ocupação e o índice de aproveitamento para a zona em questão (ver TABELA 03). Para facilitar nossa escolha dentre as quatro opções de terreno, montamos então uma matriz. Essa matriz (TABELA 04) foi pensada para adicionarmos valores de acordo com quatro critérios e assim, ao final, encontrarmos o terreno com maior nota, que seria o terreno escolhido por ser julgado o mais adequado. Os quatro critérios que escolhemos foram: saúde, meio-ambiente natural, espaços públicos livres e área construída. A proximidade a espaços públicos livres, como praças e parques, foi decisiva tendo em vista o acesso facilitado do morador de rua ao CAPSR, pois esses dependem do deslocamento a pé. Uma distância de 500m é bastante confortável para se percorrer a pé, então esse foi o nosso raio de abrangência escolhido. A proximidade a equipamentos de saúde se mostrou importante ao identificarmos os problemas de saúde e violência aos quais as pessoas em situação de rua estão expostas e vulneráveis, e considerando que o CAPSR oferece oportunidade de higiene e alimentação, mas possui apenas uma enfermaria voltada para primeiros socorros e demandas básicas; o acesso facilitado, ou seja, desde que o equipamento de saúde estivesse também dentro de um raio de 500m, também é fator importante já que a prefeitura não dispõe de carro para o centro de apoio. O meio-ambiente natural entrou no grupo de critérios porque consideramos a relação com o natural de fundamental importância para uma troca de estímulos rica entre o sujeito e o espaço, um influenciando e modificando o outro mutuamente. Dentre os vários fatores de saúde física, como troca de ar poluído pelo tráfico intenso por ar puro, ou diminuição de ruídos e poluição sonora, focamos também nos benefícios para a saúde mental e psicológica, na medida que o contato com o verde afeta diretamente nosso estado de relaxamento, lazer, prazer, quietude, calmaria, além de senso de vida e retorno ao cerne da existência: de que somos partes constituintes do cosmos e modificadoras do espaço natural total, e não criadores ou donos pretenciosos da essência da vida. Desta forma, podemos retomar nosso conhecimento a respeito de quem somos e onde estamos situados no mundo, reforçando assim nosso senso próprio de identidade, nosso senso de identidade coletiva e nossa autonomia de pensamento e atitude; assim, podendo ser ofertado um ambiente saudável favorável ao trabalho de reabilitação social dessas pessoas de rua. O critério ambiental foi baseado na porcentagem de área verde existente no terreno. Por outro lado, a quantidade de massa construída no terreno também influenciou diretamente na escolha, pois assim teríamos uma liberdade maior de interferência no espaço. Desde

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tabela 04 - matriz de análise e classificação dos terrenos estudados

MATRIZ TERRENOS

CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO DE RUA

CRITÉRIOS: SAÚDE raio de 500m

TERRENO

Terreno 01

AMBIENTAL % área verde no terreno

ENDEREÇO MONDAY PRIORITY Rua Governador Sampaio esquina com Rua Pinto Madeira

A = 5159m²

Terreno 02

Rua Governador Sampaio esquina com Rua Melvin Jones

A = 5758m²

Terreno 03

Rua Governador Sampaio esquina com Melvin Jones e Rua do Pocinho

A = 5517m²

Terreno 04

ESPAÇOS LIVRES

Rua Princesa Isabel

ÁREA CONSTRUÍDA

raio de 500m

% de área construída no

ATRIBUTOS

TUESDAY PRIORITY OBSERVAÇÕES Wednesday Priority NOTA THURSDAY PRIORITY (Hapvida < IJF < Cura d'Ars < Santa Casa)

Posto de Saúde Paulo Marcelo Martins Regional II, Hospital Luís de França

3

Parque da Criança, Praça do Sagrado Coração de Jesus, Praça da CDL, Praça da Escola Normal, Praça dos Voluntários, Praça do Ferreira, Praça dos Leões

5

80%

4

34.28%

4

1458m²

Posto de Saúde Paulo Marcelo Martins Regional II, Hospital Luís de França

3

(Hapvida < IJF < Santa Casa < Cura d'Ars)

Parque da Criança, Praça do Sagrado Coração de Jesus, Praça da CDL, Praça da Escola Normal, Praça dos Voluntários, Praça do Ferreira, Praça dos Leões, Praça dos Correios

5

30%

2

64.20%

3

3697m²

Posto de Saúde Paulo Marcelo Martins Regional II

3

Parque da Criança, Praça do Sagrado Coração de Jesus, Praça da CDL, Praça da Escola Normal, Praça dos Voluntários, Praça do Ferreira, Praça dos Leões, Praça dos Correios, Praça da Catedral

(Hospital Luís de França < Santa Casa < Hapvida < Cura d'Ars < IJF)

5

17%

1

49.75%

3

Hospital César Cals

5

Praça José de Alencar, Praça da Logoinha

4

2%

1

0%

5

A = 5073m²

91

16

13

2745m²

12

5073m²

15


que tivéssemos que trabalhar um terreno com muita massa construída, teríamos também que considerar um impacto mais significativo na implantação devido às mudanças fortes implicadas e o senso de identidade e patrimônio consolidado, mesmo que a edificação não fosse tombada. Os valores que alimentaram a matriz estão num intervalo de 1 a 5 (números inteiros) para cada critério. A escolha do valor foi baseada na quantidade de atributos referente àquele critério, isto é: quanto mais equipamentos de saúde ou quanto mais espaços livres dentro do raio de 500m estabelecido, maior o valor imputado; quanto maior a porcentagem de área verde existente no terreno, mais próximo o valor é de 5; quanto menor a porcentagem de área construída no terreno, maior o valor do critério. Ao somarmos os quatro valores de critérios, encontramos a nota final de cada terreno.

• • • Retomando o assunto da territorialidade, algo que chamou bastante atenção nas pesquisas feitas no CENTROPOP-PMF, especialmente no CENTROPOP Benfica, foi a rejeição desumana, monstruosa e escrachada da vizinhança imediata com os moradores de rua atendidos ali. Destituídos de dignidade, direito e condição social no imaginário da sociedade, as pessoas em situação de rua são vistas como algo menos que humanos e, por isso, sem garantia de respeito ou consideração, muito menos dotados de direito a um território próprio. A ideia tremendamente equivocada propagada por aí de que eles são socialmente imprestáveis, para não usar o termo “vagabundos” usualmente falado pelos fortalezenses, já que não produzem nada nem contribuem com a economia local, direciona-nos à disputa com afinco pelo território de quem “tem direito” e quem “não tem direito”. A população geral da cidade estende o território da sua propriedade privada diretamente ao espaço público imediato (ruas, calçadas, largos, praças, etc.), transparecendo e comprovando a teoria de Edward T. Hall (1977), que a territorialidade está diretamente ligada ao status hierárquico, nesse caso, às camadas sociais, quem ocupa uma camada social mais alta reivindica um maior território, e associada à ostentação e agressão com vigor, quem ocupa uma camada social mais alta trata com hostilidade quem ocupa uma camada social mais baixa. Assim sendo, com intuito de diminuir esses atritos, apesar de manter uma certa tensão, a decisão pelo terreno adequado foi persuadida pela proximidade com uma vizinhança mais residencial e menos comercial. Defendemos que locar esse tipo de equipamento, como é o CAPSR, dentro de um perímetro predominantemente residencial, pode auxiliar na conscientização e na reeducação social da população geral de que a população em situação de rua é também dotada de direitos legais. Essa tensão pode ser moderada e esses atritos progressivamente diminuídos a partir do momento que os prédios e a praça previstos no projeto se assemelham em características físicas ao entorno imediato, favorecendo um senso de identificação nas duas partes, na que rejeita e na rejeitada. (Essa relação com o entorno pode ficar mais clara nas sessões 12 e 13, as quais apresentam as características arquitetônicas do projeto). O contato frequente com o centro

92


de apoio também pode ajudar a quebrar esse estigma que subjuga as pessoas de rua, na medida que esclarece a população geral.

• • • Como podemos ver na Matriz dos Terrenos, TABELA 04, o terreno com maior nota, e por isso o escolhido, foi o TERRENO 01. Um atributo ambiental de fundamental importância para o espaço urbano de Fortaleza e que se apresenta no TERRENO 01 é o trecho canalizado do Riacho Pajeú. Além de oferecer uma massa verde considerável, com 31 árvores, oferece também um curso de água que pode ser recuperado e devolvido à população. Infelizmente, a negligência com o riacho se agrava ainda mais quando seu canal adentra o terreno em questão. É clara a desimportância que o proprietário e os usuários do estacionamento dedicam àquele trecho do Pajeú. Todavia, esse é um atributo físico que poderia ser muito bem aproveitado a favor de todos. Além disso, promove uma continuidade às duas partes existentes do Parque Pajeú, que vem desde a Av. Dom Manuel. Ainda sobre os atributos ambientais do TERRENO 01, não podemos ignorar essa fartura de verde que ainda persiste com 31 árvores. As vantagens de uma generosa área sombreada, proporcionada por essa massa verde, é fator que soma muita qualidade ao espaço em questão. Decidimos, então, aproveitar o máximo dessa ambiência natural e tomar partido de toda essa área verde e sombreada. Além do mais, devemos respeitar a Área de Proteção Ambiental (APA) que rege as margens do Pajeú e está definida em lei no Plano Diretor do Município de Fortaleza (Lei Nº 0009/2008). Para tanto, para que pudéssemos inserir essas árvores no projeto, fizemos o levantamento através de um aplicativo de GPS para celular, o OruxMaps. Abrimos mão de nove das árvores, mas as 22 árvores restantes foram incorporadas à proposta da praça e da Pousada Social.

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mapa 03 - mapa de localização dos terrenos estudados

N

LOCALIZAÇÃO TERRENOS

Terreno 04 Terreno 02 Terreno 03 Terreno 01

0

Legenda esc. 1/25000 Estacionamentos

Centro

Terreno escolhido

Bairros entorno

Terrenos analisados

Recursos hídricos Oceano

94

250

500

750

1000m


N

LOCALIZAÇÃO TERRENO CAPSR

AV. PESSOA ANTA

AV. PRES .C

ASTELO

BRANCO

MERCADO CENTRAL

PASSEIO PÚBLICO

CATEDRAL PRAÇA DOS LEÕES

R. SENA

PARQUE PAJEÚ 2 PRAÇA DA CDL

MADUR EIRA

TERRENO

PARQUE PAJEÚ 1

AV. DU Q

UE DE

IGREJA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

95

MANU

EL

PARQUE DAS CRIANÇAS

CAXIA

S

AV. DO M

PRAÇA DO FERREIRA

TCU


A APA do Pajeú toma quase que totalmente o terreno do estacionamento, nos levando assim a expandir a área de projeto até incorporar os lotes dos galpões lindeiros, um comércio de materiais de construção na Rua Pinto Madeira, e outro galpão ocioso na Rua Governador Sampaio. Para o projeto dos prédios do centro de apoio, então, as diretrizes constam na Zona de Ocupação Preferencial 1; e para o projeto da praça, terceira etapa do Parque Pajeú, as diretrizes constam na Zona de Preservação Ambiental 1. As características das zonas em questão, Zona de Preservação Ambiental 1 (ZPA1), Microzona ZU1-Centro e Zona de Ocupação Preferencial 1 (ZOP1), podem ser acessadas na TABELA 03. No tocante à tipologia urbana do Centro de Fortaleza, a vizinhança do CAPSR é predominantemente de edificações baixas. Essas características vão “homogeneizar” quase que a porção leste do centro inteira, da Rua Sena Madureira até a Rua João Cordeiro. O gabarito varia de um a três pavimentos, e os lotes seguem a ocupação permitida pela legislação, sem recuos frontais ou laterais; as fachadas são em sua maioria dotadas de platibanda, escondendo suas cobertas e subtraindo beirais, e há um certo ritmo e marcação nas fenestrações. A supressão dos recuos permitida favorece uma ocupação quase que completa do térreo dos lotes, produzindo assim modestos pátios e quintais internos às quadras, geralmente no fundo dos lotes, raramente de fluxo direto do acesso da rua.

esquema de demonstração da zpa1 no terreno escolhido e no seu entorno imediato

TERRENO CAPSR

APA RIACHO PAJEÚ

APA LAGOA PARQUE DAS CRIANÇAS

96


O terreno está localizado no cruzamento das ruas Pinto Madeira e Governador Sampaio, as duas sendo vias comercias. A facilidade de mobilidade pode ser consultada no MAPA 04, dada a abundância de linhas de ônibus próximas, principalmente a três quadras, no Terminal de Integração Centro e na Av. Heráclito Graça. Com intuito de qualificar urbanisticamente esse raio imediato ao CAPSR, considerando as duas praças confrontantes – a proposta e a existente, pensamos que uma via compartilhada pode enriquecer bastante esse perímetro do Centro. A natureza da população de rua é essencialmente urbana e pública. Entendemos, por isso, que o sentido de espaço público deve ser reforçado no nosso projeto e, para tanto, para conectar as duas praças, aumentar o espaço livre em questão e dar uma percepção de continuidade ao Parque Pajeú, propomos uma via compartilhada para o local. O espaço público de Fortaleza, cada vez mais, sem inibições, aumenta sua ênfase nos veículos automotores. Todavia, esse mal hábito acaba prejudicando a apropriação do Centro pela população de Fortaleza como um todo. Por conseguinte, tiramos o foco do carro e devolvemos às pessoas. Sem falar que uma praça é apreciada e usada por pessoas, não por carros. Se o enfoque dessas quadras for no carro, mais difícil fica a circulação e a permanência de pessoas nas praças. A via compartilhada funciona como traffic calming e está no mesmo nível das calçadas das praças, sem apresentar dificuldade de locomoção para o pedestre.

esquema de demonstração dos trechos de vias a se tornarem vias compartilhadas

TERRENO CAPSR

PARQUE DAS CRIANÇAS TRECHO DA RUA PINTO MADEIRA A SER TRANSFORMADA EM VIA COMPARTILHADA

PARQUE PAJEÚ 2 PRAÇA DA CDL

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mapa 04 - mapa do comportamento da mobilidade no bairro centro

N

MAPA DE MOBILIDADE

0

Legenda esc. 1/25000 Paradas de ônibus Linhas de ônibus Estações de metrô Linhas de metrô Estações de metrô a construir Linhas de metrô a construir Estações Bicicletar Centro Bairros entorno Recursos hídricos Oceano

98

250

500

750

1000m


12. PARTIDO ARQUITETÔNICO As principais referências para o partido arquitetônico do Centro de Apoio à População em Situação de Rua foram os elementos das edificações ecléticas do Centro de Fortaleza e elementos da nossa cultura regional. As condições físicas do terreno são de qualidade considerável e não se deixaram ser ignoradas também. No geral, o partido do CAPSR foi tirado dos excelentes atributos verdes e da sombra proporcionada por eles. Durante os estudos com manchas de ocupação sobre o perímetro do terreno, começamos com uma ocupação bastante racional e com formas duras. Numa estrutura modulada e quase simétrica, a praticidade era um princípio forte e claro na concepção do projeto. Os estudos foram iniciados com dois volumes paralelepipedais que abraçavam uma, inicialmente, modesta praça que abrigava o Riacho Pajeú. Mantivemos desde o início a intenção de recuperar e devolver o riacho para o espaço público, que se encontra desprezado encerrado entre carros dentro do atual estacionamento do terreno. Excluído, ele poderia ser recuperado e reinserido na cidade e na sociedade, semelhantemente à população em situação de rua. Depois de analisar com cuidado o riacho em si, e também a área de preservação que protege o riacho e suas margens nesse trecho, vimos que as curvas que a água desenha no terreno são sensuais e agradáveis com uma firmeza e uma força tão significativas que findaram por destruir a dureza dos “caixotes” modulados das primeiras ideias. Esse desenho harmônico das curvas do Pajeú esculpiu então as fachadas imediatas à praça, e esta cresceu com as exigências do zoneamento urbano. Os caixotes fugiram, e surgiram, assim, dois volumes quase triangulares que ressonavam as linhas do Pajeú. Mais tarde, quando começamos a atentar para a tipologia urbana do centro da cidade e para os elementos que caracterizam a cultura tropical do nordeste brasileiro, despertamos o desejo de trazer as varandas e os pátios para nosso programa. Esses dois elementos possuem um valor de latente sensibilidade, pois nosso clima acaba sendo um pouco agressivo e desconfortável com a extrema insolação; e, desta forma, eles compõem solução eficaz para os problemas de conforto, sem muitas despesas com métodos artificiais. Para tanto, juntando os dois elementos numa composição só, abrimos um átrio interno avarandado em cada volume. As edificações ecléticas do Centro foram a referência tipológica que nos interessou mais e, portanto, o ritmo e a simetria que regem suas fachadas vieram enriquecer também as nossas. As grandes portas dos pavimentos superiores, com sacadas para a rua, retomam a escala do aconchego das nossas primeiras edificações na formação das nossas cidades. Contudo, como a disparidade, em todos os sentidos, entre a população em situação de rua e o resto da população geral é tão constrangedora, que nos sentimos empurrados ao objetivo de identificação pessoal do público alvo com o prédio. Tivemos uma preocupação com o uso de elementos, cores e materiais

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esquema da evolução da volumetria ao longo do processo de projeto. as setas indicam as modificações feitas, aumentando o gabarito, a área de ocupação e dinamizanndo as linhas do volume

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distantes demais da realidade das pessoas de rua. Isso só agravaria a segregação, porque reforça a condição miserável desses indivíduos. Dependendo das nossas escolhas, nós poderíamos, mesmo inconscientemente, alimentar também seu próprio sentimento de autoexclusão. Assim sendo, preferimos não ousar muito nos materiais e nos fixamos no território comum das texturas em tom pastel, das esquadrias de veneziana de madeira pintadas, da alvenaria rebocada e pintada e das fachadas simples. Um elemento que materializa bem nossa brasilidade é o cobogó. Com a possibilidade de tirarmos partido da paisagem natural da praça proposta e da praça existente, a segunda etapa do Parque Pajeú (Praça da CDL), pretendemos transparências nas fachadas que proporcionassem esse contato. Somamos então às nossas fachadas, peles de cobogó, que destacamos ao recuarmos as respectivas superfícies. Com frequência – e particularmente na atualidade, a arte e a arquitetura são vistas unicamente como uma busca pela novidade e pelo imprevisto. Tal ênfase preconceituosa na novidade tem distorcido a compreensão da essência do esforço artístico. Referindo-se à ideia lógica romântica da transgressão de Friedrich Hölderlin, que está sempre em busca de algo novo para evitar se entediar com o antigo, o filósofo norueguês Lars Svendsen argumenta que, “como o novo é buscado somente por causa da novidade, tudo torna-se idêntico, porque não tem outras propriedades além da novidade”. Contudo, a arte está, ao meu ver, fundamentalmente envolvida na aspiração oposta; ela busca reanimar, remitificar, reencantar, ressensualizar e reeroticizar nossa relação com o mundo (...) Essa “regressão” mental da consciência é igualmente essencial na arquitetura. (PALLASMAA, 2013, p.108)

Com isso, acabamos não propondo a novidade inusitada, a surpresa do espetáculo, como a arquitetura contemporânea, mas tentamos nos apropriar realmente da cultura local, e retomamos o tradicional, o básico, a nossa identidade. Não quisemos, em momento nenhum, colonizar novamente nossa arquitetura. Pelo contrário, retornamos ao início e tentamos capturar a essência da nossa urbanidade.

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13. PROJETO ARQUITETÔNICO O programa de necessidades foi resultado dos estudos e pesquisas, realizados em sala e em campo, sobre a população de rua de Fortaleza. As adequações necessárias dos espaços e ambientes foram embasadas, principalmente, na literatura sobre estudos de proxemia e o binômio homem-espaço, em conformidade com a realidade e características locais. Como dito anteriormente, os estudos de leiaute começaram na busca por uma área aproximada que o Centro de Apoio à População em Situação de Rua (CAPSR) ocuparia. Começamos com espaços básicos e seus fluxos e áreas mínimas. Depois, iniciamos tentativas de aumentar essas áreas, para proporcionar uma experiência menos limitada dos espaços pensados. O processo de projetação teve início com a determinação de três núcleos estruturantes: o Centro de Apoio, propriamente dito, o Restaurante Popular e a Pousada Social. As entrevistas com os funcionários da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) nos CENTROSPOP Centro e Benfica e no próprio órgão da Secretaria Municipal do Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA) nos mostraram a grande importância de se ter uma pousada social atrelada a um centro de apoio. A territorialização que se forma e se ajusta à realidade da vida na rua impede o trânsito livre dessas pessoas de uma região para outra dentro da cidade. Desta forma, e conforme foi apresentado na PARTE II, é de fundamental importância que cada Secretaria Regional do Município tenha seu centro de apoio e pousada social voltados para a população em situação de rua. Seria negligente e insensível privar as pessoas do acesso a esses serviços oferecendo apenas um centro de apoio e uma pousada social, já que a maioria restante dessa população, que está fora do raio de abrangência do equipamento, estaria impedida, por ameaças de morte, de chegar até lá. A terceira parte, que nos chamou atenção e tomou proporções maiores durante o processo de planejamento, foi o acesso à alimentação: i) o Restaurante Popular de Fortaleza, voltado para pessoas de pouquíssimos recursos, está localizado na Parangaba, longe do epicentro das parcelas mais necessitadas de recursos, pois as pessoas de rua, que estão em condições de miséria real, abaixo da linha da pobreza, que não têm ao menos um barraco que possam chamar de casa, estão escondidas nas sombras dos mais favorecidos em bairros abastados de Fortaleza; ii) a dinâmica das atividades dos CENTROSPOP gira em torno basicamente dos serviços de alimentação e higiene, deixando poucos espaços para as atividades pedagógicas e menos funcionários disponíveis voltados para o atendimento direto e pessoal dos moradores de rua acolhidos naquele dia. A solução que propusemos, então, foi a de atrelar também um restaurante popular, permitindo o deslocamento dessa atividade para outro setor interno, e um enfoque maior do centro de apoio nas atividades pedagógicas e de capacitação pessoal e profissional. Constituímos assim o trinômio centro/restaurante/pousada estruturante do CAPSR.

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A partir desse trinômio, trabalhamos setores internos de cada núcleo, analisando fluxos e oferta de espaços, organizando assim cada um individualmente e em conformidade com os outros dois. Estudando também o terreno e a disponibilidade dos recursos físicos, com estudos de manchas de ocupação e volumetrias básicas, encontramos duas massas de edificações (somadas à praça) como partes concretas do projeto total. As entrevistas com os funcionários da PMF nos mostraram as especificidades dos trabalhos desenvolvidos no CENTROPOP e na Pousada Social, dificultando a compilação dos dois equipamentos num espaço físico só. Para que suas atividades sejam trabalhadas de forma mais eficiente e organizada, é necessária essa separação entre a pousada e o centro. Em decorrência dessa condição, definimos as duas massas volumétricas como sendo: um prédio é o centro de apoio com o restaurante popular, o outro, além da praça, é a pousada social.

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TENSÃO DA FORMA Temos, ultimamente, optado sempre por uma arquitetura excessivamente racional e geometrizada, porém, como eu mesmo gosto de definir: esterilizada. A arquitetura contemporânea desviou-se um pouco do seu caminho e culminou em ficção e fantasia visuais construídas. Contudo, não perdemos, enquanto arquitetos, a preocupação com a agradabilidade que propomos com nossos serviços. Na minha opinião, essa união de agradabilidade com ficção é que tem sido o ácido que corrói o senso de vida da nossa arquitetura. Comumente, insistimos em estilos obsoletos, como o modernista ou o neoclássico por exemplo, que na maioria das vezes não se encaixam mais em nossas vidas porque não correspondem com a realidade na qual estamos inseridos. Nossa cultura é outra, nossos estilos de vida do séc. XXI mudaram drasticamente. Assim, acabamos criando uma realidade externa a nós. Isso tudo, penso eu, persuadiu-nos a eliminar o máximo de tensão possível dos nossos prédios. A tensão, ao contrário do que se pensa, é uma força natural no cosmos. Sem tensão, não teríamos dinâmica, e sem dinâmica, não teríamos chegado a lugar nenhum. Seríamos eternamente estáticos. Porém, ao criarmos um mundo fantasioso, essas tensões se tornam anômalas, pois não são nossas por natureza. Por isso, tentamos com afinco eliminar todo e qualquer elemento fora de uma homogeneidade definida. O físico ideal perseguido: e tentamos eliminar toda e qualquer “imperfeição” do corpo com cirurgias plásticas; tentamos eliminar e suprimir todo e qualquer odor que não seja o comercializado, qualquer cheiro diferente do desodorante ou perfume da propaganda é percebido com asco. O prédio-espetáculo: as texturas não estão ali para serem sentidas, apenas apreciadas pelos olhos, assim como os aromas, os sons, a gravidade, a tensão. Essa tensão é sentida em totalidade, pois é percebida juntamente com os estímulos sensuais. A tendência natural das experiências existenciais é de se espalharem e se fundirem, dada a natureza orgânica de suas conexões sensoriais. Todavia, nós arquitetos buscamos apenas imagens arquitetônicas visuais em nossos prédios. Pallasmaa (2013, p.53) sugere que esse pode ser “o motivo pelo qual tais edifícios costumam parecer mudos, repulsivos e sem vida, apesar de seus jogos ilimitados de fantasia visual. São objetos para olharmos e admirarmos, não para vivermos ou nos identificarmos”. Nossos objetos da percepção sensoriais penetram um no outro e, assim, promovem uma experiência existencial completa que une o mundo e o observador em uma unidade inseparável. Nós não nos limitamos a ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar o mundo como observadores externos; nós existimos e vivemos em seu próprio intestino. Um edifício não é apenas uma estrutura física, mas também um espaço mental que estrutura e articula nossas experiências. (...) É esse sentido de volume e totalidade que diferenciam um espaço de apoio à vida ou que “intensifica a vida” de um espaço deprimente, repulsivo ou necrofílico. (PALLASMAA, 2013, p.53)

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Assim sendo, ao incorporarmos as curvas nas linhas do projeto do CAPSR, pretendíamos dar esse tom mais orgânico à nossa forma. Queremos nos adaptar à organicidade do terreno, das árvores existentes, do riacho que passa ali. Nossa tentativa é de ressignificar as tensões naturais. Abrimos mão dos típicos “caixotes” fortalezenses e nos adaptamos aos ângulos agudos e obtusos que o terreno nos mostrou ao livrarmos a APA em questão. Abrimos átrios internos, seguindo os contornos na volumetria possível, e encontramos junções tensionadas. A primeira reação que teríamos seria a de chamfrar essas pontas que se formaram para eliminar as tensões que emergiam. Decidimos, ao contrário, deixar propositalmente essa pontas. Podemos ver isso bastante evidente no prédio do Centro de Apoio e Restaurante Popular. Seu átrio é triangular, com um dos lados curvado, e suas pontas persistem numa continuação infinita no metafísico. A forma não se fechou, não acabou em si, absoluta e estéril. Ela se forma e se adapta a cada mirada, a cada passo, a cada segmento percorrido na curva ou fora dela. A ideia de não acabado permanece incomodando, gerando curiosidade, nos fazendo pensar, refletir e, consequentemente, nos relacionar conscientemente no físico, no peso, na novidade da forma, na materialidade que comumente nos é subtraída. Na arquitetura, da mesma forma, os motivos artísticos não deveriam ser excessivos nem extremamente dramatizados, porque “nossa imaginação os rejeitará”. As estratégias de retração e moderação têm valor extra na arquitetura. Caso aspire a um impacto mental permanente, uma obra de arte de arquitetura precisa envolver nossa imaginação pessoal e ativa; até mesmo uma narrativa de arquitetura deve ficar inacabada e aberta para que possa ser completada e incorporada pela imaginação do observador/usuário. (PALLASMAA, 2013, p.96)

As paredes internas, por sua vez, perseguem essa tensão. Elas seguem essas curvas externas, depois, são interrompidas por paredes retas. Já essas paredes retas, às vezes, formam ângulos não-retos nem próximos a 90°. Isso nos insere, por fim, em ambientes, salvo alguns de funcionalidade mais exigente, como na parte de serviços e cozinha, ou nos banheiros e vestiários, de volume não-cúbico nem paralelepipedal. O lógico seria termos volumes retos, formados do encontro de seis superfícies retangulares. No CAPSR, isso não acontece. Nas áreas onde se dão os processos de aprendizado, criação e produção, onde nossa mente precisa ser exercitada, onde nossos sentimentos e reações precisam vir à tona e postos em prática, esses volumes são irregulares, intrigantes. Às vezes, são amorfos porque, além do volume irregular, ainda tem sua rigidez diminuída através da semi-transparência do cobogó. No prédio da pousada Social, por sua vez, temos menos curvas e uma forma menos ousada. A irregularidade encontramos apenas nos ângulos não-retos do triângulo formado pela volumetria.

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SISTEMA CONSTRUTIVO Optamos por um sistema estrutural de concreto, tendo em vista a facilidade, praticidade e familiaridade que temos com esse material. Há um tempo temos dominado a construção em concreto armado, e nos permitido também testar e experimentar novas tecnologias relativas à construção com concreto. A idealização do sistema estrutural se deu em consequência do partido e linguagem formais. Foi moldado para acomodar todas as demandas, principalmente as da forma. Os pilares são de concreto armado, as vigas são de concreto armado e protendido, as lajes são nervuradas. Os átrios dos dois prédios não se apresentam como uma dificuldade, muito menos as curvas das fachadas. A forma é modesta, sem muita ousadia e, por isso, sem muitas dificuldades construtivas. Devido à volumetria relativamente simples dos prédios, a seção dos pilares varia de uma seção (cm) P.15x40 a P.20x30 na Pousada Social (prédio menor), e de P.35x55 a P.40x45 no Centro de Apoio e restaurante popular (prédio maior). Optamos também por esconder as vigas nas lajes, usando assim vigas protendidas, com alturas de 25cm e 35cm (alturas iguais às das lajes). As vigas de bordo são convencionais de concreto armado de base sempre entre 15cm e 20cm e respeitam as alturas de pré-dimensionamento. A vedação é feita de alvenaria convencional de tijolo cerâmico rebocado, sem fugir muito do que está presente no Centro em geral. A cobertura é sempre escondida para o exterior dos prédios, persistindo nas platibandas típicas do centro da cidade. No Centro de Apoio e Restaurante Popular, a coberta é em laje impermeabilizada. Na Pousada Social, é composta de madeiramento e telha, solução característica na nossa cultura local. Contudo, ao invés de telhas cerâmicas, escolhemos ecotelhas na cor marrom. A cor foi definida para mantermos uma coloração coesa com a da cerâmica tradicional, mas sem imitar seu tom exato. A telha de material reciclado foi escolhida com o intuito de encorajar esse tipo de filosofia sustentável, que recicla e/ou reusa materiais que poderiam estar apenas aumentando o volume de lixo produzido pela sociedade. Além da vedação de alvenaria convencional, decidimos aumentar a experiência de contato com o externo indo além das aberturas convencionais de portas e janelas: utilizamos consideráveis peles de cobogó nas fachadas dos dois prédios. Ao contrário do que seria uma paisagem exterior previsível de prédios e mais prédios, nossa tão abraçada concrete jungle, a paisagem exterior dos dois blocos é verde! Por que não tomar partido desse tipo de paisagem natural tão progressivamente escasso no nosso território urbanizado? Assim sendo, trocamos algumas consideráveis superfícies de alvenaria rebocada nas fachadas imediatas à praça por peles de cobogó. Estamos sempre em contato com cimento e concreto, o tempo todo, nos escondendo do mundo, exacerbando nossa privacidade e nos afundando no individualismo que rege a atualidade. As pessoas de rua, além disso, desenvolvem um senso de individualidade fortíssimo, porém, sem estarem enclausuradas. A sua relação com o interno e o externo, com o que é privado ou público, vai muito além dos limites físicos que nós da sociedade em geral construímos para determinar nosso território próprio. Nós nos utilizamos de barreiras visuais, paredes, portas, muros, tudo opaco; eles não. Só estou em privacidade se estiver escondido dos outros. Eles não dispõem desse artifício. A

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esquemas da estrutura dos prédios do capsr. o de cima mostra a estrutura do prédio maior, centro de apoio e restaurante popular, onde os elementos em cinza são os elementos de concreto, e o elemento em branco é o elemento em metal. o de baixo mostra a estrutura do prédio da pousada social, onde os elementos em cinza são os elementos de concreto, e os em marrom são os elementos em madeira.

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relação deles com o externo e com o público é a materialização da sua marginalização e da sua necessidade. Eles dormem na privacidade do seu colchão na calçada embaixo da marquise e, mesmo assim, totalmente expostos. Literalmente. Mas, e se, por poucas horas, durante sua permanência no Centro de Apoio, eles pudessem se relacionar com outro exterior, outra paisagem pública? Outra paisagem externa que não seja apenas um amontoado frio e seco de cimento e concreto, impessoal, estático, estéril, sisudo; mas sim a dinâmica viva de uma praça, de uma massa verde, das plantas refletindo uma vida verde e enérgica, que convida outras vidas para se relacionar, a vida de um passarinho, e a vida de uma criança que vem brincar... Essa poesia nós queremos devolver por meio duma leitura recorrente permitida por essas transparências (semi-transparências na verdade), conseguidas através das peles de cobogó. Ainda com o intuito de aumentar a experiência com o exterior, tanto de quem está dentro como de quem está fora do CAPSR, aumentamos também as janelas quando possível. Principalmente nas fachadas de acesso aos blocos do CAPSR, as janelas cresceram até se tornarem portas. Portas de sacadas ritmadas e racionais, de onde pode-se apreciar o exterior sempre que permitido. De onde podem ler um livro, ou jogar conversa fora, ou pensar na vida, ou buscar inspiração na materialidade do mundo logo ali na frente. CONFORTO AMBIENTAL A fartura de árvores e sombras já foi pontuada na seção sobre o terreno. Um recurso físico dessa qualidade é muito difícil na nossa paisagem urbana. É importantíssimo que possamos abraçar essas árvores e fazê-las perseverar entre nós. Sem muitas alterações nas condições naturais, podemos tornar esse recurso ao nosso favor, e a favor de todos. O generoso sombreado proporcionado pelas árvores existentes é agente facilitador na garantia de um conforto que dispensa soluções artificiais. A abundância dos nossos ventos, que vêm do sudeste e do leste, não encontra dificuldades de circulação ali, pois temos uma massa urbana de prédios de gabaritos mais baixos. A forte insolação, que abrange toda a Fortaleza e Região Metropolitana (RMF), ao se juntar com a massa sombreada, promove forças de pressão diferentes pela diferença de temperatura, e deste modo aumenta a dinâmica dos ventos ali. Mesmo assim, se os ventos estiverem diminuídos, o grande conjunto de sombras é fundamental no alívio de sensações desconfortáveis de calor. A massa verde auxilia também na purificação e na umidificação do ar; isso pode ajudar a amenizar a experiência de trocas de energia calorífica. A insolação agressiva gerada pelo caminhamento do sol sobre Fortaleza é atenuada, se considerarmos as áreas verdes do nosso terreno e da praça vizinha e o prédio do Tribunal de Contas da União (TCU), logo atrás, na Rua Sena Madureira, que, por sua vez, ajuda no sombreamento das fachadas oeste. O sol mais forte que temos é o das 15:00 horas e as fachadas mais ensolaradas são a leste e a oeste. Devido à nossa latitude de quase 4°, nossa experiência com o caminhamento do sol é praticamente de um percurso leste-oeste a 90° com o chão, com pouca variação nesse ângulo durante o ano todo. É imprescindível, por isso, o sombreamento das fachadas leste e oeste.

108


E nós temos isso com a grande massa de sombras geradas pelo verde e pelo entorno. A insolação como fonte de luz natural teve sua captação equilibrada na medida que decidimos abrir os átrios dos dois blocos, um átrio em cada. Além de gerar uma abertura de exaustão de calor, já que retiramos massa do centro do volume e o vento pode circular livremente, gerando ventilação cruzada, as partes mais internas na volumetria, que seriam prejudicadas com iluminação natural e exigiriam solução com iluminação artificial, podem aproveitar a luz solar que adentra o prédio pelo seu centro. Não vimos necessidade de beirais para ajudar na proteção solar nem de segundas peles. As condições físicas favoráveis dispensam esse tipo de artifício, e acabam reforçando a linguagem das fachadas de acordo com o partido formal proposto. Assim sendo, constatamos um forte potencial sustentável dos prédios quando as soluções artificiais de iluminação e condicionamento de ar se tornam dispensáveis no CAPSR. Os dois triângulos tridimensionais vazados no centro que formam os prédios do projeto têm uma modesta massa periférica aos átrios. A maior distância que temos do exterior ao átrio é de aproximadamente 13m, no bloco maior. Com esses lados de pouca massa e bloqueios físicos, tanto a luz como o vento podem penetrar e transpassar os prédios facilmente. Por isso, as soluções artificiais se tornam desnecessárias nessa proposta. Como o condicionamento de ar e iluminação artificial são os elementos mais onerosos nos gastos com conta de energia, e provavelmente podemos dispensar métodos artificiais de solução de conforto, podemos então afirmar e defender que nossa proposta reforça a filosofia de edificações sustentáveis. IMAGENS ARTÍSTICAS A imagem é essencialmente duas realidades simultâneas, a real, a qual percebemos, e a mental, quando apreendemos o objeto no nosso imaginário. A imagem mental, geralmente, construímos a partir de uma sugestão introduzida a nós através da apresentação do objeto. Falamos anteriormente, na PARTE II, sobre imagens aprisionadoras e imagens emancipadoras. Comumente, temos sugerido uma imagem bastante desgastada das pessoas em situação de rua. Denominamo-las “vagabundas”, “marginais”, “ladras”, “criminosas”. Desta forma, construímos um imaginário sugestivo terrivelmente hostil, sem nem ao menos considerarmos suas verdadeiras condições. Essa sugestão hostil é tão fortemente pregada que a sua própria autoimagem é horrorosa. As pessoas de rua não se sentem cidadãs ou componentes da sociedade. Mesmo se, depois de romper com a realidade social vigente, elas decidem voltar ao sistema, elas próprias já desgastaram tanto sua autoimagem que não se sentem mais dignas nem se sentem encorajadas à reabilitação social. De acordo com Pallasma (2013, p.63), “todas as imagens artísticas acontecem simultaneamente em duas realidades e seu poder sugestivo deriva exatamente dessa tensão entre o real e o sugerido, o percebido e o imaginado”. Juhani Pallasmaa (2013, p.63) cita Sartre sobre os tipos de imagem: “Sartre apresenta um argumento intrigante sobre as duas existências da imagem artística e suas metamorfoses na forma de arte de atuação: ‘Não é o Príncipe da Dinamarca que se torna real no ator, mas o ator

109


que se torna irreal como o Príncipe”. Ao meu ver, isso ocorre quando tratamos dos moradores de rua. Nós não os aceitamos por suas condições diferentes, por escolherem romper com o sistema, e defendemos nosso espaço com um senso de territorialidade feroz. Nosso senso de compaixão e empatia parecem ser vencidos e começamos a sugerir uma imagem mais degenerada do que o real estado no qual eles se encontram. Com o tempo, as paisagens urbanas mudando, eles se mantendo alheios às mudanças da cidade, continuam “sujeira” e “bagunça”, nós lhes tornamos tão irreais que eles não cabem mais na nossa realidade urbana, precisam ser descartados. Quando é mencionada, a palavra “imagem” normalmente se refere a fenômenos puramente perceptuais ou visuais. Entretanto, a imagem é a entidade experimental, a singularidade perceptual, cognitiva e emocional sintética da obra artística que é percebida, corporificada e lembrada. (...) Ela redireciona e enfoca a atenção do observador/ouvinte/leitor/usuário e provoca um estado alterado de consciência, que evoca uma dimensão imaginária, um mundo imaginativo. (PALLASMAA, 2013, p.93)

Além do contato com a arte através da produção alcançada com o setor profissionalizante, procuramos romper com essas sugestões de imagens de degeneração aplicando, agora, sugestões de imagens artísticas. O contato com a arte, acredito eu, pode leva-los a encontrar imagens poéticas libertadoras que lhes resgatem da prisão marginal. Eles precisam ser livres dentro da sua própria mente e dentro do imaginário geral coletivo. Se as imagens manipulatórias que propagamos é a de que eles são excluídos e merecem ser excluídos, e eles aceitam isso; então, as imagens libertadoras artísticas, as imagens poéticas, dizem-lhes que eles têm autonomia e controle das suas próprias condições, não vivem uma condição determinada externamente. Geralmente, entendemos as imagens artísticas como uma manipulação emocional da forma, mas a arte é uma manipulação igualmente significativa das camadas temporais e evolucionárias da mente. A arte funde a criança com o adulto e o selvagem originário com os processos de aculturação. Nesse sentido essencial, a arte fica a serviço da compreensão evolucionária e da recordação do passado. Significativamente, defende e protege nosso passado mental e amplia nossas capacidades. (PALLASMAA, 2013, p.109)

Nós pretendemos, com a aplicação de imagens artísticas poéticas, fomentar e estimular seu senso próprio de vida, de autonomia de pensamento e ação, de dignidade, de valor social. Se eles conseguem estruturar pensamentos mais profundos, eles conseguem destruir os pensamentos de autoexclusão e construir pensamentos de autorresponsabilidade. Para tanto, no prédio do Centro de Apoio e Restaurante Popular, onde o trabalho com a população em situação de rua ainda está nas primeiras etapas, escolhemos obras dos artistas plásticos escolhidos como referência, Hércules Barsotti e Luiz Sacilotto, para pintarmos nas paredes internas. As grandes paredes cegas

110


01

Detalhe - Vista

esponja piramidal 10x10x10cm

02

Detalhe - Vista

areia aplicada na parede em tons diferentes

03

Detalhe - Vista

placa mdf 10x10cm

111

ESC.

ESC.

ESC.

1:100

1:100

1:100


a proposta é de que se aplique nas paredes internas do centro, principalmente nas áreas de capacitação, diferentes materiais que proporcionem experiências sensoriais variadas. de cima para baixo: a sugestão é de se aplique quadrados de mdf no tom da parede; a segunda sugestão é de aplicação de areia pintada (areia misturada com tinta) em diferentes tons nas paredes; a terceira sugestão de aplicação é de pirâmides de esponja amarela convencional. as três sugestões buscam promover uma experiência tátil mais rica, que vai além da experiência visual, e até mesmo engana. a exemplo das esponjas, um objeto pontiagudo nos lembra facilmente perigo. contudo, nesse caso, as pontas das esponjas não apresentam risco para ninguém.

112


podem assim ganhar um significado mais consistente que apenas serem consequências materiais do projeto. Elas podem tornar-se murais da libertação do imaginário. Os usuários do centro de apoio estariam em constante contato com estímulos poéticos que podem lhes ajudar em inspirações para a produção manual ou mesmo para se tornarem favoráveis a um acompanhamento psicossocial. Por meio da sua origem em experiências individuais autênticas, as obras de arte e arquitetura profundas sempre defendem a autonomia e a emancipação da experiência individual, e elas formam uma força contrária ao calculismo e à exploração. A arte protege as fundações da autonomia e dignidade mental individual. (PALLASMAA, 2013, p.115)

Podemos usar diferentes materiais na reprodução dessas obras em escala maior (para que se tornem murais) proporcionando diferentes experiências sensoriais, além da visual simplesmente. A nossa sugestão é que usemos areia, pedriscos, madeira, algodão, tecido, etc, juntamente com as tintas para criar esses grandes quadros em escala aumentada. Além de imagens diferentes das figurativas usualmente empregadas no nosso contexto atual do séc. XXI, além de imagens mais “pensantes”, eles podem experimentar tocar essas paredes, sentir a materialidade física real do prédio, estar em relação direta com o edifício, tocar materialidades poéticas e, ao mesmo tempo, tocar a história perdida, a memória esquecida durante o processo de marginalização. Contribuindo ainda para a construção de um novo imaginário poético, tornamos a praça uma praça de esculturas. O espaço público para eles, antes a sua realidade dolorosa nua e crua e exclusão, agora é espaço terapêutico, é espaço onde eles podem se sentir da cidade, constituintes da estrutura urbana. Desfrutar dessa praça não é mais fazê-la de espaço para resolver suas necessidades pessoais básicas, isso já lhes é solucionado pelo Centro de Apoio à População em Situação de Rua; é agora adentrar um mundo novo de possibilidades, de relembranças, de futuros, de mais opções que apenas se manter inertes na dimensão degenerada da realidade social. Os edifícios estão no mundo dos fatos e causalidade físicos e, simultaneamente, no mundo das ideias, geometrias e expressões artísticas. Eles têm uma tarefa dupla: a função prática da vida e das atividades e a função poética de definir nossa base mental na realidade vivida. (...) A arquitetura articula as características e qualidades de nossas experiências existenciais e sentimentos fundamentais. Chega a afetar e tocar algumas de nossas experiências pré-natais mais básicas de proteção, segurança, intimidade e prazer. Faz a mediação entre o indivíduo e o mundo, o indivíduo e o outro, e reestrutura as primeiras memórias de nossa dialética básica de conexão e separação. (PALLASMAA, 2013, p.64-65)

113


Para arrematar o conjunto de recursos da reabilitação social, e talvez seja seu ponto crucial, vamos considerar nesse momento o Setor Profissionalizante e de Capacitação Pessoal. Percebendo a gravidade e a delicadeza que tem o fator da autoestima na recuperação das pessoas de rua, julgamos de fundamental importância inserirmos espaços voltados para capacitação pessoal e profissional dos usuários. Vimos na PARTE II como o nosso intelecto acontece simultâneo ao nosso físico, como o trabalho de nossas mãos (na verdade, não só das nossas mãos, mas do nosso corpo inteiro) se corporifica em nós e interfere diretamente na construção do nosso pensamento. Assim sendo, consideramos nossa condição dialética de homem manual e homem intelectual, consideramos o próprio relato dos moradores de rua de que precisam se sentir úteis, e enfatizamos a maior parte do prédio maior em espaços do Setor de Capacitação. Acreditamos que, quando os usuários têm oportunidade de produzir, eles podem ver (descobrir ou redescobrir) habilidades que eles desconheciam que possuíam. Mantê-los imersos nesse processo de aprendizado e capacitação e produção pode ser benéfico na medida que eles reconstroem sua autoestima, reconstroem sua autoimagem, e distanciam-se da memória de marginalização e exclusão. Se eles conseguem reconstruir sua autoimagem, eles se tornam objetos mais favoráveis a um tratamento de recuperação. Aí, permito-me dizer, pode residir a força motriz que vai levar os usuários a aceitar o acompanhamento dos CAPES sugeridos pelo CAPSR. Ademais, essa produção alcançada com o trabalho interno dos usuários do CAPSR, pode ser comercializada por eles mesmos, ajudando com a produção de uma renda pessoal deles. As ideias articuladas pela arte são propostas corporificadas (...), concebidas e expressadas (...) em um processo dialético com histórias e tradições próprias. As ideias artísticas surgem da compreensão e do desejo existenciais; não são idealizáveis ou traduzíveis em interpretação ou explicações verbais. São metáforas existenciais corporificadas. (PALLASMAA, 2013, p.106)

NOVIDADE OLFATIVA E CURA DA MEMÓRIA Um elemento que merece destaque e sinto que devo discorrer sobre ele separadamente são as plantas incorporadas no projeto. Já falamos sobre as árvores existentes que foram preservadas no projeto na praça, mas é válido também falar sobre as plantas que sugerimos para os jardins internos dos átrios e para a praça. Uma afirmação que me chamou bastante atenção, e já mencionada na PARTE I, foi a de um usuário do Albergue Shalom sobre a estranheza dos cheiros da rua que persistem neles por meses depois de sair dela. A memória olfativa é mais vívida que a memória retinal. Se tiramos os olhos do objeto, logo lhe esquecemos sua forma visual. O aroma, por sua vez, insere-nos novamente no espaço experienciado no passado. São necessárias apenas oito moléculas para acionar um impulso olfativo, nós detectamos cerca de mais de 10.000 odores diferentes, e a memória mais persistente de um espaço é seu cheiro (PALLASMAA, 2008, p.54). O A. (usuário do Albergue Shalom) nos falou de como sair na rua e sentir aqueles cheiros

114


familiares lhe lembravam da época de rualização, principalmente de dependência química, condição que caracterizou sua situação de rua. Ele, que está em luta diária para se manter limpo, confessa ser difícil lidar com esses cheiros, pois lhes despertam vontade de recaída nas drogas. A aceitação de recuperação acaba se tornando mais pesada nos primeiros meses porque parece que eles saíram da rua, mas a rua não saiu deles, e o “cheiro da rua” vem lhes lembrar diariamente disso, por meses. A. diz parecer inútil tomar banho duas ou três vezes seguidas para se livrar desse cheiro, não adianta, ele continua ali nos seus corpos, entranhado. A condição química do mundo olfativo pode ser algo percebido inconscientemente por nós porque não habitamos nossos mundos olfativos (nem auditivos, nem táteis, apenas visuais, ou melhor, virtuais). Edward T. Hall compartilhava do mesmo pensamento que Pallasmaa mais de quarenta anos antes: No emprego do aparelhamento olfativo, os norte-americanos [e os sulamericanos também] são culturalmente subdesenvolvidos. O uso extensivo de desodorantes e a supressão do odor em lugares públicos resulta num território de suavidade e uniformidade olfativa difícil de reproduzir em qualquer outra parte do mundo. Esta suavidade contribui para os espaços não diferenciados e priva-nos de riqueza e variedade em nossas vidas. Também obscurece a memória, porque o odor evoca lembranças muito mais profundas que a visão, ou o som. (HALL, 1977, p.53, acréscimo do autor)

O olfato, portanto, mexe diretamente com nosso sistema metabólico e endócrino. Dependendo da nossa condição e situação, estamos em num estado de produção e excreção de substâncias determinadas. É comum dizermos que nossos inimigos podem sentir o cheiro do nosso medo. Isso parece ser verdade, se consideramos quando Hall afirma, também sobre o espaço olfativo: Ao discutir mensagens olfativas com um psicanalista, hábil terapeuta, com uma ficha incomum de sucessos, fui informado de que ele podia claramente distinguir o cheiro de raiva dos pacientes, a uma distância de quase dois metros, ou mais. As pessoas que trabalham com esquizofrênicos há muito declararam que eles têm um odor característico. Tais observações naturalistas levaram a uma série de experiências nas quais a Dra. Kathleen Smith, psiquiatra de St. Louis, demonstrou que os ratos prontamente distinguiam entre o cheiro de um esquizofrênico e o de uma pessoa não afetada pela esquizofrenia. À luz do poderoso efeito dos sistemas de mensagem química, fica-se a imaginar se o medo, a raiva e o pânico esquizofrênicos não agirão diretamente sobre os sistemas endócrinos das pessoas próximas. (HALL, 1977, p.55)

Isso acontece porque o metabolismo dos organismos esquizofrênicos trabalha diferentemente, produzindo outros tipos de substâncias, outros hormônios, mesmo que o sentimento seja descrito igual por uma pessoa não afetada pela doença, como por exemplo o medo. Por con-

115


seguinte, julgo aplicável essa teoria no nosso caso de pessoas em situação de rua, já que o “cheiro da rua” não sai facilmente delas. Penso que, apesar de sair do espaço de marginalização da rua, a mente do indivíduo ainda trabalha condicionada para aquela realidade, e, consequentemente, seu corpo também. O estresse, o medo, a raiva, a decepção, a tristeza, a depressão, a dependência química, os delírios e as possíveis alucinações, que agem diretamente no nosso sistema endócrino, ainda não foram vencidos. Provavelmente, os moradores de rua, depois de iniciados no processo de reabilitação, ainda não deixaram o “mundo das ruas”, seus mundos sensoriais e mentais ainda estão construídos baseados na realidade de rua. Talvez, acredito eu, seja por isso esses odores persistentes. Sentimo-nos então, por tudo isso, empurrados em direção ao sentido do olfato e decidimos dar uma atenção maior para essa condição. Queremos inserir os usuários do CAPSR em uma novidade olfativa, num novo mundo olfativo. Nosso objetivo é desconstruir o mundo olfativo aprisionado através da inserção de plantas aromáticas nos prédios. Dispomos de um espaço total de circulação e convivência significativo composto pelos átrios e pelos varandões internos. Nesses espaços internos, sugerimos plantas de cheiro, para que o “cheiro da rua” fosse suprimido, enquanto eles estão usuários do equipamento. Se os aromas naturais das plantas conseguissem ser notórios o suficiente, a memória da marginalização poderia ser esquecida pelo tempo que as pessoas de rua passassem dentro do CAPSR. Nos varandões, as plantas podem ser colocadas em vasos; nos jardins dos átrios no térreo, elas podem ser plantadas em canteiros (no caso do Centro de Apoio e Restaurante Popular) e no solo (no caso da Pousada Social). A ideia inicial foi a de inserir as plantas aromáticas para desconstrução do mundo olfativo degenerado. Com o amadurecimento natural das ideias durante o processo de projeto, alinhamos o objetivo da terapia olfativa com o objetivo da capacitação pessoal: os canteiros internos dos átrios podem ser plantados com ervas aromáticas que servem tanto para consumo interno no Restaurante Popular e no refeitório como para produção comercializável. O início da produção começa com cursos de jardinagem e termina com o comércio do excedente ao consumo interno numa feirinha pensada para a praça. Pensamos nas possibilidades de eles comercializarem as ervas frescas, produtos alimentícios, cosméticos artesanais, outros produtos artesanais, tudo fruto de habilidades que eles podem aprender ou aprimorar no setor de capacitação do centro de apoio.

Lista de Sugestões de Plantas Aromáticas ALECRIM

ANGÉLICA

ALFAVACA

CALÊNDULA

CAMÉLIA

CAMOMILA

CAPIM-LIMÃO

CEBOLINHA

COENTRO

ERVA-CIDREIRA

ERVA-DOCE

GARDÊNIA

HORTELÃ

HORTELÃ-PIMENTA

JASMIM

LAVANDA

LÍRIO

MANJERICÃO

MELISSA

ORÉGANO

SÁLVIA

SÁLVIA FARINHENTA

TOMILHO

VETIVER

116


01

117

Detalhe - Horta ESC.

1:125


83. ervas aromĂĄticas usadas na cozinha domĂŠstica

fonte: https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/1f/04/44/1f0444836296987c934105a969a705d7.jpg

pedrisco ouro

estrutura em gabiĂŁo

+1.40m

pedrisco branco

+1.05m +0.70m +0.35m 0.00m

118


O PROJETO O dever da educação é cultivar e oferecer suporte às habilidades humanas da imaginação e empatia, mas os valores prevalecentes da cultura atual tendem a desencorajar a fantasia, suprimir os sentidos e petrificar os limites entre o mundo e a identidade pessoal. Consequentemente, o ensino em todos os campos de criatividade de nossa época tem de começar com o questionamento do absolutismo do mundo em que vivemos e com o resgate da percepção sensorial dos limites da identidade pessoal. O principal objetivo da educação artística talvez não resida diretamente nos princípios de produção de arte, mas na emancipação e abertura da personalidade do aluno, de seu autoconhecimento e de sua autoimagem em relação às tradições incrivelmente ricas da arte e do mundo em que vivemos em geral. (PALLASMAA, 2013, p.21) A ideia de treinamento sensorial atualmente é apenas relacionada com a educação artística formal, mas o refinamento do alfabetismo sensorial e do pensamento sensorial tem um valor insubstituível em todas as áreas da atividade humana. (PALLASMAA, 2013, p.139)

119



121


PROGRAMA DE NECESSIDADES E QUADRO DE ÁREAS

CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

CENTRO DE APOIO PAVIMENTO

SETOR

AMBIENTE Recepção

Serviços

Acolhimento

1º SUPERIOR

Capacitação

22.78

0.00

14.10

4.18

0.00

14.10

17.20

1.55

15.65

Estar Funcionários

9.21

1

9.21

1.55

15.65

Copa Funcionários

7.62

1

7.62

1.55

15.65

Coordenação

8.77

1

8.77

1.55

15.65

WC PNE

4.46

1

4.46

-0.02

14.08

Sala Assistentes Sociais

10.39

1

10.39

0.00

14.10

Sala Psicólogos

10.50

1

10.50

0.00

14.10

Sala Advogados

10.00

1

10.00

0.00

14.10

Enfermaria

17.16

1

17.16

0.00

14.10

Terapia Ocupacional

17.33

1

17.33

1.55

15.65

191.79

1

191.79

1.55

15.65

20.95

1

20.95

1.55

15.65

Oficina 01

6.55

1

6.55

1.55

15.65

Lavanderia

38.88

1

38.88

1.53

15.63

Carros-de-mão

58.50

1

58.50

1.55

15.65

6.98

1

6.98

1.55

15.65

Circulação Serviço

32.14

1

32.14

1.55

15.65

Banheiro/Vestiário Funcionários Feminino

33.30

1

33.30

1.53

15.63

Banheiro/Vestiário Funcionários Masculino

33.30

1

33.30

1.53

15.63

Circulação Social

135.03

1

135.03

1.55

15.65

Escada/Elevador

25.38

1

25.38

1.55

15.65

Escada/Elevador

25.38

1

25.38

4.70

18.80

Circulação Social

199.77

1

199.77

4.70

18.80

Átrio (vazio)

191.80

1

191.80

0.00

0.00

Banheiro/Vestiário Feminino

37.01

1

37.01

4.68

18.78

Banheiro/Vestiário PNE

9.75

1

9.75

4.68

18.78

Banheiro/Vestiário Masculino

37.01

1

37.01

4.68

18.78

Ateliê Aberto

76.61

1

76.61

4.70

18.80

Oficina 02

62.96

1

62.96

4.70

18.80

Sala de Aula

50.40

3

151.20

4.70

18.80

Oficina 03

49.02

1

49.02

4.70

18.80

Sala de Informática

63.76

1

63.76

4.70

18.80

Armários Pessoais

54.57

1

54.57

4.70

18.80

Sala das Memórias

43.51

1

43.51

4.70

18.80

Sala Multiuso

72.85

1

72.85

4.70

18.80

Canil

Serviços

1

COTA (m)

1

DML

TÉRREO

22.78

NÍVEL (m)

1

Horta Capacitação

ÁREA (∑)

4.18

Sala de Reuniões

Técnico

QUANTIDADE

17.20

Sala de Apoio

Administrativo

ÁREA (m²)

122


Serviços

Acolhimento

Escada/Elevador

25.38

1

25.38

8.20

22.30

Circulação Social

199.77

1

199.77

8.20

22.30

Átrio (vazio)

191.80

1

191.80

0.00

0.00

Banheiro/Vestiário Feminino

37.01

1

37.01

8.18

22.28

Banheiro/Vestiário PNE

9.75

1

9.75

8.18

22.28

Banheiro/Vestiário Masculino

37.01

1

37.01

8.18

22.28

Espaço Relaxamento

76.61

1

76.61

8.20

22.30

127.93

1

127.93

8.20

22.30

62.96

1

62.96

8.20

22.30

152.88

1

152.88

8.20

22.30

Oficina 05

49.02

1

49.02

8.20

22.30

Sala de Informática

63.76

1

63.76

8.20

22.30

Oficina 06

38.32

1

38.32

8.20

22.30

Solário Oficina 04 Salão Reversível

2º SUPERIOR

Capacitação

123


PROGRAMA DE NECESSIDADES E QUADRO DE ÁREAS

CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

RESTAURANTE POPULAR PAVIMENTO

SETOR

AMBIENTE

COTA (m)

0.00

14.10

159.98

1

159.98

0.00

14.10

3.24

1

3.24

0.00

14.10

WC Masculino

15.96

1

15.96

0.00

14.10

WC Feminino

15.96

1

15.96

0.00

14.10

Cozinha

45.28

1

45.28

0.00

14.10

Copa Lavagem

21.22

1

21.22

0.00

14.10

Recebimento e Pesagem

22.95

5

114.75

0.00

14.10

Estoque Seco

10.00

1

10.00

0.62

14.72

Antecâmara

4.26

1

4.26

1.55

15.65

Câmara Frigorífica

4.00

2

8.00

1.55

15.65

Câmara Frigorífica

5.55

1

5.55

1.55

15.65

Higienização e Guarda

7.03

1

7.03

0.00

14.10

Secretaria

4.83

1

4.83

1.55

15.65

Administração

7.50

1

7.50

1.55

15.65

DML

7.40

1

7.40

1.55

15.65

Circulação Serviço Interna

31.77

1

31.77

0.00

14.10

Circulação Serviço Externa

38.07

1

38.07

0.00

14.10

3.22

1

3.22

1.53

15.63

Banheiro/Vestiário Funcionários Feminino

33.30

1

33.30

1.55

15.65

Banheiro/Vestiário Funcionários Masculino

33.30

1

33.30

1.55

14.10

Gás

10.00

1

10.00

0.00

14.10

Lixo

11.77

1

11.77

0.00

14.10

Carga/Descarga

21.73

1

21.73

0.00

14.10

WC PNE Funcionários

Serviços

NÍVEL (m)

24.96

WC PNE

TÉRREO

ÁREA (∑) 1

Restaurante

Administrativo

QUANTIDADE

24.96

Recepção

Restaurante

ÁREA (m²)

124


PROGRAMA DE NECESSIDADES E QUADRO DE ÁREAS

CENTRO DE APOIO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

POUSADA SOCIAL PAVIMENTO

SETOR

AMBIENTE

15.00

7.26

1

7.26

0.00

15.00

Sala Educadores Sociais

10.89

1

10.89

0.00

15.00

Dormitório Masculino A

13.20

5

66.00

0.00

15.00

Dormitório Masculino B

16.17

1

16.17

0.00

15.00

Banheiro/Vestiário Masculino

27.02

1

27.02

-0.02

14.98

WC Feminino (PNE)

5.60

1

5.60

-0.02

14.98

WC Masculino (PNE)

5.60

1

5.60

-0.02

14.98

Sala Segurança

4.72

1

4.72

0.00

15.00

Circulação Social

182.42

1

182.42

0.00

15.00

Jardim

198.99

1

198.99

-0.02

14.98

Refeitório

48.68

1

48.68

0.00

15.00

Cozinha/Despensa

40.95

1

40.95

0.00

15.00

Lavanderia

24.40

1

24.40

-0.02

14.98

4.78

1

4.78

0.00

15.00

Circulação Serviço

42.61

1

42.61

0.00

15.00

Carga/Descarga

40.53

1

40.53

0.00

15.00

4.50

1

4.50

0.00

15.00

2.97

1

2.97

0.00

15.00

Escada/Elevador

12.43

1

12.43

0.00

15.00

Escada/Elevador

12.43

1

12.43

3.15

18.15

Circulação Social

220.80

1

220.80

3.15

18.15

Átrio (vazio)

164.40

1

164.40

0.00

0.00

Dormitório Feminino A

13.20

5

66.00

3.15

18.15

Dormitório Feminino B

16.17

1

16.17

3.15

18.15

Dormitório Masculino A

13.20

7

92.40

3.15

18.15

Dormitório Masculino B

16.17

1

16.17

3.15

18.15

Banheiro PNE

5.18

1

5.18

3.13

18.13

Banheiro/Vestiário Feminino

31.04

1

31.04

3.13

18.13

Banheiro/Vestiário Masculino

31.04

1

31.04

3.13

18.13

Estar

49.13

1

49.13

0.00

0.00

Lixo

Serviços

1º SUPERIOR

Acolhimento

COTA (m)

0.00

Gás

Serviços

NÍVEL (m)

13.03

DML

TÉRREO

ÁREA (∑) 1

Coordenação

Acolhimento

QUANTIDADE

13.03

Recepção

Administrativo

ÁREA (m²)

125



CENTRO DE APOIO E RESTAURANTE POPULAR SUBSOLO As pessoas de rua são pessoas de poucas posses. Quase que em sua totalidade, elas possuem apenas o que carregam consigo – as roupas do corpo, alguma sacola ou utensílio que sirva para a mesma função, alguns poucos objetos e seu leito, um pedaço de papelão e/ou lençóis. Seu acesso aos CentrosPOP é feito a pé, eles não possuem carro. Embora nosso enfoque não alcance além da população em situação de rua, digo o público geral, propomos aqui um equipamento que demanda uma considerável equipe de funcionários. A cultura do carro como posse (muito mais do que como meio de locomoção) é uma cultura – equivocada – já enraizada na nossa realidade. A própria legislação estabelece normas de determinação da quantidade de vagas de estacionamento que se deve ofertar no projeto. Decidimos então, tendo em vista a justificativa de que o público alvo do CAPSR não possui carro, oferecer um modesto estacionamento privado do equipamento. Este estacionamento encontra-se no subsolo do prédio do Centro de Apoio e Restaurante Popular, e o número de vagas que deveria ser de cerca de 50, de acordo com a legislação, nós diminuímos para 27 vagas. Outro elemento que influenciou no desenho do subsolo foi o corpo d’água vizinho, que dificulta o enterramento do pavimento. Decidimos, portanto, enterrar apenas metade do subsolo. Em vez de termos um subsolo de nível -3.15m mais ou menos, temos um subsolo de nível -1.60m. Isso definiu diretamente a dinâmica dos níveis do térreo, obviamente, onde temos o pavimento acontecendo em dois níveis diferentes por causa do meio-subsolo. O acesso de veículos ao estacionamento é feito através de uma rampa, e os usuários podem acessar o térreo através da escada ou do elevador de percurso curto. TÉRREO A vida nas ruas é uma vida muito difícil, mesmo entre as próprias pessoas em situação de rua. A miséria, a violência, o perigo, o desespero, a vulnerabilidade lhes amedronta o tempo todo, 24h/dia. Por isso, como vimos anteriormente, na PARTE II, seu senso de individualidade e luta pelo pouco que possuem se torna intenso. Além dos poucos pertences, a companhia fiel e leal do animal de estimação compõe o pouco que têm. Embora os centros de apoio das prefeituras do Brasil se empenhem, na medida do que lhes permitem, ajudar a população em situação de rua, uma série de normas e burocracias impede-lhe que entre no centro com seus pertences e companhias. A função básica dos centros de apoio é a oferta de higiene e alimentação, e as más condições – de sujeira – dos pertences dos usuários prejudica na salubridade do equipamento. Por este motivo, muitos indivíduos são obrigados a escolher entre serem atendidos sem seus pertences e animais de estimação ou permanecerem na rua com suas coisas. Para que essa segregação fosse eliminada e a abrangência de atuação do centro de apoio aumentasse, pensamos num estacionamento para o carro-de-mão daqueles que trabalham com coleta de lixo e descartados e um pequeno canil no térreo, e armários pessoais para guarda de pertences que estão localizados no primeiro pavimen-

127


to superior. O estacionamento para carros-de-mão é de 5 vagas e está localizado nos fundos do CAPSR. O portão de entrada tem acesso pela praça, e os usuários devem primeiramente deixar seus carros nas vagas disponíveis. Pelo mesmo portão dos fundos, os usuários com animais de estimação devem entrar com seus bichos e deixá-los nas casinhas verticais separadas para eles. Junto das casinhas, há uma bancada com uma cuba grande, para que os usuários possam fazer a higiene dos bichinhos e também para servir a uma eventual visita de um veterinário e do controle de zoonoses. O acesso ao centro de quem entra pelos fundos é feito por uma porta que abre para o pátio interno. A entrada principal do prédio do Centro de Apoio e Restaurante Popular está na fachada da Rua Pinto Madeira (Nível: 0.00m; Cota: 14.10m). Uma porta dá acesso ao centro de apoio, a outra vizinha dá acesso ao restaurante. Esse acesso principal é destacado pela marquise e pela pintura externa da edificação. Apreendendo sobre o funcionamento e a dinâmica de trabalho dos atuais CentrosPOP, a recepção do centro de apoio está disposta de acordo com o início do processo de acolhimento, isto é, o atendimento técnico. Deste modo, na entrada do prédio estão a Recepção/ Cadastro e uma sala de apoio, um banheiro acessível para público geral, e as salas de atendimento técnico: uma sala para os assistentes sociais, uma sala para os psicólogos e uma sala para os advogados. Todo o resto do primeiro nível do térreo está comportando as dependências do Restaurante Popular. Por isso, o restante do espaço disponível no térreo para o centro de apoio se encontra elevado no segundo nível (Nível: +1.55m; Cota: 15.65m), acessado por escada. Com o intuito de economizar no exagerado espaço que uma rampa exige, a acessibilidade foi resolvida através de uma plataforma acessível de percurso inclinado. Nesse segundo nível do térreo podemos acessar o pátio interno com átrio – já citado várias vezes – livremente. Ao redor do jardim interno, estão dispostas as salas do setor administrativo e de serviços, tanto do Centro de Apoio como do Restaurante Popular. Contudo, as salas do Restaurante Popular não acessam diretamente o jardim interno. O acesso de serviços desse prédio maior é um só. Assim, os funcionários do restaurante, para acessar o pátio, devem seguir em frente até o setor de serviços do Centro de Apoio ou entrar pelo acesso principal. O jardim interno do Centro de Apoio foi pensado com bastante cuidado e atenção, pois entendemos que esse é um elemento de grande importância e peso no projeto. Seu potencial para os objetivos terapêuticos do centro é enorme. Como foi explicitado na seção anterior (Novidade Olfativa e Cura da Memória), as ervas aromáticas foram escolhidas como solução para o “cheiro da rua”. Não só como cura olfativa, através dos aromas naturais, essas plantas foram pensadas como matéria-prima para a produção de produtos artesanais. O setor de capacitação do centro ofertaria cursos relacionados diretamente com o cultivo e manuseio de plantas (ervas) aromáticas: curso de jardinagem, curso de cosméticos artesanais (óleos e essências, colônias, cremes, pomadas, sabonetes, sachês para banho, xampus, etc.), curso de produtos artesanais (velas perfumadas, sachês perfumados, etc.), curso de produtos medicinais (mel, xaropes, pastilhas, balas, lambedor, chás, cremes, pomadas, ceras, etc.), curso de gastronomia (temperos caseiros, sachês de

128


folhas desidratadas, etc.). O jardim interno (átrio) então seria uma horta cujos canteiros (cada espaço com uma hortaliça) seriam cuidados pelos próprios usuários. Essa pequena horta interna poderia ainda ser estendida para vasos grandes e cachepôs espalhados pelos setores do CAPSR, no caso de plantas que “pegam” bem em terra de vasos e não dependem tanto de solo em si. Tudo isso, somado ainda ao consumo interno, na cozinha do Restaurante Popular, e podendo ainda ser comercializado na feirinha que foi pensada para a praça. Tanto em produtos feitos pelos usuários capacitados e em capacitação como em mudas. No tocante ao atendimento técnico, sabendo das delicadas condições que se encontram as pessoas de rua, muitas vezes debilitadas fisicamente, achamos relevante incluir uma enfermaria no programa. Não seria uma enfermaria propriamente dita, porque o foco do acolhimento do centro é nas necessidades básicas das pessoas, mas penso que um local reservado para atividades de primeiros socorros e procedimentos rápidos é mais confortável, porque seu arranjo é voltado para isso. Como mostrado na seção que discorreu sobre o terreno, o Posto de Saúde Paulo Marcelo Martins compõe o conjunto de atributos do critério SAÚDE para a escolha do terreno. Este posto de saúde encontra-se a três quadras do CAPSR e oferece o serviço de saúde necessário para a população. A enfermaria do CAPSR é somente para procedimentos bastante simples e rápidos e não substituiria o serviço qualificado dos postos de saúde e hospitais. O Restaurante Popular está basicamente todo posicionado no primeiro nível do térreo (Nível: 0.00m; Cota: 14.10m). A porta de entrada principal está ao lado da de entrada principal do Centro de Apoio. No restaurante, depois da recepção, temos o grande refeitório com 106 lugares e o acesso direto aos sanitários. No fundo do salão, onde pode ficar o bufê, temos uma porta de comunicação direta com a cozinha, de onde a comida pode ser colocada facilmente nos balcões de serviço. Ao lado, e mais ao centro do salão, temos a copa de lavagem com uma bancada de peitoril alto de onde os funcionários podem receber dos clientes as bandejas e os pratos usados. A entrada de serviço do Restaurante popular acontece também na fachada principal da Rua Pinto Madeira, porém, na outra extremidade. A entrada de serviço do restaurante antecede a do centro de apoio, mas as duas ocorrem na mesma circulação de serviço. Com o desnível causado pelo meio-subsolo e a falta de espaço disponível para uma rampa, resolvemos a acessibilidade da escada colocada também com uma plataforma de percurso inclinado. Na parte de serviços interna do Restaurante Popular, como o trânsito é de carga, resolvemos com rampas para os carrinhos de transporte manuais. 1º PAVIMENTO SUPERIOR O primeiro pavimento superior do Centro de Apoio é destinado aos setores de acolhida e capacitação. Como foi explicado antes, o serviço de alimentação nós deslocamos para o Restaurante Popular. Os banheiros e vestiários para a higiene pessoal dos usuários estão na ala de serviços do prédio, isto é, no lado oeste do triângulo. Eles são divididos por gênero, feminino e masculino, e por necessidades especiais. Os banheiros e vestiários estão divididos nos dois pavi-

129


mentos superiores. O restante do pavimento comporta as salas do setor de capacitação. Baseados nas teorias apresentadas na PARTE III, acreditamos que o trabalho manual pode ser a chave para a terapia e para a recuperação desse público marginalizado. O aprendizado de técnicas manuais deve interferir não só no conhecimento de uma habilidade prática específica, mas deve contribuir para a solução de problemas de autoestima, psicológicos, conflitos pessoais, conflitos familiares e conflitos sociais. As capacitações pessoal e profissional, às quais os usuários serão submetidos, deve funcionar como processo terapêutico tanto tornando os indivíduos favoráveis a um acompanhamento dedicado como facilitador do trabalho dos profissionais do CAPSR. O equipamento oferta, assim, salas de aula, salas da informática, oficinas de técnicas manuais, sala multiuso, ateliê aberto, tudo focado em cursos como: costura, marcenaria simples, técnicas em gesso, técnicas em couro, gastronomia, jardinagem, artesanato, produtos caseiros e artesanais, cursos de informática, secretariado, supletivo, dentre outros. Pensamos ainda no possível convênio do CAPSR com programas externos para subsidiar os cursos específicos, por exemplo, de supletivo, secretariado, informática e técnicas digitais, ou mesmo cursos do programa PRONATEC, conforme a estrutura física disponível no Centro de Apoio à População em Situação de Rua. No tocante à capacitação pessoal do indivíduo de rua, propusemos uma sala diferenciada, inspirada no Museu da Pessoa, que é a Sala das Memórias. Um ponto crucial no processo de rualização de pessoas é o rompimento com a sociedade geral, principalmente com sua família. Os conflitos familiares gerados ou geradores da rualização provocam traumas e debilidades emocionais determinantes da saúde mental e psicológica do indivíduo. Por isso, os setores psicossociais da gestão pública empenham-se veementemente em ajudar as pessoas de rua a se reconciliarem com suas famílias, e até mesmo nas etapas finais do processo de desrualização lhes é exigida essa reconciliação familiar. Atentando para essa natureza essencialmente humana de alguns problemas da população em situação de rua, inserimos a Sala das Memórias no programa. Esse ambiente é destinado a guardar mensagens escritas e audiovisuais das pessoas em situação de rua para sua família, ou da família para a pessoa em situação de rua. Em tese, essas mensagens seriam catalogadas, arquivadas e postas em um sistema e plataforma digitais unificados da gestão do CAPSR, os quais todos os CAPSR de Fortaleza alimentariam com suas mensagens e qualquer um dos centros poderia acessá-las. Desta forma, o contato e a comunicação entre a pessoa de rua e a sua família seria extremamente facilitada, bastaria apenas qualquer um dos dois entrar em contato com algum CAPSR. A Sala das Memórias seria equipada com equipamentos de registros audiovisuais, telefones, computadores, livros e cadernos de memórias, cartas e tudo mais que fosse meio de comunicação ou facilitador. Ao lado da Sala das Memórias estão os armários pessoais. Armários que as pessoas poderiam utilizar enquanto usuários do Centro do Apoio ou que poderiam tomar em empréstimo. Seus pertences poderiam ficar guardados, mesmo ele tendo que deixar o centro durante as noites.

130


2º PAVIMENTO SUPERIOR O arranjo do segundo pavimento superior é basicamente o mesmo do primeiro. Como dito antes, temos também no segundo pavimento superior banheiros e vestiários para os usuários. Contudo, as salas de aula do lado sul do triângulo, as três iguais, são reversíveis, podendo aumentar para salas maiores e até formar um grande auditório. A grande Sala Multiuso, o Ateliê Aberto e sala dos Armários Pessoais foram transformadas em solário e espaço de relaxamento. É comum ouvirmos afirmações ou reclamações a respeito de seu descanso na rua, que, na verdade, na maioria das vezes não ocorre de fato. O medo e a insegurança tomam conta e não lhes deixam dormir ou mesmo descansar um pouco. A solução proposta foi separar um generoso espaço de descanso e convívio, com um redário desmontável e mobiliário superconfortável, como grandes sofás, grandes poltronas e grandes pufes. O redário desmontável funciona da seguinte maneira: no piso existem vários buracos do tamanho de encaixe da seção de um mastro pequeno. Esses mastros encaixáveis no piso possuem em si armadores. Coloca-se então os mastros conforme a necessidade e o evento. O solário, parte aberta com um pergolado destacado, permite contato direto com a praça através das peles de cobogó.

131


132


133


134


POUSADA SOCIAL TÉRREO Diferente do Centro de Apoio e Restaurante Popular, o prédio da Pousada Social do CAPSR tem um programa mais simples. Bem parecida com a atual Pousada Social da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), de 80 leitos, a Pousada Social que propusemos é de 86 leitos. Devido à organização e uma certa ordem que se deve ter nessa dinâmica de trabalho, as dependências da pousada não podem acontecer no mesmo prédio do Centro de Apoio. Por este motivo, a Pousada Social funciona num prédio separado. No térreo, estão os setores administrativo, de serviços e uma parte do acolhimento, com uma parte dos dormitórios masculinos. Cozinha, refeitório, lavanderia, salas administrativas e dormitórios compõem o pavimento térreo da Pousada Social e abraçam o pátio interno, um jardim privado no átrio da edificação. Além de jardineiras e plantas propostas, o prédio abraça uma das árvores existentes do terreno em seu jardim interno. 1º PAVIMENTO SUPERIOR No pavimento superior da Pousada Social, ocorre o resto do setor de acolhimento, com os dormitórios femininos e o restante dos dormitórios masculinos e seus respectivos banheiros e vestiários. O cálculo do número de dormitórios masculinos e femininos foi feito baseado no censo da população em situação de rua, que é de 80% de indivíduos do gênero masculino, e 20% dos indivíduos do gênero feminino. Logo, dos 20 dormitórios, 14 são separados para o público masculino e 6 para o público feminino; do total de 86 leitos, 26 são destinados a mulheres, e 60 são destinados para homens. Além dos dormitórios, os usuários podem usufruir de um espaço de estar aberto para todo o pavimento superior e para o átrio da pousada.

135


136


137


138


PARQUE PAJEÚ 3 A feirinha foi pensada para a praça já que feira carrega um senso de convivência urbana intrínseco, de rua, de sair, de lado de fora. Começamos pensando em feiras periódicas, mas não diárias, não um mercado informal. Logo, descartamos estandes e quiosques fixos, já que a praça não é tão extensa, e mecanismos móveis poderiam liberar mais espaço, quando a feira não estivesse acontecendo. Pensamos então em barracas modulares, como as de 3x3m, 4x4m, 5x5m, 4x6m, mas elas não combinavam bem com nossas propostas artísticas das esculturas interativas. Chegamos, por fim, na solução de juntar a ideia das barracas com as próprias esculturas: as formas das esculturas foram pensadas de modo que podem servir de estrutura para os usuários montarem lonas nos dias de feira. Essa lona armada enganchada nas partes da escultura forma a cobertura que constitui a barraca. Para tanto, dispomos algumas esculturas mais próximas umas das outras para dar essa atmosfera de feirinha. A feirinha foi pensada com o objetivo de ser uma fonte de renda, ou pelo menos um início, para os usuários que decidissem ir além no processo de desrualização. Além das esculturas interativas, pensamos a praça para ser diferente nos materiais também. Fora os blocos intertravados cinza e vermelho do piso, trouxemos o pedrisco, usado nos jardins internos dos prédios, para umas das pontes da praça. A cor escolhida para o pedrisco foi a ouro. Prezando pela acessibilidade, as duas pontes propostas são introduzidas por bloco intertravado vermelho, mas a última ponte, existente e de concreto, é introduzida pelo pedrisco ouro. Nosa intenção é que a interação do público com o espaço da praça seja mais eficiente. A movimentação, a locomoção e o percurso dentro do parque se torna consciente e deixa de ser automático, na medida que preciso olhar para baixo e mudar minha passada quando saio dos blocos firmes de concreto intertravados e passo para a leve desestabilidade das pequenas pedras soltas, rangindo entre si e com meus pés. A dureza do concreto e da pedra pode ser “quebrada” com a maciez dos gramados, que intermediam a fluidez da água corrente do Riacho Pajeú.

139


140


141


142


PAIO NADOR SAM RUA GOVER

DA POUSA L IA SOC

m

15.26

E PARQU 3 Ú E J PA

m

14.23

ada

partilh

com m 14.07 trecho via

APOIO O DE E PULAR TE PO N A R U A REST CENTR

INTO RUA P

PARQUE DAS CRIANÇAS

E PARQU 2 Ú E J A P

m

14.10

IRA

MADE

EIRA

ADUR

ENA M

RUA S

01

Planta Implantação/Situação ESC.

1:500



N PROGRAMA

Nº B

01

projeção vazio 25

26

20

21

15

14

18

19

16

17

F2

27

22

23

24

Estacionamento

13

12

11

10

09

01 projeção edificação

08

07

06

05

04

03

D

02 01

projeção limite praça

A

i=20%

projeção limite calçada

D

01

A

B

F1

Planta Subsolo ESC.

1:200



N

PROGRAMA

SO ACES S O R R CA ÃO DE M

B

D i=10%

18

vazio

19 15

14

13

24

Recepção

25

Restaurante

26

WC PNE

27

WC Feminino

28

WC Masculino

Lavanderia

29

Copa Lavagem

18

Carros-de-mão

30

Cozinha

Enfermaria

19

Canil

31

Gás

08

Escada/Elevador

20

Banho./Vest. Funcionários Fem.

32

Lixo

09

Sala Terapia Ocupacional

21

Banho./Vest. Funcionários Mas.

33

Carga/Descarga

10

Sala de Reuniões

22

Circulação Social

34

Recebimento/Pesagem

35

Guarda Equipamentos

11

Estar Funcionários

23

Circulação Serviço

36

Estoque Seco

12

Copa Funcionários

37

Antecâmara

38

Câmara Frigorífica

39

DML

40

Secretaria

41

Administração

42

WC PNE Funcioinários

43

Banho./Vest. Funcionários Fem.

44

Banho./Vest. Funcionários Mas.

45

Circulação Serviço Interna

46

Circulação Serviço Externa

01

Recepção

13

Coordenação

02

Sala de Apoio

14

DML

03

WC PNE

15

Oficina 01

04

Sala Assistentes Socias

16

Horta

05

Sala Pscicólogos

17

06

Sala Advogados

07

F2

20

17

22

12

11

21 10

09

42

plataforma acessível percurso inclinado

40

43 41

S

08 07

16

39

46

45

38

05

D

04

03 02

37

i=20

%

38

06

S

44

23

PROGRAMA

PROGRAMA

38

A 01

D

25

i=20

35

i=20

%

%

36

27

30

D

29

34

plataforma acessível percurso inclinado

24

26

28

O ACESS NTE A R U RESTA PULAR PO

O ACESS DE O CENTR APOIO

31 33

01

32

A ACESS O SERVIÇ O

B

ACES VEÍCU SO LOS

F1

Planta Térreo ESC.

1:200



N PROGRAMA

B

vazio

11

Escada/Elevador

02

Ateliê Aberto

03

Oficina 02

04

Sala de Aula

05

Oficina 03

06

Sala de Informática

07

Banho./Vest. Feminino

08

Banho./Vest. PNE

09

Banho./Vest. Masculino

10

Sala das Memórias

11

Armários Pessoais

12

Sala Multiuso

13

Circulação Social

14

Átrio

F2

10

01

12

09

telha sanduíche i=10% claraboia iluminação zenital

08

S

13 07

01

14 02 vazio

A 04 04

03

04

06

05

01

A

B

F1

Planta 1.Pavimento Superior ESC.

1:200



N PROGRAMA

B

vazio

11

Escada/Elevador

02

Espaço Relaxamento

03

Oficina 04

04

Salão Reversível

05

Oficina 05

06

Sala de Informática

07

Banho./Vest. Feminino

08

Banho./Vest. PNE

09

Banho./Vest. Masculino

10

Acesso Coberta e Cx. D'água

11

Oficina 06

12

Solário

13

Circulação Social

14

Átrio

F2

10

01

projeção pergolado

12

09

telha sanduíche i=10% claraboia iluminação zenital

08

S

13 07

01

14 02 vazio

A 04 04

03

04

06

05

01

A

B

F1

Planta 2.Pavimento Superior ESC.

1:200



B

N

2% ada i=

eabiliz

perm laje im

escada marinheiro

F2

acesso laje

escada marinheiro pergolado metálico aço pintado de branco

tampa de inspeção

telha sanduíche i=10% claraboia iluminação zenital

casa de máquinas elevador

A

laje

A

% a i=2

01

bilizad

ea imperm

B

F1

Planta Coberta ESC.

1:200



cx. d’água

pergolado metálico aço pintado de branco

+15.35m (29.45m)

casa de máquinas elevador

+12.90m (27.00m) +11.70m (25.80m)

+8.20m (23.30m)

+4.70m (18.80m)

+0.00m (14.10m)

acesso veículos

01

acesso serviço carga/descarga

cx. d’água

Corte AA ESC.

1:200

+15.35m (29.45m)

escada marinheiro

+12.90m (27.00m) +11.70m (25.80m)

+8.20m (23.30m)

+4.70m (18.80m)

+0.00m (14.10m) -1.60m (12.50m)

acesso serviço carga/descarga

estacionamento

02

Corte BB ESC.

1:200



pergolado metálico aço pintado de branco

cx. d’água

casa de máquinas elevador

+15.35m (29.45m) cobogó tipo b (detalhe d1)

cobogó tipo a (detalhe d1)

+12.90m (27.00m) +11.70m (25.80m)

guarda-corpo em alumínio branco

+8.20m (22.30m)

+4.70m (18.80m)

+0.00m (14.10m)

casa de máquinas elevador cobogó tipo a (detalhe d1)

pergolado metálico aço pintado de branco

cx. d’água

01 +15.35m (29.45m)

Fachada F1 ESC.

1:200

cobogó tipo b (detalhe d1)

+12.90m (27.00m) +11.70m (25.80m)

guarda-corpo em alumínio branco

+8.20m (22.30m)

+4.70m (18.80m)

+0.00m (14.10m)

cobogó tipo b (detalhe d2)

rampa acesso carros-de-mão i=20%

cobogó tipo a (detalhe d2)

cobogó tipo b (18x18x7cm)

03

Detalhe D1 ESC.

1:100

Fachada F2

02

portão acesso carros-de-mão

ESC.

cobogó tipo a (18x18x7cm)

04

Detalhe D2 ESC.

1:20

1:200



N

PROGRAMA

WC (PNE) Masculino

03

WC (PNE) Feminino

04

Coordenação

05

Sala Educadores Sociais

06

Dormitório Masculino Tipo A

07

Dormitório Masculino Tipo B

08

Banho./Vest. Masculino

09

Jardim

10

Refeitório

11

Cozinha/Despensa

12

Gás

13

Lavanderia

14

DML

15

Sala Segurança

16

Lixo

17

Carga/Descarga

18

Circulação Serviço

19

Circulação Social

20

Escada/Plataforma Acessível

17 18

16 14

13

12

15 05

11 04 03

10 D

19

01

09

pedrisco ouro

F3

02

banco de alvenaria

jardineira

ACESSO IAL ADA SOC S U O P

Recepção/Cadastro

C

01

ACESSO SERVIÇO

02 19

07

árvore existente grama

06 06 08

06 06

F4

20 06

D talude

C

plataforma acessível percurso vertical

01

Planta Térreo ESC.

1:200



N

PROGRAMA Escada/Plataforma Acessível

02

Dormitório Feminino Tipo A

03

Dormitório Feminino Tipo B

04

Dormitório Masculino Tipo A

05

Dormitório Masculino Tipo B

06

Banho./Vest. Feminino

07

Banho./Vest. Masculino

08

Banho./Vest. PNE

09

Estar

10

Circulação Social

11

Átrio

C

01

projeção beiral 30cm

03

08 06 vazio

07 02

04 04 vazio

02

09 vazio

D

11

F3

10 02

11 vazio

02 10

05 04

04 02 04 04 F4

01 04

vazio

D

plataforma acessível percurso vertical

C

01

Planta 1.Pavimento Superior ESC.

1:200



N tampa de inspeção cx. d’água

C

laje impermeabilizada acesso cx. d’água

laje impermeabilizada

vazio

beiral 30cm

F3

D

vazio

vazio projeção pavimento térreo

projeção pavimento superior

coberta ecotelha marrom i=20% F4

árvore existente

vazio

D

C

01

Planta Coberta ESC.

1:200



+7.50m (22.50m) +6.30m (21.30m)

+3.15m (18.15m)

+0.00m (15.00m)

01

Corte CC ESC.

1:200

cx. d’água

cobogó tipo a (18x18x7cm) cobogó tipo b (18x18x7cm)

+9.95m (24.95m)

cx. d’água cobogó tipo b (detalhe d3)

02

Corte DD ESC.

1:200

+7.50m (22.50m)

cobogó tipo a (detalhe d3)

cobogó tipo b (detalhe d4)

+6.30m (21.30m)

cobogó tipo a (detalhe d4)

Detalhe D4

06

ESC.

05

ESC.

1:20

+3.15m (18.15m)

+0.00m (15.00m)

03 cx. d’água cobogó tipo a (detalhe d3)

Fachada F3 ESC.

1:200 +9.95m (24.95m) +7.50m (22.50m)

cobogó tipo b (detalhe d3)

+6.30m (21.30m)

guarda-corpo em alumínio branco

+3.15m (18.15m)

+0.00m (15.00m)

04

Fachada F4 ESC.

1:200

Detalhe D3 1:100



escultura modelo 2

DA POUSA

escultura modelo 1

N

L

SOCIA

ponte existente (concreto)

pedrisco ouro

árvores existentes

bloco intertravado cinza

espaço academia ao ar livre piso pneu recilcado azul escuro

talude

grama

limite ZPA1

riacho pajeú

O

CENTR

OIO DE AP

E

TE URAN RESTA

bloco intertravado vermelho

ADA

TILH MPAR VIA CO

AR

POPUL

ponte madeira

01

Planta Parque Pajeú 3 ESC.

1:250



PARTE V CONSIDERAÇÕES FINAIS



14.CONCLUSÃO O hábito e a repetição da nossa rotina acabam nos levando a operar no modo automático. Não nos preocupamos nem atentamos para o que não é corriqueiro. A diferença nos incomoda. Ela nos exige uma energia maior despendida. A tecnicidade e a normatização têm nos puxado, ainda enquanto estudantes de arquitetura, para o lado da arquitetura racional sem humanidade. O problema não reside na racionalidade, mas no abandono das noções de vida e no enfoque total no racionalismo arquitetônico. A arquitetura não nasceu do prédio, não tem origem na matéria em si. A origem da arquitetura está no homem: na sua vontade e capacidade de modificar o espaço com suas próprias mãos até que esse lhe sirva bem. O espaço sem vida é apenas entidade metafísica, filosófica. O espaço é dota de arquitetura na medida que o homem lhe designa funções e tipificações. Existe uma necessidade que urge cada vez mais para retornamos à humanidade da arquitetura. A arquitetura nasce com o homem e acaba em nele mesmo. É necessário que busquemos, enquanto fazedores de arquitetura, a essência da vida no ato de projetar. O cliente, o público-alvo e os próprios projetistas e construtores precisam voltar aos seus lugares de foco do produto arquitetônico. Nossos prédios têm perdido seu sentido de vida porque temos esquecido das pessoas. A arquitetura não é absoluta em si mesma, na obra em si mesma. Ela é mutante e evolutiva como nós, conosco. Esse foi o cerne desse Trabalho Final de Graduação. Tentar recuperar o homem como centro da arquitetura. A cultura como causalidade arquitetônica. Um grupo-alvo como a população situação de rua, por suas demandas serem essencialmente sociais, proporcionou um bom exercício para essa prática mais humana da arquitetura. Suas demandas não técnicas, normativas, padronizadas. Pelo contrário, elas fogem do padrão. Às vezes, a solução arquitetônica não está na novidade, no inusitado, mas reside no tradicional, no familiar. Uma boa solução pode não ser aquela que ninguém costuma pensar, mas pensar conscientemente a natureza humana da cultura e da realidade na qual vivemos. A virtualidade e a ficção (por que não dizer a alienação?) têm nos jogado em estados, permito-me dizer, alucinatórios. Fora da realidade, nossos projetos não atentam mais para quem somos, mas para o que o prédio já é e, porque ele já é muito, ele pode te tornar muito também. Enquanto isso, esquecemos que o espaço é apenas por nós mesmos. A humanidade, a empatia, a solidariedade, a compaixão, o prazer, a beleza, o bem precisam voltar a compor a vida do nosso traço. Um exercício que podemos fazer, enquanto fazedores de arquitetura, é experimentar tentar voltar nossos olhos para o que temos diante de nós: as pessoas. Ouvir mais, sentir mais, tocar mais, experimentar mais, arriscar mais, receber mais antes de injetar mais, impor mais, decretar mais, ordenar mais.

171


A população em situação de rua é uma parcela que é dotada de uma urbanidade riquíssima, com diferentes mapas, diferentes direções, ruas diferentes, territórios diferentes, com uma cidade diferente. É uma cidade rica de vida e de estímulos que resiste à pobreza de espírito, à frieza calculista, à rigidez da manipulação e da padronização. É possível aprender uma arquitetura e um urbanismo diferenciados, se nos propormos a mudar os ângulos pelos quais enxergamos o mundo. Se conseguirmos fazer isso com as pessoas para quem projetamos, independente das características sociais, estaremos voltando a tocar a vida da arquitetura.

172


15.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Albergue da Boa Vontade. < http://www.geocities.ws/reidy_web/albergue.html > Acesso em 30 de maio de 2017. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. N. 5. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2007. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. N. 13. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2010. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. N. 16. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2014. CLEMENTE, Juliana C. Vazios urbanos e imóveis subutilizados no Centro Histórico tombado da cidade de João Pessoa. João Pessoa: UFPB, 2012. FÉLIX-SILVA, A. V., SALES, R. C. M., SOARES, G. P. Modos de viver e fazer arte de pessoas em situação de rua. Em Estudos de Psicologia, 21, janeiro a março de 2016, p. 46-57. GARCIA, Marília. Centro de Apoio ao Morador de Rua. Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, 2014. HALL, Edward T. A Dimensão Oculta. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1977. Hércules Barsotti. Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros, v.27. São Paulo: Folha de São Paulo, Instituto Itaú Cultural, 2013. Luiz Sacilotto. Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros, v.14. São Paulo: Folha de São Paulo, Instituto Itaú Cultural, 2013. Museu da Pessoa. < http://www.museudapessoa.net > Acesso em 27 de junho de 2017. PALLASMAA, Juhani. A Imagem Corporificada. Porto Alegre: Bookman, 2013. PALLASMAA, Juhani. As Mãos Inteligentes. Porto Alegre: Bookman, 2013. PALLASMAA, Juhani. The Eyes of The Skin. West Sussex: John Wiley & Sons Ltd, 2008.

173





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