Medo do Escuro: Ensaio sobre a Evidência Sonora

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Artur Dalim

Medo do Escuro: Ensaio sobre a Evidência Sonora Orientadores: Antonio Layton, Érico Araújo Lima e Pablo Assumpção

Brasil, Ceará, Fortaleza, 2021.


PONTO DE PARTIDA Este ensaio tem a intenção de analisar e tencionar os aspectos sonoros do filme Medo do Escuro1, de Ivo Lopes de Araújo, versão exibida na sessão especial Alumbramento do MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que aconteceu no ano de 2020, em celebração à produtora de cinema cearense Alumbramento. Exibido em versão online, durante o período de quarentena, uma questão mundial que ainda é fervilhante no recorte de tempo em que esta pesquisa é desenvolvida, a trilha musical fora previamente gravada e sincronizada ao material de vídeo. O filme teve sua estreia em 2015, no Festival de Tiradentes, com uma performance ao vivo, na verdade, essa trilha sonora sendo tocada ao vivo por músicos nos espaços os quais a obra era exibida, é uma singularidade de O Medo do Escuro, pensava para ser executada ao vivo em suas sessões, sendo assim uma lembrança aos moldes ancestrais de exibição cinematográfica, quando os filmes ainda eram somente atrações em vaudevilles, espaços de entretenimento dos Estados Unidos, nos anos 1930, em que aconteciam diversas atrações artísticas, sejam elas, teatrais e musicais e nesse sentido, a música tocada ao vivo nesses espaços incidiam nas projeções imagéticas exibidas simultaneamente, até então sendo somente imagens de curta duração com temáticas mais performáticas e paisagísticas. Medo do Escuro é uma produção cearense executada com apoio da Secretaria de Cultura de Fortaleza, gravado no Centro de Fortaleza em junho de 2013, como apresentado na cartela final. Pretendendo observar os atos ou não-atos de fala enunciados através do corpo e da instrumentação musical como aparato de desenvolvedor de uma narrativa e de linguagem, a partir da perspectiva de espectação da obra enquanto realizador audiovisual e corpo que frui de uma obra que admira.

FIGURA QUE ESCUTA E OBSERVA Enquanto pesquisador desta obra audiovisual, tenho sido sobretudo um espectador que observa o filme aparado do meu horizonte de expectativas e repertório sócio-cultural, e tencionado a partir de curiosidades pessoais e impulsos dentro do meu lugar no ramo do audiovisual, a trilha sonora ou a sonoridade num contexto geral me atravessa com maior fulgor. Sendo o som, o objeto principal das minhas diárias buscas e grande parte do material artístico, foi quase evidente para mim a necessidade de me debruçar na escritura de um gênero textual acadêmico como o ensaio para dar conta de esmiuçar os pormenores do que é a composição sonora dentro de uma obra audiovisual, e nessa escolha surge a necessidade de investigar esse elemento fílmico de Medo do Escuro. Como reflete Marie-José Mondzain (2012), essa escolha nasce particularmente dos meus interesses políticos, sociais e artísticos.

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Medo do Escuro (2015) é uma realização da produtora Alumbramento, dirigida por Ivo Lopes Araújo.

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Atribuo à emoção, e à emoção política, um papel fundamental: antes de tudo, os filmes que selecionei me tocaram particularmente. É enquanto espectadora, e não enquanto filósofa, que tive o desejo de partilhá-los com vocês. Assim, a energia política dos filmes não concerne apenas aos seus temas políticos, mas também às emoções políticas que eles suscitam, nos colocando na vizinhança com um sofrimento outro, com um prazer outro, com um mundo outro.2

O aspecto fundamental dessa ação de pesquisa se debruça à espectação, e nesse sentido, ponho-me diante da obra enquanto observador, que apesar de observar com proposital escuta sensível, olhos fugazes, ainda me localizo no mesmo lugar do espectador que recebe os estímulos plurisensoriais lançados ao longo do filme. Comolli (2008, p. 135) reflete a espectação como um jogo em que o espectador se lança e, dentro desse campo, ele poderá se mobilizar pelos sentidos corporais, ao que se submete quando se põe diante do objeto em observação. Ou seja, apesar das variações com que a ação de espectar tende sobre cada espectador, ela não é um lugar incólume, ela deixa vestígios. “Todos esses lugares do espectador têm em comum o fato de mobilizarem o olhar (combinado ou não à escuta), mas cada um se distingue dos outros por um sistema que obriga o corpo-espectador a uma relação definida e singular com a configuração espaciotemporal que ela coloca em jogo.3”

E nessa proposta, há uma interação entre os dois modos de recepção ao objetivo artístico como espectador: aquele observador e aquele estimulado, e nesse sentido, decido evocar o significado desses adjetivos. O termo observador4 é um adjetivo que se refere a quem observa, que presta atenção nas coisas, que obedece, que cumpre. O termo estimulado5 diz respeito àquele que recebeu estímulo, que foi incitado. A partir desses significados, aciono fabulações sobre esses postos assumidos para o que eu vou chamar de espectador. O espectador “observador” vive a experiência cinema em todos os seus atos sintomáticos, ele se põe à disposição do que está por vir e por fim resulta no receptáculo de informações dadas pela obra, o espectador “estimulado” segue assim os sentimentos do espectador observador, mas no entremeio disso, há o sagaz desejo de mergulhar nos fios condutores que tecem o objeto fílmico, a partir da busca por novas informações, curiosidades culminando num processo de pesquisa mais livremente interpretado, ou seja, podendo ser acadêmico, diarístico, jornalismo e outras formas de desdobramentos de uma pesquisa. Para traçar a análise sobre as evidências sonoras por meio da espectação, eu cruzo as duas linhas de raciocínio até chegar na unidade em que há o ensejo de interpretar com a minha própria escrita provocada, qual seria o possível destino desse som enquanto intermediador da realidade, sonho, narrativa e ausência. 2 3 4 5

MONDZAIN MARIE-JOSÉ, Construire un regard politique?, 2012, s/p. COMOLLI JEAN-LOUIS, Ver e Poder - A inocência perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário, 2008, pág. 135 Extraído do site: https://www.dicio.com.br/observador/ Extraído do site: https://www.dicionarioinformal.com.br/estimulado/

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MEDO DO ESCURO O filme “Medo do Escuro”, dirigido por Ivo Lopes Araújo6 disserta sobre a perambulação de um jovem moribundo nas ruínas de uma geografia pós-apocalíptica, se entranhando entre os restantes de matéria e vasculhando os ainda erguidos prédios dessa cidade possivelmente abandonada. Citando Angela Pryston (2015, p. 69), “Essas imagens de ruínas e de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real, mas, por outro lado, elas são muito evidentemente Fortaleza, inclusive como comentário furioso sobre o caos urbano brasileiro.” e Érico Araújo Lima (2016, p. 28), “Os contatos com um cinema de gênero, na perspectiva de uma subversão, são também o motor em Medo do Escuro, já numa vizinhança maior com a ficção científica e segundo um caráter pós-apocalíptico. Uma cidade desabitada e em ruínas é o que parece desencadear as assombrações e os mistérios aqui.” Nesse trajeto ruidoso e performático, o Cara — nome do indivíduo que resvala ao devaneio desse corpo, pois sem um nome próprio, essa figura materializada no corpo de um homem, se torna uma incógnita — encontra-se com outras pessoas que dentro da objeto fílmico relevam-se em posições de vilões e mocinhos. Na versão exibida para o MAM, nos primeiros segundos do filme há a apresentação dos músicos da Chinfrapala, responsáveis pela trilha sonora, ao que fica parecendo ser uma introdução clara ao público de que o som é um aspecto fundamental dentro da obra. Nessas imagens, podemos vê-los arriscando experimentações em seus instrumentos evidenciando a dimensão experimental dessa criação. Podemos ver três instrumentos: um saxofone, uma guitarra e um baixo, tocando ininterruptamente.

figs. 1 a 3 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Eis que surgem os primeiros tilintares de ambiências, ainda na sessão de créditos, também numa ação que suscita a ideia de introdução-familiarização do espectador sobre o terreno ao qual ele será guiado durante a jornada de exibição. Planos sobre a cidade são apresentados, são estáticos e essa característica influencia para que haja um processo de contemplação e fruição sobre espaço geográfico diegético.7

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“Ivo Lopes é integrante do Alumbramento desde sua fundação. Nasceu em Fortaleza, teve uma infância feliz cercado de amigos, primos e tios. Sempre gostou de viajar e da natureza, hoje faz filmes e fotos, adora gente e acima de tudo ama a música”. A (co)existência alumbrada, 2016, p. 8. 7 “No contexto do cinema, diegese é o termo que se emprega para fazer referimento ao conjunto de elementos que caracterizam e integram a narrativa fílmica, tais como o tempo, o espaço, os signos sonoros e outros, que delimitam o denominado “universo diegético”.” Extraída do site: https://cinemarte.wordpress.com/2016/05/12/o-que-e-diegese/

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figs. 4 a 6 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Cara (Jonnata Doll), personagem principal, aparece em seus primeiros segundos de tela, escalando um prédio até alcançar um andar e dentro da edificação, meio suja e baldia, ele vasculha pela pilha de objetos soltos gerando atividades desconhecidas.

figs. 7 a 9 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Flashs luminosos transitórios são projetados, e, ao fundo ainda ressoa a instrumentação "dark"8 instigando os sentidos auditivos-visão como dispositivos sensoriais. Esses flashs também dão a dimensão de apresentação para o aspecto de prisma, que é um recurso estético aplicado com frequência no filme, principalmente pela grande utilização de espelhos e objetos reflexivos. Entre esses flashs, surge a Aparição (Themis Memória), em seguida, podem ser ouvidos sons de sino que nesse contexto, evidenciam a sensibilidade do que estamos observando. O figurino da personagem reforça essa camada, pois o seu material cintila ao seu arrebatado pelas luzes.

figs. 10 a 12 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Cara dá início a sua desventura cidade adentro e nesses planos a seguir, é possível observar os aspectos pós-apocalípticos desse espaço justamente pelas ausências: ausência de pessoas, ausência de cuidado, ausência de vida. Seus passos são desconexos, não seguem uma linha reta, na verdade, há um caminhar pelas transversais, sendo visível a ação de perambulação entre esses espaços inóspitos. A base da trilha musical ainda toca retumbando os tons graves dos instrumentos, agora aglutinados aos sons agudos de objetos com a materialidade próxima ao vidro e metal. Esses são os sons característicos de Cara.

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Termo utilizado pelos próprios músicos para descrever a sua sonoridade. Extraído do site: https://chinfrapala.bandcamp.com/

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figs. 13 a 15 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Um sino toca e esse som costura a primeira relação entre Aparição e Cara. A montagem dos planos em sequência, também é uma característica importante para essa amarração. Um sino mais uma vez toca, há uma sobreposição dessa interação.

figs. 16 a 19 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Abruptamente, o som mais agressivo semelhante ao ronco de um motor é executado, em consequência da instauração da imagem de Scarface (Solon Ribeiro) e os seus capangas em uma estação de trem abandonada. Esses personagens, recebem os papéis de vilões da narrativa, pois somente eles atuam em contraposição ao Cara, e assim, dão embasamento para essa sonoridade selvática industrial.

figs. 20 a 23 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Primeiro ato de conflito entre os dois. Os roncos de motores vão desacelerando ao longo do fim do conflito.

figs. de 24 a 26 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

A Garota (Nataly Rocha) surge sendo uma peça do topo de um prédio, sua imagem apresenta fragilidade e medo, como se vivesse atormentada por angústias até então desconhecidas. O ressoar de sirenes persistentes são a sua trilha musical, apresentam similaridades às batidas de um coração.

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figs. 27 a 29 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Os planos seguem exibindo os gestos de Cara com espelhos, na intenção de buscar um algo, que culmina na presença de Aparição. O background sonoro dá espaço às micro sonoridades características de Cara, que são ruídos metálicos e "vidrosos"9. Sino estridente ressona, Aparição surge no ponto alto dos prédios. A linguagem entre ela e Cara é configurada a partir dos pedaços de espelhos que cada um carrega consigo. Logo ela desaparece.

figs. 30 a 33 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

No coração de uma das edificações abandonadas expostos por planos desse cenário, pode-se ouvir sons de sibilância e suspiros, e essa é a trilha sonora de Sr. Hiena (Uirá dos Reis), ele e Cara depararam-se um ao outro. A movimentação entre ambos é indistinguível.

figs. 34 a 37 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Numa corrida desesperada, Garota foge de Scarface, mas é inevitavelmente capturada. Toadas de sirenes e roncos de motores se sobrepõem à base dark da trilha musical. Cara e Garota juntos dão um jeito de escapar pelos esconderijos da cidade. E mesmo nessa tentativa, são brutalmente golpeados por Scarface. Rufos bagunçados de bateria são tocados enquanto o ato de brutalidade é consumado.

figs. 38 a 41 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

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Utilizo esse termo para tentar explicar o som de vidros em fricção.

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Garota salva a si e ao Cara. Agora escondidos em meio à escuridão, Cara e Garota são acessados por Aparição e a sonoridade agora parece arrefecer, dando espaço à suavidade de tocar de sinos.

figs. 42 a 44 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

A trilha sonora suave é palco para a dança entre Cara e Aparição. O fundo musical tranquilo e ameno diluem a tensão até então presente fortemente na narrativa, para uma performance deleitante entre esses dois personagens. A gestualidade é tão serena que cria-se então a intenção de romance, de admiração. Os dois parecem rendidos aos movimentos trocados ali e a atmosfera de mistério é também uma camada presente nessa peça.

figs. 45 a 48 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Cara retorna para o terreno de Scarface e lá consagra o seu final resultando em uma dança performática sobre os pedaços de espelhos espalhados sobre o chão, o seu corpo vibra não só em movimentos, mas em brilhos cintilosos.

figs. 49 a 52 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

Scarface aparece, mas abruptamente, Garota aparece e o apunhala com uma lança.

figs. 53 a 55 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

A trilha sonora do agora tem aspectos estruturados de musicalização, como se durante toda a sua apresentação ao longo do filme fossem ranhuras que desaguariam neste ato final.

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figs. 56 a 59 - Frames do filme Medo do Escuro, Mostra Alumbramento 2020.

O instrumental e a performance se imbricam e com isso, resulta no estopim de todo o processo construído pela linguagem audiovisual dessa jornada heróica. Numa última intenção de tentar narrar a história de Medo do Escuro, abro espaço para uma citação de Ivo Lopes (2016, p. 193), que traça referências para que haja a possibilidade de marcar estilos: “Juntar o [Sergei] Paradjanov com a Nico dá no Medo do Escuro.”

CARTA DE PARTILHA Fortaleza, 17 de março de 2021. Querido Ivo, escrevo sobre o seu filme como um manifesto de admiração. Querida Camila, inspirado no seu ato de escrita desenvolvido em Alegoria, Ruína e Sonho10 e seus atravessamentos pessoais, quase como uma escrita diarística sobre o Medo do Escuro, tomo coragem a partir desse princípio a indagar particularmente sobre as incidências de Medo do Escuro em mim. O meu primeiro contato com Medo do Escuro se deu por meio virtual em uma exibição que comemorava obras da produtora Alumbramento, promovidas pelo MAM, já no segundo semestre do ano de 2020. O contexto de confinamento não permitiria que essa mostra pudesse acontecer em formato presencial e se há um sentimento que eu possa traduzir esse impedimento, ele é de dualidade. Desenvolvo a seguir. Se assim fosse possível exibi-lo pessoalmente, essa se daria no espaço físico do museu que está localizado na cidade do Rio de Janeiro e então, esse contato estabelecido entre eu e o Medo do Escuro não seria possível. No entanto, ao assisti-lo no formato virtual perdi a dimensão experimental que é particular à obra: a execução ao vivo. Citando Ivo Lopes (2016, p. 194): “O Medo do Escuro é meio orquestra, né? É tipo uma sinfonia pós-industrial.”, e esse dispositivo sonoro tão específico, é como uma membrana celular do sistema orgânico de Medo do Escuro, experienciá-lo chega a ser crucial para poder desfrutar dessa peça cinematográfica única. Talvez seja injusto ser reducionista nesse sentido, até porque, mesmo não tendo tido a oportunidade de assisti-lo em uma sala de cinema, a obra é frutífera para mim em vários aspectos da minha vida profissional e pessoal.

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Alegoria, Ruína e Sonho. Mostra Alumbramento. Fortaleza: Aguaboa Cultural, 2016, p. 102-103.

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Quando o material fora divulgado na internet pelo Uirá dos Reis, um dos atores do filme, não tinha uma informação sequer a respeito do filme, a não ser o fato de ser uma produção Alumbramento e como um fã tratei de acessá-lo. Em síntese, fui arrebatado pela trajetória que o som ia percorrendo ao longo da obra, principalmente influenciado pelo meu interesse pessoal sobre musicalidade em todas as possíveis linguagens artísticas. Medo do Escuro é sobretudo uma obra de arte sonora e por isso, não foi difícil me apaixonar a partir do primeiro contato. A complexidade em que cada camada é construída, além da sutileza em que todas elas vão se entremeando, as suas especificidades em momentos pontuais do filme, a peculiaridade de não ter medo de quebrar as regras e a inventiva ideia de executá-la ao vivo, foram as causalidades para que agora eu esteja desenvolvendo esta pesquisa e esta carta. Acho que além da coincidência entre a minha paixão e a sua sonoridade, percebo que a minha aproximação também fora facilitada pela identificação de um cinema que vem de casa, vem do Fortaleza, que desponta mesmo sobre as agruras que é realizar audiovisual onde os recursos são mínimos. Fecho esta carta, usando as palavras de Camila11 (2016, p. 102), por me sentir contemplado pelas mesmas, mesmo que não tenhamos tido a sorte de poder usufruí-lo pelo mesmo dispositivo: “Já faz algum tempo que Medo do Escuro reverbera em mim, desde aquela exibição surpresa em Fortaleza. Saí da sessão me perguntando o que tinha acabado de ver. Ou melhor, o que tinha acabado de sentir…”

CORPO E LINGUAGEM A obra compõe em seu elenco um conjunto de músicos, dançarinos e dançarinas para interpretarem a narrativa a partir da movimentação dos corpos, aspecto esse fortemente perceptível pois, o deslocar dessas figuras em cada cenário, se desdobra em formas plurais, sendo gestos mais abrangentes ou mais contidos, de toda forma fluidos, que deixam vestígios, como se a interação gerada entre esses elementos materiais (corpo-espaço) fosse contínua, não somente pelo tencionar das ações, mas também pelo auxílio do aparato cinematográfico da fotografia, que nesse sentido, é pautado pelo frequente uso de planos estáticos e abertos, como se a intenção fosse situar o olhar na geografia espacial daqueles cenários, pois eles são aspectos contadores dessa história. Nesse sentido, causa-se a impressão de que projetar o corpo como a utilização de linguagem ou ato de fala, gestualiza uma outra forma de imaginar o silêncio da palavra. A partir da construção dos gestos, a corporeidade lança intenções performáticas de fala como suas próprias questões e sentimentos. Flusser (1994, pgs. 40-41) tenciona a atuação do corpo como produtor de conversação linguística através dos gestos, como o interlocutor do espírito humano, que em Medo do Escuro se desenrola em musicalidade e movimento. 11

Alegoria, Ruína e Sonho. Mostra Alumbramento. Fortaleza: Aguaboa Cultural, 2016, p. 102.

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"¿es tal vez todo el cuerpo el productor de la conversación lingüística, es decir, de lo que se llama »espíritu«? O más bien hay que ver el cuerpo en su conjunto, y los órganos lingüísticos en particular, como una síntesis de materia y espíritu, como una revisión recíproca de la convención lingüística y del organismo de los mamíferos en su desarrollo histórico?12”

Continuando a pensar sobre gestualidade, Marie Bardet (2019, p. 89) proporá que os gestos não podem ser considerados somente pela ótica biológica do corpo, ele é sobretudo um conjunto de relações que ela decide apontar como corpo/objeto/força/contexto. “Se recupera la especificidad de pensar en términos de gestos en un sentido muy preciso: cada gesto, cualquiera sea, no solamento es estudiable desde el punto de vista de un cuerpo biológicamente concebido desde su biomecánica, y mucho menos

desde

su

anatomía,

sino

como

una

relación

13

cuerpo/objeto/fuerza/contexto. ”

Ainda em Bardet (2019, p. 91), agora debruçada sobre conceitos de Deleuze, os gestos são as conexões entre a técnica-estilo e corpo-espírito. “En este sentido, los gestos son - y Deleuze lo vio muy bien - modos de relación más que una mera forma corporal, un “estilo” para usar de cierto modo una técnica, o más bien, un estilo junto a una técnica, un cuerpo junto a un espíritu.14”

Pensando nos gestos como um elo entre o corpo e o espírito, esses personagens não recebem títulos ou nomes próprios, para além das cartelas de crédito exibidas no fim do filme, sendo assim figuras misteriosas que dispensam o convencionalismo das apresentações formais, são como peças teatrais fantasmagóricas dentro do aspecto do vídeo percorrendo rumos para dentro da Fortaleza pós-apocalíptica do diretor Ivo Lopes Araújo. A musicalidade e sonoridade dentro da obra fílmica é constante, ocupando o protagonismo vococêntrico15 presente em demais outras peças cinematográficas normalmente desempenhadas pela figura humana apresentadas como ponto principal.

12

FLUSSER VILÉM, Los Gestos - Fenomenología y comunicación, 1994, págs. 40-41. BARNET MARIE, Hacer mundos con gestos, 2019, pág. 89. 14 BARNET MARIE, Hacer mundos con gestos, 2019, pág. 91. 15 CHION MICHEL, A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema, 3ª edição, 2000, pág. 13. “Afirmar que, no cinema, o som é maioritariamente vococêntrico significa lembrar que, em quase todos os casos, favorece a voz, evidencia-a e destaca-a dos outros sons.” 13

11


INSTRUMENTO MUSICAL E LINGUAGEM Aparato da estética de “cinema mudo”, se desenrola a partir da ausência de sons fixos dentro do filme, pois, cada sessão se dá pela construção de uma instrumentação ao vivo feita por uma orquestra. A sonoplastia de Medo do Escuro emprega para cada personagem um elemento sonoro característico, desempenhando as camadas psicológicos e de personalidade desses indivíduos, deixando claro a não dependência de palavras ditas para que os personagens possam ser esclarecidos enquanto contadores de suas ou outras histórias no recorte de tempo do filme. Como o som, nessa obra, cumpre o papel de enunciador do que não foi pronunciado, cabe a ele dar forma aos pormenores aspectos de personificação dos corpos exibidos em tela, ou seja, há uma aproximação entre as personalidades dos personagens com a escolha dos elementos materiais para a criação da trilha sonora. Como exemplo disso, o som que se apresenta quando Scarface aparece em quadro, são similares ao som de motosserras, que ao mesmo tempo, parecem motocicletas, e no contexto social patriarcal, são dimensões que figuram a persona masculina em sua essência primordial. Dentro da história, esses personagens são opressores e violentos, bem como a sonoplastia que os acompanha. Ainda analisando os aspectos pormenorizados dessas trilhas específicas, outros exemplos são os sons da Aparição tem sons de sinos latentes, se faz sentido quando esta personagem se apresenta em um lugar distante como se fosse uma miragem, ou uma entidade mística que o Cara, jovem perambulador observa no topo dos prédios, em prismas fantasmagóricos, e esses sinos se alinham à imagem sensível dessa figura; Sr. Hiena que vive nas entranhas escuras em um dos prédios abandonados tem som de sibilância como se a sua boca emitisse o ato de chupar ossos e longos suspiros, sustentando o suspense presente na sua interpretação que tem aspectos estéticos próximos aos filmes de suspense e ficções-científicas setentistas, evidenciados pela cor vermelha e silhuetas marcantes; a Garota que se apresenta como uma criatura aviltada desse prédio, a peculiaridade de sua sonoplastia está no som de sirene que é cadenciadamente mais acelerado como se houvesse a intenção de emular as batidas do coração em ondas ruidosas, para destacar a sua angústia em relação ao personagem Scarface e mesmo que esse ruído se apresenta em segundo plano, ou seja, somente uma camada da unidade sonora que não apresenta numa tonalidade principal, essa peça de background nunca se desconfigura, sendo a sua proposição estética até o fim. Assim, me debruço sobre o conceito de José Miguel Wisnik (1999, p. 28) que pondera o som como uma unidade que estabelece as materialidades em um elo com a espiritualidade e, por conseguinte, entender que essas atitudes propostas pelos sons peculiares de cada personagem dão a conexão entre suas figuras corpóreas e aspectos intrínsecos às suas personalidades.

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“O som tem um poder mediador, hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível.16”

A unidade geral sonora na obra é construída por uma orquestração de instrumentais como uma guitarra e baixo com pedais de distorção e um saxofone mixado na mesma aparência, dando a impressão da anunciação de sombras desconhecidas e nebulosas, ou seja, é a partir disso que começamos a tear a idealização dessa cidade pós-apocalíptica apresentada nos planos a seguir. Assim como a música concreta de Pierre Schaeffer propõe a criação de sons a partir de objetos não-instrumentalizados, as figuras expostas no ato dramático também revelam a identidade do áudio pela perspectiva da sua essência material e não pela literalidade existencial diegética ou pela exposição dentro de campo, ou seja, é imaginada a existências de objetos metálicos, em decorrência da imagem poluída da cidade e assim, não é preciso ver, por exemplo, uma chapa de ferro para que possa ser entendida a sua presença enquanto energia que desperta a vista, ou escutar o crepitar de chaves mesmo sem vê-las, identificá-la diacronicamente à materialidade apresentada ao olho pela direção de fotografia e assim é possível distinguir a sua familiaridade, em sincronia pictórica à aparência cinzenta e abandonada da cidade de Fortaleza. Logo nos minutos iniciais do filme, há um fundo ainda dessa instrumentação meio grave e distorcida, ao seu plano de fundo uma imagem totalmente preta - ou a falta de imagem -, sobreposto por alguns dos pequenos ruídos que serão peça-chave da contação dessa narrativa, que eu consigo considerar como objetos de vidro, misteriosos e a mescla entre outras matérias metálicas. O choque entre o vidro e o metal em total confusão, encontram em si aspectos sincrônicos com a formação ideal do que observamos em tela: a aparência cinzenta e abandonada da cidade de Fortaleza, que, ao mesmo tempo estão em sintonia, no sentido de que acompanham com a movimentação corporal da personagem principal e diacrônico, pois não há uma ordenação em relação à sincronicidade da imagem. Nancy (2014, p. 24), “Entre a vista e o olhar não há reciprocidade.” objeta esse sentido de coincidências mesmo que não haja uma relação evidente. A constância dramática do fundo musical demarcada por uma aparência distorcida, grave, “dark”, são sobretudo pano de fundo para a atmosfera melancólica da solidão travada por cada personagem, que perambulam por um espaço sem esperanças, guiadas por Cara, uma figura a princípio frágil, mas que demonstra noção de força e destemor quando se é confrontado. Há cada troca de contato entre as personagens, o fluxo musical desvia seu sentido para dar nuances características a cada história ali apresentada, são desvios mínimos, alguns elementos adicionados à camada principal de constância sonora criada para embasar todo o contexto do início ao fim. Wisnik (1999, p. 27-28) então decide fabular sobre essas tessituras sonoras:

16

WISNIK JOSÉ MIGUEL, O Som E O Sentido: Uma outra história das músicas, 1999, pág. 28.

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“Aliás, uma das graças da música é justamente essa: juntar, num tecido muito fino e intrincado, padrões de recorrência e constância com acidentes que os desequilibram e instabilizam. Sendo sucessiva e simultânea (os sons acontecem um depois do outro, mas também juntos), a música é capaz de ritmar a repetição e a diferença, o mesmo e o diverso, o contínuo e o descontínuo.17”

No ato final da sua jornada enquanto andarilho da cidade vazia, Cara faz uma dança no pátio do ferro-velho vazio onde é sempre localizado o ponto de confronto entre ele e Scarface. Nesses passos mais alongados, de gestualidades marcadas brutalmente, Cara aparenta liberar toda a energia cansada, por tantos trajetos percorridos, e assim como a dança marca a ação finalizadora, quando a música dessa performance final é tocada, é possível interpretar que durante toda a narrativa, os sons tirados do instrumentos eram afinações, ou gestos construtores da força total, para que só no final viesse a ser deslanchado o arranjo musical, culminando não só no ato final da imagem como o ato final sonoro, decididamente proposto intrinsecamente pelos músicos.

ATO FINAL Nesse processo ensaístico, transitado pelas múltiplas percepções do espectador e pesquisador decidido a investigar uma obra, percebo que Medo do Escuro atravessa a linha da idealização estética pessoal, em que o som é peça principal norteadora de um universo polissêmico, em que as histórias se cruzam como vultos fantasmagóricos e ao mesmo tempo, campos de batalha em que a sobrevivência é mera peça utópica em suas existências moribundas. É nessa narrativa que a força pormenor de cada materialidade é evidenciada numa teia sonora construída por micro-intenções de cada ação ou imaginação, geradas pelo público e pelos atores e atrizes dentro da obra. É por fim, um ato de lealdade entre atuação e sentimentos, todos conectados pela sensorialidade da trilha sonora montada ao vivo, a olhos nus, a cada temporalidade distinta.

BIBLIOGRAFIA BARDET, Marie. In: Hacer mundos con gestos. El Cultivo de los Gestos - Entre plantas, animales y humanos e Hacer mundos con gestos. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2019. pg. 89-91. CHION, Michel. In: A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema, 3ª edição. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2000. p. 13. COMOLLI, Jean-Louis. In: Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 135. 17

WISNIK JOSÉ MIGUEL, O Som E O Sentido: Uma outra história das músicas, 1999, págs. 27-28.

14


FLUSSER, Vilém. In: Los Gestos: Fenomenología y comunicación. Barcelona: Editorial Herder, 1994. pg. 40-41. HISSA, Celina, DE PAULA, Silas. In: A (co)existência alumbrada. Mostra Alumbramento Fortaleza: Aguaboa Cultural, 2016, p. 8. LIMA, Érico Araújo. In: Vida Longa aos Filmes Alumbramento. Mostra Alumbramento. Fortaleza: Aguaboa Cultural, 2016, p. 28. MONDZAIN, Marie-José. In: “Construire un regard politique?”. Agosto de 2012. Fala transcrita da autora.

Disponível

em:

http://leblogdocumentaire.fr/cinema-documentaire-lussas-seminaire-construire-un-regard-politiqu e-avec-m-j-mondzain-12/. Acessado em: 08 de março de 2021. NANCY, Jean-Luc. In: À escuta. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2014. p. 24. Trad.: Fernanda Bernardo. PRYSTON, Angela. In: Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo. Pernambuco, 2015, p. 69. VIEIRA, Camila. In: Alegoria, Ruínas e Sonho. Mostra Alumbramento. Fortaleza: Aguaboa Cultural, 2016, p. 102-103. WISNIK, José Miguel. In: O som e o sentido - Uma outra história das músicas, 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 27-29.

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