Traços de um rio : Caderno de Viagem

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TRAÇOS DE UM RIO CADERNO DE VIAGEM Artur Monteiro ArturSgambatti Sgambatti Monteiro VladimirOspina Ospina Rodriguez Vladimir Rodriguez



TRAÇOS DE UM RIO Caderno de viagem


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Artur Monteiro e Vladimir Ospina

TRAÇOS DE UM RIO Caderno de viagem

EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2017

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Copyright © Artur Monteiro e Vladimir Ospina Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores e autores. EDIÇÃO Larissa Soares REVISÃO Edite Angela Rothje e Vitor Tagor de Magalhães Monteiro ADAPTAÇÃO DE CAPA E PROJETO GRÁFICO Artur Monteiro, Vladimir Ospina e

Caminhos Gerais Produção Gráfica IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Multifoco

Traços de um rio: Caderno de Viagem MONTEIRO, Artur OSPINA, Vladimir 1ª Edição Janeiro de 2017 ISBN: 978-85-5996-461-5 www.tracosdeumrio.com.br Editora Multifoco Flaneur Edição, Comunicação, Comércio e Produção Cultural LTDA. Av. Henrique Valadares, 17b - Centro 20231-030 - Rio de Janeiro - RJ Tel.:(21) 3958-8899 contato@editoramultifoco.com.br www.editoramultifoco.com.br

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TRAÇOS DE UM RIO Artur Monteiro Gestor ambiental e urbanista, atua na área de conflitos socioambientais e planejamento urbano. Crê na arte como potencializador das relações humanas e no toque dos traços e cores ao retratar a história, a terra e suas pessoas. É desenhista e ilustrador retratando o cotidiano e seus dilemas. Trabalha com a ONG Fundação Vitória Amazônica. Vladimir Ospina Diplomado em arquitetura e ilustrador. Empregado na ONG Coral Guardian. Procura, através de seus trabalhos em diferentes territórios estrangeiros, um entendimento das diversas estratégias de antropização.

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A todos, tantas e tantos, cuja lama marcou, modificando o caminho, e a seus novos passos. Como em todo encontro existe uma mais ou menos longa cerimônia de adeus, que neles se guardem o sincero valor da verdade.

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Apresentação – Traços de um Rio Dois ilustradores em busca de histórias que não viraram notícia e das vozes que também não foram ouvidas. Uma expedição à procura de respostas e de sentidos para o maior crime ambiental do Brasil. Uma viagem pela bacia do rio Doce, entre o Espírito Santo e Minas Gerais. Um percurso alimentado pela arte e pelo diálogo. Um amargo sentimento que mergulha na incerteza do futuro. E um objetivo: procurar nas nuances do desastre e no cotidiano de pessoas comuns de carne e osso uma fonte de inspiração para “dramatizar as causas”.

Após a passagem de milhões de litros de lama tóxica e com um olhar atento, os autores trazem à tona uma memória ilustrativa e sensível do drama vivido pelos povos do rio Doce após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana-MG. São pequenas histórias, relatos, perguntas e silêncios vividos em diferentes cantos do rio, descrições, desenhos e cores que revelam a impunidade do desastre na forma de traços. São traços de vida, traços despedaçados, traços de um povo, traço de uma morte lenta, que nos arrancam indignação e espanto diante das ilustrações e relatos deste livro.

O surfista que jamais abandonou o mar; Regência maravilhosa, terra do Caboclo Bernardo, tingida de vermelho. Uma comunidade ribeirinha etnicamente diferenciada, fissurada pelos cavalinhos do petróleo, tingida de vermelho. Um trecho à beira rio , de fazendas abandonadas e terras maltratadas, mas com um povo que luta pelo rio e pelas lagoas, assentamento Sezino Fernandes, tingido de vermelho. Um povo, um rio, Watu, um povo guerreiro “com cabeça na terra”, os Krenak, tingidos de vermelho. Um homem e um rio, uma história de convivência, o pescador sem o rio e o barco sem pescador, tingido de vermelho.

O caderno de viagem ilustrado e narrado aqui apresenta um pequeno memorial tingido pelo vermelho ferruginoso da lama tóxica que percorre o rio Doce desde 5 de novembro de 2015, de Mariana à Regência. Como testemunhas atentas, Artur e Vladimir tocam, com suas ilustrações, os sentidos mais profundos deste desastre e nos convidam a pensar: quanto vale um rio? Quanto vale uma vida?

Do litoral aos interiores, no campo ou na cidade, na terra ou no asfalto, entre homens, mulheres, crianças, agricultores, pescadores e indígenas, Traços de um Rio, de Artur Monteiro e Vladimir Ospina, revela a estética de um povo que perdeu sua morada.

Com uma personalidade artística, Traços de um Rio, de fato, criou uma vida própria e uma narrativa singular que nunca deixará o crime cair no esquecimento. Esta viagem de afeto e compromisso, por este fascinante rio, ganha com as ilustrações diferentes personagens, histórias, paixões, dilemas, paisagens e uma boa dose de realidade. Eduardo Barcelos - 12 de dezembro de 2016 3


AQUECENDO OS MOTORES Quinta-feira, cinco de novembro de 2015, o dia em que o maior crime ambiental do país teve início. A barragem de fundão, uma das maiores reservas de rejeitos da mineração de ferro sobre a terra, se rompeu liberando toneladas de lama e lixo tóxico no rio Gualaxo do Norte; diversos distritos de Barra Longa e Mariana tiveram suas casas enterradas e diversas vidas levadas; por cerca de 200 quilômetros, a lama, que descia a velocidade avassaladora e volume assustador, comeu as margens do rio e suas encostas foram cortadas, deixando uma cicatriz aberta; pouco abaixo da junção com o rio Piranga, já chamado rio Doce, a lama é contida no reservatório de Candonga, comprometendo uma usina; desse ponto em diante a destruição se dá pela contaminação em suas diversas formas. Hoje o Rio Doce está contaminado em toda sua extensão e milhões de pessoas foram atingidas pela inutilização da água, em seus vários usos: consumo, irrigação, pesca, lazer, surfe. As ilustrações aqui apresentadas refletem as impressões e pesares de: Regência Augusta, onde um povo sem seu velho caboclo, Bernardo, passou a não mais pescar e surfar; de Areal, onde botocudos não reconhecidos dependem de galões de água e de farinha com açúcar para repor o que o rio lhes dava; de Tumiritinga, onde assentados em sua mais diversa defesa do rio são atacados diariamente e agora impedidos de produzir; de Sem Peixe, que viu concretizada a profecia primeira de seu nome; de Paracatu de Baixo, em Mariana, onde, de suas dezenas de famílias, pouco mais de 5 pessoas continuam a viver em suas casas; e, de toda uma população não entendida, vista como inexistente pelos interesses maiores que faz calar um povo em toda sua riqueza, manifestação e cultura. 4


O presente levantamento afetivo do Doce evidencia alguns dos principais conflitos sociais e ambientais que se desdobram em toda a calha do rio e alguns rostos representativos de muitos brasileiros , que recorrentemente são violentados em suas formas de viver, mais que pelo esquecimento, pela indiferença. Todo o material foi produzido ao longo de 15 dias pelo meu grande amigo Vladimir e eu. A princípio, o propósito primeiro da viagem consistia no levantamento de dados referentes ao impacto do desastre-crime em seus desdobramentos sociais, e decorrente vulnerabilidade dos atingidos. Seguiríamos, ao longo de janeiro de 2016, por todo o rio, por comunidades, assentamentos e pequenas vilas de pescadores, em busca de lideranças e descrição do ocorrido por suas vozes. Segui sozinho à Vitória com minha moto, Arana, companheira de estradas, de uso justificado pelo ideal expedicionário do projeto e também pela experiência da distância, evidente nas relações entre os grandes centros do país e o Doce. Acertei detalhes e metodologia a ser empregada com Bianca e Dante Pavan, socióloga e biólogo do GIAIA (grupo ativista para o qual fizemos os estudos), amigos que ofereceram grande apoio ao longo da viagem e orientação nos estudos a serem feitos. Fui pelo litoral, tendo Regência como primeiro destino e lá, encontrando Vlad, percebemos como as ilustrações e nosso trabalho artístico seriam extensão de nossa vivência. Não apenas como prática cotidiana, mas como ferramenta de expressão poderosa nesse momento onde sutilezas se perdem na destruição.

Nossos primeiros dias na foz do Doce foram marcados por alguns fatores importantes que definiram o restante de nosso trabalho como um todo. Em primeiro lugar, o forte cheiro de ferro que lembrava a ferrugem e a morte do rio, anunciada e concretizada em tudo que se vê; o alaranjado de tudo, que junto ao forte odor conferia ao rio o caráter de sangue em veia aberta de uma terra em pranto; e, certamente, a companhia e orientação de Hauley Valim, sociólogo, surfista e grande conhecedor de toda a foz do rio Doce, suas dinâmicas e histórias. Certamente esse primeiro e forte contato proporcionou a tônica pretendida para os dias por vir e direcionou nossas intenções para o trabalho na região a se conhecer. Um rio para se ouvir Buscamos não apenas ouvir relatos e conhecer o ocorrido, mas também compreender povos e suas histórias, lendas, vontades e sonhos. Além disso, todo desastre influenciou o trabalho aqui produzido, suas dores são nossas e por elas atuamos. O desenho, pelo seu método de concepção, nos expõe às diferentes nuances e sentimentos frente ao rio. Buscamos, desta forma e sob tal influência, nos sensibilizar para uma das questões mais delicadas do Brasil: o esquecimento recorrente de verdades e povos tradicionais e vulneráveis, assim como o impacto terrível a que milhares de famílias estão submetidas e aí deixadas diária e recorrentemente. Artur Monteiro & Vladmir Ospina

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“Há quem acredita que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como desafio candente, sobre as consciências dos homens.” Eduardo Galeano


CADERNO DE VIAGEM


REGÊNCIA MARAVILHOSA Km 753

Sábado - 09/01/2016 Após sair de Vitória, concedendo à viagem o tom de início, enfim veria o rio, já conhecido por mim, e agora outro... eu me senti gratificado, especialmente por ter percorrido o caminho que separa a capital da foz do Doce pelo litoral. Da serra em diante toda costa é marcada pela existência de cidades turísticas que vão diminuindo trecho a trecho, ao passo que o vento permanece forte e constante. A população tradicional, e agora mais carente que nunca, passa a ser absoluta próxima ao rio, onde se presencia uma riqueza de ocupação completa. Desde acampamentos e assentamentos do MST, terras indígenas, remanescentes quilombolas, um porto, poços de extração de petróleo e uma das maiores fábricas de papel e celulose do país. À medida que a diversidade de minha terra vai se reforçando, a presença de grandes projetos, do governo ou privados, se faz generalizada, sendo seus impactos tão absurdos quanto claros. Mais que em nossas cidades, aqui se observa as contradições dos de cima contra os de sempre. Todos os conflitos de interesse pela terra empurram a população para uma forte situação de carência, sensível em todo o percurso, especialmente após o rompimento da barragem. Os impactos do lixo tóxico sobre a região são óbvios e profundos.. O mar se faz cor de laranja, meio sangue, meio 8


ferrugem, e não apenas ribeirinhos reclamam seus direitos, senão todos. Ao chegar à Regência, tendo visto o rio, reparei a mesma tristeza de barro na face de todos. Apesar do verão presente em uma das regiões mais turísticas do estado, a atmosfera é de luto. À margem do rio, nas praias e onde quer que haja uma torneira, a cor de ferrugem e o mesmo cheiro estão em tudo. Pescadores, surfistas, barqueiros e moradores continuam, muitas vezes, seus trabalhos da mesma forma, não por desconhecerem os riscos associados, mas principalmente pela não viabilidade de desassociarem sua existência de seus ofícios. O que seria, se não isso? Mal havia chegado e o impacto da lama já invadia meu ser. Fui recebido pelo amigo Hauley, atuante em diversas frentes de luta pelo Doce, assim como sociólogo, surfista, pensador e articulador social de Regência. Ninguém poderia melhor me explicar os reais impactos e suas proporções na região. Foram três dias de levantamento dos impactos em diversas comunidades no entorno. Dias intensos, não somente pela rotina cansativa de trabalho, como de histórias tão ricas quanto sofridas. Dos exemplos mais fortes da riqueza regional está a história do Caboclo Bernardo, pescador que em 1.887 salvou 128 vidas de um naufrágio da marinha imperial, sendo condecorado, pessoalmente, pela princesa Isabel. Assim se tornou herói, e também uma figura contraditória na região, principalmente pelas repercussões. É entidade em terreiros de umbanda, recebeu capela cristã em sua homenagem e inclusive festas populares, sendo referenciado hoje até mesmo no triângulo mineiro e por alguns indicados como indígena. Representante da cultura cabocla e tradicional que vive na região, assim

como de nossos dilemas. Outras são também as contradições da região, onde há meses a Samarco está presente, como uma grande mão a mover interesses e a não sanar o efetivo, o óbvio e o bruto que está lá. Do mesmo modo há claros casos de tentativas de desarticulação dos grupos sociais da região, reuniões que coincidem com atividades comunitárias, cessão de valores que em nada substituem a água e a presença aflitiva de uma grande mentira. Questiono-me diariamente, e cada vez mais, sobre o real tamanho do desastre e de todas suas implicações numa região tão vasta do Brasil, assim como na reação vergonhosa de nosso governo. Afinal, é clara a impossibilidade, crescentemente óbvia, da atual regra do jogo frente às necessidades sociais.

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09/01/2016 “Chegando ao porto de Regência, o cheiro metálico do ar se fazia onipresente. As águas estáticas entorpecem minha percepção das cores. Poderia até ser o tom natural do rio, mas o silêncio da atmosfera diz o contrário. Embarcações vazias flutuam tristemente como temerosas do abandono. Distinguem-se na linha flutuante dos cascos o traço ocre de um rio tingido. Ao lado, o cotidiano persiste, um casal vive seu romance e moleques distraídos em seus jogos fazem a indignação parecer ao visitante tema já digerido.”


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A casa da bomba d’água fica no mesmo lugar entre a esperança de que o rio se torne limpo de repente e a nostálgica lembrança de um rio são.

Os cultivos eram inicialmente irrigados a partir do rio. Hoje foi criado um novo poço entre o rio e os cultivos onde a água tem uma cor mais clara...até quando?

Caminhões da Samarco depositam água potável num recipiente de 25 000 litros. Seu uso é destinado ao consumo direto da família, banheiros, cozinha e para saciar a sede.

O Senhor Nilton nos explica a nova gestão da água da chácara:



DE LINHARES À COLATINA Km 957 Segunda-feira - 11/01/16

Partindo de Regência, Arana, Vladimir e eu seguimos por mais de 60 quilômetros à beira do rio, por fazendas de cacau abandonadas e secas. Cabrocas antigas constroem uma paisagem hoje de propriedades decrépitas e abandonadas, em todo percurso até Colatina, devido, especialmente, à praga da vassoura de bruxa. A pujante produção de outrora deu lugar a antigos trabalhadores e seus descendentes, que vivem do resquício do processo produtivo do passado. As casas de fazenda e as antigas vilas operárias muitas vezes estão ocupadas por famílias esparsas. Até o encontro com a BR-101 são mais de 10 grandes fazendas que se configuram em estado de total abandono, onde parte das famílias, agora também sem água, está na miséria. Muitos vivem do que cresce mesmo com a parca irrigação, e alguns com insistentes pescados hoje avermelhados, encontrados como uma das poucas fontes de proteína, por mais que possivelmente envenenados.

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Estando em estiagem intensa devido à seca, o cenário se assemelha ao sertão de nosso Nordeste, o que assusta pelo fato de toda a região ser, originalmente, coberta pela Mata Atlântica. A ampla planície de deposição que se estende por quilômetros na região da foz permite que as cheias do rio alcancem proporções enormes, realidade que preocupa. Nessa região também está o canal que a Fibria abriu, retirando enorme quantidade de água para resfriar seu maquinário, muitas vezes impedindo a vazão do rio de ser suficiente para chegar ao mar. Para atrair a aceitação pública, o nomearam Caboclo Bernardo, não agradando a muitos. Em Linhares, estávamos com sede de trabalho e crescente desconforto com tudo o que víamos. O rio aqui impressiona, e sua variação tonal assusta, tirando o antigo destaque que cabia à enorme ponte destruída anos atrás. Rumo ao norte, a região começa a ficar ainda mais seca, denotando um forte processo de desertificação, evidenciado pela estiagem e pobreza dos solos, perceptíveis em suas voçorocas. Por aqui passamos em um acampamento do MST, à beira da estrada, sobre uma terra quente e dura com ausência de sombras. Em sua grande maioria mulheres e crianças estavam no local, cuja condição é precária. Telhas de amianto e lonas pretas garantiam o sono das famílias sob o sol agreste, e cestas básicas esporádicas a nutrição. Aqui estavam, atingidos por diferentes motivos, de diferentes locais, o que faz sua condição de luta, por mais que fragilizada, a única situação possível de melhora.

Mais à frente se encontra o assentamento do MST Sezínio Fernandes Jesus. Com suas prerrogativas alcançadas e direitos garantidos, o assentamento possui uma estrutura física impressionante e uma condição de vida superior a todos os outros locais visitados. São mais de cem famílias que igualmente foram atingidas pelo crime, e entraram em conflito direto com o governo pela tomada de ações necessárias. Tendo em vista a possível contaminação de seus lagos, pela lama que descia de Minas, exigiram o bloqueio dos canais que os ligavam ao rio... Fogo e bloqueio da estrada que passa à porta exigiam ações do governo. Relatos de abuso de poder e repressão marcam o conflito em volta da garantia da qualidade local da água, fonte básica da vida.

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11/01/2016 “Em meio ao impiedoso calor ergue-se uma árvore majestosa. Um oásis de sombra fincado no desolado acampamento do MST era o local das reuniões. As famílias timidamente aceitavam conversar conosco e nos abrir sua história. Nas frágeis fachadas das casas, o som das lonas de plástico, batidas pelo raro vento, marca a precariedade da situação. Sem dúvida, aqui não se esperava o desastre para se questionar sobre os desequilíbrios de nossa sociedade.” 18


KRENAK - CABEÇA NA TERRA Km 1.049 Terça-feira - 12/01/2016

Dormimos no sítio de amigos, Bianca e Dante Pavan (do GIAIA), também atuantes na defesa do Doce, na pequena cidade de Itapina, perto da divisa com Minas Gerais. A casa fica a poucos metros de uma antiga estação de balsa para a travessia à cidade de Ipaba. Chegamos depois de um longo dia de contatos intensos e uma realidade dura. Ficamos na sede da fazenda, a quantidade de mosquitos era absurda, fazendo com que não dormíssemos. Ao longo de todo esse trajeto ouvimos relatos do aumento da quantidade de insetos, fato que muitos atribuíam ao rio e seu laranja. Conversamos por certo tempo com Geraldo, o caseiro, onde pudemos ver novamente a simplicidade do povo, fato que se aprofundaria daqui para frente. Muitas vezes alheios à magnitude da realidade do ocorrido, à correta mensuração do impacto, e mesmo das formas de resistência, que se fazem muitas vezes inexistentes. Ao acreditarem, por vezes, na suficiência de alguns litros de água em frequência paulatinamente reduzida. A facilidade com que a Samarco dribla suas responsabilidades, assim como a arbitrariedade que define os atingidos assusta, fazendo com que os mais vulneráveis sejam ainda mais impactados. Por haver pouca ocupação tradicional, à beira do rio, assim como tempo curto, optamos por não fazer levantamentos entre Itapina e Resplendor, uma vez que estávamos evitando maiores aglomerações. 19


12/01/2016 “Itapina. Ao nascer do sol os pernilongos já haviam tomado café. Para nós ele será com vista para a ponte nunca concluída. Na distância uma cidade visualmente isolada nem parece acordar. As ruínas crescem em meio à vegetação, e um rio seco e raso. Uma assombrosa paisagem se desenha, apesar de toda a atmosfera natural fornecer certo tom de resiliência aos tempos atuais.”



Seguimos em meio a uma paisagem de morros crescentes e de uma degradação ambiental alarmante. A seca do rio, assim como sua vermelhidão, se soma às terras rachadas na construção do cenário de escassez e degradação. O descaso com o rio, marcado em curvas da estrada, data de muitas décadas e se marca por todo o horizonte. Aqui, a destruição, hoje silenciosa, teve início muitas décadas atrás. Após cruzarmos a ponte de Resplendor fomos ao pequeno patrimônio do Horácio colher informações, não muito elucidadoras, devido à independência e distância relativa do Doce. Seguimos para a Terra Indígena dos Krenak, habitada por centenas de índios dessa etnia botocuda. Nunca antes havíamos pisado em terra indígena e confesso a surpresa que nos foi acometida, devido à estruturação das casas, assim como de toda organização social existente. Fazendas dispersas num grande território permitem a manutenção de suas atividades e o Eme, afluente do Doce, ainda hoje, provê a água. Aqui pescavam, trabalhavam e mantinham suas tradições religiosas e artísticas com relativa autonomia do meio externo. 22


Os traços marcados de todos me fazem voltar às origens de nossa terra, assim como as fotos na parede da casa de dona Dejanira, com seu forte e único sotaque. Pela primeira vez nesta viagem, que se estende desde meu nascimento, encontrei tanta dissemelhança na forma de pensar o mundo e tratá-lo. A riqueza e as formas tradicionais de uso do Doce, agora extintas, colocam novo patamar aos impactos causados pelo rompimento da barragem, uma vez que ameaçam, inclusive, a riqueza religiosa e cultural do Brasil. A tradução da palavra Krenak, vinda do idioma de mesmo nome, significa cabeça na terra, remetendo à consciência de nossa ligação, e total dependência, com a natureza circundante. Essa terra marca, até mesmo pela natureza primeira de seu significado, o ponto onde a dissociação do ambiente natural é impossível, uma vez que se consideram uma unidade integrada ao meio. Tendo suas origens ligadas diretamente ao rio, aqui toma outra proporção, não sendo apenas rio, o Doce é Deus, criador e mantenedor da vida. Watu chora, nos conta Dejanira. Além da beleza das roças por onde nos perdemos por horas na intenção de alcançar Conselheiro Pena, a região é enriquecida pelo cenário das montanhas da margem oposta do rio, recortada pelos pontões do Parque Estadual dos Sete Salões. Confesso ter o vermelho como nova proporção da paisagem.

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Não sei ao certo se devido ao local onde estávamos, se pelo trabalho que fazíamos ou mesmo se por mera coincidência, mas durante as últimas 24 horas tivemos contato muito intenso com comunidades ribeirinhas e vilas de pescadores que viviam exclusivamente do Doce. Fomos para Barra do Cuieté e conversamos com famílias simples, alheias à complexidade do problema e mesmo, para além de seu isolamento, fora de qualquer forma de resposta por parte da Samarco ou do governo. Muitos atingidos sequer são considerados dessa forma por problemas legais, ou mesmo de registro junto ao governo. Muitos vivem da pesca, se nutrem dos peixes e deles dependem, todavia, caso não haja registro junto ao governo de dependência econômica frente à pesca (isto é, se não forem considerados pescadores profissionais), nenhuma assistência é prestada... o rio é dos cadastrados... Contudo, o que mais chocava, nessa pequena cidade de Conselheiro Pena, era a total ausência de assistência relativa ao desastre ocorrido. O isolamento impede qualquer medida direta de resposta e mesmo de entendimento de seus direitos, colocando-os, assim como os habitantes de diversos outros locais, em condição de grande vulnerabilidade socioambiental. Por outro lado, mais ao norte, em São Tomé do Rio Doce, vila de pouco mais de 100 habitantes, pudemos conhecer Jackson, pescador robusto, apesar de magro, e sua família. Eles pouco possuíam além do Doce. Vivem a cerca de 8 metros do rio, o barco inutilizado se mantém meio fora, meio na água e a bomba que irrigava e enchia as caixas d’água foi parada. Animais não mais bebiam. Toda a autonomia possível lhes foi tirada após o rompimento da barragem, sendo que Tainhas, Manjubinhas, Robalos, Tilápias e tantos outros, uma vez tirados do rio foram convertidos em sacos de macarrão, farinha, óleo de soja e açúcar, entregues sob a forma de um cartão compensatório pela Samarco. A inserção desse povo no sistema não poderia conferir maior sinal de desgraça para qualquer tipo de gente efetivamente livre e autônoma. Essa conversão, sempre dolorosa, é vista aqui de uma forma trágica e revoltante.

Km 1.153 Quarta-feira - 13/01/16

O HOMEM E O RIO


13/01/2016 “Lírio − Conselheiro Pena. Após várias horas à procura do sindicato dos pescadores da região achamos Lírio. Nossas lesões pela queda da moto nos tomavam toda atenção. Por sorte fomos acolhidos e ao longo das conversas nos resumiu a situação frágil na qual se encontravam os pescadores. Suas indicações nos levaram a outros atores que nos testemunharam o acontecido, ao som do silencioso Doce.”


13/01/2016 “O homem e o rio; a magia da linguagem faz completo sentido. Nele se pesca, se bebe, se lava, se vive − o rio é a vida em todas suas dimensões. O cotidiano narrado por Jackson ilustra perfeitamente a dependência vital dos povos ribeirinhos. Quilômetros dançando ao longo do rio alimentavam nossa consciência do que ele é, sutilezas vivas em cada meandro.”

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13/01/2016 “Licério, em Barra do Cuieté, nos mostrou nova perspectiva. Chegando naquela comunidade achamos um curioso comportamento nos pescadores locais. Uma atmosfera de delação dominava, uns criticavam outros por não serem pescadores profissionais, não tendo assim legitimidade para receber benefícios. Como se a contaminação do rio fosse fonte de privilégios e a desarticulação consequência primeira. Qual o real papel dos benefícios em meio a tal situação e abandono?”

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13/01/2016 “Zé, o Pavuna de toda região de Tumiritinga e além, nos mostra sua produção em forma de bananas persistentes, quiabos secos e animais em sede e pele seca. Em sua chácara compartilha suas preocupações de como alimentar os seus, as famílias dos seus, e tantos outros. Sendo líder comunitário e por muitos seguido se abre, expõe as dificuldades da realidade em suas perdas tão recorrentes. Evidência que a luta é de sempre e a necessidade de mudança para ontem. Consciente desde sempre do abandono prefere encarar o rio com suas ferramentas e suas mãos marcadas pela resistência persistente de sempre.”

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14/01/2016 “Como é de praxe ao longo do Doce e de seu descaso, muito é deixado de lado. Contudo, em Derribadinha o esquecimento é completo. Entre rio e trens a vilapatrimônio, primeiro assentamento da região, permanece em silêncio, em evidência ao descaso também de outrora. Apesar de próxima à sede do município (Valadares), poucos serviços se prestam à região, escolas, postos de saúde e qualquer forma de transporte, em sua ausência, marcam o passar dos dias. João Gualberto assim nos conta, junto de um papagaio, seu companheiro.”

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VALE DO AÇO Km 1.135 Sexta-feira - 15/01/16

Ao continuar nosso caminho marcado pelo ferro, vivo na Estrada de Ferro Vitória Minas (EFVM), nas relações sociais e agora em forma fluvial, continuamos nosso percurso entre duas das maiores aglomerações de todo o vale do rio Doce, Valadares e Ipatinga. À exceção de nossa parada em Naque, localizada no deságue do Santo Antônio, nosso dia foi marcado essencialmente pela estrada e por Arana, que nos guiou rio acima. A BR-381, não apenas devido à sua proximidade com o rio, como também pelo rápido contato que induz em todo esse trecho, marca muito fortemente toda a região como também impulsiona o desenvolvimento econômico. Fábricas, indústrias e a velocidade são presenças marcantes aqui. Ainda não havíamos cruzado, nessa expedição, região de poucas práticas sociais ligadas ao rio. Por mais que presentes, a existência de pequenas

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comunidades autônomas, talvez esquecidas sob outros pontos de vista, é menor que no trecho Colatina-Valadares, segundo observamos. A natureza urbana tradicional é mandatória aos olhos do viajante, condicionando aqueles dependentes do rio a um estilo de vida híbrido, entre o rural e o urbano. Fato que nos fez parar menos para levantar questionários, uma vez que buscávamos pequenas comunidades. Isso nos fez questionar nossa própria metodologia e mesmo a validade de nosso trabalho. Que até então tinha se mostrado eficiente, pois vimos o rio como um todo; talvez precisássemos de um barco daqui em diante. Quanto à geografia e primeiras impressões físicas da região é possível apontar características marcantes. Apesar da forte estiagem, que já dura alguns anos, segundo moradores, intensificada pelo intenso uso das águas do rio, de Valadares à

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montante o verde se faz mais presente e a erosão, por mais que existente, é menos marcante que no caminho daqui ao mar. As grandes montanhas e mesmo os maciços e grandes blocos de pedra não marcam mais a paisagem, como se esse imenso mar de morros no sul mineiro fosse mais amplo e uniforme em sua variação, o que contrasta com a seca montanhosa e salpicada de inselbergues que marcam a divisa de estados. Aqui também foi um dos primeiros locais onde avistamos remanescentes de Mata Atlântica, conferindo diferente clima a toda região. Hoje mesmo chove, fato extraordinário que nos deixou parados em Ipaba pelo dia de ontem. Acabamos por sair tarde na manhã seguinte e seguimos para Revés do Belém e Córrego Novo; novamente encontramos poucos residentes à beira do rio, que aqui corre isolado entre montanhas. Passamos também pelo Parque Estadual do Rio Doce. Como ainda as estradas passam ao largo do rio, as atividades próximas a ele são raras. Tentamos diversas vezes nos aproximar dele, todavia, mesmo os residentes locais desconheciam comunidades ribeirinhas. Seguimos até São José do Goiabal, onde montamos acampamento em noite chuvosa. 32


15/01/2016 “Estamos em Naque, próximo a Nanuque, na exata foz do Santo Antônio e aqui encontramos Hoscar Isaías em suas histórias. - O rio parecia uma manteiga de peixe morto que furiosamente invadia suas águas azuis. Uma praga em versão moderna lastimava a região. Um desastre de uma violência marcante para cada testemunho triste. Hoscar viveu o Doce de várias formas, em barcos de pesca, em suas muitas ilhas com antigos. Conta, como pesadelo, o dia da chegada da lama e do mar de peixes: Piabas, Carapebas, Robalos, Manjubinhas, Tucunarés, Tilápias, Tainha, Dourado, Ticupás formavam uma avalanche de morte junto à lama”.

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SOMOS TODOS SEM PEIXE


Desmontamos acampamento e seguimos para Sem Peixe, onde, pela primeira vez em todo caminho, nos deparamos com milho, plantado por quilômetros a fio à margem do Doce. Até a cidade foram vinte quilômetros da estrada mais terrível até o momento, de terra enlameada, que nos alertava para o que viria. A umidade se fez total, em nós, na terra, em tudo. Pelo fim da manhã já fazia 20 horas de chuva e estávamos encharcados; choveria por mais 5 dias. Informamo-nos na cidade e decidimos partir em busca das comunidades, diminutas, que insistiam em viver próximas ao rio. Isoladas, não apenas pelo momento histórico que as deixa de costas para rio, como deixa toda uma população rural de costas para o campo. Em outra época, há relatos, essas terras tinham mais de dez vezes a população atual, desiludida com a roça, esperançosa por oportunidades no urbano; muitos estão em São Paulo, outros no Rio, outros em Belo Horizonte. Queríamos conhecer o que prenunciavam as placas – Califórnia, Barbosa e Santana do Deserto.

Chovia desde que chegamos pela noite em São José do Goiabal. Como estávamos cansados dos desgastes da viagem, especialmente por termos tido pouco contato humano desde Valadares, pelos muitos e muitos quilômetros rodados e pelo avançar das horas, decidimos montar acampamento em um ponto de ônibus na vicinal que conduz até a cidade. Apesar da chuva fina que insistia sobre nós há horas, fomos bem recepcionados pela cidade que sequer conhecemos. O ponto de ônibus nos serviu de restaurante, cama e mesa.

Uma vez que entramos na segunda metade desse quente janeiro, de um ritmo humano já apressado, eu, como crente do zodíaco, sei ter entrado em meu inferno astral. Aquariano em virgem e, pelo que tenho aprendido empiricamente, me vejo representado pelo que se diz desse encontro. Um pouco aéreo, um tanto humanista, outro pouco distante e às vezes pragmático. Apego-me a tal pragmatismo, pois vejo que apenas assim estou liberto para encarar o que se vê dia após dia. O envolvimento com tudo que aqui está é deprimente e se colocar como observador facilita o trato... a digestão do que se vê.

Km 1.588 Sábado - 16/01/16


16/01/2016 “Em Sem Peixe a paisagem era outra. A chuva continua há dias e Minas Gerais se expressa em seus pequenos detalhes, seja na fala, em suas comidas, ou, ainda, no tempo moroso que ainda persiste nos entregadores de leite, repetidos cafés e cigarros de palha.”


À medida que seguíamos viagem, não apenas a chuva, já ininterrupta, apertava, como cada curva da estrada se fazia mais enlameada e, praticamente, impossível. Deslizamos até, por engano providencial, pararmos em Califórnia, vila de poucas casas esparsas ao longe. Em conversa com o povo dessa pequena e decrescente roça, me dei conta não apenas do forte isolamento em que viviam, mas como todo esse processo muito diz respeito à própria vida de nossas cidades, opostas ao campo e ainda assim atrativas, que esvazia em muito as possibilidades no interior e sua devida continuidade. Todos aqui foram veementes em não apenas apontar a redução do distrito, e dos demais ao redor, como da cada vez pior condição de produção e de vida no campo. Falta de infraestrutura, educação, saúde e agora água. Como veríamos adiante, poucos possuem contato direto com o Doce e, fora a pesca esporádica, o único uso efetivo para essas águas é para os bois, que simplesmente seguem hoje bebendo


lama em curso. Seguimos, e após alguns tombos e reboques, paramos para conversar com o Sr. Horácio, que nos forneceu novo prisma do ocorrido. Conversa de horas nos mostrou as alterações das dinâmicas pretéritas do rio, vilas esvaziadas muito antes do desastre pela lógica dos acontecimentos e agora seladas com lama. Acredito estarmos a ponto de viver um grande êxodo, agora de refugiados ambientais, refugiados da mineração em poucos meses. Horácio, simples e sempre morador dessas terras, presenciou como poucos o esvaziamento da região e mantém contato esporádico com seu único vizinho, distante dois quilômetros a nordeste, e com a pequena vila de Merengo do outro lado do rio. Apesar de limitada e bem definida, sua relação com o rio é pequena e seus bois continuavam a nadar no Doce. Auxiliadora, sua mulher, nos serviu o já conhecido café mineiro, meio café, meio melaço, e bolo que fora nosso almoço.

do rio, como em praticamente todo ele. Na realidade, minha consciência de isolamento se acentuou, muito pela chuva e pelo barro que ia nos prendendo. Demoramos cerca de uma hora para avançar, conquistar, pouco mais de 12 quilômetros que nos separava de Barbosa, onde novamente alegavam não terem sido atingidos pela Samarco, comentário comum, apesar de vizinhos da 38

Nosso próximo destino seria Santana do Deserto, vila de Rio Doce localizada em frente à barragem de Candonga. Lá se deu o frear da lama. A barragem foi responsável por parar a onda de destruição que a lama vinha causando, contudo nos demoramos pouco mais de duas horas para avançar cerca de três quilômetros e desistimos, com Arana patinando, de continuar naquele dia. A chuva, teimosa, insistia em crescer e não conseguíamos sequer subir na moto, dada a umidade total em que estávamos. Éramos barro e decidimos voltar e pedir asilo ao Horácio e à salvadora Auxiliadora. Assim, com uma fogueira e frango caipira, fomos recepcionados pela sincera hospitalidade mineira.


16/01/2016 “Próximo à vila de Barbosa, justamente em frente à outra pequena vila, separada pelo rio em sua ferrugem. Nada há muito na região. Relatos claros nos montam um cenário de esvaziamento da realidade rural, poucos vêm, muitos vão. Passamos dias, horas e muitos quilômetros debaixo de chuva. Éramos lama. Horácio e Dora, sua companheira, nos receberam com a simples hospitalidade de poucos momentos compartidos. Pelo conhecimento e auxílio, somos gratos.”

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TODOS OS CAMINHOS LEVAM À VILA RICA Km 1.748 Domingo - 17/01/16

Ao montarmos sobre Arana e deixarmos a casa de Horácio tentamos, pela última vez, e não por muito tempo, seguir a estrada que nos levaria até Santana do Deserto. Desistimos após não muito tempo, a estrada estava encharcada e com dificuldade voltamos até Sem Peixe, seguindo pelas pequenas cidades de Dom Silvério e Rio Doce, onde o mesmo nasce da junção do Piranga (limpo) com o ribeirão do Carmo (arrasado). Estávamos na ponte sobre o rio e a quantidade de lama descendo era assustadora, agora chovia há sete dias na região e o rio se fazia caudaloso... grande. Suas margens carregam a marca da destruição, fato inédito para nós até aqui. Neste percurso vimos dezenas de rios Doces e seu pesar. Como havíamos presenciado de Ipatinga até aqui, poucos são os caminhos que seguem o rio pela margem. O mar de morros já se faz intenso e mesmo vertiginoso, fato que impede 40


a devida ocupação do rio e de suas margens, permitindo-as serem matas, ainda densas (tornando tudo úmido e frio, apesar do verão visto a jusante). Contudo, como chovia há dias e todos nos diziam para evitar estradas de terra, desistimos de seguir o rio pelos seus pequenos caminhos. Daqui em diante tinha suas margens mais vegetadas e íngremes. Evitaríamos, como possível, o ocorrido no dia anterior. De maneira geral, a lama nos atingia por vários lados.

De Rio Doce em diante apenas Barra Longa e Mariana continuavam em nosso radar, assim como seus distritos. Exatamente as comunidades mais afetadas e as matas mais rasgadas − há relatos de que em certos pontos houve até 10 metros de morros arrancados pela avalanche e novas planícies de lama onipresente. Essa mesma lama que nos impediu de conhecer Risoleta Neves marcava nosso caminho pelo rio; por isso decidimos seguir direto para Ouro Preto, onde faríamos base na casa de amigos de outras estradas e nos secaríamos. Pouco antes da cidade de Ponte Nova avistamos a bifurcação do rio. Margeamos o Piranga e vimos o laranja do Carmo adentrar nos morros, os quais terminaríamos de circundar apenas no dia seguinte. Como já falado, suas águas corriam entre morros preservados e cidades históricas como Barra Longa e um sem número de distritos, quase todos atingidos pela lama. Muitos perderam suas casas, alguns... familiares, porém todos, sua história... suas vidas. O acesso difícil nos fez ir pelas escarpas dessa serra de alturas à antiga Vila Rica. Num caminho desde sempre marcado pela mineração e suas consequências. Sabíamos que daqui em diante, as margens estariam com seus veios abertos e as cidades enterradas. Mesmo com toda a bagagem de um rio inteiro nas costas, nada nos preparou para os dias que viriam. Faríamos o possível para alcançar algumas das comunidades, mas a forte chuva nos restringiu a Camargos, próxima à extinta Bento Rodrigues, e à também riscada do mapa, Paracatu de baixo... 41


A NASCENTE DA LAMA Km 1.801 Segunda-feira - 18/01/16

Camargos é um pequeno distrito à margem do rio Tesoureiro. Já era por mim conhecido, fotografado e também desenhado. Arana e eu estivemos por aqui seis meses atrás, em viagem mais lúdica e de reconhecimento mais leve da Estrada Real. Lembro-me de ter ficado chocado com a pequena vila, não apenas por sua beleza colonial, mas também por ter funcionado como posto de entrada para o norte da região histórica e por ser o começo de uma Minas ainda preservada, por mais que furada por toda sorte de mina. Fomos recebidos pelo bucolismo habitual. Contudo, os ares eram outros.

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18/01/2016 “Mariana. Antiga cidade. Dizem ser o primeiro assentamento de todo estado, primeira capital certamente. Foi levantada para dar início ao controle de todo o processo de mineração que viria a nomear o estado até os dias atuais. Por séculos, todos os caminhos da região por aqui passavam, daqui partiam. Por séculos, os buracos e furos das minas, de qualquer que seja o minério, marcaram toda a região. Ainda hoje, em seu descaso marcado pela exploração, os caminhos partem de Mariana em forma de lama. Tudo é levado de nossas terras. A história persiste em se contar e relatar seus desastres, esperançosa de se guiar por outros passos. Nós nos questionamos, onde tudo isso se encaixa, como modelo de um novo Brasil, em seu exemplo de não conclusão, guiado para onde, de agora em diante?”

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Após poucos minutos estávamos entrevistando dona Adriana, originária de Belo Horizonte, que a trocou pela paz do campo. Ela e seu marido João nos fizeram diversas declarações acerca do ocorrido. Perderam antigos amigos, e praticamente todos os conhecidos tiveram suas vidas arrasadas, felizmente mantêm a casa e sua saúde. Apontaram problemas com a Samarco e descaso por parte do governo. Entretanto, o que certamente mais nos chocou em seus relatos foi o fato de que, por volta de 24 horas antes do rompimento da barragem, uma grande explosão foi ouvida a quilômetros de distância da mina. O mais curioso desse fato é ter sido essa explosão a única, em décadas de funcionamento da mina, a ter ocorrido fora do horário programado da mineradora. Até aqui já havíamos ouvido todo tipo de relatos que evidenciavam o descaso em tratar a situação, mas foi a primeira vez que escutamos relatos sobre o abafamento de um fato que pode ter sido decisivo para o entendimento do caso. Sem dúvida, tal fato mereceria apuração mais detalhada. Seguimos ainda mais algum tempo rumo norte, não muito, tentando alcançar Bento Rodrigues, mas os acessos por essa via estavam bloqueados, pois trechos da estrada foram arrastados. Aqui e ali era possível descortinar miradas de destruição 44


total. Decidimos subir um morro próximo às torres de alta tensão, e nada nos preparara para isso. Até o fim do horizonte, se desdobrava tal qual cobra, grande boitatá, em forma de destruição. Entre o verde da mata de certa forma preservada se via o corte que a avalanche levara. Todos os vales ao redor da mina estavam rasgados, e as encostas chegavam a ter 10 metros de altura de corte... levadas pelo rio, pela lama, que em parte ficou. Descemos e paramos após a visão do caos, à beira do ponto onde uma passagem pelo rio Gualaxo havia se transfigurado em um corte no morro. A antiga ponte, em trecho originário da Estrada Real, havia dado lugar à principal descarga de detritos do país. O cenário de caos não tinha medida. O Gualaxo se desdobrava em seus vales, metros abaixo de nós e todas as encostas de morro, por cerca de 15 metros de altura, haviam sido comidas e levadas pela força da lama. Ela engoliu tudo, derrubou pontes, destruiu montanhas, matou, enterrou, soterrou, extinguiu... um rio e sua vida. Ficamos sem saber o que realmente é necessário ser feito. Já havíamos percorrido mais de 2.000 km e tudo o que presenciamos foi destruição. Aqui ficamos calados.

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PARACATU Km 1.835

Terça-feira - 19/01/2016 Estávamos há duas semanas na estrada. Sentimos o rio em sua totalidade, não apenas na extensão percorrida, mas em suas variações, curvas e barragens. Na sua abundância e sua atual lamúria. Assim como os morros ao redor, os sotaques, os sabores vão se alterando e também se altera o rio. Como as pessoas o entendem, o veem, o sabem. Das milhões de pessoas que o vivem diariamente pudemos ouvir relatos dos mais diversos, pessoas mais abatidas, outras menos dependentes, mas todos atingidos e sofredores de uma realidade implacável. Tracejar toda essa riqueza de vidas e de histórias se torna uma missão triste, ao passo que ao longo de todo o rio, não apenas pela sua cor, o descaso é completo. Milhares dependem do rio das mais variadas formas, e se conseguiu destruir toda sua história, toda sua riqueza de vidas, agora enterradas,

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inertes. Por mais que estivéssemos calejados de saberes e de histórias, nada nos preparou para conhecer Paracatu de Baixo. Continuava a chover e nada estava seco. Por pouco não perdemos parte de nosso trabalho. Fomos guiados pela curiosidade até Monsenhor Horta, distrito também isolado que dá acesso ao rio Gualaxo e a todos que residem a seu redor − Pedras, Furquim, Barretos e Paracatus (de Baixo e de Cima). No dia anterior havíamos visto o estrago do Gualaxo, mas por aqui o percorremos por diversos quilômetros. É possível imaginar o que a região foi um dia − matas verdes, morros altos e um bucolismo movido a leite e queijo. A destruição de Bento Rodrigues, contudo, seguiu até aqui e toda a porção dos morros mais próxima ao rio parece ter sido arrancada, cortada tal qual por uma faca. O leito do rio é gigante e o vale está coberto, apagado pela lama laranja da Samarco. Algumas pontes foram reconstruídas, outras não, mas como chove muito,

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19/01/2016 “Paracatu de Baixo, Mariana. A cidade era pouco mais do que seu próprio resquício. Sua escola estava com lama até o batente superior das portas, à altura do pescoço. A igreja, patrimônio, enterrada. Mercado e bares revirados e todas as casas, mesmo as afastadas do rio, foram varridas. Brinquedos, cadernos, fotos, roupas, panelas, portas, televisões se misturam. Confundindo vidas, apagando passados, destruindo futuros. Paracatu de Baixo, Mariana. Marca de nossos dilemas de um mundo a ser outro.”

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o rio tem uma força que remete aos tempos do acidente, fácil de imaginar, impossível de esquecer. Em Paracatu de Baixo, contratados da mineradora estão por todos os lados e aqui plantam gramíneas para impedir que o rejeito desça, da mesma forma que deixam alguns tratores vagarosos compor a paisagem. Mais abaixo, onde a várzea se enlameia, pode-se ver o caminho aberto por entre restos de casas e histórias apagadas. Tudo o que se respira e se vê são marcas de um passado apagado em um futuro de dúvidas. Quadros, bonecas, roupas no varal emergem aqui e ali pela rua de acesso à vila. O caminho pode ter sido o mesmo originário, não é possível saber; sabe-se, porém, que tudo o que há são casas destelhadas, enterradas até a janela. Onde antes havia jardins e murmúrios há restos, lazeres apagados e destruição. Nas poucas casas que sobraram em pé é possível ver a marca da altura em que a lama chegou, e tudo o que sobra no ambiente de forma viva e persistente é a angústia, tristeza e desgosto que não serão apagados em poucas décadas. Das dezenas de famílias que frequentavam a escola, o bar e a mercearia, que cultivavam sua comida e iam ao ginásio, pouco mais de três pessoas resistem, mais por falta de opção que por apego vazio por algo que não mais existe. Nada em minha caminhada terrena me preparou para me deparar com tamanha descrença. Em vários momentos da viagem sentimos que devíamos seguir adiante, representar e desenhar as histórias que víamos, alimentar a luta contra a impunidade que parece ser sinônimo de governança. Ir mais para dentro, mais para cima, mais para o Brasil. Todavia, 50

em Paracatu, vendo o que vimos, foi que decidimos concretizar esta singela publicação que conta a história de todos nós. Ao que todos estamos submetidos de uma forma ou de outra. Sem o Doce, o Brasil e nós somos menos.


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O Doce do lado de cá Durante a passagem de Artur e Ospina pela foz, ainda não sabíamos como e com quem nos aliar para minimizar os efeitos devastadores do drama que vivenciávamos. Nossas únicas certezas eram a contaminação da água e dos peixes e as ações de desarticulação comunitária implantadas pela empresa. Quando os autores deixaram a foz, no caminho inverso ao da lama, tive certeza que seria possível inverter a lógica do dano a partir do conhecimento sobre ele. Em diálogos e discussões fomos percebendo e tecendo uma ferramenta de luta. Um mapa artístico que apontava descritivamente elementos importantes no processo: as densidades no tempo, no espaço, na cultura e no meio ambiente; as tensões nas relações sociais e as consequências de ter a vivência cotidiana drasticamente interrompida. Como todo mapa este livro é um guia, pois mostra, além do caminho da lama, a resistência a ela, as histórias paradigmáticas e os pontos de esperança e luz, para você se apegar e fortalecer. Graças a processos como este, hoje temos força, clareza e estrutura para avançar em três grandes frentes: o fomento às pesquisas científicas para entendermos

a relação químico-física e ambiental imposta pela contaminação; a articulação para a luta política, tanto por direitos, quanto para a responsabilização pelo crime, e as iniciativas de regeneração, que propõem soluções práticas para problemas cotidianos. Revisar o tempo, desde que fomos atravessados por ferro e lama, significa rever caminhos trilhados, alianças, erros, afetos, potências e talentos; significa conhecer, fortalecer e avançar neste tempo de luta. Dessa forma, este livro é uma ferramenta na luta, pois, em sua cartografia, nos mostra um caminho trilhado, em traços, narrativas, tensões, esperanças, resistências e pontos de luz, amalgamados por afeto e luta, o que nos impulsiona a sonhos e soluções. Atualizar na memória a dimensão do drama nos dará a medida do amor necessário à regeneração dos corpos, das comunidades e do Rio Doce. Hauley Valim - 07 de janeiro de 2017 Sociólogo e surfista local em Regência

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www.editoramultifoco.com.br


Este livro foi composto em Minion Pro pela Editora Multifoco e impresso em papel pólen bold 90 g/m².

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