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TRADIÇÃO E TRANSGRESSÃO EM REI LEAR ARTUR TADEU PAULANI PASCHOA

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Para o desafio de conceber uma cenografia possível para a encenação de Rei Lear, tragédia de Shakespeare, no espaço do Armazém da Utopia no Rio de Janeiro, adotou-se a interpretação da obra oferecida por Jan Kott em seu ensaio “Rei Lear ou Fim de Partida” (In: KOTT, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 125-157).

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Para Kott, o caráter trágico da obra shakespeariana observado nas grandes produções cênicas do período romântico se perdia ao aplicar-se a tradição elizabetana de pouca ou nenhuma cenografia. Assim, “(...) esse velho louco, que arrancava fios de sua longa barba, tornava-se de repente ridículo. Ele devia ser trágico, mas não o era mais” (KOTT, 2003, p. 127).

O trágico é então substituído pelo grotesco, na visão de Kott, comparável a Fim de Partida, obra de Samuel Beckett: (...) a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco não oferece nenhum consolo (...). Já o teatro grotesco moderno, costuma ter por cena a civilização pura; a natureza está quase totalmente ausente dele. O homem está encerrado numa peça, acossado por coisas e objetos. Mas as coisas desempenham atualmente o mesmo papel de símbolos da condição humana e da situação do homem que a floresta, a tempestade ou o eclipse do sol em Shakespeare (KOTT, 2003, p. 129-130).

A essa visão da tragédia shakespeariana somou-se a compreensão de Fim de Partida como situada em um cenário pós-apocalíptico e a própria ideia de reino fraturado presente em Rei Lear para chegar-se ao conceito principal da proposta: uma cenografia que transgride o binarismo natureza-civilização, construída por remanescentes de uma civilização a tal ponto deteriorados que mais se assemelham a paisagens inóspitas da natureza.

Para atingir esse impacto visual na maquete, produziu-se uma textura a partir de peças de papel paraná trabalhadas para se assemelharem a chapas enferrujadas, agregadas a peças de arame e metal. A partir da decupagem do texto, essa textura foi disposta em plataformas que conformam os espaços da ação. Entendeuse que durante a maior parte da peça as ações se desenrolam em dois espaços que precisam ser diferenciados entre si — os palácios de Gloucester e Albânia nos atos iniciais e os acampamentos francês e britânico ao final. Foram dispostas então duas plataformas maiores, uma em cada lado da cena, aproveitando a esquerda para oferecer acesso a uma plataforma central, ao fundo da cena, de maior altura.

Nessa plataforma foi constituído um espaço central que faz as vezes de trono, sendo efetivamente utilizado apenas na primeira cena, de repartição do reino, permanecendo vazio ao longo do desenrolar do restante da encenação. Esse vácuo, aliado à verticalidade construída através da disposição dessas plataformas, alude à cobiça pelo poder que destroça o reino na tragédia. As figuras humanas foram dispostas na maquete remetendo a uma encenação possível dessa cena inicial.

Processo de produção da maquete, envolvendo estudo volumétrico inicial, protótipo de plataforma e produção das peças finais.

Sob a plataforma mais alta ao fundo da cena foram dispostas faixas remetendo à cena da tempestade, mas que permanecem presentes ao longo da peça, a tempestade sempre no horizonte. O espaço central, revestido de maneira a remeter a uma pós catástrofe, foi pensado para a encenação dos eventos externos, com os pilares de sustentação das plataformas conformando o cenário de “floresta” exigido para algumas dessas cenas.

Estudo de iluminação para as cenas da tempestade e da batalha. QUADRIENAL DE PRAGA 2023 | MOSTRA DOS ESTUDANTES | BRASIL

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