corpo-casa-memória: narrativas de mulheres negras em Itapuã.

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Agradecimentos

este texto não vai ter edição e ele foi escrito como eu escrevo no meu diário Essa é a parte mais difícil de escrever, acho que para todo mundo que faz trabalhos assim de finalização de ciclos. Porque a gente tem medo de esquecer de alguém e porque a gente relembra o que nos fez chegar até aqui. Espero não me delongar muito para não ficar repetitivo e chato e meloso demais, porque eu já sou melosa demais. Acho que esse trabalho além de falar sobre memória coletiva, está sendo um resgate e um documento para ser guardado porque eu não quero perder essa memória deste tempo presente e nem do que eu encontrei. É que eu vim aqui para falar de amor, por isso começo com Maya Angelou. Então vamos lá. Eu queria agradecer a quem me guia, que faz parte de mim. Não posso começar nada sem saudar a minha cabeça e as outras pontas do triângulo que fazem com que eu esteja aqui. E não posso começar sem pedir licença a quem abriu meus caminhos e tem me guiado sempre. Sem essa guiança e proteção o que seria de mim?

Laroyê

Odoya minha mãe

Arroboboi meu pai

Okê Arô

Dito isto, agora posso começar a falar de quem está aqui neste plano. Vou (tentar) começar pela ordem cronológica das coisas, já que são todos importantes e eu prefiro a horizontalidade das relações,rs. Primeiro agradecer a vó Calixta, que eu não conheci, mãe de minha avó. Obrigada a senhora pelo cuidado de minha avó, pela orientação que passou para ela e que chegou até mim por minha mãe e minhas tias. Eu falei que ia chegar nesse plano mas ela já está em outro, é isso mesmo... E a minha avó Noélia que é um cristal raro e que eu amo tanto e que me deu a oportunidade de conhecer um outro cristal que não é desse plano mas que me acalenta tanto.

Ô minha avó, ainda bem que dos seus 26 netos nenhum tem ciúmes do outro. É realmente impressionante! Agradecer à minha mãe e a meu pai, que me deram a oportunidade de ter vindo nessa família. A minha mãe que me deu condição e coragem para ser quem eu sou, obrigada mainha. E painho, obrigada por andar comigo e ju na cidade toda, a pé, de carro, de trem, de ônibus, de barco. Ele dizia que a gente precisava conhecer a cidade e eu me interessei por ela por causa dele. Essa cidade que eu tenho uma apego danado e só de pensar em sair dá um aperto no coração. Depois deles, dos meus mais velhos, eu quero agradecer a minha irmã pela paciência de ser minha irmã nesse momento de tfg, eu sei que você segurou uma onda Ju, obrigada por estar presente e por trazer com você a leveza de Eloá para eu dar muita risada nesse percurso. Durante a faculdade eu conheci pessoas incríveis que estão na minha vida até hoje e que fizeram parte da influência para eu chegar aqui neste trabalho. Igor, obrigada por ter me indicado ir para o Curiar (e obrigada por ser esse arquitetão que eu tanto me inspiro). E nossa, Curiar, o que seria da minha vida acadêmica sem ter passado por lá? Lari, Lai, Clara, Mari(s), Chau, Dede, Jones, Rai, Paula, Carol, esses que continuam tão presentes na minha vida e todos os outros colegas de trabalho desse escritório: obrigada pelo aprendizado!


casa - corpo - memória: Narrativas de mulheres negras em Itapuã | agradecimentos

Ainda dentro da academia, obrigada ao grupo de extensão que fiz parte com a professora Júnia, eu comecei a aprender sobre arquivo e sair da caixinha por aí. Mari, Jão, Dude, Nikolle e Maria, a nossa saliva é ácida! Até chegar em Thais e Gaia, que foram minhas professoras em Atelier 5, o último de todos e que foi desafiador e bom demais. E obrigada a todos os professores que eu fiz matéria, mesmo aqueles que eu briguei (acontece, rs). Um agradecimento especial a Gaia, que é ainda minha orientadora. Obrigada pela oportunidade de ter conhecido Salvador por “Um defeito de cor” e da confiança em me deixar trabalhar pela arte, que foi um caminho que eu tanto busquei. Obrigada por ter me incentivado a publicar tudo que eu fazia e faço e por ter me incentivado a ir em busca de Diego, outro orientador que preciso agradecer. Diego, obrigada por ter aceitado, mesmo com mil trabalhos em andamento, me dar a oportunidade de trocar com você e aprender com você! Agradeço por ter conseguido encontrar duas pessoas tão importantes como Gaia e Diego para a minha formação como arquiteta e urbanista e como pessoa, mulher e negra. Outro agradecimento especial, agora para o grupo de estudos “Corpo, discurso e território” que me orientou junto, me acolheu e que trocou tanto comigo. Eu cresci (e ainda estou crescendo) junto com vocês. Cibele, obrigada pela orientação mesmo sem ser oficialmente orientadora. E desse grupo, do Curiar, do atelier e agora de santo, minha metade inteira, Jones, obrigada por ser e estar. O abraço que me abraça e eu não quero mais largar. Falando em santo, obrigada a minha mãe Caroline pela guiança e obrigada família Estrela por me acolher! E como não poderia deixar de falar, para fazer esse trabalho eu precisei conversar com muitas mulheres. Obrigada a quem me incentivou a fazer. A primeira conversa sobre falar de pagode, sobre dança, sobre corpo e memória. Mais uma vez, obrigada Gaia. E obrigada a quem me guiou de outros planos nessa! Obrigada às mulheres que se disponibilizaram a me ajudar e doaram seu tempo e sua memória para mim. Todas da constelação de afetos que vai aparecer mais adiante. Tias, vizinhas, amigas e conhecidas, vocês foram essenciais para que esse trabalho fosse para frente. Obrigada a Mile e Gabi que disponibilizaram seu tempo, seu trabalho e carinho para mim, vocês são incríveis e (ainda bem que) sabem disso. Por último, não menos importante, obrigada amigas: Lóris, Júnia, Amanda, Leti, Gika, Mila, Vanessa, Del, Iana, Lara, Indi e ao grupo de suporte ao tfg que foram providenciais! Que estavam presentes nas crises e no apoio e que me ajudaram e ajudam sempre. E Usman, tinha que ficar separado de todos porque foi com você que os questionamentos mais profundos começaram e sem você eles não chegariam como chegaram. Obrigada por estar presente em toda essa caminhada, desde o momento da escolha no vestibular até agora. Obrigada por ler T O D O S os meus textos antes de todo mundo, antes de publicar, antes de enviar para Gaia, antes de enviar para os congressos, etc e tal. E por ver T O D A S as minhas produções e me incentivar a ser quem sou. E por aguentar as crises. Obrigada por ser e estar. Encerro aqui o que era pra ser rápido. Choro de felicidade. Gratidão. Obrigada aos arquitetos e urbanistas presentes na banca por toparem estar aqui. Sigamos em frente


Sumário 1. Cada cabeça é cada um e cada um canta seu mundo 06 (metodologia e apresentação)

1.1 Memória-corpo, Memória-casa, Memória-rua 10 1.2 As mulheres que conversei 13

2. Corpo 17 3. Casa 24 4. Rua 36 4.1 Proposição final (metodologia e resultados) 39 4.2 mapas finais 43 4.3 Projeto expográfico e lambes 47 5. Considerações finais (dificuldade, questionamentos e etc) 57 6.Referências bibliográficas e de imagens 58





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O arquivo tem sido um lugar visitado por mim desde 2016. A busca pela narrativa sempre existiu em mim, desde ser aquela criança que queria ouvir todas as conversas dos adultos, às histórias do ônibus (quando tem alguém falando na nossa frente) e dentro da universidade, quando eu preferia ir atrás da fonte viva e falante (e isso muitas vezes era um grande problema porque me deixava na fixação por só ouvir pessoas e ignorar todos os outros dados existentes escritos e pesquisados). Quando a gente estuda história da arquitetura e do urbanismo e até a que aprendemos durante a escola, ela é transmitida a partir de um ponto de vista colonizador e isso se dá pelo fato de que vivemos em um mundo ocidental, onde a escrita tem papel fundamental para a história oficial e seu propagador foi/é o homem branco. O conhecimento que adquirimos durante todas as fases de ensino vêm da perspectiva de quem nos colonizou. Sendo assim, em cartografias, no estudo da história e do urbanismo, em projeto, em estudos sociais e ambientais e entre outras matérias que passei durante a minha vida na universidade, dentro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo partiu da mesma perspectiva do colonizador, do homem branco. Gabriela Pereira, em Corpo, discurso e território(2019) vai utilizar a fala da escritora Chimamanda Ngozi Adichie para explicar esse fato tão problemático: “A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em uma palestra realizada em 2009, problematiza o risco da ‘história única’ ao se falar sobre África.(...) Adichie afirma que poder é a habilidade não só de contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la sua história definitiva. Segundo a escritora, o poeta palestino Mourid Barghoti escreve que se você quer destituir alguém, o jeito mais simples é impedi-lo de contar a sua própria história.” (PEREIRA, 2019, p.66)

Voltando ao ano de 2016, em um projeto de extensão, tive acesso aos arquivos que culminaram na criação da Universidade da Bahia, atual Universidade Federal da Bahia, quando Edgard Santos entrou em contato com a conhecida vanguarda que veio para a Bahia e muitos deles ajudaram na criação da universidade em Salvador. Esse foi o momento de começar a fazer pesquisa propriamente dita a partir de narrativas. Durante a pesquisa em arquivos, o que mais procurávamos eram cartas trocadas entre as pessoas que ajudaram Edgard Santos a criar a Universidade da Bahia, os pedidos que eram feitos e aceitos, as verbas cedidas, os locais de construção dos campi, tudo que era necessário para se ter em uma universidade que viraria referência. A partir desse momento, a palavra escrita era a prova viva de memória de um passado que estava totalmente centralizado na figura de apenas um homem, a ideia era tirar a centralidade dele e descobrir quem foram as outras pessoas que ajudaram a construir o que hoje temos. Em 2017, depois de já ter participado desse projeto que resultou em uma exposição dos documentos encontrados, entrei para a pesquisa Narrativas e Cartografias da Presença Negra na cidade de Salvador. Essa pesquisa tinha como objetivo problematizar e desconstruir o que temos de cartografias da cidade de Salvador desde o século XIX. Entendendo que a presença negra é criminalizada e deslegitimada, o objetivo era dar protagonismo às narrativas que não as hegemônicas

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e comumente conhecidas por toda a população. Como sabemos, muitos documentos do período colonial foram apagados da memória brasileira na tentativa de omitir esse momento histórico que causou tantas mortes e que tem consequências até a atualidade. Um sistema onde o corpo branco e masculino teve poder sobre corpos negros capturados, violentados e objetificados. A investigação realizada partiu de narrativas negras sobre o cotidiano da cidade em períodos diferentes na tentativa de trazer de volta as vivências apagadas e deslegitimadas, em especial onde me aprofundei, de mulheres negras que vieram para o Brasil capturadas e escravizadas na compreensão da importância da participação dessas mulheres para a formação de Salvador. Em Narrativas e Cartografias da Presença Negra, utilizamos “Um defeito de cor” (2006) de Ana Maria Gonçalves e “A casa da água”(2007) de Antônio Olinto nos dois anos seguidos de pesquisa como base de narrativas para a criação dos mapas das cidades em séculos passados. A ficção historiográfica foi recurso empregado como referência legítima partindo do entendimento de que o estudo urbano tem caráter multidisciplinar e há uma necessidade de utilizar outras fontes além das comumente acessadas. Em especial para construção de mapas das presenças negras nas cidades brasileiras, quando entendemos que a história negra no Brasil está muitas vezes (e somente) guardada em arquivos vivos e passadas pela oralidade. A forma de saber o que aconteceu no passado e no presente da população negra brasileira a partir da literatura, de relatos orais, de outras maneiras para além da escrita, trazendo esses estudos para dentro do ambiente acadêmico, tem sido uma das tentativas de nos colocar como seres de referência e importância também para a formação das cidades. A autora Gabriela Leandro Pereira em Corpo, discurso e território (2019) cita a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro como importante fonte de inspiração nessa questão quando Ribeiro “aponta a necessidade de ir além das normas do discurso acadêmico, absorver orientação culturais difusas, superar o prestígio das leituras mecânicas e funcionais da vida urbana”. Fazer cartografias resultantes desses estudos, também têm sido uma forma de lutar, defender e reivindicar o lugar dessas presenças em uma cidade como Salvador, considerada a mais negra fora da África e mesmo assim tendo um histórico de apagamento e deslegitimação tão grande. Entendendo que a cartografia é uma forma de demonstrar, dentro do campo da arquitetura e urbanismo (e para além dele também) o que se quer dizer sobre o território, o que é necessário ser lembrado, mapeado e mantido nas imagens de evolução da cidade. “(...) tem surgido, neste início do século XXI, importante movimento de recuperação e resgate de escritores negros brasileiros, cuja divulgação e disponibilização de suas obras são fundamentais para que se teça uma revisão historiográfica que se debruce sobre esse material” (PEREIRA, 2019, p.66)

O estudo iconográfico e a produção de novas iconografias, para entender o passado e também pensar os futuros possíveis têm sido formas de disputar dentro da academia as produções sobre a cidade. Entendendo a necessidade de representações, que

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levem como referência o imaginário negro. Sendo Salvador o lugar onde as produções acadêmicas continuam ainda voltadas para o conhecimento hegemônico, onde o homem branco e colonizador é o centro, há uma urgência em deslocar esse protagonismo para outras narrativas que vivenciam a cidade em sua maioria (numérica) e que também estão ocupando os espaços acadêmicos e de produção do conhecimento. Como Grada Kilomba afirma em Memórias da Plantação (2019), a partir desse entendimento de que ainda há o colonialismo e este é também uma “autoridade ocidental sobre todos os aspectos dos saberes, línguas e culturas”, nos faz buscar uma forma de “descolonizar a ordem eurocêntrica do pensamento” (Kilomba, 2019, p. 53) nesse sentido de quebrar o padrão em busca de falar sobre nós a partir de nós, homens, mulheres negros soteropolitanos que estão ocupando esses espaços de saber. “Ainda que o discurso acadêmico e político tenha excluído, durante séculos, a experiência africana no Brasil, sua influência não deixou de exercer papel fundamental na construção desse país. Chegou o tempo de ouvir quem foi calado. Chegou o tempo, não de resgatar nossos conteúdos culturais, mas de fazer valer, política e socialmente, nossos valores civilizatórios, nossa forma cultural, nossos bens simbólicos, tão rica e criativamente reelaborados pelos afrodescendentes. Em momentos agudos de crise urge ressaltar outros modelos de organização da vida. Em momentos de rigidez diplomática e totalitarismo beligerante, experiências de paz ganham força e raiam no horizonte da humanidade. Em momentos de massificação e repetição de sistemas autoritários, dinâmicas civilizatórias construídas sobre a diversidade impõem-se com a força do imperativo da inclusão, da alteridade ..., da vida!” (OLIVEIRA, 2001, p.4)

Assim sendo, seguindo o mesmo critério de desenvolvimento das pesquisas e projetos que participei, estudando a cidade a partir de outras fontes, as referências utilizadas nesse trabalho final de graduação partem de campos múltiplos como letras, artes visuais, artes cênicas, geografia, antropologia, filosofia, psicologia, biologia, educação e história. Considerando a arquitetura e o urbanismo transdisciplinares, é neste modo de pensar e fazer projeto que este trabalho será conduzido. Entendo também que há uma necessidade de disputar a legitimidade em colocar a subjetividade, a arte, outras narrativas e formas de pensar e viver a cidade na produção de ciência, por isso escolhi referências que já utilizassem esses meios nos seus trabalhos. “O papel do intelectual é a busca da verdade e a expressão dessa busca. Não basta encontrar a verdade, é preciso proclamá-la. Neste caso, o que seria normal, que todo intelectual se alinhasse em todo tipo de luta para restaurar direitos, para afirmar igualdades. Seria normal que todo intelectual fosse contra o preconceito racial(...) o intelectual deveria participar da luta contra o preconceito racial não apenas como profissão da fé, um discurso de adesão, mas pela proposta de interpretação da sociedade brasileira como um todo(...)” (SANTOS, 1996, p. 142)

Escrever a nossa história -as narrativas negras- é um ato político. Reescrever a história 1 partir de nossas memórias é um modo de reparação e de luta. Ana Maria Gonçalves, em uma fala sua sobre o seu processo de escrita de “Um defeito de cor” (2006),

último estado é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios” (KILOMBA, 2019, p. 46)

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contesta a frase “brasileiro não lê” com o argumento de que “ele não encontra histórias que falem com ele, que falem dele, que falem de um mundo com o qual 2 ele se identifica”. Com isto, este trabalho final de graduação vai partir de mim e de outras mulheres negras com quem tive contato, nesse sentido de falar de nós para nós. Para guardar na memória. Essa memória que tem sido o lugar onde estamos tentando acessar e criar o tempo inteiro. “Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político(...) enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou.” (KILOMBA, 2019, p. 28).

Memória-corpo, memória-casa, memória-rua Uma vez ouvi que “(...) os yorùbá não reverenciam a memória, mas a produção de memórias” de Diego Araúja e isso se dá pela relação de seus “familiares com a memória além de elementos performativos que estão em nossa cultura afro-brasileira também”, algo que se conecta com o que alguns outros artistas têm levantado em suas produções. As obras de artistas negros contemporâneos têm se relacionado com essa necessidade de criar a partir da memória, “criar seria lembrar. Um retorno ao futuro”(PINHEIRO, 2017). Como a história afrodiáspórica é toda contada em fragmentos então “incorporar o não narrado, os buracos que se formaram em anos de borracha, faz parte da empreitada afrofuturista3 de criar outras possibilidades históricas” (FREITAS, 2015, p.4). Comecei essa pesquisa sobre a ancestralidade que carregamos nos nossos corpos negros, na dança e no pagode. Acreditava que nada era mais a representação de Salvador 4 do que um paredão. Aqui cabe um diálogo que participei uma vez para explicar como cheguei no meu tema, que está começando a ser apresentado: De primeira me senti um apropriadora cultural! Como é que eu vou falar de pagode sendo que não nasci em periferia e o pagode vem de lá? Esquece esse tema volta do zero, de lá da primeira pergunta que eu já me fiz. Eu sou negra?”. Então a resposta aparece com uma boa conversa, daquelas olho no olho, sem piscar o olho, profunda... “Olhe para a sua cor, olhe para o seu cabelo, olhe para seus pais, seus avós” mas Dito(meu avô) era branco português, sem dúvidas, eu posso até ter cidadania por causa dele- “onde você mora, as suas referências, de onde vem? Como é se apropriar de algo que faz parte da sua criação? Que os primeiros toques vêm de um lugar que você não sabe onde é, mas que tá correndo em você! É ancestral.”

Minha aldeia, minha tribo, minha cultura minha raiz Cultura de um povo baiano, herança do povo africano O balanço tem sutaque do negão, samba duro e pagodão 'Tá na pele 'tá no sangue, 'tá correndo pelas veias Pagodão- Parangolé

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2. Ana Maria gonçalves em “Adaptação literária e a linguagem audiovisual” – Diálogos Ausentes (2016)- Itaú Cultural acessado13/09/2019 em https://www.youtube.com/watch?v=Lgmo9q1Yc2E 3. Esse termo vai ser utilizado aqui se relacionando com a fala de Diego Araúja, mas mais à frente discutiremos a sua utilização perante o que acontece em Salvador. 4. Paredão é uma festa que acontece na rua com uma parede formada de caixas de som, em Salvador costuma acontecer em bairros periféricos onde a maioria da população é negra. Nessa festa, que pode durar um dia inteiro, toca funk e pagode (principalmente pagode) e as pessoas dançam e bebem bastante durante todo o tempo. Frequentemente é interrompida pelo poder público, com a chegada de policiais armados que muitas vezes chegam já atirando para o alto avisando a sua chegada (essas informações apareceram em conversas com a juventude do bairro de Itapuã que mais a frente serão apresentadas).


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Logo com essas Logo informações com essas informações e esclarecimentos e esclarecimentos dados, eu precisava dados, eusaber precisava de onde saber vemde on essa ancestralidade essa ancestralidade e precisava de e precisava um pontode deum partida. pontoSe deépartida. popular,Sefazé parte popular, do faz p cotidiano da cotidiano cidade e ela da cidade é negra.e Por ela éisso, negra. começo Por isso, com:começo “Salvador, com:corpo-casa “Salvador, da corpomemória: articulações memória: articulações de futuros, na deprodução futuros, na daprodução cidade, com da cidade, as formas comcotidianas as formas co e predominantes e predominantes da expressão dapopular expressão negra” popular , sendo negra” este, tema sendoretirado este tema de um retirado catálogo da exposição catálogo daAfrofuturismo. exposição Afrofuturismo. Esta exposição Estaaconteceu exposiçãoem aconteceu 2015, na em Caixa 2015, n era Paulo, um panorama para debater sobre debater o cinema, sobrea o cin Cultural de São Cultural Paulo, de eSão e era umcriado panorama criado para música e as música produções e asliterárias produções afrodiaspóricas literárias afrodiaspóricas que buscavam quee buscavam buscam utilizar e buscam a u ficção científica ficção como científica meio para como produzir meio para memória produzir sobre memória a diáspora sobrenegra, a diáspora o passado, negra, o p o presente eo opresente futuro. e o futuro.

“Acreditamos “Acreditamos que, mais do que que,previsões mais do que ou premonições previsões oudo premonições futuro, as do f narrativas de narrativas ficção científica de ficção são científica formas especulativas são formas especulativas de pensar o de presente.” (FREITAS, presente.” 2015, (FREITAS, p.4) 2015, p.4)

Neste sentido, Neste Salvador sentido, para Salvador mim é uma para cidade mim é uma que consegue cidade queconectar consegue tempos, conectar como tempos, a ancestrais que só são possíveis literatura deliteratura Octavia Butler, de Octavia com Butler, as tecnologias com as tecnologias ancestrais que só são po pelo corpo negro. Utilizarei o termo afrofuturismo, de serem transmitidas pelo corpo negro. Utilizarei o termo afrofuturismo, criado por cr de serem transmitidas Markfalar Dery, paraesse falar modo sobrede esse modo de viver Salvador onde todosse os tem Mark Dery, para sobre viver Salvador onde todos os tempos E aqui vale que esse afrofuturismo passa a sernão apropri conectam. Econectam. aqui vale ressaltar queressaltar esse afrofuturismo passa a ser apropriado deafrodiaspórico um futuro afrodiaspórico esteticamente brilhante, neon (e para falar depara um falar futuro esteticamente brilhante, neon (e talvez jeito que muitas é pensado) vezes parecido com o em que ve inalcançávelinalcançável do jeito que do é pensado) vezesmuitas parecido com o que vemos filmesdirigidos futuristas de origemMas ocidental, dessa a parti filmes futuristas pordirigidos pessoaspor de pessoas origem ocidental. a partirmas possibilidadepossibilidade de trabalhar de os trabalhar tempos, criando os tempos, e especulando criando e especulando futuro e passado futuropara e passa que são transmitidos por gerações, viver o presente viveraopartir presente de saberes a partir que de saberes são transmitidos por gerações, que estão qu nasterra, folhas, terra,no nastempo águas,(esse no tempo nas folhas, na nasnaáguas, tempo(esse comotempo um senhor, como entidade um senhor, e capaz de gerir tudo). capaz de gerir tudo). Talvez esse Talvez tambémesse nãotambém seja nemnão o termo maiso apropriado explicarpara o que acontece seja nem termo maispara apropriado explicar o que a mais a frente). Pego emp em Salvadorem e em Itapuã e(onde vou me(onde aprofundar a frente). Pego emprestado Salvador em Itapuã vou memais aprofundar parte do artigosobre Questões sobrecontemporânea, arte negra contemporânea, de Diego parte do artigo Questões arte negra de Diego Pinheiro paraPinhe falar sobre Salvador, Itapuã e essas de memória/cidade/arte falar sobre Salvador, Itapuã e essas produção de produção memória/cidade/arte negra quandonegra ele diz que “assumir o contemporâneo é assumircomo o processo como obra” ente ele diz que “assumir o contemporâneo é assumir o processo obra” entendendo assim que estamos sempre saberes atualizando saberes edaproduções da cidade. cidade e na assim que estamos sempre atualizando e produções cidade e na E também forma de entender o que passautilizo na cidade, utilizo de as pala E também como forma como de entender o que se passa na se cidade, as palavras Grada explicar queeste quero com este trabalho: Grada Kilomba paraKilomba explicarpara o que quero ocom trabalho:

“(...) como o processo “(...) como de escrever o processo é tanto de escrever uma questão é tantorelativa uma questão ao passado relativa ao quanto ao presente, quanto e éao por presente, isso queecomeço é por isso este que livro começo lembrando este livro do passado lembrando d a fim de entender a fim o presente, de entender e crio o presente, um diálogo e crio constante um diálogo entreconstante ambos, jáentre que o racismo que cotidiano o racismo incorpora cotidiano uma incorpora cronologiauma quecronologia é atemporal.” que é atemp (KILOMBA, 2019, (KILOMBA, p. 29) 2019, p. 29)

Salvador então Salvador seria umaentão cidadeseria afrofuturista? uma cidade Eafrofuturista?. esse corpo, como E esse elecorpo, faz cidade? como ele faz cidade? O que carregaque de éancestral praticado hoje e pode permanecer ainda? O que ele carrega de ele ancestral praticadoque até éhoje e pode até permanecer ainda? O que é atualizado? O que é atualizado? O que na estámemória guardado memória da foi gente e o que foi esquecido? O que está guardado da na gente e o que esquecido?

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vem O local escolhido como ponto de partida foi o meu corpo, a partir de minhas memórias ancestrais, de pessoas mais velhas como minha mãe, minha avó, tias que me e do levariam ao meu passado. Justificando o acesso ao conhecimento pelas conexões a da de parentesco, e tendo Rosana Paulino como referência, com a parede da memória, anas como as nossas paredes são locais de reconexão com o saber. E por isso o local um na cidade que desenvolvi o trabalho foi Itapuã, onde minha avó mora. Lá no bairro, Caixa minha avó seria a ponta da constelação de mulheres e relações que me levaram a ma, a entender o que acontece atualmente em Itapuã e como se deu a sua formação. zar a Assim eu começo a pesquisar esse bairro-pedra conhecido por ser cantado em sado, verso e prosa por Vinícius e Caymmi e pela dualidade dessa poética bucólica com 5 o “descaso da população” e do poder público. Como diria a minha mãe: “O que o, as será que Vinícius falaria se encontrasse Itapuã como está?”. É a partir da narrativa sar o de mulheres negras que durante esse trabalho darei uma resposta (aberta) a essa pergunta que minha mãe faz todas as vezes que vamos ver minha avó. mo a veis Para isto serão apresentados aqui três eixos: o corpo, a casa e a rua. Usando como referência o artista, arquiteto e urbanista Hundertwasser, que lidou com a sua produção a partir o por da relação entre ser humano e o mundo exterior de forma espiralar. O que me fez s se aproximar seu modo de pensar arquitetura e urbanismo com as cosmovisões africanas não que irei me aprofundar mais a frente. Hundertwasser entendia que em cada pessoa lvez havia um centro, o “ser”, e ao redor dele existiam camadas (que ele também s em considerava peles) relativas à relação entre esse ser e o mundo exterior. Essas peles, essa para ele eram: a epiderme, a roupa, a casa, identidade social e, por fim, o meio global para (ambiental e humano). Cada camada se relacionava com o ser de uma forma diferente stão e por isso, adotei também camadas que entendi que faziam relação com o “ser”. dade Nessa ideia da graduação da relação do corpo até chegar a rua a partir das vivências das mulheres que conversei. tece tado A parte 01 - corpo, casa da memória será o momento de falar sobre a diáspora e de como os corpos negros escravizados foram capazes de trazer seus costumes, modos de para viver, religiosidade e memória guardados no único espaço que lhes restava como ando seus, mesmo seus corpos tendo se tornado objetos descartáveis para os olhos endo colonizadores, suas cabeças ainda eram de fato suas. Vale dizer, que nesta parte dade. e em toda a extensão desse trabalho, quando usar a cosmovisão como exemplo e s de explicação, não se tratará de apenas uma nação africana, mas de um modo geral e das que tive mais acesso durante o processo da pesquisa. ssado ssado A parte 02- casa, corpo da memória levarei para discussão o papel das mulheres nas casas, como elas foram capazes de manter o modo de viver em família com base nessa os, já memória ancestral trazida de África. Como elas são o início de uma rede de proteção ” e afetos, como suas casas são ponto de referência e o poder que elas têm dentro de uma família, mesmo tendo homens provedores e mesmo em uma sociedade patriarcal. A parte 03 e última- a rua, como esse lugar onde as relações são colocadas será o caminho para chegar na proposição final. Onde as trocas, onde a casa se estende e o corpo se relaciona com o outro carregado de informações afetivas e ancestrais passadas por gerações. A rua como o lugar de produção de uma história comum entre todas

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5. Utilizo as aspas nesse momento por ser uma fala recorrente entre as pessoas mais velhas que me cercam e por ter lido sobre em matérias que falavam de Itapuã, acessadas nos arquivos públicos da cidade e em portais de jornais de Salvador.


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essas mulheres que tive contato (e suas outras conexões). Aqui a rua aparece com o local de produzir a cidade e de viver experiências em comunidade. Onde vai aparecer a lagoa, o samba de roda, a porta da casa e também onde as disputas vão ser colocadas. A encruza que estará presente nesta parte, considerando que 6 “a cultura negra é a cultura das encruzilhada”, veremos esses encontros acontecendo nas ruas de Itapuã. Depois de analisar a rua, a proposição será apresentada.

As mulheres que conversei Cada eixo parte das experiências femininas e nele incluo a minha também. O feminino aparece presente, forte e protagonista aqui porque todo o universo que me cerca e que eu cresci foi feito por essas presenças e não sei viver, falar e trabalhar a cidade, na cidade e para a cidade sem pensar nelas. Como o corpo feminino, como o meu, o de minha avó, de minha bisa, de mulheres que conversei viveram e vivem Itapuã? Como seus corpos femininos dançam nas ruas de lá e em suas casas? Dançar aqui aparece no sentido amplo, como movimento. Gabriela Leandro Pereira vai citar Leda Maria Martins em “Corpo, Discurso e Território”(2019) e trago para este trabalho sua reflexão sobre o movimento, a dança e a performance: “Para Martins, ‘a inscrição da memória africana no Brasil, por exemplo, passa por feixes de formas poéticas, rítmicas, procedimentos estéticos e cognitivos fundados em outras modulações da experiência criativa, nos quais os métodos e processos de transmissão do conhecimento se dão, dentre outros elementos, no corpo que, ao dançar, vocaliza, performa, grafa e escreve. Para Martins, palavra é, sobretudo, movimento.” (PEREIRA, 2019, p.68)

Assim, esse movimento e as relações que essas mulheres criaram dentro de suas casas até chegar às ruas é o que tenho tentando estudar aqui. E para concentrar todos esses corpos, casas, ruas, as expressões e o cotidiano, a música vai aparecer constantemente nesta produção. Por estar falando de memória e fazendo conexão com a citação colocada anteriormente de Leda Maria Martins e como estamos falando do bairro mais cantado de Salvador, do verso, da prosa, do rap, do pagode, do arrocha, da tradição ou não, elas serão a introdução do que será narrado. Como os provérbios africanos: explicando, dando a introdução do está por vir ou mostrando a consequência do que já aconteceu. Alguns provérbios que ouvimos (nós, mulheres citadas neste trabalho) também irão aparecer durante o decorrer do texto, tendo a mesma função das músicas. E com isso lhes apresento as mulheres que conversei: Grupo das mais velhas: Noélia | Dulce Mary | Elúsia Cristina | Elizabeth | Maria do Xindó Mariinha | Maria | Rinha Grupo das mais novas entre as mais velhas: Semíramis | Leda | Virgínia | Brasília Grupo das adultas: Ivana | Verônica | Wafina Kuti Grupo das jovens:Lóris | Gabrielle | Julia | Beatriz | Inaê | Andresa | Dayane

6. Essa frase de Leda Maria Martins foi retirada de um curso de Diane Lima, Tempo Negro, que aconteceu durante o evento Diáspora Conecta, em Setembro de 2018 na Aliança Francesa (Salvador/BA).

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Constelação de relações

Julia

Espaço cultural

Verônica Ivana

Maria do Xindó

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casa - corpo - memória: Narrativas de mulheres negras em Itapuã | Introdução

Por fim, é importante deixar claro os tempos que irei trabalhar. Desde o momento da Itapuã aldeia, até a atualidade, mas principalmente a partir do momento que minha família chegou lá. Sendo este o ponto de início da pesquisa para depois acessar os outros tempos pelas conversas das conexões feitas a partir de minha avó. Além disso, como já ficou aparente, esse trabalho será feito também em primeira pessoa e com narrativas que irão percorrer todo o texto, fazendo conexões entre 7 o que chamamos de repertório formal e a escrevivênvia que tanto me atravessa. Sobre isto, devo finalizar com Conceição Evaristo e retomar o que disse lá no primeiro parágrafo desta introdução: “Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência. Por isso também busco a primeira narração, a que veio antes da escrita. Busco a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha (...) E como lidar com uma memória ora viva, ora esfacelada? Surgiu então o invento para cobrir os vazios de lembranças transfiguradas. Invento que atendia ao meu desejo de que as memórias aparecessem e parecessem inteiras.” (EVARISTO, 2017, p. 1)

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7. Em Corpo, Discurso e Território(2019), Gabriela Leandro vai utilizar a ideia desenvolvida pela Escritora Conceição Evaristo em Becos da Memória (2006). Para a escritora “escrevivência diz respeito à escrita de um corpo, de uma condição e de uma experiência negra no Brasil.” (LEANDRO, 2019, p. 73).


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Corpo





casa - corpo - memória: Narrativas de mulheres negras em Itapuã | corpo

Para falar sobre nosso corpo, é preciso percorrer a história, a trajetória do corpo negro brasileiro em especial aqui em Salvador (BA). Começo a partir do meu, como já havia dito antes que isso aconteceria aqui. A imagem da minha árvore genealógica mostra o que aconteceu em minha família e até onde temos conhecimento sobre os que vieram antes da gente. Somos uma família de mestiços, entre brancos, indígenas e negros. Sei muito pouco sobre os meus tataravós e de onde eles vieram, principalmente. Durante essa pesquisa tenho levado a família a buscar mais sobre quem veio antes de nós, por documentos, fotos, histórias. Na tentativa de acessar o passado que vai sendo esquecido com o passar do tempo. Nós brasileiros não temos na memória de onde viemos. Na verdade, o que quiseram que se mantesse no imaginário coletivo ficou. Todos nós que temos parte de descendência europeia sabemos de onde somos e somente isso (e parece que só temos isso). As outras partes que nos compõem foram apagadas da nossa memória. Digo isso também sobre a minha família. Meu pai me contou que a avó dele era indígena, só que não sabemos mais nada. Eu sei de onde meu avô Dito veio (o pai de minha mãe), o nome de seu pai, Benedicto também, como eles chegaram aqui no Brasil e toda a árvore genealógica de nossa família portuguesa.8 a árvore da família até onde eu sei

Assim como minha família, a maioria das famílias mestiças brasileiras só têm conhecimento mais detalhado sobre os que vieram antes deles quando se tem uma parte de parentesco com a Europa. Isso se dá pela forma como Salvador, conhecida como cidade da Bahia, foi construída e projetada também. Sendo esta cidade colonizada por europeus e como Risério (2004) em Cidade da Bahia, explica “(...) a criação da Cidade da Bahia foi um gesto intelectual e não um arranjo mais ou menos espontâneo de pessoas se agregando gradualmente num determinado sítio. Cidade concebida intelectualmente para responder às exigências da colonização, cidade planejada para direcionar o processo do colonizador(...)”(p.86) e para que isso acontecesse, muitos (quase todos) corpos indígenas foram apagados e corpo negros foram trazidos escravizados. Salvador, foi construída sob um projeto e o alcance do apagamento não só do mundo tupinambá mas das nações africanas que chegaram aqui. O que veremos e temos sobre a história afro-indígena no Brasil e em Salvador, parte de fragmentos. “O fragmento tira os conectivos de oposição entre elementos díspares, não gera teses (antítese ou síntese). O fragmento são todas as histórias, todos os restos, os pedaços, as narrativas que não foram apagadas. A história da diáspora africana é feita de apagamentos: desde o início, da África para as Américas (a ancestralidade perdida), passando pela escravidão (os documentos queimados), até a atualidade (o genocídio da juventude negra).” (FREITAS, 2015, p. 4).

8. Não vai aparecer, pois achei que não caberia colocar neste trabalho apesar de ter deixado claro como são diferentes as referências, queria dar protagonismo aqui para outras narrativas. Mesmo isso acontecendo dentro da minha árvore genealógica.

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casa - corpo - memória: Narrativas de mulheres negras em Itapuã | corpo

Os africanos trazidos para o Brasil escravizados chegaram com seus corpos nus e fragilizados. Eram de diversas nações africanas: “(...) cambinda, benin, jeje, savaru, maqui, mendobi, cotopori, daxá, angola, massambique, tapa, filani, egbá, iorubá, efon ou cara queimada, queto, ige-bu, otá, oió, iabaci, congo, galinha, aussá, ige-chá, barba, mina, oondô nagô, bona, calabar, bornô, gimun(...)”(QUERINO, 1938, p. 44). Mesmo sendo neste momento 9 corpo-objeto, corpo-mercadoria e corpo-moeda, essas pessoas escravizadas ainda eram seres ativos que carregavam consigo o que foram obrigados a deixar fisicamente em África. O corpo mais ainda se tornou morada. É possível perceber perceber isso quando temos narrativas, como em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2006), de sua personagem principal que chega escravizada aqui e continua tendo consciência de quem era e como deveria ser para sobreviver: “(...) disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tínhamos feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à Taiwo, podendo então ficar com metade dela na alma que nos pertencia (...) Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.” (GONÇALVES, 2006, p. 63 e 73)

Em África, as nações que vieram para o Brasil tinham outro modo de vida. A escrita aparece em outros formatos. A performance, a dança, o toque são maneiras de se escrever sobre o mundo que é vivido. Esse foi um modo de ser/viver que foi possível trazer na diáspora, exatamente entendendo que para essas nações o corpo, acima de tudo, é o lugar onde se guarda o sagrado, o saber e é difícil apagar o que tem dentro dele. Nessa nova configuração de viver, para o branco colonizador, os corpos negros se tornam objetos de trabalho descartáveis, substituíveis, como mercadorias. Mesmo vivendo neste sistema, pessoas negras escravizadas foram capazes de se adaptar, resistir e existir. Porque para os africanos, o corpo é “importante fonte do sabre ancestral, é o lugar da transmissão de conhecimento, de registro de experiências humanas individuais e coletivas.” (SALES, 2012, p. 93). Considerando as cosmovisões africanas, o ser humano é um microcosmos, “é a microsíntese de todos os elementos que compõem o universo”(OLIVEIRA, 2001, p.22). Sendo assim, entendo que quando há o movimento de diáspora há também uma adaptação desse corpo-cosmos capaz de se relacionar com o universo que ele foi obrigado a estar. No contexto da cidade, mulheres e homens negros passam a utilizar as brechas do sistema escravocrata para continuar e passar os saberes, a religiosidade, o modo de viver. Pois corpo é território, e por mais distante que se esteja da origem, o corpo carrega sua identidade e é um elemento da natureza também. Por isso

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9. Essas denominações foram retiradas e atualizadas de A crítica da razão negra (2014), Achille Mbembe, onde o autor vai se referir às pessoas escravizadas como homem-objeto, homem-mercadoria, homem-moeda. Acredito ser mais atual e condizente com este trabalho colocar o termo “corpo” e não o “homem”, tirando a centralidade do masculino.


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passamos a ter o candomblé, as roças mais distantes, a utilização das folhas na cura (sendo esta também de origem indígena), os mercados de rua, a utilização das ruas como o local de troca/movimento/encruza, até em questões culturais e artistas. Essas foram algumas formas de adaptação do modo de vida de algumas nações que chegaram no Brasil. O corpo passa a ser o abrigo da memória capas de reescrever a história dessas pessoas. Porque mesmo em África, o corpo e a oralidade já eram referência de arquivo. Como Leda Maria Martins (2003) explica em Performance da oralitura: corpo, lugar da memória,“A textualidade dos povos negros africanos e indígena, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de linguagem e modos de aprender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas.” (p.64). Cabe aqui dizer que o eco aparece em outras performances. Pois, para Martins, palavra é movimento e assim a escrita passa a ser mais do que estar em papel/letras. E por isso, a dança, a música e outros meios performáticos que saemo livro se tornam meios de comunicação importantes para o histórico das culturas afro-indigena brasileiras. Em Itapuã, por exemplo, a performance corporal feminina vai estar presente nas lembranças temporais sobre os espaços específicos, como a Lagoa do Abaeté ou o Mar (mas esse mais vinculado com a relação dos pescadores e a Sereia do Mar). A dança, a música na hora do trabalho são performances do cotidiano da mulher ganhadeira e lavadeira, quando elas ainda trabalhavam na Lagoa do Abaeté, quando minha tia conta que minha avó fazia todas as atividades domésticas cantando, quando a gente sabe que em rituais afro-brasileiros os preparativos são feitos também a partir do canto, da música e do ritmo. Essas manifestações corporais trazem o ancestral na memória coletiva de mulheres, entendendo que "[...] Na cultura africana mostrava-se inconcebível, e continua sendo, que se fizesse qualquer separação entre a música, a dança, a canção, o artefato e a vida do homem ou sua adoração aos deuses.(...)"(MARTINS, 1997, p. 125). Além disso, diferente do ocidente, as nações não ocidentais (aqui africanas e indígenas) são pautadas na base do entendimento de que não somos seres individuais, fazemos parte de um todo e vivemos ligados como uma teia. “Sem o respeito e a preservação aos elementos naturais não é possível ter uma vida social saudável e, inversamente, a vida social sã é impossível sem uma natureza salutar. Tudo está em tudo. Tudo participa de tudo. Tudo influencia tudo.”(OLIVEIRA, 2001, p. 22). É nesse sentido também que entendemos que o corpo negro diaspórico é dotado de encruzas, encontros que tecem sua identidade e o fazem viver a cidade a partir desses múltiplos referenciais. Martins, em Afrografias da Memória (1997) vai descrever essa relação de formação de identidade, corpo e encruza nesses nossos arquivos orais: "As culturas negras que matizaram os territórios americanos, em sua formulação e modus constitutivos, evidenciam o cruzamentos das tradições e memórias orais africanas com todos os códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ou ágrafos, com que se confrontam. E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a

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identidade afro-brasileira, num processo vital móvel, identidade esta que pode ser pensada como um tecido e uma textura, nos quais as falas e gestos mnemônicos Dos arquivos orais africanos, no processo dinâmico de interação com o outro, transformam-se e reatualizam-se, continuamente, em novos e diferenciados rituais de linguagem e de expressão, coreografando a singularidade e alteridades negras." (MARTINS, 1997, p.26)

Falar sobre corpo na perspectiva negra é considerar que a tradição viva está associada diretamente à ele. Os saberes são o que formam o ser e que são passados por gerações dentro de uma família ou grupo. Por isso temos na cultura afro-indígena o respeito aos mais velhos, quando entendemos que quando mais maduro o corpo e a mente estão, mais sábio a pessoa é. Então o corpo é importante transmissor do saber, porque ele vem como herança dos nossos ancestrais para a nossa formação. Quando chegamos ao feminino e a relação do corpo com a cidade, vale falar sobre o papel que a mulher desempenha em uma sociedade de essência patriarcal europeia. Onde o homem tem um nível de relevência grande e as mulheres perdem o seu poder de fala. Em culturas matrilineares e matriarcais, há uma mudança de papel dessas mulheres, não no sentido de se impor em relação ao homem, mas de ter um nível de relevãncia associeada ao lugar de chefe e liderança, com a função de gerenciadora. Chego assim, ao seguinte:

“Quando eu tiver razão eu viro presidente!” Essa era uma das frases que eu mais ouvia de minha avó Noca quando eu era criança. Quando me lembrei dela, fui levada de imediato a pensar o corpo negro feminino. E no contexto, minha avó estava se referindo apenas a sua família. Só que agora levo essa frase para outra escala. Chega a ser quase impossível imaginar termos minha avó, dona Mariinha, D. Maria, D. Maria do Xindó e todas as outras mulheres que tive contato e qualquer outra mulher negra, ocupando o maior cargo de poder do nosso país. Talvez a partir da arte, com a criação de novas memórias e futuros poderíamos chegar à esse imaginário. "Em sua dupla condição de mulher e negra, a personagem negra feminina tem sido objeto de vícios de representações que espelham não apenas os registros do olhar masculino, mas também convenções e figurações inseminadas pelo registro do racismo. Nas cenas literárias, no Brasil, predominam, com raras exceções, três modelos de ficcionalização do corpo feminino da negrura, inscritos em versos e prosa: a mãe preta, perfil da generosa mãe-de-leite, sempre sorridente e amável, sempre alimentando e ninando a criança branca; a empregada doméstica, uma espécie de força bruta assexuada, de rosto indiferenciado, na função reificada de objeto do lar; e a insinuante maluta, corpo erotizado em excesso, objeto dos desejos "ocultos" do homem branco."(MARTINS, 1996, p.2)

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Nos símbolos dentro das narrativas criadas nas diversas áreas da arte e comunicação, e que são também um reflexo da sociedade brasileira, o que se perpetua no imaginário coletivo do que é ser mulher e negra aqui neste país, há uma carga do olhar masculino e branco (hegemônico) sobre o que pode ser essa figura. As personagens mulheres negras acabam sempre caindo dentro de um padrão que atualmente tem sido reprimido. O importante de se notar nas conversas que tive com o grupo de mulheres que tive acesso é que todas elas, apesar do mundo exterior representar o feminino nesteoutro lugar de, cheio de estigmas, foram criada em uma outra lógica. Como na pesquisa feita foi encontrado que parte dos grupos/nações que compuseram os primeiros moradores de Itapuã, além dos indígenas, tenham sido de origem iorubá nagôs e malês, e considerando que muitos dos malês, em Salvador, faziam parte de nações iorubás e tinham se convertido próximo ao momento da Revolta de 1835. É possível notar como os saberes e modo de vida relacionado à eles foi passado até chegar as gerações atuais. E assim, chego a frase de minha avó que resume o que essas mulheres são e como a imagem delas dentro das suas famílias e dentro do bairro se distanciam muito do que foi criado para simbolizar o lugar da mulher negra dentro da sociedade brasileira. Como elas são símbolo de lidrança e indepedência em relação ao masculino.

"Vai esperar José chegar?"

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Mama África A minha mãe é mãe solteira E tem que fazer mamadeira Todo dia Além de trabalhar como empacotadeira Nas Casas Bahia CHico césar - Mama áfrica

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casa





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A casa é um local onde nos abrigamos, estamos protegidos de intempéries. Nos sentimos seguros quando temos uma casa para ficar. É na casa que guardamos as memórias e compartilhamos tudo em família. É. o “espaço de convivência de pessoas ligadas por laços de parentesco ou dependência, estabelecendo relações de afeto, solidariedade, tensão e conflito.” (HITA,2014,p. 39). Nesses locais, há normalmente uma relação hierárquica entre pais, filhos, avós, netos, etc. pois, como sabemos, vivemos em um sociedade onde homens brancos estão ocupando o maior posto da sociedade, as decisões são tomadas e feitas a partir deles e para eles. Assim, uma sociedade onde o masculino é o centro, “(...) se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a provocação, o crescimento , a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade” (MATURANA, 1993, p. 13)

Mesmo fazendo parte desse tipo de organização social, onde há uma relação de extremos entre todos os sentidos da vida,10outras formas de viver em comunidade, nas famílias brasileiras e mais especificamente soteropolitanas, foram incorporadas ao que nos foi (é) imposto. Com a diáspora, muitas famílias africanas chegaram no Brasil destruídas, ou porque os seus integrantes foram separados lá em África ainda ou porque no momento da venda dos homens, mulheres e crianças escravizados a família não era considerada. Como uma forma de enfraquecer essas pessoas que já estavam em estado do vulnerabilidade, o patriarca europeu fez o que era essencial para a sua existência: dominou e se apropriou. Da aldeia indígena, às famílias matrilineares africanas, aos modos de vida patriarcal europeu e matriarcais também foram algumas formas de vida em comunidade incorporadas. No caso de famílias negras, com o desmonte delas com o processo da escravidão, rearranjos aconteceram e as mulheres tiveram que se tornar as chefes das casas. Mesmo que os homens estivessem presentes, essa presença não era (e não é até hoje) garantida. Homens negros, eram utilizados como mão de obra braçal quando chegaram no Brasil e com o fim da escravidão e a tentativa de embranquecimento da sociedade, a política de genocídio de homens negros, principalmente, foi aplicada e segue se atualizando no presente. bell hooks discute sobre as relações afetivas entre pessoas negras e trazer para esse trabalho trecho de “Vivendo de amor” tem sido uma das formas de buscar entender e explicar o que acontece(u) nas famílias negras. “Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na condição de escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.” (hooks, 1994) 10. Só existe bom e mau, superior inferior, autoridade e subordinação, etc.

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Na atualidade de casas em locais periféricos de Salvador, e talvez em boa parte do Brasil, normalmente a gerência e a liderança são atribuídas às mulheres. Pelo grande número de famílias onde não há a presença masculina nos lares, como já dito mais acima. Essas mulheres criaram um tipo de organização familiar onde elas são a presença mais importante, a centralidade do grupo. E mesmo neste lugar, existe uma diferença entre a maneira de liderar essas famílias quando comparamos com as de origem patriarcal. Como Patricia Hill Collins em “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro” (2016) , grupos de minorias tendem em suas lutas a ressignificar os termos comumente utilizados para desvalorizar as suas existências. Matriarcas são, ao pé da letra, as versões femininas de patriarcas. Utilizarei esse termo aqui para falar sobre as mães, avós, mulheres que tive contato para a criação deste projeto, mas entendendo que ele já tem outro sentido. A matriarca dentro de bairros periféricos de Salvador remete à memória da Mãe de Santo, mesmo que essa memória esteja se tornando algo muito distante/esquecido do imaginário coletivo com a proliferação da religião protestante nas periferias. Sabemos que algumas regiões da cidade começaram a se consolidar como bairro a partir do assentamento de terreiros de Candomblé: primeiro as roças chegavam e depois a população negra, que não tinha acesso aos direitos básicos -de moradia a saúde, iam ocupando o entorno do terreiro, normalmente começando pela própria família de santo e depois se expandindo para outras famílias não ligadas diretamente à entidade religiosa. Isso acontecia porque o terreiro ficava em locais mais afastados da cidade, onde havia a possibilidade de ocupação do espaço e porque as mães e o terreiro davam apoio à essa população que não tinha acesso ao básico para a sobrevivência. Essas mulheres atuavam sendo as mães-de-todos e, nesse sentido, ser a mãe e matriarca 11 remetia à autoridade de ter sido escolhida pelos orixás e ser a mais velha, com mais conhecimento, de experiência de vida e de ensinamentos. Mas também àquela mãe preta que na escravidão era a mulher que reproduzia mais escravos, a que amamentava os filhos dos donos de engenhos (e de escravos) e a que cuidava e fazia parte da criação e formação das crianças brancas. Voltando a Patricia Hill Collins, ressignificar o termo é uma forma de revolucionar com as armas que elas tinham. Além disso, essas mães que foram de grande importância para a população aqui no Brasil, tinham uma herança ancestral de suas nações em África, com modos de vida baseados na matrilinearidade, como Oliveira (2001) explica: “Com referência à África tradicional temos, por exemplo, a organização política a partir das linhagens matrilineares. Quem governa são os homens, mas quem dá legitimidade são as mulheres. Ora, há uma complementaridade entre o masculino e o feminino que garante a estabilidade política da comunidade.” (OLIVEIRA, 2001, p. 65)

Na busca pela compreensão do que acontece dentro das casas de famílias negras brasileiras, além da presença dessas matriarcas havia algo mais. Compreendendo que houve uma subversão desse lugar ocupado e da própria palavra matriarcado. Essa mulher,

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mãe-de-todo-mundo, a principal responsável pela produção e reprodução do seu terreiro (...) Na Bahia, ser mãe autoridade máxima em seu terreiro(...)” (HITA, 2014, p. 22)


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por mais que ocupasse o espaço julgado subalterno pelo patriarcado, conseguia construir uma família com base na horizontalidade. E por isso, para falar sobre as mulheres que tive contanto, encontrar o termo matrística foi uma maneira de agregar o significado da presença feminina dentro das casas, quando: “O termo ‘matrístico’ é usado com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e hierárquico (...) A palavra ‘matrístico’, portanto, é o contrário de ‘matriarcal’, que significa o mesmo que o termo ‘patriarcal’, numa cultura na qual mulheres tem o papel dominante (...) ‘matrística’ é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e no qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos (...)” (MATURANA, 1993, p.4)

Então, para falar sobre as casas em Itapuã e essas mulheres que chefes de família, foi necessário entender cada termo acima discutido para acessar a memória que está nas casas das mulheres do bairro. Desde minha avó, minha mãe, tias e as outras mulheres da constelação de afetos e contatos que tive. Nesses lares as mulheres, mães e avós são o ponto central de toda a organização familiar, elas são o ponto difusor, a partir delas que tudo relacionado à família vai acontecer. Dispondo ou não da presença masculina nessas casas, essas mulheres conseguem viver com um misto entre o matriarcado, a matrística e a matrilinearidade. E como já disse anteriormente, o ponto de partida sempre será a casa de minha avó. Em 1973 minha família mudou-se para o bairro e foi morar nessa casa que eu conheço. Itapuã foi o local de veraneio para eles por alguns anos até que minha avó Noélia (Noca) e meu avô Dito resolveram se mudar para o bairro. Na verdade minha avó decidiu que ia morar lá. Antes eles moravam na Liberdade, desde lá, a casa era gerenciada por Noca, a palavra final era sempre dela e ela foi se tornando a figura da mulher que tinha o poder na família. Minha avó não trabalhou fora de casa depois que casou, era meu avô Dito que levava o dinheiro para casa (quando levava). Por isso, minha avó (como muitas mulheres) exercia outras funções dentro de casa para conseguir manter os 13 filhos que tinha.

Mama tem calo nos pés Mama precisa de paz Mama não quer brincar mais Filhinho dá um tempo, é tanto contratempo No ritmo de vida de Mama

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“Ela trabalhou sim Sofi. Ela trabalhou no ‘curtume e bragança’. Foi lá que ela conheceu seu avô, quando ela era solteira. Aí depois que ela juntou com ele, não trabalhou mais fora. Mas mãe a vida inteira trabalhou, ela costurava, ela vendia (antes de mim), ela vendia coisas, fazia coisas pra Leo vender na feira. Ela tinha uma quitanda quando eu era criança, uma quitanda que ela vendia. Ela sempre foi uma empreendedora. Caixa mãe fazia direto pra ter dinheiro, mãe tinha a quitanda dela. Mãe teve uma escolinha. Escola normal em que ela era a dona, Lulu a professora e Brasília era aluna. Pense aí? E eu era bolsista, então não podia reclamar muito da vida. E ela sempre estava se virando, porque Dito não deixava o dinheiro suficiente. Quando ele dormia lá, a gente tinha que sair correndo atrás dele de manhã cedo. Levantava da cama debaixo de porrada pra poder ir buscar o dinheiro na mão dele. Eu só conseguia pegar o dinheiro na mão dele quando ele já tava perto da San Martins, que ele me dava um dinheiro escondido no beco e eu voltava correndo com esse dinheiro pra dar a mãe. Esse dinheiro era pra comprar care, geralmente era pra comprar carne. Sem remuneração ela teve muito trabalho (...) E vó, quando foi morar com a gente, ela fazia brinquedos tipo bambolê, peão e a gente ficava esperando ela pra poder utilizar o brinquedo. Vó era vendedora também, eu me lembro que vó vendia acaçá. Que eu detestava acaçá. Vó fazia acaçá e vendia. essa lembrança tá como uma fumaça na minha frente... Mãe já veio de uma mulher batalhadora, que não tinha homem pra determinar a vida dela não. Ela mesma se resolvia e queria assim. Eu soube que ela não queria homem nenhum mandando na vida dela. E aí ela trabalhava para se sustentar e cuidar dos filhos dela e depois que ficou bem velhinha foi morar com mãe.”

(Tia Brasília em conversa gravada em Novembro de 2019) a v a ó h n e i vó Ca em lixta sobr a h sobre Mariin a, sua m ã e e vó

As meninas foram crescendo, meu marido trabalhava ( era motorista), alimentção nao faltava. Mas no Lomanro, para poder entrar, porque fazia adimição... Eu tive que pagar, nao era de graça. Agora todo mundo vai de sandália, com o que quer. Antes era rigorosamente fardado, ai a gente tinha que comprar farda livro, tudo pra lá. então eu tinha que trabalhar pra dar esse suporte, pras meninas nao pararem de estudar. Eu trabalhava, como minha mãe me ajudou, eu tinha que ajudar minhas filhas, eu tinha que ajudar minha mãe. Quando minha mãe ficou viuva, eu tinha 4 anos de idade, ai ela tinha, teve 5 filhos. Meu pai morreu e ela ficou grávida de 6 meses e ai ela trabalhava pra criar. Minha avó ajudou muito mas não tinha o que fazer, nao tinha como ganhar. Ai ela teve que trabalhar. era água que a gente pegava na cabeça. aAroupa era toda lavada no Abaeté. Era tudo muito sacrificado. Minha mãe criou a gente fazendo saindo, vendendo saindo com o tabuleiro na cabela pra vender. Como a de muitas pessoas daqui de Itapuã.

(Dona Mariinha em conversa gravada em Janeiro 2019)

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Em Itapuã, como também em outras localidades periféricas da cidade, é comum ter mulheres à frente de suas famílias. Na rua de minha avó moram mais algumas famílias com o mesmo formato que a nossa: a mãe (e agora avó) sendo o foco-difusor e os outros membros que estão ali na casa por causa dela. Essa relação com as mulheres, mães, como figuras principais de um núcleo tem uma conexão ancestral com as civilizações africanas. A matrilinearidade era o formato de organização de algumas nações que vieram para o Brasil escravizadas, principalmente a iorubá que tem até hoje maior destaque entre todas as outras nações já citadas mais acima. E mesmo com essa centralidade, é importante voltar a citar que a presença masculina existia e existe, ela não é garantida e por isso tem um lugar de menos visibilidade e influência, por isso: “Reconhecer a centralidade da mãe e das redes de parentescos produzidas através dela não significa, entretanto, afirmar, que nas famílias como as estudadas exista ausência de homens e abundância de mães.” (HITA, 2014, p.25) 12

Minha avó e as mais velhas que tive contato, por mais que tivessem homens por perto ainda assim são o ponto de poder da casa. É a partir delas que os postos de responsabilidades dentro do lar são colocados, pois elas são vistas como a figura “(...) da chefe da casa e da família, aquela que exerce poder sobre a casa e sua parentela e que é importante foco-difusor a partir do qual se multiplicam relações entre todos os demais membros da rede, extrapolando, por vezes, os limites físicos dessa casa enquanto local específico de residência (uma casa só), podendo operar na conjunção e coparticipação de várias casas em uma mesma rede de parentesco” (HITA, 2014, p. 20 e 21). Por esse motivo, a moradia dessas mães/avós é também o ponto difusor da família. Normalmente em bairros periféricos, como Itapuã, a primeira casa é construída sendo dessa mulher mais velha e ao seu redor os parentes vão se organizar. Como lá na referência da mãe de terreiros que chegaram primeiro nos bairros. Este imaginário da representação da mãe-de-todos ligado às matriarcas, que nos remete à mãe de santo, nos mostra como mesmo no presente, com o crescimento de um público negro em religiões protestante (e em sua maioria intolerantes), as representações ancestrais continuam resistentes na memória coletiva. Mesmo que involuntariamente, a ligação entre essas mães/avós, o feminino matrilinear e a matriarca mãe de santo acontecem. Quando minha tia conta a relação de minha avó com a vizinhança, as ganhadeiras contam como seus filhos eram criados na Lagoa e Mariinha conta a relação do respeito às mães da vizinhança. Todas têm pontos em comum quanto a criação de filhos e filhas a partir desse ponto difusor associado à uma corrente de mulheres que compartilhavam as responsabilidades dos cuidados com os filhos da e na rua. A casa vai se estender para a rua, nesse sentido. Em “A casa das mulheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Bahia”, Maria Gabriela Hita vai explicar que “A força da autonomia das mulheres, por um lado e a instabilidade conjugal ou procriação (de filhos) de distintos parceiros(as) por outro são características marcantes na história dos membros” de redes matriarcais, em Salvador, na pesquisa feita por Hita. E nessas famílias os homens acabam tendo participação de privilégios, considerando que esse lugar não ativo que ocupam pesam na balança do lugar que as mulheres precisam ocupar. 12.

de suas casas por eles normalmente não estavam em casa ou não se colocavam também no lugar de chefe dentro do lar.

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alguns arranjos familiares atualmente

RUA DO CÉU

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R. SNR. BOA VISTA

Rua do Céu

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RUA Calazans Neto

RUA N. Snr. da Angústia

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RUA DO CÉU

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Rua do Céu


RUA Calazans Neto

RUA N. Snr. Vitรณria

alguns arranjos familiares em casa entre 1990 e 2000


R. SNR. BONFIM

RUA DO CÉU

R. SNR. BOA VISTA

Rua do Céu


alguns arranjos familiares em casa entre 2000 e 2010

RUA Calazans Neto

RUA N. Snr. Vitรณria


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Quando minha avó chega em Itapuã, a sua relação conjugal já estava em um momento que meu avô Dito era presente na formação dos filhos. Tanto que há uma diferença relevante de depoimentos sobre o lugar que meus avós ocupavam dentro de casa para os filhos mais velhos e minha tia Virgínia Lara, a mais nova das 8 mulheres. O homem, na nossa casa, não podia ser a figura de autoridade porque ele não estava presente a todo momento. E volto ao início desse eixo: “Vai esperar José chegar?” Era uma frase que minhas tias e minha mãe aprenderam com minha avó sobre a presença masculina. Em organizações matrilineares e matriarcais, as mulheres precisavam ter autonomia para não esperar José chegar e pedir autorização à ele, por sobrevivência. Se minha avó não tivesse vendido na quitanda, o dinheiro da comida não chegava. Se Mariinha, vizinha de frente de minha avó, não trabalhasse com costura e lavando roupa no Abaeté como todas as ganhadeiras, a comida de casa não chegava. Mesmo com a presença frequente dos homens, as mulheres precisavam ter autonomia e consequentemente se tornarem a referência dos mais novos que viviam em suas casas. Então esse status de matriarca “dependerá da força e importância simbólica que sua Casa (sinônimo de grupo familiar e domicílio) logre conquistar entre parentela e comunidade (...)” e “(...) está diretamente relacionada com autonomia e a força que estas mulheres desenvolvem na lida com adversidades da vida.” (HITA, 2014,p.27)

“Qual a palavra o B não sobe?” “(...)da janela minha mãe gritava os meninos na praia e elesque escutavam. 13 Eles ficavam pulando da pedra, aí ela vinha daqui e gritava o nome deles e eles ouvia. Daqui de casa, da janela do quarto dela! Saia despreocupada. “Obedece” Se um filho fazia mal feito, o vizinho podia reclamar, se fizesse malcriação, dava palmada, e se o menino respondesse… Tinha que obedecer os vizinhos. Então se criava assim: com amizade e respeito! Que agora é a coisa mais difícil de ter. Pois Itapuã era uma paz, uma paz!” (D. Mariinha, conversa gravada em Janeiro de 2019)

Em Itapuã, como em muitos bairros mais pobres da cidade (e do Brasil) a relação de vizinhança era importante para a criação dos filhos dessas mães, nesse sentido de rede de apoio que já falei acima. Por isso, as mães de todos tinham um grau de importância e respeito que ainda perdura e se consolida mais na velhice dessas mulheres. Tornando-as como as anciãs dos bairros e figuras conhecidas por toda a região, “(...) a responsabilidade sobre as crianças, como também observado em outros contextos, torna-se coletiva e não necessariamente atribuída aos próprios genitores. Esta prática é bastante difundida entre famílias pobres, (...)” (HITA, 2014, p. 49)

No livro de Narcimária do Patrocínio Luz, “Itapuã: da ancestralidade africano-brasileira”(2012), há um exemplo sobre o papel de muitas mulheres do bairro e a importância da relação de vizinhança entre elas e como os saberes passados de gerações foram utilizados para manter a saúde do lugar, quando ainda não existia atendimento médico próximo. Esse é um dos pontos em que minhas tias tem bastante referência, quando moravam ainda na Liberdade e quando foram morar na casa de Itapuã. Para os filhos minha avó era tudo. Ela exercia todas as profissões possíveis para a sua família e quem estava ao redor.

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13. Essa era uma das brincadeiras/trocadilhos que minha avó utilizava para ensinar aos netos como se comportar perto dela e dos mais velhos.


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O cultivo de plantas em casa (até hoje) dava um suporte medicinal à família, não só para a minha mas para a maioria das famílias negras. A avó de Gustavo, dona Maria, me contou que dá banho de folha todo ano no neto. Esse saber ancestral, que vem de África e de nossa raíz indígena, trata de questões relacionadas à saúde e está presente dentro da casa. Desde o momento de plantar a erva de cura ao cuidado de preparar o banho. Diferente de Rinha, moradora de Itapuã, rezadeira e que recebeu sua missão e profissão de sua avó, minha avó e dona Maria não são curandeiras. O saber passado de suas mãe, que aprenderam de avós de de gerações anteriores, que também n]ao eram curandeiras e rezadeiras mas aprenderam o básico de sobrevivência com o que se tem a partir da terra. ‘

“A mãe de Sr. Cecílio teve 17 filhos que nasceram com o apoio de parteira tradicionais, gerações de mulheres que da comunalidade que ajudavam umas as outras na hora do parto. essas mulheres africano-brasileiras tinham o conhecimento sobre parto, incluindo aspectos sobre a saúde materna e do nascituro; atitudes para atender a gravidez de risco; alimentação para as mães paridas e o bebê em crescimento etc., numa época em que Itapuã não dispunha de alternativas de atendimento de saúde. Esses saberes femininos estendiam-se à produção de remédios caseiros, elaborados a partir de relação da comunalidade com o mar e a mata sobre as dunas.” (LUZ, 2012, p. 23)

A casa, onde aprendemos dessas mulheres o básico para viver, a autonomia feminina, para além de ser um local dinâmico com vida, “Tal como as pessoas, pode-se dizer que as casas também nascem, vivem, desenvolvem-se, morrem ou declinam. E renascem.” (HITA, 2014,p. 43), é um corpo que se desenvolve com os processos da família. Cresce de acordo com o crescimento da família e tende a alcançar outros espaços fora do seu terreno inicial. Em Itapuã, esse tipo de organização doméstica matriarcal/matrilinear será o ponto difusor de toda a construção de algumas ruas, como é o caso da rua da Nova do Abaeté, onde Inaê mora com a família. De início sua avó chega e depois seus parentes todos vão ocupando os terrenos ao lado. Wafina, outra moradora, vive no Largo do Coreto14onde todas as casas são de seus parentes (primos, avós, tios, pais). Esse movimento ocorre justamente porque uma mais velha chega primeiro, e sua moradia se torna a referência de cuidado, sabedoria e segurança para a comunidade familiar. “Entendo esse tipo de organização doméstica como resultante tanto da ausência de políticas habitacionais adequadas até um passado recente, como também, no contexto estudado, expressão de uma matriz cultural negra que se desenvolveu em Salvador e no Recôncavo Baiano desde a época colonial(...)” (HITA, 2014, p. 17)

E então que chego no ponto: as casas dessas mulheres funcionam como uma organização/ corpo que abriga toda a memória familiar. A casa, sendo assim, é a materialização dessa centralidade do feminino mais velho. Na casa vão acontecer também os sambas organizados por essas mulheres, já que elas não podiam sair para a rua para fazê-los. É dentro de casa que as primeiras organizações de grupos de samba e música começam a aparecer em Itapuã com Dona Cabocla e as Ganhadeiras (ainda sem ser o grupo musical) e mais tarde chegam as ruas. E a rua, vai ser a extensão da propagação desse poder. 14.

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Vai procurando Que um dia cê acha Pra que me chamas? Xênia França




Rua







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Chegamos a rua a partir dessa extensão da casa. A rua vai ser onde todas essas mulheres vão ter o domínio, partindo da premissa do lugar comum. Local onde as trocas aconteciam, entendendo que a rua "se constitui simbolicamente num território que contribui fortemente para a atualizar nas comunalidades a visão de mundo, as condutas, as ações e as relações sociais herdadas dos antepassados africanos." (SODRÉ, 1988). A rua será o lugar onde esses compartilhamentos irão acontecer. O que é aprendido dentro de casa é levado para a rua, pelo conhecimento carregado pelo corpo e exposto na oralidade e nas performances corporais do cotidiano. Na rua, a relação de intimidade e vizinhança se consolida mesmo com a preservação de toda a particularidade de cada casa, a vizinhança vai funcionar como uma grande aldeia. Aldeia essa que justifica a relação de coparticipação das mulheres e a relação de vizinhanças, entendendo que, “Itapuã representa a origem das origens, o princípio inaugural dos modos de sociabilidade tupinambás, que significa ‘o mais antigo’, o ‘primeiro’. Compreendida assim, Itapuã integra a corrente mítica ancestral dos povos inaugurais, é um ancestral transformado numa magnífica pedra guardiã dos mistérios que constituem a territorialidade que acolheu muitos povos. Na referência tupinambá, o território, a terra, tem valor porque pertence a todos, à comunalidade, não é propriedade individual. A terra é sagrada, é um bem comum.” (LUZ, 2012, p.42)

Depois dessa primeira ocupação com os povos originais, Itapuã agrega à sua população os negros escravizados que chegaram no Brasil em diáspora. Estes habitantes novos chegam para a pesca da baleia na expansão do mercado colonial europeu. A pesca 15 desse animal era feita no intuito de utilizar seu óleo para a iluminação de Salvador. 16 17 Alguns destes primeiros africanos escravizados que chegaram eram nagôs e malês e antes da Revolta de 1835, ocorreram as primeiras revoltas malês no território de Itapuã. A primeira em 1814 e a segunda em 1816. Mesmo com a situação em que se encontravam, as população africana que estava situada em Itapuã conseguiu viver em paralelo a continuidade do modo de vida que tinham em África. Como um território paralelo alternativo ao que estava posto no século XIX, o Quilombo Buraco do Tatu vai se instalar e se manter na região por 20 anos, também como uma organização militar bélica para se proteger de quem estava fora. Com isso, além de toda a influência ancestral indígena, haverá também essa relação ancestral africana. E esses modos de vida irão se perpetuar por gerações até o presente. A relação com as águas (salgada e doce), a forma de viver a rua, a construção das casas com essa figura feminina como ponto difusor. A forma de socialização vai ser um dos pontos de evidência da existência real dessa ligação que as gerações de mulheres em Itapuã vai ter com os seus ancestrais africanos: "(...)A socialização dentre os africanos é o processo de formação dos indivíduos e suas personalidades de acordo com as normas tradicionalmente estabelecidas em suas sociedades.(...)" (OLIVEIRA, 2001, p. 32) 15. A pesca da Baleia foi introduzida no brasil no século XVII e atingiu seu auge entre os séculos XVIII e XIX. A proibição da pesca ocorreu apenas em 1987. Informações retiradas de” Itapuã da ancestralidade africano-brasileira”, p. 61. 16. “(...) O termo Nagô, no Brasil, é utilizado de forma genérica a todos os grupos vinculados a uma cultura, e todos que se consideram descendentes de um único progenitor mitológico, Odùduwá.” (LUZ, 2012, p. 68). 17. Malês eram os africanos muçulmanos que foram apelidados em Salvador de Malê. “(...) Um levante de negros africanos (haussás e nagôs, basicamente) convertidos ao islamismo, que aqui deram conteúdo de classe à jihad- guerra santa muçulmana. (...) E não foram poucos aqueles que, naquela época, se tornaram ”malês”, isto é, abraçaram a fé islâmica, dispondo-se a ferir frontalmente a formação social escravista.” (RISÉRIO, 2004, p. 335)

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Continuando com o histórico de Itapuã, depois da abolição da escravatura a comunidade será local de abrigar ex escravos. Entendo que essa ocupação se dá por dois fatores: era uma região mais afastada e fora do que se considerava a cidade e ainda tinha um forma de vida muito rural e totalmente diferente do que acontecia em Salvador. Assim, como já havia a relação da pesca com a região desde o início da primeira ocupação portuguesa, a comunidade vai se consolidar como uma colônia de pesca. Desde esse momento até a mudança do século, Itapuã só será incluída na cidade de Salvador depois do início da expansão urbana com a construção do aeroporto. Essa expansão começa depois de 1945 e com isso modo de viver das pessoas que moravam no bairro era muito mais parecido com o que os malês, nagôs, indígenas levaram para Itapuã e perdurou por muito mais tempo, inclusive fisicamente no espaço com as casas e seus grandes quintais, as ruas de barro, a relação com o ambiente em que àquela população vivia. Como disse Mariinha, “era tudo mato”. Com a construção do aeroporto e depois da Avenida Otávio Mangabeira a urbanização chega com mais intensidade em Itapuã, com a estruturação do bairro a partir da instalação de rede elétrica, iluminação, a chegada da Vila Militar. Nesse processo, as vias principais do bairro começaram a se parecer mais com o que era a cidade de Salvador e o miolo vai se preservar com o que era já tradicional para a população. E é a partir desse momento também que haverá um crescimento populacional da região. Primeiro as ocupações durante o verão que foi o primeiro contato da minha família e da dona Maria com o bairro- e depois para a moradia de fato. Com isso, Luz explica os movimentos que aconteceram em Itapuã: "Nesse processo de urbanização, os pescadores, as lavadeiras, as ganhadeiras, iam se desfazendo das suas casas vendendo, alugando para o veraneio para ter algum sustento, pois o modo de vida urbano que se instalava pelas políticas de expansão do mercado capitalista e suas perspectivas espaciotemporais consumistas iam sugando as elaborações do viver cotidiano da comunalidade africano-brasileira, em Itapuã."(LUZ, 2012, p.110)

Nesse sentido, é possível notar as mudanças na maneira de implantação dos novos moradores e da nova vida urbanizada menos ligada ao costume afro-indígena passado como herança de geração em geração. As casas que se estendem para a rua e as ruas que se formam a partir das famílias passam a ficar no miolo do território, enquanto a nova ocupação na orla tem um outro tipo de organização espacial e é também mais favorecida financeiramente. E assim, Luz(2012) continua tratando da questão da urbanização e como Itapuã lidou com a nova fase: "A cidade de Salvador está impregnada por essa ordem urbana, totalitária e ascética de organização. Salvador, que tem a presença predominante da população de descendência africana, que expressa outra ordem de valores próprios, vê-se diante de dissimetrias espaciotemporais que impõem a ausência de comunicação entre as pessoas, a pretensa organização ascética das ruas, que tende a arrefecer a pulsão comunal, e as necessidades de comunicação interdinâmica e interpessoal". (LUZ, 2012, p. 110)

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Com o crescimento do bairro e da população, antes o que era a colônia se tornou o miolo do bairro e atualmente a praça central onde grande parte do lazer se encontra. Itapuã passou por alguns processos de divisão do território com a chegada de novas vias importantes para a cidade como a Avenida Paralela e a Avenida Dorival Caymmi. Atualmente Itapuã está divida em: Piatã, Stella Maris, Bairro da Paz, Placafor, Alto do Coqueirinho, Nova Brasília, Nova Conquista, Loteamento Pedra do Sal, Vila dos ex-Combatentes, Avenida Dorival Caymmi, Alameda da Praia, Praia do Flamengo (LUZ, 2012, p.112) e KM-17. De acordo com as mulheres que tive contato e com percepções sobre o espaço, esse recorte traz também uma reflexão sobre a forma de utilização do espaço através da arte. Como dito na introdução, esse é um bairro conhecido mundialmente por sua musicalidade e poesia, mas as diferenças da realidade para o que nos conhecemos abre um "leque de opções", de possibilidades musicais por todo o bairro. Nos mostrando que Itapuã não é somente cantada em verso e prosa por Vinícius. Há um outro protagonismo dentro do bairro que torna a bossa nova se torna mais um dos ritmos musicais e não o único capaz de descrever a vida cotidiana do bairro. A orla é 18 19 conhecida pelos sambas, serestas e arrocha; o miolo pela tradição do samba na casa de dona Cabocla e no bar de seu Regi; em regiões mais periféricas como o KM 17 acontecem alguns paredões e em uma rua específica da Orla também, próximo 20 ao Farol de Itapuã, na Rua das Bolas; durante o carnaval a Orla de Piatã é o local do palco do rock; por última, a casa da música onde acontecem projetos relacionados 21 ao aprendizado e saraus; por último, os slams de rap e poesia que acontecem na praça, promovido pela juventude do bairro ligada ao rap. É importante mostrar esse leque de possibilidades porque na pesquisa em jornais de várias épocas, todas as matérias falavam sobre a dualidade das ruas de Itapuã com problemas diversos e a Itapuã bucólica, cantada em verso e prosa de Vinícius de Moraes. Todas as reportagens tinham esse um versus outro como manchete: Itapuã cantada em verso e prosa e a realidade vivida. De fato é um bairro cantado, mas como dito acima, por muitos outros formatos de musicalidade e rima, Itapuã não se restringe a apenas um meio de comunicação pela arte, mas por múltiplas plataformas. E com isso, a relação das mulheres Itapuanzeiras com a arte e mais especificamente com a música, está presentes totalmente nas representações simbólicas do bairro. Além da casa, da sua extensão para a rua, essas mulheres atuam no bairro como um todo e na rua de forma marcante. As ganhadeiras e lavadeiras que primeiro faziam todo o seu trabalho na Lagoa do Abaeté e atualmente atuam como um grupo de canto, os grupos de samba regidos por mulheres, as baianas na festa de Itapuã, Dona Cabocla e o café da manhã na lavagem e sua casa como ponto importante para o samba do bairro, as meninas que fazem poesia e estão presentes nas paredes e muros de Itapuã. 18. Seresta é o lugar que toca o ritmo brega. 19. Arrocha é o estilo musical brega, quem começou a cantar arrocha primeiro na Bahia foi Nara Costa no, hoje inexistente, Língua de Prata. Esse bar que já foi local onde personalidades da Bossa Nova frequentavam e no seus últimos anos de existência chegou a ser ponto de prostituição. 20. Nome popularmente conhecido pelos Itapuanzeiros, por conta das escultura em formato de bola que existem no local. 21. Slam é um encontro de poetas e artistas que fazem rima para que eles possam mostrar sua arte. Pode ou não ter batalha de rima no encontro.

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Neste ambiente musical, artístico onde até as ruas têm nomes relacionados (rua da música, 22 da poesia, da literatura, etc.) há um encontro de mulheres, de referências, de cultura. Entendo que Itapuã é hoje um bairro negro de descendência afro-indígena, de essência de encontro, encontro de modos de viver desses dois povos que formaram o bairro, além de outras muitas influências que podem ter chegado no processo de construção. E como Martins em Afrografias da Memória explica, " A cultura negra é uma cultura de encruzilhada."(MARTINS, 1997, p. 5), por isso devo começar a me aproximar da proposição final. Pois como em Itapuã, a encruza, o encontro aparecem para mim como solução de projeto para levar até o bairro de uma forma que me contemple como arquiteta e urbanista mas também, e principalmente, que o bairro e as mulheres que conversei tenham um retorno e possam acessar o que a academia tem produzido cientificamente. Na tentativa, mesmo que mínima, de quebrar essa barreira e esse lugar de objeto pesquisado e pesquisador. Entendendo que eu faço parte do que estou pesquisando, não havendo um descolamento tão marcantes.

Proposição final: Bom. As coisas não acontecem por acaso né? Tudo nessa vida tem uma explicação e no carnaval de 2019 eu tive um encontro no ônibus. Explicando a situação: Eu encontrei Lucas, Augusto, suas namoradas e amigos - todos negros de periferia. Lucas era o mais novo de todos ali, ele chegou com muito ódio. O nosso ônibus tinha sido cercado por policiais da cavalaria por causa dele e dos amigos. Ele chegou no carnaval “cheio de ódio”, pelo que contou no ônibus. Ele foi pra o carnaval para bater e “não voltar apanhado”, bater em polícia, em quem era de outra facção, ele foi para bater. Descarregar. Ele foi para colocar para fora o que tem dentro dele e voltou pra casa ainda “cheio de ódio”. Durante o percurso, Lucas foi falando de tudo que aconteceu, todos que o acompanhavam iam reclamando que “não é assim”, “não iam mais sair com ele”, e Augusto pedindo para o assunto encerrar, porque ele tinha sido levado pela polícia no lugar de Lucas. Todos negros, para a polícia não teve diferença os tons diferentes de pele naquela hora, aconteceu de terem dois “neguinhos sem camisa” (palavras da namorada de Augusto), Lucas retinto e Augusto mestiço, e um deles ia sofrer por ter batido em um policial. E foi o que quase aconteceu com Augusto, no lugar de Lucas - quem começou com todo o caos instalado. Os policiais levaram Augusto para fora do circuito e iam levar para mais longe, não sabemos aí o que ia acontecer com ele, mas a ameaça de acabar com a vida dele tinha sido feita já, só não podia ser feito em pleno circuito - os índices de “carnaval sem violência” precisam ser garantidos. No ônibus, enquanto eu escutava a conversa e rezava (eu cantei todas as músicas de Exu e pomba-gira que conhecia na minha mente), Augusto não queria saber mais daquele assunto 22. Essa foi uma atualização nos nomes das ruas perto do farol de Itapuã que também estão próximas à casa de Vinícius

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mudança dos nomes das ruas , que antes eram letras do alfabeto (rua K, rua L, rua M, etc. tem a ver com essa aproximação


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claramente traumático para ele e Lucas continuava a falar. Naquele momento, eu só podia ouvir, “fechar minha cara” e abrir a cabeça para minha realidade e os questionamentos corriam soltos enquanto eles conversavam, riam, brigavam, etc. As mulheres alí, foram essenciais, sem elas, Augusto não estaria vivo talvez. Quem tirou Augusto do campo de visão dos policiais foi sua namorada, quem fez a barreira na hora da briga foram todas as mulheres que estavam ali no ônibus com eles. A minha vontade era de falar para Lucas não tentar se vingar, porque ele só falava disso enquanto eu ouvia a conversa. Queria fazer ele lembrar dos índices que falam como as vidas negras não importam. Mas ele não parecia ter perspectiva nenhuma, ele falou que sua mãe não tinha feito identidade para ele por causa disso. Não sei ao certo qual foi a parte mais chocante de toda a história nos minutos que passei dentro daquele ônibus, entre rezas e cantigas dentro de mim e risadas, gritarias e conselhos fora. E eu só encontrei com Lucas no ônibus, porque em pleno carnaval, um ambiente onde mais encontros e desencontros acontecem, eu caí na rua indo atrás de Mascarados. Era o ano da volta de Margareth Menezes para o bloco e todos estavam na expectativa. Eu caí na Barra, onde o carnaval é bem mais elitizado. Tive que pegar um ônibus para a Lapa porque não conseguia chamar o carro pelo aplicativo. Como Lucas, eu estava com muita raiva também, raiva de terem me empurrado, de não terem respeitado meu espaço, queria brigar com todo mundo que me empurrou e queria brigar com todos os médicos que deveriam estar no circuito e que eu não encontrei pra me atender e tapar minhas feridas. Mas eu não achei ninguém. Nada é por acaso. Ainda bem que eu caí. Nesse momento que vários questionamentos me atravessaram e me perguntei até onde o trabalho que eu faço chega? Até onde eu consigo falar sobre os assuntos que eu pesquiso? Será que para Lucas pesquisar sobre os caminhos que mulheres negras fizeram na produção da cidade faz algum sentido? E com essas informações na mão, eu faço o que com elas? Lucas voltou para casa com os amigos e eu espero que ele ainda esteja vivo e com identidade já, eu espero que Augusto não tenha mais que passar pelo que passou, eu espero que os mais velhos que estavam na conversa tenham convencido Lucas de que o caminho não é esse, que a vida dele importa sim. Com esses questionamentos na cabeça, chego na proposição final. Onde eu tenho estudado algumas camadas da relação entre o ser a cidade, a mulher e a cidade, a partir do corpo, da casa e da rua. Como as mulheres e o corpo negro feminino vive a cidade, a tradição, o passado, a memória, o presente e o futuro. E sabendo que no passado,no presente, na memória, corpos negros foram apagados e continuam sendo. Corpos negros continuam tendo suas histórias interrompidas e apagadas. Como falar de história, de memória, de tradição, de corpo e casa no presente e para o presente? Lendo um texto de Kátia Canton, “Tempo e Memória”(2015), de uma coleção que a autora fez sobre arte contemporânea, a memória no mundo atual onde vivemos tem se tornado algo descartável. O presente é muito rápido na atualidade, as coisas precisam acontecer muito rápido, o

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espaço e o tempo se tornaram coisas muito menores do que eles realmente são por conta da possibilidade de comunicação e informação a partir de meios virtuais: “O tempo contemporâneo surge como um elemento que perfura o espaço, substituindo a sensação de objetivação cronológica por uma circularidade plena de instabilidade. Turbulento, esse tempo parece fugaz e raso. Retira as espessuras das experiências que vivemos no mundo, afetando inexoravelmente nossas noções de história, de memória, de pertencimento.” (CANTON, 2015, p.20)

Lucas aparece aqui de novo. Qual noção de pertencimento ele tem? Ele estava ali no carnaval para defender um grupo, ao qual ele se sente pertencente, mas o corpo dele e sua vida são totalmente descartáveis para esse grupo e para o próprio. E começo a falar de Itapuã aqui. As ganhadeiras de Itapuã aparecem no bairro com a noção de pertencimento, tradição e história. Essas senhoras e as pessoas que estão no grupo (das Ganhadeiras) trabalham para contar uma história de um passado não muito distante do bairro, das práticas do ganho, que ainda existem, mas atualizadas pelo povo negro de Salvador. As ganhadeiras ficaram conhecidas pela cidade e fora dela, contam sobre o cotidiano do bairro e da população negra em geral, criam uma noção de pertencimento à pessoas que veem aquelas mulheres agora como referência. A arte tem o poder de atingir todo e é a partir dela que a proposição vai surgir, porque eu quero falar de cotidiano, de memória, de presente, dos corpos negros que habitam Itapuã. Preciso chegar neles. A rua é o local mais democrático para a expressão da arte, todos têm a possibilidade de acessar a arte pela rua. A rua é onde há essa troca entre arte e cotidiano, é o lugar da mistura de saberes. “E para que serve arte? Para começar, podemos dizer que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibilidades de viver e de se organizar no mundo.(...) há outra importante parcela de compreensão da arte que é constituída de conhecimento objetivo envolvendo a história da arte e da vida, para que com esse material seja possível estabelecer um grande número de relações. Assim, a fim de contar essa história de modo potente, efetivo, a arte precisa ser repleta de verdade. Precisa conter o espírito do tempo, refletir visão, pensamento, sentimento de pessoas, tempos e espaços.” (CANTON, 2015, p.12 e 13)

A arte vai servir, como serve para Kannário, Afrocidade, Parangolé, Ganhadeiras, Psirico, Caetano, Vinicius e Doryval, como meio de comunicação entre mim e as pessoas que fazem o bairro de Itapuã. Nos muros, terei a possibilidade de fazer a comunicação na rua entre a memória e a vida presente. E espero alcançar todos os meninos como Lucas e Augusto e as meninas como suas namoradas, não sei no que pode acrescentar na vida deles, mas espero realmente conseguir pelo menos alcançar nem que seja 1% da juventude de Itapuã. Até porque eu acho que Lucas era de lá, o ônibus que pegamos no carnaval tinham última parada no Alto do Coqueirinho ou Itapuã ou Aeroporto- se eu não me engano, ou minha cabeça pode estar querendo criar essa ligação entre esses meninos e o meu projeto. O projeto consiste em uma exposição ao ar livre nos muros do bairro com colagens que falem sobre todas as histórias que tive acesso no decorrer da pesquisa. As colagens

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fotos foram feitas em cenários montados ou em locais ao ar livre que tivessem ligação com o que cada mulher que conversei me contou. Elas escolhiam o local e o que queriam revelar na imagem. Com a ajuda das fotógrafas, Milena Abreu e Gabrielle Guido (essa moradora do bairro), fizemos fotos de 11 mulheres das 22 que conversei. Dessas fotografias, resultarão em 6 colagens que irão para as ruas como lambes. No projeto, a ideia é que os lambes prontos sejam colados próximos às escolas, creches e locais onde a juventude circule. Com o objetivo de fazer essa ligação entre presente, passado e futuro através dos muros. Essas colagens têm o objetivo de “mais do que premonições do futuro,” elas “são formas especulativas de pensar o presente” (FREITAS, 2015, p. 5).

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ItapuĂŁ dos povos Inaugurais

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Desde antes de 70 até qause 80

itapuã

legenda

Ruas de Barro Ruas e avenidas de Asfalto Água doce

gua ia Água aá e Salgada ond A té Areia Mato

Red:

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Green: Band_2 400m

0

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05

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04 Vila Militar

03

12 02

Rua da Cacimba

06

Miolo

08 09

0

10 Rua do céu

±

440 m

Sistema de referência: SIRGAS 2000 Projeção Cartográfica: Web Mercator Escala: 1:15.393

11

Data de impressão: 26/09/2019 Horário da impressão: 15:04:53 Autor do mapa:

07

43

https://www.geopolis.ba.gov.br - Este mapa foi gerado automaticamente pelo Geopolis Visualizador através de informações selecionadas pelo usuário.


itapuã

Desde 80 até 90 e poucos

legenda Ruas de Barro Ruas e avenidas de Asfalto Água doce

riv al C aym mi

Água gua ia aá e Salgada d on é t A Areia

High : 244

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15 13 14

0

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N

Sistema de referência: 400m SIRGAS Projeção Cartográfica: Web Mer Escala: 1:15.393

Data de impressão: 26/09/2019 Horário da impressão: 16:43:21 Autor do mapa:

44

https://www.geopolis.ba.gov.br - E foi gerado automaticamente pelo G


Desde 90 em diante

Legenda Ruas de Barro Ruas e avenidas de Asfalto Água doce

riv al

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gua ia Água aá e Salgada ond A té Areia

Av. Do

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17 18

0m

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mapa olis -

N 0

400m

45


12/10/2019

Colégio Estadual Governador Lomanto Junior - Google Maps

OP. 01

Colégio Estadual Go vernador Lomant o Junior

Projeto expográfigo Localização e proposição:

01

Wafina Andresa Mariinha

02

Maria do Xindó Verônica

Virna Lili Dulce Brasília Julia

Lai Ivana

OP. 02

Semi Lulu

Leda Noca

Gabi eu

Inaê

OP. 03

Geane Bea

Dayane

03

OP. 04

04

Imagens ©2019 Maxar T echnologies, Imagens ©2019 CNES / Airbus, Maxar T

echnologies, Dados do mapa ©2019

200 m

47


Opção 01- Colégio Estadual Marechal Mascarenhas de Morais 12/10/2019

2168 Av. Dorival Caymmi - Google Maps

2168 A v. Doriv al Ca ymmi

Vista 01

11/10/2019

2 R. Cap. Lauro Gustavo de Freitas - Google Maps

2 R. Cap. Laur o Gusta vo de F reitas

Captur

Salv ador, Bahia Google

Vista 02

Street View - jun 2017

20m

N

https://www.google.com/maps/@-12.9332075,-38.3580246,3a,75y,97.77h,80.87t/data=!3m6!1e1!3m4!1sy7m9FxFP4d5o4lGAQYkONw!2e0!7i13312!8i6656

48


gem: jun 2017

Opção 02- Creche Malê Debalê 10/10/2019

528 Ladeira do Mirante - Google Maps

528 Ladeir a do Mir ante

Vista 01

10/10/2019

Salvador, Bahia - Google Maps

Salv ador, Bahia

10m

N Captur a da imagem: abr 2017

© 2019 Google

© 2019 Google

Salv ador, Bahia

Vista 02 1/2

Google Street View - abr 2017

https://www.google.com/maps/@-12.9437245,-38.3610771,3a,75y,199.13h,77.73t/data=!3m6!1e1!3m4!1sXef-J7MF-ZtWxsYau_IQAA!2e0!7i13312!8i6656

1/2

49


Opção 03- Colégio Estadual Rotary

10/10/2019

41 Ladeira do Abaeté - Google Maps

Vista 01

41 Ladeir a do Abaeté

Captur a da imagem: abr 2017

© 2019 Google

Salv ador, Bahia Google Street View - abr 2017

12/10/2019

27 Ladeira do Abaeté - Google Maps

https://www.google.com/maps/@-12.9470801,-38.3615881,3a,75y,198.84h,89.38t/data=!3m6!1e1!3m4!1siv8_B50SO813RynPZPPhGA!2e0!7i13312!8i6656

1/2

Vista 02

27 Ladeir a do Abaeté

20m N Captur a da imagem: abr 2017

Salv ador, Bahia Google Street View - abr 2017

https://www.google.com/maps/@-12.9478755,-38.3614964,3a,60y,292.41h,83.88t/data=!3m6!1e1!3m4!1sjeUWkOAuAWAy478E7BBYUw!2e0!7i13312!8i6656

50


Opção 04- Colégio Estadual Governador Lomanto Junior

10/10/2019

340 R. Prof. Souza Brito - Google Maps

340 R. Pr of. Souza Brit o

20m N

Vista 01

oogle

51 1/2


Considerações finais Este trabalho foi um grande desafio para mim na finalização deste curso e ótimo também para entender por onde quero seguir daqui para frente. Itapuã foi o bairro onde eu cresci com meus primos e minha família (mas não foi onde eu morei). Viver esse lugar no papel do pesquisador é bem diferente do lugar de quem vai todos os finais de semanas para ver a avó e ia nos verões para curtir a rua com os primos. Com certeza a parte que me alonguei mais foi a casa, porque era algo muito claro na minha cabeça. O poder que todas essas mulheres que eu conversei têm, desde as mais novas até minha avó, é visto de longe. E como tudo gira em torno de suas ações também. Fazer o projeto expográfico foi outro desafio. Primeiro porque nunca tinha feito um projeto assim, onde eu era a autora, a arquiteta, a designer, a agenciadora, a omunicadora. E segundo porque talvez tenha sido algo maior do que era possível se fazer sozinha. E por isso, o projeto não foi executado, nem finalizado. A ideia veio, as colagens foram feitas (nem todas), as fotos foram tiradas em parceria com duas amigas, as conversas aconteceram e aproximação entre mim e algumas meninas e mulheres que eu não tinha contato aconteceu também. A ideia inicial era dar o protagonismo das ruas de Itapuã para outras pessoas que não fossem (os homens) já conhecidos. Levar para os mais novos esse contato, mas depois os questionamentos vieram: será que eu não estou fazendo o papel da arquiteta que quer levar o conhecimento achando que só ela o tem? E me recolhi aoprojeto não executado. A aproximação com as escolas não aconteceu a tempo, e por isso também preferi não continuar com os lambes. Pois só fazia sentido colar nas ruas se a troca entre mim, as mulheres que conversei e outras pessoas mais novas que vivem o bairro acontecesse. Falar sobre mulher, corpo, memória ancestral a partir de minha família foi falar a partir de um lugar comum a mim, claro. Mas esse caminho da auto-referência tem sido uma ponte para que pessoas negras consigam acessar outras e novas memórias para entender nossa história que continua sendo apagada, desde a queima de arquivo (de papel) ao genocídio da população negra em todo o país. Espero que esse trabalho seja o início de mais uma quantidade enorme de novas formas de pensar e fazer arquitetura dentro desta faculdade. Novas possibilidades, novos modos de pensar e fazer projeto.


Referências ANGELOU, Maya. Mamãe & eu & mamãe. 2ª edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. SODRÉ, Muniz. O Terreiro e A Cidade: A forma social negro-brasileira. 1ª ed. Petrópolis: Vozes Ltda, 1988. MARTINS, Leda Mª. Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004. KILOMBA, Grada. Mamórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. 2ª ed. Salvador: EDUNEB, 2010. GOLÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 13ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus/ Gabriela Leandro Pereira. 1ª ed. São Paulo: ANPUR e PPGAU-UFBA, 2019. LUZ, Narcimária Correia do Patrocínio. Itapuã da ancestralidade africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2012. CANTON, Katia. Tempo e memória. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. MARTINS, Leda M. O feminino corpo da negrura. Volume 4. Belo Horizonte: Revista de Estudos de Literatura, 1996. EVARISTO, Conceição, 1946. Becos da Memória. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. HITA, Maria Gabriela. A casa das mulheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador. Salvador: EDUFBA, 2014. FREITAS, Kenia e vários autores. Afrofoturismo: Cinema e música em uma diáspora intergaláctica. 1ª ed. São Paulo: Caixa Cultural. 2015 SALES, Cristian Souza. Pensamentos da Mulher negra na Diáspora: Escrita do corpo, poesia e história. Revista de História da África e de Estudas da Diáspora Africana, ano V, nº IX, Julho, 2012. OLIVEIRA, Eduardo.Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2006.


ReferĂŞncias de Imagem

57



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