Partogênese_todos cadernos_vai ii 2016

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PartogĂŞnese parte 2

Vigor Mortis

atos cultivados



Vigor Mortis

Sinto-me novo aqui. Sinto-me novo aqui de novo. E novo novamente. Era o que Michel sempre pensava quando reparava que estava sonhando ou quando sonhava que estava acordado, muito embora a primeira opção acontecesse muito raramente. Michel abriu os olhos e tentou se encontrar dentro daquele pequeno apartamento de dois cômodos que mal comportava as suas emoções. Vivia com o gato Salomão, que tinha que se esticar todo, e dormir com as pernas na sala e a cabeça no colchão de seu dono para caber dentro de toda sua preguiça. Foi como um chacoalho. Levantou e a cabeça rodopiava. Não sabe como encontrou os dois chinelos. Não sabe bem a hora, mas sabe que era a hora mais desperta de seu sono. Um passo ou dois e estava no corredor. Olhou-se no espelho e nem ousa se lembrar da imagem refletida. Abriu a torneira com água gelada e como um bravo guerreiro lavou o rosto. Abriu o compartimento do espelho à procura de sua escova de dentes e achou seus vidros de

remédio. Vidros laranjas, brancos, pílulas coloridas e apáticas. Seis comprimidos e pílulas e mais um outro remédio para enjoo, pois tomar todo aquele remédio com certeza lhe deixaria enjoado. Deixaria, se Michel tomasse aqueles remédios. Despertou. Abriu os olhos e fitou o teto negro, agora o quarto e talvez o mundo todo girasse ao seu redor descontroladamente. Tomou alguns minutos para se realocar naquele espaço. Lembrou que a janela estava à direita. Levantou-se diante da porta se apoiando na mesinha de cabeceira. Abriu a porta com esforço e seguiu se rebatendo por todas as paredes até chegar ao vaso sanitário e vomitar.Dormiu. E era sempre assim. Dormia e lá estava ele, no metrô, na faculdade. Sonhava num sábado à tarde e despertava apenas no teste da prova, quarta-feira. Dessa vez, ele se lembrou de acordar apenas lá pela quinta-feira. No consultório médico. Ou poderia estar sonhando, pois jura que já vivera aquilo e que aquelas palavras ditas pelo médico não lhe eram nada estranhas. “Michel! Michel! ”O doutor estava a sua frente estalando os dedos, surpreso por ter presenciado um surto que ele mesmo não sabia descrever. - Está tudo bem? - Sim doutor! Pode continuar. Disse automaticamente, mas queria dizer que já sabia tudo o que iria falar. Queria fazê-lo poupar tempo. - Como havia dito, aparentemente seu sono REM é defeituoso, e sempre que adormece não há registro em seu cérebro dessas horas de sono. Por isso se sente sempre tão cansado. “Tão cansado”. “Sempre cansado”, Michel entendia isso.


Sentia-se livre para dormir em qualquer canto. Adormecia na Sé lotada e só acordava em Santana, sozinho. Nem se levantava do metrô. Fechava os olhos e voava. Acorda no apartamento, fritando um ovo. Deita na cama Cerra os olhos. E o mundo lhe diz com borrões. Fechou os olhos. E foi obrigado a olhar para dentro. Sentia que o gato Salomão estava lhe seguindo por todos os cantos. Em qualquer lugar que estivesse poderia afirmar que teve um pequeno deslumbre de seu bichano cor de creme, passando sorrateiro pelos cantos dos olhos e por batentes de porta. Na estação de trem lotada, ele via o gato pulando por cabeças alheias entre a multidão. As cabeças que não sentiam a presença, nem de Salomão e nem dele. A multidão escura e sonolenta. O garoto desperto. Confiantemente caminhava entre as figuras. Vez ou outra via alguém. O bom dessas ocasiões impensáveis em que ele voltava para casa acompanhado de seu gato, é que sempre havia um lugar para sentar. Entraram na estação da Sé às seis da tarde em um vagão vazio. Escolheu o melhor lugar para encostar e dormir. O som do fechar das portas soou, e era só Michel fechar os olhos que estaria em casa. Michel baixa as pálpebras devagar. Enquanto percebe o trem fechar as portas. A moça de azul, o rapaz de branco. Passam por ele sem ligar para a multidão fantasma. Ela de vestido e ele de jeans. Cabelo longos, ambos.

Os vê escolher um banco vazio no fundo para sentarem-se. Passam por todos, sentam. Senhor M encosta a cabeça no vidro e dorme. O ruim de ter sempre um bom lugar para se sentar nesses momentos despertos era que logo adormecia. Olhou para o lado e despertou na metade da segunda volta da chave na fechadura de sua porta. Seu vizinho, Cleonis, lhe exigia um pouco de atenção. Falava sobre o jogo. Provavelmente uma quinta-feira. Percebe, depois te todo o bate papo. Ele entra no apartamento e vê seu gato Salomão por todos os cantos. Em cima do armário. Embaixo da pia. Em cima de não apenas uma, mas duas cadeiras. Mia de fome. Ele deixa a mochila no sofá bagunçado e vai até a cozinha. Por onde passa, todas as encarnações do gato lhe seguem. Estica-se para pegar a ração na parte alta do armário, em cima da pia. A essa altura, os miados dos gatos se tornam uma loucura. Um frenesi incontrolável. Michel põe ração no pote azul de seu gato - eles voltam novamente a ser apenas um. Agora é sua vez. Vai até a geladeira e abre-a à procura de seu alimento. Põe a comida num prato frio e coloca o prato no micro-ondas usado. Pega um copo d’agua e se joga no sofá, a alguns passos de distância da cozinha, para esperar os três minutos necessários para esquentar seu arroz com feijão. Fecha os olhos cansados de sua rotina. Respira fundo e bebe o copo d’água. O bip do micro-ondas lhe desperta. E quando se levanta, percebe os cantos dos olhos turvos. Caminha e tudo fica turvo. Tenta focar a vista no micro-ondas. Foca no letreiro verde que lhe informa que sua comida está pronta. Depois no gato que lhe olha com uma cara que ele jurava ser de apreensão. Estende a mão para o micro-ondas,


pensando que a escuridão que vem e lhe abraça é apenas um daqueles episódios em que levantamos rápido demais. Porém, dessa vez ele tomba, sua face em direção ao chão, e o chão à sua volta, lhe cobre, abraça. Escuro. Envolto em cinzas e tons cada vez mais escuros de noite. Sente mãos lhe agarrando, lhe abraçando, lhe puxando. Um chamado do absurdo, pensa que dorme e tenta acordar. E cada vez que se debate mais e mais, mais e mais fundo e escuro o mundo se torna. Tenta esfregar os olhos e sua mão não encontra o rosto. Agora cai de costas. E sente um baque, forte, mas macio. De um estofado de poltrona.





Então é mostrado o ônibus na estrada novamente, com aspectos de cores bem detalhadas. A máquina mastigadora de petróleo corre por uma autoestrada durante algum tempo. Poucas pessoas dentro do ônibus. Sete. Acabaram de sair do terminal rodoviário do Tatuapé em direção à Cerquilho. Uma moça, loira, com um livro na mão, os olhos grudados na página, as unhas pintadas de vinho. O livro, A insustentável leveza do ser • Um senhor com tosse, envolto em um casaco bege, pesado, contra o frio de junho. Cabelos finos, quase inexistentes na cabeça cheia de marcas do velho. Roncava grande parte do caminho. E na outra porcentagem restante deste caminho, acordava e tossia. Uma tosse que parecia incessante. Duravam cinco minutos, sete, nove, mas pareciam quatorze ou vinte, por conta da intensidade que o senhor colocava em expelir aquele mal dos pulmões. Tossia de forma encrespada e numa sinfonia que, chegada ao clímax, cessava e dava lugar ao ronco. • Duas cadeiras à frente, uma senhora, não tão velha quanto o senhor de duas cadeiras atrás. Mas velha o suficiente para ter um filho de 12 anos, uma separação e um novo casamento a caminho. Cabelos castanhos, cacheados nas pontas. Olhos amendoados e pele pálida. O filhote se escondia na penumbra, coberto por um manto azul, caminhando pelos vales de Morfeu. Antes da partida do ônibus, o inócuo casal se dispunha em uma cadeira


à frente do senhor. Que acordado, era um tagarela gente fina.

A parada é também um entreposto entre perdidos municípios.

• Uma moça cheinha, com blusa amarela e cabelo preso em um firme rabo pé de cavalo.

Lá não existem muitas opções para alimentação. Ele se contenta com um misto quente.

Um executivo de cabelos retidos por gel.

Passa alguns minutos sentado.

Um casal ao fundo do ônibus.

Põe a mão no bolso da calça, atrás, do lado direito.

Ao lado, o garoto.

Retira um papel amassado, dobrado duas vezes em um quadrado perfeito.

O ônibus está com a maioria de suas luzes apagadas. E as cortinas acompanham o ritmo. O garoto. Fulano de Tal. Morador de acolá. Estudante, de não sei que. Camisa verde translúcidos.

escura,

amassada,

com

botões

brancos

O cabelo castanho, curto. Com o rosto magro, de maças duras, angulosas, como se fossem talhadas por mãos pesadas.

Escrito há caneta, em letras recaídas para a direita: “Pegar trem sentido Barra Funda, descer no Tatuapé. Ônibus em direção a São roque. Ônibus em direção a Cerquilho. Em Cerquilho, pegar o trem em direção a Itirapina. Depois arrumar um jeito de ir até Matão” Ele dobra o bilhete, duas vezes, o coloca no bolso da calça, atrás, do lado direito. Vai ao banheiro. Depois retorna ao ônibus. Apenas dois aderem, junto a ele, à viagem.

Sobrancelhas grossas. Recostado na janela.

O velho que tossia. O executivo.

Ele dorme. O ônibus estaciona. Todos descem.

O velho já não tossia mais, acalmado pela noite que se arrastaria. O executivo, imerso em um som saído de seu ipod.

O garoto vai à loja de conveniência. Ao lado, a estrada continua e os carros que passam indicam a entrada da cidade.

O casal de mãe e filho tornou-se um trio na parada da cidade.


A moça cheinha, um casal.

uma calça, três cuecas, um chinelo, um misto quente dentro de um saco de pão de padaria, uma barra de cereal integral e três clubes sociais.

E o casal, uma visita. Eles seguem, a rodovia passa. Os carros também. Desaparecem, diminuem a frequência, entreposto de municípios perdidos.

passam

por

outro

A caravana noturna perde dois passageiros. E segue viagem pela estrada. Em certo ponto, tomam a direita. Onde nenhum outro transporte entrava fazia pelo menos três dias. A paisagem acrescentava mais verde aos olhos do motorista. E menos cinza, e fumaça. A estrada perdia qualidade e o ônibus chacoalhava de quando em vez. Mas isso não despertava o garoto. Que reclinara a poltrona. Então chegam a uma parada. Uma estação velha. Com telhas de aço suspensas por colunas altas. Tem o tamanho que seria suficiente para 4 ou cinco ônibus estacionarem ali. O que raramente acontecia. E o que só aconteceu uma vez, quando uma excursão de senhores e senhoras decidiram visitar a isolada vila. O motorista, negro, de bigode espesso, um casaco de zíper fechado até a metade, sobreposto por um suéter de lã pesado sobre uma camisa branca. O volume da roupa ajudava a reforçar a sua silhueta redonda, recheada de barriga. Ele olha pelo espelho, para o fundo do ônibus, avista o garoto que dorme. Então levanta e o chacoalha. Ele levanta pega sua mochila preta com duas camisas,

Ele desce e na estação há apenas uma cabine de bilhetes pequena, à esquerda da estação velha. No asfalto, o ônibus dá ré e se posiciona para partir, traçando uma dança circunférica nas faixas amarelas pintadas no chão. O motorista desce do ônibus, entrega um papel para o morador da cabine, que reclama pela demora. O motorista volta ao ônibus e parte. O vendedor de bilhetes sai da cabine. Entra em seu fusca e parte para a esquerda. Posição contrária a qual o personagem deveria seguir. Michel está sozinho. Respira fundo, esfrega o rosto, boceja. E então põe a mão no bolso da calça, atrás, do lado direito. Retira um papel amassado do bolso e lê. A câmera se afasta e mostra a estação, com uma longa estrada à direita. O garoto caminha até a ponta da calçada. Ajeita a bolsa e parte. Caminha pela estrada. Muitos quadros, mostrando-o cima, por trás, de frente.

caminhando

de

lado,

por

Então, pelas costas, perto do ombro. A imagem do garoto está próxima, mal se pode vê-lo, a imagem está desfocada. Conforme caminha, uma luz ao fundo da cena se intensifica.


O caminhar é cansado, o personagem arfa pela longa caminhada. A câmera treme para indicar o balançar de seus passos. Conforme ele se acalma e ajeita sua postura cansada, vê-se a direita uma cabana. De madeira, antiga, modesta, apenas um andar. Cumprida. Com um cachorro preguiçoso amarrado a soleira da porta. A porta da casa, uma senhora o espera. Ele caminha até La. Ela o atende com um sorriso na porta da casa. Oferece um lugar na sala, em sua poltrona confortável. E o entrega uma xícara de chá. Ele fecha os olhos e da o primeiro gole. Em outra cena. O garoto deitado, a câmera o capta pelo teto. O ambiente é quieto, os sons presentes são apenas os omitidos pelo rapaz que se levanta da cama. Vai até o banheiro. Urina. Se olha no espelho, mais uma vez. Abre a torneira e lava o rosto. Escova os dentes. A tela mostra o banheiro pelo lado de fora, o rapaz em pé, em frente ao espelho. E então, um close, olheiras, profundas, roxas. Doloridas. Cansadas. Ele estica a mão lentamente e abre o compartimento de vidro no espelho. Muitos remédios se revelam. E então ele pega 7 dos potes ali presentes. Primeiro despeja um comprimido do pote maior na mão. Engole. Depois. Pega o comprimido roxo, o azul e branco, e o redondo com uma faixa em relevo o cortando. E os engole. Mais uma bomba de uma química desconhecida por ele desce sua garganta. E por fim. Um remédio liquido, 50 ml por dia. Para ajudar no mal estar que tomar tantos remédios pode lhe causar. Ele se arruma e sai pela porta do prédio numa rua movimentada. A câmera o segue, por de trás, sorrateira, como uma espiã, o foco é ele, andando pela rua. Até que a câmera se levan-

ta de pouco em pouco, chegando a um ponto de ônibus, e adotando a cobertura que protege os futuros passageiros, como o personagem principal. Um ônibus vem, depois outro, e a o personagem entra, a câmera segue o veiculo e o rapaz agora faz parte daquele organismo vivo que é a cidade. Ele desce e mais uma vez a câmera o capta como individuo. O seguindo, e acompanhando seus passos tremulosos, direita, esquerda, direita, esquerda. Um olhar, um desvio, alguém o chamou atenção. E ele chamou atenção de alguém. Mais um, um outro. E assim por diante, como todos os dias. Câmera segue o balançar dos seus passos, mesmo quando ele fica no meio da multidão que se aperta e se acotovela para encontrar o caminho das catracas. Passa a catraca e a câmera insiste em segui-lo no sufocante espaço de espera. Um trem vazio chega e a multidão se empurra para entrar. Ele entra. Espera duas estações até que pode sentar. Próxima estação, Carrão. Soava a voz mecânica do metro, que anunciava a descida de um trabalhador. E a oportunidade para o rapaz. Ele sentado e as pessoas apertadas se acotovelam para manterem-se em pé. Ele recosta a cabeça no canto esquerdo do trem. Suspira e fecha os olhos. E abre os olhos, próxima estação, Bresse-Mooca. O vagão vazio. Um senhor, ao fundo, longe de sua vista. E uma garota. Sentada, ao lado direito do trem, indo de costas. Na janela. Bonita, cabelos lisos, finos, castanhos claros. Um contraste bonito com sua pele morena sutil. Bronzeada por natureza. O cabelo enrolado e preso numa trança pendia caído sobre o ombro, uma fita azul prendia a ponta da trança.



Sua veste era delicada, um vestido, de alças finas, branco. Um olhar que se perdia na janela. Na paisagem, que passava rápido, veloz, fugaz, não permitia a ela, exercer o seu olhar clinico, ou oque deveria mais se aproximar de um olhar clinico. Uma pessoa observadora, que fazia questão de anotar todos os aspectos de algo em sua memória, quando isso lhe chamava a atenção. Ele gostaria de saber o que a Srta pensava enquanto olhava imóvel para fora do vagão. Queijo erguido, pescoço esticado, olhos bem abertos, procurando algo interessante. Ele se deixou recostar mais uma vez na vidraça, e adormecer. Sr M. agora estava sentado naquela poltrona velha na sala da senhora. Segurava pela milésima vez a xícara com chá. Olhou atentamente a sua volta a procura de todos os detalhes que já conhecia. E estavam todos lá. Salvo que agora a xícara parecia realmente quente. E o cheiro lhe vinha vivido até o nariz. Despertando uma vontade imensa de beber o chá. O fez. E percebera que já havia bebido o primeiro gole. Mas agora, a segunda vez que ingeria o líquido, sentia um novo prazer em fazê-lo. Mais real, e tátil, podia sentir o chá morno descendo pela garganta enquanto o sabor se instalava em sua língua. A senhora saiu de uma sala no fim do corredor. Segurando um livro antigo. O barulho que aquela cortina de miçangas fazia ao se passar por ela dava arrepios em Michel. Vemos tudo de cima, a sala em si, parecia um tabuleiro de algum jogo antigo. Em que uma peça se posiciona ao lado direito, sentada na poltrona e tendo as costas iluminada pela luz fraca vindo do exterior. E o outro lado senta-se na cadeira velha de balanço, a esquerda, iluminada pela luz

da cozinha. Os dois se encaram, sem nenhum precedente de disputa. A velha coloca o livro sobre a mesa de cabeceira. A muito não fora retirado do seu local original. “meu pai não gostava que eu fizesse isso.” A senhora tirava o pó da capa velha de couro, feita artesanalmente, repetindo o gesto três vezes, cada vez evocando o passado mais intensamente “Sabe?Não gostava que escrevesse todos esses contos.” “Porquê?” “ Ele dizia que aquelas tradições, eram maiores que a escrita e a própria palavra. Que não deveria ser presa a linguagem. Apenas libertada. Nada que descrevesse essas sensações lhe fariam de maneira fiel ou mesmo minimamente próximas. Mas eu fazia. Teimava e anotava as questões que trazia para a tribo depois de dormir vários dias a fio. Achava que a negação de meu pai era por conta de um orgulho, e em partes por não saber ele próprio a língua desses homens novos. “ A senhora também bebe o chá, e parece se deliciar com o aroma das ervas antes de dar um gole. Respira fundo o vapor que saia da xícara, faz um gesto circular, com o chá nas mãos e o bebe. “Homens novos?“ “Sim, os homens brancos e a civilização.” “Aqui nesse livro, há escrito o suficiente para saber o que você quer saber.” A senhora aponta o livro na mesa, e com ternura o empurra poucos centímetros em direção ao garoto. “Mas eu mesmo não sei o que quero saber. E nem o que se passa. Como você pode saber?” “Não confunda as coisas. Saber, sentir, e expressar são coisas diferentes. Tu sabes o que se passa, porque se passa contigo. O que não sabes, é dizer. E não necessita, pois esse cenário, não cabe as palavras.” Michel pegou o livro, e mesmo sem entender uma palavra sequer do que estava escrito, mais por conta da caligrafia


da senhora do que por alguma questão lingüística, entendeu o que ela dizia. Sabia que mesmo acordando agora, voltaria a lhe ver em outro momento, em vários outros momentos. Soube como a vida imita os dias, que sempre que chegam à meia noite tornam-se novos dias, mesmo sem relógios para marcar o horário. Descobriu que Se não houvesse pessoas para dizer que estava acordado, na verdade sonhava. E assim continuaria interminavelmente, sonhando junto de todos.





PARTE 2

DOMINGO


1 Michel era saudável e forte, quando começou a desintegrar-se no estado em que viria a ser interessante para o leitor acompanhar. Estava no terceiro ano de sua graduação e morava com três companheiros. Pedro, Márcia e Julia. Algum tempo depois disso lembra-se de muito, mas parecia para ele, na altura final de seu sono profundo, que ainda vivia tudo, e não apenas lembrava. Coisa que tornava sua condição ainda mais digna de atenção e preocupação. A primeira vez que sonhou era um domingo típico, dia perfeito para um arrebatamento extraordinário, um impulso para fora dos dias de não fazer nada. O dia era triste como havia de ser, visto seus últimos meses de vida e dos ocorridos que aqui se serão descritos. Era o aniversário de quando tudo começou. Fez mais uma tarde morna. Depois almoço,

na verdade muito depois, lá pelas 5h00 da tarde sentiu fome e foi até a cozinha. Depois de alimentar o gato Salomão. Pegou pão, passou manteiga, pois uma fatia fina de queijo e voltou a se sentar na poltrona. A TV, desligada. Assim como sua vontade de qualquer tipo de entretenimento. Comeu o pão murcho. Como havia de ser. Fez todo trabalho necessário para atravessar normalmente aquele domingo moderado. Porém, dia típico tinha uma novidade antiga. Toma uma xícara de café,enquanto wfuma um cigarro. Fazia tempo que não fazia isso, achava que retornar ao velho hábito poderia trazer alguma memória boa daqueles três anos atrás. Já que era aquilo que os quatro tinham mais em comum, o cigarro. Brincavam que compartilhar aqueles palitos de morte fedorentos, era também uma segurança de que compartilhariam juntos, as mazelas da respiração quando estivessem mais velhos. Então fez isso, na manhã desse domingo, quando foi até a padaria para comprar os pães, que de tarde se fizeram murchos, comprou também uma cartela de Marlboro vermelho para fumar,



como se fosse um bolo de aniversario e a vela, os dois em um único objeto comemorativo. Porém cada tragada tornava-se uma tentativa miserável de recuperar os anos. Apenas o seu cigarro era incapaz de empestear um cômodo de fumaça, como fazia um ano atrás com seus companheiros. Não se anima em pensar que dividia assim um vício tão maléfico com os amigos, porem quando você é jovem, é permitido vender um pouco de tempo por um desejo luxuoso de prazer. O problema é que as memórias se fizeram visíveis em sua mente, as conversas e a imersão que sentia com aqueles três seres retornava de uma forma inesperada. E ele reparou, que mesmo tendo se passado tão pouco tempo desde a tragédia, já envelhecera, tempo suficiente, e que não conseguia mais vender um minuto sequer de tempo, para a morte. Largou o cigarro no meio. Não voltará a fumá-lo. Nem mesmo os outros 19 no maço. Lamentou o dinheiro gasto no cinzeiro, apesar de ter sido pouco. Cogitou jogá-lo fora junto do restante dos

cigarros, mas decidiu por manter em casa, caso recebesse uma visita inusitada, mesmo sabendo ser impossível, se esforçava ao máximo, e conseguia bem esquivar-se das danças sociais. O meio cigarro no cinzeiro. O cinzeiro na mesa de centro. Michel na poltrona, e a cabeça roda, aquela estranha sensação de quando se baixa subitamente a pressão, lhe vem. Ele levanta e toma um copo de água. Volta à poltrona e já não pensa nos mosqueteiros. O gato Salomão mia para ele a pedido de atenção. Michel acaricia seu pelo dourado enquanto o bichano se aconchega entre suas pernas. A medida que Michel faz carinho, uma resposta vem do bichano, o primeiro miado agudo não incomoda o rapaz. Porém estranha quando o bichano começa a miar cada vez mais alto. Dentro de sua cabeça balança o rosto um instante e pensa que vai desmaiar. Apaga e sonha. Sendo que a essa altura ainda chamaria suas visões,



de sonho. Sonha pela primeira vez com as sombras. A câmera aqui, o capta de frente, sentado no computador, em sua mesa, perto da entrada de sua área de trabalho, ao lado, mais dois computadores vazios, ele será o ultimo a sair do trabalho novamente nessa sexta feira. Ele se levanta e a câmera se move para suas costas e o segue enquanto bate o ponto. Vai até ao banheiro urinar, e encontra Salomão parado em cima de sua caixa de areia. Desiste, não queria ir ao banheiro. Quando sai da firma, o gato lhe acompanha, Michel repara, ou sonha reparar, que as ruas estão disformes e desertas. Ruas desertas. A sexta feira atípica no centro da cidade. Caminha uma quadra até o metro, muito menos do que na verdade tem de caminhar para chegar até lá. Desce as escadas e quando vira para esquerda para se direcionar as catracas, percebe a estação cheia de sombras. Elas se comunicam e falam, embora não

consiga distinguir nenhum som ou língua. Passa por elas tranquilamente. Quando chega ao lugar de espera do trem, agora ouve sons, e cada vez mais se esforça para escutar o que elas dizem. Escolhe a sombra mais próxima de si, olha atentamente para o lugar onde deveria estar a cabeça de um brasileiro médio. Olha profundamente a procura de olhos, olha cada vez mais fundo. E quando percebe os barulhos se fazem altos, palavras indecifráveis, o som fica cada vez mais alto, cada vez mais agudo, como um miado desesperado de um felino. E então sente como devorado. Desvia os olhos, mas o mundo se faz sombras. A cor se esvai. Ele f oca o olhar na criatura, mas não o encontra. Fecha os olhos, mas elas estão lá. Michel rodopia novamente. Acorda segunda feira. Sentado em frente à mesa do escritório, Salomão já não esta mais com ele. Olha para a tela do computador, encontra



uma planilha incompleta. Olha para o caderno, com as anotações e instruções para adicionar no Excel. E se põe a trabalhar.

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Demora um pouco para perceber o lapso de tempo em sua rotina. Imerge-se tanto no trabalho e nos quadriculados do Excel que não repara que passou da poltrona da sala para a cadeira do escritório em um piscar de olhos. Pegou o metro com figuras estranhas, lotado como sempre. Com o cheiro matinal cotidiano, chegou ao trabalho as oito da manhã, como

faz na maioria dos dias da semana. Só percebe que falta alguma peça, na hora do almoço. Quando os seus dois companheiros de planilha se levantam e não o convidam a sair, apenas dizem “Tamo indo almoçar”. Normalmente o aviso vem seguido de um pedido de companhia, o que não se fez aqui. Espera alguns minutos. Levanta-se. Põe o dedo no aparelho de ponto que marca horários de entrada e saída e escuta um bip, quando escuta, repara que é a primeira vez que ouve o som naquele dia. Olha para a moça da recepçã e ela lhe olha com ar de desdém e reprovação. Estranha, a moça sempre tão gentil. Vai até a área de refeitório, pega sua marmita no recipiente que as mantém quente por horas e senta-se sem convite ao lado de Hermano, o rapaz do computador ao lado. Um ar de inimizade se faz no refeitório. Mas ele não liga. Abre a tupperware velha, macarrão com molho vermelho, pedaços pequenos de salsicha e batatas. O cheiro da marmita oleosa lhe enjoa. Da a primeira garfada e tenta se lembrar de ter preparado a refeição no dia anterior, não se lembra. Quan-



do engole a comida sente sua garganta arranhar. Pigarreia. Hermano olha para ele. Ele olha para a marmita. Mais uma garfada. E mais uma vez a garganta se fecha. Pigarreia novamente, dessa vez mais forte. A coceira e o arranhão na garganta não passam. “Tu ta bem?” Hermano pergunta. Levanta-se sem responder. Vai até ao banheiro tossindo mais e mais. Fecha a porta, se inclina na pia e tosse tentando expelir algo. Esforça-se ao máximo. Consegue tossir para fora de si um pedaço de comida e outro o objeto. Olha para a pia e vê uma metade de um cigarro Marlboro de filtro vermelho, sujo de sangue. Limpa a pia e volta para o refeitório de cabeça baixa. Não se lembra de ter preparado a comida.






Partogênese

Atos Cultivados

Ano 1 - 1° Edição - Janeiro 2017

Como dormir 8 horas morando em São Paulo Dormir pouco é uma péssima ideia As consequências a curto prazo de sono ruim ou insuficiente são bem documentadas, e incluem a diminuição do desempenho cognitivo e motor, memória prejudicada e um risco aumentado de lesão. Ter menos de 5 horas de sono leva a memórias falsas Os pesquisadores também sabem que os efeitos colaterais associados com prolongados períodos de sono inadequado são cumulativos.

Ciranda - continua na pagina 2 Um ano atrás. Em outro apartamento, mais povoado. Mais empesteado de fumaça. Uma dança, um feriado, um fim de semana em plena terça feira. A música Papel sulfite, de Meta Meta, toca num

notebook velho. “Freud se importou o suficiente com os sonhos pra criar uma psicologia toda baseada nele, no subconsciente.” “Mas não dizia que o sonho era também o mundo, Marcia.”

Ela tinha a mania, que Michel achava linda de dar uma longa tragada no cigarro antes de apresentar uma opinião forte. “Mas o subconsciente também é o mundo. E não podemos esquecer o outro lado, Jung dizia sobre . . . pág. 2


A função do sono, segundo as mais recentes pesquisas sobre o tema Dormir garante que os estímulos que se recebe durante o dia sejam fixados na memória. Estudos sobre o assunto dão pistas para tratamento de depressão. Passamos um terço de nossas vidas dormindo. E ainda assim a ciência pouco sabe sobre as funções biológicas do sono - e o motivo real pelo qual dormimos. Um estudo publicado em setembro de 2016 por pesquisadores da Universidade de Freiburg, na Alemanha, reforçou a hipótese de que ele serve para enfraquecer conexões neurais estabelecidas durante o período em que se passa acordado, o que ajuda a consolidar memórias e aprendizado. Pág. 3

Ciranda - Jung dizia sobre

“Ou vai negar das ao notebook e que ainda é o o consciente coletivo e os aumenta o que fazemos? sonhos. Uma coisa a se volume. Vira-se Sonhamos com pensar” rapidamente para coisas o tempo “Jung era um velho lunático.” Michel, e numa todo para Márcia apagou o cigarro no espécie de tango, preencher cinzeiro de madeira com coloca um pé na nossos futuros. inscrição que dizia que o move a vida.” frente do outro Casa, filhos, mesmo vinha de Foz de Agora ela vai enquanto corte de Iguaçu. “Pode até ser, mas até a mesa da cantarola. cabelos. E até sala, onde gosto dos lunáticos. E isso “Tudo que te coisas materi- estão as caixas peço, meço” não é tão importante pra mim, não vou atrás de todos ais. O sonho de som acopla os significados. Só quero saber como os pajés usavam seus sonhos para guiar uma fé. Para guiar uma sociedade.” Márcia apagou o cigarro no cinzeiro de madeira com inscrição que dizia que o mesmo vinha de Foz de Iguaçu. “Pode até ser, mas gosto dos lunáticos. E Pé direito na frente, ombros inclinados, isso não é tão importante pra uma mão para cima, desce e aponta para mim, não vou atrás de todos Michel. “Pra não cometer excesso” Pé esquerdo os significados. Só quero na frente, um rodopio, mãos na cintura. saber como os pajés usavam “Se ocorrer o inverso, mil desculpas eu te peço.” seus sonhos para guiar uma Ele fecha os olhos esperando uma caricia doce, fé. Para guiar uma sociemas acorda no chão do escritório. dade.” “Porra, cara. Que houve?” Caminhou através da sala. Hermano tava do seu lado, Ficou parada na frente de segurando sua cabeça, e Michel, ameaçou um beijo. abanando seu rosto. Outras Mas deu aquele olhar de que pessoas do escritório de contabiiria falar algumas palavras lidade também estavam ao seu irrefutáveis. redor com ar de curiosidade.


As consequências a curto prazo de sono ruim ou insuficiente são bem documentadas, e incluem a diminuição do desempenho cognitivo e motor, memória prejudicada e um risco aumentado de lesão. Ter menos de 5 horas de sono leva a memórias falsas Os pesquisadores também sabem que os efeitos colaterais associados com prolongados períodos de sono inadequado são cumulativos. Em um dos mais extensos estudos de privação do sono em humanos já realizados, participantes restritos a seis horas de sono por noite durante 14 dias consecutivos se saíram tão mal em tarefas cognitivas e motoras quanto participantes que não dormiram

Dormir pouco é uma péssima ideia segundo pesquisa nada por duas noites. A longo prazo, pouco sono impacta negativamente o coração, os pulmões e os rins, o apetite, o metabolismo e o controle de peso, a função imunológica e -a resistência a doenças, a sensibilidade à dor, o tempo de reação e o humor. Quantas horas de sono nós realmente precisamos? Também é um fator de risco para a depressão e abuso de substâncias, e tem sido associado a um risco aumentado de obesidade, diabetes, doença cardíaca e certos cânceres. E pode levar à morte

ciente. O que sabemos vem de alguns estudos, como o do psicotera-peuta John Schlapobersky, que teve a coragem de se atormentar com a privação total de sono, junto com outros participantes da pesquisa. Estudo identifica o maior ladrão de sono do mundo Ele ficou sem dormir por uma semana no total. “Eu me lembro de detalhes da experiência, embora tenha ocorrido há 35 anos. Depois de duas noites sem dormir, as alucinações começaram, e depois de três noites, tive sonhos enquanto acordado, o que é uma forma de psicose”, Sem surpresa, as consequências conta. de longos períodos de privação Até o final de uma semana sem absoluta de sono são menos dormir, as pessoas perdem a sua bem documentadas do que as orientação no lugar e tempo. consequências de sono insufi- Uma janela pode se tornar uma


vista para o mar vista em seus dias mais jovens, por exemplo. No geral, privar alguém de sono é mexer com o seu equilíbrio e sua sanidade. Dependendo de para quem você perguntar, o recorde mundial de privação de sono intencional está em algum lugar entre 11 e 19 dias. As pessoas que sofreram essas longas crises de insônia supostamente se recuperaram dentro de poucos dias. No entanto, tanto quanto sabemos, nenhum ser humano já morreu devido a privação de sono intencional ou forçada. Animais são outra história. Mas existem casos fatais

de pessoas literalmente incapazes de dormir, como as que possuem insônia familiar fatal (IFF). Essa doença priônica extremamente rara do cérebro pode levar à morte. O intervalo típico de sobrevivência de quem tem IFF é entre 7 e 36 meses. A doença progride da seguinte forma: insônia, alucinações e atura (sudorese); perda completa de sono; rápida perda de peso; demência e falta de resposta, seguido de morte súbita. A importância do sono: quanto menos você dorme, mais seu cérebro envelhece Estes sintomas, e outros

observados em estudos de perda de sono, sugerem que períodos prolongados de vigília podem acelerar a chegada da morte por “perturbação das funções críticas”, incluindo os relacionados ao hipometabolismo. Esses sintomas se assemelham aos acordados, como uma pesquisa com ratos feita pelo cientista Allan Rego (EUA).

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Não continue lendo esse relato se for um defensor dos direitos animais – será uma tortura. O que sabemos sobre os efeitos da privação do sono no corpo Os resultados dos experipublicados em 1989, mostraram que “todos os ratos submetidos à privação de sono morreram, geralmente após 2 a 3 semanas”.


Pingado O café do seu Zé era fraco. Mas não aquela manhã, por que quem preparou a bebida dessa vez, foi a dona Marta. Que realmente sabe preparar um café. O pão com manteiga era o de sempre, da padaria do Zé. Margarina Doriana. Sem dó. Margarina suficiente para te fazer ensaiar uma parada cardíaca. “Anda melhor das pernas, garoto?” seu Zé lavava copos americanos e tentava não olhar diretamente para o menino. “Acho que sim. Por quê?” “Ué, ontem tu veio aqui, com uma sacola de exames, disse menino. “Acho que sim. Por quê?” “Ué, on-

Michel pegou mais um café, pagou a conta e foi pra casa. Alçou vôo e entrou no apartamento, pela janela do quarto. Salomão o cumprimentou com alegria ao entrar em casa. E também parecia apontar a caixa de areia que deveria ser limpa. Decidiu fazer mais tarde. O gato estava estranhamente agitado aquela tarde, e pulava de um lado para o outro no cômodo de repouso do garoto. Depois de tentar comer parte do envelope, e fugir brincando com um pote laranja de remédios, sumiu fortuitamente em cima do armário, onde um amontoado de caixas colecionava pó, há algum tempo. O garoto fitava o teto, rodopiando cartelas de medicamentos entre os

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tem tu veio aqui, com uma sacola de exames, disse que não dia dado boa coisa e foi pra casa apressado” Enxágua um copo. Põe no escorredor. “E agora ta ai, com mais uma pasta de exame, olhando pro mundo com cara vazia.” O garoto repara no banco ao lado, um envelope pardo, com uma etiqueta branca, com seu nome repousa no estofado. Não lembra tampouco de ter feito exames. Claro que já fez exames na vida, mas não aqueles. Nem lembra de quando foi até o posto ou a farmácia para pegar aqueles remédios todos receitados. Deve ter sido o terceiro médico, o dos sonhos, que queria saber a direção do bar,

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dos como se fossem baque- tas de bateria, quando notou os movimentos do felino. Olhou rapidamente para cima armário com desinteresse, e voltou os olhos para teto. Mas uma imagem lhe chamou atenção, quase que por acaso, uma caixa de sapatos preta. Olhou novamente para o armário, intrigado. Não se lembrava de ter preparado a marmita com macarrão e cigarros, nem de ter desmaiado no escritório, tampouco de ter visitado algum outro médico que não aquele que havia lhe dito que era apenas estresse o seu problema. Não se lembrava de quando fora a última vez pro trabalho, nem se dava conta de que havia sido demitido e que sua conta bancaria esvaziava pouco a pou-

quem lhe indicou o que tomar. O doutor disse que conseguia trocar almas de corpo, igual o doutor Baltazar do conto do Gaultier fazia. Michel acreditou pouco ou quase nada no que ele disse, era só um velho bêbado procurando mais um balcão para beber um pouco mais e recostar. Mesmo assim, sem se lembrar de ter trocado palavras com um novo medico, que não fosse o bêbado perdido, apanhou os remédios e o envelope pardo e abriu ali mesmo, na padaria. Hemogramas. Gráficos de acompanhamento de seu sono. Tomo-

gra-

fia. Eletrocardiograma. A coisa era séria. “Eai, meu filho?” Seu Zé nem lava nem secava mais os pratos, esperava a resposta com anseio de boas noticias. “A coisa é séria.” Não sabia nada do que estava traduzido ali nos exames, mas sabia que a coisa era séria. “Mas descobriram o que é? Pelo menos você pode tratar, é só pedir a Deus que da tudo certo.”

co. Mas se lembrava da caixa de sapatos, de tê-la colocado lá, antes de tudo aquilo começar, quando se mudou para o apartamento novo, e decidiu por enfiar apenas aqueles cadernos velhos em sua nova vida. A única lembrança que manteria, seriam aqueles cadernos de anotações, com um bilhete escrito carinhosamente por Márcia, na última pagina de cada um deles. Pegou a caixa no topo do armário com a ajuda de uma cadeira da cozinha. Sentou-se na cama, e se colocou a folhear os cadernos, um a um. E os títulos vinham a cabeça. Como se o recordassem do que iria acontecer, do que agora acontece, e lhe dissessem o que se passava com ele.

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Desceu na última parada do ônibus. O local era parecidíssimo com o que lembrava ter sonhado, ou com as imagens que vira no Google, já não sabia distinguir as referências em sua cabeça. A estrutura metálica cinzenta era alta, sustentava telhas gélidas de metal ainda mais cinzentas. Dessa vez ecoavam barulhos, barulhos de respingo de chuva. Uma chuva morna e passageira de verão. Olhou para o vendedor de passagens indo em direção ao seu fusca branco encostado no mesmo canto que estava quando sonhara com a situação. Esperou alguns minutos, analisando as colunas de concreto, as marcas amarelas e brancas, as sinalizações pintadas no chão. Cada sinal que encontrava naquele lugar deserto era uma nota muda, que fazia seu corpo ressoar. Aos poucos a melodia tomou forma junto da chuva. O som era um só. Era ele e era tudo, e quando o fusca foi embora, era ele só.

riso no rosto, cogitando parar o tempo que fosse necessário para recuperar o fôlego enquanto admirava de longe a cabana da senhora. “Perguntar-lhe-ei o nome assim que chegar.” Mas não foi assim que se fez. Chegando ao topo do caminho, aonde poderia ver a cabana. Não encontrou a morada da senhora. Sabia que não estava no local errado, porque estava tudo lá. A sua direita a cerca ainda esta rompida, o pé de goiaba cheio e o chão ainda estava sujo de frutas maduras que haviam se desprendido da árvore. Podia contar as árvores ao redor da clareia, e dizer se alguma estava fora de lugar, conhecia todas uma a uma. O local era aquele. Não tinha dúvida. Ou deveria ter. Pegou o papel, do lado direito, no bolso da calça, atrás, para checar o caminho. Havia parado de chover, mas os momentos anteriores da caminhada borraram as palavras escritas com esferográfica azu. O papel agora era um rascunho de trapo, sujo de

Sabia que dessa vez estava desperto porque se lembrava de ter sonhado com aquilo tudo. E por mais que tudo o que tenha visto parecesse extremamente real, era impossível simular em seu sonho, o cheiro que vinha do asfalto, e que subia das folhas verdes quando a água chegava a nossa superfície. O cheiro da chuva. O cheiro da água. O som da chuva, era o que lhe diziam que estava acordado, não tinha visto ou ouvido a chuva, dentre o tempo em que ficara doente e agora. Isso lhe despertou. Permitiu-se ficar debaixo daquela chuva fina, enquanto tomava coragem para seguir seu caminho. Não havia sinalização útil para ele, nenhuma placa que lhe orientava a seguir tal caminho para a casa de uma anciã sábia que possuía todo o conhecimento sobre o mundo de lá dos sonhos. Mas ele sabia a direção. Deu uma última olhada, no papel, no bolso direito da calça, atrás. E partiu.

Novamente caminhou por aquela estrada mal iluminada, aquela rota que havia traçado tantas vezes com seus mesmo pés. A mesma rota que eles haviam traçado.

manchas azuis.

acordasse em outro lugar, mesmo que fosse numa segunda feira, no trabalho. Ou melhor, na sala de sua faculdade, na saída da aula, um ano atrás. Pronto para acender um Marlboro em companhia de seus amigos. Mas isso não se fez. “Talvez eu esteja mesmo ficando louco.” Talvez tivesse que tomar todos aqueles remédios e fazer um acompanhamento psicológico pós traumático. Ou ainda, talvez aquelas coisas todas não tenham acontecido há um ano. Talvez tenham acontecido há cinco anos, dez, em outra vida que fosse. Talvez nem tenha realmente conhecido nenhuma Márcia, e nunca tenha colocado um cigarro sequer na boca. Poderia ter sido com outra pessoa. Outra pessoa deixou de ir a uma viagem com seus amigos, e agora enlouquecera. Outros amigos foram nessa viagem. Outra Márcia e outro Pedro estavam no ônibus que deslizou no acostamento durante a chuva.

Ele desceu o caminho de terra lamacento, sujando até o meio da canela sua calça jeans predileta. Respirou fundo, a noite era escura como uma noite deveria ser. Sem luzes para atrapalhar os brilhos das estrelas ou enganar o olhar, fingindo que poderia enxergar mais que um palmo de distância. Soltou o ar, queria gritar, mas não achou necessário, não haveria ninguém ao redor para lhe escutar. Caminhou até o centro da clareira. E esforçou-se ao máximo para lembrar de cada detalhe daquela construção. A varanda, o tipo de madeira, os batentes da janela. A escrivaninha, a poltrona, os quadros no corredor protegido por uma cortina de miçangas. Criou em pensamento o lugar que desejava estar agora. Mas ao abrir os olhos não havia nada além dele próprio. Sentiu raiva, e imaginou, e pediu, para que fosse só mais um sonho. E que ele

Michel sonha dessa vez acordado, sonha que não houve briga ou discussão alguma que o fizesse negar a expedição. Dessa vez ele entrou no ônibus com seus amigos. E partiu, para fazer aquela rota. Em certo ponto da caminhada, o acostamento começou a tomar forma de fazenda, protegida por arames farpados que protegiam o local de visitantes indesejados. Aproximava-se do local. Podia dizer que sim por conta dos morros, que se tornavam cada vez mais íngremes. Podia dizer, pelo suor que se misturava com a chuva em sua camisa encharcada, e pela dor no pé. Que já sentira tantas outras vezes tentando alcançar aquela sala, aquela poltrona antiga, e o chá agridoce.

Caminhava agora olhando para o chão, focando em seus próprios pés, a mão nas alças da bolsa, e a cabeça na casa. “Quando chegar, tomarei aquele chá, lerei aquele livro, saberei o que eles também souberam.” Quase conseguia transformar sua saliva em algo próximo ao que havia na xícara, de tanto pensar. Olhava o tênis, para evitar olhar e cansar-se demasiado já que agora se fazia uma subida no caminho. Esperando o momento em que o asfalto se dissiparia um pouco pelo lado direito. Como se formasse uma espécie de corrente, que o levaria levemente até lá. Caminhou um tanto o mais do que se lembrava de ter que andar até a bifurcação. Mas finalmente chegou até a pequena estrada de terra, que subia o mundo em uma ladeira íngreme. Comemorou, pois lá de cima do topo da ladeira poderia ver a pequena casa, no meio de uma clareira de árvores. Agora caminhava orgulhoso. Um sor-

Tentou um pouco se esquecer dessas coisas todas, e finalmente fazer como haviam lhe dito: seguir com a vida. A chuva voltava calmamente a tomar parte naquele cenário interiorano. E a medida que caia em seu corpo, parecia estar em um oceano, flutuando. Sem perder o peso do seu corpo, mas sustentado por todas aquelas irrealidades que foram quebradas, pelos meios sonhos, e meios deveres a serem cumpridos. Respirou fundo e fechou os olhos. Mergulhou, num sussurro. Naquele escuro se fez estardalhaço. Solta o ar mais uma vez, procura onde se agarrar e encontra a noite densa e impenetrável.



processos.


Leitura do texto PartogĂŞnese com integrantes do Programa Vocacional


Processo de criação HQ 2016


Intervenção da HQ Biblioteca Nuto Sant’Anna e Biblioteca Silvia Ortof Novembro 2016

Exposição de Pinturas Centro Cultural da Juventurde 2016


Intervenção Desenho CEU UIRAPURU Junho, 2016

Intervenção Biblioteca Nuto Sant’Anna Novembro, 2016


Intervenção Xilogravura E.E.Silvio Xavier Outubro, 2016


Intervenção de bordados na Casa de Cultura Salvador Ligabue e Biblioteca Nuto Sant’Anna Novembro-Fevereiro, 2016


Intervenção de Bordados Biblioteca Narbal Fontes Novembro, 2016


Processos da intervenção de serigrafia que foram expostos na Biblioteca Pedro Nava Outubro, 2016


Intervenção em vídeo Biblioteca Álvarez de Azevedo Dezembro, 2016


Intervenção de Fotografia Biblioteca Afonso Schmidt Dezembro, 2016


CRÉDITOS André Borges

Texto, storyboard da HQ e diagramação

Bru Bruna

Vídeos

Isabella Carvalho

Coletas e bordados

Jade Lopes

Bordado entre mulheres

Luiz S iqueira

Desenho da história em quadrinhos

Mapa

Xilogravuras

Verô de Maia

Fotografias

Wanderson Salazar

Desenho do jornal

Carla Kinzo

Artista orientadora pelo Programa Vocacional

Marcos Gomes

Artista orientador pelo Programa Vocacional

Talita Caselato

Artista orientadora pelo Programa Vocacional

Still do vídeo Partogênese



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