Makemake

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AUGUSTO LIMA ilustrações Gwen Yoko


O Autor...

2009 - Augusto Lima escreve o conto "Tipler Café", onde a personagem Jadir F.M., empregado da empresa brasileira de borrachas e penumáticos Tipler, sofre os efeitos das viagens no tempo. Um ano mais tarde é editada a segunda parte da trilogia, com o título Makemake. Makemake é o 3º maior planeta anão do Sistema Solar. Foi descoberto a 31 de Março de 2005, recebendo o nome provisório de "Coelhinho da Páscoa". Augusto Lima plasti75@gmail.com


AUGUSTO LIMA

| ilustrações Gwen Yoko



M AKEMAKE

[Aeroporto de Maiden City, Escócia] “Persegue-me o desconforto; sinto o vazio dos dados da minha última missão. Lembro-me de quando atravessava estes terminais sem me lerem o pensamento, sem ter de ficar sentado ao lado de uma planta ou de um monitor com o backup de uma parte da minha memória. Assim que aterrei injectaram-me informação à qual não tenho acesso e agora usam o meu cérebro, durante 2 horas, como um disco de armazenamento. A investigação fica sempre salvaguardada e o negócio expande-se. O meu único plano é acumular erros, falhar, fugir e desaparecer. E agora, devo manter a minha mente em branco. Os 38 minutos que me faltam serão para saborear um "catta" no bar do aeroporto e abrir o último envelope azul.“ Pierre caminha até à cafetaria "Woodman S." e o sinal de upload mantém-se nos 38%. Dirige-se à máquina de pagamento automático e recolhe a sua senha de partilha de mesa. Sente todas as pequenas interferências dos refrigera-3-


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dores, das micro-ondas misturadas com a banda sonora de fundo e com o ladrar dos cães. Neste estado de consciência capta nítidamente todas as transmissões de dados num raio de 200 metros. O emissor que ele tem instalado na memória de trabalho mantém-se ligado à CTV onde vários operadores rastreiam qualquer tipo de manipulação nos dados confidenciais que está a receber. – Mesa 131... Olá, posso? – Sim, claro. Parece que pedimos o mesmo... – "woodman catta"... o meu pequeno almoço preferido. [Sede da CTV (GMT +1)] O operador mais jovem repara que a senha da rapariga tem o nº 113 e não o 131. – Sr. Jdow, temos uma potencial na mesa com o Pierre. – Já a fixei. Discalculia... com um QI elevado. Tem a ficha limpa. Deixem-no continuar.

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[Aeroporto de Maiden City] – E tu o que é que fazes? – Vais arrepender-te de ter perguntado... sou uma "New Tosher". – A sério? Li há dias um artigo sobre os últimos “Toshers” e “Mudlarks”. Parece que deixaram alguns mapas muito interessantes. Fazes isso sozinha? – Somos os "Panama", uma pequena team. E somos todos despertadores humanos ao fim da noite. – Há muita fobia à electrónica aqui em Derry City? Como é que os acordas? – Em Maiden City acordo mais de 50 pessoas à paulada, ou melhor, bato-lhes com um pau nas janelas dos quartos. As pessoas marcam-nas como antigamente. – Mas não tens cara de quem se deitou tarde ontem... – Enganas-te, ainda não dormi. Estou à espera de uma amiga. Mas... conta-me mais sobre essa tua história. – Mmm, estou a começar a tentar ligar os pontos e a desenvolver as personagens secundárias. – Então voaste até Derry só para te inspirares... – Sim, à procura da tempestade de mar perfeita, da musa selvagem que preciso. Olha, tens mais molho aqui... – Tens de ir a Àrcaibh. – És de lá? – Sim, nasci lá. A minha mãe vive lá... Não vais acabar -5-


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o teu “catta”? – Acaba-o tu, estou um pouco mal disposto da viajem. – Faz quadros com lã. – Desculpa? – A minha mãe. Vive rodeada de lãs e queijos em Mainland há mais de 20 anos. – Gostava de ver isso... – Só consigo estar lá duas semanas por ano. Vou amanhã. Não queres vir? – Acabamos de nos conhecer numa mesa partilhada, tenho pelo menos mais 15 anos que tu e queres que vá contigo para uma ilha? – Já estamos numa ilha e não te estou a convidar para ires comigo... também vai a Sean. – A Sean? – Sim, cabeça de rapaz, corpo de rapariga. O pai dela era fã do Sean Cassidy. – O homem-pássaro? – Yep. Tenho o original de Krakatoa, de quando ele vai lá salvar o grupo antigo. – Eu, tu e a tua amiga em Kirkwall durante 2 semanas... imagino que ela seja da tua “Tosher Team” e que tenham um bom plano para vir de lá com os bolsos cheios. – Não é bem na capital, mas sim, é perto de Kirkwall. Olha, fica com o meu contacto. Saímos de barco depois de almoço. Liga-me se quiseres ir. -6-


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– Tenho um jantar amanhã e ainda não sei se... ei, esta música... ouve... conheces? – Mmm... sim. – Ficaste muito pensativa de repente. – É a história da minha vida. – Esta música? – O ano passado morreu o meu melhor amigo. Lembro-me, num Domingo à noite, de ouvir o telefonema quando estava a tomar banho antes de sair para trabalhar. Depois de ouvir a mensagem encostei a cabeça à porta do chuveiro. As gotas de água desciam aos milhares. Os meus olhos estavam bem perto do vidro, e só conseguia pensar no que estava a ver, as gotas a formarem rios, a criarem padrões. Estive assim mais de uma hora, com a mente em branco. Quando já não aguentava mais a água quente a bater-me nas costas e na cabeça, senti umas tonturas e voltei à realidade. O atendedor de mensagens tinha ficado preso num telefonema antigo que eu nunca apaguei. Era dele, do João... queria mostrar-me esta música, a “Burning The City”, e encostou o leitor ao telefone para a ouvirmos juntos... – Desculpa, tenho de ir... – Incomodei-te com a minha história? De certeza que para ti esta música tem outro sentido e acabei de te estragar a manhã. – Não, não é isso. Tenho mesmo de sair daqui. – Tens o olho a tremer imenso... estás bem? -7-



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– Eu ligo-te amanhã de manhã. Prometo. Não sei o teu nome... – Lins. – Eu chamo-me Pierre. Adeus Lins. [Sede da CTV] – Relatório? – Erros em apenas 356 sectores, Sr. Jdow. – Desliguem o sistema. Vamos todos para casa. Passamos ao nível 3. [44 horas depois, algures na Escócia] – Pierre, estás a filmar? – Estou a ficar sem bateria. Isto é um labirinto sem saída. – Pelo mapa devemos estar mesmo em cima. – Não vejo nada! – Aqui... preciso de luz... acho que encontrei algo. – É uma caixa, Lins. Toma a mochila. – Está impregnada de um líquido azul! Andamos há 3 anos na pista desta caixa. Não acredito que a encontramos. – Mas o que é? Estas paredes estão a deixar passar a água da chuva lá de fora. Isto pode desabar a qualquer momento. – Olha para mim. Estes túneis não vão cair Pierre. Nós não estamos realmente aqui. -9-


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– Hã? – Repara nas cores... são lindas, indefenidas, consegues cheirá-las. O azul da caixa quer tocar-te. Está na hora de acordares dentro de ti. Apenas tens de te lembrar... Estávamos a jantar em casa da minha mãe quando ela trouxe o licor. Lembras-te? – Tenho frio. Sinto o álcool, sinto-o por dentro... não o consigo sentir por fora. – Calma, isso já passa... aproxima-te da caixa, deixa que ela te envolva e bebe. – Estou a sonhar? É isso? Não me lembro de como chegamos aqui. – Estás a ficar lúcido também. Devemos estar os 3 lúcidos para o portal funcionar. A Sean está à nossa espera do outro lado, a segurar na chuva. Pierre está a sonhar, tem a certeza, e bebe sem pensar todo o líquido da caixa. O sabor é-lhe familiar e transporta-o num instante ao momento mais solitário da sua infância. Está em frente à televisão a preto e branco, na cozinha dos seus pais, num sonho dentro de um sonho. Vê apenas o seu reflexo acompanhado de um ruído agudo e cortante, constante. O vazio funde-se com a chuva fora dos túneis, que sintoniza uma música épica e intensa. Sente-se cada vez mais leve, a levitar, com as endorfinas libertadas a susurrarem-lhe as fantasias sexuais de Lins. - 11 -


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[19h44m (GMT), casa da Sra. Jennifer Foster, Kirkwall] Pierre abre os olhos. A luz é sufocante e o calor cega-o. – Água... – Sr. Pierre? – Sim...? – Sou o detective Dan. Estou aqui em nome da CTV. – Agente, pode dar-me água por favor? – Não é conveniente no seu estado... preciso de ligá-lo à central para recuperar dados da sua missão em Maiden City. – Eu não me lembro do que aconteceu... – Digamos que houve um pequeno contratempo e estou aqui para lhe inserir pessoalmente as instruções do seu novo trabalho. – Maiden City foi a minha última missão. Está a perder o seu tempo aqui. Preciso de beber água. Lins está exactamente por cima da sala. Pode ver Pierre deitado no chão e a seu lado um engenho electrónico que parece mantê-lo aprisionado naquele estado. O estranho que irrompeu pela casa introduz um código de acesso de dados. Lins filma com o seu telemóvel todo o processo.

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[21h59m] – Ele fez o quê Lins? – Filmei tudo com o telemóvel, Sean. Vi a caixa com um líquido viscoso; ele fez uma ligação, introduziu um código e logo a seguir perdi os sentidos. – E eu estava lá fora no jardim quando esse homem me per-guntou pelo teu pai. Olhou-me nos olhos e apontou-me aquela arma. Quando acordei estava no chão da cozinha com aquele zumbido insuportável na minha cabeça. – Temos o vídeo, mãe. Não tinha rede mas fixei o telemóvel numa trave. Deve ter gravado tudo, mesmo depois de eu ter desmaiado. – Vou chamar a Polícia. – Não sra. Foster. – Pierre? – Por favor, Lins. Telefona à tua amiga, a médica. Precisamos de ver se estamos todos bem. – Estivemos inconscientes mais de 2 horas, minha filha. Não sabemos o que ele fez connosco. – Não podemos telefonar à Polícia. Preciso de sair daqui antes... – Afinal quem és tu, Pierre? Ele conhecia-te. Chamou-te de "agente" e o próprio apresentou-se como detective. – Nunca o tinha visto. Mas tens razão Lins, devo-te uma

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desculpa. Não vim para a Escócia apenas para acabar o meu livro. – Agente?! És um agente de quê? Porque é que vieste connosco para Kirkwall? – A tua amiga Lins convidou-me, lembras-te? – Mas tu não és quem disseste que eras... chamas-te mesmo Pierre? Em que raio estaria a pensar quando te dei o meu número... – Tu insististe. Nunca pensei que isto fosse acontecer... as pessoas para quem trabalho vieram certificar-se de que cumpria o meu contrato. – Estivemos inconscientes toda a tarde e não devemos estar preocupadas? – Tem razão Sra. Foster, lamento imenso o sucedido. Pierre pega nas suas coisas e dirige-se para a porta. – Vais embora? – Não te atrevas a deixar-nos assim! Pierre fica estático colado à porta de saída, de costas para a sala, pensativo. A mãe de Lins segura o telefone firmemente. Após um momento de silêncio, Pierre leva a mão ao bolso do seu casaco... – Esta é a minha missão aqui na Escócia. Pierre sai, deixando o envelope azul com as instruções da sua missão, como agente da CTV, na pequena mesa ao lado da porta. - 14 -


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[Uma semana mais tarde, nos esgotos de St. Magnus Cathedral, em Kirkwall] – Foi isto que viste no teu sonho? – Era diferente, Lins. O túnel era mais escuro, não entrava esta luz e chovia imenso. Lembro-me dos reflexos azuis, da água nas paredes a desafiar a gravidade e lembro-me de ti, lúcida, relaxada. Olha, já acabaste de ler? – Estou na parte da realidade, dos medos... é mesmo necessário que leia isto até ao fim? – Vais acabar por perceber o porquê de tudo isto quando chegarmos à ilha. – Tenho pensado imenso estes últimos dias, em todo aquele escândalo lá em casa. Foi tudo tão confuso. Mesmo quando li a tua missão não queria acreditar... – Reparei nos teus olhos quando finalmente vimos o que tinhas filmado. – "A pessoa que não controla o seu território não controla a sua existência..." – Essa é uma das frases que te vai ficar gravada para sempre. Nessa parte do livro percebes que só perseguindo um objectivo é que consegues que a vida não te devore. – "Quanto mais alto, mais longe nos levará..." – Neste caso vai-nos levar mesmo para o meio do Oceano Pacífico. – É melhor voltarmos. Disse à minha mãe que jantávamos, - 15 -


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não sei quando a volto a ver... – Sim, e devemos dormir bem esta noite. Amanhã começa o grande sonho. A partir do momento que entrarmos naquele barco teremos a CTV a controlar todos os nossos movimentos. Se tivermos medo, seremos devorados. Sabes, não conseguiria fazer isto sozinho... não conseguiria fazer isto com mais ninguém.


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A Grande Viagem [Dia 1, 7h28m (GMT)] – Ok, explica-me quem é esta... – Bom dia, Lins... – Buenos dias! Acordei com isto debaixo da almofada e não resisti. – Os meus rascunhos! São apontamentos, resumos de uns ficheiros que imprimi na CTV antes de apanhar o avião. – Châmoa Rodrigues? – Dona Châmoa Rodrigues. – E como é que tens uma chamada telefónica de uma mulher que viveu no ano 963, algures em Portugal? – Essa chamada é real, Lins. Foi feita em Abril desse ano, da margem esquerda do rio Tuela. Não sabemos é como. – E a ligação bizarra qual é, “Sr. Agente”? – Ali! Olha! Uma baleia azul! – Uau, é enorme!!! – Rápido, tira-lhe uma foto... Lins pousa os rascunhos, pega na câmara fotográfica e salta para a popa. O ângulo é perfeito, com o sol na posição certa. É um momento fotográfico imortalizado por uma imagem saturada de brancos e azuis. Sem dúvida, o melhor truque para desacelerar o tempo. Dos quatro livros que leu para se preparar para a grande viagem, não se lhe ocorre nenhuma passagem que descreva este instante. - 17 -


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– Sean? – Ei! Ainda te consegui apanhar! – Sim, ainda temos rede aqui... olha, estou a falar contigo e a ver uma enorme baleia azul. É gigante, não imaginas! – Muda para vídeochamada! – Não dá. Só apanho gsm aqui. Mando-te uma foto. – Ok. E que tal corre a viagem? – Estou livre Sean. Sinto-me em casa. – Foi o que sempre sonhaste, fugir com um estranho. És louca! Olha, esqueceste-te de l-var a- t-- --- ------... – Estou a ouvir-te muito mal. Sean? Piiiiiiiiiii... Shit... – Quem era? – A Sean. Caiu a chamada. Acho que acabamos de ficar sem telefones. – Temos o rádio. Conseguiste a foto? – Sim, ficou incrível. [21h46m] – Pelo que percebo esta senhora não é a única com telemóvel em plena idade média. – A chave está em captar o repetidor que possibilitou essa chamada, Lins. Se continuares a ler... vira essa página... repara na localização da antena. – Parecem-me as coordenadas da ilha. – Quase... - 18 -


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– Ok, e a ligação com o escritor desaparecido? – Captamos mais chamadas, mas o som estava muito deteriorado. São precisos meses de edição e a CTV está a ficar sem fundos para este caso. – Diz-me, estes brasileiros que encomendaram esta investigação... qual o interesse deles? – A empresa enviou o fotógrafo de que te falei... – Pierre Woodman... o homem dos castings? – Sim, por alguma razão nomearam-no o seu porta-voz. Apresentou-se com duas malas na nossa sede. Uma delas continha apenas a capa do tal livro. – O tal que não existe. – O tal que esperemos que exista... [Dia 6, 6h45m (GMT -1)] – Good morning Captain! – Good morning little Tosher. Que tesouro encontraste hoje debaixo da minha almofada? – Olha, imprimi a foto de ontem. Acho que vou colá-la no tecto do quarto! – Prepara-te para tomar o pequeno almoço a bordo do Terevaka. – Ah? – O capitão é meu amigo e estão ancorados a 30 milhas - 19 -



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daqui. Não te apetece pão fresco? – Apetece-me um “Catta”. Mas sim, pão fresco seria óptimo. Tenho de falar com a “team”... achas que me posso ligar no barco... só para lhes mandar uma mensagem? [Dia 12, 9h56m (GMT -2)] – Bom dia... – Ei, bom dia Lins. Estás bem? – Não sei como consegues... eu sinto-me cansadíssima. – Cuidado, senta-te... o mar está agitado hoje. Temos uma pequena tempestade mesmo ali à frente. Já comeste? – Sinto-me enjoada. Acho que vou voltar para a cama. [Dia 15, 12h13m (GMT -2)] – Hummm, está óptimo o almoço! – Obrigado! Queres uma cerveja? – Dois dias... só nos faltam 2 dias para repetir a proeza de Roggeveen. Demorou 17 partindo do Chile e desembarcou na ilha num domingo de Páscoa... Ok Lins, vamos lá beber umas cervejas. Afinal parece que vamos ter sol o resto da viagem.

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[22h00m] – Scott Kraus? – Ah, isso está aí só por curiosidade. Não devia estar misturado com o resto. Passa-me essa revista também... – Baleias atropeladas? – Morrem mais atropeladas pelas embarcações, esses cruzeiros de adolescentes, do que pelos baleeiros. – O João tinha um disco de poemas de baleias... – Poemas sobre baleias? – Não, recitados por baleias! – Estás a brincar... – Nunca leste Carl Sagan, Pierre? Segundo ele, as baleias sabem contar os meses do ano como nós. Organizam-se para irem ver eclipses num determinado local do oceano. – Baleias capazes de fazer cálculos astronómicos! Costumava ver os documentários dele, até me fascinavam quando era miúdo. Mas ele estava tão errado. – Sabes que a minha mãe chegou a conhecê-lo? – Bem... queres começar? – Começo pela feira dos brinquedos. – Sim, é aí que começa tudo. – Ok. “Missão nº 11 da CTV, 17 de Maio de 1953. Agente conhece rapariga numa feira de livros de ficção científica. É usado pela primeira vez um protótipo de emissor, colado numa capa da reedição do Somnium de Johannes Kepler.” - 22 -


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– Foi a primeira vez que alguém imaginou uma viagem à Lua, através de um engenho criado por demónios. – Depois tens aqui uma série de nomes de escritores mais ou menos conhecidos. Alguns beatniks do início dos 50, de quem nunca ouvi falar. Drogas e os seus efeitos... – Não te contei, mas... analisamos as malas do Woodman e encontramos vestígios de PCP. – Feniclidina para cavalos... – Fenciclidina. E daí o link bizarro à idade média. O agente de Portugal enviou amostras com mais de 1.000 anos que continham vestígios dessa substância. – Mas só foi sintetizada séculos depois... – Exacto e desconexo. Ele é o nosso contacto em Hanga Roa. Apanhou o último voo antes de fecharem o aeroporto. – Continuando... “Rongorongo”. – Ah, o livro escrito em Rongorongo. – Olha, sempre achei que o Borroughs tinha escrito o Junky sob o efeito de... Que é isto, Pierre? Ouviste? – Música... – Deixaste alguma coisa lá fora? – Não. Parou! – Juro-te que ouvi... – Eu também... está escuríssimo. Não temos luz nem lua aqui fora. – A Lua é o destino de todas as coisas perdidas... – Tu sentes-te perdida? - 23 -


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– Aqui, contigo... não. Queres fazer amor? – “Inferno, Purgatório e Paraíso...” Onde achas que estamos agora? – 1841. Edgar Allan Poe. O 1º livro de literatura policial. Não queres então... o vinho já acabou... – Voltemos ao trabalho. Poe desafia a nossa inteligência , recheando a narrativa de pormenores que nos fariam chegar à conclusão da trama mesmo antes da história terminar. – Espera, saltamos aqui uma parte. O tal livro estaria escrito em Rongorongo... dialecto dos escravos da ilha, impossível de decifrar. – Ahhh, a caixa de Pandora. A caixa com que costumo sonhar. Alguém da CTV apagou essa informação de todos os agentes activos, mas eu lembro-me. Daí estarmos aqui e eu acreditar que com essa caixa podemos traduzir o livro. – Livro que, segundo a lenda perdida, está no ninho de pássaro no ponto mais alto da ilha. Há algo nesta história que faça sentido? Se não tivesse visto o que vi, a esta hora estaria à procura de reflexos de ouro nos esgotos de Londres. – Londres? É lá que eles estão agora, os teus amigos? – Yep. “Tangata Manu. Quem ganhar a competição governa a ilha durante um ano. Cada clã escolhe uma pessoa que deverá nadar até Motu Nui, encontrar um ovo, voltar a Rapa Nui e escalar o penhasco.” – O homem-pássaro. – “Quem escolhe os candidatos é um iva-atua, sendo-lhe - 24 -


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revelados num sonho.” Voltamos aos sonhos lúcidos e não percebo o que escreveste aqui por baixo... – Deixa ver... é uma nota... pois, essa competição é vedada às mulheres. – Olha, eu nado melhor que tu! – Pois nadas. – Uaaaaaa... – Sono? – Rongo, rongo... – Rongo. – Congo. Rongo, vamos dormir. A partir daqui vamos disparatar... – Ron ron rongo. Vou beber qualquer coisa quente. Queres? – Sim, anestesia-me com um “tam-tam”. [01h23m (GMT +1) Sede da CTV] – Sr. Jdow? – O Sr. Jdow foi dispensado por hoje. Eu sou o agente Daniel. Operador, pode reportar-me a localização dos sujeitos? – Não o devem ter informado senhor, mas perdemos o contacto há dois dias. A tempestade inutilizou vários transmissores e... – Sabe que não pode beber aqui? - 25 -


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– Mmm, desculpe agente Daniel. Eu pensei que... – E que música é essa? – Chama-se “Holofon”... não lhe sei dizer o nome da banda. – Gosto desse som. Épico. Parece que toda a gente quer dançar hoje em dia. Vamos, acerte as antenas. Vou dar-lhe novas coordenadas. E sirva-me um copo do que está a beber. [3h30m (GMT) Kirkwall, Escócia] – Ou não ouve ou está morta... – Vou tentar ir à volta e saltar a vedação, Sra. Foster. – Cuidado Sean. É muito alta! A chuva é torrencial. O vento partiu o suporte de um poste de alta tensão mesmo ao lado da casa mais afastada da vila. No trajecto para o aeroporto, Sean e a Sra. Foster foram impedidas de passar pela dança frenética de dois cabos eléctricos. Ouve-se “Till Vaning Treton” pelo vidro entreaberto do Ford; Sean salta para dentro da vivenda isolada na montanha e a Sra. Foster recebe um sms que nunca chegará a ler. [Flin Flon, Manitoba (Canada) (GMT-6)] – Anna Karina? – É esse o meu nome artístico. - 26 -


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– Preciso do seu nome completo para preencher o requerimento... – Marina Ann Hantzis. – Escala de Kinsey? –3 – Data de nascimento? – 988. – Desculpe? – 1988. – Marina, acompanhe-me por favor. O Sr. Woodman está 20 minutos atrasado. [47 minutos depois] – Pierre! Finalmente! – Desculpa, tive de me livrar da recepcionista. Anna, temos pouco tempo. Guarda esta k7. Tens de desmagnetizá-la para leres os dados. – Então, conseguiste? Encontraste-os? – Sim, estão a 300 milhas da ilha. Subiram a licitação? – Adivinha... – Essa cara... não me enganas! Quanto? Quanto? – 7.6! – Estás a brincar?! – Desapareceu a outra cópia da net esta semana. Stock zero! Podemos virtualmente pedir o que quisermos por esse - 27 -


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livro. – Makemake! – Makemake está do nosso lado. Agora deves sair daqui, sem alarde. [Kirkwall] – Isto está cada vez pior. Meu deus, vais perder o avião Sean! – Deus parece não estar do nosso lado, Sra. Foster. Pode, por favor, ligar para o aeroporto? – Oh não, deixei cair o telemóvel! Sean??? Sean cai no jardim, derrapa na lama e evita cair na piscina. As câmaras de segurança seguem-na até à varanda. A fase eléctri-ca do alarme caiu e ela consegue entrar na casa. A luz de emergência vai e vem. Há dezenas de sombras e discos de vinil espalhados pelo chão da sala. O “Fake Surfers” partido, ao lado de uma mancha de sangue, reflecte o piscar do atendedor de chamadas. Sean quer voar, quer que os headphones lhe desenhem um sonho de 8 horas até casa. Tem de encontrar a forma de abrir a vedação e esquivar-se dos demónios dançantes. – Deve estar por aqui o quadro da luz... Está alguém em casa? Hello??? Lá em cima, com a almofada a tapar-lhe a cabeça, dorme profundamente Jessica Sahd. - 28 -


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[Algures no Pacífico, 03h57m (GMT -2)] – Continuo a ouvir música lá fora. – São as baleias, Pierre... dorme.

(continua...)


Cronologia útil: 1137 – Começa a ser construí-

o criador de mais de 60 filmes

da a Catedral de S. Magnus

pornográficos, mais de 1.000

em Kirkwall, na Escócia. É a

cenas de sexo explícito, mais

única nas ilhas Britânicas que

de 1.500 sets de fotografias e

possuí uma masmorra, "Mar-

mais de 7.000 castings. Wood-

wick's Hole". No século XVII

man alega ter levado para a

Jane Forsyth, acusada de bru-

cama mais de 3.000 mulheres.

xaria, foi resgatada do buraco

A principal indústria auvernesa

pelo seu amante, e ambos fu-

encontra-se no sector pneumá-

giram para a remota cidade

tico.

de Manchester. 3 ABRIL 1973 – De uma rua de 17 MAIO 1953 – O voo 318,

Manhattan, é feita a primeira

referente ao avião particular

chamada a partir de um tele-

que fazia a ligação Dallas/

móvel. O telefone portátil pe-

Atlanta, nos EUA, sofre um

sava 1089g, e só foi patentea-

violento acidente durante uma

do em 1975.

forte tempestade. Apenas um 1998 – Os Flin Flon editam o

dos 20 ocupantes sobreviveu.

álbum, "Boo-Boo" onde se podem ouvir temas tão viciantes

29 ABRIL 1963 – Nasce em Au-

como “Mistaken Point”,

vérnia (França) Pierre André Gerbier, mais conhecido como

“Floods” ou “Happy Adventure”.

Pierre Woodman. Realizador e fotógrafo de renome, ele é - 30 -


A Ilustradora…

Nasci numa noite três vezes: Gwen Yoko vem lá do fundo do mar, filha de pai chinês e mãe irlandesa. Vagas de samba, sua irmã Iermanjá, embala à noite para de manhã acordar com baixo pesado que emana a massa de terra britânica. Flashy Backy olha para trás, com uma lágrima congelada no canto do olho esquerdo. Bonny Borderliner fuma compulsivamente cigarros lascivos. Mulher fatal que não tem ontem nem amanhã. Coração duro de cicatrizes. Nasci numa noite três vezes. E enquanto o sol bate no cubículo vazio do meu ser que habitava a terra lusitana, viajo pelo continente nocturno do outro lado do mundo.


FICHA TÉCNICA TÍTULO: “Makemake” AUTOR: Augusto Lima (plasti75@gmail.com) ILUSTRAÇÃO: Gwen Yoko (lottizinha_@hotmail.com) EDIÇÃO: Caderno do Insecto Colecção Há Água em Marte 4ª Série Ano 2009/2010 Periodicidade Mensal LEMUR - ASSOCIAÇÃO CULTURAL central@lemur.pt www.lemur.pt

Papel 100% reciclado


Colecção HÁ ÁGUA EM MARTE . 4ª Série:

1. QUANDO A NEVE VIER NOS TEUS BRAÇOS SEREI VENTO, de Angela F. Baptista 2. MARIA ESCREVE-SE COM R DE ROSA, de Alberto Lóio 3. MAKEMAKE, de Augusto Lima 4. UM COCKTAIL EM ALCATRAZ, de Gil Nunes 5. CRÓNICA INCOMPLETA, de Alexandra Saraiva 6. BALÕES DE AR, de Ana Vilhena 7. BOM PORTUGUÊS, de Hugo Salgueirinho Maia {...}

Um projecto LEMUR


A LEMUR constitui-se como um grupo de trabalho que procura dinamizar a formação de públicos para a Literatura, para o Teatro e para o Cinema através do trabalho de novos autores e grupos de criação. Integra nos seus objectivos dar visibilidade a trabalhos de reconhecível qualidade, pelas suas abordagens, formatos e géneros. Num universo em que proliferam os trabalhos e os autores, é necessário procurar aqueles que são pertinentes, apresentá-los perante o público, afirmar a sua postura, a sua novidade e, principalmente, a sua qualidade. O trabalho de formação de públicos passa igualmente pela revisão nova, crítica e consciente das obras estruturantes da Literatura, do Teatro e do Cinema. Ainda no sentido da divulgação de novas obras ou obras inacessíveis, impõe-se a sua disseminação geográfica, permitindo o seu acesso a zonas rejeitadas pela atitude comercial das grandes distribuidoras. O projecto CADERNO DO INSECTO dá corpo ao trabalho de edição da LEMUR na área da literatura e dá visibilidade a novos autores, explorando vários géneros e formatos. LEMUR – Associação Cultural / WWW.LEMUR.PT

... “O Café Progresso, estabelecimento que, além do melhor “Moka” do universo, se vendiam “tabacos”, jornais nacionais e estrangeiros e o Diário do Governo”, abriu as suas portas num lindo domingo, 24 de Setembro de 1899, e foi fundado – afirma um cronista da época – por “meia dúzia de consumidores cansados de explorações, resolveram prescindir de quem lhes fornecia géneros avariados para eles os fornecerem, óptimos para si e para os outros.” O referido café, tornou-se, mais tarde, muito conhecido por nele reunir quotidianamente a fina flor do professorado portuense.” Manuel Porto - Porto (in “O Tripeiro”, nº 7 - Nov. 1958 - V Série -Ano XIV)

PREÇO: 3 euros

CAFÉ PROGRESSO – Porto R. Actor João Guedes, nº 5 (À Praça Carlos Alberto)


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