FLIPEI 2019

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Jornal Extraoficial da Flip

Arsenal literário do nosso barco: Alameda, Aleph, Anita Garibaldi, Autonomia Literária, Boitempo, Biblioteca Terra Livre, Coesão Independente, Contracorrente, Dublinense, Elefante, Escola da Cidade, Expressão Popular, Hedra, Glac, Iskra, Lote 42, n-1, Nós, Patuá, Politeia, Relicário, Revista Cult, Sundermann, Taverna, Todavia, Ubu, Veneta.

FESTA LITERÁRIA PIRATA DAS EDITORAS INDEPENDENTES 10/07 quarta

11/07 quinta

12/07 sexta

13/07 sábado

14/07 domingo

11h

Atualidade de Proudhon e Marx, os socialistas preferidos de Euclides Acácio Augusto, Lais Peres Rodrigues e Cauê Seignemartin Ameni

Militarização da política: o eterno retorno, e fracasso, do Estado fardado Eduardo Reina, Taliria Petrone, Renan Quinalha e Paulo Teixeira

A encruzilhada da esquerda: o que ler? Sabrina Fernandes, Túlio Gadêlha e Vladimir Safatle

Makuaimã: o mito através do tempo Deborah Goldemberg e Cristino Wapichana

13h

Distopia literária no país de Franz Kafta Carlos Messias, Caco Pontes, Carol Bianchi, Jeane Calligari e Emerson Alcalde

Os sertões e suas lutas Joana Barros, Gustavo Prieto, João Batista (descendente de sobreviventes de Canudos)

Biblioteca de motins: leituras para incendiar o país Peter Pál Pelbart, Zenite, Jonnefer Barbosa e Abigaiu Campos Leal

O cinema contemporâneo pelo olhar das mulheres Beatriz Seigner, Jessica Queiroz e Maíra Bühler

Resistência literária em tempos de crise Cid Vale Ferreira, Lucila Mantovani e Olga Bilenky

Identitarismo e classe: a cilada liberal Asad Haider e Jones Manoel

Quem mandou matar Marielle Franco e Rosa Luxemburgo? Isabel Loureiro, Anielle Franco e Marcelo Freixo

Pode o socialismo furar a bolha? Aline Klein, Jones Manoel e Debora Baldin

O colapso da democracia Luis Felipe Miguel, Adilson Jose Moreira e Tatiana Roque

Vozes insurgentes: mulheres negras na produção de conhecimento Chris Gomes, Neusa Maria Pereira e Bianca Santana

A descolonização do poder Erica Malunguinho, Zé Celso e Ara Rete Guarani Nhandewa

OFICINA DO SOM – A MÚSICA EM TEMPO REAL

PIXTINHA INTERGALÁTICA COM FOGOS PARA EXPLODIR O FASCISMO

15h

ABERTURA happy hour com pixtinha bucaneira pós-moderna

17h TENTAÇÕES DE FUGA com CONTRABANDO POÉTICO Anna Márcia Mixo, Bernardo Mendes, Taina Medina e Blackyva

Cosmologias indígenas: palavras que carregam mundos Suely Rolnik, Ailton Kreak e Jean Tible

Os desafios do jornalismo em tempos Lava Jato Glenn Greendwald, Alceu Castilho, Gregório Duviver e Sérgio Amadeu

Resistência antifascista: o legado histórico e as práticas atuais Mark Bray, Crime thinc, Acácio Augusto

21h

MACROFONIA Jeane Calligari, Pink, Carolina Bianchi e Caco Pontes

Aqui tem um bando de louco? Saúde e loucura no país das fake news Christian Dunker, Gustavo Colombini, Natalia Timerman e João da Matta

LANÇAMENTO SLAM GUILHERMINA ANTIFA, LGBT, NEGRITUDE E FEMINISMO

MÃE OU EU TAMBÉM NÃO GOZEI | CABARÉ FEMINISTA | BANDA MACABEA | JOANA FLOR E OS ERVAS DANINHAS | AVA ROCHA & NEGRO LEO

23h

BATALHA DE POESIA: Slam do Prego x Slam Marginália

COLETIVO AFROCAIÇARAS

REALIDADE NEGRA QUILOMBO DO CAMPINHO

MAPA DO TESOURO

19h

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SUMÁRIO

Quem são os piratas da Flipei este ano? Cinco lições históricas para antifascistas A anomalia selvagem Por que é preciso falar de tortura e ditadura ainda hoje? Os sertões e os sertanejos muito além do discurso dominante Lava Jato Interceptada Foda-se, caro governo Livre-se de Si Armadilha da identidade Ruptura FLIP Preta 2019

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EDITORIAL

O

s bucaneiros mais temidos do rio Perequê-Açú voltaram com sangue nos olhos e faca nos dentes para a nova da edição da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Antes vivíamos sob um governo golpista, agora vivemos debaixo de um golpe em forma de governo – filofascista e que tem como seu principal inimigo o socialismo. Curiosamente, Euclides da Cunha, o mais renomado intelectual militar brasileiro e homenageado da Flip 2019, era socialista e teve, assim como Lima Barreto, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros grandes literatos brasileiros, seu passado político ceifado da História. Poucos sabem, mas o autor do clássico Os Sertões foi preso e expulso do Exército, em 1888, por um ato de rebeldia ao quebrar seu sabre numa cerimônia com o ministro da Guerra do Império, Tomás Coelho. Após esse ocorrido, o ex-militar largou a farda e se envolveu com ideias mais iconoclastas, passando a assinar seus artigos e crônicas no jornal A Província de São Paulo, antigo Estadão, com o pseudônimo do anarquista Joseph-Pierre Proudhon, a quem se referia como um dos pensadores mais originais de seu tempo. Nossa estrutura nômade com busão, barco, kombi e fusca é inspirada em um dos seus textos mais ácidos contra o capitalismo, em que desfere a máxima pichada nos muros até os dias de hoje: “a propriedade é um roubo!”.

Dois anos depois de ter publicado sua obra mais renomada, em 1904, Euclides começa a defender o legado intelectual do comunista alemão Karl Marx, “este inflexível adversário de Proudhon”, quando lembra, num artigo histórico, que: o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. (…) Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja um meio termo, a revolta. (...) Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços… Porque o seu triunfo é inevitável. No Brasil de 2019, vivemos sob um governo de extremadireita eleito graças à prisão para lá de suspeita do primeiro colocado nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo então juiz Sérgio Moro que, ao fim do processo, foi nomeado Ministro da Justiça pelo presidente eleito de forma fraudulenta com caixa 2 financiando uma rede de fake news que atingia mais de 25 milhões de eleitores. Como nenhuma ironia é suficiente no Brasil, justamente quando passamos a viver sob o jugo da direita mais servil aos Estados Unidos, foi o americano Glenn Greenwald que teve a coragem de divulgar, junto com sua equipe no The Intercept, a farsa que nos conduziu até aqui. Na Flip que homenageia um dos milicos mais socialistas da nossa história, vivemos sob os auspícios do gringo mais brasileiro que nossos militares. Suas revelações jornalísticas são bombásticas e mostram que, ao cabo do processo, a luta de Euclides e Glenn se confunde, assim como sua arma – o jornalismo: a busca da verdade, pois a verdade só interessa aos oprimidos. E se os boatos sobre o hacker [pirata] que teria divulgado a verdade sobre as mentiras da Operação Lava Jato podem ser exagerados, a pirataria/hackeagem está em alta com a Capitã Rackete salvando a vida de refugiados na Itália contra o ministro filofascista italiano Salvini, amigo de Bolsonaro, pois, a pirataria ainda é uma das maiores armas contra o fascismo: que ela nos inspire no nosso barco pirata na baía de Paraty, o qual leva a mais iconoclasta arma da História, o Livro •

realização

APOIO CUBANO

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APOIO BOLIVARIANO FUNDAÇÃO LAURO CAMPOS | REVISTA PIAUÍ | GRUPO PITICO | FORMA CERTA APOIO GUERRILHEIRO OCUPA BEAUVOIR | PRODUTORA TANGO BILILICA | CARTA CAPITAL | LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL | GOIABINHA RALSTON | CERVEJARIA CATIMBA | LIVRARIA LEONARDO DA VINCI | TAPERA TAPERÁ | KIRO SWITCHEL MARUJOS André Takahashi | Babi Fonseca | Cauê Seignemartin Ameni | Daniel Corral | Fernando Sciarra | Daniel B. F. (Flecha) | Érico Peretta | Govinda | Guilherme Ziggy | Guilherme Martins | Gustavo Racy | Hugo Albuquerque | Marcia Ohlson | Maria Mikaela | Leo Ceolin | Joana Flor | Ligia Magalhães | Luiza Queiroz | Natalia Marcigaglia | Rafael Limongeli | Rodrigo Correa | Vitor Osório | Wander Wilson | Yala Hagen

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CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS por Mark Bray / tradução Guilherme Ziggy

1. AS REVOLUÇÕES FASCISTAS NUNCA FORAM BEM-SUCEDIDAS. OS FASCISTAS ALCANÇARAM O PODER LEGALMENTE. ¶ Primeiro, alguns fatos

R$ 50,00 “Lutamos contra eles escrevendo cartas para que não tenhamos que enfrentá-los com os punhos. Lutamos com os punhos para que não tenhamos que enfrentálos com facas. Lutamos com facas para que não precisemos enfrentá-los com armas. Lutamos com armas para que não tenhamos que enfrentá-los com tanques.” — “Murray” de Baltimore

importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi apenas um espetáculo legitimando um convite anterior para formar um governo. O Putsch da Cervejaria de Hitler em 1923 falhou miseravelmente. Sua eventual ascensão ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu o poder completo foi aprovada pelo parlamento. ¶ O fascismo e o nazismo surgiram como apelos emocionais e antirracionais fundamentados em promessas masculinas de renovação do vigor nacional. Enquanto a argumentação política sempre é importante para fazer um apelo a uma potencial base popular do fascismo, sua nitidez se ofusca quando confrontada com as ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A racionalidade não foi capaz de impedir os fascistas ou os nazistas. Apesar de necessária, da perspectiva antifascista, infelizmente a razão é insuficiente por si só. ¶ Assim, não é surpresa que a história mostre que governos parlamentares nem sempre são uma barreira para o fascismo. Pelo contrário, em várias ocasiões, foram responsáveis por estender o tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do período entre guerras se sentiram suficientemente ameaçadas pela perspectiva da revolução, voltaram-se para figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente a dissidência e proteger a propriedade privada. Embora seja um erro reduzir inteiramente o fascismo a um último recurso de um sistema capitalista ameaçado, esse elemento de sua composição desempenhou um papel importante e muitas vezes decisivo em suas vitórias. Quando os líderes autoritários do período entre guerras se sentiam muito menos ameaçados, implementavam muitas vezes políticas fascistas de cima para baixo. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve necessariamente ser anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles dizem, o fascismo sempre surgirá como uma solução autoritária para conter a revolução popular.

2. MUITOS LÍDERES E TEÓRICOS ANTIFASCISTAS NÃO LEVARAM O FASCISMO A SÉRIO ATÉ QUE FOSSE TARDE DEMAIS. ¶ Para

3. AS LIDERANÇAS SOCIALISTAS DEMORARAM MAIS QUE SUA BASE PARA AVALIAR A AMEAÇA DO FASCISMO. ¶ Como inicialmente muitos socialistas e

comunistas consideravam o fascismo uma variação da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais em combater uns aos outros do que seus inimigos fascistas. Ambas as frentes argumentavam que, se unissem o proletariado sob sua liderança, superariam qualquer obstáculo da direita.¶ Assim, enquanto alguns socialistas de base se mantiveram lado a lado com o Arditi Del Popolo para lutar contra os camisas negras italianos no início da década de 20, os quadros do partido se retiraram para retomar sua trajetória eleitoral legalista. Quando esse caminho definitivamente foi bloqueado, o partido cambaleou para conseguir mudar seus rumos.¶ De forma similar os socialistas alemães optaram, na mesma época, por um curso estritamente legalista nas décadas de 1920 e 30, apesar do crescente desconforto dos membros do partido. Embora os socialistas do Reichsbanner, e mais tarde na Frente de Aço, tenham pressionado por medidas mais agressivas, o aparato do partido estava mal equipado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, a base do socialismo austríaco lutava para empurrar a liderança do seu partido para a autodefesa militante frente aos ataques da extremadireita.[9] Na Grã-Bretanha, os membros do Labour Party e do Trades Union Congress confrontaram os fascistas na rua, apesar das advertências de seus líderes. A liderança trabalhista condenou os membros que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os camisas negras de Oswald Mosley no quarteirão judeu do East End em Londres – e se recusou a apoiar os que se juntaram às Brigadas Internacionais para combater na Espanha. Como argumenta o historiador Larry Ceplair, os sociaisdemocratas “haviam jogado o jogo parlamentar por muito tempo e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, ordenar ou aprovar qualquer tipo de resistência armada ou revolução preventiva”.

4. O FASCISMO ROUBA IDEOLOGIA, ESTRATÉGIA, CULTURA E IMAGINÁRIO DA ESQUERDA.¶ O nazismo e o fascismo surgiram no desejo da burguesia capitalista de libertar o nacionalismo, o militarismo e uma masculinidade “decadente” intrínseca à frente dos governos italiano e alemão, e de capturar as políticas populares coletivistas da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir, o Partido Alemão dos Trabalhadores (predecessor do NSDAP) já usava uma considerável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros chamavam uns aos outros de “camaradas”. Isso produziu paradoxos anti-ideológicos e antirracionais como o “nacional-sindicalismo” e o “nacionalsocialismo”. Fascistas e nazistas “de esquerda” foram expurgados à medida que seus partidos conquistavam poder e se uniam às elites econômicas, embora a cooptação nacionalista da retórica popular da classe trabalhadora tenha desempenhado um papel

AUTONOMIA LITERÁRIA

cada revolução, houve uma contrarrevolução. Para cada ataque da Bastilha havia um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas de pessoas foram executadas e outras milhares presas e deportadas. Mais de 5 mil presos políticos foram executados e 38 mil foram presos após o fracasso da Revolução Russa de 1905, que também testemunhou 690 pogroms antissemitas que mataram mais de 3 mil judeus. Os radicais europeus e as minorias étnicas de modo algum eram estranhos à violência da reação tradicional. ¶ No entanto, o fascismo representava algo novo. Inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas criaram um veículo para o imperialismo e o genocídio que os europeus haviam exportado de todo o mundo quando trouxeram suas guerras de extermínio de volta para casa.¶ Independente do conteúdo de suas análises, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini em 1921, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Dessa forma, eles não eram totalmente diferentes da maioria dos socialistas espanhóis que colaboraram com o governo militar meio-fascista de Primo de Rivera na década 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado quando os “governos presidenciais” do início da década de 1930 começaram a governar por decreto. No entanto, nem os supostos “governos presidenciais” fascistas nem a chancelaria de Adolf Hitler foram suficientes para convencer a liderança do partido que eles enfrentavam uma ameaça existencial. Para a liderança do KPD, o fascismo não pedia resistência por quaisquer meios necessários, mas sim paciência. Seu slogan era “Hitler primeiro, depois nós”. Na virada do século, os esquerdistas tinham razões para antecipar que épocas de repressão iriam e viriam. O fascismo mudou as regras do jogo. ¶ O primeiro reconhecimento substancial da essência do perigo fascista veio com a “Revolta

de Fevereiro” de 1934, quando os socialistas austríacos lutaram contra as incursões do autoritário chanceler Dollfuss nos centros socialistas (instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando 200 mortos, 300 feridos e o partido na clandestinidade. No entanto, sua bravura inspirou os mineiros socialistas espanhóis que se rebelaram mais tarde naquele ano nas Astúrias. Seu slogan era “Melhor Viena do que Berlim”, onde a ascensão de Hitler ao poder não foi combatida pela força. Quando a Guerra Civil Espanhola eclodiu, o antifascismo foi amplamente entendido como uma luta desesperada contra o extermínio.¶ O desafio em definir o fascismo embaça a linha entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico contém uma crítica moral, assim como o registro moral implica em uma ampla análise da relação entre uma determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que, em certo ponto, o epíteto fascista perde um pouco seu poder se for usado de forma muito genérica, um componente-chave do antifascismo é se organizar contra ambas políticas, fascistas e fascistóides, em solidariedade com todos aqueles que sofrem e lutam. Questões de definições devem influenciar nossas táticas e estratégias, não nossa solidariedade.

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5. NÃO É PRECISO UM GRANDE NÚMERO DE FASCISTAS PARA CONCEBER O FASCISMO ¶ Em

1919, o fasci de Mussolini tinha 100 membros. Quando Mussolini foi nomeado primeiro-ministro em 1922, cerca de 7% a 8% da população italiana, e apenas 35 dos mais de 500 membros do parlamento, pertenciam ao seu Partito Nazionale Fascista (PNF). O Partido Alemão dos Trabalhadores tinha meros 50 membros quando Hitler participou de sua primeira reunião após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi nomeado chanceler em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Em toda a Europa, partidos fascistas de massas emergiram daquilo que inicialmente eram pequenos núcleos durante o período entre guerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas, minúsculos antes da crise financeira de 2008, e a recente onda de migração, demonstraram o potencial para um rápido crescimento da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam favoráveis.¶ Esses partidos certamente cresceram e ambos os regimes consolidaram seu poder, conquistando apoio das elites conservadoras, industriais ansiosos, dos alienados proprietários de pequenos negócios, nacionalistas desempregados e outros. As triunfantes narrativas de resistência pós-guerra talvez tenham negado que todos, menos os ideólogos do fascismo mais comprometidos, tenham apoiado figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes conseguiram cultivar um amplo apoio popular, obscurecendo ainda mais nosso entendimento do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, foram necessários alguns fascistas para conceber o fascismo. O ponto é, no entanto, que antes de conseguir tal apoio popular, os fascistas e os nazistas não eram mais que minúsculos grupos de ideólogos.¶ A trágica ironia do antifascismo moderno é que, quanto mais bemsucedido, mais sua raison d’être é questionada. Seus maiores sucessos estão no limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz nos últimos 70 anos por grupos antifas antes que sua violência pudesse se espalhar? Nós nunca saberemos – e isso efetivamente é uma coisa muito boa •

Sebastião Nunes

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fundamental para fazê-los chegar até lá.¶ Com base nas suas boas relações com os empresários, os nazistas foram responsáveis por criar novos postos de trabalho para os desempregados. De certa forma, essa era uma variação colaboracionista entre classes, do papel do sindicato como um intermediário para alcançar o emprego em uma indústria. As tabernas das Stormtroops (SA) nazistas claramente floresceram inspiradas na tradição socialista, que datava do século XIX.¶ Eles também forneceram comida e abrigo gratuito para seus apoiadores no período da Grande Depressão. Essa foi uma ruptura marcante com os conservadores tradicionais, que demonstravam desprezo pelos pobres e desempregados e, no máximo, contribuíam ocasionalmente para instituições de caridade apolíticas ou religiosas.¶ Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pela Aurora Dourada grega, a CasaPound italiana, o Hogar Social Madrid, e a britânica National Action, todos os quais começaram a distribuir alimentos e mantimentos grátis para gregos, italianos, espanhóis – apenas “brancos”. Os ativistas da CasaPound começaram a imitar as ocupações autonomistas em prédios abandonados, e a Hogar Social Madrid não apenas começou com ocupações, mas também se organizou contra a expulsão de espanhóis étnicos em uma clara tentativa de capitalizar com o vibrante movimento de esquerda espanhol.¶ Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não se trata apenas de um escape aventuresco na oposição ao fascismo, mas sim da proteção Against the Fascist Creep, como sugere o título do maravilhoso trabalho de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer como eles se encaixam, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como as ocupações, organização de mutirões de alimentos ou a formação de black blocs podem ser cooptadas bem debaixo dos nossos narizes.

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Entrevista de Toni Negri

A ANOMALIA SELVAGEM A versão completa desta entrevista pode ser lida no site da editora Politeia. homero santiago: Se há uma problemática espinosana que merece um lugar menor n’A Anomalia selvagem é a da superstição, ao menos na medida em que põe o problema da “servidão voluntária”; embora a fórmula não seja espinosana, está lá na questão de entender por que “os homens lutam por sua servidão como se lutassem por sua liberdade”. Deleuze e Guattari chegaram, n’O anti-Édipo, a pôr esse problema como o problema fundamental da filosofia política. Hoje no Brasil o tema parece mais atual do que nunca, assistimos a um processo em que pessoas se mobilizaram pela supressão de direitos e votaram em massa num candidato que disse abertamente que suprimiria direitos. Como situar o tema da superstição em sua interpretação do espinosismo? antonio negri: É verdade que a análise da superstição, assim como de suas causas – o medo e a insegurança –, não é central n’A Anomalia selvagem. Vocês me perguntam sobre a superstição em uma situação diferente: estão livres, mas se sentem impotentes diante de um fascismo

mario marino: De A anomalia selvagem até a trilogia Império, Multidão, Bem-estar comum, e agora Assembly, quais foram as mudanças (ou a evolução) no seu pensamento? Eu penso neste percurso filosófico como uma grande e potente crítica da razão política ocidental. Você concorda? negri: Meu percurso de A anomalia selvagem à tetralogia imperial não foi linear, mas tem sido coerente. Eu tentei pôr minhas mãos na ontologia do presente, seguir seu contínuo transformar-se, para definir modelos de ação e de organização política para o Comum adequados a essas transformações. Dito de outra maneira, tentei analisar a mutação dos modos de viver e de trabalhar, os modos de exploração e as lutas em busca da liberdade para construir (com

os trabalhadores e os movimentos políticos de emancipação) formas organizacionais, programas e – quando possível – lutas vitoriosas. homero: Em 1970 você publicou Descartes politico. É um livro muito menos conhecido do que A anomalia selvagem, mas de grande interesse. O livro mostra que você vinha trabalhando o assunto há algum tempo. Penso que nele pela primeira vez despontam as grandes linhas de uma análise abrangente da modernidade filosófica e política que encontraremos em obras posteriores, como a própria Anomalia selvagem e também em Império. É isso mesmo? negri: Há uma hipótese historiográfica surgida na década de 60 no seio dos Quaderni Rossi. Ela considera a burguesia não como classe social, mas como um agregado flutuante de sujeitos sociais que se move entre as duas únicas classes, a capitalista dominante e a proletária explorada. No entanto, na Renascença europeia, a burguesia pensou ser portadora de uma instância de liberação, o Humanismo. E, de fato, ela viveu uma estação hegemônica e revolucionária. O Humanismo, o seu sonho de liberdade, exaure-se no fim do século XVI. Descartes é testemunha desta tragédia e, com seu dualismo metafísico, representa um razoável dobrar-se do Humanismo burguês

ao Estado absolutista (imperialista, na acumulação primitiva) que se firma nesse período nos grandes países europeus. Ora, Espinosa vive nos Países Baixos, onde, na primeira metade do século XVII afirma-se de maneira totalmente anômala um regime popular democrático – um republicanismo oposto ao Estado absolutista. Espinosa expressa a natureza resistente (minoritária e selvagem) dessa resistência democrática, dessa “democracia absoluta”. A partir da ruptura seiscentista abre-se na história da filosofia um caminho duplo. De um lado, aqueles que constroem o Estado moderno (e capitalista) em suas variantes transcendentais (Hobbes e Hegel após Descartes). De outro, aqueles que pensam a democracia como espaço autêntico para a realização da liberdade na igualdade (Espinosa entre Maquiavel e Marx). Descartes politico produz uma perspectiva de análise da modernidade filosófica e política que se aperfeiçoará em minhas obras posteriores • ●

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crescente; são cidadãos de uma república que seus concidadãos querem tornar fascista. É um problema real, é “o problema fundamental da filosofia política, que Espinosa foi capaz de propor (e Reich reabriu)”, dizem Deleuze e Guattari n’O anti-Édipo. Como se pode, eles perguntarão novamente em Mil platôs, pôr em movimento uma “máquina abstrata” de desejo, um motor poderoso da vida, capaz de derrubar aquela situação (fascista) na qual o desejo procura sua própria aniquilação? “Desejar riqueza, desejar o exército, a polícia e o Estado; mesmo o fascismo é desejo”. Como destruir essa corrupção do desejo? Espinosa responde conjugando desejo e amor, e encontrando na vida democrática a atualização dessa conjunção. A indignação e a revolta podem ser os dispositivos da reconquista da democracia. Quanto à superstição, Espinosa atribui sua causa ao medo. E a superstição, como consequência do medo, faz com que o Estado termine em pura dominação, escravização e terror da população, enquanto o fim do Estado deve ser a liberdade do cidadão.

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POR QUE É PRECISO FALAR DE TORTURA E DITADURA AINDA HOJE? Autor de “Setenta”, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, reflete sobre os motivos e as pulsões que o levaram a escrever

DUBLINENSE

por henrique schneider

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A jornalista Hildegard Angel perdeu a mãe, a cunhada e o irmão nos anos de chumbo. A mãe, a estilista Zuzu Angel, utilizava seu renome internacional para denunciar a ditadura. Enfrentou generais e políticos, quarteis e poderes com a coragem invencível de mãe. Em 1976, seu carro teve os freios cortados e despencou de um morro. Zuzu morreu na hora. A cunhada Sonia foi presa, torturada e morta. Após ser estuprada com um cassetete, teve partes dos seios arrancados com alicates. (Sinto eu a dor ainda agora, quando, cinquenta anos depois, escrevo este texto).

O irmão, Stuart, também foi preso, torturado e morto. No quartel onde o levaram, prenderam a sua boca ao cano de descarga de um jipe e o arrastaram em voltas pelo pátio. O suplício triplo: intoxicação pelo gás, queimaduras brutais e escoriações por todo o corpo. Contam que Stuart morreu pedindo água – não consigo imaginar cena mais triste. Zuzu, Sonia e Stuart lutavam por liberdade e democracia. Acho importante lembrar disso quando, numa espécie de reescritura hipócrita e desinformada da História, há gente querendo relativizar aqueles tempos sombrios, a ponto de justificar torturas e - mais que isso - negar a própria existência da ditadura. Mas a um regime que use os métodos que escrevi acima, há outro nome que se possa dar, senão ditadura?

Não há. Como bem disse o ator Chino Darin, em entrevista recente, “é estranho, é aberrante, no século 21 ainda ter que explicar para alguém que a tortura é algo ruim...” É estranho e aberrante – mas ainda é absurdamente necessário. Escrevi “Setenta” por causa da necessidade de falar sobre isso – e também por medo. “Setenta” tem um pé na ficção e muitos na realidade. Ele se passa em 1970 - um dos anos mais duros - e trata da história de Raul, cidadão alienado que, confundido com militantes que tentaram sequestrar o cônsul norteamericano em Porto Alegre, é preso e torturado para confessar – confessar o que obviamente não sabe. Após diversas sessões de torturas pesadas, ele é solto – justamente no dia de “Brasil

x Itália”, final da Copa do Mundo de futebol – e acaba sendo obrigado a assistir o jogo com seu carcereiro. A tortura não acaba para Raul – está grudada em sua alma e em sua vida. Mas por que o medo e a necessidade de falar sobre este período foram os grandes nutrientes do livro? Nas manifestações de rua que culminaram com o golpe em Dilma Rousseff, era comum ver, entre os “cidadãos de bem”, cartazes dizendo que todos os comunistas deviam ter sido mortos, que o erro fora ter apenas torturado e não matado e por aí afora. Comunista, nestes atos, era uma espécie de nãoconceito equivocado, e dele não escapava ninguém que, por qualquer ângulo, tivesse certa posição mais humanista, na defesa dos direitos humanos, ecologia, igualdade de gênero, contra a homofobia, a misoginia ou o racismo, por exemplo. Naqueles eventos, velhinhas sorridentes vestiam camisetas saudando o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Mas o mais triste foi enxergar adolescentes – molecada que nasceu em momento de democracia mais plena – pedindo a volta da ditadura! A incoerência: gente indo às ruas para pedir a volta de um regime em que não se pode ir às ruas! Não sei se tenho medo da volta da ditadura nos moldes do meu livro - escancarada, com censura oficial, proibição de partidos, cassações de mandatos por razões políticas, exército nas ruas, porões, tortura, exílios. Mas isso não significa que não tenho medo. Tenho, sim. Há razões para isso. Estamos sofrendo, a passos vorazes, uma profunda retirada de direitos trabalhistas, sociais e humanos, a precarização de garantias constitucionais, além da abjeta criminalização dos movimentos sociais e sindicais. Tudo sob o aplauso ou silêncio de parte do Brasil.

E isso dá medo. Quando, em 1968, o governo militar decretou o AI-5, suspendendo direitos e garantias políticas e constitucionais, o vicepresidente Pedro Aleixo foi contra. Certo ministro militar o provocou, perguntando se ele teria medo da “justa e honrada” mão do presidente Costa e Silva. Aleixo respondeu que não, e completou: “Eu tenho medo é do guarda da esquina.” Ele se referia, claro, à evidência de que, quando uma ditadura se instala e desaparecem direitos e garantias, prevalecem o arbítrio e a truculência, porque qualquer pessoa com um mínimo de poder se acha com autoridade para impor a sua vontade. Pois é: eu tenho medo do guarda da esquina – e também do presidente. Mas é um medo estranho e que também impulsiona. Medo que, paradoxalmente, confere a mim e a tanta gente uma espécie de redobrada coragem – a coragem necessária da resistência. Vivemos tempos de desassossego, que pedem compromisso. Não me dou e nem quero me dar o direito do silêncio. Porque não é hora de “virar a página”. Bem se diz que, para isso, antes é preciso lê-la. E a página da ditadura brasileira ainda não foi bem lida. Precisamos lê-la mais e melhor do que a lemos até agora, para que ela não se apague da História. Mas também para que apenas como História ela permaneça • ●

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OS SERTÕES E OS SERTANEJOS MUITO ALÉM DO DISCURSO DOMINANTE O reiterado apagamento histórico das lutas sociais brasileiras jamais conseguiu silenciar a versão dos vencidos. Nunca foi tão urgente repensar as contradições e reconstruir as veredas tortuosas da nossa formação política e social, a partir e muito além d’Os sertões por tadeu breda A partir da obra icônica de Euclides da Cunha e da histórica resistência de Antonio Conselheiro no arraial do Belo Monte, Sertão, sertões: repensando contradições, reconstruindo veredas, organizado por Joana Barros, Gustavo Prieto e Caio Marinho, faz uma leitura a contrapelo da história de Canudos e do imaginário sertanejo, desde a guerra que dizimou aquela população de “jagunços” até os dias atuais, passando pelas disputas territoriais e pelas intermináveis obras de combate à seca. Sertão, sertões, na verdade, são dois livros. De um lado, traz as fotografias mais marcantes sobre Canudos — não apenas as imagens de Flávio de Barros, que registrou o massacre empreendido pelo Exército em 1897, mas também dos momentos posteriores ao conflito: as reportagens de Pierre Verger, nos anos 1950; a documentação realizada por Claude Santos, Antonio Olavo e Alfredo Villa-Flôr na segunda metade do século XX; e fotos atualíssimas, feitas pelos próprios autores durante suas andanças pelas veredas de Canudos. As imagens são acompanhadas por análises que as localizam e contextualizam simbólica e historicamente como retratos de fases distintas da trajetória social do país.

Virando Sertão, sertões de ponta-cabeça, o leitor encontra um livro de textos que, assim como Os sertões, se divide em três partes. “Partimos do livro de Euclides da Cunha não para lhe render homenagens, mas para, caminhando pelas brechas e ranhuras da história dos vencedores, encontrar os sentidos múltiplos e diversos que constituem a formação social brasileira”, escrevem os organizadores: “um longo processo marcado pelo conflito e pela disputa dos sentidos de pertencimento e de constituição do mundo comum, de regulação do mando privado e das formas de existência social.” Colocando em questão a fortuna crítica sobre Os sertões e o próprio sentido de sertão, a primeira parte — “No chão dos sertões e suas veredas” — se inaugura com uma carta do grande crítico Antonio Candido escrita em 2001, em que relaciona a resistência de Canudos à luta contemporânea pela reforma agrária, e segue com quatro artigos que tratam da disputa de narrativas sobre a história de Canudos e sobre o que é “sertão”, “sertanejo” e “Nordeste” — tema que continua atual, uma vez que a região e seus habitantes continuam a ser considerados por certa elite econômica como sinônimo de atraso. “A terra dos homens” se dedica aos aspectos físicos do sertão. O primeiro texto é assinado pelo renomado geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber, que nos leva a conhecer o domínio das caatingas. Outros dois artigos nos oferecem elementos para compreender e criticar os discursos dominantes sobre o combate à seca — fenômeno típico e cíclico do semiárido nordestino —, demonstrando, com análises climáticas e ambientas, que, diante da inevitabilidade do fenômeno, a saída talvez seja aprender a “conviver com a seca”, quando ela ocorre, garantindo direitos e oferecendo condições de vida digna aos sertanejos. Na última parte, “O homem em luta”, o livro se debruça sobre as disputas políticas, trabalhistas e territoriais que permeiam os sertões — e, mais precisamente, a região de Canudos — na atualidade. Aqui, encontramos textos sobre a organização dos trabalhadores rurais no Submédio São Francisco; a atuação do Judiciário como “mediador” dos conflitos agrários, sobretudo no que diz respeito às comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto; a existência, ainda hoje e cada vez mais, de “seguidores” de Antonio Conselheiro, que se empenham em reescrever a história de Canudos sob o prisma de quem resistiu; e as contradições do acesso à água, que, devido a açudes e transposições, finalmente chegou à região — mas não para todos. Após resistir às investidas do Exército sob as ordens da então nascente República, Canudos foi destruída duas vezes: primeiro com ferro e fogo, pelas mãos dos militares que executaram os conselheiristas e queimaram o arraial; depois, passados sessenta anos, durante a ditadura, pela inundação das águas do Açude Cocorobó. O reiterado apagamento histórico, porém, jamais conseguiu silenciar a versão dos vencidos. E é esta que, como o cume da igreja de Canudos em épocas de seca, reemerge nas páginas de Sertão, sertões, reforçando a necessidade de repensar as contradições e reconstruir as veredas tortuosas da formação política e social brasileira •

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O Intercept Brasil publicou reportagens explosivas mostrando discussões internas e atitudes altamente controversas, politizadas e legalmente duvidosas da forçatarefa da Lava Jato, coordenada pelo procurador renomado Deltan Dallagnol, em colaboração com o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, celebrado a nível mundial. Produzidas a partir de arquivos enormes e inéditos – incluindo mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais e outros itens – enviados por uma fonte anônima, as reportagens revelam comportamentos antiéticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer.

Por Glenn Greenwald, Betsy Reed, Leandro Demori

POR QUE O THE INTERCEPT ESTÁ PUBLICANDO CHATS PRIVADOS SOBRE A LAVA JATO

A importância dessas revelações se explica pelas consequências incomparáveis das ações da Lava Jato em todos esses anos de investigação. Esse escândalo generalizado envolve diversos oligarcas, lideranças políticas, os últimos presidentes e até mesmo líderes internacionais acusados de corrupção.

Esse é apenas o começo do que pretendemos tornar uma investigação jornalística contínua das ações de Moro, do procurador Deltan Dallagnol e da força-tarefa da Lava Jato – além da conduta de inúmeros indivíduos que ainda detêm um enorme poder político e econômico dentro e fora do Brasil.

O mais relevante: a Lava Jato foi a saga investigativa que levou à prisão o ex-presidente Lula no último ano. Uma vez sentenciado por Sérgio Moro, sua condenação foi rapidamente confirmada em segunda instância, o tornando inelegível no momento em que todas as pesquisas mostravam que Lula – que terminou o segundo mandato, em 2010, com 87% de aprovação – liderava a corrida eleitoral de 2018. Sua exclusão da eleição, baseada na decisão de Moro, foi uma peça-chave para abrir um caminho para a vitória de Bolsonaro. A importância dessa reportagem aumentou ainda mais depois da nomeação de Moro ao Ministério da Justiça. Moro e os procuradores da Lava Jato são figuras altamente controversas aqui e no mundo – tidos por muitos como heróis anticorrupção e acusados por tantos outros de ser ideólogos clandestinos de direita, disfarçados como homens da lei apolíticos. Seus críticos têm insistido que eles exploraram e abusaram de seus poderes na justiça com o objetivo político de evitar que Lula retornasse à Presidência e destruir o PT. Moro e os procuradores têm negado, com a mesma veemência, qualquer aliança ou propósito político, dizendo que estão apenas tentando livrar o Brasil da corrupção.

O enorme volume do acervo, assim como o fato de que vários documentos incluem conversas privadas entre agentes públicos, nos obriga a tomar decisões jornalísticas sobre que informações deveriam ser noticiadas e publicadas e quais deveriam permanecer em sigilo. Ao fazer esses julgamentos, empregamos o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas, mas as que são puramente privadas e infringiriam o direito legítimo à privacidade ou outros valores sociais devem ser preservadas. A bem da verdade, ao produzir reportagens a partir desses arquivos, somos guiados pela mesma argumentação que levou boa parte da sociedade brasileira – aí incluídos alguns jornalistas, comentaristas políticos e ativistas – a aplaudir a publicidade determinada pelo então juiz Moro das conversas telefônicas privadas entre a presidente Dilma Rousseff e seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva (em que discutiam a possibilidade do ex-presidente se tornar ministro da Casa Civil), logo reproduzidas por inúmeros veículos de mídia. A divulgação dessas ligações privadas foi crucial para virar a opinião do público contra o PT, ajudando a preparar o terreno para o impeachment de Dilma em 2016 e a prisão de Lula em 2018. O princípio invocado para justificar essa divulgação foi o mesmo a

que estamos aderindo em nossas reportagens sobre esse acervo: o de que uma democracia é mais saudável quando ações de relevância levadas a cabo em segredo por figuras políticas poderosas são reveladas ao público.

Mas a divulgação feita por Moro e diversos veículos da imprensa dos diálogos privados entre Lula e Dilma incluíam não apenas revelações de interesse público, mas também comunicações privadas de Lula sem qualquer relevância para a sociedade – o que levou muitas pessoas a argumentarem que a divulgação tinha o propósito de constranger pessoalmente o ex-presidente. Ao contrário deles, o Intercept decidiu manter reservada qualquer comunicação ou informação relacionada a Moro, Dallagnol e outros indivíduos que seja de natureza puramente privada e, portanto, desprovida de real interesse público.

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Informar à sociedade questões de interesse público e expor transgressões foram os princípios que nos guiaram durante essa investigação, e continuarão sendo conforme continuarmos a noticiar a enorme quantidade de dados a que tivemos acesso.

As reportagens de mostram, entre outros elementos, que os procuradores da Lava Jato falavam abertamente sobre seu desejo de impedir a vitória eleitoral do PT e tomaram atitudes para atingir esse objetivo; e que o juiz Sérgio Moro colaborou de forma secreta e antiética com os procuradores da operação para ajudar a montar a acusação contra Lula. Tudo isso apesar das sérias dúvidas internas sobre as provas que fundamentaram essas acusações e enquanto o juiz continuava a fingir ser o árbitro neutro neste jogo. O único papel do The Intercept Brasil na obtenção desse material foi seu recebimento por meio de nossa fonte, que nos contatou há diversas semanas (bem antes da notícia da invasão do celular do ministro Moro, na qual o ministro afirmou que não houve “captação de conteúdo”) e nos informou de que já havia obtido todas as informações e estava ansiosa para repassá-las a jornalistas.

Mas, até agora, os procuradores da Lava Jato e Moro têm realizado parte de seu trabalho em segredo, impedindo o público de avaliar a validade das acusações contra eles. É isso que torna este acervo tão valioso do ponto de vista jornalístico: pela primeira vez, o público vai tomar conhecimento do que esses juízes e procuradores estavam dizendo e fazendo enquanto pensavam que ninguém estava ouvindo.

invocado para justificar essa divulgação foi o mesmo a

imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras.

Nós tomamos medidas para garantir a segurança deste acervo fora do Brasil para que vários jornalistas possam acessá-lo, assegurando que nenhuma autoridade de qualquer país tenha a capacidade de impedir a publicação dessas informações. Ao contrário do que tem como regra, o Intercept não solicitou comentários de procuradores e outros envolvidos nas reportagens para evitar que eles atuassem para impedir sua publicação e porque os documentos falam por si. Entramos em contato com as partes mencionadas imediatamente após publicarmos as matérias, que atualizaremos com os comentários assim que forem recebidos. Tendo em vista o imenso poder dos envolvidos e o grau de sigilo com que eles operam– até agora –, a transparência é crucial para que o Brasil tenha um entendimento claro do que eles realmente fizeram. A liberdade de


Nadya Tolokonnikova é fundadora do coletivo artístico ativista russo e banda punk Pussy Riot. Leia abaixo um trecho de Um guia Pussy Riot para o ativismo (Ubu, 2019), seu único livro publicado em português. Nele, é possível acessar toda experiência de Nadya, suas leituras, sua ética e sua visão de mundo como ativista, desenvolvidas ao longo dos quase dois anos de encarceramento num campo de trabalho forçado na Rússia. Feminismo, ativismo, arte, literatura, sistema judicial, sistema penitenciário, antipsiquiatria, resistência: Nadya atravessa todos esses temas de corpo inteiro, num relato poderoso e comovente do qual é impossível passar ileso.

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FODA-SE, CARO GOVERNO

É fácil identificar os seus algozes quando você está na prisão, mais do que quando você vive confortavelmente em liberdade. Mas existem algozes por toda parte mesmo assim. São eles que presidem um sistema que sobrecarrega os estudantes com trilhões em dívidas e concede incentivos fiscais aos bilionários. São eles que vendem terras públicas e exploram reservas naturais. Asseguram-se de que o 1% continue rico e os 99% permaneçam mais ou menos pobres. Dão início a guerras e tornam as cidades inóspitas. Ao contrário da crença popular, a luta política não é algo maçante. Não é algo que a gente faça com uma cara triste durante cinco minutos por semana, afastando-se dela assim que possível. A política é como escovar os dentes logo de manhã – algo que temos que fazer. Não existe alegria maior do que ver sua voz e seu poder se ampliando e crescendo até se tornarem algo maior. A matemática dos movimentos das pessoas é estranha, fantástica e não linear: 1 voz + 1 voz + 1 voz podem equivaler a 3 vozes, mas 1 voz + 1 voz + 1 voz também podem equivaler a um paradigma social e cultural totalmente novo. Isso aconteceu na década de 1960 e também com o movimento Occupy Wall Street. [...]

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Quando os guardas me revistavam e encontravam as cartas, eles percebiam que, embora eu estivesse fisicamente sozinha na prisão, eu era parte de uma poderosa comunidade de pessoas que pensam como eu. E isso é assustador para os guardas. Nós devemos incutir esse pensamento na cabeça deles: Não estamos sós. Somos um exército •

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R$ 38,00 Império e Anonimato: materiais preliminares às insurreições (Org. Cidadãos, voltem pra casa!) e Chamada: imaginação radical do presente (Anônimos), que são coletâneas de textos voltadas ao debate político autonomista acerca da comunização, ou melhor, a imaginação da presentificação do comunismo no capitalismo tardio. por A.C.A.B. (Aglomerado Contradicionista Autônomo Brasileiro)

opacidade: É necessário ter cuidado para que a guerra não se torne um voluntarismo que resolve os problemas a base de moralismos e um tal dever-ser. império: Nós desarmamos vocês mentalmente, fisicamente; e nós detemos o monopólio daquilo que nós proibimos. Francamente, se vocês estivessem em nossa posição, fariam outra coisa que não fosse o que nós já fazemos? a guerra!: Após as insurreições, o desejo revolucionário desacelera, os laços de amizade se dissolvem, “se retorna à normalidade”, contato com Bloom também significa estar em contato com o Bloom em nós mesmos: medos, dúvidas, hesitações, inseguranças. império: Nós temos repetido constantemente: os criminosos são nossos inimigos. Mas, por isso, vocês devem entender primeiro isto: que nossos inimigos são criminosos. Como fugitivos em potencial, cada um de vocês é também um potencial criminoso. Aqueles que saírem de seu isolamento são chamados “criminosos”. Quanto àqueles que questionarem esse estatuto, nós os chamaremos de “terroristas”. Esses podem ser mortos a qualquer instante.

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e assim se dão os conflitos e os fortes rompimentos nas comunidades, as palavras se separam insensivelmente dos gestos, surgem crises de orientação. E tudo isso não só por covardia ou falta de vontade revolucionária, mas porque o existencial e o político nunca estão fundidos. Nesse intervalo habita o Bloom. Há que aprender a lidar com esses problemas sem se deixar vencer pelo derrotismo, sair da alternativa entre voluntarismo ou resignação, aprender também a comunizar os problemas e compartilhar suas elaborações, a fim de que as comunas se tornem ofensivamente opacas, nutram a opacidade ao “fora”, mas também resplandeçam em seus interiores. Diz-se que não há perigo iminente, porque não há motim; diz-se que, como não há desordem material na superfície da sociedade, a revolução está distante de nós. É que as forças de aniquilamento estão engajadas em uma via muito distinta daquela onde se esperaria encontrá-la. Mas há algo, há guerra! império: Vocês vão conhecer a cadeia. Todos os golpes estão permitidos! •

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império: Até que surja uma nova ordem, todos os seus direitos se encontram suspensos. Assim, não os violaremos mais que um a um, e caso a caso. Sejam gentis: não nos falem mais de leis, da Constituição, etc. Já faz algum tempo que fizemos aprovar leis que nos colocam acima das leis. opacidade: Uma das últimas reflexões que se teve nesse encontro foi acerca da história das experiências teórico-práticas, dela nunca ser linear, pois sempre há saltos e descontinuidades que a torna irreconhecível. a guerra!: A força de uma experiência revolucionária não reside neste tipo de coerência, mas sim em sua aptidão para ser reapropriada e prolongada de diversas maneiras, em sua disponibilidade em ser pirateada e afinada mediante seu uso. Essa força não cristaliza-se em uma única trajetória A→B. A fidelidade não consiste na continuaçãorepetição, mas na traiçãotradução. Ela não depende de nada, seu erro é não reconhecer o Bloom que há em todos deste tempo. opacidade: O que é o Bloom? a guerra!: O Bloom é o “fundo” da realidade contemporânea em que o capital penetrou mais eficazmente. É o resultado da destruição das tradições, vínculos e maneiras de habitar o mundo pré capitalista e anticapitalista. Um processo de dissolução que implica a destruição dos mundos, o empobrecimento da experiência, a dissolução das formas de vida orgânicas e a volatização das garantias de seguridade. opacidade: Mas de onde veio esse tal Bloom? império: Alguns dizem que nós somos uma máfia. Isto é falso, nós somos A máfia. Apenas nós

temos condições de proteger vocês do caos do mundo. É nessa mesma medida que o nosso assalto é rentável. a guerra!: Este chamado comunizador, realizado no Appel, é transmitido com uma força irresistível do corte contundente que se efetua com a simples críticacrítica da esquerda, o cinismo pós-moderno, e a necessária opacidade da vida nas relações conspiratórias, esse já não recorre ao Bloom. império: Vocês não conseguirão fugir sozinhos. Vocês precisarão então começar por constituir as solidariedades necessárias. Por isso nós liquidamos toda forma de sociedade autônoma. Nós apenas deixamos subsistir o trabalho: a sociedade sob controle. E a todos os meios de fugir, nós fizemos deles crimes. opacidade: Então, frequentar o Bloom, EU a MIM, me parece uma tautologia de cafunés, carícias nas próprias ideia que SE têm. a guerra!: Alguns acharam que a verdade não existe. Eles não escapam da verdade, enquanto a verdade lhes escapa. O Bloom pode igualmente nos ensinar a olhar melhor essa “normalidade”, pois a verdade está nela. Estar em

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ARMADILHA DA IDENTIDADE Trecho da introdução de Armadilha da identidade, de Asad Haider Todos nós nascemos em algum lugar, escreveu o filósofo Louis Althusser. Nasci numa pequena cidade na Pensilvânia central, embora fosse difícil entender por quê. Ninguém sabia pronunciar meu nome e em casa falávamos outra língua. Verão sim, verão não, fazíamos as malas e passávamos longas e agonizantes horas em aviões, a fim de ver o resto da nossa família em Karachi. Não tenho certeza se saí dessa experiência com alguma coisa que parecesse uma identidade. De todo modo, pedaços e partes que podem ter constituído minha individualidade parecem estar espalhados por todo o globo. A identidade,

paradoxalmente, parecia ser determinada a partir de fora – ou talvez mais que isso: parecia não determinada. Em meio aos garotos brancos na Pensilvânia que perguntavam de onde eu era (não podia ser da Pensilvânia) e os parentes paquistaneses que apontavam meu sotaque americano, parecia que, se eu tinha uma identidade, ninguém possuía realmente capacidade de reconhecêla. Mas acho que tive uma experiência diferente com minha identidade em setembro de 2001. Naquele dia cheguei à escola e soube que o país tinha sido atacado. Pelo resto do dia assistimos a aviões colidindo com o World Trade Center, ininterruptamente. Tive dificuldade em analisar as reações de meus colegas de turma. Eles, é claro, estavam horrorizados, bravos, devastados. Eu estava perplexo.

Não era incomum ver reportagens na TV de incidentes terroristas, ações militares e mesmo golpes no Paquistão. Lembro-me de um jornalista dizendo solenemente que Karachi era “a cidade mais violenta do mundo”. Nos verões da minha infância lá, via as ruas cheias de crianças como eu, mas que estavam sem teto, passando fome, fracas demais para fazer as moscas saírem dos seus corpos. Alguma coisa na geometria política estava fora de alinhamento, e a visão a partir da Pensilvânia parecia limitada demais. Quando Bill Clinton ordenou um ataque de mísseis à fábrica farmacêutica Al-Shifa no Sudão, minha professora da sexta série nos fez sentar e escrever um parágrafo explicando por que tal atitude foi necessária. Mas eu sabia que do outro lado da tela da televisão havia uma massa de seres humanos que viam as coisas de forma diferente.

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O colapso das torres gêmeas, ao qual assistimos incrédulos, também reverberou na minha experiência cotidiana. Até então tinha me acostumado a conviver com uma cultura de tolerância prepotente e excludente. Mas o evento fez vir à tona a hostilidade franca e aberta. Eu era

R$ 39,90 chamado de “Osama” pelos meus colegas de turma, enquanto a professora assistia com indiferença ou concordância. Fui tomado por um medo inesperado em uma sorveteria, quando um homem branco e velho de aparência amigável subitamente fez uma careta ao ver minha família e começou a vociferar em nossa direção sobre “terroristas do Iraque”, enquanto nos dirigíamos a uma mesa empunhando ameaçadoras casquinhas de sorvete.

Minha identidade se tornou uma questão de segurança nacional. Mas como eu poderia responder a esse cenário? Deveria afirmar orgulhosamente uma identidade paquistanesa fixa, uma que nunca pareceu se ajustar direito, que pertencia a um lugar do outro lado do mundo? Ou deveria assimilar o mundo de branquidade à minha volta, mesmo que ele fosse racista e provinciano e nunca tivesse realmente me acolhido? Se havia uma resposta a essas perguntas, ela não foi fornecida na escola. Portanto, ao lado de minhas outras leituras – mais marcadamente o Manifesto Comunista e Trópico de Câncer – comecei a estudar a questão da identidade. Entre o “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” de Marx e Engels, e o nomadismo de Henry Miller – no qual, como Gilles Deleuze afirmou, “tudo é partida, mudança, passagem, salto, daemon, relação com o exterior” –, eu estava convencido da impossibilidade de estabelecer um território fixo •

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Às vésperas do lançamento do livro-manifesto intitulado Ruptura, elaborado pelo grupo anônimo Centelha para fazer frente à escalada fascista e à imobilidade das esquerdas, reproduzimos a entrevista feita conosco a respeito dessa estratégia do anonimato e seus efeitos explosivos. Entrevista dada pela n-1 edições a Nelson de Sá, da Folha de São Paulo 1. O nome é Comitê X? Ou é uma maneira de se a ele, enquanto não sai o primeiro manifesto ou livro? A previsão é que saia em abril? A editora será a n-1? “Centelha” porque nossas ações são mais uma entre as muitas ações de contestação da ordem capitalista que surgirão no país nesse momento de colapso de toda forma de governo possível. Nossa primeira ação é um livro que sairá em maio pela editora n-1. Outras virão. 2. Qual a ligação do Centelha com grupos como o comitê invisível? Centelha é um dispositivo de combate de redimensionamento da imaginação política. Ele se soma a várias organizações, em várias partes, que visam abrir novamente o campo do político para experiências de transformação radical. Muitas dessas organizações são anônimas porque recusam os nomes e as formas de nomear que circulam atualmente. Contra a visibilidade atual, que já é em si todo um programa e um forma de vida, apostamos na força de novas invisibilidades.

“Nossa democracia não está no passado, pois ela não pode estar onde ela nunca existiu. Ela está a nossa frente, como uma invenção radicalmente coletiva que só acontecerá quando calarmos de vez a melancolia que o poder nos impõe e à qual nos vinculamos com um prazer inconfesso. Saibam que contra esse desejo de fazer o mundo desabar ainda veremos todas as forças se levantarem. O fascismo sempre foi a reação desesperada contra a força de uma revolução iminente. Se ele voltou agora é porque o chão treme, é porque as rachaduras no edifício da ordem estão grandes demais para serem escondidas. Ouçam como treme o chão, como há algo que quer atravessar o solo. Não nos deixemos enganar mais uma vez: vivemos uma contrarevolução preventiva que não temerá recorrer à violência extrema para nos calar. Mas não estamos perdendo, apenas somos incapazes atualmente de imaginar a nossa própria vitória”

N-1EDIÇÕES

3. Em linhas gerais, no que for possível adiantar, como o comitê brasileiro vê as manifestações de 2013, a derrocada dos governos petistas e a ascensão de Bolsonaro? Em junho de 2013 foi aceso o pavio de uma bomba que explodirá a qualquer momento, e o que se seguiu foi um esforço inútil de interrupção desse processo. A esquerda que existia até então se mostrou incapaz de dar resposta à altura para a revolta popular. Não conseguiu nem reprimir os descontentes nem desmobilizá-los mediante a satisfação falseada de suas demandas radicais. Vendo o formidável savoir-faire petista de amansar conflitos de classe falhar, o Estado - forças armadas em primeiro lugar - acordou para a dimensão colossal da crise social que se avizinha, e disparou o alerta vermelho da contrarrevolução preventiva. Nas eleições de 2018, dada a ausência de uma esquerda anticapitalista, a população comprou a única solução à altura do momento histórico, que foi dada pelo Partido Empresarial-Militar, com o Capitão Messias à frente. A solução da extrema-direita, porém, não é uma alternativa ao sistema, mas uma alternativa do sistema. Se a esquerda superar seu passado conciliador e se provar a legítima canalizadora da ira popular, essa solução fracassará e o jogo virará completamente.

4. Existe algum trecho ou esboço ou qualquer texto escrito que possa ser fornecido para publicar em destaque no jornal?

(Trecho da introdução da primeira publicação da Centelha) •

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Flip Preta é uma realização da AMOQC - Associação de Moradores do Quilombo do Campinho que acontece pela primeira vez em julho 2019. O evento que será realizado de 11 a 14 de julho marca a resistência do povo negro e quilombola em Paraty-RJ e no Brasil. A abertura no dia 11 de julho começa com os pés no chão para que todas e todos sintam verdadeiramente como é chegar nesse território de luta e de resistência. O primeiro dia será direcionado para que conhecer a história do quilombo contada por seus griôs, suas danças, culturas, artes. E é com esse acolhimento quilombola que preparamos toda a nossa programação. O evento segue até o dia 14 de julho e consolida uma programação focada no protagonismo Pret@ e sua diversidade trazendo: literatura, música, dança, teatro das oprimidas, programação infantil, performance, discotecagem, poesia, oficinas e muito mais. Confira abaixo a lista completa da programação e acompanhe em nosso site e nas redes sociais do Quilombo do Campinho para saber mais detalhes. OBS.: Traga uma camiseta para estampar com a tela da Flip Preta 2019. Haverá tela e tintas para quem quiser levar pra casa a lembrança desse evento histórico.

programação quinta-feira - 11 de julho

14h Grupo de dança afro do Quilombo | 16h30 Roda de saberes - “As ervas, a terra e a ancestralidade quilombola” | 18h Roda de griôs: Terra de Preto Terra de Mulheres – “A história viva do Quilombo do Campinho contada por seus griôs” - participação da Editora Bantu 20h Jongo do Quilombo do Campinho | 21h Show: Realidade Negra e Mestre Lumumba

sexta-feira - 12 de julho

14h Oficina de encadernação com Danielle dos Santos | 16h Roda de conversa: A Folklorização d@s Pret@os pelo e$tado com o Grupo Preta Bandêra | 17h Roda de conversa: Racismo Estrutural com Milsoul IP Afro, Poeta Cizinho Afreeka e Ocupa Alemão: Favela/Quilombo 19h Sarau: Griotagem Encontro entre Pretas e Pretos | 20h Espetáculo: Coletivo Maremoto (RJ) | 21h Show: Thais Feijão e Banda

sábado - dia 13 de julho

10h Oficina Vozes Insurgentes de mulheres negras: laboratório de escrita autobiográfica, conduzida pela Bianca Santana | 13h Roda de conversa: Raça e Gênero com Erica Malunguinho, Coletivo Articula Preta, Cassia Valle | 15h Roteiro de TBC (Turismo de Base Comunitária) pelo quilombo | 16h Oficina de Percussão com Mestre Lumumba | 16h Oficina de cestaria com artesãs locais | 18h Roda de Conversa com Mauricio Pestana e Lançamento de sua Coleção “Lendas e Deuses da Africa” | 19h30 Espetáculo: Coletivo Cor do Brasil (RJ) | 20h10 Show: Gê de Lima - “Voz e Tambor” com Participação Mestre Lumumba | 21h Show: Orquestra Mundana Refugi e Carlinhos Antunes

domingo - dia 14 de julho

11 a 14 de julho de 2019 Local: Restaurante do Quilombo do Campinho - Paraty RJ - Km 584 da BR 101 (Rodovia Rio Santos) GRÁTIS

10h Performance Travessia - Da opressão à expressão - Bárbara Santos | 10h30 Lançamento do livro “Teatro das Oprimidas” de Bárbara Santos- seguido de roda de conversa/ autógrafos com a autora | 12h Roda de Conversa - Estratégica na Comunicação com Rede Mocambos e Maria Amélia | 13h Samba com Feijoada: Grupo Boemia do Samba | 16h Show: Soul Batuque. OBS.: Nos intervalos Discotecagem com DJ Orkídea e DJ Bieta - Onilê Odara

programação infantil – tenda das crianças quinta-feira - 11 de julho

15h às 18h - Oficina de Confecção de bonecas Abayomi com a percussionista, contadora de histórias e artesã Bethânia Souza

sexta-feira - 12 de julho

15h às 18h - Mamulengo de Si Mesmo - Teatro de Mamulengo de Ubatuba com Luciana e Oscar

sábado - dia 13 de julho

11h às 12h - Carlos Carvalho e Xavier: Contação de História e roda de conversa com o autor”

domingo - dia 14 de julho

10h às 12h Contação de histórias negras com Sinara Rúbia 12h às 13h Lançamento do livro “Alafia, Princesa Guerreira”

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NOSSO JORNALISMO

Buscamos a verdade factual e exercemos o espírito crítico

A

s revelações do The Intercept não colhem de surpresa CartaCapital. O roteiro que em 2014 começa com a Lava Jato e termina com a eleição de Jair Bolsonaro foi traçado pela revista passo a passo e sem meias palavras. Quem nos leu, e confiou no que lia, já sabia de tudo, de sorte a atingir a inescapável conclusão: já que Lula foi condenado e preso em atenção aos interesses de Washington e da casa-grande, quanto se seguiu demole de vez qualquer resquício de Estado Democrático de Direito e invalida até a eleição do ex-capitão cercado de generais. Decorre desta inédita situação a imposição de um peculiar regime de força aceito passivamente pelos súditos brasileiros do império dos EUA, com o aval, inclusive, de um pleito pretensamente regular. Não há

exemplo igual na história pós-Revolução Francesa, possível aqui porque o país da casa-grande e da senzala vive até agora, e de forma cada vez mais acentuada, uma medievalidade dos tempos mais obscuros. A questão agora se resume ao confronto entre quem prefere Lula condenado e preso sem provas e quem o quer em liberdade. Confronto brutalmente desigual: de um lado os donos do poder, com o respaldo fardado e o apoio praticamente maciço da mídia nativa e dos graúdos do famigerado mercado, do outro a indiferença de um povo condenado ao Limbo e de uma oposição apresentada como de esquerda, movida pela tibieza típica do caráter brasileiro.

#CARTADERESISTÊNCIA

CARTACAPITAL ESTÁ ONDE SEMPRE ESTEVE. NA DEFESA DO JORNALISMO, DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS

CADA KIT DA PANACEIA CONTÉM:

CLUBE DE LIVROS

DJAMILA RIBEIRO

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