Para viajar basta existir.
Fernando Pessoa Marisa Azinheiro
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Escola Secundária de Albufeira Português
“O homem vive de razão e sobrevive de sonhos." (Miguel De Unamuno)
Dossiê Temático Prof.ª Maria de Jesus Pinto
Marisa Azinheiro Ano Lectivo 2011/2012 3
Índice Introdução…………………………………………………………………………… 5 Onde tudo começou……………………………………………………………….6 Modernismo?.....................................................................................................8 Pessoa em Fotografias…………………………………………………………….10 Os heterónimos……………………………………………………………………..14 Alberto Caeiro………………………………………………………………16 Ricardo Reis………………………………………………………………….16 Álvaro de Campos…………………………………………………………17 Refletindo…………………………………………………………………………… 18 Analisando o vídeo Um Poema por Semana…………………………19 Tabacaria…………………………………………………………………………….20 “Ah, poder ser tu, sendo eu!”……………………………………………………24 Do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares……………………………..25 Pessoa em Banda Desenhada…………………………………………………..26 Inventando…………………………………………………………………………..28 Visto por outros olhos……………………………………………………………...29 “A Inutilidade da Crítica”………………………………………………………... 32 Comentários a Fernando Pessoa……………………………………………….34 No fio do sonho……………………………………………………………………..36 Conclusão……………………………………………………………………………38 Bibliografia………………………………………………………………………….. 39 Anexos………………………………………………………………………………..40
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Introdução
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niciar este Dossiê Temático foi a parte mais complicada, tenho que admitir. Andei um pouco perdida: não tinha ideia por onde deveria começar ou que imagens deveria utilizar para a folha de rosto ou para a capa. Pretendia um Dossiê Temático que demonstrasse o enorme gosto que ganhei por Fernando Pessoa e não queria desiludir. Comecei então por criar um mapa concetual, para me tentar organizar. Nele coloquei os tópicos iniciais para rechear o meu Dossiê Temático, alguns planos para tentar seguir. No entanto, ao longo das aulas e com a minha cultura relativamente a esta personalidade portuguesa a aumentar a cada dia que passava, novas ideias começaram a desabrochar e aproveitei a onda de criatividade para desenvolver esta espécie de revista on-line. Não só é muito mais económico, como posso colocar tudo muito mais facilmente disponível para outros que queiram ver o meu
trabalho e, quiçá, aprender com ele. A imagem de fundo na capa foi escolhida com o objetivo de representar o pensamento, o sonho e também por alguns críticos considerarem Fernando Pessoa algo ―maluco‖. Alguns chamam-no até de esquizofrénico. Quanto ao tipo de letra usado em títulos, frases citadas ou artigos, pretendo que ilustre o acto de escrever à mão. O objectivo deste Dossiê Temático é simples: partilhar a experiência que ganhei sobre Pessoa, reunir críticas, talvez até partilhar experiências pessoais e reunir todas as outras ideias que me virão à cabeça de forma coerente e de fácil acesso. Optei por este caminho por ser algo diferente do que costumo fazer (no que toca a escrever ou à realização de trabalhos, o papel e a caneta são os meus melhores amigos). Encarei isto como um desafio à minha criatividade e espero corresponder às expectativas.
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“O “OHomem Homemvale valesobretudo sobretudopela pelaeducação educaçãoque quepossui.” possui.”
ONDE TUDO COMEÇOU…
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raças ao General António Maria Fontes Pereira de Melo, Portugal revolucionou-se em termos de transportes, agricultura e indústria. Mas, como sempre, há um senão nesta história. A construção das vias férreas, por exemplo, fez-se à custa de investidores estrangeiros, fazendo com que as receitas obtidas não revertessem a favor do nosso país. Os inúmeros empréstimos a que se recorriam, a estagnação da quantidade de receitas e o aumento das despesas públicas culminaram numa declaração do governo da bancarrota do Estado Português, em 1892. O grave erro cometido foi assentar o desenvolvimento económico do país em bases instáveis, provocando uma grave crise económica nesta década de 1880, semelhante à atual situação portuguesa. O fato de Portugual se encontrar sempre atrás dos outros países europeus, fez com que o seu desenvolvimento também fosse tardio. Só para se ter uma pequena noção deste atraso português, a nossa industrialização realizou-se aproximadamente meio século depois dos restantes países desenvolvidos da Europa. Outro fator importante que conduziu à crise foi o grande aumento das importações a baixo preço, o que provocou uma diminuição das exportações, visto as produções agrícolas serem baixas (como consequência da doença das vinhas – filoxera). A emigração aumentava diariamente. Assim, como tentiva de solução para a crise, o
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governo apostou em certos setores industriais e agrícolas, o que, a longo prazo, daria os seus frutos. No entanto, antes disso, o ultimato inglês, em Janeiro de 1890, veio atirar mais achas para a fogueira. O governo britânico exigia a retirada das tropas portuguesas das colónias compreendidas entre Moçambique e Angola. Se tal não acontecesse, este iria cortar toda e qualquer relação que Inglaterra mantinha com Portugal. O recuo por parte das nossas tropas levou a um mal estar ainda maior do povo, face à bancarrota que se vivia. Será que foi nesta altura que se iniciaram os movimentos revolucionários? Sem dúvida. Mas apenas anos depois é que a voz do povo se fez ouvir. Na noite de 4 de Outubro de 1910, quando a música ―E Depois do Adeus‖ de Paulo de Carvalho (1) soou na rádio, iniciou-se a revolta. Na manhã de 5 de Outubro, o rei D. Manuel II abandonou o trono e exilou-se (juntamente com a sua família) no Brasil. O nosso país passou a estar nas mãos de um Governo Provisório, com o Dr. Teófilo Braga à cabeça. Este governo foi chamado de Primeira República, durando até 1926. Resta-me refletir se esta brusca alteração do poder foi benéfica ou não para Portugal. Por um lado, foi uma altura em que reinava a corrupção e a tirania, onde o Estado estava completamente desorganizado, o que fez com que o País caminhasse ainda mais em direção à crise. Tudo isto fez com que a dependência de Portugal relativamente a outros países ainda subsistisse. Mas, por outro lado, pode ser entendida como um período de grande fecundidade em termos culturais, visto os republicanos darem extrema importância à instrução das pessoas. Isto revelou-se na criação das universidades livres e das universidades populares ou na publicação de livros baratos de obras portuguesas e internacionais. O objetivo era acabar com o analfabetismo em Portugal (no entanto, em 1920, mais de metade da população portuguesa continuava analfabeta). A música e a arte também foram fortemente impulsionadas, bem como a leitura, através da criação de salas de leitura infantis e da Biblioteca Nacional de Lisboa. A imprensa, por sua vez, ganhou uma liberdade nunca antes presenciada: podia ser discutido todo e qualquer assunto – eram livres! Foi, então, uma mudança positiva? A meu ver sim. Até adotaram uma nova bandeira (a atual) e criaram o Hino Nacional (A Portuguesa), como símbolos que inspirassem transformação junto do povo. A mudança, essa, é constante e sempre bemvinda! (1)Ver ANEXOS.
Marisa Azinheiro
Nas imagens: Protestos, depois do novo governo tomar posse.
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Modernismo? N
o início do século XX vivia-se um tempo de incertezas. O Modernismo apareceu por esta altura, como um movimento onde a literatura e as artes plásticas se relacionavam brilhantemente. Deixa-se de parte o que é tradicional, o que já foi feito demasiadas vezes e é como se se criasse uma nova cultura, uma nova visão do Mundo, com diferentes concepções da linguagem e diferentes soluções aos problemas que costumamos enfrentar. Face a tais problemas, os artistas modernistas reagiam através da agressão cultural, do sarcasmo, do uso da nossa inteligência para explorar as capacidades do Homem, como é o caso de Sigmund Freud, que revolucionou o modo de encarar a mente humana, apresentando teorias relativamente aos vários níveis do nosso consciente. A partir do Modernismo originou-se uma série de outras correntes, como o Realismo, o Racionalismo, o Existencialismo, o Impressionismo, o Saudosismo, o Simbolismo, o
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Decadentismo, o Paulismo, o Interseccionismo, o Futurismo ou o Sensacionismo. Cada um destes movimentos literários representa as diferentes formas de se observar ou descrever o mundo, um novo nível de excentricidade. O Modernismo surge em Portugal em 1913, sendo um período um pouco conturbado, visto ser em 1914 que se dá a Primeira Guerra Mundial, estando em jogo colónias africanas cobiçadas pelas grandes potências desde o final do século XIX. Felizmente, Portugal foi mais tarde reconhecido como um dos países vencedores, tendo conseguido ficar na posse das suas colónias ultramarinas. Em Portugal, a literatura ainda apresentava uma grande resistência à inovação. Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro foram os grandes impulsionadores do primeiro Modernismo pelo nosso país. Andavam desejosos de trazer os ares europeus, o gosto requintado que teimava em não chegar ao nosso pequeno país. É através do lançamento da revista Orpheu, em 1915, que conseguiram o efeito que queriam: escandalizar, provocar reações trocistas, usando apenas o poder da palavra. No entanto, por falta de dinheiro, a revista apenas teve duas publicações. Seguindo a mesma linha de pensamento, foi fundada, em 1927, a revista Presença, que mais uma vez se baseava na habilidade de se criticar livremente, inspirando-se muito em Freud. Servia, inclusive, de divulgação de textos de escritores europeus. Esta época carateriza-se muito pela excentricidade, pela multiplicidade da personalidade. Procura-se o Eu, divagando-se pelo inconsciente, pelas infantilidades da nossa mente e elevando tudo isto a um nível totalmente novo da intelectualidade. Por isso não se pode dizer que o Modernismo português foi um único movimento. Foi uma junção de diversas tendências literárias e artísticas, que incitam à plenitude individual, a descobrirmo-nos. O que interessa é encontrarmos o nosso Eu e vivermos em concordância com ele.
Marisa Azinheiro 9
PESSOA EM FOTOGRAFIAS
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus. (Alberto Caeiro) 10
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(1) Largo de S.Carlos, Lisboa. Foi esta a casa onde Fernando António Nogueira Pessoa nasceu, a 13 de Junho de 1888. (2) Fernando Pessoa com quatro anos. É com cinco anos que perde o seu pai, Joaquim de Seabra Pessoa. Tragicamente, seis meses depois falece o seu irmão. (3) Maria Pessoa, sua mãe, casa-se com João Miguel Rosa, cônsul em Durban, na África do Sul. Em 1896 mudam-se para lá. (4) Fernando Pessoa, em 1898 (com dez anos). (5) Primeira casa de Fernando Pessoa em Durban, na África do Sul.
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(6) Pessoa em Durban, juntamente com a sua família. (7) Acaba a sua escolaridade em Durban, em 1901, sendo aprovado com distinção. Pouco tempo depois parte, juntamente com a família, para Portugal, para um ano de férias, tendo regressado depois sozinho para Durban. (8) Anos depois volta definitivamente para Portugal e, em 1906, matricula-se no Curso Superior de Letras, em Lisboa. (9) Participa na revista A Águia em 1912, publicando o seu primeiro artigo de crítica literária. Começa também a traçar Ricardo Reis, seu heterónimo. (10) Em 1914, publica Pauis em A Renascença. Cria também os seus heterónimos mais conhecidos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Escreve o Livro do Desassossego e publica O sino da minha aldeia. (11) Em 1915 publica não só Ode Triunfal, como também O Marinheiro e Opiário, na revista Orpheu. (12) Entre 1916 e 1927, colabora nas seguintes revistas: Contemporânea, Athena, Revista de Comércio e Contabilidade e Presença. (13) Mensagem é a sua obra publicada em 1934. (14) A 30 de Novembro de 1935, morre vítima de uma cólica hepática, em Lisboa. (15) Esta foi a sua última morada. Atualmente é a Casa Fernando Pessoa. (16) Estátua criada em homenagem a Fernando Pessoa. Sentado na esplanada do café A Brasileira, onde passava muitos dos seus dias.
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Os heter贸nimos 14
“O histérico sempre existiu. Em todos os lugares e em todos os tempos.” Charcot (…) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia.”
ala-se da histeria como sendo um sinal de instabilidade psicológica, que causa paralisia, cegueira, surdez... Não é possível controlar as emoções convenientemente, devido a um pânico causado por um dado trauma. Este estado costuma manifestar-se maioritariamente nas mulheres, mas isso não invalida o facto de ocorrer também nos homens, tal como Charcot e Freud (dois intensos investigadores da histeria no ser humano) viriam a desvendar.
Na sua carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa expressa a sua dúvida se seria um simples histérico ou um histeroneurasténico. No entanto, inclina-se mais para a segunda hipótese, visto ele refletir incessantemente, não tendo nenhum comportamento como os referidos anteriormente e que são marcas da histeria.
“Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas
Podem estar a perguntar-se o porquê de estar agora a falar de
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histeria. Será que Fernando Pessoa era louco? Não, nada disso. Falo de histeria pois Fernando Pessoa é um dos maiores marcos da heteronímia, da criação de diferentes personalidades, recorrendo apenas à imaginação, ao pensamento, à
simulação. Cria verdadeiras pessoas, literalmente. Possuem uma biografia própria, uma dada aparência e uma visão peculiar do mundo que os rodeia. Possui uma multiplicidade de personas. Fernando Pessoa é um Eu que se olha em inúmeros espelhos.
Alberto Caeiro “[Caeiro] Vê as coisas apenas com os olhos, não com a mente. Quando olha para uma flor, não permite que isso provoque quaisquer pensamentos. (…) O facto estupendo acerca de Caeiro é que produz poesia a partir deste sentimento, ou, antes, ausência de sentimento. (…) A sua poesia é, de facto, “sensacionista”. A sua base é a substituição do pensamento pela sensação (…).” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, s/d, pp.346-350.
Alberto Caeiro nasceu a 16 de Abril de 1889, em Lisboa. Tinha uma estatura média, frágil, cabelo louro e olhos azuis. Viveu a maior parte da sua vida no campo, possuindo apenas a instrução primária. Por esse mesmo facto, a sua escrita é simples, sem grande recurso a figuras de estilo para além da enumeração, paralelismo, assíndeto… Escreve sobretudo no presente do indicativo, o que demonstra que apenas valoriza o que se passa no momento. Põe de parte quaisquer juízos de valor acerca das suas observações. O mundo é o que os seus olhos vêm, o que o seu nariz cheira, o que os seus ouvidos ouvem, o que as suas mãos sentem e o que o seu paladar saboreia. Nada mais. Daí ser chamado o poeta da natureza, pois para ele o mundo é a Terra. O
nosso pensamento apenas altera a nossa percepção das coisas. Por isso se valoriza única e exclusivamente a sensação. Por isso é uma antítese de Fernando Pessoa Ortónimo, pois representa a tranquilidade que o outro nunca alcançou. Apresenta-lhe uma solução para a sua dor de pensar. Enquanto Fernando Pessoa Ortónimo pensa efetivamente nas coisas, sendo este o fator que lhe causa grande angústia, Alberto Caeiro recusa qualquer tipo de subjetividade e pensamento. A realidade é o que os sentidos captam, tão simples quanto isto. É esta filosofia de vida que ele nos apresenta o motivo da sua consciente inconsciência e da sua felicidade (daí esta imagem como fundo).
Ricardo Reis “É que o Dr. Ricardo Reis, com o seu neoclassicismo, a sua crença verdadeira e real na existência das divindades pagãs, é um sensacionista puro, embora de género diferente.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, s/d, pp.346-350.
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“Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.” Fernando Pessoa na sua carta a Adolfo Casais Monteiro.
Ricardo Reis é um médico, nascido a 19 de Setembro de 1887, no Porto e que frequentou uma escola de jesuítas. Apresenta-se como mais forte, baixo e moreno que Caeiro, o seu mestre. Trouxe de volta o paganismo (neopaganismo – neo significa novo), isto é, a crença em vários deuses, mostrando frequentemente, na sua elaborada poesia, símbolos de como o Homem se regia pelas leis cósmicas, isto é, que todos temos um destino ditado pelos deuses (fatum) e ninguém o pode alterar - estoicismo.
Esta constatação da inutilidade das nossas ações leva-o a procurar prazeres moderados, pois é da opinião que a tranquilidade é o nosso maior bem e que o tempo tudo leva epicurismo. Esta tranquilidade existencial é designada por ataraxia, uma calma busca de paz no caminho para a felicidade. Por isso devemos aproveitar a vida em cada dia (carpe diem), vivendo-a de forma equilibrada e serena, sem nos apegarmos às coisas (pois irão causar sofrimento se o fizermos), dominando as nossas emoções.
Álvaro de Campos “Para Canpos, a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como são, antes das coisas conforme sentidas.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, s/d, pp.346-350.
Nasceu a 15 de Outubro de 1890, em Tavira. Alto, moreno, magro e com um monóculo: é assim que nos é apresentado. Álvaro de Campos é o produto dos impulsos de escrita que Fernando Pessoa possuía, daí ser uma constante explosão de emoções. Procura “sentir tudo de todas as maneiras”. É um sensacionista! Alberto Caeiro é o seu mestre, mas Campos não se baseia apenas na filosofia que este lhe transmite. Tenta perceber as sensações, inteletualizá-las e depois exprimi-las conforme ele as sente, tal como podemos ver na sua escrita, através de onomatopeias, aliterações… Talvez por ter sido um engenheiro naval, a sua escrita
demonstra traços de vocabulário técnico e refer-se muitas vezes à força e ao movimento. A exaltação de Álvaro de Campos possui não só picos (daí esta imagem de fundo, como se estivesse no topo do mundo), mas também momentos de descida. Nos picos destaca-se a euforia em abarcar todas as sensações, para depois passar para uma grande descida, onde se torna pessimista e repleto de tédio. A abulia, isto é, o estado em que se reflete sem parar mas sem se realizar nada, também está presente em Álvaro de Campos, pois ele sente que não se insere na sociedade, manifestando-se tempestuosamente!
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Refletindo… Quando vier a Primavera, Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. Se soubesse que amanhã morria E a Primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é. Alberto Caeiro Este poema é um reflexo das caraterísticas de Alberto Caeiro. Constata-se que a natureza se rege por ciclos e que estes não se alteram por nossa causa (―Se eu já estiver morto,/ As flores florirão da mesma maneira/ E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.‖). Devemos, por isso, submeter-nos às leis naturais, sendo esta a única maneira de pudermos ser verdadeiramente felizes. Todos temos o mesmo fim, de que é impossível fugir (―O que for, quando for, é que será o que é.‖). É a sua aceitação passiva de todas as sensações com que se
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depara que o leva a viver feliz e tranquilo, vivendo apenas do que o mundo lhe mostra (―Se soubesse que amanhã morria/ E a Primavera era depois de amanhã,/ Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.‖). Não há necessidade de grandes reflexões nem pensamentos. A vida é o que se nos apresenta. Só negando completamente o pensamento podemos ver as coisas tal como elas são. Apenas as sensações nos permitem relacionar com a realidade. Por isso escreve de forma simples (mais um sinal do seu estilo de vida), não elaborando demasiado os seus poemas: isso é retirar a beleza ao que já é belo por si só.
Analisando o vídeo Um Poema por Semana (2)… Porquê escolher uma pessoa simples como esta para citar este poema? Usa um vestuário casual, descontraído… Nota-se que Alexandre Silva aproveita cada momento da vida. Percebe-se isso não só pelo tom vivo e de pura alegria que incute logo no início do poema (cativando imediatamente o espetador), mas também pela sua forma de estar e pelas suas expressões faciais, que se adequam aos sentimentos que vai demonstrando, não só à medida que cita cada verso, mas também à medida que se vai identificando cada vez mais com o que o sujeito poético se refere no poema: apenas aceitando que o mundo é o que nós vemos é que podemos ser verdadeiramente felizes e não ter receio de nada.
(2) Ver ANEXOS.
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Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
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Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Génio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e nãomansardas do mundo Não estão nesta hora génios-para-simesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
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Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
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E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma malentendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando.
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos
23 in http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v259.txt
"Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso!" Fernando Pessoa Ortónimo em “Ela canta, pobre ceifeira” No filme Homem-Aranha 3, a personagem principal, Peter Parker, sofre uma espécie de crise de identidade. Fica em dúvida sobre quais as leis por que se deve reger. Ao aparecer uma espécie de ―vírus maligno‖, este vai-se alimentando das dúvidas do herói, começando a transformá-lo em algo que ele sempre abominou. Na imagem em cima, observa-se este conflito de identidades que Peter enfrenta: o Homem-Aranha bondoso à esquerda e o Homem-Aranha maldoso à direita. Relacionei este poema com Fernando Pessoa e, sobretudo, com aqueles versos de Fernando Pessoa Ortónimo por uma razão muito simples: tal como o sujeito poético no poema ―Ela canta, pobre ceifeira‖, Peter também desejava ser uma coisa, apesar de ter plena consciência do que é. Isto é, podemos querer ser alguém que não somos, mas sabemos que não o podemos ser, pois o nosso ‗feitio‘ não é e nunca será assim. Com isto, Fernando Pessoa expressa o desejo de possuir a inconsciência da ceifeira, mas a impossibilidade de o ser devido à sua condição de pensante. Por outro lado, Peter Parker, expressa o desejo de se preocupar menos com as pessoas, mas a impossibilidade de o ser, pois é o típico herói!
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Marisa Azinheiro
Do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares… “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.” “Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É um conceito nosso. Em suma, é a nós mesmos que amamos.”
“Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.” “Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto se dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.” “Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.” in http://www.triplov.com/fernando_pessoa/bernardo_soares/
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Pessoa em Banda Desenhada
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27 Continua em http://divulgandobd.blogspot.com/2008/07/fernando-pessoa-na-banda-desenhada-iv.html.
Inventando
28 Fonte: Notícias Magazine, suplemento do Diário de Notícias N.º 51956 e do Jornal de Notícias N.º 39/124.
Visto por outros olhos… Retrato de Fernando Pessoa feito por Almada Negreiros, em 1915.
“Pessoa antes de ser grande”, por Bartolomeu Cid dos Santos.
“Pessoa e o eléctrico”, por José João Brito (1985).
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Caricatura de Fernando Pessoa por Almada Negreiros, em 1915.
Fernando Pessoa em “flagrante delitro”, como escreveu numa carta a Ofélia.
“A Biblioteca” de Fernando Pessoa, por Alfredo Margarido.
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“Erros meus, má fortuna, amor ardente”, de Carlos Calvet, em 1980.
“Baudelaire, Poe, Mallarmé e Pessoa”, por Júlio Pomar, em 1983.
Caricatura de Fernando Pessoa, por David Levin, de 1972.
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A Inutilidade da Crítica
―Q
ue a obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor, se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por "destaca" quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sempre se destaca, no curso de sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro. Pois como há-de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio. Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante dos seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastarse-á em alguma coisa — e quanto mais original mais se afastará — das obras de arte do passado. Na medida em que o fizer, parecerá não se conformar com o cânone estético que o crítico encontra firmado no seu pensamento. E se a sua originalidade, em vez de jazer num afastamento daqueles velhos padrões, encontra-se num uso deles em linhas mais rigorosamente construtivas — como Milton usou os antigos — aceitará o crítico esse melhoramento como melhoramento, ou como imitação o uso daqueles padrões? Verá mais o construtor
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do que o utilizador de materiais de construção? Por que deveria ele fazer uma coisa em vez de a coisa melhor? É, de todos os elementos, a construtividade o mais difícil de determinar numa obra... Uma fusão de elementos do passado: verá o critico a fusão dos elementos? Persuadir-se-ia alguém de que se fossem publicados hoje o Paraíso Perdido, ou Hamlet, ou os Sonetos de Shakespeare e de Milton, lograriam eles cotação acima da poesia de Kipling ou de Noyes, ou a de qualquer outro cavalheiro semelhantemente quotidiano? Se alguém se persuadisse disso, seria um louco. A expressão é curta, não doce, mas pretende-se que seja apenas verdadeira. De todos os lados ouvimos o clamor de que o nosso tempo necessita de um grande poeta. O vazio central de todas as modernas realizações é uma coisa mais para se sentir do que para ser falada. Se o grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo? Quem pode dizer se ele já não apareceu? O público leitor vê nos jornais notícias das obras daqueles homens cuja influência e camaradagens tornaram-nos conhecidos, ou cuja secundariedade fez que fossem aceitos pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido; a sua obra teria sido noticiada nalgumas poucas palavras de vient-de-paraître em algum sumário bibliográfico de um jornal de crítica.‖
Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'
O objetivo desta imagem é simples. Fernando Pessoa diz, mais acima: ―O grande poeta pode já ter aparecido;‖, mas nós nem damos por ele, pois está no meio de muitos iguais… Tal como estes meninos todos mascarados da mesma forma. No entanto, por baixo, são todos pessoas diferentes.
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Comentários a Fernando Pessoa ―(…) Seguir «o fumo como uma rota própria» é a dimensão atópica da escrita, onde o sujeito se vota à dispersão e ao desaparecimento arrastando consigo a memória de outras rotas, as da descoberta, do comércio ou da lucidez. É passar dos percursos com destino aos labirintos do acaso. Sobrepor ao mundo as nuvens que o apagam. Dissipar. Deixar, no poema, um mapa do desaparecimento., percursos de tinta que duplicam as rotas do fumo, assinalam o fogo ausente. (…)‖ [Encontro Internacional do Centenário de Fernando Pessoa, SEC, 1990, As Rotas do Fumo , Silvina Rodrigues Lopes, pág. 326]
(…) Para Fernando Pessoa, recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não nos é permitido recuperar. Vimos da sombra e vamos para a sombra. Só o presente é nosso, mas que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro? Assim toda a vida é fragmentária, a personalidade una é uma ilusão, não podemos apreender em nós uma constante que nos identifique. O sentimento heraclitiano da transitoriedade das coisas conduz à negação do eu. Viver no tempo é depararmo-nos com o vazio de nós próprios: «Quem me dirá quem sou?» (…) [Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Editorial Verbo, 1979, Ser e Conhecer-se, pág. 89]
(…) Curioso é o modo como se refere ao papel desempenhado por Cesário no aparecimento de Alberto Caeiro. Cesário teria actuado apenas como um estímulo, como um ponto de partida; o caminho traçado por Caeiro, depois, só a ele pertenceria. O exemplo de Cesário teria posto em movimento, teria accionado uma energia que veio a regular-se a si própria, a encontrar a sua própria direcção. Cesário teria actuado junto de Caeiro como um agente catalítico, como uma voz que o ajudou a descobrir-se, a revelar-se a si próprio. A sua influência no autor de O Guardador de Rebanhos não se processara, assim, ao nível da transmissão de «qualquer espécie de inspiração»; agira, antes, como estímulo, como detonador da «inspiração». (…) [Fernando J. B. Martinho, Pessoa e a poesia portuguesa – do “Orpheu” a 1960, Biblioteca Breve ICLP, 1983, pág. 21]
(…) Não: a vida de Pessoa é na verdade a vida ideal do poeta; Pessoa é, como homem, a imagem da imobilidade. Ninguém quis ser menos aparente; toda a sua vida se envolve, não direi, porque detesto romantizar, de mistério, mas sim de discreto pudor, de amor ao silêncio e à contemplação. (…)
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[Adolfo Casais Monteiro, A Poesia de Fernando Pessoa, INCM, 1985, O Insincero Verídico, pág. 89]
(…) Quais as razões psicológicas da inaptidão para o amor concreto e real – anímico e físico –, tão dolorosamente manifestada por Fernando Pessoa? Já vimos que o poeta foi um idealista e um grande romântico. E já observámos o seu lado-Álvaro de Campos, isto é, uma certa pulsão homossexual, transparente nalgumas das Odes do «engenheiro naval» e confessada em página íntima, onde diz: «sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina»; e «É uma inversão sexual frustre. Pára no espírito». Junto de Ophélia, o problema pode ter estado prestes a resolver-se, apesar das interferências (episódicas) de Álvaro de Campos, isto é, do seu demónio interior, talvez menos antimulher do que anticasamento. (…) [António Quadros, Fernando Pessoa – vida, personalidade e génio, Publicações Dom Quixote, 1984, pág. 174]
(…) Agora pergunto; como é que alguém tão empenhado em ser ninguém, tão apostado não só em recusar as tais «realidades fortes da vida» mas também em negar, muito mais por dentro, a própria vida como realidade, como é que deste aspirante a nenhum, capitão do nada, general em nenhures, não hão-de interessar os óculos, o bigode, a gravata ou o laço, o chapéu, as polainas, a mesa do café aonde se sentava (ou não se sentava)? (…) [David Mourão-Ferreira, Nos Passos de Pessoa, Editorial Presença, 1988, Do Auto-Apagamento de Pessoa a CertasTácticas de Publicação, pág. 84]
(…) Depois do herói de Homero, viajar deixou de ser, apenas, ir de um porto ao outro através de um espaço-obstáculo que faz com que aquele que se desloca adquira valor, positivo ou negativo. Viajar é, também, entrar em diálogo com esse espaço, ou ser «dito» por ele, situação que converte o viajante em sujeito de uma ficção ou de uma encenação mais ou menos conseguidas, de que ele e o mundo são cúmplices. Neste sentido, houve sempre em Pessoa algo que se opôs à encenação do mundo através de uma qualquer deslocação. «Viajar, perder países» é um dos versos em que revela uma atitude completamente oposta à de Cesário Verde, para quem viajar significava ganhar países. Talvez que no imaginário de Pessoa o desinteresse pelo acto de viajar e pela viagem fosse o resultado das múltiplas formas da inapetência vital que lhe caracterizou a infância. Todo e qualquer esforço sério no sentido de se tornar outro ou diferente através de uma mera alteração de cenário se lhe afigura uma perda do ser, aquilo que mais tarde exprimirá na imagem célebre do cansaço invencível que o impede de apanhar o eléctrico. (…) [Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, Ensaios Pessoanos, Gradiva 2004, Pessoa ou as três viagens, pág. 149]
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No fio do sonho… O fado tinha sido considerado Património da Humanidade pela UNESCO. Tinha ido a Lisboa, por motivos pessoais que não são importantes para esta história. Estava a contemplar as montras, como ávida compradora. Sempre adorei a baixa do Chiado. O ar estava fresco e o tempo nem demasiado quente, nem demasiado frio. Era agradável. Sentia-me como se estivesse em casa. Páro em frente a uma loja com um casaco azul que me tinha chamado particularmente a atenção. Entro, compro e sou feliz! Ao sair da loja, olho para o outro lado da rua. Mas uma coisa me incomoda. Fernando Pessoa olhava para mim, sentado na sua habitual cadeira, à frente da antiga Brasileira. Sentia os olhos dele postos em mim. Aproximei-me, lentamente, com medo do que estaria para vir. Era só uma estátua, certo? Não fazia mal nenhum. Mas… Uma estátua não pisca os olhos pois não? Definitivamente não! E também não inclina o peso do corpo para a outra perna…! Como seria isto possível? Será que estava a alucinar? Olhei à volta. A rua estava vazia. Estranho. O Chiado nunca está vazio. Mas se o que se estava a passar era uma espécie qualquer de sonho, decidi aproveitar-me de tal delírio. A medo, tartamudeando um pouco, apresentei-me. Respondeu-me com uma voz rouca, marcada pelo tempo. Sentia-se o peso da experiência, mas o seu tom inteligente não estava desgastado. Perguntou-me o ano em que nos encontrávamos, o estado do país… Respondi-lhe sem papas na língua. Ficou chocado. Como podiam as coisas estar nestas condições? Começou logo a divagar, brilhante como sempre. ―O problema das pessoas era não sonharem – dizia ele. Como não sonham, também não viajam. Estão presas às ideias que lhes ensinam. Mas qual raízes, qual quê? Sonhar é ser livre! É não estar fixo a nada! Sabemos que temos de chegar a um lado (mesmo não sabendo que lugar é esse!), mas fazemos todos os possíveis para
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atingir esse sonho distante. E é aí que deixa de ser sonho, passa a ser realidade! Ah…. E assim se descobre outro sonho a alcançar… Que delícia…! Constantemente a procurar algo inalcançável!‖. Continuou assim por mais um pouco… Para ele não era com felicidades distantes que conseguiremos concretizar os nossos sonhos… Tudo o que procuramos está dentro de nós. O sonho está em nós. Só temos que fazer por o encontrar. Que beleza! Que voz tão inspiradora! Como adoro ouvir filosofias de grandes mentes. Mas, de repente, a voz parecia-me cada vez mais distante… Ele voltava-se para se sentar na esplanada do café, como o habitual… Subitamente estava sentada ao lado da estátua de Fernando Pessoa, idosos, adultos e crianças passavam por mim... Talvez tivesse sido tudo uma ilusão, causada pelos efeitos do sol sob a minha cabeça. Mesmo que tal seja verdade… Não trocava este sonho por nenhum outro! Penso que o mundo tenha falta de mais Pessoas, menos ―gente‖!
Marisa Azinheiro
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Conclusão Se escrevesse sobre tudo o que encontro sobre Fernando Pessoa, este Dossiê Temático nunca mais teria fim. Existem sempre novos textos, excertos, críticas… Isto porque ele foi, sem dúvida, um dos maiores marcos de sempre, não só em Portugal, como também um pouco por todo o mundo. Daí ter-me visto a acrescentar quase constantemente novas ideias ao meu plano inicial de trabalho, pois, à medida que escrevia, novos tópicos começavam a fluir e não podia deixar de passar para o papel o fruto desses momentâneos acessos de criatividade. Devo dizer que me diverti imenso a realizar este ―trabalho‖! Adoro encontrar novos aspetos que antes desconhecia sobre ele, pois conseguem impressionar-me ainda mais do que antes. De modo a compreender a complicada mente do escritor, não me restava outra alternativa a não ser pesquisar os conceitos sobre os quais não estava à vontade, como por exemplo a histeria ou as teorias de Freud. Este trabalho contribuiu para que os meus cinco sentidos estivessem mais alerta, pois
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podiam surgir assuntos, objetos, imagens ou vídeos, que poderia incluir no interior desta ―revista‖. No entanto, pressinto que uma pesquisa sobre Fernando Pessoa não tem um fim certo. Parece-me que, a qualquer momento, podemos encontrar coisas que antes nos eram totalmente desconhecidas. Portanto, apesar de o meu Dossiê ter chegado ‗ao fim da estrada‘ neste momento, isso não me impedirá de encontrar novas frases ou poemas, para os quais poderei olhar, agora, de uma forma diferente, mais complexa e profunda, visto agora já perceber o mecanismo do pensamento de Fernando Pessoa. Este projeto permitiu-me, também, aperfeiçoar a minha técnica, não só de leitura, mas também para retirar informação de textos mais extensos. Faço, portanto, um balanço bastante positivo e agrada-me bastante o ponto onde cheguei com este Dossiê Temático, relativo a Fernando Pessoa. Comigo levo tudo o que aprendi. Abraço toda a viagem, a inteletualização, as sensações que uma só pessoa me permitiu viver.
Bibliografia JACINTO, Conceição, LANÇA, Gabriela, Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos, 1ª Edição, Porto Editora, 2011.
AZÓIA, Fátima, SANTOS, Fátima, Interacções Português 12ºAno, 1ª Edição, Texto Editores, 2011.
Média: http://www.umfernandopessoa.com/ http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/grandeslivros/?k=Livro-doDesassossego.rtp&post=10706 http://livro-do-desassossego.blogspot.com/ http://www.citador.pt/textos/a-inutilidade-da-critica-fernando-pessoa http://ciencias.com.br/paulo_bedaque/?page_id=350 http://www.revista.agulha.nom.br/albertocaeiro12.html http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2250
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ANEXOS
Música “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho: http://www.youtube.com/watch?v=MrW6zP161QI Um Poema Por Semana, da RTP 1, Quando vier a Primavera de Álvaro de Campos: http://www.youtube.com/watch?v=uXdaYZ1Lmjs&feature=relmfu Vídeo Os Grandes Portugueses: http://www.youtube.com/watch?v=d3vKec_wG54 Trailer do filme “The Book of Disquiet”: http://vimeo.com/12146046 Poemas de Alberto Caeiro: http://www.revista.agulha.nom.br/albertocaeiro.html Poemas de Ricardo Reis: http://www.revista.agulha.nom.br/ricardoreis.html
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Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Bernardo Soares