Desventuras Sociais Belorizontinas

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barbaramacedoribeiro@gmail.com @babimacedoarte


Ainda é assustador, ofensivo. Uma travesti de uniforme, fazendo um lanche na porta de um espaço cultural. E na luz do dia! É uma afronta! É intimidante pras pessoas ver a emancipação e o empoderamento de, vejam, só uma travesti. O olhar traduz o que a boca não fala: “como é possível?”, “ela é capaz?”, “como ela conseguiu?” Causa espanto nas pessoas porque elas nos querem nas esquinas, nos querem sujeitas a todo tipo de crueldade e incertezas existentes nas noites de um país transfóbicos. Nos querem como lixo que acha que somos. Nos querem longe. Nos querem mortas.


Os olhares, hoje, foram de crueldade. De desafio. Mas para cada um desses olhares, tem um “boa tarde, moça.”, um “vem lanchar com a gente, menina!”. Tem diversão e leveza no trabalho da travesti. Tem respeito. Tem muito mais do que a mente retrógrada e preconceituosa das pessoas pode entender. Os olhares, a dúvida, são de vocês. O respeito é pra mim. A TRAVESTI SOU EU!


Pela primeira vez senti orgulho de ir votar. Para uma travesti, ver outra travesti na telinha da urna, ĂŠ uma felicidade indescritĂ­vel!

Pela primeira vez senti orgulho. E com orgulho apertei 50035!!!


Sou travesti e artista. Sou marginal duas vezes para esse governo que nos odeia! Mas o ódio deles só não é maior que o medo que sentem! A revolução será travesti, será artista! Nome social fica! Temer e sua corja saem!





Dica de ouro para as pessoas cis:

uma pessoa trans SEMPRE vai saber quando vocês estão olhando para nós, ainda que seja de rabo de olho.

Então apenas parem.


Das coisas que acontecem e a gente nĂŁo entende nada:


Saindo do Super Nosso, três meninos encostados no muro, quando eu passo, um deles diz: - ô, travesti. E começa a rir muito com os amigos. - e aí, tá jóia?! Respondi, naturalmente. Que tem de

mania essa que gente cis de achar que eu me ofendo ser chamada de travesti.

Eu tenho é orgulho. Eu hein.


E ontem que eu tava saindo do supermercado quando meu tio sai do estacionamento, buzina e berra: - Oi, (insira o nome de registro aqui)! - E aí, Patrícia! Respondi na mesma proporção de altura da voz. - Que isso, meu nome não é Patrícia! - Nem o meu é (insira nome de registro aqui). Ele saiu consciência e eu não parente em

meio indignado. E eu saí com a tranquila que mais um dia se passou baixei a cabeça pra transfobia de nome da “política da boa vizinhança”.


Travesti é resistência. Essa frase paira na minha cabeça todos os dias. Há algum tempo atrás, eu estava assistindo uma reportagem em que uma travesti conta para a repórter que uma amiga dela levou nove facadas de um cliente, no pistão. Na semana seguinte, ela estava lá trabalhando de novo. A repórter, assustada, comenta: - Nossa, sua amiga é guerreira, hein! Então a travesti que estava sendo entrevistada responde: - Lógico, é travesti.


Ao ouvir aquilo, eu me arrepiei inteira. E me peguei pensando que “guerreira” é um ótimo sinônimo da palavra “travesti”. Todas nós somos guerreiras. Todas nós sofremos com a transfobia do país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo inteiro. Todas nós somos vítimas desses criminosos que findam nossas vidas antes dos 35 anos de idade. Todas nós estamos sujeitas ao fim das nossas vidas, tendo em vista que hoje ainda é dia 13 de janeiro e 46 travestis e

pessoas

trans

foram

assassinadas.

Por isso somos guerreiras. E viemos aqui pra ficar. E vamos ficar. Nós existimos. Resistimos. Até o fim.



Esses dias para trás, a moça da padaria do bairro me perguntou de onde eu vinha, tão apressada e com uma pasta tão grande. - da faculdade. Respondi. Susto. Espanto. Estranheza. Um senhor no ônibus que (milagrosamente) se ofereceu para segurar minha pasta também me perguntou de onde eu vinha. - da faculdade. Respondi novamente. Susto. Espanto. Estranheza. Diversas pessoas em diversas situações me perguntam de onde eu venho e eu sempre digo da faculdade. E todas elas levam um susto, ficam espantadas e estranham a minha resposta. A sociedade não está acostumada com travestis frequentando as universidades. Agora, eu pergunto: Quantas dessas pessoas achariam normal ou até mesmo natural se eu dissesse que não sou universitária, mas que sou prostituta? REFLITAM...



Ainda há pouco eu vinha a pé para casa, naquele ritmo de não se sabe exatamente se estou andando ou correndo, sem querer tomar chuva, sem tempo pra lançar meus raios marotos desconstrutores, quando um casal com uma criança que vinha em minha direção resolve me xoxar. “Essa moça é uma moça ou um moço?” e risos muitos. Prontamente respondi: “é travesti. E é ótimo seu filho presenciar pra enxergar que o mundo é mais colorido fora dessa binária que vocês estão criando

isso muito bolha ele.”

O menino então direciona uma pergunta pro pai: “pai, onde que a moça disse que é mais colorido? Eu quero ir, me leva?” Missão cumprida.


Que péssimo dia pra encontrar com fundamentalista religioso na rua... Só que para eles, né. Uma moça surgiu na minha frente perguntando se eu podia doar alguma quantia para um projeto mas, infelizmente, só estava com o cartão de ônibus. Me desculpei e segui andando. Ela veio atrás. - Você sabia que Jesus te ama? - Então, sabia sim. Geral já me disse isso. - Que bom. Deus vai te curar, é só você querer e aceitar. - Desculpa, mas não estou doente. Minha saúde vai muito bem, aliás. - Não é da saúde física. É porque assim, você é homem né? Perguntou ela. - Não. Respondi sucinta.


- É mulher mesmo? Perguntou sorrindo. - Também não. Resolvi descontrair e sorrindo disse: última chance pra pergunta de R$ 1.000.000,00. Huehue brincadeira, sou travesti. A moça riu e continuou a falação: - Então, eu tinha uma amiga travesti que morreu. Você sabe o que é isso? - Transfobia. - Não, é Deus dando a chance do arrependimento. - Então Deus é assassino? Perguntei. - Claro que não! É o senhor de misericórdia. Só que se ele quisesse que você fosse mulher, ele teria te feito mulher. - Mas eu não tô querendo ser mulher, more. Respondi meio impaciente. - Você acha que quem te criou tá feliz com isso? - Meus pais estão felizes sim, pelo menos aparentam... Ela me cortou dizendo: - Deus te escolheu hoje e me colocou no seu caminho pra poder te apresentar a cura e tirar esse inimigo traidor de você... Dessa vez eu a cortei dizendo: - Eu imagino que Deus tem mais o que fazer do que importunar travesti, moça. Ele tem que cuidar de quem tá precisando e chamando ele. Eu tô ótima assim. - Amém. Ela disse. - Blessed be. Respondi. Só os 557 Deuses que eu cultuo pra dar paciência, porque olha...


Acho tristíssimo como algumas pessoas da militância (as estrelinhas) só se aproximam de uma travesti se ela tiver algum tipo de

relevância social/política/artística/cultural.


Muito bonito lutar contra transfobia e fazer a de pêssega pra aquelas que não estão “lacrando” na

internet porque precisam se prostituir pra tentar (sobre)viver.


BABI MACEDO É ARTISTA PLÁSTICA E ILUSTRADORA DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. GRADUANDA DE ARTES PLÁSTICAS PELA ESCOLA GUIGNARD. FAZ DESDE AQUARELAS BOTÂNICAS À ARTE MILITANTE. É CRIADORA DA PÁGINA TRAVARTISTA. INTEGRANTE DO COLETIVO DAS MINAS E PROFESSORA DE DESENHO E AQUARELA NO ATELIÊ COLETIVO, EM BELO HORIZONTE.


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