CENOGRAFIA URBANA
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO NA CIDADE
FA C U L D A D E D E A R Q U I T E T U R A DA UNIVERSIDADE DE LISBOA MAIO DE 2014
CENOGRAFIAS URBANAS PROFESSORA MARIA JOÃO PEREIRA NETO
BÁRBARA HELENA DE MORAIS 20138244
A P R O B L E M ÁT I C A O PROCESSO A P R O P O S TA Sé Miradouro Santa Luzia Belém Rossio Miradouro Santa Catarina Te r r e i r o d o P a ç o Miradouro São Pedro de Alcantara CONSIDERAÇÕES FINAIS BIBLIOGRAFIA
praça do comércio. arquivo pessoal
“Sabe porém Ricardo Reis o que saudades desta costumam valer, tudo vai é dos hábitos, o hábito que se perde, o hábito que se ganha, está há tão pouco tempo em Lisboa, menos de três meses, e já o Rio de Janeiro lhe parece uma lembrança de um passado antigo, talvez doutra vida, não a sua, outra das inúmeras” José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis.
A PROBLEMÁTICA
Tratar de Lisboa sendo eu uma estrangeira se tornou uma tarefa duas vezes mais complexa, uma certa cautela teria de ser tomada. Uma vez que não conheço a cidade como um conterrâneo, não sei das suas dinâmicas, de como o clima afeta as pessoas, como e quando as festas acontecem, os costumes, os pontos tradicionais, a história de cada lugar. Sentindo essa falta de aproximação e conhecimento com a cidade não me
sentia confortável suficiente para propor uma intervenção digna de tocar com algum sentimento as pessoas que cá vivem. Sendo assim, fui buscar na literatura um apoio, conhecer Lisboa sob os olhos de Fernando Pessoa e de José Saramago foi uma forma de tentar conhecer melhor a cidade e suas histórias e uma boa oportunidade de homenageá-los.
O PROCESSO
A leitura de O ano da morte de Ricardo Reis de Saramago, o guia de Fernando Pessoa: Lisboa que o turista deve ver e A Lisboa de Fernando Pessoa da escritora Mariana Tavares Dias foram os livros base para a pesquisa de locais sensíveis e percursos recorrentes, busquei assim conhecer melhor a cidade e reconhecer os pontos que os escritores vivenciaram. As pesquisas e as visitas de campo levaram-me a perceber além de uma cidade vista à olhos lisboetas, uma Lisboa que a tempos já não existe mais. Hoje a cidade recebe um número de turistas muito maior. Todo centro histórico esta adaptado para rece-
be-los. Não há mais moradores, não há roupas penduradas nos varais para fora das janelas, não há flores nas varandas, não há mais aquela movimento pendular característico dos trabalhadores nas horas de entrada e saída do trabalho. O que se vê é sempre a mesma massa de turistas sem rosto a encher as ruas todos os dias e a descobrir Lisboa através de guias e mapas impessoais e genéricos, a serem seduzidas por comerciantes e restaurantes, a encherem os museus, o castelo, as igrejas, as praças, as ruas sempre atrás de uma câmera fotográfica na captura de absolutamente todos os ângulos da cidade.
belĂŠm. arquivo pessoal
A PROPOSTA
“O homem não atravessa o mesmo rio duas vezes” Heráclito “Amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas.” Fernando Pessoa
Pensando na passagem do tempo e na efemeridade das coisas a proposta é tornar o percurso, algo simples do nosso cotidiano, em um instante memorável. O pensamento do filósofo Heráclito insinua que tudo é mudança, que as pessoas não são as mesmas, que no rio nunca é a mesma água que o percorre. Tudo é movimento e isso de uma forma ou de outra nos afeta, bem como a cidade, nossas vidas estão em constante mudança e só o passado permanece imutavél. Pensando nisso a proposta é transformar o lugar retomando uma memória do passado, fazer com que aquele percurso se torne marcante por possuir uma carga potencial a mais de mudança. igreja da sé. arquivo pessoal
Assim sendo, o que proponho são pequenas intervenções em alguns locais escolhidos sob a ótica da cenografia, fazendo com que as pessoas, sejam elas os moradores que passam sem perceber os detalhes da cidade ou o turista que não conhecem a história que há por traz de cada janela, tenha uma experiência diferente e sensível. São intervenções efêmeras, apresentar os textos escolhidos no chão ou nas paredes dos edifícios. Simples mas que propiciam uma reflexão, um sorriso ou às vezes se limitam apenas a um olhar mais diferenciado daquele ângulo mas, que faz com que toda uma nova perspectiva apareça. São pequenas gentilezas que mudam o aspecto da cidade e o dia das pessoas. O processo do trabalho limita-se a escolha dos sítios, das passagens e a um breve comentário do desejo de reações que isso causaria. Cada escolha está também intimamente relacionada aos meus próprios percursos pela cidade e as minhas percepções dela.
igreja da Sé. arquivo pessoal
A Sé e a Luz A região da Sé foi escolhida como local primeiro de intervenção pelo seu caratér histórico e lúdico. A proposta é fazer com que as pessoas percebam as belezas do lugar sob um ângulo diferenciado. Sentar-se para assistir o sol se por por detrás das casas é uma das
experiências que as pessoas poucas vezes se propõem a fazer mas que aqui cabe como reflexão. O ar fresco que sopra de dentro da igreja e os degraus gelados refrescam as tardes quentes, ou então se esquentar sobre os feixes de luz que se apresentem no miradouro em tempos frios, propiciam experiências únicas de beleza e contemplação.
Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo! Oh, Lisboa, meu lar!
Trovoada - Bernardo Soares
Livro do Desassossego
Miradouro Santa Luzia. arquivo pessoal
Por entre a casaria, em intercalação de luz e sombra - ou, antes, de luz e de menos luz - a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende - não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Bernardo Soares
Livro do Desassossego
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo Transeunte inútil de ti e de mim Estrangeiro aqui como em toda a parte Casual na vida e na alma Fantasma a errar em salas de recordações Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver... belém. arquivo pessoal
Álvaro de Campos
Lisbon Revisited (1926)
Rossio. arquivo pessoal
“Entra no Rossio e é como se estivesse numa encruzilhada, numa cruz de quatro ou oito caminhos, que andados e continuados irão dar, já se sabe, ao mesmo ponto, ou lugar, o infinito, por isso não nos vale a pena escolher um deles, chegando a hora deixemos esse cuidado ao acaso..” José Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Rossio se repete Entrar no Rossio pela primeira vez é são saber pra onde ir, essa foi minha primeira sensação ao chegar nela por uma saída do metro, essa é a sensação que muitos como eu ainda devem ter ao chegar ai
pela primeira vez. Saber que isso é um acontecimento recorrente desde os anos mais longínquos dá graça à essa coincidência, característica do lugar que já a muitos anos atrás o poeta eternizou e que até hoje se repete.
atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braço às armas feito e mente às musas dadas, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto picam os pombos como os olhares indiferentes de quem passa. Ainda não são três horas quando chega ao Alto de Santa Catarina. As palmeiras parecem transidas pelas aragem que vem do largo, mas as rígidas lanças das palmas mal se mexem. […] O que de certeza não estava era este grande bloco de pedra, toscamente desbastado que visto assim parece um mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram não deve ser longe o cabo da Boa Esperança. Lá embaixo , no rio, vogam fragatas, um rebocador arrasta atras de si dois batelões, os navios de guerra estão amarrados às bóias, com a proa apontada à barra, sinal de que a maré está a encher. p.188
Miradouro Santa Catarina. arquivo pessoal
“atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braço às armas feito e mente às musas dadas, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto picam os pombos como os olhares indife- rentes de quem passa. Ainda não são três horas quando chega ao Alto de Santa Catarina. As palmeiras parecem trasidas pelas aragem que vem do largo, mas as rígidas lanças
das palmas mal se mexem. […] O que de certeza não estava era este grande bloco de pedra, toscamente desbastado que visto assim parece um mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram não deve ser longe o cabo da Boa Esperança. Lá embaixo , no rio, vogam fragatas, um rebocador arrasta atras de si dois batelões, os navios de guerra estão amarrados às bóias, com a proa apontada à barra, sinal de que a maré está a encher.” José Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Miradouro Santa Catarina e a questão da memória Não há mais os mesmos bancos de madeira, já não se conseguem mais ver tantos barcos indo e voltando. Hoje o que percebemos são as gruas à construir a Lisboa do futuro, são as inúmeras antenas, do outro lado do rio, centenas de casas, fábricas. Os velhinhos que passavam o dia a ver os navios e a lerem os jornais hoje já dividem o espaço com jovens a beber e a usufruir da vista e do sôssego local. A sensação de se passar uma tarde no miradouro pode não ser a mesma de Fernando Pessoa, mas a sensação
de que isso aconteceu e foi recorrente nos reconforta. A proposta é pela retomada da memória pelo antigo costume. Aqui entende-se perfeitamente a passagem do tempo. Apesar de reconhecermos o local entendermos que esse não é igual aquele, que as pessoas já não são mais as mesmas, que a água que corre pelo rio, a muito se foi, temos a consciência de que aquele local foi palco de inúmeros encontros e desencontros, amores nascidos e perdidos, cartas e jornais lidos, guardados ou jogados fora por pessoas que estão ou não vivas mas que seguramente não são mais as mesmas.
“da rua do Comércio, onde está, ao Terreiro do Paço distam poucos me-tros, apeteceria escrever, É um passo, se não se aventurará à travessia da praça, fica a olhar de longe, sob o resguardo das arcadas, o rio pardo e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas se levantam ao largo parece que vêm alargar o terreiro, submergi-lo, mas é ilusão de óptica, desfazem-se contra a muralha, quebra-se-lhes a forma nos degraus inclinados do cais.[…] Veio por estar tão perto para verificar, de caminho, se a antiga memória da praça, nítida como um gravura a buril, ou reconstruída pela imaginação para assim o parecer hoje, tinha correspondência próxima na realidade material de um quadrilátero
redrado de edifícios por três lados, com uma estátua equestre e real ao meio, o arco do triunfo , que onde donde está não alcança a ver, e afinal tudo é difuso, brumosa arquitetura, as linhas apagadas, será do tempo que faz, será de tempo que é, será dos seus olhos já gastos , só os olhos da lembrança podem ser agudos como os do gavião. Aproxima-se as onze horas, há grande movimento sob as arcadas, mas dizer movimento não quer dizer rapidez, esta dignidade tem pouca pressa, os homens, todos de chapéu mole, pingado de guarda-chuvas, raríssimas as mulheres, e vão entrando nas repartições, é a hora em que começam a trabalhar os funcionários públicos.” José Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Terreiro do Paรงo. arquivo pessoal
Terreiro do Paço O local cenográfico mais emblemático da cidade, praça que a todas as horas do dia vejo cheia de famílias a passear e jovens a brincar. Ela se tornou mais do que um local de passagem e contemplação, é a principal área de estar
da região histórica da cidade. Os homens a ir trabalhar de antigamente foram substituídos pelas famílias que passeiam mas, a velha configuração física continua a mesma, impressiona como esta sempre cheia de vida.
Terreiro do Paço. arquivo pessoal
Miradouro S達o Pedro de Alcantara. arquivo pessoal
“a esta cidade basta saber que rosa-dos-ventos existe, ninguém é obrigado a partir, este não é o lugar onde os rumos se abrem, também não é o ponto magnífico para onde os rumos convergem, aqui precisamente mudam eles de direção e sentido, o norte chama-se sul, o sul é o norte, parou o sol entre leste e oeste, cidade como uma cicatriz queimada, cercada por um terremoto, lágrima que não seca nem que tem mão que a enxugue.”
José Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O começo da minha trajetória pela cidade foi marcada por muitas andanças e muitas descobertas, assim como Ricardo Reis que se descobre em Lisboa e não mais reconhece sua antiga vida como sendo sua própria, um sentimento parecido é o que eu sinto hoje por essa cidade. Hoje ela me é familiar, hoje seus caminhos já não me são tão misteriosos. Ler os escritos de Fernando Pessoa sobre a cidade me traz uma alegria particular por estar aqui, desde pequena fui acostumada a ler seus poemas e hoje estar imersa em seu universo é sentir que o entendo um pouco melhor. Lisboa, mais que uma trajetória de aprendizado arquitetônico está sendo literária e muitíssimo sinestésica. Foi exatamente essa sinestesia que eu tentei propor que as pessoas sentissem ao percorrer a cidade, um caminhar tranquilo, de apreciação e conhecimento. As intervenções mínimas são para aqueles que possuem a sensibilidade de perceber a importância do lugar, toda a bagagem histórica que ele carrega toda a memória que há em cada parede, em cada rua.
BIBLIOGRAFIA
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. Círculo de Leitores. Lisboa, Portugal. 1999; PESSOA, Fernando. Lisboa: o que o turista deve ver. Livros Horizontes. Lisboa, Portugal. 1992; DIAS, Mariana Tavares. A Lisboa de Fernando Pessoa. Assírios e Alvim. Lisboa, Portugal. 1998;