M U ROS NARRATIVAS DE UMA CIDADE
NITERÓI - RJ
ENREDO
Essa história que eu vou contar se passa num labirinto. Um labirinto mesmo, no sentido literal da palavra. Aquele cheio de paredes, corredores, caminhos. Não sei como vim parar aqui nem há quanto tempo nem muito menos o porquê, só sei que cá estou. Desde que cheguei, tenho ouvido gritos. Demorei para entender de onde vinham. Até que olhei para os muros altos desse labirinto, e vi grafites. Grafites mesmo, daqueles bem coloridos, grandes, cheios de personalidade. São eles que gritam. São gritos caoticamente organizados. É possível escutar todos eles juntos; gritam quase como num manifesto. E ao mesmo tempo, é possível entender cada um e qual é a sua história. Quem diria que grafites têm tanto para contar? Desde que eu cheguei, já ouvi um pouco de muitas dessas histórias. De como foram desenhados, das suas inspirações, e de como chegaram nesse labirinto. Esses grafites têm donos, autores. Têm histórias e vivências de mundo escondidas em si. Têm referências a outras narrativas,
a outros acontecimentos, a outros momentos da história. E são contados em suas imagens, em seus gritos. Os grafites que vejo nesse labirinto, que descubro a cada novo caminho que eu faço, já estiveram em cidades, já fizeram partes de paisagens, já foram vistos por muitos. E assim, descubro como chegaram aqui: fugiram. Cansaram de fazer parte daquele caos, daquela desordem, cansaram de ser cor no meio do cinza. E vieram para o labirinto. Para contarem suas histórias, para gritarem o mais alto que pudessem. Para falarem com apenas quem quisesse ouvir. E eu não estava sozinho. Cruzava com um ou outro durante meus passeios, mas não havia qualquer troca entre nós. A nossa atenção estava totalmente voltada aos gritos, aos grafites e às suas cores. Não queríamos, de forma alguma, buscar uma saída para aquele labirinto. E nem sabíamos se havia alguma. O nosso caminho ali dentro era um só: conhecer e ouvir tudo o que aqueles grafites tinham a contar. Buscar suas histórias, seus contos, suas vozes.
“a nossa atenção estava totalmente voltada aos gritos, aos grafites e às suas cores”
TCHAU, CÉU AZUL
Ela olhou para o céu. Quando a vi, estava sorrindo pelos olhos. Reluzia de felicidade, como se nunca tivesse visto nada igual. E nunca tinha visto. Ela olhou pra mim, radiante e disse: “olha mamãe, tem um avião lá no céu”. E era mesmo, um avião. De guerra. Lançava bombas nos bairros vizinhos, enquanto chegava cada vez mais perto da gente. Mas ela seguia sorrindo. Aquela novidade mostrava a ela uma liberdade desconhecida. Um sonho, quase. Ali, ela via o impossível. Eu via destruição, e ela vida. Amelia queria ser livre. Queria estar acima do chão. Ir longe. E no meio de uma guerra, ela trouxe esperança. Enquanto não sabia o que estava acontecendo, sabia o que queria que acontecesse. Enxergava ali, o futuro que ela buscava. Enquanto ninguém mais, na nossa cidade, ou no nosso país, conseguia pensar no amanhã. Por um tempo, seguiu observando aqueles pás-
saros de metal. E sorrindo. Até que os aviões foram chegando mais perto. E a destruição também. Corríamos perigo! Peguei Amelia pelo braço, chamei seu pai, e fomos todos para o bunker no quintal da nossa casa. Precisávamos nos proteger. Mas ela não queria. Não podia. Os aviões estavam no céu e ela não entendia o que estava acontecendo. Como poderia ir, e deixar ali os aviões? Não mais observá-los. Amelia deu tchau ao céu azul, pois não sabia quando o veria de novo. Passamos um tempo naquele bunker. Fugimos depois. Quando era tudo destruição e ruínas, fomos embora. Buscamos refúgio até a guerra acabar. E Amelia nunca esqueceu aqueles aviões. Aquele sonho, para ela. E por não ter esquecido, quis torná-lo realidade. Anos depois, seria ela a pilotá-los. Sentiria a felicidade de ser livre, de estar nas nuvens. O céu azul havia voltado, e ela era o avião lá no céu.
“amelia queria ser livre; queria estar acima do chão”
SOMOS TODOS LOU Naquele dia, fui acordado à força. Fui tirado do meu espaço, do meu lugar no mundo. Aquele sonho, aquele delírio em que eu parecia estar preso, havia acabado. Lá, eu via o que mais ninguém poderia ver. E ouvia vozes, deles me chamando, me contando histórias. Aquele lugar era só meu. Lá eu conheci a história do mundo. E de lá, fui tirado. Me le-
“mantive meus olhos abertos e minha voz ativa” varam para uma caixa. Branca, com absolutamente nada dentro. E fui trancafiado. Sem poder falar, ouvir, ver. Eu era louco. Mas somos todos loucos, por aqui, não é mesmo? E naquele quarto branco, onde me deixaram para que eu não mais pudesse sonhar, incrivel-
mente eu voltei. Nunca entendi se eram de fato sonhos ou pesadelos. Mas as vozes me contavam coisas incríveis, sobre como o caos do mundo poderia ter fim. Eu tinha esperança de dias melhores. E por isso, era louco. Pois acreditava no poder da humanidade de melhorar. Me mantive preso à possibilidade de acabarem aqueles dias de dor e injustiça, de mortes, pelas mãos daqueles que
UCOS POR AQUI não eram punidos. Antes de me levarem para aquela caixa branca, eu gritava ao mundo. Gritava sobre como era possível viver em paz, punir os responsáveis por todo aquele sofrimento, acabar com a dor da humanidade. Mas não me ouviram. Continuavam cegos e alienados, culpando uns aos outros por problemas que não eram deles, nem causados por eles. Apontavam dedos, mas
não fechavam os olhos, não percebiam dentro de si o poder de acabar com aquilo tudo. E por isso, eu era o louco. Porque mantive meus olhos abertos e minha voz ativa. Até que tentaram me cegar também. E me calar. E fiquei preso, dentro de mim. Dentro daquele sofrimento, e da minha vontade de salvar a humanidade. Infelizmente, nem todos são loucos por aqui. Antes fossem.
DESEJO Era dia lá e cá. Ella fazia as unhas para se preparar para a cerimônia daquela noite. Ele só estava preocupado com os ajustes que faltavam no terno. - Como você está se sentindo? Parece que meu estômago está prestes a saltar de mim a qualquer momento – disse a noiva, pelo telefone, com o mesmo ar doce de sempre. - Eu sinto o mesmo, meu bem – ele respondeu, logo antes de
se despedir para continuar terminando os preparativos. O telefone toca novamente. Ele atende enquanto abotoa as mangas. - Alô? - Você tem noção de que vai se casar hoje? Era uma voz muito familiar. Ele esboçou um leve sorriso. - Tenho sim, El. Mas não deixa de ser insano. - Tá bem feliz, né?
“foi como se ali soubessem que era definitivo” - Tô sim, bastante. Ela sorriu do outro lado. - Eu chego às 15h pra te ajudar, tá bom? - Tá bem. Eles tinham terminado o namoro há 5 anos e, mesmo não tendo sido um término ruim, ambos demoraram a superar. Eles continuaram amigos. E ela era convidada de honra do casamento. ... Ella chegou às 15h e o encontrou no quarto do sítio tendo problemas para ajeitar a gravata. Bateu na porta. - Desse jeito você vai se atrasar, hein. Ele sorriu. - Eu só estava esperando você. Eles se olharam intensamente.
Foi como se ali eles soubessem que era definitivo. - Casamentos são feitos para durar pela eternidade – ela disse como se fosse um aforismo milenar. A tensão era imensa. O quarto estremeceu. Ele pousou a mão na lateral do rosto dela, delicadamente. - O que a gente faz? Ela acariciou a mão dele e trouxe os dedos daquele homem que lhe era tão conhecido lentamente até a própria boca. E respondeu: - ... a gente se olha, se beija sem se tocar e continua vivendo a vida. - Como sempre? Ela sorri suavemente enquanto termina o nó da gravata dele. - Algumas ruas nunca divergem.
“a tensão era imensa; o quarto estremeceu”
OBLÍQUA E DISSIMULADA Seu nome era Yoko. Isso mesmo, que nem a dos Beatles. Eu a conheci numa noite, durante minha viagem ao Japão. Era linda, misteriosa, andava pelo bar como se flutuasse. Fiquei hipnotizado. Seus olhos me chamaram atenção: azuis, grandes, olhavam no fundo da minha alma. Conversamos pelo que pareceu uma vida, mas foi apenas uma noite. E ela foi embora, 1h da manhã, sem nenhuma explicação. Deu tchau, virou para ir e não olhou mais para trás. E eu fiquei ali, parado, olhando ela sair pela porta. Fui embora pensando nela. E dormi pensando nela. E acordei pensando nela. Yoko era única, nunca tinha visto ninguém igual. No dia seguinte, eu tinha uma reunião de negócios. Fui à reunião pensando nela. Resolvemos o que tinha que ser resolvido, e eu seguia pensando
nela. Estava indo embora da reunião e a vi. Lá estava ela. E junto a ela, um homem muito mais velho. Estavam de mãos dadas. Aquela imagem não fazia sentido na minha cabeça. Como ela poderia estar com aquele homem? Eles não se encaixavam. Na noite anterior ela tinha sido tão espontânea. Havia uma conexão entre nós, como se o destino quisesse que nos conhecêssemos. Ou pelo menos, foi isso o que ela disse. E eu acreditei. Ela passou por mim e fingiu não me conhecer. Fui almoçar, chocado com aquilo tudo. Voltei para casa e não conseguia esquecê-la. Nunca consegui me conectar com alguém como me conec-
“yoko acabou comigo”
tei com ela. Até que, anos depois, a reencontrei. Quão previsível era o nosso reencontro? Mas foi nas piores circunstâncias possíveis. Aquele homem mais velho, quem logo descobri ser seu marido, queria comprar a minha empresa, que não estava à venda. E conseguiu. Conseguiu porque sabia de todos os problemas pelos quais a minha corporação passou e estava passando. Sabia das pessoas
envolvidas em suborno, roubo e lavagem de dinheiro. Sabia de coisas que nem eu sabia. E do escândalo que aquilo poderia se tornar, caso eu não a vendesse para ele. E como ele sabia? Porque eu contei tudo a ela, e ela a ele. Cada detalhe. Desabafei para aquela mulher. Fui seduzido, e roubado. Yoko acabou comigo. Da mesma forma que uma Yoko havia acabado com os Beatles.
MANIFESTO
Eu nunca sonhei muito. Não até aquele momento. Lembro apenas de alguns flashes do dia em que as coisas mudaram. Eu estava em uma praça, com uma senhora que me fazia pensar em como é bom ter um lar. Conversamos durante algumas horas e ela me contou sobre sua família e como gostava de cozinhar para os netos. Eu só conseguia pensar em como não havia nem sequer uma memória do meu passado que me fizesse ter o brilho no olhar que ela tinha conforme falava de quem amava. Ela seguiu a narrativa e eu estava prestando atenção no que ela dizia, até que comecei a sentir os pés dormentes e percebi que havia algo de errado com as minhas mãos também. - Com licença, eu preciso ir, mas agradeço pela companhia - eu disse, um pouco tensa. - Não se preocupe, querida. Você não precisa estar no con-
“você não precisa estar no controle de tudo” trole de tudo - ela disse com um sorriso tranquilo que imediatamente me acalmou. As sensações estranhas passaram, e de um momento para o outro eu me senti mais segura do que estava fazendo. Por algum motivo, não conseguia lembrar qual era o meu nome nem como havia chegado até ali. Eu sabia que não estava no mundo material. Continuei caminhando. Havia um rapaz deitado em uma rede, num lugar que lembrava uma casa de praia, segurando um violão. Ele esperou eu me aproximar, e tudo o que me disse foi: - Você sabe o que fazer. Você sempre foi melhor nisso do que eu. E eu acredito em você. “Eu também acredito”, pensei. - A parte difícil de sonhar com diversas personificações
de você mesma é entender por que nenhuma delas te incentiva a se alimentar melhor – comentou uma menina
com o cabelo desgrenhado, que parecia ter corrido bastante para chegar até mim. Ok,
é
hora
de
acordar.
V DE VINGANÇA Estou esperando ansiosamente eles chegarem em casa. Essa família que muito me maltratou. Me atacaram com sapatos, raquetes, cabos de vassouras e até ratoeiras eles botaram na casa. Não sei o que fiz para eles, sou apenas um ratinho inofensivo. Mas agora era a hora da minha vingança. Planejei por dias, observei cada passo deles, monitorei toda a rotina de cada um da família. Hoje eu vou tocar o terror. Vou dar motivo para eles me caçarem. Às 14h, exatamente como o esperado, eles chegaram. Eu já havia roubado algumas frutas e verduras da cozinha, para começar a brincadeira. Quando a mãe deixou sua bolsa em cima da mesa, entreaberta, aproveitei para esconder uma banana, com a casca mordiscada, lá dentro. No tênis do moleque, assim que ele o tirou e se distraiu, escondi metade de um tomate. Puxei do lixo algumas
cascas de fruta do dia anterior e espalhei pela casa, torcendo para o pai ser o primeiro a escorregar. Me posicionei estrategicamente num ponto alto da casa, para fazer a minha primeira aparição para a família. Assim que a garota mimada passou embaixo de mim, eu pulei. Acertei em cheio, e pousei exatamente na cabeça dela. Foi a mãe quem viu que era um rato e, quando avisou a filha aos berros, a menina começou uma espécie de dança desesperada para que eu saísse. Me agarrei em seus cabelos o máximo que eu pude, para que ela não conseguisse se livrar de mim. Acho que aguentei pouco mais de um minuto, até que larguei seus fios e voei para o outro lado da sala. Fui às pressas para o quarto dos pais, onde deixei algumas sujeirinhas na cama. Roí os pés de todos os móveis que eu consegui. E fugi para o quarto do menino. Lá, mordi a bola de futebol dele, até que ela furasse e fiz um rasgo na
“hoje eu vou tocar o terror”
sua blusa de time preferida. No quarto da irmã, meu alvo foi o fone de ouvido, comi o fio inteirinho até estragar. Pensei que poderia parar por ali. Mas ainda tinha o gran finale. Voltei para a sala e vi que a porta da cozinha estava aberta. De lá, dei o sinal para que a minha colônia entrasse. Ratos são os melhores ladrões da cidade, e eu disse a eles que levassem o que quisessem. A família entrou em pânico quando percebeu o ataque. Ficaram absolutamente esta-
telados, sem saber o que fazer. Vi alguns sapatos indo embora, muita comida, uma chave, dinheiro e até um trabalho em equipe foi posto em prática: levar uma peça de queijo inteiro para nossa colônia. Era brie. Eu realmente pensei que a relação do homem com os ratos da cidade iria melhorar depois de Ratatouille. Mas esses humanos nojentos não conseguem entender que somos inofensivos. Quer dizer, isso se você não mexer com o rato errado. PAZ.
AQUELE QUE NÃO É A gente nunca conhece alguém totalmente. Em 22 de novembro de 1992 eu aprendi isso, na formatura do meu filho. Ber estava orgulhoso, bem arrumado e radiante. Ele e a namorada eram o símbolo de
tudo o que a juventude tinha d mais bonito. Ambos se forman do com honrarias, eles eram retrato do que eu nunca fu Conheci a mãe dele no iníc da faculdade. Nunca fui muit bem recebido pelas meninas, com ela não foi diferente. Prec
de no ui. cio to e ci-
sei de meses de aproximação para tê-la como amiga e anos para tê-la como namorada. Também não fui um grande cérebro na escola por mais que eu almejasse ser. Olhar para um filho com um futuro tão brilhante às vezes me despertava uma certa inveja, devo admitir. - Pai, obrigado por tudo – ele me disse, olhando pelo espelho enquanto se arrumava para a festa. - Eu sempre estarei aqui para você, filho. Todos ficamos prontos e entramos no carro a caminho da cerimônia. Alice, a namorada, estava deslumbrante. Tinha apenas 17 anos. Algo nela me lembrava o desdém com que minha esposa me tratava quando a conheci. Isso me enchia de ódio. Quando os dois subiram ao palco para pegar os diplomas, aplaudi. Quando desceram para se divertir, sorri. Quando
ela se dirigiu ao banheiro, sozinha, fui ao seu encontro. O olhar de indiferença daquela menina me atingiu de uma forma muito pessoal. Me aproximei e a olhei fixamente. Antes que ela pudesse se desesperar, tampei-lhe a boca e esfaqueei suas costelas com calma e carinho. Gentil, como sempre fui com ela. Como sempre fui com minha esposa. Paramédicos por todos os lados, eu fui a testemunha do assassinato cometido por um maníaco. Tentei impedi-lo com todas as minhas forças, mas falhei. Bernardo estava inconsolável nos meus braços. E eu estava lá, como o ótimo pai que sou para ele. E é essa imagem que sempre quero que ele tenha de mim.
“eles eram o símbolo de tudo o que a juventude tinha de mais bonito”
CRÉDITOS Fernanda Bahia fotografias conceito do projeto escrita de contos
Bárbara Martins edição de fotos diagramação escrita de contos
Fotojornalismo Turma 2 2017.2