A PÉ
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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte / Biblioteca Setorial de Arquitetura.
Santos, Bárbara Brena Rocha dos. A pé: uma narrativa sobre a experiência do pedestre no Centro Histórico de Natal / Bárbara Brena Rocha dos Santos. – Natal, RN, 2015. 261f. : il. Orientadora: Verônica Maria Fernandes de Lima. Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura. 1. Centro Histórico – Natal/RN – Monografia. 2. Pedestre – Experiência urbana – Monografia. 3. Narrativa – Monografia. I. Lima, Verônica Maria Fernandes de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BSE15
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Aos dois grandes amores da minha vida: mamãe e papai. Eu sei do esforço de vocês para me ver chegar até aqui. Espero ter conseguido alcançar as expectativas. À minha professora, orientadora e amiga, Verônica Lima, por acreditar e compartilhar comigo a experiência deste trabalho.
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Aos tatus, Igor Queiroz e Leonardo Vieira, por me inspirarem. E pela co-orientação à distância. Aos Boêmios, minha turma de coração e zueira, por me orgulharem todos os dias. Sem vocês eu seria lado A. Obrigada. À Gabrielle Barrros, Tisbe Machado, Ingrid Nogueira, Rayanna Rodrigues, Maria Evane Medeiros
e
Fernando
Cortez,
por
compartilharem esse momento da minha vida e terem sido um ponto de apoio e segurança. A David Emmanuel, meu melhor, por acreditar em mim e por me fazer esquecer qualquer dificuldade com um abraço. Ao Grupo Estandarte de Teatro,
minha
segunda casa. Em especial à Lenilton Teixeira, Marinalva Moura e Luiz Gadelha, que se
dispuseram a caminhar ao meu lado. Este
Aos amigos da Comorg EREA Natal, por
trabalho não seria metade do que é se não
enfrentarem essa barra junto comigo.
fosse por vocês.
A Paco, el mejor amigo español, por
Aos queridos da Superintêndencia de Infra
ayudarme con los trabajos de la uni y por
Estrutura da UFRN, estágiários e chefes, por
siempre preguntarme de Brasil.
serem a melhor equipe de trabalho que eu já conheci e pelos dias mais humanos sempre revigorantes.
Àqueles experiências
que
compartilharam
comigo:
Tárcio
suas
Fontenele,
Aderbal Ferreira, Pedro Mendes, Antônio
A Juliana Fernandes, por aceitar participar
Capistrano, Henrique Fontes, Flávio Freitas,
deste trabalho e pela atenção sempre
Severino Ramos e Marinaldo.
presente. A Letícia Sayonara, Luiz Henrique Lins, Netto Lins e Eliasz Chmiel por serem incríveis e mesmo de longe fazerem parte da minha vida. Às minhas irmãs de coração Olivia Patrício e Maria Evane Medeiros, por vivenciarem Valencia junto comigo, e não deixarem que
A Seu Pernambuco, pela melhor tapioca da minha vida, e a Nazih pela herança deixada. A todos aqueles que participaram da minha graduação e que me ajudaram ouvindo sobre as confusões e dúvidas com este trabalho. Ao centro histórico de Natal, que se abriu para a minha caminhada e que hoje faz parte de mim.
eu me sentisse sozinha no intercâmbio. E à pipoca, que mesmo me esnobando, me A Rui, Rebeca e Lenilson, que me salvaram em vários momentos, obrigada. .
fez companhia nas madrugadas deste TFG.
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RESUMO A pé: Uma narrativa sobre a experiência do pedestre no centro histórico de Natal. Vivemos em cidades resultantes de processos urbanos que historicamente contribuíram para o afastamento do pedestre da rua, em consequência de um pensamento urbanístico voltado para uma escala macro, das políticas de incentivo à hegemonia dos veículos motorizados e dos processos de modernização e homogeneização das cidades. Tais posturas distanciaram o homem da rua e interferiram na maneira como nos relacionamos e experimentamos o espaço público. Partindo da constatação do filósofo Michel de Certeau, de que a forma mais
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elementar de apreensão urbana se dá ao caminhar, desenvolveu-se o presente trabalho: uma investigação crítico-reflexiva dos processos que interferiram e seguem interferindo na relação entre homem e cidade, com enfoque na experiência sensível do pedestre no meio urbano, mais especificamente no centro histórico de Natal. O desenvolvimento da pesquisa aconteceu através da apropriação teórica de autores como Paola Berenstein Jacques (2012) e Walter Benjamin (1984) e de pesquisa in loco elaborada através de passeios acompanhados em busca de imagens, memórias e narrativas urbanas com base nas metodologias desenvolvidas por Rachel Thomas (2009), Marta Dischinger (2000) e Kevin Lynch (1960). Busca-se, através do olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, a elaboração de uma narrativa de apropriação da experiência urbana que provoque uma reflexão acerca dos processos que interferem na forma como vivenciamos e experienciamos o Centro Histórico de Natal, e que também instigue o leitor a um novo olhar ou a uma (re)descoberta de antigos ou novos caminhos pela cidade. Ademais, a fim de ilustrar tal reflexão, uma micro-resistência urbana em forma de intervenção artística crítica será parte da proposta aqui apresentada. Palavras-chave: Pedestre; Experiência Urbana; Narrativa; Centro Histórico de Natal.
RESUMEN A pie: Una narrativa sobre la experiencia del peatón en el Centro Histórico de Natal. Vivimos en ciudades resultantes de procesos urbanos que históricamente contribuyeron para el apartamiento del peatón de la calle, en consecuencia de un pensamiento urbanístico direccionado hacia la escala macro, de las políticas de incentivo a la hegemonía de los vehículos motorizados y de los procesos de modernización y homogeneización de las ciudades. Tales posturas, distanciaron el hombre de la calle e interfirieron en la manera como nos relacionamos y experimentamos el espacio público. Partiendo de la constatación del filósofo Michel de Certeau, de que la forma más elementar de aprehensión urbana se da al caminar, se desarrolló el presente trabajo: una investigación crítico-reflexiva de los procesos que interfirieron y siguen interfiriendo en la relación entre hombre y ciudad, con enfoque en la experiencia sensible del peatón en el medio urbano, más específicamente en el Centro Histórico de Natal. El desarrollo de la investigación sucedió a través de la apropiación teórica de autores como Paola Berenstein Jacques (2012) y Walter Benjamin (1984) y de pesquisa in loco elaborada a través de paseos acompañados en búsqueda de imágenes, memorias y narrativas urbanas con base en las metodologías desarrolladas por Rachel Thomas (2009), Marta Dischinger (2000) y Kevin Lynch (1960). Se busca, a través de la mirada y de la experiencia de quien anda y vive en la ciudad, la elaboración de una narrativa de apropiación de la experiencia urbana que provoque una reflexión acerca de los procesos que interfieren en la forma como vivimos y experimentamos el Centro Histórico de Natal, y que también instigue el lector a una nueva mirada o a una (re)descubierta de antiguos o nuevos caminos por la ciudad. Además, con fin de ilustrar tal reflexión, una micro-resistencia urbana en forma de intervención artística crítica será parte de la propuesta aquí presentada. Palabras-clave: Peatón; Experiencia Urbana; Narrativa; Centro Histórico de Natal.
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SUMÁRIO ANTES DE COMEÇAR, LEIA-ME.
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INTRODUÇÃO
18
CAPÍTULO UM 1.1 PRÓLOGO CAROL
34
1.2 CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS PARA A ERA DO AUTOMÓVEL
38
CAPÍTULO DOIS
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2.1 PRÓLOGO VAGA-LUMES
52
2.2 EXPERIÊNCIA: CHOQUE, ESPETÁCULO E NARRATIVA
58
2.2.1 CHOQUE
59
2.2.2 ESPETÁCULO
68
2.2.3 NARRATIVA
77
2.3 UM PRODUTO SENSÍVEL
82
2.4 SÍNTESE E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
92
CAPÍTULO TRÊS 3.1 PRÓLOGO TAPUMES 3.2 UNIVERSO DE ESTUDO: O CENTRO QUE A HISTÓRIA CONTA
98 104
3.3 MEMÓRIA & EXPERIÊNCIA
114
3.4 EXPERIÊNCIA PRATICADA
117
3.5 SÍNTESE E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO
188
CAPÍTULO QUATRO 4.1 PRÓLOGO LAMBE-LAMBE
192
4.2 GANHAR E DAR CORPO: NARRATIVA DE APROPRIAÇÃO
200
INTERFERÊNCIAS DE AFASTAMENTO
201
INTERFERÊNCIAS DE VÍNCULO
231
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
250
6. BIBLIOGRAFIA
255
7. APÊNDICES
262
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A PÉ
LISTA DE FIGURAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.
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13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36.
Janela. Minha carteira de motorista e o carro na garagem de casa. Meus tênis preferidos depois de algumas caminhadas em Valencia. A comunidade do Solar & Os portões do MAM. Salvador, BA. Maria Chiara e D. Suzana (acima), A mesa do Restaurante (abaixo). Carol assustada. Os Boulevards: As grandes avenidas de Haussmann. Antes e depois: Rua du Vieux-Colombier & Igreja de St-Sulpice. Rua Réaumur, Paris. Avenida central: Demolições para a construção da avenida 1904-1905. Traçado, sobre os quarteirões coloniais. Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro, 1903. Inauguração da General Motors em São José dos Campos (SP), em 1959, com a presença do então presidente Juscelino Kubitscheck. A cidade do futuro de Le Corbusier. Proposta dos Irmão Krier, da escola de Bruxelas para a reconstrução de Stuttgard (1975). Igor e os vaga-lumes O ritmo frenético das cidades. O metrô de São Paulo. Os personagens humanos da modernidade. Escalas de planejamento urbano. Cidade espetáculo: Montagem do Rio de Janeiro. O que se vende: a praia, os pontos turisticos e a cidade que se globaliza. Espaços luminosos e espaços opacos. Errantes nas zonas opacas. Intervenção urbana aCerca do Espaço - Coletivo Zona de Interferência (BH/MG). Transmissão da experiência. Projeto "SUR-fake": Novas formas de se comunicar na modernidade. Metodologia fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo. Metodologia aplicada em Oficina do Laboratório Urbano da UFBA, em 2011. Sinalização na Praia Do Uruaú – Beberibe (CE). Uma saída? Cegar com tapume. Brechando. 1 Cidade Alta: Praça André de Albuquerque (acima), Rua Vigário Bartolomeu (ao centro). Ribeira: Rua do Comércio, atual Rua Chile (abaixo). Vista área do bairro de Petrópolis, um dos bairros da Cidade Nova. Natal na Segunda Guera Mundial. A falta de iluminação no Beco da Lama – Cidade Alta. 110 Escutando lembranças. Ganhar corpo: Minha mochila pronta para ir a campo; & Personagens da 1ª visita. Lenilton e Marinalva, inicio de passeio. Lenilton criança.
37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70. 71. 72.
A casa de cascudo, Clima, Beco e Consulado. O Ateliê de Flávio Freitas e A entrevista com o artista. Cais da Tavares de Lira, Bistrozinho na Rua Chile e Seda polinizadora. Mercado do Peixe, Seu Perambuco, Jogo de cartas na rua e Marinaldo. Zumbar, Põr do sol na Rua da Misericórdia e Bar da Meladinha. Luiz Gadelha, entrevistado do 2º passeio. Início da caminhada; Sol na cara, Frontões com números romanos e Cerca no Terminal Marítimo de passageiros. Vista interrompida do rio, Bar Buraco da Catita. Personagens da 3ª visita de campo. Entrevistas no Sebo Balalaika; Fotografando; Movimentação em frente do sebo. Entrevista com Antônio Capistrano, Beco da Lama, Esquina do bar da meladinha e Sebos da Rua Vig. Bartolomeu. Despedida na sombra, calçada da Rua Vig. Bartolomeu. Convidando Juliana. Porta do Nalva Melo Café Salão; Letreiro Edifício Bila; Escadas Tribuna Rua de calçamento original; Atravessando a Av. Rio Branco; Bagunça em meio aos camelôs. Lambe. Quadro de referências. Ginga e tapioca de Seu Pernambuco, Canto do Mangue, Rocas. Beco da Quarentena, Ribeira. Deixando o caminhão passar. Eu e meus primos em Barra Bonita, SP. Travessa México, Ribeira. Calçada Av. Duque de Caxias, Ribeira. Estacionamento - Mirante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Parada de ônibus, Pç. Augusto Severo. Transporte ativo: caminhada. Lixo acumulado na rua, Ribeira. O comércio na Av. Rio Branco, Cidade Alta. Área residencial, Cidade Alta. Terminal de Passageiros da Ribeira, área de livre acesso ao transeunte. Fachada iluminada, Prefeitura de LED. A caminho do Beco da Lama. Bar da meladinha, Cidade Alta. Meladinha na mesa, Cidade Alta. A proximidade com o rio na rua em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Janela na Rua João da Matta.
73. Crianças brincando da Rua da Misericórdia, Cidade Alta
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A PÉ
74. .
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1. Janela. Acervo pessoal, 2015.
14
INTRODUÇÃO
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0. ANTES DE COMEÇAR,
LEIA-ME Antes de começar a explicar a origem e o
assim como funcionaram para mim no
desenvolvimento deste trabalho, gostaria
decorrer da escrita.
de alertá-lo para uma questão: ele tem uma personalidade narrativa, reflexiva e possui uma objetividade um tanto quanto diferente.
Você vai perceber como as partes de conversa
e
de
conceituação
se
identificam no momento em que iniciar a leitura, ou ao ver a divisão do trabalho no
Permanece
sendo
acadêmico,
o
um
da
introdução.
Mas
também
procurei destacar as informações mais
graduação. Mas em alguns momentos
objetivas de uma forma diferente no
existirão espaços, assim como esse, em
texto, e ao final de cada capítulo você vai
que eu me dirijo diretamente a você, o
encontrar uma síntese do que foi
leitor. Aqui o texto correrá mais leve, são
abordado.
espaços
de
da
final
minha
nossos
último
trabalho
conversa.
A
objetividade não é o propósito desses parágrafos, mas eles funcionarão como uma
quebra,
cafezinho.
No
uma
pausa
entanto,
para são
o tão
importantes quanto os capítulos teóricos repletos de referências e conceitos, afinal trazem as minhas vivências e reflexões sobre o tema. Espero que eles funcionem para você como um respiro, um alívio,
A introdução a seguir explica a lógica do meu pensamento e o que esse trabalho significa para mim. Como eu disse é um momento de conversa e é um pouco mais longa do que uma introdução usual, mas eu sei que ao terminar de ler as próximas páginas certamente farão mais sentido para você.
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A PÉ
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INTRODUÇÃO
2. Minha carteira de motorista e o carro na garagem de casa. Acervo pessoal, 2015.
INTRODUÇÃO Eu tenho 24 anos de idade, e como é de praxe aqui no Brasil, tenho carteira de motorista desde os 18. Meu pai é meu maior incentivador quando o assunto é carro ou direção. No entanto, por problemas pessoais e traumas da vida, eu não dirijo. E depender de um pai motorista, ou de caronas amigas que me socorrem até hoje, sem nem entrar na discussão quando o assunto é transporte público, já me incomodava bastante antes mesmo de viver um ano fora do país. Eu, mesmo como estudante de Arquitetura e Urbanismo, costumava achar pura utopia algumas discussões sobre mobilidade urbana que surgiam com frequência em sala de aula. Foi preciso ver de perto para acreditar que muito podia ser feito para melhorar a relação do pedestre com a cidade. Vivi por um ano em Valencia, na Espanha, e por lá eu não precisava de uma carteira de motorista para me locomover, uma vez que carro e estudante de intercâmbio normalmente não aparecem juntos na mesma frase. O transporte público era incrível, mas mesmo assim, caminhávamos bastante. Andávamos por calçadas enormes, regularizadas, acessíveis, com espaço suficiente para ciclovia, vegetação de grande porte e equipamentos de transporte público. E mesmo nas vielas apertadas e irregulares do centro, de fato existia um acordo entre motoristas e pedestres: quem estava a pé tinha sempre a prioridade. Acho que o sentimento de empolgação que o intercâmbio causa, com toda aquela sede por conhecer o novo e experimentar sempre o máximo possível, ajudou na minha relação com a cidade. Eu sentia prazer em descobri-la, desejava conhecer suas tradições e histórias, procurava cada dia encontrar um caminho novo. E Valencia se mantinha disposta a me guiar, a me proporcionar novas experiências. Por mais que minha empolgação fosse a energia que impulsionava a me lançar pelas ruas da cidade, ela, tão própria de si, dividida entre os tempos medievais das torres que ainda guardam o centro
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e o futuro construído da cidade de Calatrava, me proporcionava uma vivência incrível nas ruas. Voltar para Natal e sentir que a realidade daqui continuava a mesma, estagnada no modelo de planejamento das cidades que ainda valoriza o carro, me atingiu logo na primeira semana. Senti que estava “presa”, sem a mesma liberdade, submissa a disponibilidade de ter um carro para realizar boa parte das minhas atividades diárias. Foi nessa mesma época em que precisei definir o tema do meu Trabalho Final de Graduação (TFG). Este mesmo o qual você está lendo agora. E a frustração de me sentir limitada ao convívio urbano me fez refletir sobre alguns aspectos. Eu queria entender como funcionava esse modo de pensar as cidades direcionadas para quem dirige. E de certa
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forma como isso interferia nos espaços que eu frequentava, nos caminhos que eu fazia, assim como nos lugares que eu não conhecia e nas experiências que eu deixava de vivenciar na minha própria cidade. Ainda refletindo sobre esses aspectos pertinentes a temática do TFG, uma lembrança das aulas na universidade espanhola me veio à mente. A disciplina era Fotografia. Erámos apenas três desgarradas de arquitetura em meio a várias pessoas de comunicação, design e publicidade. Lembro de uma aula em especial na qual o professor pediu que levássemos algumas fotografias de nossa autoria. Ele abria cada pasta de arquivos e fazia comentários em frente à classe. Minha colega de arquitetura levou uma coleção de suas fotos preferidas da cidade, dessas que todo arquiteto já fez. As belas casas de Barcelona; esquadrias antigas; pontes e paisagens repletas de construções. O professor elogiou as fotos, estavam corretas. Mas atentou para algo que faltava. “Personas” ele disse. Fiquei com aquilo na cabeça, será que é assim que nós, estudantes de arquitetura, vemos a cidade? Focamos nas construções, nos projetos, em detalhes e ideias de mobiliário, até reclamamos quando alguém “atrapalha” a foto do edifício que tanto queremos registrar. Mas, e a pessoa? Aquela que está além do usuário, como nós a vemos? A consideramos? Pensando nisso, decidi
INTRODUÇÃO
que queria estudar um pouco melhor essas figuras, aqueles para quem deveríamos projetar, aqueles que afetamos todos os dias com nossas decisões. Voltando a atenção para o espaço público, o pedestre seria então esse personagem a ser investigado. O pedestre e o caminhar na cidade, dessa forma, claramente já faziam parte deste trabalho, mas eu sentia que o “todo” ainda não estava definido, faltava “dar a liga”, como vovó costuma dizer quando a massa do pão ainda não está no ponto certo de ir ao forno. Sendo bem sincera, eu sempre tive medo de um trabalho de natureza analítica. Quem me conhece sabe que eu curto muito mais a beleza das imagens do que a poética das palavras. No entanto, as temáticas que me vinham a cabeça indicavam um trabalho um tanto quanto teórico, e como uma “desculpa” para me incentivar a acreditar no potencial daquilo em que eu não estava acostumada, tentei aproximá-lo de algo que eu me identifico bastante, e que consegue ao mesmo tempo ser imagético e textual: a narrativa. Não que eu seja adepta das grandes e intermináveis conversas, mas a narrativa está muito presente em uma outra parte da minha vida: o teatro. No teatro somos educados a contar histórias, as vezes até narramos experiências próprias em cena e é notável como o público reage diferente. A narrativa proporciona esse sentimento de reconhecimento e naturalmente desperta o interesse do outro. O espaço de ensaio do grupo de teatro é para mim um espaço narrativo por natureza. Em uma das minhas narrativas diárias sobre minha confusão de ideias para o TFG um dos meus diretores sugeriu que eu buscasse na literatura um personagem de Charles Baudelaire: o flâneur. O flâneur é um andarilho apaixonado pelo caminhar na cidade, que experimenta a rua e a sente como sua própria casa. Entendo que a narrativa está diretamente associada a experiência. E os escritos sobre o
flâneur são exemplos de narrativas da experiência de um personagem que caminha na
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A PÉ
cidade. Se eu desejava pesquisar sobre pedestre e cidade, e queria que a narrativa estivesse inserida, a questão da experiência chegou para dar liga ao que faltava. Mas experiência urbana se tratava de um assunto que eu não tinha domínio e que só entendia empiricamente por ser próximo do que eu conhecia, mesmo não tendo estudado a fundo durante o curso, por apreensão da cidade ou então relação entre pedestre e meio urbano. E por mais que eu ainda não tenha encontrado uma definição objetiva para o conceito de experiência na cidade, entendo que isso acontece por se tratar de um assunto de percepção sensível. A experiência é particular a cada indivíduo, mas a vejo como parte de uma (re)descoberta das cidades e daquela sensação agradável que eu costumava ter quando
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saia sem rumo por Valencia, à procura de nada em específico, só com vontade de sentir e de me sentir em contato com a rua. Em busca de material teórico e metodológico que me contaminasse com o tema, e que me desse um rumo para a real definição dos meus objetivos deste trabalho, comecei uma leitura dedicada aos estudos do Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, e dos textos de sua coordenadora, Paola Berenstein Jacques, em particular seu livro: Elogio aos errantes de 2012. Foi interessante reconhecer alguns assuntos e autores conhecidos meus. O Flâneur;
Charles Baudelaire e Walter Benjamin são exemplos. Mas a bagagem nova era muito maior. Fui estimulada a voltar a ler sobre o contexto histórico do início do século XX, durante o processo de modernização das cidades, associada a chegada do automóvel nas metrópoles, quando as grandes transformações urbanas modificaram a vida cotidiana e marcaram o momento em que o pedestre começa a se afastar da rua.
3. Meus tênis preferidos depois de algumas caminhadas em Valencia . Acervo pessoal, 2013.
INTRODUÇÃO
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A PÉ
Também pude entender um processo que interfere diretamente na experiência sensível no pedestre no espaço público: o processo de espetacularização das cidades que está relacionado a homogeneização e banalização da produção do espaço em decorrência do sistema capitalista. Estive em contato com pesquisas que buscam encontrar metodologias de apreensão urbana as quais quase sempre incluem o corpo do pesquisador no processo de investigação, e descobri possíveis produtos que ajudem a reconstruir a relação sensível do pedestre com a cidade, através, por exemplo, da narrativa e do caminhar. A partir desse processo de apropriação teórica, pude definir como a minha pesquisa se organizaria. Em síntese, este trabalho se trata de uma investigação crítico-reflexiva dos processos urbanos que interferiram e seguem interferindo na relação entre o homem e
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cidade, com enfoque na experiência sensível do pedestre no meio urbano. Busca-se através do olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, a elaboração de um produto que consiga incitar uma reflexão acerca de como vivenciamos e experienciamos nossas cidades, e quem sabe provocar uma nova maneira de enxergar lugares que normalmente não visitamos e até mesmo (re)descobrir antigos ou novos caminhos pelos quais ainda não havíamos caminhado. Dentre os fatores que justificam esta pesquisa, lista-se primeiramente a minha frustração quanto às condições de mobilidade urbana da cidade de Natal, assunto amplamente discutido em meios acadêmicos e sociais. No entanto, atento, aqui, para um aspecto em específico: aqui o foco acontece no pedestre e na sua relação com a rua e os espaços públicos da cidade. Natal se encontra inserida em uma lógica de planejamento urbana que privilegia o carro, em detrimento daqueles que caminham na cidade, afetando diretamente nas relações sensíveis entre a rua e o pedestre. Atualmente, percebo um esforço em discutir e repensar a cidade em pequena escala. Presenciamos projetos urbanos que privilegiam o pedestre, o ciclista e o transporte público, e que investem na melhoria da urbanidade em cidades do mundo todo, incluindo a própria Natal que recentemente viu algumas de suas principais avenidas destinarem espaço exclusivo para
INTRODUÇÃO
ônibus e ciclistas. Ademais, ainda dentro dessa nova lógica que se busca criar, também entendo como justificativa a necessidade de discussão e reflexão sobre processos que interferem na experiência do pedestre na cidade de Natal, a exemplo do processo de espetacularização das cidades. É importante entendermos o porquê do afastamento do pedestre das ruas e como isso afeta no nosso sentimento de pertencimento na cidade. A experiência apropriada pode ser uma grande aliada a uma reaproximação do pedestre com os espaços públicos e à (re)descoberta das ruas. O universo de estudo escolhido para a pesquisa é o centro histórico da cidade de Natal, compreendido entre os bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas. A decisão pesa tanto pelos aspectos históricos quanto por anseios pessoais. A importância da produção de trabalhos que envolvam o universo de estudo contemplado, devido ao seu notório reconhecimento e importância histórica e cultural para a cidade, também se configura como justificativa da pesquisa. O centro histórico de Natal foi tombado pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - como Patrimônio Histórico e Cultural em 2010. Natal nasceu ali e por isso certamente é uma região repleta de memórias e narrativas que me interessam. Também segue preservando o traçado das vias inicialmente pensado para atender aqueles que andavam e se locomoviam lentamente pela cidade, o que me parece um universo de estudo ainda mais convidativo quando se busca a provocação da relação entre pedestre e meio urbano. Mas também muito me interessa por ser uma região desconhecida e alheia ao meu cotidiano. Vivo em Natal há dez anos e foram poucas as vezes que adentrei e me aventurei a conhecer as zonas menos iluminadas do centro. Conheço aquilo que todos conhecem; aquilo que aparece nos folhetos; que estão nas propagandas da prefeitura; os grandes marcos; onde as festas geralmente acontecem e os edifícios que todo estudante de arquitetura por obrigação deve saber identificar. Mas não sei dos espaços de criatividade,
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4. A comunidade do Solar & Os portões do MAM. Salvador, BA. Igor Queiroz, 2015.
dos becos, dos desvios, dos atalhos. Não vivenciei ali aquele tipo de lugar em que depois que você conhece, conversa e se apropria, sente que passa a fazer parte e fica à vontade. Parece que são lugares capazes de transformar o olhar e a forma de se portar e de se reconhecer na cidade. Cada um de nós certamente tem um lugar desse guardado nas lembranças, algum lugar de reconhecimento e importância particular. Me vem à memória o restaurante de Dona Suzana, lá na Favela do Solar, em Salvador. Era sábado, eu acho, julho de 2013, provavelmente meu último dia em terras baianas. Igor, um irmão amarelo que a Bahia me deu, mora no alto da ladeira dos aflitos, pertinho do Solar do Unhão e ele disse que precisava me levar para conhecer um lugar especial. Era quase a hora do almoço quando
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descemos em direção ao Solar, que fica ali no MAM - Museu de Arte Moderna da Bahia, em frente àquela baía linda de todos os santos. Igor é apaixonado por mar, ele certamente ia se encantar por uma comunidade que tem os pés na areia e é cercada de prainhas próprias. A Comunidade do Solar, como os moradores se identificam, fica ao lado do MAM, abaixo da avenida Lafayete Coutinho, esse tipo de avenida de trânsito rápido que contorna o litoral. Quem olha o mar de dentro do carro quando passa rápido por ali não consegue ver a favela. Mas quando você desce uma ladeirinha, ao lado da estrutura que sustenta a via já dá para ir sentindo a ambiência do local. Grafites colorem o caminho todo, tanto nas estruturas, quanto nas ruas estreitas e nas casas, tudo tem cor. A rua fazia parte do MUSAS - Museu de Street Arte de Salvador, e o MUSAS fazia parte da rua. Virando à direita em uma ladeirinha, chegamos à casa de Dona Suzana, onde ela serve feijoada com guaraná. O quintal onde o restaurante se estabelece é uma grande janela da comunidade para o mar. Lembro que de lá a gente conseguia ver as crianças brincando na praia e os barquinhos ancorados na areia.
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INTRODUÇÃO
5. Maria Chiara e D. Suzana (acima), A mesa do Restaurante (abaixo). Igor Queiros, 2013.
Esse foi um dos melhores dias em Salvador, me senti, mesmo que só por um almoço, pertencente àquele espaço. E posso afirmar que aquela feijoada com pimenta no quintal de uma comunidade fez muito mais sentido para mim enquanto experiência na cidade do que as visitas ao Pelourinho ou ao Elevador Lacerda. É o tipo de vivência que dá vontade de narrar. E são esses espaços e essas histórias que eu procuro encontrar e vivenciar nesse trabalho. A apropriação do espaço faz parte da metodologia da pesquisa assim como a apropriação dos conceitos teóricos mencionados anteriormente, e ela se dá através de visitas acompanhadas à campo. Fazer corpo, ganhar corpo, dar corpo: são, em ordem de acontecimentos, as etapas do processo metodológico. “Fazer corpo” equivale-se do lançarse a campo, deixar-se impregnar pela ambiência do espaço, é o momento da caminhada e da narrativa. “Ganhar corpo” é o tempo de apropriação consciente das experiências, de análise do que foi empregado. E “Dar corpo” é a tradução da experiência apropriada em uma outra linguagem, em uma narrativa. Essa metodologia foi adotada a partir dos resultados da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI”, coordenada pela socióloga francesa Rachel Thomas em 2009, e das experiências metodológicas do Laboratório Urbano da UFBA. O passeio acompanhado, proposto por Marta Dischinger (2000) e as provocações sugeridas por Kevin Lynch (1960) na elaboração de mapas mentais foram outros processos metodológicos que fizeram parte da construção da primeira parte do processo de investigação em campo, o “fazer corpo”. A construção de uma narrativa de apropriação do espaço urbano, baseada no olhar, nas experiências e lembranças de quem anda e vive na cidade foi o caminho encontrado para o produto final desse trabalho. Afim de ilustrar tal reflexão, uma micro-resistência urbana em forma de intervenção artística critica na cidade compõe a conclusão final de ideias. Para a inspiração criativa de tal intervenção, fez-se uso da sinalização voltada ao pedestre devido ao seu caráter direcionador comum ao ambiente urbano, no entanto, como microresistência sua natureza será voltada por um caminho essencialmente alheio a esse.
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A PÉ
Busca-se a desorientação como uma aliada à descoberta e à (re)descoberta de uma outra cidade, como uma porta de acesso às experiências e aos lugares narrados nas visitas acompanhadas à campo. Resgatando todas as etapas do processo de forma objetiva: Minha motivação inicial surge de uma frustação pessoal em função dos problemas de mobilidade da cidade. Assim, o pedestre e o caminhar são elementos motivadores da pesquisa. A narrativa foi apropriada a partir do desejo de suavizar a natureza analítica do trabalho, e essencialmente, funciona como um canal de transmissão da experiência, que passa a ser o elemento central da pesquisa, a “liga”. Dessa forma, a temática é entendida como: A experiência sensível do pedestre na cidade, e o universo de estudo escolhido é o centro histórico da cidade de
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Natal, devido a sua importância histórica e por aspirações pessoais. A metodologia de pesquisa acontece por apropriação teórica e presencial, em busca de narrativas de experiências na cidade, tendo como base os seguintes autores: Walter Benjamin (1984), Paola Jaques Berenstein (2012), Rachel Thomas (2009), Kevin Lynch (1960) e Marta Dischinger (2000). O produto final acontece por meio de uma narrativa de apropriação das experiências daqueles que caminham na cidade e se vale de uma micro-resistência urbana como componente ilustrativo da reflexão final. Dessa forma, as etapas do trabalho encontram-se organizadas em quatro capítulos: começo com uma retomada da história do automóvel inserido na maneira de se pensar as cidades em resposta a minha frustração pessoal e motivação inicial (1º capítulo); procuro entender os processos que interferem na experiência sensível do pedestre na cidade através de um referencial teórico-metodológico (2º capítulo); em seguida descrevo a metodologia aplicada através da apresentação do universo de estudo e dos resultados das visitas acompanhadas à campo (3º capítulo); para, enfim, apresentar a narrativa final de apropriação de todo o processo (4º capítulo). Cada capítulo é iniciado através de um prólogo, um espaço de narrativa pessoal que introduz o assunto abordado em seguida. No antigo teatro grego, o prólogo era a primeira parte da tragédia, acontecia em forma de
INTRODUÇÃO
diálogo entre personagens ou através de monólogo, na qual se fazia a exposição do tema da peça. Aqui o prólogo funciona da mesma maneira, e por isso é muito importante para a total compreensão da essência do capítulo.
QUESTÃO DA PESQUISA E OBJETIVOS Questão da pesquisa Como a lógica do planejamento das cidades, que historicamente privilegiou a grande e a média escala, interfere na experiência sensível do pedestre na cidade de Natal? Mais precisamente em seu centro histórico? Objetivo Geral Provocar a experiência urbana através de uma narrativa crítico-reflexiva, baseada na discussão da lógica do planejamento das cidades e em sua interferência na experiência sensível do pedestre no centro histórico de Natal. Objetivos Específicos Discutir a lógica do planejamento das cidades, que historicamente privilegiou a grande e a média escala em detrimento da escala do pedestre; Entender os processos urbanos que interferem na experiência sensível do pedestre na cidade; Identificar criticamente os efeitos desses processos no centro histórico de Natal e as possíveis reações; Construir uma narrativa de apropriação do espaço urbano a partir do olhar e da experiência de quem anda e vive na cidade, ilustrada por uma micro-resistência urbana em forma de intervenção artística crítica na cidade.
30
A PÉ
31
32
A PÉ
33
CAPÍTULO UM
6. Carol assustada. Acervo pessoal, 2015.
1.1 PRÓLOGO
CAROL 01 de setembro de 2015. Desde
março
na
Como é de praxe nos primeiros dias de
Superintendência de Infraestrutura da
todo estagiário, nós, os veteranos da
UFRN,
Campus
casa, ficamos responsáveis por explicar o
Universitário. Somos 6 bolsistas ao todo.
funcionamento de tudo. Localização dos
Grupo no WhatsApp; fofocas internas;
arquivos, logins, senhas, impressoras.
aqui
mesmo,
estagio
no
playlists só nossas. O ambiente de trabalho desde sempre foi ótimo.
“Olha, ali é o banheiro e ali em baixo tem chá e café”.
Hoje foi o primeiro dia de uma nova estagiária aqui no trabalho. Carol veio ocupar o lugar de um bolsista que se formou e que já não podia mais trabalhar aqui.
Depois das formalidades, partimos para as tradições. Já é costume: todos os dias paramos por volta das dez. Um sempre lembra o outro quando a fome começa a apertar e diariamente saímos juntos para
Baixinha assim como eu, só que mais
disfrutar da nossa happy hour matinal: o
nova, Carol tem 22 anos, pele clara,
lanche.
cabelos longos. Chegou cedo, cumpriu o horário como toda boa nova estagiária deve fazer, se apresentou ao chefe e ocupou sua mesa. Ela tem carro próprio, veio dirigindo para o trabalho.
Carol veio com a gente. Enquanto saíamos do prédio em direção à rua, ela parecia estranhar o caminho e não entender muito bem o nosso provável destino.
34
A PÉ
“Gente, onde é a lanchonete? ”. Um de nós apontou para um edifício a uns 300 metros de distância, no final de uma ladeira.
Google, eu conferi. E o trajeto é distribuído em uma distância menor do que 400 metros. Nossas caras de indignação com os hábitos de Carol fizeram com que ela tentasse se justificar.
“Ali embaixo, ó.” “Eu não era assim, juro. Acontece que “Nossa. (Pausa). Por que tão longe? ”.
depois que eu comecei a dirigir, uso o
Nos entreolhamos e rimos.
carro pra tudo! ”
“Sério, Carol? Parece longe pra você? ”.
Claro. Dá para entender, Carol. Afinal, não é só você.
35
A surpresa com a “longa distância” gerou uma discussão sobre o que normalmente
Carol não é uma estagiária fictícia que eu
fazíamos caminhando dentro do próprio
inventei para iniciar o capítulo. Carol
Campus e de como nos acostumamos a
realmente existe e certamente como ela
vencer essas distâncias a pé. Eis que, por
existem outras e outros dependentes
mais uma vez, fomos surpreendidos com
desse
uma afirmação de Carol:
vivemos,
sistema
motorizado
acostumados
em
que
desde
que
nasceram a conviver com a cultura do “Gente, eu sempre vou lá da Arquitetura para a Biblioteca de carro ”.
culto ao carro, com a facilidade de se deslocar por aí sobre rodas e com
Mais uma pausa em busca do olhar
experiências
vivenciadas
através
da
assustado do outro.
janela do passageiro.
Isso porquê, quem conhece o Campus
Diante dos empecilhos que encontramos
Universitário sabe que a caminhada dos
nas cidades brasileiras para aqueles que
Laboratórios de Arquitetura com destino
ainda se “aventuram” a caminhar, é até
a Biblioteca Central dura em média 5
compreensível entender os hábitos de
minutos, 3 minutos de acordo com o
Carol e sua dependência em dirigir. É
CAPÍTULO UM
fácil entender que ela é fruto de uma
Dia após dia, as calçadas foram se
sociedade que patrocina, incentiva e
esvaziando de gente e dando espaço para
direciona sua infraestrutura ao uso de
as ruas se encherem de carros. O espaço
veículos motorizados. O problema, ou
antes destinado ao pedestre tornou-se
parte dele, é como as cidades em que
sujo,
vivemos ainda são estruturadas sobre
paulatinamente foi perdendo a atenção
rodas,
daqueles que são responsáveis por
como
são
frequentemente
analisadas de cima, e como nos parece comum seguir repetindo os mesmos costumes, os mesmos padrões.
inseguro,
desagradável,
e
projetar e gerir a cidade. A seguir, em “Contribuições históricas para a era do automóvel”, procuro
Desde o início do século XX, “as
relembrar, através de fragmentos da
metrópoles brasileiras passaram por
história do automóvel e da história do
grandes transformações, em especial
urbanismo, as motivações e possíveis
aquelas decorrentes do advento do
justificativas que nos trouxeram para a
automóvel. De tal forma que, a partir de
atual era do automóvel, afim de entender
certo momento, obra pública passou a
a maneira como isso afeta o nosso hábito
ser
de caminhar e experimentar a cidade.
um
quase-sinônimo
de
obra
rodoviária” (Rio Cidade, 1996, p.24).
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A PÉ
37
CAPÍTULO UM
7. Os Boulevards : As grandes avenidas de Haussmann. Disponível em: http://goo.gl/5ApBoI
1.2 CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS PARA
A ERA DO AUTOMÓVEL Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história depressa muda mais que um coração infiel); Paris muda! Mas nada em minha nostalgia mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria. E essas lembranças pesam mais do que rochedos (...). (BAUDELAIRE, 1985, p. 327)
Charles Baudelaire (1821-1867), poeta contemporâneo das reformas urbanas do Barão de Haussman1 da Paris do século XIX, descreve e lamenta em seus poemas as drásticas transformações que ocorriam na cidade. O poeta retratou o desaparecimento de uma certa Paris por onde costumava perambular, uma vez que o espaço da rua passou a ser projetado para acolher o trânsito crescente de veículos, colocando o pedestre em segundo plano. As ruas deixam de ser estreitas para que por elas se estreitem as diferenças entre as classes. O plano urbanístico de Haussmann alarga o espaço para que nele estampe a diferença de tempos de seus habitantes. Pelas avenidas e pelos boulevards, o passante já não é um transeunte: é a parcela anônima, quase sempre indistinta, da multidão (LIMA, 1980 p. 110).
Esta modernização transformou profundamente não só os lugares, mas também as pessoas e suas relações com a cidade. As reformas urbanísticas de Haussmann removeram do centro a população pobre, empurrando-a para os bairros periféricos. Além da substituição da vizinhança, a experiência do caminhar, desprevenido e aleatório, era agora interrompida e incomodada pela preocupação com o automóvel, e a atenção, antes
1 Entre 1853 e 1870, durante o império de Napoleão III, o barão George Eugène Haussmann, prefeito de Paris na época, realizou grandes reformas urbanas na capital francesa.
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A PÉ
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CAPÍTULO UM
8. Antes e depois: Rua du Vieux-Colombier & Igreja de St-Sulpice (acima). Rua Réaumur , Paris (abaixo). Disponível em: http://goo.gl/5ApBoI
despreocupada, do passante, “voltou-se para as novas exigências do caminhar nas ruas, como os sinais de trânsito, a busca das travessias de pedestres” (FREITAS, p. 06, 2011). A modernidade dava direito, então, àqueles que podiam usufruir e pagar pela evolução. Não demorou muito para que a modernidade e sua amiga, a evolução motorizada, desembarcassem em terras tupiniquins. Trazido por Santos Dumont diretamente de Paris, em 1881, chega ao porto de Santos o primeiro carro motorizado. A disseminação do uso dos carros nas cidades alterava quase que “naturalmente” a forma do espaço urbano, segundo Larica (2003) apud Leite (2006, p. 54), “o aumento das distâncias proporcionadas pelo automóvel expandiu o raio de ocupação de áreas metropolitanas em mais de 40 quilômetros alterando assim a forma da cidade“. O automóvel, nesta época, era sinônimo de modernidade e a expansão das cidades deveria acompanhar o ritmo, agora compassado a motor, capaz de alcançar altas velocidades. E, subitamente, é a Era do Automóvel. O monstro transformador irrompeu, bufando, por entre os escombros da cidade velha, e como nas mágicas e na natureza, aspérrima educadora, tudo transformou com aparências e novas aspirações. Quando os meus olhos se abriram para as agruras e também para os prazeres da vida, a cidade, toda estreita e toda de mau piso, eriçava o pedregulho contra o animal de lenda, que acabava de ser inventado em França (RIO, 1911, apud CARUSO, 2010, p. 41).
João do Rio, pseudônimo do cronista carioca Paulo Barreto (1881 - 1921), descrevia, nos jornais da época, as transformações urbanas que Pereira Passos2, o “Haussman tropical”, realizou no Rio de Janeiro entre 1902 e 1904, e que ficaram conhecidas como o BotaAbaixo do centro. Seguindo a lógica parisiense, um dos principais objetivos do plano de melhoramentos de Pereira Passos, apontados por Alfredo Rangel em 1904, era “dar mais
2
Francisco Franco Pereira Passos foi um engenheiro e político brasileiro. Foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906.
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A PÉ
9. Avenida central: Demolições para a construção da avenida 1904 1905 (acima) Kok, 2005, apud LIMA, 2008. Traçado, sobre os quarteirões coloniais (ao centro) PCRJ/IPP/RioArte, 2002, apud LIMA, 2008. Lado do Oeste entre rua São José e rua 7 de setembro, 1903 (abaixo). Disponível em: http://goo.gl/JZjL0r
franqueza ao tráfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituição das nossas mais ignóbeis vielas por ruas largas arborizadas” (RANGEL apud JAQUES, 2012a, p. 31). O cronista analisava o impacto do automóvel na sensibilidade do cotidiano do homem carioca da época. Conta que a noção de mundo era inteiramente outra, a escala da cidade foi bruscamente ampliada enquanto a paisagem, as árvores e “os trechos bonitos de natureza” morriam para dar passagem ao automóvel. João do Rio pintava um cenário que viria a ser um dos mais emblemáticos do processo de modernização das cidades brasileiras do início do século XX. E não somente por marcar um momento de grande transformação física da cidade, mas também por tematizar o ritmo acelerado da vida presente, marcada agora pela necessidade de crescimento, modernização e pressa.
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“Por muitas décadas, o carro foi apenas objeto de uso exclusivo da classe brasileira com maior poder econômico, sendo praticamente inacessível para um trabalhador da época” (LEITE, 2006 apud BASTOS, 2012, p. 107). A burguesia, com seu poder de compra e de influência sobre o Estado, ajudou a criar o monopólio de uma classe sobre o espaço e sobre o processo de urbanização das cidades brasileiras. A contribuição do Estado vem através de políticas governamentais ao longo de décadas, com incentivos ao desenvolvimento das indústrias automobilísticas; no espaço urbano a atuação deste se direciona para a implementação de uma série de infraestruturas voltadas para o melhor deslocamento de uma classe privilegiada, mas minoritária dentro do sistema viário (BASTOS, 2012, p. 111).
A década de 1950 é um exemplo claro da valorização à cultura do automóvel no país. O presidente Juscelino Kubitschek, que governou o Brasil entre 1956 e 1961, “empolgou o país com seu slogan "Cinquenta anos em cinco", e conseguiu encetar um processo de rápida industrialização, tendo como carro-chefe a indústria automobilística” (MACEDO, 2009, p. 88).
CAPÍTULO UM
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A PÉ
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JK promoveu a implantação da indústria automobilística com a vinda de fábricas de automóveis para o Brasil. Em 1959, a Volkswagen foi a primeira indústria estrangeira a inaugurar uma fábrica do ramo em solos brasileiros, certamente um empreendimento seguro uma vez que o governo se empenhava em contribuir para a expansão do setor. O Estado promoveu a abertura de “rodovias transregionais que uniram todas as regiões do Brasil (...) e aumentou a produção de petróleo da Petrobrás” (BELLINI, 2012, p. 10). Carros, vias e combustível não iriam faltar. Dando continuidade aos trabalhos, durante o governo militar o Estado adotou o projeto rodoviarista como “escolha econômica nacional, sendo este modelo o fruto de uma relação intimamente costurada entre o governo e a indústria automobilística sempre em constante ascensão” (COSTA, 2014, p. 43). Quando o governo militar escolheu este tipo de transporte como vetor para o avanço tecnológico, foco de investimentos e trazendo o consequente desenvolvimento econômico, abriu portas também para a industrialização automobilística no sentido do consumo, de onde decorrerá a popularização do automóvel e, consequentemente, cujo problema com a
CAPÍTULO UM
10. Inauguração da General Motors em São José dos Campos (SP), em 1959, com a presença do então presidente Juscelino Kubitscheck. Disponível em: http://goo.gl/DWJ5n4
mobilidade urbana no Brasil é, também (não apenas), uma consequência desta escolha (idem).
O “sucesso” da escolha rodoviarista como principal sistema de transporte nacional colhe frutos e números impressionantes até os dias de hoje. Até a atual “crise financeira” de 2015, a indústria automobilística nacional apresentava “crescimento ininterrupto, em produção, expansão e faturamento” (ibidem, p. 45). Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013, 54% dos domicílios no Brasil possuíam carro ou motocicleta disponíveis para o deslocamento dos moradores e a frota de automóveis e motocicletas apresentou crescimento de até 400% nos últimos dez anos. No entanto, “o modelo rodoviarista hoje esbarra, principalmente, em uma crescente conscientização sobre a necessidade de desincentivo ao uso do automóvel e a priorização das políticas de mobilidade urbana” (COSTA, 2014, p. 46). Discutimos, já há algum tempo, questões como a reformulação do sistema de transporte público; o incentivo a um desenho urbano que encoraje a caminhada e o ciclismo, provocando “mais oportunidades de interação social, bem como uma melhor sensação de segurança pública, uma vez que se estabelece melhor o senso de comunidade” (LEITE, 2012, p. 145); bem como a criação de “novos modelos de cidades, que rompem com a lógica racionalista da vida urbana” (COSTA, 2014, p. 46). Apesar de todos os esforços que o próprio governo tem feito na medida em que cria leis, estatutos e diretrizes para constituir base para um sistema menos caótico e mais sustentável de mobilidade urbana, nos últimos anos o que é possível identificar é a existência, ainda, de uma prioridade pela manutenção do modelo rodoviarista (idem).
Além disso, não podemos esquecer “que o automóvel é, antes de tudo, uma mercadoria (...) e possui papel fundamental na regulação da economia brasileira” (ibidem p. 48). No entanto, não cabe a esse estudo o aprofundamento de questões como consumismo e mercadoria; a manutenção do modelo rodoviarista brasileiro e de tantas outras em que no contexto é pertinente. Todavia, atenta-se para a complexidade desse sistema que soma o
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A PÉ
11. Plan Voisin : A cidade do futuro de Le Corbusier . Disponível em: http://goo.gl/JZjL0r
peso de decisões históricas, influências externas e de uma importante função na estrutura econômica e, porque não, cultural de um país. Sobretudo, o carro não é, sozinho, o grande vilão causador das transformações urbanas do Brasil e do mundo, mas certamente foi um importante direcionador dos investimentos de infraestrutura estatais uma vez que esteve presente em momentos marcantes da história do urbanismo moderno.
45
Podemos, a grosso modo, classificar o urbanismo moderno em três momentos distintos, que se sobrepõem: a modernização das cidades, de meados e final do século XIX até início do século XX; as vanguardas modernas e o movimento moderno (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos 1910-20 até 1959 (fim dos CIAMs); e o que chamamos de modernismo (ou moderno tardio), do pós-guerra até os anos 1970 (JAQUES, 2012a, p. 32).
O carro esteve presente no processo de transformação das antigas cidades, a exemplo de Paris e do Rio de Janeiro, por meio da substituição das “ruas estreitas labirínticas em grandes vias de circulação para automóveis, reduzindo assim as possibilidades da experiência corporal direta, através do andar pelas ruelas, e, indiretamente, as possibilidades de experiência da alteridade urbana” (ibidem, p.31). Também fez parte do movimento vanguardista moderno e das quatro funções da cidade moderna formuladas por Le Corbusier: habitar, trabalhar, recrear e circular. Circulação esta realizada através de um “um sistema viário que elege o automóvel como principal meio de locomoção no tecido urbano” (SILVA e ROMERO, 2011). Daí surge a necessidade de se projetar um complexo sistema de vias largas e retilíneas fundamentado na hierarquia, conforme a velocidade, a classificação e o volume de deslocamento. Desse modo, as pessoas são desestimuladas a caminharem ou a utilizarem meios alternativos de deslocamento, de exercício físico e de lazer esportivo (como a bicicleta ou a corrida), face à dispersão urbana e à
CAPÍTULO UM
necessidade de perfazerem longas viagens diárias entre o trabalho e o domicílio (idem).
No entanto, a questão do automóvel também foi incluída nas discussões do pós-guerra em que vários autores tiveram palavra ativa na crítica à Cidade Moderna. O “significado atribuído às ruas na constituição da vida nas cidades é, talvez, a mais relevante distinção entre a postura urbanística moderna e sua crítica pós-moderna” (Rio Cidade, 1996. p.24). Jane Jacobs, por meio de seu livro A Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas 3 de 1961, de fato foi pioneira em uma “pragmática, mas sociologicamente informada ‘apologia da rua’” (idem). A jornalista americana contestou os princípios da Carta de Atenas4 e reclamava a volta da ordem da cidade pela valorização do pedestre e da rua. No Brasil, Roberto da Mata (1978) esquadrinhou os significados sociais das categorias rua e casa, mas foi Carlos Nelson F. dos Santos (1981), pesquisando o bairro do Catumbi, quem observou que sob certas condições a rua pode virar casa. James Holston (1982) foi mais longe: comparando Brasília, Ouro Preto e Rio de Janeiro, dissecou em miúdos “a morte da rua” promovida pelo urbanismo modernista de matriz corbusiana” (Rio Cidade, 1996, p.24).
3 Título original: The Death and Life of Great American Cities 4 A Carta de Atenas é o manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado em Atenas em 1933. A carta define o conceito de urbanismo moderno, traçando diretrizes e fórmulas que, segundo os seus autores, seriam aplicáveis internacionalmente. Considerava a cidade como um organismo a ser concebido de modo funcional, na qual as necessidades do homem devem estar claramente colocadas e resolvidas.
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A PÉ
12. Proposta dos Irmão Krier, da escola de Bruxelas para a reconstrução de Stuttgard (1975). Disponível em: http://goo.gl/Cn0vAs
“Neste ambiente de crítica à Cidade Moderna, a recuperação do passado parece ter sido o assunto dominante, assim como os urbanistas seguintes voltaram a projetar ruas, quarteirões e praças” (CARVALHO, 2009, p. 58). Na Itália5 surgem produções que propõem a reabilitação das formas urbanas tradicionais; a escola de Bruxelas 6, por sua vez, sugere “uma batalha do regresso ao passado, repropondo os materiais tradicionais na construção, excluindo o automóvel, (...) numa utopia social que renuncia à industrialização” (ibidem, p. 58 e 59). Em síntese, o modo de pensar a cidade associado a crescente industrialização automobilística dos últimos séculos interferiu não somente nas modificações espaciais dos centros urbanos como também nas relações sociais. Apesar de um esforço crítico e do
47
surgimento projetos de valorização da rua, do pedestre e do ciclista, o que ainda se enxerga no cotidiano das cidades é que cada vez menos o espaço urbano permite o encontro das pessoas, do contato, da vivência, da interação social. Nossas relações espaciais e corporais, o modo como nos locomovemos, os lugares por onde andamos, são resultado de decisões históricas e uma pressão exercida pela Era do Automóvel em que, segundo Lefèbvre (2006), o Habitar é substituído pelo Circular, permitindo na cotidianidade cada vez mais a deterioração da vida urbana. Diante do que foi apresentado, levanta-se a seguinte questão: Como esse contexto de um urbanismo pensado durante muito tempo sob os padrões de modernização das cidades, interfere na nossa consciência de experimentação urbana e na nossa apreensão da cidade contemporânea?
5 As escolas de Milão e Veneza formaram o movimento La Tendenza, cujo pai é Giafranco Caniggia, destacam-se também outros arquitetos como Aldo Rossi, Aymonio, Grassi e Carasi. 6 Em Bruxelas a crítica ao movimento moderno era comandada por Maurice Culot, ou pelos irmãos Krier.
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A PÉ
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A PÉ
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CAPÍTULO DOIS
13. Igor e os vaga-lumes Acervo pessoal, 2015.
2.1 PRÓLOGO
VAGA-LUMES 20 de outubro de 2015. Igor é um pequeno grande amigo de
acabou por se tornar o principal ponto de
Salvador, dessas criaturas de luz e de arte
partida para a construção conceitual
que a gente esbarra no meio da vida. Seu
deste trabalho. Da última vez que visitei
apelido é Tatu. Desde que comecei a
Salvador ele me deu quatro revistas
construir esse TFG, converso com ele em
Redobra7, que, aliás, até hoje eu não
chamadas de vídeo via Skype. A internet
consegui terminar de ler mas que são
da casa do Tatu é muito ruim e a imagem
salva-vidas com milhões de textos e
frequentemente vai ficando cada vez
artigos que brotam por lá. Enfim, Igor é
mais borrada no decorrer da conversa,
daquele tipo de amigo inteligente que
mas nada que atrapalhe a santa-ajuda
você admira e tenta sugar ao máximo
que ele me dá.
todo conhecimento que pode, sabe? Ele
Tatu é aluno da Universidade Federal da Bahia, também estuda Arquitetura e
é
um
verdadeiro
co-orientador
a
distância.
Urbanismo e foi a partir dele que eu
Entre nossas conversas borradas via
comecei a ler sobre a experiência sensível
Skype, eu fazia inúmeras perguntas, e
do pedestre na cidade. A leitura de
entre as respostas que ele me dava
“Elogios
Paola
algumas muitas vinham acompanhadas
Berenstein Jacques, que inclusive é
de uma expressão de “hmm, como você
professora do Igor, foi indicação dele e
ainda não sabe disso?”, mas também
7
aos
Errantes”
de
REDOBRA é uma publicação semestral do projeto de pesquisa "Laboratório Urbano: Experiências metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea" [PRONEM Programa de Apoio a Núcleos Emergentes, edital FAPESB/CNPq 028/2010] desenvolvido pelo grupo de pesquisa Laboratório Urbano - PPG-AU/FAUFBA. REDOBRA integra a plataforma de ações CORPOCIDADE, realizada em parceria com o grupo de pesquisa LABZAT - PPG-Dança/UFBA.
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A PÉ
eram quase sempre seguidas de uma
saltimbanca me ajudou a iluminar boa
singela e educada pergunta: “Babina8,
parte do caminho desse trabalho.
querida, você conhece ‘Sobrevivência dos
Vagalumes’?
Acho
que
seria
interessante que você desse uma lida”. A sobrevivência dos vaga-lumes um livro recente (2011) e “fininho”, segundo Igor, de autoria de um filósofo e historiador francês. Eu fui adiando essa leitura até que as perguntas começaram a me
Georges Didi-Huberman é o autor de “Sobrevivência dos vaga-lumes” e espero que não me condenem por me referir a ele por Didi, aqui. Acho mais íntimo. Por que não praticar o coleguismo, não é mesmo? Ainda estamos no prólogo! E como narrativa pessoal, pelo menos nesse espacinho aqui, eu dito as regras.
incomodar e nem o Igor que era o Igor já
53
podia me responder. Tive que ler sozinha
Didi nos apresenta Pier Paolo Pasolini,
mesmo. Confesso que sua silhueta
Paolo então, se me permitem. Um jovem
“fininha” ajudou bastante em criar
de 19 anos que viria a se tornar um
coragem para a leitura.
conhecido cineasta e escritor italiano na maturidade, no entanto, não é preciso
E ainda bem que fiz isso.
nos estendermos muito, a história segue
Acho que já ia para além da metade
em sua juventude. Era 1941, cidade de
desse capítulo quando terminei de ler o
Bolonha, ao norte da Itália, Paolo escreve
livro, um fininho de 160 páginas um
uma carta a um amigo contando uma
tanto quanto densas. Confesso que fiquei
dessas aventuras por entre a natureza,
realmente muito empolgada, alguns
que são comuns à juventude.
conceitos e reflexões ficaram mais claros depois da leitura. Por isso, dedico esse prólogo aos vaga-lumes e a sua luz errante
8
que
mesmo
pequena
e
A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jantamos em Paderno e, em seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo dei Pino, vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes (abbiamo visto una
Babina é meu apelido, acho que ainda não me apresentei assim. Eu gosto. Parece único.
CAPÍTULO DOIS
quantità immensa di lucciole), que
claramente dois projetores muito distantes, muito ferozes, olhos mecânicos aos quais era impossível escapar (due riflettori lontanissimi
formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes (perché si
eferoci, occhi meccanici a cui non era dato sfuggire), e então fomos tomados
amavano, perché si cercavano con amorosi voli e luci), enquanto nós estávamos secos e éramos apenas machos numa vagabundagem artificial. (PASOLINI, 1940-1954, p. 36 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p.19).
pelo terror de sermos descobertos (PASOLINI, 1940-1954, p. 36 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p.21).
Os amigos decidiram passar a noite em meio a natureza, e quando o sol ia
Didi não nos deixa esquecer em que
nascendo no horizonte, Paolo conta que
momento
sua
se despiu e que dançou em honra a luz
mocidade. Aquele foi o ano em que a
que o aquecia naquela manhã fria no
Itália
de
norte da Itália. “Dançava como um
participação mais ativa na 2ª guerra
pirilampo, como um vaga-lume” (DIDI-
mundial. General; tropas; reconquista;
HUBERMAN, 2011, p.22), vivia esses
exército e frotas são palavras que o autor
“tais momentos de exceção em que os
usa para contextualizar a ambiência da
seres humanos se tornam vaga-lumes”
época. “Haveria, então, de um lado, os
(Ibidem, p.23).
Paolo
iniciava
disfrutava
uma
de
tentativa
projetores da propaganda aureolando o ditador fascista com uma luz ofuscante. Mas também os potentes projetores [...] perseguindo o inimigo nas trevas do céu” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.16). Luzes ferozes, como Paolo contou em sua carta.
Didi conta que exatos trinta e quatro anos, contados noite após noite, após escrever sua bela carta em que narrava a aparição
dos
vaga-lumes,
Pasolini
publicava “um artigo sobre a situação política de seu tempo, [...] com o título
Assim estávamos, naquela noite; escalamos em seguida os flancos das colinas, entre os arbustos que estavam mortos, e sua morte parecia viva; atravessamos pomares e bosques de cerejeiras carregadas de ginjas e chegamos ao cume. De lá, viam-se
que se tornou famoso: ‘O artigo dos vagalumes’” (ibidem, p.25): “O vaga-lume está morto, perdeu seus gestos e sua luz na
história
política
de
nosso
54
A PÉ
contemporâneo sombrio, que condena à
acreditavam que os vaga-lumes, ou que
morte sua inocência” (PASOLINI, 1975,
a nossa capacidade de nos tornar vaga-
apud HUBERMAN, 2011, p.24)
lume, teria desaparecido pelos ventos
Seu artigo era, na verdade, um lamento fúnebre pelo o que ele chamou de desaparecimento dos vaga-lumes, mas que muito tinha a ver com a perda desses “sinais humanos da inocência” (DIDIHUBERMAN, 2011, p.25) e com a nossa
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capacidade
sensível.
de
Pasolini
experiência falava
em
enfraquecimento cultural e em tragédia, culpava a modernidade e seu amigo consumismo por invadirem a cidade com a luz dos holofotes e dos projetores, capazes de ofuscar e afastar a beleza das pequenas luzes, dançantes e erráticas.
junto com a última leva de bichinhos brilhantes que se teve notícia. Giorgio Agamben, por exemplo, um dos filósofos mais inquietantes de nosso tempo, segundo Didi, é um desses pessimistas natos. Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo (AGAMBEN, 2005, original de 1978, apud, JACQUES, 2012a).
Acontece que mesmo com motivos para Não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram, com efeito. Não, os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos “ferozes” projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão (idem).
Acontece que Paolo não sentenciou essa tragédia
sozinho.
pessimistas 9
por
Outros
autores,
natureza,
também
ser pessimista, existem aqueles que vem no pessimismo a motivação para fazer diferente, para criar coragem e correr atrás do que parece estar perdido. Didi se apega aos pensamentos de Walter Benjamin9 que assim como ele não se contentava em aceitar a sentença de
Walter Benjamin (1892-1940), além de um inquietante filósofo alemão do início do século XX, também foi crítico literário, tradutor e sociólogo.
CAPÍTULO DOIS
coreografia, de uma invenção de formas (HUBERMAN, 2011, p. 127).
tragédia, e juntos eles me convenceram de que por mais defendida que fosse essa história de expropriação da experiência e
Assim como o pedido da urgência em se
desaparecimento
abrir olhos, outras provocações são feitas
dos
vaga-lumes, uma
nas páginas finais do livro. Por mais que
afirmação apocalíptica e assim como a
o valor da experiência tenha caído de
maioria das versões do fim do mundo,
cotação, “cabe somente a nós não
não passava de uma assustadora fantasia
apostarmos nesse mercado” (Ibidem, p.
em que não somos obrigados a acreditar.
126). Depende de nós não deixar que os
realmente
ela
se
tratava
de
vaga-lumes se deem por desaparecidos. Questionar pode ser o primeiro passo para a negação. Se não encontramos mais os vaga-lumes como se encontrava antigamente, ainda é possível acreditar que eles não tenham desaparecido, mas que talvez estejam escondidos, talvez ainda estejam acostumados a se proteger dos ferozes projetores das cidades. O que fazer então? Seria “necessário abrir os olhos
na
noite,
se
deslocar
sem
descanso, voltar a procurar os vagalumes”
(DIDI-HUBERMAN,
2011,
p.49). Somos “pobres em experiência”? Façamos dessa mesma pobreza - dessa semiescuridão - uma experiência. [...] O valor da experiência caiu de cotação, mas cabe so-mente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à “nova beleza” de uma
Nos tornemos vaga-lumes então, vamos organizar esse pessimismo. Busquemos por
essas
experiências
que
ainda
sobrevivem escondidas, mesmo que reduzidas
às
sobrevivências
e
aos
simples lampejos da noite. Afinal, como aprendi com esse livro fininho e um tanto denso: “a experiência é indestrutível”.
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A PÉ
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CAPÍTULO DOIS
2.2 EXPERIÊNCIA:
CHOQUE, ESPETÁCULO E NARRATIVA
Estudiosos, filósofos e poetas do final do século XIX já narravam em sua contemporaneidade a preocupação com a expropriação da experiência sensível na modernidade. Alguns sentenciaram o “desaparecimento dos vaga-lumes”, e anunciavam a tragédia em que o sensível estaria em vias de desaparecer. “Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno de ti e tomes consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras” (PASOLINI, 1975, apud HUBERMAN, 2011, p.30 - 31).
No entanto, essa visão apocalíptica foi questionada por tantos outros estudiosos, filósofos e poetas ao passar dos anos. Concordavam entre si que havia, sem dúvidas, motivos para ser pessimista, contudo atentavam para a organização desse pessimismo e provocavam uma postura questionadora e proativa. Afim de assumir essa postura que questiona, reflete e se apropria de conceitos e críticas com o intuito de construir uma nova provocação; em “Experiência: choque, espetáculo e narrativa”, prioriza-se, de antemão, o entendimento do contexto em que a discussão da experiência sensível está inserida. A história, contribuições de pesquisas acadêmicas e estudos práticos na cidade indicam caminhos que podem ser seguidos.
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2.2.1 CHOQUE Somente para um indivíduo insensível a experiência é carente de sentido e imaginação. (BENJAMIN, 1984, p. 24) Não é de hoje que se discute a perda da capacidade de experienciar do ser humano diante das transformações provindas da modernidade. Paola Berenstein Jacques10 em seu livro “Elogio aos errantes” apresenta um pouco do que já foi dito em relação ao empobrecimento e até mesmo a destruição dessa capacidade. A autora dá início com a abordagem de Walter Benjamin em Experiência e Pobreza (1933) e as percepções do autor sobre o esvaziamento das experiências na modernidade, no contexto da chegada ao poder do nazismo na Alemanha.
59 Pobreza de experiências: não se devem imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles ‘devoraram’ tudo, a ‘cultura’ e os ‘homens’, e ficaram saciados e exaustos. ‘Vocês estão todos cansados – e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano simples, mas absolutamente grandioso (BENJAMIN, 1994, p. 118).
O ritmo frenético que permeia a vida dos indivíduos, consequente da modernização das cidades, é apontado pelo autor como uma das causas das transformações nas relações humanas. Entre elas, Benjamin ressalta o desinteresse do homem moderno por novas experiências, resultando, obviamente, na perda da capacidade de intercambiá-las. Ricardo
10
Professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Paola Berenstein Jacques coordena o grupo de pesquisa Laboratório Urbano, que investiga metodologias para a compreensão da complexidade do espaço público contemporâneo.
CAPÍTULO DOIS
Timm de Souza11 aborda a temática no capítulo “Walter Benjamin” de seu livro “As fontes do humanismo latino” em que aponta sintomas da pobreza de experiência na modernidade. Existências deslocadas umas das outras, desconexões como fato naturalizado, o humano fragmentado, desenraizado de si mesmo, exposto, solitariamente, à sua indigência, à violência de um mundo que o seduz continuamente a fazer parte ativa nele. Um mundo perdido, atônito, onde a esperança lateja de forma quase imperceptível. Um mundo que permite ao mesmo um diagnóstico infinitamente profundo e infinitamente simples: pobreza (SOUZA, 2004, p. 58).
A agitação, o inquietamento, as grandes transformações, o novo que surge a cada dia, a modernidade que exige atualização diária. Milhões de novas informações são bombardeadas a todo momento, novos hábitos e novos costumes são criados, tão novos quanto carentes de reconhecimento. Em meio à tanta produção e em tão pouco espaço para o ócio, o homem se recolhe, se vê perdido em uma imensidão de novas e espetaculares possibilidades. A maneira como esse ritmo acelerado interferiu no homem moderno brasileiro também esteve presente nos textos do cronista carioca João do Rio. Em Vidas vertiginosas de 1911, mesmo livro em que ele escreve a Era do automóvel, o cronista nos conta sobre essa sensação de ansiedade e imediatismo que se deu sob imposição das transformações urbanas sofridas no Rio de Janeiro do início do século XX. “Agora é correr para a frente. Morre-se depressa para ser esquecido dali a momentos; come-se rapidamente sem pensar no que se come; arranja-se a vida depressa, escreve-se, ama-se, goza-se como um raio; pensa-se sem pensar, no amanhã que se pode alcançar agora” (RIO, 2006, p.8-9).
11
Ricardo Timm de Souza é doutor em Filosofia pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha – 1994), e professor titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atuando nos programas de pós-graduação em Filosofia, Letras e Ciências Criminais desta universidade.
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CAPÍTULO DOIS
14. O ritmo frenético das cidades. O metrô de São Paulo. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/3336
A nova percepção, o novo ritmo, o desmanchar do passado para advento do novo, mas principalmente o novo homem e as novas relações sociais nos permitem reconduzir o ideário de Walter Benjamin e de João do Rio àquela “atitude blasé” do homem moderno proposta por Georg Simmel12 em “A metrópole e a vida mental”, de 1903. Simmel elabora a figura do “homem blasé”, personagem que para se proteger da intensa e nervosa vida moderna, se torna “blasé”, distante, anônimo - “o oposto daquele habitante dos vilarejos, onde todos se conhecem, onde todos têm nome e sobrenome, possuem uma ‘identidade’ e um rosto próprio” (JACQUES, 2012a, p. 50). Este homem acaba se escondendo e guardando sua subjetividade contra toda violência da grande cidade, contra o choque metropolitano. No entanto, mediante à velocidade imposta por meio das transformações urbanas de modernização das cidades, surge na Paris do século XIX através de Baudelaire, um personagem literário ou de carne e osso. Aquele que caminha pela cidade para experimentá-la, que vaga pelas ruas apenas a contemplar a vida: o Flâneur13. Para Siegfried Kracauer14, o flâneur “era aquele que não se protegia psicologicamente, mas, justo ao contrário, buscava a experiência do choque com o Outro, com os vários outros anônimos, a embriaguez da multidão” (KRACAUER, 1925 apud JACQUES, 2012a, p. 51). O flâneur de Charles Baudelaire “não se esconde, ele se perde voluntariamente,
12
Georg Simmel (1858-1918) foi um sociólogo alemão que desenvolveu trabalhos de investigação da sociedade a partir das ações e reações dos atores sociais. 13
Para João do Rio, ser flâneur “é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas” (RIO, João do., 1997, p. 51). 14 Siegfried Kracauer (1889-1966) foi um escritor, jornalista, sociólogo e crítico alemão de cinema. Ele por vezes tem sido associado com a Escola de Frankfurt de teoria crítica.
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com um inebriante prazer, entre a alteridade e o anonimato da multidão” (JACQUES, 2012a, p. 53). A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. (BAUDELAIRE, 1996, p. 197).
Jacques relaciona a experiência do flâneur, “ao vivenciar a cidade antiga sendo demolida para dar lugar a grande cidade modernizada” (JACQUES, 2012a, p. 49) com o que Simmel, Kracauer e Benjamin, cada um à sua maneira, chamaram de “‘estado de choque’: o choque da modernidade, mas, sobretudo, o choque da transformação da cidade antiga
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e a emergência da metrópole moderna” (idem). O aparecimento de cinemas, [...] dos novos letreiros publicitários em neon, das novíssimas lojas de departamentos, primórdios dos shoppings centers, o aumento vertiginoso dos jornais e a profusão de notícias provocam uma enorme excitação nervosa, uma espécie de vertigem de sentidos, uma hipertrofia dos olhares, um estado de choque (idem).
Dessa forma, o “estado de choque” pode ser percebido como uma resposta humana, na esfera do sensível, às grandes transformações da humanidade. Uma interferência direta na maneira de se vivenciar a cidade, dessa forma, também uma potente pista na formulação de uma resposta para o questionamento levantado no final do primeiro capítulo: Como esse contexto de um urbanismo pensado durante muito tempo sob os padrões de modernização das cidades, interfere na nossa consciência de experimentação urbana e na nossa apreensão da cidade contemporânea? Os autores trazidos por Jacques, assim como a própria pesquisadora, debatem a questão da experiência diante das transformações urbanas contemporâneas a eles e é possível notar pontos de interseção em seus pensamentos. O flâneur e o homem blasé são
CAPÍTULO DOIS
exemplos de “produtos” humanos dessas transformações, assim como o recolhimento do personagem de Simmel, por exemplo, se aproxima da pobreza de experiência do homem moderno de Benjamin e de João do Rio. Todos esses personagens surgem em meio ao desmanchar do antigo para o advento da modernidade e revelam novas e distintas formas de olhar o espaço urbano e de lidar com o choque. O “estado de choque”, por sua vez, seria uma comprovação de que a experiência sensível, subjetiva dos habitantes das grandes cidades, tanto do ponto de vista material quanto psicológico, sofreu mutação.
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15. Os personagens humanos da modernidade. Acervo pessoal, 2015.
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Buscando compreender um pouco melhor os motivos do empobrecimento da experiência na modernidade, transfere-se a discussão para a contemporaneidade sem fugir do âmbito das transformações e do planejamento urbano. Jan Gehl, arquiteto dinamarquês autor do livro “Cidades para Pessoas” (2010, identifica três diferentes escalas de planejamento urbano: a grande escala, em que a cidade é vista de cima, como em um voo de avião; à media escala: em que se pensa nos quarteirões e na organização de seu espaço, como se vista de um voo baixo de helicóptero, e, por fim, a pequena escala, a do pedestre. O autor defende que esta última é a menos pensada e a mais impactante no nosso cotidiano, uma vez que é através dela em que interagimos com o ambiente a nossa volta.
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16. Escalas de planejamento urbano. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS
A pequena escala é claramente a escala da experiência, da vivência e da apreensão da cidade. O que o arquiteto dinamarquês constata quando afirma que a escala do pedestre é a menos pensada, nada mais é do um reflexo da maneira como as cidades foram modernizadas e planejadas, privilegiando o planejamento à grande e média escala em detrimento da esfera do sensível. Michel de Certeau15 nos fala daqueles que experimentam a cidade, que a vivenciam de dentro – ou “embaixo” como ele diz, referindo-se ao contrário da visão aérea, do alto, dos urbanistas através dos mapas. Para De Certeau, essas pessoas são praticantes ordinários das cidades; ele dedica um capítulo ao “andar na cidade”, o que considera a forma mais elementar de experiência urbana (JACQUES, 2012a, p. 267).
Considerando a ideia de Michel de Certeau de que o andar na cidade é a forma mais elementar de experiência urbana, mais uma pista é levantada a respeito dos motivos pelos quais a experiência na cidade passa por esse processo de esvaziamento. Virou hábito “vivenciar” uma cidade voltada para o automóvel. O ambiente climatizado do carro certamente parece mais convidativo do que um “passeio” por uma calçada que funcionalmente é muito mais borda delimitadora da via do que espaço para o pedestre. O carro faz parte dessas cidades historicamente pensadas através do voo de pássaro. Vale também algumas reflexões empíricas sobre os hábitos contemporâneos, por mais que pesquisas16 comprovem o que atualmente constata-se com facilidade: Parece que
15 Michel de Certeau (1925 - 1986) foi um historiador e erudito francês que se dedicou ao estudo da psicanálise, filosofia, e ciências sociais. 16
Natal já foi considerada, em 2011, a capital nordestina mais sedentária do país de acordo com a pesquisa “Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico – VIGITEL BRASIL 2011” do Ministério da Saúde. E segundo a Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo IBGE em 2013, “A proporção de adultos classificados na condição de insuficientemente ativos no Brasil foi de 46,0%”, ou seja, quase metade da população adulta brasileira é considerada sedentária. Entre os índices determinantes para esse resultado está a “atividade física no deslocamento”, apenas 12% dos entrevistados praticam alguma atividade
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caminhar virou empecilho, assim como a prática da experiência urbana: postura que aparentemente só se mostra instigante quando se está longe de casa, de férias em outra cidade. Também são notórios o desinteresse e o descaso com o espaço urbano, inúmeros exemplos de desrespeito com o meio ambiente, com a rua, com o pequeno, são considerados banais atualmente. Não sentimos a pequena escala como a escala da experiência, fomos habituados a negligenciá-la, a diminuí-la. Em resumo, as transformações urbanas, trabalhadas em grande escala além de modificarem o estado físico e material das grandes cidades também interferiram na experimentação dos espaços públicos pelos cidadãos. Tal interferência provocou um “choque” capaz de gerar uma reclusão social, uma atitude blasé de distanciamento,
67
ameaçando a existência de experiência urbana. A pequena escala, então, que historicamente não recebeu a devida atenção política e não esteve no foco dos grandes investimentos governamentais, perde muito com esse distanciamento, tem sua essência perturbada. No entanto, em contraponto ao choque, aparecem personagens que comprovam o não desaparecimento dessa experiência e sim um empobrecimento da relação descontruída com o advento da modernidade. Relação essa que pode ser resgatada através da sua “forma mais elementar”: o caminhar.
durante as atividades diárias de deslocamento, o que demonstra que caminhar atualmente no Brasil está longe de ser um habito comum à população.
CAPÍTULO DOIS
2.2.2 ESPETÁCULO Ainda em busca argumentos que ajudem a sustentar a ideia de que mudamos a nossa forma de experimentar a cidade, e considerando este um universo de ampla investigação, mais um elemento é trazido para fomentar a discussão. Paola Berenstein Jacques, em seu texto “Notas sobre espaço público e imagens da cidade”17 de 2009, continua revelando pistas sobre a questão em debate neste trabalho. A autora defende que estamos vivenciando hoje, um processo de esterilização urbana. O processo de esterilização não destrói completamente a experiência, ele busca sua captura, domesticação, anestesiamento. A forma mais recorrente e aceita hoje desse processo esterilizador faz parte do processo mais vasto de espetacularização das cidades e está diretamente relacionado com a pacificação dos espaços urbanos, em particular, dos espaços públicos (JACQUES, 2012a, p. 14).
O processo de espetacularização das cidades ao qual Jacques se refere é objeto recorrente em críticas no meio acadêmico, “mesmo que muitas vezes com outros nomes: cidadecenário, cidade-museu, cidade genérica, cidade-parque-temático, cidade-shopping, em resumo: cidade-espetáculo18” (JACQUES, 2009) denominação idealizada por Guy Debórd, influente pensador do movimento Internacional Situacionista. O movimento Internacional Situacionista costumava discutir, no final da década de 1950 e começo dos anos 60, “temas por onde a vida humana, [...] se desenvolvia: a universidade e o meio estudantil, a produção espacial, a arte e cultura, a economia, o cotidiano” (FREIRE, 2015, p.24). Em seu trabalho mais conhecido, o livro “A sociedade
17
Texto em parte apresentado oralmente na mesa redonda “Espaço Público e Imagens da Cidade" no XIII Encontro Nacional da ANPUR que ocorreu em Florianópolis (25 a 29/05/09) publicado no portal Vitruvius no mesmo ano. 18
Espetáculo no sentido dado por Guy Debord, que diz: “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” in A sociedade do espetáculo, 1997.
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17. Cidade espetáculo: Montagem do Rio de Janeiro. O que se vende: a praia, os pontos turisticos e a cidade que se globaliza. Disponível em: http://goo.gl/6iLbgb
do espetáculo” Debórd dedica um capítulo “ao tema do planejamento espacial, discorrendo sobre a homogeneização e banalização da produção do espaço em decorrência do sistema capitalista” (idem). A produção capitalista unificou o espaço, que já não é limitado por sociedades externas. Essa unificação é ao mesmo tempo um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação de mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, assim como devia romper as barreiras regionais e legais e todas as restrições coorporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade dos lugares. Essa força de homogeneização é a artilharia pesada que faz cair todas as muralhas da China (DEBÓRD, 1997, p. 111 apud FREIRE, 2015, p.24).
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Jacques defende que o esvaziamento dos espaços públicos - vivos, intensos e conflituosos, a diminuição da participação cidadã e a consequente perda da experiência corporal nas práticas urbanas cotidianas está diretamente relacionado a esse processo de espetacularização que toma campo nas cidades contemporâneas. A espetacularização acontece por meio de um processo de mercantilização das cidades, e é indissociável das estratégias publicitárias, de marketing e de branding19 das cidades, que buscam a construção novas “identidades” que lhes garanta um lugar na geopolítica das redes globalizadas das cidades turísticas. Dentro dessa lógica de cidade mercadoria, “os espaços públicos contemporâneos, (...) também são vistos como estratégicos para a construção e a promoção destas imagens de marca consensuais, ou seja, são pensados enquanto peças publicitárias, para consumo imediato” (JACQUES, 2009). O que segundo a autora resulta em um esvaziamento da
19
Branding ou Brand Management é uma atividade multidisciplinar que trata da construção de marcas. Envolve marketing, planejamento, comunicação e design.
CAPÍTULO DOIS
própria experiência urbana, em particular da experiência sensível e corporal das cidades o que transborda a pobre visualidade imagética. A pesquisadora afirma que atualmente, é possível notar a realização de projetos urbanos no mundo inteiro que buscam a transformação de espaços públicos em cenários homogêneos, desencarnados, padronizados e consensuais. Os logotipos e a identidade visual de cidades distintas, a exemplo de seus cartões postais, se parecem cada vez mais entre si. A padronização também acontece em pretensão a uma semelhança com os espaços privados. Afim de eliminar conflitos, criam-se imagens de espaços públicos pacificados e domesticados, algumas vezes cercados e amplamente controlados. “As imagens dos espaços públicos das cidades, quer seja Barcelona ou Salvador, veiculadas em seus sites oficiais, por exemplo, são também imagens de espaços pacificados e domesticados” (JACQUES, 2009). A pacificação do espaço público, através da fabricação de falsos consensos, busca esconder as tensões que são inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a
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própria esfera pública, o que, evidentemente, esterilizaria qualquer experiência e, em particular, a experiência da alteridade nas cidades (JACQUES, 2012a, p. 14).
Como em um grande espetáculo a cidade é tomada de luz. Luz em toda sua essência atrelada à “longa duração do ideário da iluminação, bastando citar: “a luz da razão”, “a luz da inteligência”; “a luz do espírito” (RIBEIRO, 2012, p.66). À luz, associada ao conhecimento, à ciência, à arte superior e à metafísica, se opõe, tanto na religião como na ciência, à escuridão dos sentidos, às pulsões da carne, ao pecado e aos meandros mais ameaçadores da natureza. A luz, refletindo e permitindo o exercício da visão, constitui-se na síntese entre técnica e ação subjacente às propostas de evolução, progresso e controle dos aspectos mais renegados da existência (Idem).
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18. Espaços luminosos e espaços opacos. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS
Ana Clara Torres Ribeiro20 espacializa claramente o conceito de luz dentro da configuração de espetáculo urbano. A pesquisadora relembra que a “luz também, escolhe, seleciona e oculta, engrandecendo espaços, transformados em espaços luminosos, e esmaecendo ou esquecendo outros, abandonados em sua opacidade” (idem). Os espaços luminosos seriam espaços de vida plena, valorizada, repleta de beleza. São mais do que espaços iluminados, são produtos racionais de estratégias comandadas pela modernidade, oferecem uma visão de mundo desejada e desejável. É fácil viver em um espaço luminoso, afinal ele é pronto, limpo e livre de conflitos. Seduz pelo brilho, pelos padrões de beleza e estimula nossa preguiça pela fácil leitura e pelos caminhos pré-estabelecidos. No entanto, a luz que ofusca também produz sombra, e assim como a luminosidade, os conceitos atrelados a esse espaço de sombra, escondido, opaco, são naturalmente reconhecidos pelo senso comum. “Uma opacidade que se aproxima da falta de importância, do desinteresse, do literal apagamento e do radicalmente negativo” (ibidem, p.67). Para Milton Santos, os espaços opacos são representados como feios, sem interesse ou perigosos pelo pensamento dominante. Os espaços opacos seriam, então, espaços da sobrevivência, “espaços com menos técnica e mais inventividade, com menos dominação e mais domínio” (ibidem, p.68). Na cidade ‘luminosa’, moderna, hoje, a ‘naturalidade’ do objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa historicização da metafísica crava no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da modernidade que se justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas ‘opacas’. Estas são os espaços do aproximativo e da criatividade, opostos às zonas luminosas, espaços da exatidão. Os espaços inorgânicos é que são abertos, e os 20
Ana Clara Torres Ribeiro foi uma socióloga e professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Criadora e coordenadora do Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território (Lastro), desenvolveu a pesquisa sistemática da Ação Social (reivindicações, protestos e lutas) em contextos metropolitanos, a proposição de novos conceitos e categorias e exercícios com a denominada cartografia da ação.
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espaços regulares são fechados, racionalizados racionalizadores (SANTOS, 1996, p.221).
e
Essa outra cidade, tomada de espaços opacos, escondida, ocultada, existe e resiste por trás das imagens dos cartões-postais. “As imagens simulacros consensuais não conseguem apagar essa "outra cidade" latente e pulsante” (JACQUES, 2009). A cidadeviva, em que esta outra cidade toma corpo, poderia ser vista de fato como uma forma de resistência à espetacularização. Os personagens que ocupam as zonas opacas das cidades são chamados de errantes por Jacques, aos quais ela dedica seu livro “Elogio aos errantes” e considera como figuras determinantes para a análise da experiência urbana. Ao praticarem suas errâncias pelas ruas da cidade – em flanâncias percorridas pelo personagem de Baudelaire; ou nas
73
deambulações aleatórias dos surrealistas e dos dadaístas em suas excursões urbanas por lugares banais; ou ainda em derivas inerentes ao pensamento urbano dos situacionistas, de errância voluntária pelas ruas e de crítica radical ao urbanismo moderno – os errantes indicam “uma possibilidade de [...] resistência ou insurgência contra a ideia da [...] perda ou destruição da experiência a partir da modernidade” (JACQUES, 2012a, p. 19).
CAPÍTULO DOIS
As experiências erráticas buscam recorrentemente as brechas, margens e desvios dos holofotes do espetáculo urbano e que, assim, como os vaga-lumes de Georges Didi-Huberman, esses “seres luminescentes, dançantes, erráticos e resistentes” sobrevivem, mesmo quando reduzidos à clandestinidade de simples lampejos. A sobrevivência dos lampejos errantes dos vaga-lumes é potente, apesar de frágil, assim como a sobrevivência teimosa dos próprios errantes urbanos, que erram pela opacidade – pela opaca cidade ou cidade opaca – e resistem aos projetores do espetáculo da cidade luminosa (ibidem, p. 37).
As errâncias evidenciam, então, alternativas de se vivenciar a urbanidade em busca de uma “experiência de alteridade na cidade”. Jacques defende como alternativa a prática de ações políticas que conduzam uma resistência à espetacularização. Um dos caminhos possíveis apontados pela pesquisadora é a intervenção artística.
74 As ações artísticas críticas na cidade – que podem ser vistas tanto como [...] "micro-resistências urbanas", na denominação que preferimos usar – têm o objetivo de ocupar, se apropriar do espaço público para construir outras experiências sensíveis e, assim, perturbar essa imagem tranquilizadora e pacificada do espaço público que o espetáculo do consenso tenta forjar (JACQUES, 2009).
Para Jacques Rancière21, a intervenção artística é capaz de promover ficções ou novas relações, tensões ou dissensos, ou seja, outras formas de reconfiguração da nossa experiência sensível. Essas intervenções são propostas por Jacques sob o conceito de “micro-resistências urbanas” que têm o objetivo de ocupar e de se apropriar para construir outras experiências sensíveis, ajudando a perturbar essa imagem pacífica forjada pelo espetáculo do consenso. A autora ainda chama atenção para a potencialidade da experiência corporal urbana como micro-resistência. A experiência urbana se inscreve no corpo daquele que a experimenta,
21
Jacques Rancière (1940) é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-
Fee e professor emérito da Universidade de Paris.
19. Errantes nas zonas opacas. Acervo pessoal, 2015.
A PÉ
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CAPÍTULO DOIS
20. Intervenção urbana aCerca do Espaço - Coletivo Zona de Interferência (BH/MG) . Diego Mauro Ribeiro, Paola Berenstein Jacques, outubro de 2008, arredores do Campus da UFBA em Ondina, Salvador.
criando uma relação sensível e dissensual do corpo com o espaço público. Além disso, Jacques entende que esse tipo de intervenção pode produzir, um material, mesmo que empírico, que ainda é pouco considerado nas análises urbanas tradicionais de planejamento urbano. E explicita o quanto é importante que se aprenda a trabalhar com os conflitos e tensões inerentes ao espaço público. Sendo assim, “a arte crítica - a experiência sensível enquanto micro-resistências sobre ou no espaço público - pode vir a ser, efetivamente, uma grande aliada. (...) possa efetivamente nos ajudar a inventar (...) um urbanismo mais dissensual, incorporado e vivaz” (idem). Em síntese, o processo de espetacularização das cidades soma para a noção de empobrecimento da experiência, produzindo espaços padronizados e esterilizados. Como exemplo, é possível retomar as transformações urbanas da Paris do século XIX e do Rio de Janeiro de Pereira Passos. Cidades diferentes, espacialidades distintas e projetos com o mesmo objetivo: pintar um novo cenário globalizado, alargar as ruas e construir grandes avenidas. Substanciais transformações em virtude do tráfego de veículos nas ruas da cidade. A domesticação urbana enfraquece a relação de reconhecimento e identidade entre o usuário e o espaço e contribui para o consenso do desaparecimento da experiência na cidade, deixa-se de perceber a vivência como apreensão. No entanto, o reconhecimento daqueles que erram e o incentivo à pratica de micro-resistências, como por exemplo intervenções artísticas na cidade, podem contribuir para o desequilíbrio desses espaços fabricados. Destaca-se ainda a importância do corpo inserido nesse processo de resistência e atentase para uma outra forma de análise urbana, que leva em consideração a experiência sensível no meio urbano como alternativa para uma reflexão crítica da maneira de como o planejamento urbano se desenvolveu historicamente e de como suas decisões seguem nos atingindo.
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2.2.3 NARRATIVA O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história BENJAMIN, 1994, p. 201.
Nos textos de Walter Benjamin é possível notar uma nítida diferença entre dois tipos de experiência, que são termos distintos em sua língua mãe, o alemão. Erlebnis, a vivência, o acontecimento, uma experiência sensível, momentânea, efêmera, um tipo de vivida, isolada, individual; a e Erfahrung, a maturada, sedimentada, assimilada, que seria experiência transmitida, partilhada, coletiva 2012a, p.18-19).
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experiência experiência um tipo de (JACQUES,
Benjamin não acreditava no esgotamento e muito menos na destruição da Erlebnis, a experiência vivida, a vivência; mas na incapacidade de convertê-la em experiência acumulada, coletiva, a Erfahrung, ou seja, de transmiti-la. Quando se pede em um grupo que alguém narre alguma coisa o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1936 apud JACQUES, 2013, p. 16).
Benjamin acreditava que estaríamos então privados, não exatamente da capacidade de vivenciar experiências, mas, sobretudo, de intercambiá-las, narrá-las. “Para o autor, mais do que a experiência propriamente dita (em termos de vivência), era a arte de narrar que estaria em vias de extinção” (JACQUES, 2012a, p.19). Considerada uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Walter Benjamin no Brasil, a professora de filosofia da PUC-SP e de teoria literária da Unicamp, Jeanne Marie
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21. Transmissão da experiência. Acervo pessoal, 2015.
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22. Projeto "SUR-fake": Novas formas de se comunicar na modernidade. Disponível em: http://antoinegeiger.com/SUR -FAKE
Gagnebin, explica em entrevista22 algumas possíveis causas para o nosso atual desinteresse em narrar nossas experiências pessoais e assim transformá-las em coletivas. [...] a faculdade de contar e de ouvir histórias é intimamente ligada a uma temporalidade pré-capitalista, para dizê-lo de maneira sucinta. [...] Com o advento da industrialização e do capitalismo, o tempo da produção se torna um fator essencial da obtenção da mais-valia e, portanto, do lucro. Essa aceleração se torna universal, também em relação aos processos de narração, de escrita (Twitter!), de transmissão e de experiência: a vivência (um termo introduzido no fim do século XIX) designa uma experiência individual, não mais ancorada numa experiência coletiva, geralmente ligada a um presente fugidio, não mais ancorado numa tradição comum (GAGNEBIN, 2014, p.14).
A pesquisadora ainda questiona: “Aliás, quem ainda tem tempo para ouvir de maneira
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gratuita, pelo simples prazer de ouvir? ” (GAGNEBIN, 2014, p.14). O ritmo acelerado que presenciamos atualmente, que teve início com o advento da modernidade as quais incluem as grandes transformações urbanas, é capaz de transformar a maneira e os meios de comunicação cotidianos. “Elas continuam existindo, mas são outras: ensaio efêmero, romance, filme, conto curto, videoclipe! E também são menos duráveis porque seguem a lei das novidades mercadológicas” (GAGNEBIN, 2014, p.14). O Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, do qual Paola Berenstein Jacques é coordenadora, desenvolve uma pesquisa intitulada “Experiências metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea”, a pesquisa toma a noção de experiência e de sua transmissão em forma narrativa, como princípio norteador de investigação metodológica.
22
Entrevista concedida ao Laboratório Urbano da UFBA em 2014, publicada na revista Redobra Nº 14.
CAPÍTULO DOIS
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O estudo desenvolvido associa a questão das narrativas diretamente à questão da memória e, assim, da forma de se contar ou de se narrar a história, de transmiti-la. A narrativa também é diretamente relacionada com “as experiências de trabalho de campo, etnográfico, de escuta do outro, da escolha de interlocutores, das diferentes formas de relatos de encontros” (JACQUES, 2013, p. 13). Entende-se que o próprio exercício de narração se associa ao movimento, a prática espacial, à viagem ou ao simples andar pela cidade.
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A narração, em qualquer forma de narrativa (textual, fotográfica, audiovisual, etc.), não somente exprime uma prática, uma ação, nem se contenta em dizer o movimento, ela já o faz ao narrar. Uma narrativa seria assim uma prática do espaço, um tipo de ação, que poderia ser cartografada, mapeada. Essas cartografias partem de experiências físicas, corporais. O próprio corpo pode ser compreendido como um tipo de cartografia da experiência urbana (JACQUES, 2013, p. 14).
Em busca de encontrar e experimentar diversas possibilidades metodológicas para a apreensão da cidade contemporânea, o Laboratório Urbano promove seminários, discussões abertas e oficinas afim de fomentar o debate. Entre as possibilidades encontradas, a narrativa se insere tanto no processo quanto no produto da pesquisa. Seja em um trabalho de investigação da memória na cidade através da narrativa de um personagem local, ou da ida à campo com olhar atento às pequenas particularidades para depois cartografá-las, ou seja, narrá-las através de um mapa.
CAPÍTULO DOIS
2.3 UM PRODUTO
SENSÍVEL A partir de toda leitura e experimentação teórica baseadas na questão da sensibilidade e do corpo, onde o homem e sua experiência sensível não estão somente inseridos no processo como são o foco da pesquisa, a decisão por uma metodologia e por um produto certamente não fugiria dessa ambiência. Os vaga-lumes, depende apenas de nós não vê-los desaparecerem. [...] Devemos, portanto, [...] nos tornar vagalumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca (HUBERMAN, 2011, p. 154 - 155).
É o momento de ir a campo, a hora do processo próximo da experiência sensível. A metodologia deve integrar o corpo e a narrativa no processo e no produto. Produto esse que deve instigar a transmissão de pensamentos de natureza crítica e buscar a (re)descoberta da cidade e dos vaga-lumes que se escondem das luzes do espetáculo. O espaço do processo, de análise em campo, acontece em pequena escala, na rua, em busca das zonas opacas da cidade e de seus desvios e becos, a procura da narrativa dos vaga-lumes resistentes ao processo de espetacularização urbana. A metodologia escolhida para o desenvolvimento deste trabalho, em suas etapas de visita a campo, análise e criação da narrativa de apropriação do espaço, é praticada pelo Laboratório Urbano do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA em suas oficinas e foi adotada a partir dos resultados da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI”23, que se divide em três etapas: fazer corpo, ganhar corpo e dar corpo.
23
“A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI - Entre passividade e plasticidade do corpo em movimento” é uma pesquisa internacional coordenada pela socióloga francesa Rachel Thomas em parceria com Brasil e Canadá.
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23. Metodologia fazer corpo/ ganhar corpo/ d ar corpo, durante a pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI”. Realizada em Salvador (BA, Grenoble na França e Montreal no Canada. Disponível em: www.caminharnacidade.ufba.br
“fazer corpo”, que se trata do momento em que o pesquisador entra no campo e deixa-se impregnar pelas ambiências; “ganhar corpo”, é o “despertar dos corpos” dos pesquisadores a partir das experiências incorporadas na etapa anterior; e “dar corpo”, que se refere à construção de linguagens e instrumentos narrativos acerca da experiência (PENA, 2012, p. 50 - 51).
A primeira etapa, o fazer corpo, é a fase do trabalho em campo em que o pesquisador funciona não apenas como um corpo em movimento no espaço, mas também como um “instrumento de inteligibilidade dos processos engendrados no cotidiano com relação aos pedestres, entre eles e às ambiências urbanas” (THOMAS, 2013, p.9). Entende-se que sob esse ponto de vista seja necessário um desvio pela subjetividade na análise realizada pelo pesquisador afim de compreender a complexidade da experiência sensível ordinária. O passeio acompanhado, proposto por Marta Dischinger24 (2000) e as provocações sugeridas por Kevin Lynch (1960) na construção de mapas mentais ajudaram na construção e organização da versão do “fazer corpo” proposta aqui como primeira etapa do processo de investigação em campo. Os Passeios Acompanhados consistem em visitas a campo realizadas pelo pesquisador em companhia de pessoas que apresentam alguma característica relevante à pesquisa. Foram propostos inicialmente para a análise das dificuldades de deslocamento, orientação, uso ou comunicação de pessoas com deficiências ou limitações físicas. No entanto, neste trabalho, a característica relevante à pesquisa é a experiência vivida pelo entrevistado nos espaços públicos da área de estudo, ou seja, sua vivência como pedestre nas ruas.
24
Essa técnica foi apresentada por Marta Dischinger (2000) no seu artigo “Designing for all senses: accessible spaces for visually impaired citizens”, por ocasião do seu doutorado em Architecture Scholl, na Chalmers University of Technology, na Suécia. Dischinger é Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina.
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O primeiro procedimento para a execução dos Passeios Acompanhados, logo após a escolha dos indivíduos que serão entrevistados, é a determinação de percursos de interesse de acordo com sua relevância dentro dos objetivos do estudo a ser realizado. Os percursos devem possuir um ponto de partida e objetivos a alcançar. (DISCHINGER 2000).
Dischinger acrescenta que o pesquisador não deve conduzir ou ajudar o entrevistado na tomada de decisões durante o percurso. O processo pode ser registrado através de anotações, gravações e fotografias, e deve-se pedir ao entrevistado detalhes de questões relativas ao passeio. Posteriormente os registros devem ser organizados de modo a ilustrar aspectos relevantes, podendo inclusive ser localizados espacialmente em mapas dos percursos percorridos.
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Por se tratar de uma análise que busca a apreensão de aspectos de natureza sensível, associadas à narrativa, memória e percurso, questionamentos foram elaborados para melhor apropriação da experiência urbana do entrevistado. As provocações sugeridas por Kevin Lynch, em seu livro “A imagem da cidade”, publicado 1960, foram levadas em consideração na formulação das perguntas fomentadoras das conversas entre pesquisador e entrevistado. A pesquisa de Lynch buscava evidenciar a qualidade visual das cidades por meio do estudo das imagens mentais que seus habitantes faziam delas. Pela primeira vez, uma pesquisa perceptiva com base em conceitos e métodos da psicologia buscava “compreender os espaços da cidade, a partir da percepção que os habitantes tinham de determinada área e qual o significado da cidade para os mesmos” (LIMA, 2008, p.45). O autor considera que a imagem é formada pelo conjunto de sensações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente. Uma qualidade visual em específico recebeu sua atenção: a legibilidade, entendida como a “facilidade com que cada uma das partes [da cidade] pode ser reconhecida e organizada em um padrão coerente” (LYNCH,
CAPÍTULO DOIS
1960, p.2). Para uma melhor definição do conceito, Lynch decompõe a ideia de legibilidade em três componentes: identidade, estrutura e significado. Uma imagem viável requer, primeiro a identificação de um objeto, o que implica sua diferenciação de outras coisas, seu reconhecimento enquanto entidade separável. A isso se dá o nome de identidade, não no sentido de igualdade com alguma outra coisa, mas com o significado de individualidade ou unicidade. Em segundo lugar, a imagem deve incluir a relação espacial ou paradigmática do objeto com o observador e os outros objetos. Por último, esse objeto deve ter algum significado para o observador, seja ele prático ou emocional (LYNCH, 1960, p. 09).
Esses três conceitos identificados pelo autor ajudam na análise da percepção ambiental do usuário, portanto, se aproximam dos procedimentos de busca pela apreensão da experiência sensível de quem vivencia a cidade, uma vez que, segundo o autor, um ambiente legível possibilita uma experiência urbana mais intensa e segura. Por mais que Lynch tenha sido cauteloso em relação ao “significado”, entende-se que cada cidadão tem determinadas associações com partes da cidade, e a imagem que ele faz delas está impregnada de memórias e significados. “No quarto capítulo do livro citado, o autor propõe caminhos para dar uma nova forma a cidade, tratando do desenho dos elementos que constituem o espaço urbano: vias, limites, setores, pontos nodais e marcos” (LIMA, 2008, p.46). Estes elementos são abordados em entrevistas que Lynch realizou com os habitantes de três cidades americanas. No final de seu livro, um roteiro da entrevista é apresentado e sugerido como modelo a ser seguido. Além da sequência de tradicionais perguntas e respostas, também faz parte do método a produção de mapas mentais pelos entrevistados. Este trabalho toma como inspiração metodológica, para a primeira etapa de visita a campo, o Passeio Acompanhado e as entrevistas propostas por Lynch, mas não tem a intenção de se prender às suas sequências e determinações pré-estabelecidas. Do passeio acompanhado extrai-se o caminhar pela cidade e a vivência da experiência do outro em
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24. Metodologia aplicada em Oficina do Laboratório Urbano da UFBA, em 2011. Disponível em: Revista Redobra nº 9..
meio urbano, e das entrevistas propostas por Lynch são colhidas as perguntas referentes aos percursos feitos pelos entrevistados e a busca pela descoberta dos significados da cidade, particulares à cada indivíduo. Intenciona-se de antemão a realização de passeios acompanhados com todos os entrevistados, mas, prevendo possíveis adversidades e indisponibilidades por parte deles, a entrevista in loco também é considerada. As caminhadas coletivas propriamente ditas fizeram parte da etapa do “fazer corpo” realizada durante o processo da pesquisa “A assepsia dos ambientes pedestres no século XXI” e na oficina “Partilha e conflito no espaço público” proposta pelo Laboratório Urbano da UFBA em 2011.
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No final desta caminhada coletiva, um tempo de isolamento foi dado a fim de permitir que cada um registrasse suas impressões num diário de bordo. Os diferentes grupos de pesquisadores se reuniram para um momento de retomada da experiência e de troca. Estes momentos, registrados sistematicamente, tinham como objetivo relatar as ambiências percebidas e a vida do bairro (THOMAS, 2010).
O ganhar corpo já se inicia no momento do relato e do registro das impressões do passeio acompanhado. É importante que esses registros ocorram logo após as caminhadas. A segunda parte do ganhar corpo trata-se da apropriação desse material que foi recolhido em campo, seja através da narrativa, de uma cartografia ou de imagens. E a última etapa metodológica, dar corpo, é a “a implementação de um pensamento do corpo envolvendo necessariamente a criação de linguagens e criações de instrumentos narrativos específicos” (THOMAS, 2010). Entre os produtos já produzidos em oficinas realizadas pelo Laboratório Urbano da UFBA estão “miniaturas” urbanas videográficas e um diário de bordo por meio do blog em ambiente virtual.
CAPÍTULO DOIS
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A PÉ
Segundo Rachel Thomas, socióloga responsável pela pesquisa em que a metodologia foi desenvolvida, “a realização dessa metodologia consiste em repetir – ao longo do trabalho de pesquisa – as fases de imersão no campo, as fases de atuação dos corpos em movimento” (THOMAS, 2013, p.9). A pesquisadora fala em “encarnar” as ambiências urbanas e a partir disso traduzi-las em novas experiências narradas. Pretende-se a partir desse fazer corpo/tomar corpo/dar corpo provocar a experiência através de uma narrativa de reflexão, uma apropriação crítica das experiências daqueles que caminharam ou relataram suas lembranças mais significativas durante as entrevistas. Afim de articular a experiência corporal com esse produto essencialmente narrativo e até agora teórico, intenciona-se ilustrar tais reflexões através de uma micro-resistência urbana.
89
Um caminho encontrado durante a pesquisa para a produção dessa micro-resistência é o da intervenção artística crítica. Entre os campos da arquitetura, em que a arte e a estética se acercam, existe um que se aproxima do corpo no meio urbano: a comunicação visual e mais precisamente os projetos de sinalização são elementos comuns a rua e ao pedestre. O Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito é dividido em seis fascículos: Sinalização Vertical de Regulamentação; Sinalização Vertical de Advertência; Advertência de Indicação; Sinalização Horizontal; Sinalização Semafórica e Sinalização de Obras e Dispositivos Auxiliares. Cada número contempla uma série de normas e “considerações gerais” sobre o assunto. Logo nas primeiras páginas de cada publicação, um quadro com os princípios da sinalização do trânsito é apresentado, tais princípios devem ser seguidos por todas as categorias citadas anteriormente. Entre os ideais apresentados estão a padronização; a clareza e a precisão. Tais conceitos fogem dos objetivos e claramente não se encaixam dentro do referencial conceitual desse trabalho, não serão considerados devido sua objetividade e dureza. Dessa forma é de grande importância salientar que a escolha por um caminho próximo da sinalização para o pedestre e da comunicação visual se vale das possibilidades livres de
CAPÍTULO DOIS
modificação e do não cumprimento de qualquer norma ou manual técnico sobre o assunto. A apropriação da sinalização acontece através de uma micro-resistência urbana de caráter de intervenção artística, com objetivos críticos-reflexivos. Busca-se a transmissão de uma mensagem e encontra-se na sinalização um suporte comum ao ambiente urbano, assim, faz-se uso desse suporte com a intenção de (re)significá-lo por meio da apropriação da ambiência local.
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25. Sinalização na Praia Do Uruaú – Beberibe (CE). Olívia Patrício, 2015
A PÉ
Enquanto o urbanismo busca a orientação através de mapas e planos, a preocupação do errante estaria mais na desorientação, sobretudo em deixar de lado seus condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educação do urbanismo está voltada para a questão do se orientar. [...] A propriedade de se perder seria uma das maiores características do estado de corpo errante e está diretamente associada a outra, também relativa ao movimento: a lentidão. Quando estamos perdidos, passamos para um movimento do tipo lento, uma busca de outras referências espaço-temporais, mesmo se estivermos em meios rápidos de circulação (JACQUES, 2012b, p. 199)
A sinalização em sua plenitude é parte desse urbanismo que busca a orientação e o
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direcionamento, no entanto, como micro-resistência urbana ela será voltada por um caminho essencialmente alheio a esse. Busca-se a desorientação como uma aliada à descoberta e (re)descoberta de uma outra cidade, o “perder-se” talvez seja a porta de acesso às zonas opacas, e a sinalização como produto gráfico e visual pode auxiliar na tarefa de indicar onde há luz nesses espaços, pode auxiliar na tarefa de ascender os vagalumes. Por fim, é preciso definir com bastante clareza as margens entre o que é de fato o produto final desse trabalho - uma narrativa de reflexão, escrita, teórica - e o que contribui para a conclusão do pensamento com a inserção do corpo, ilustrando a reflexão previamente produzida - uma micro-resistência urbana crítica de caráter artístico, inspirada na sinalização urbana. Ambos fazem parte da finalização desse trabalho, a reflexão narrativa como produto final estabelecido e a micro-resistência urbana como uma aliada artística. O processo completo de análise, montagem e criação do produto, assim como suas justificativas e particularidades serão descritos nos próximos capítulos deste trabalho.
CAPÍTULO DOIS
2.4 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO As grandes transformações urbanas além de modificarem o espaço físico das grandes cidades também foram capazes de interferir na experimentação sensível do ser humano no espaço público. Choque, espetáculo e narrativa revelam alguns fatores inerentes a esse processo. Partindo do espetáculo, entende-se que as grandes transformações urbanas são claros exemplos do processo de espetacularização das cidades. Essas transformações ajudam a criar espaços luminosos, que são produzidos em favor da modernidade para acompanhar a velocidade movida a motor e sobre quatro rodas. Atrelado a esse processo, temos um urbanismo que incentiva o voo distante, do alto, que projeta a partir de grandes escalas, em favor das largas avenidas e das longas distâncias, um urbanismo que contribui para a produção em série desses espaços homogeneizados; padronizados e consensuais. O choque aparece nesse contexto como uma resposta sensível daqueles que vivem em baixo, daqueles que sofrem os efeitos dos holofotes do espetáculo. O choque, então, diz respeito a como o humano lida com essas grandes interferências pensadas em grande escala que acabam por modificar a pequena, afinal ela foi historicamente deixada de lado e dessa forma, em termos do sensível, do humano, foi a escala que mais sofreu. A modernidade impõe um ritmo acelerado, frenético, inédito, e como resposta ao choque, o homem moderno se protege, distanciando-se da vida em pequena escala. Ele deixa de caminhar, desabitua-se a experimentar a cidade em sua forma mais elementar para proteger-se dentro de um veículo, que já nasce com dois grandes faróis em sua dianteira a guiar e indicar o caminho, e mais duas gritantes luzes vermelhas na parte de trás para que não nos esqueçamos dele mesmo quando nos dá as costas. O tempo corre apressado, é a era do instantâneo. E quem tem tempo de sobra hoje em dia? Quem tem tempo para ouvir e contar histórias? Quem entende a vivência na cidade
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como experiência a fim de transmiti-la em uma narrativa? Transformar a experiência individual - efêmera, instantânea - em experiência coletiva - maturada, sedimentada acontece, segundo Walter Benjamin, através de um fenômeno que perdeu valor mediante ao ritmo frenético das grandes transformações: o ato de narrar. O que está oculto em meio a esse contexto é o que garante esperança em forma de resistência. O outro lado, as zonas opacas da cidade e seus frequentadores, seres errantes, incorporados em suas narrativas ao decorrer da história nos levam a acreditar que a experiência urbana resiste. Essas zonas de criatividade, de experiência sensível, geralmente são áreas onde a luz dos holofotes não chega. São lugares assim, iluminados ao brilho dos vaga-lumes, em que essa experiência que tanto se busca nesse trabalho,
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reside, e é por esse caminho que ele segue adiante. O compartilhamento dessas áreas opacas e das experiências vividas nesses espaços por meio de intervenções críticas na cidade pode contribuir para uma resistência à transformação do espaço público em lugar homogêneo e consensual. A metodologia do fazer corpo/ ganhar corpo/ dar corpo auxilia na apropriação do espaço e no entendimento das relações entre o corpo e a cidade, além de incentivar a transmissão dessa experiência por meio de uma narrativa.
26. Uma saída? Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO DOIS
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CAPÍTULO TRÊS
27. Cegar com tapume. Acervo pessoal, 2015.
3.1 PRÓLOGO
TAPUMES 29 de outubro de 2015. Lenilton é um dos diretores do grupo de
Alta e Ribeira. E em uma de suas
teatro que faço parte. Um amigo que
atividades de labuta diária, precisou
costumo perturbar por ser daltônico, que
visitar
me diverte contando causos cotidianos e
Passageiros do Porto de Natal para uma
que sempre tem uma resposta ou uma
vistoria antes da entrega. A obra foi
definição para algo que eu não conheço.
parcialmente entregue em meados de
Todas as segundas, quartas e quintasfeiras, costumamos compartilhar, antes de começar o ensaio do grupo de teatro,
o
Terminal
Marítimo
de
2014, fazia parte das obras para a Copa do Mundo e está localizada ali no largo da Rua Chile, na Ribeira.
um pouquinho do que se passou no
Um pouco indignado, mas com um certo
nosso dia. E como é comum aos
conformismo de quem já presenciou
estudantes
de
ações parecidas na cidade, Lenilton me
qualquer curso de graduação, faz alguns
contou sobre a primeira imagem da
meses que o assunto que levo para esses
cidade
momentos é o TFG.
passageiros que desembarcaram no
do
último
semestre
Quando, ainda no início do trabalho, falei da minha intenção em trabalhar com o centro histórico e com a rua, Lenilton me relatou um fato urbano que o incomodou em suas andanças pela região.
que
foi
apresentada
aos
terminal durante seus primeiros meses de funcionamento. Ao saírem em direção a cidade, os visitantes eram recebidos por tapumes de madeira que cobriam a rua. Painéis altos e impessoais, que cercavam como se protegessem o novo edifício,
Ele trabalha no edifício da Capitania das
todo branco e iluminado, de algo
Artes, na Av. Câmara Cascudo, pertinho
perigoso que estava por trás. Além de
da fronteira entre os bairros da Cidade
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A PÉ
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esconderem a cidade, direcionavam
ainda é muito complicado, para mim,
quem desembarcava ali àqueles passeios
aceitar essa lógica. Afinal, o terminal foi
turísticos tão comuns ao nosso tempo,
construído na Rua Chile. Quem conhece
em que você sobe em um ônibus e
mesmo que minimamente a Ribeira,
disfruta os pontos “mais notáveis” da
entende a inquestionável importância
cidade
ar-
histórica e cultural da rua para a cidade.
condicionado, sem sentir o cheiro da rua,
A via já estava lá, justo em frente, muito
sem a possibilidade de sentir calor e se
antes da construção do terminal. Ela faz
refrescar nas sombras úmidas de Natal,
parte do centro histórico da cidade, de
sem vivenciar experiências que poderiam
um dos bairros que deram origem a
ser a feitas a pé, a um passo de distância
Natal, e foi literalmente, me perdoem a
da fronteira que foi construída.
expressão, tapada. Ignorada.
Lenilton me explicou que esses passeios
Fiquei me questionando, quem decide o
eram oferecidos dentro do bonito edifício
que vemos ou deixamos de ver na
que agora ilumina a paisagem. De acordo
cidade? Que inversão de valores é essa,
com
que escolhe por um muro em recusa a
sentado,
a
memória
respirando
dele
os
navios
permaneciam no porto por cerca de 12h,
espaços
e durante esse intervalo os visitantes
significância? Quantos outros exemplos
podiam sair para visitar a cidade. Uma
como
sala/museu deveria compor o caminho
experiências
até a rua, e era nela que os passeios para
percebamos?
as praias eram vendidos. Nenhum passeio incluía a Ribeira. Nenhum passeio era feito a pé. Mesmo
compreendendo
de
esse
reconhecimento
interferem urbanas
em sem
e
nossas que
E mesmo que digam que a escolha pela vivência da rua ainda era permitida pelo livre arbítrio de se cruzar o pequeno
como
os
espaço deixado entre os tapumes, quem
interesses capitalistas interferem em
se atreveria? O outro lado claramente foi
processos de mercantilização da cidade,
escondido por um motivo: O abandono,
CAPÍTULO TRÊS
perceptível pela rua vazia, repleta de
entorno do porto, especificamente a Rua
construções
Chile, que está localizada bem a sua
fechadas,
a
falta
de
manutenção, o lixo que se acumulava e
frente”
a pouca iluminação certamente não
sensibilidade.
foram convidativos àqueles que talvez se atreveram a olhar por trás da cerca. Um
estudo25
recente
Certamente,
faltou
A obra não estava concluída, é verdade, foi aberta para o convívio com a rua um
as
tempo depois do final Copa, e eu não sei
potencialidades do Terminal Marítimo de
dizer ao certo o que ainda faltava
Passageiros para a diversificação da
terminar. Os tapumes podiam estar lá por
oferta turística do bairro da Ribeira,
alguns motivos. Claro, ainda podiam
identificou que a obra “vislumbra, além
fazer parte do processo final da obra.
do
do
Sim, podiam estar ali para a proteção de
estado do RN [...], a possibilidade de
alguém. Mas já foi o tempo de sermos
dinamização da oferta turística da cidade
inocentes, se algo deveria ser protegido
de Natal” (SILVA, MORAIS e NÓBREGA,
não seria a rua a ser tapada, não seria o
2015, p. 89) instigando o surgimento de
contato com a cidade a ser privado. Se os
“novos locais democráticos de lazer
tão
gratuito e entretenimento tanto para os
desembarcaram poderiam sofrer algum
moradores locais quanto para turistas”
tipo de dano devido algumas salas a
(ibidem, p.90), mas que no entanto “não
concluir, não seria uma fachada cega que
houve a sensibilidade de elaboração de
os manteria a salvo.
desenvolvimento
sobre
(idem).
econômico
valiosos
turistas
que
ali
um planejamento que contemplasse o
25
POLÍTICAS PÚBLICAS DE TURISMO NO BAIRRO DA RIBEIRA, NATAL-RN: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PAC 2010-2014, de autoria de Jenniffer Ribeiro da Silva, Luciléia Lima De Morais, Wilker Ricardo de Mendonça Nóbrega. Publicado em janeiro de 2015 na revista AOS - Amazônia, Organizações e Sustentabilidade.
100
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O 3º capítulo se trata da apresentação do universo de estudo escolhido: o centro histórico da cidade de Natal, do ponto de vista da história e daqueles que o vivenciam de dentro. Além de um breve histórico com atenção para o processo de modernização da cidade,
a
questão
da
memória
é
levantada como representante da história oral,
101
e
assim
da
transmissão
de
experiências ocorridas no passado. Também é aqui em que a metodologia aplicada e a experiência praticada são descritas e apresentadas como principal material de investigação desse trabalho.
28. Brechando. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO TRÊS
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103
CAPÍTULO TRÊS
3.2 UNIVERSO DE ESTUDO:
O CENTRO QUE A HISTÓRIA CONTA Fundada em 25 de dezembro de 1599, já sob o título de cidade, Natal nasce no atual bairro da Cidade Alta, à margem direita do Rio Potengi, se expandindo posteriormente para o bairro da Ribeira. Estes dois bairros da atual região administrativa leste, delimitaram a cidade por pelo menos dois séculos e meio, e atualmente compreendem o perímetro26 do centro histórico da cidade. O lugar escolhido pelos portugueses que aqui chegaram para erguer sua cidade, foi o alto onde hoje se localiza a Praça André de Albuquerque. Lá de cima a visão era privilegiada, podiam perceber qualquer aproximação de quem chegasse pelo rio e ainda tinham a percepção do que acontecia na aldeia dos Potiguaras27. Neste sítio construíram a capela, a casa de Câmara e Cadeia, instalaram o pelourinho. Foram chantadas duas cruzes, delimitando o espaço urbano de Natal. Uma foi chantada as margens do baldo, e, outra nas proximidades da atual Praça das Mães (Natal - Anuário, 2014, p. 158).
Segundo Miranda (1999, p. 46) a implantação da cidade de Natal não fugiu à regra de um modelo colonial, onde “Elevações, acidentes geográficos e físicos orientaram e induziram o seu crescimento espontâneo. Ruas estreitas, terrenos com testada mínima em torno de 6m, acompanhando a curva de nível da elevação [...]”.
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Tal perímetro será apresentado posteriormente juntamente às legislações responsáveis por sua delimitação. A fração compreendida no bairro das Rocas foi significativamente expandida recentemente, no entanto, se trata de uma área de abrangência do centro histórico, correspondente quase em sua totalidade a um polígono denominado poligonal de entorno, sendo assim, destacase aqui a história dos bairros de Cidade Alta e Ribeira, compreendidos em todas as delimitações propostas como os bairros “centrais” do centro histórico de Natal. 27 Potiguara era a denominação dos índios que no Século XVI habitavam o litoral do Rio Grande do Norte. Potiguara é uma palavra indígena geralmente traduzida como pescador ou comedor de camarão.
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29. Cidade Alta: Praça André de Albuquerque (acima), Rua Vigário Bartolomeu (ao centro). Ribeira: Rua do Comércio, atual Rua Chile (abaixo). CD Room Natal 400 anos. Disponível em: http://goo.gl/aFXCSl
O traçado orgânico e a estruturação da cidade em torno de uma praça principal, no referido caso - a Praça André de Albuquerque, confirmavam o típico traçado colonial. Em relação à morfologia, percebem-se quadras retangulares e de grande extensão, sem se prender, no entanto, a nenhuma ortogonalidade em sua implantação. A elite natalense ocupava a parte alta da cidade, enquanto a classe trabalhadora, mais pobre, vivia às margens do rio. Os moradores da atual Cidade Alta foram conhecidos durante muito tempo por Xarias: comedores de xaréus, um tipo de peixe da região. Os Xarias eram rivais dos Canguleiros, cangulo é outro tipo de peixe. Os Canguleiros eram representados pelos pescadores da cidade baixa, a Ribeira. A Ribeira nasce no caminho entre a Cidade Alta e a Fortaleza dos Reis Magos28. Câmara Cascudo (1999, p.149) explica que a região foi chamada de Ribeira por se tratar de uma campina constantemente alagada pelas marés do Potengi. A área onde hoje se encontra o Teatro Alberto Maranhão banhava-se no rio em fins do século XIX. Segundo Melo e Silva (2007, p. 14), foi somente durante a segunda metade do século XX que Natal passa por um processo de transformação e modernização da estrutura colonial que ainda se fazia presente. “Apesar do surgimento da cidade remeter ao século XVI, é apenas no século XX que Natal entra em um grande período de transformações, a fim de substituir a originária cidade colonial por uma nova cidade, moderna e progressista”. O período entre o início do século XX e 1930 foi marcado por um intenso desejo de mudança. A elite natalense buscava replicar o mesmo fluxo da modernidade de grandes cidades como Paris e Rio de Janeiro com suas transformações urbanas higienistas. A tendência de modernização das cidades influenciou a elite da época pela construção de
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Sua construção teve início em 06 de janeiro de 1598. Símbolo da colonização portuguesa em nosso litoral, a Fortaleza dos Reis Magos teve sua planta concebida pelo padre jesuíta Gaspar de Samperes, sob as influências da arquitetura italiana que, no século XVI, era considerada a mais avançada concepção arquitetônica direcionada para o uso militar (MEDEIROS FILHO, 1997).
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novas áreas habitacionais que não fizessem fronteira com bairros de classes mais baixas. E dessa forma a implantação de uma Cidade Nova acontece. Localizada nos atuais bairros de Tirol e Petrópolis, a Cidade Nova contribuiu para a caracterização deste período e pela então classificação de Natal como “cidade moderna”.
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30. Vista área do bairro de Petrópolis, um dos bairros da Cidade Nova. Jaeci E. Galvão . Disponível em: http://goo.gl/aFXCSl
Afim de deixar para trás o sentimento de desordem e atraso que a cidade colonial ainda transmitia, inúmeras intervenções fizeram parte do conjunto de obras de melhoramento realizadas no período. “O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930” de Arrais, Andrade e Marinho (2008) ajuda na compreensão desses processos de modernização da capital potiguar.
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Alagadiços foram transformados em praças e jardins, tornando-se espaços de sociabilidade e lazer. O calçamento e abertura das ruas permitiram mais dinamismo à vida urbana e consolidaram a Ribeira como bairro comercial. Novas construções foram erguidas para garantir o aformoseamento da cidade, a partir de fisionomias modernas e uma racionalidade técnica e do controle sobre a estética urbana (ARRAIS, ANDRADE E MARINHO, 2008, passim, apud TINÔCO, 2015, p. 21).
Devido à sua posição estratégica global, a cidade mais próxima das Américas em relação ao continente africano, durante a década de 1940, Natal foi escolhida pelos americanos para sediar duas importantes bases de apoio às forças militares da Segunda Guerra Mundial. O esforço de guerra fez Natal saltar de um contingente de aproximadamente 50.000 habitantes para quase 100.0000. Segundo Macedo (2004) este acontecimento impulsionou o processo de transformação da cidade. Natal deixava de ser provinciana.
31. Natal na Segunda Guera Mundial. Hart Preston/Time-Life, 1941. Disponível em: http://goo.gl/20XPwF
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No entanto, segundo Medeiros e Vieira (2013, p.03), as várias iniciativas visando o progresso da cidade, assim como o fim da Segunda Guerra Mundial, colaboraram gradativamente para o sucessivo “esvaziamento dos bairros da Cidade Alta e da Ribeira, fazendo com que os mesmos adentrassem em um processo de estagnação de suas funções primárias”. Segundo as autoras, apesar dos dois bairros compartilharem da mesma problemática, resultado da perda de suas funções originais e da expansão da cidade com o surgimento de novas centralidades, o processo de declínio aconteceu de maneira distinta em cada bairro.
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O bairro da Ribeira iniciou o processo de perda de suas funções com o fim da Segunda Guerra Mundial e posteriormente com o deslocamento do comércio atacadista e varejista, bem como do terminal rodoviário de passageiros. Já o bairro da Cidade Alta, teve a substituição da função habitacional pela de comércio, impulsionada pela migração da elite potiguar para outros bairros que haviam sido criados (Petrópolis e Tirol), devido à implantação do porto e da ferrovia no bairro da Ribeira, necessários ao escoamento da produção do estado (FERRAZ, 2008, p.51-52, apud, MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).
Durante o século XX, intensifica-se a transformação de antigas residências da região em estabelecimentos com fins de comércio e prestação de serviços, em sua maioria para atender as necessidades do porto de Natal e das instituições públicas que já se localizavam na Cidade Alta e Ribeira (MIRANDA, 1999). No entanto, segundo Souza (2011), investimentos em infraestrutura e intervenções do mercado imobiliário, durante o período, estimularam o aparecimento de outras paisagens urbanas distantes das regiões centrais, contribuindo para o esvaziamento e degradação do centro histórico. Os sinais de declínio do centro histórico de Natal são perceptíveis pelo abandono do patrimônio histórico edificado que apresenta deterioração acentuada, pela subutilização da infraestrutura urbana e pelo esvaziamento nas noites e finais de semana (SOUZA, 2011, p.12).
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A autora afirma que se tornou comum a associação do centro histórico de Natal à um lugar inseguro, ainda que a sensação de perigo seja mais expressiva do que a ocorrência de delitos no local. Souza associa esse sentimento de medo à carência em infraestrutura do centro histórico. A falta de iluminação em algumas vias, por exemplo, intensifica o afastamento de estabelecimentos de comércio e serviços da região, o que contribui para a sensação de abandono. Além disto, a preocupação com a valorização urbana do centro histórico de Natal é considerada tardia. Somente nos últimos anos do século XX, os bairros de Cidade Alta e Ribeira começam a ser alvos de ações de preservação.
32. A falta de iluminação no Beco da Lama – Cidade Alta. Acervo pessoal, 2015.
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Em 1990 entrou em vigor a primeira lei municipal elaborada com a finalidade específica de proteger o patrimônio histórico remanescente da cidade de Natal. Esta lei definiu a Zona Especial de Preservação Histórica (ZEPH), através da Lei Municipal nº. 3.942 que abarcava o bairro da Ribeira, uma porção da Cidade Alta e trecho do bairro das Rocas (MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).
O objetivo da ZEPH era “[...] a preservação dos prédios e sítios notáveis pelos valores históricos, arquitetônicos, culturais e paisagísticos” (MELO e SILVA, 2007). Por meio dessa determinação foram proibidas demolições sem autorização e um gabarito limite foi fixado para a área. “Hoje, é senso comum que a vigência desta lei contribuiu decisivamente para impedir o processo de substituição dos exemplares arquitetônicos antigos da cidade” (MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p. 03).
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O bairro da Ribeira foi alvo de projetos de revitalização entre o final da década de 1990 e os primeiros anos do século XXI, destacando-se o Projeto “Fachadas da Rua Chile” de 1996, que recuperou aproximadamente 45 fachadas de imóveis e toda a pavimentação do Largo da Rua Chile, num trabalho de arquitetura, urbanismo e arqueologia, com recursos provenientes do Ministério da Cultura em parceria com a Prefeitura de Natal; o Plano de Reabilitação de Áreas Centrais - Ribeira2 (PRAC-Ribeira, 2005) e o Projeto ReHabitar3 (2007), que, entre outros objetivos, visavam a inserção de habitação no bairro, afim a de “reutilizar os edifícios históricos fechados ou subutilizados do bairro” (ibidem, p. 04). No entanto, somente algumas ações pontuais previstas nos planos de melhoramento foram realizadas, os mesmos não foram considerados na íntegra. Em dezembro de 2010, o perímetro delimitado como sítio histórico de Natal que inclui trechos dos bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas, foi tombado pelo IPHAN como Patrimônio Histórico e Cultural. No entanto, a ausência de legislação específica para a área tombada atrasa e impossibilita projetos de intervenção na área.
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Sobrepondo as áreas correspondentes à ZEPH e o perímetro do sítio histórico considerado Patrimônio Histórico e Cultural, que compreende duas poligonais: uma de tombamento e uma de entorno, é perceptível que a poligonal de tombamento contribui em nível federal para um reforço à ZEPH referente a proteção municipal. E a poligonal de entorno, por sua vez, que expandiu os limites de proteção para uma importante fração do bairro das Rocas, pode tanto confundir quanto contribuir para a ampliação da proteção do centro histórico, uma vez que foge da área estabelecida pela ZEPH. Por ser o polígono que abrange a maior área dos bairros estudados, a poligonal de entorno foi escolhida como limite préestabelecido da área de estudo em campo. No entanto, tal perímetro não foi transmitido aos entrevistados que se basearam em suas vivencias pessoais para conduzir a caminhada, mesmo essas acontecendo fora da área estabelecida. A poligonal de entorno
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funciona com um pontapé inicial, uma base para a pesquisa. Em reflexão sobre o processo de tombamento Medeiros e Vieira (2013, p. 22) questionam: “Além disso, ficamos sempre nos perguntando o que significa, de fato, tombar o centro histórico? Mesmo que a norma específica para a área tombada já estivesse pronta, ela é suficiente para dar conta da gestão da preservação desta área?”. E se mostram incomodadas com a falta de envolvimento da população “não-técnica” no processo de discussão do patrimônio da cidade. Sentem que o interesse é latente do lado da comunidade acadêmica, mas que “não necessariamente corresponde aos desejos e anseios da população de uma forma geral” (MEDEIROS e VIEIRA, 2013, p.23). Lamentam que “sem este reconhecimento, será difícil chegar a algum resultado com um mínimo de sustentabilidade” (idem).
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3.3 MEMÓRIA
& EXPERIÊNCIA Não faz parte dos objetivos específicos deste trabalho recontar a história do centro histórico de Natal, nem abordar conceitos de patrimônio, por exemplo, como pode parecer indissociável das discussões referentes ao tema. Entende-se a importância da abordagem e contextualização de tais assuntos, no entanto, a experiência sensível do pedestre inserida nesse meio é o foco aqui. Como abordado no capítulo anterior, é através da narrativa que a experiência é transmitida. Mas o que seria então essa narrativa inserida em um lugar de importância e reconhecimento histórico para a cidade? Ao que se refere quando uma experiência vivida no passado é contada? A memória, ou a lembrança, como memória vivenciada, certamente não fugiriam dessa discussão. Em reflexão sobre a construção narrativa, a memória e seus múltiplos significados, Yonne Grossi e Amauri Ferreira29, sugerem que as palavras cartografam vivências a partir de um tempo passado que se torna presente pelo exercício da linguagem. “Na esteira do tempo (Cronos), esse devorador age e tudo consome; sua irmã, a memória (Mnemosine), guarda os momentos mediante a razão narrativa, presente nos sujeitos através da linguagem” (2001, p.30). Os autores relacionam memória e experiência a partir da tentativa de compreensão da sobrevivência de algumas marcas enquanto outras desaparecem. Assim, entendem que a experiência se relaciona aos textos de memória repletos de fatos e personagens que se envolvem e se interligam no enredo expressivo do mundo vivido.
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Yonne Grossi é professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política.. Amauri Ferreira é filósofo, escritor e professor de filosofia. É autor dos livros Singularidades Criadoras (Editora Sapere), Introdução à Filosofia de Spinoza e Introdução à Filosofia de Nietzsche.
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Trata-se de algo parecido a um processo seletivo. Para aquele que narra, seria impossível narrar tudo, assim, a lembrança traz apenas os momentos significativos do passado. Evoca-se, então momentos vividos, as vivências pessoais são retomadas, valendo-se de referências atuais. Assim, experiência e memória se associam em um processo de metamorfose no qual a identidade passa a ser constituída, afinal somos formados por
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aquilo que lembramos: “uma experiência nunca é totalmente nova, pois estamos sempre tomando como referência experiências anteriores, de onde tiramos nosso conhecimento, nossa forma de agir e perceber o mundo” (STRECK; FRISON, 1999, p. 108). Walter Benjamin também refletiu sobre o conceito de história e ajuda a analisar as potencialidades da memória como uma reinterpretação do passado. Ele afirma que as imagens do passado se aproximam através de pequenos sinais: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja, irreversivelmente no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994, p. 224). O que acontece, segundo Benjamin, é que a história é perpassada pelas ações dos grupos dominantes, os quais detêm o poder sob as relações políticas e econômicas. O autor propõe o rompimento com a temporalidade homogênea e linear trabalhada pelas memórias dominantes. “Essas precisam ser problematizadas no quadro mais amplo e complexo das relações socioculturais. A memória passaria a desempenhar um papel crítico, reconstruindo e possibilitando a emergência de determinadas experiências que foram silenciadas” (VIEIRA, 2006, p. 18).
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33. Escutando lembranças. Lenilton Teixeira, 2015.
Em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos (1987) de Ecléa Bosi, a recriação do passado feita por testemunhas vivas da história é diferente da versão oficial que se lê nos livros. Velhos relatam as experiências vividas e sofridas por eles na capital paulistana, e apesar da narrativa simples e sem pretensão, são capazes de comunicar uma história que passa a ser significativa para quem a lê. Ao final do livro, a autora conclui que por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que a recorda. E das camadas do passado que se tem acesso é ele quem pode selecionar aquelas que são para ele significativas de um tesouro comum. Este mesmo indivíduo é aquele que anda e experimenta a cidade, ou então que um dia chegou a realizar tais atividades. Quem sabe suas experiências estejam presas nas lembranças de um tempo e de um espaço que já não existe. Talvez essa seleção de experiências significativas esteja enterrada nas camadas mais antigas. E dessa forma, através da problematização da escolha do universo de estudo, que passou de berço da cidade para espaço de abandono, incluem-se na investigação por espaços de experiência na cidade, as lembranças individuais de cada entrevistado. Em caso de uma experiência ser narrada no passado, por mais que não se realize atualmente, será considerada como significativa. Afinal como explanado anteriormente é a partir dessas lembranças que a identidade do ser humano é definida. Além disso, a memória individual pode ajudar na construção crítica e reflexiva que se busca alcançar com o produto final deste trabalho.
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3.4 EXPERIÊNCIA
PRATICADA A primeira etapa metodológica de visita à campo - fazer corpo - consistiu na realização de passeios acompanhados e entrevistas com personagens próximos da pesquisadora que apresentavam relação com o universo de estudo, seja ela qual fosse - de trabalho, moradia, convívio ou simplesmente afetiva. A escolha dos entrevistados aconteceu por facilidade de aproximação e porque fazia parte do objetivo da entrevista o acesso a lembranças e experiências pessoais, alcançadas com facilidade devido a relação previamente construída entre entrevistado e pesquisadora. Dois roteiros foram criados para a abordagem em campo. O Roteiro A (ver apêndice A),
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prioritário, abrange as temáticas que deveriam estar presentes durante o passeio acompanhado, como uma conversa entre pesquisadora e entrevistado a respeito dos espaços visitados. O Roteiro B (ver apêndice B), aplicado em casos em que o entrevistado, por motivos diversos, não pode acompanhar a pesquisadora em um passeio acompanhado, segue uma sequência de perguntas pré-estabelecidas realizadas em um ambiente fixo. No Roteiro A, uma conversa acontecia previamente ao passeio. Deixava-se claro ao entrevistado que não existia um trajeto pré-estabelecido e nem era de desejo do pesquisador conhecer algum lugar em específico. O acompanhante tinha total liberdade para seguir por seus lugares significativos. No entanto, três objetivos eram apresentados antes do início da caminhada:
Quero andar pelos caminhos que você gosta de fazer. Eu gostaria que você escolhesse os caminhos que normalmente faz, ou que tenham alguma significância para você. Procure me mostrar sua rua preferida, seus atalhos e desvios, mesmo que sejam becos ou ruas íngremes.
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Quero conhecer onde suas lembranças mais significativas estão. Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto especial. Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar que você sinta saudade.
Quero descobrir “novos” lugares e conhecer novas pessoas. Me leve para descobrir lugares que representem, acordo com as suas experiências pessoais, o centro histórico para você. E se possível, me apresente a outras pessoas que também tenham uma vivência neste lugar e que possam compartilhar suas experiências.
O Roteiro B, uma entrevista sob os moldes convencionais, podia acontecer com a escolha pontual de determinados atores pré-estabelecidos como também com personagens introduzidos casualmente ou apresentados por algum entrevistado durante o passeio acompanhado. Essas entrevistas, aconteceram em sua maioria no “habitat” do entrevistado, geralmente seu local de trabalho. Os mesmos objetivos relativos aos caminhos, espaços de experiência e lembranças eram abordados, dessa vez, por meio de perguntas pré-estabelecidas. No decorrer das entrevistas, o roteiro esteve aberto a adaptações, como a alteração na ordem das perguntas e questionamentos adicionais de acordo com a abrangência do discurso de cada entrevistado. Em ambos os roteiros, a conversa era iniciada com uma breve explicação do que se travava a temática e os objetivos do trabalho, seguida por perguntas que buscavam uma contextualização inicial sobre a relação do entrevistado com o centro histórico. O registro dos passeios e das entrevistas acontecia por gravação de áudio, imagem e vídeo, com o auxílio de celulares e câmeras fotográficas digitais. Durante o período de 30 de outubro a 9 de novembro foram realizadas 4 passeios acompanhados e 6 entrevistas, descritos a seguir em “Fazer e ganhar corpo: Passeios Acompanhados”.
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PASSEIOS ACOMPANHADOS A seguir a transcrição dos principais momentos dos passeios e entrevistas, assim como o registro de imagens realizados. O “fazer corpo” é uma etapa da metodologia realizada in
loco, diz respeito ao estágio de contato do corpo com o ambiente. Mas a partir do momento em que tal vivência é apresentada, aqui, através de textos, mapas e imagens, o “ganhar corpo” passa a acontecer. Dessa forma, a descrição e ilustração dos passeios acompanhados realizados nessa pesquisa fazem parte das etapas metodológicas do “fazer corpo” e “ganhar corpo”. A transcrição exata da fala é feita em busca da transmissão da oralidade e da informalidade com que as conversas foram realizadas
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34. Ganhar corpo: Minha mochila pronta para ir a campo. Personagens da 1ª visita a campo. Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.
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PASSEIO 1. LENILTON, MARINALVA, FLÁVIO, HENRIQUE E NENA O primeiro passeio acompanhado foi realizado com Lenilton Teixeira, diretor do Grupo Estandarte de Teatro, com base em suas experiências e lembranças no centro histórico. Marinalva Moura, sua mulher e atriz do grupo, participou do trajeto completo. Dois personagens importantes foram apresentados durante o passeio: Flávio Freitas, artista plástico e Henrique Fontes, diretor artístico da Casa da Ribeira, aos quais foram realizadas entrevistas convencionais. Nena, uma turista amiga de Henrique, nos acompanhou pela Cidade Alta.
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35. Lenilton e Marinalva, inicio de passeio.
30 de outubro de 2015.
Acervo pessoal, 2015.
Sexta-feira. Era feriado do dia do Servidor Público. O que significava que eu, Lenilton e Marinalva estaríamos de folga. Um dia perfeito para irmos os três caminhar pela Cidade Alta e Ribeira. Combinei de me encontrar com os dois no apartamento deles as 10:00h da manhã. Marinalva nos acompanharia, afinal, nem eu e nem Lenilton dirigimos. E como a caminhada prometia ser longa, ir de carro até o Centro era a maneira mais fácil de poupar tempo. Cheguei um pouco atrasada, eles estavam prontos. Tomamos um suco que Lenilton tinha feito para o café. Abastecemos as mochilas de água e seguimos, de carro, em direção à Capitania das Artes, local de trabalho de Lenilton, escolhido por ele como ponto inicial do nosso trajeto. No dia anterior eu havia lhe enviado quais eram meus os objetivos com a nossa caminhada. Lenilton me confessou que ficou pensando a respeito e em sua cabeça já sabia os lugares os quais queria me apresentar. Fomos conversando no caminho. Eu já sabia que ele não tinha nascido em Natal, que havia se mudado de Lajes para a capital quando ainda era criança e por um tempo havia morado no bairro das Quintas. Mas queria entender como tinha acontecido sua aproximação com o centro histórico.
Eu acho que com 18, 19 anos, um pouquinho depois do ensino médio. Eu ia na Ribeira pro teatro, pro Alberto Maranhão, que eu acho que era o lugar pelo tipo de trabalho que eu já me envolvia, ou eu ia assistir espetáculos ou participar de algumas atividades
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na calçada do teatro. Depois, algumas vezes eu ia no canto do mangue, num bar, num lugar assim de convivência com mais pessoas. E perto da rodoviária também, onde hoje é o Museu Djalma Maranhão, era uma rodoviária que foi desativada, mas que tinha função de parar os ônibus. Como lá era o ponto final, você pegava ônibus mais vago e eu ia para lá para pegar ônibus. Ah, mas, eu quando ainda criança logo quando cheguei em Natal, existia uma loja que era correspondente às lojas americanas, que era 4 e 400 o nome da loja. Ela ficava na Rio Branco exatamente ali onde é hoje a Mariza, essa loja, como a americanas, vendia muita bunjinganga, todo tipo de troço vendia lá, e eu vinha das Quintas as vezes comprar soldadinho de plástico, biloca, essas coisas assim. Eu pegava um ônibus, eu devia ter assim uns 8 anos.
Você vinha sozinho?
Sozinho! Pegava um ônibus, descia, comprava e voltava pras quintas. Eu andava muito só nesse período da infância, eu ia de ônibus pra tudo que é lugar.
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36. Lenilton cri ança. Acervo pessoal de fotografias de Lenilton Teixeira.
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E durante a sua juventude? Nesses momentos de encontro e diversão, a Cidade Alta e a Ribeira eram bairros que você costumava frequentar?
Isso, a Cidade Alta era o coração. Ou do acontecimento ou de trânsito para esse acontecimento. Só que 10:30h (da noite) terminava o ônibus, então, ou você tinha a opção de ficar lá até o amanhecer ou você vinha caminhando passando pela cidade. E eu vinha junto nessas caminhadas. Aconteceu até de uma vez que a gente dormir ali na escada debaixo do SESC.
Eita!
Mas assim, essa época, lógico que existia violência, lógico que existia problema, tudo existia, mas era sem grandes confusões. Era bem menor. Você tinha mais medo de encontrar a polícia nesses lugares do que os ladrões. Por que na maioria dos casos, assim, o ladrão chegava, você não tinha nada e ele ia embora. Não ia ter grandes confusões. A morte em um assalto ou num roubo era rara.
Nesse momento, íamos nos aproximando da Capitania. Descemos do carro e alguns guardas que estavam na porta reconheceram Lenilton: “E aí doutor? Tá de folga hoje, né? Vai passear”. Fomos seguindo em direção à Ribeira, descendo a ladeira da Av. Câmara Cascudo e logo ali, em frente ao instituto que leva o mesmo nome da via e do renomado escritor potiguar, onde no passado foi sua casa, que a uma lembrança significativa da infância de Lenilton aparece.
A casa de Cascudo, aqui.
Passou um carro na hora, e eu não ouvi o que ele disse.
A casa de que?
De Cascudo, de Câmara Cascudo.
Sim!
Meu irmão fazia História e estudava com a filha de Cascudo. Cascudo, Cascudo. Ana Maria.
Aham.
Aí ele vinha muito aqui na casa de Cascudo. A filha de Cascudo criava canários belgas, e meu irmão também criava, então eles tinham uma amizade.
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É essa casa aqui?
Isso, essa com um negócio de ferro na janela. Então eu vim com Luiz (o irmão) para cá numa vez que ele veio. Cascudo tava aí, me deixou na biblioteca e me deu um livro de quadrinhos de Padre José de Anchieta.
Você era pequeno, então!
Era, eu tinha 9 anos. Meu irmão foi conversar com ele e eu fiquei aí, muito leso, na biblioteca. A biblioteca era imensa, muito grande, tinha muita coisa lá. Aí ele me deu essa revista.
Você levou para casa?
Ele me deu! Uma edição portuguesa de litogravura, toda bonitona.
Cuidado o carro, vocês dois. - Marinalva chamava atenção.
Essa então talvez seja a sua primeira lembrança daqui?
Não, não. A minha primeira lembrança é na rodoviária. Que quando a gente chegava aqui tinha um homem que dizia: (faz voz de locutor) Estação Rodoviária Presidente Kennedy, atenção passageiros…
Água de coco e água mineral!
Eu chegava de ônibus ou de trem. Meu pai trabalhava de guarda-freio, que caminhava em cima do trem para frear junto com o maquinista.
Olha a água mineral é um real, é um real.
Passamos em frente à estação de trem da Ribeira, eu nunca tinha prestado atenção onde era o acesso, fica ali por trás das paradas de ônibus que contornam a Praça Augusto Severo. Continuamos em frente, seguindo reto.
Como é o nome dessa rua, cê sabe, Leni?
Não. É a Tavares de Lira? Não, não.
A Tavares de Lira é aquela mais à frente.
É, é a de lá. Essa é a Doutor Barata. Ali onde tá fechado, onde foi uma editora, aí, muito antigamente, vendia o passe escolar. Na minha época você comparava tipo um chequezinho. O único lugar que vendia era aqui. Uma fila desgraçada. E ela foi
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também, como é que se chamava? Uma livraria: Livraria Clima! Eu lembro até da propaganda: “Natal não tem clima. Natal agora tem clima”.
Eu acho que eu nunca tinha vindo por aqui.
Aqui sai praqueles lados de Flávio, vamos por aqui. Vamos.
Entramos num beco, descobri o nome pelo mapa depois, Travessa México. Marinalva ia dizendo enquanto o atravessávamos, em direção à Rua Câmara Cascudo:
Aqui tem muito espaço para esses espaços que a gente vê muito lá na Europa. Lá na França a gente vê, eles chamam de rua de passeio, né? É um beco, assim, onde de um lado e do outro são lojas. Que aqui a gente não vê. Não há investimento. Uma ruazinha dessa, que não passa carro, se tivesse um investimento de estabelecimentos comerciais né? Mas é assim, escura.
João! Ô João!
Esse povo do Consulado, chama Lenilton de um nome totalmente diferente.
Nos aproximamos da porta do Consulado Bar e Restaurante30, duas garçonetes conversavam com “João” e nos convidaram para almoçar. Perguntaram a ele se eu era turista. “Não, ela tá fazendo um trabalho para a faculdade”. Dissemos que voltaríamos mais tarde, afinal a caminhada havia começado há pouco tempo. Ao lado do Consulado, uma oficina parecia estar funcionando.
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Aqui é onde são feitos todos os cenários de Natal, olha - Lenilton aponta para um portão de onde se vê um cara trabalhando com solda - Em Valdemar.
Essa é a rua do Catita, né Babina? Eles ainda abrem?
Abrem, mas tá um pouco diferente, eles fecham a rua.
Hmmm, só pra burguesia.
A casa de número 184 da Rua Câmara Cascudo é onde funciona atualmente o Consulado Bar e Restaurante. Construída no início do século XX, foi residência do cônsul italiano Guglielmo Lettieri até 1942 quando passou a ocupar a Bolsa de valores do RN.
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CAPÍTULO TRÊS
37. A casa de cascudo, Antiga Livraria Clima, Travessa México e Consulado Bar e Restaurante. Acervo pessoal, 2015.
Seguimos até a esquina e uma senhora abriu a porta do Ateliê Flávio Freitas para gente. Lenilton e Marinalva são amigos de Flávio, assim como Lenilton, ele também trabalha na Capitania. Flávio Freitas é um conhecido artista plástico da cidade e tem seu espaço de trabalho em um antigo edifício de dois pavimentos instalado na Travessa José Alexandre Garcia, vizinho ao Buraco da Catita31. Ficamos observando as obras e o espaço de exposição que claramente tinha sofrido uma reforma recentemente, enquanto Flávio terminava uma ligação. Ele nos apresentou o espaço reformado do Ateliê, tirou algumas obras das gavetas, falou das técnicas, das cores, ofereceu água. Depois sugeriu que conhecêssemos o andar de cima. Seu espaço de criação: tintas, pinceis, uma bancada com um caderno de rascunho, poltronas diversas, janelas de madeira pintadas em azul turquesa e muitas lagartixas pregadas na parede, “foram presente”, ele disse. Depois, mandou eu puxar uma cadeira para conversar enquanto ele ia pintando um quadro de tons azuis e amarelos:
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Eu nasci no Rio, mas vim para cá criança. Toda minha referência de educação e formação cultural é potiguar. De família também, né? Quando eu vinha de férias do rio, ainda muito pequeno, a gente ia brincar no escritório do meu tio avó, aqui nessa rua de trás, ele tinha um grande escritório da empresa dele.
Então você tem lembranças de quando aqui era uma área mais …
Viva! Muito viva!
Eu tenho a lembrança também de pegar a lancha da redinha, era um momento muito mágico. A gente pegava aqui no cais da Tavares de Lira, cê conhece?
Eu ainda não fui lá, mas sei onde fica.
O Espaço Cultural Buraco da Catita é um bar e estabelecimento de shows e apresentações culturais e tem sua origem ligada aos grupos musicais Ribeira de Pau e Corda e Catita Choro e Gafieira.
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38. O Ateliê de Flávio Freitas e A entrevista com o artista. Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.
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Pois é, a lancha da redinha era muito mágica, porque não existia a ponte aqui, só a de Igapó e era um momento de aventura.
E os caminhos que você gostava de fazer? Você lembra por onde gostava de andar?
Então, meu tio foi o engenheiro responsável pela implantação do Projeto Camarão.
Projeto Camarão?
É, Camarão. Foi quem iniciou as pesquisas de criação de camarão aqui em Natal. No Brasil na verdade, né? O Governo do Rio Grande do Norte foi pioneiro nesse período. E aí, quando eu tava de férias, ele me trazia e eu gostava muito de andar na Rua Chile porque tinha a linha do trem, tinha o trem e essa conexão com o rio. Essa relação com água que sempre pra mim foi muito agradável. É uma boa lembrança. Da Doutor Barata em si também, porque a Doutor Barata era uma rua que circulava pessoas importantes, tinha a livraria clima, o bar dos intelectuais ali na esquina. Eu sempre passava e via os velhinhos.
Mas por que se chamava “bar dos intelectuais”?
Eu digo porque, Cascudo, Newton Navarro, essas figuras, poetas, um pessoal que trabalhava na Tribuna, nos jornais mais importantes de Natal frequentava. Fica na esquina da Doutor Barata com a Tavares de Lira.
E você lembra como foi que a Ribeira foi se esvaziando?
Eu acho que na época que eu fazia faculdade, na década da 1980, a Ribeira realmente ficou condenada a um ambiente de prostituição, mais do que um ambiente de comércio, assim, como era antigamente, mas fino, de status.
E por que você decidiu ter um Ateliê de Arte aqui, na Ribeira?
Como o ateliê é um equipamento de produzir arte, portanto diretamente ligado à cultura, e eu tendo formação de arquitetura, né? No curso de Arquitetura a gente aprende a dar valor, dar muita importância a arquitetura histórica, né? Porque ela conta a história da cidade nos seus prédios, nas paredes, nas fachadas. Na forma do espaço do bairro. Você caminha e você sente isso. Se a pessoa tiver um pouquinho de atenção, você vai perceber a história da cidade impregnada nesses espaços que você caminha onde caminharam as mesmas pessoas, onde viveram, trabalharam, e tal, e eu acho que isso é uma motivação a mais para eu produzir arte. Então, se é de eu escolher um bairro, eu sempre achei que o bairro para um atelier é um bairro que já está conectado com a cultura, né?
E quais são esses caminhos que você ainda faz hoje?
CAPÍTULO TRÊS
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A gente hoje não anda tanto a pé, porque a sensação de insegurança é grande. Não que seja da Ribeira. A Ribeira é um bairro menos violento do que muitos, mas eu digo porque a sensação de insegurança, ela está espalhada, né? Em toda a cidade.
A gente acabou falando muito de Ribeira, mas você tem alguma experiência significativa na Cidade Alta?
Na Cidade Alta, eu tenho uma lembrança muito forte que era ir com minha mãe e minha vó, na época de Natal, fazer compras à noite no comércio todo iluminado. Era muito bonito. É uma lembrança forte. E também o cinema no domingo, que era a programação quase obrigatória da minha juventude. Terminava o cinema, a gente ia comer torrada com vitamina de sapoti.
Onde?
No Bom-Lanche! Na rua João Pessoa.
Ainda existe?
Existe, Lenilton?
Não, não, acabou. Eu tomava lá o Miscelânea.
Quase ao lado da caixa econômica.
Miscelânea era o suco, banana, uva, mangaba, ficava uma cor esquisita. Ali na Cidade era a única que ficava aberta. Vinha numa taça bem grandona assim, riscadinha.
E Flávio, uma última pergunta, se você tivesse que apresentar um lugar do centro histórico que você acha que as pessoas não conhecem ou quem visita os bairros provavelmente não vai. Qual seria? Você teria algum espaço em especial?
Olha, o que eu faria é, assim, nessa pergunta eu nunca tinha pensado, mas, o que eu faria é convidar a pessoa para dar uma voltinha de barco e olhar a Ribeira do Rio, sabe? Você passa a ter outra valorização, sabe? Porque tá muito maltratada a Ribeira, né? Faz pena.
Tiramos fotos, rimos um pouco com as lembranças de Flávio de quando ele morava em Fernando de Noronha, agradecemos e nos despedimos. Seguimos pela antiga Rua das Virgens, atual Rua Câmara Cascudo, em direção à Avenida Tavares de Lira. Algumas bonitas árvores sombreavam o caminho e Lenilton foi indicando os bares pelos quais íamos passando.
CAPÍTULO TRÊS
Esse aqui é antigo. O Bar de Neto, por exemplo, já existia na minha época. Mas, como a Ribeira não tem morador, quem era atraído para bares eram essas pessoas ligadas a algum tipo de movimento, ou à cultura, ou à boemia, à arte, essas coisas assim.
Fomos nos aproximando do final da Tavares de Lira, onde já era possível ver o rio. Embaixo de uma cobertura de telha cerâmica: alguns bares, freezers, mesas e cadeiras, e ao fundo, pequenas embarcações atracadas. O cheiro de peixe era forte.
Aqui. Você pegava a lancha da redinha aqui. A que Flávio Falou. Esse mercado, aqui, é super informal, não é como aquele Mercado do Peixe mesmo, nas Rocas. Aqui já foi. Mas hoje em dia não vende a mesma coisa do que lá.
Então hoje foi tomado pelo comércio informal?
Não, o comércio informal já existia na época, era um lugar que se vendia bastante peixe, muito mais forte do que lá em baixo, entendeu? Agora com o mercado lá de baixo, é que esse aqui vira um sub-mercado.
Seguimos em direção às Rocas, Lenilton queria me levar no Canto do Mangue. Para isso, passamos pela Rua Chile.
Aqui, durante muito tempo o trem ainda passava, mesmo com essa rua estreita. Então, Sávio, uma vez, botou o fusca de Marta na rua, ele estacionou num canto e esqueceu, aí veio o trem e POW! Buzinando, e ele correu para tirar o carro.
Olha o caminhão - Marinalva atentava. Ficamos colados na parede, em cima da calçada estreita, enquanto o caminhão atravessava a rua.
Olha, a maioria dessas casas são casas particulares que os donos nem fazem nada nem ninguém compra para fazer algum investimento. Ai, fica assim, né? Ó. Abandonado. Ali é a casa de Ferreira Itajubá, as vezes tem espetáculo, é bem bacana, tem um jardinzinho. Olha essa casa aqui como é legal, fazer um bistrôzinho, um café. Qualquer coisa cultural.
Paramos no largo da Rua Chile. Contemplamos o rio através das grades do Terminal Marítimo de Passageiros, que estava fechado. Mas o que nos chamou mais a atenção foi uma árvore que havia crescido entre a parede e a cobertura de uma das casas fechadas. Lenilton reconheceu a árvore.
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CAPÍTULO TRÊS
39. Cais da Tavares de Lira, Bistrozinho na Rua Chile e Seda polinizadora. Acervo pessoal, 2015.
O nome disso é Seda, dessa planta. Ela cresceu, né?
Ela quebrou a parede!
Olha a semente dela voando. Ela, é, poloniza, poliniza, como é que chama? Pelo ar.
Olha o carro aí, cuidado o carro aí.
Depois do largo da Rua Chile, paramos em baixo de algumas árvores da Esplanada Silva Jardim e seguimos em direção às Rocas pela Av. Duque de Caxias, mais movimentada e barulhenta, sem árvores, com um canteiro todo concretado e visivelmente descuidado. Na altura da Rua Olavo Bilac, atentei para o trilho do trem que seguia atravessando a avenida em direção ao outro lado da rua, perto de uns galpões abandonados, todos brancos e tomados por vegetação. Segundo Lenilton, eram uma estação de trem. Passamos por uma fila de ônibus estacionados; pelo novo mercado em fase de acabamento que abrigará as barracas da feira das Rocas; pelo hospital de pescadores que pertence às lembranças da infância de Lenilton, quando a mãe o levava para tomar vacinas e por um antigo cinema no qual ele viu o primeiro filme pornô de sua vida, hoje ocupado por uma igreja evangélica.
Vamos parar ali em Seu Pernambuco.
O que é “Seu Pernambuco”?
É uma cigarreira que vende ginga com tapioca. Ai eu não sei exatamente por que razão, que cargas d’águas que aconteceu, que virou um point. Assim, quando tem aniversário vão praí, quando vão comemorar banca de mestrado vão praí. Ai não sei o que lá. Levamos os franceses pra cá. Só que ele é brega, é um lugar brega.
Tem sei quantos filhos, seu Pernambuco. Aí, Babina, é assim sabe? Você vai pedindo e depois ele vem e olha e diz mais ou menos quanto foi. Não anota na-da!
A gente pode comer uma tapioca.
Se ele tiver aí, me apresentem.
Vamos, vamos comer uma tapioca. A tapioca, Babina, é delícia!
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É, faz com coco dentro.
Hmmm.
Mas, aqui é o Canto do Mangue, né? Já é mais conhecido mesmo, tem até no roteiro do centro histórico da Prefeitura.
Isso, isso. Mas é porque isso aqui é o que é vendido. O mercado. Entendeu?
Nos aproximávamos do Mercado do Peixe, bem diferente daquele, informal, da Av. Tavares de Lira. Organizado em lojinhas padronizadas, cada um vende o seu peixe no seu quadrado. Deixamos o mercado e atravessamos a rua em direção a praça que contorna o rio. Mulheres descavam camarão na beira da pista, em baixo de uma árvore. Lenilton e
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Marinalva explicaram que não tem banheiro e que se você estiver apertado é encorajado pelo próprio Seu Pernambuco a usar o rio para se aliviar. Mesmo que ninguém houvesse me avisado, o cheiro quando você se aproxima da margem já denuncia a prática.
Seu Pernambuco! Tudo bom?
Oi, Seu Pernambuco, prazer.
Essa é Bárbara uma amiga da gente.
Vai querer peixe?
Não, uma ginga com tapioca. Não, coloque duas, duas pareia.
E duas águas de coco também, tá bom? Obrigada.
Ah! Tinha que tomar cerveja!
Ela tá trabalhando, Lenilton.
Enquanto esperávamos a comida, sentamos em baixo de uma lona surrada, em mesas e cadeiras de plástico. Lenilton se questionava sobre o sucesso da barraca.
É engraçado que a gente aprende que pra consumir você tem que ter tais regras. Tem que ser assim e assado. Há uma série de fatores, que dizem, desde a questão da
CAPÍTULO TRÊS
higiene, a questão da apresentação, da recepção, e tudo mais. E aqui todas as regras são burladas. No entanto, é muito frequentado inclusive. Há outras formas que atraem a freguesia e o povo que não estão na escola de marketing, que não tá nesse espaço. Que é: Não sei o que é.
Daí um pouco a ginga e a tapioca chegaram. E nossa. Comecei a entender o porquê do sucesso do lugar.
Menino, que tapioca gorda! Huummmmm! Huumm! Ô tapioca boa! Muito boa!
Voltamos em direção à Ribeira caminhando pela Av. Hidelbrando de Góis, paralela à Av. Duque de Caxias. É incrível como a ambiência é bem diferente em apenas uma quadra de distância. A via beira a comunidade do Maruim e por entre suas vielas podemos observar as pessoas se apropriando da rua, até atravessamos um varal que estava fincado na calçada. O esgoto a céu aberto incomodava, mas quando avançamos um pouco mais, ao lado dos galpões do Grande Moinho Potiguar, um vento forte nos atingiu.
É a proximidade com o Rio - Lenilton, explicou.
Dá um banzo né? Esse vento, essa sombra, essas árvores.
Seguimos até a avenida se transformar em rua. Rua Frei Miguelinho. Antiga conhecida de nós três. A via abriga a Casa da Ribeira, que toma conta de um edifício recentemente tombado pelo IPHAN. O teatro estreou em 2001 com um espetáculo do Grupo Estandarte de Teatro, o qual fazemos parte. A Frei Miguelinho também é palco de outros espaços de arte e cultura da cidade, como o Gira Dança; A Boca Espaço de Teatros e o Espaço A3. Foi também nessa rua que percebi a presença de alguns estabelecimentos comerciais diferentes das oficinas de reparo, das casas de pesca, ou dos armazéns de produtos gerais para casa que se duplicam pelo bairro. Ali estavam algumas pequenas conveniências, nas quais eram vendidas balas, chocolates, cigarros e revistas, em que também que se
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40. Mercado do Peixe, Seu Perambuco, Jogo de cartas na rua e Marinaldo. Acervo pessoal, 2015.
prestavam serviços mais cotidianos como uma cópia ou encadernação de um documento. Algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras postas na rua, como no interior, e trabalhadores em horário de descanso, sentados em uma mesa improvisada na calçada, pareciam jogar carteado. Entre esses pequenos espaços de compra e venda, um deles me chamou a atenção. Acho que era o menor de todos da rua. Uma placa amarela colocada na calçada indicava: “Remonta-se: Calçados e Bolsas – Marinaldo”. E sentado, descosturando uma mala cuidadosamente, seu Marinaldo estava lá. Um senhor que já aparentava bastante idade, manuseava uma bela máquina de costura, tão antiga que parecia relíquia de museu, mas em pleno funcionamento. Perguntei a ele há quanto tempo ele trabalhava ali.
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15 anos aqui nesse setor, 40 anos na Ribeira.
E o movimento no bairro? Continua o mesmo desde que o senhor começou a trabalhar?
Ele respondeu, baixinho e devagar, que variava.
Porque eu me mudava de setor. Eu trabalhei aqui na Doutor Barata. Na Doutor Barata eu trabalhei por 10 anos. Mas onde eu trabalhei mais tempo foi na rua Frei Miguelinho. Nesse setor foi mais aqui na Ribeira. O mais distante que eu saí foi ali pra Rio Branco, no final.
Tentei ainda continuar a conversa, queria saber como ele havia aprendido a costurar, mas não sei ao certo se por impaciência ou porque a máquina, agora ligada, já não o deixava ouvir, ele parou de me responder e seguimos. Na esquina com a Av. Tavares de Lira, encontramos Henrique Fontes, diretor artístico da Casa da Ribeira e dramaturgo de nosso último espetáculo. Henrique caminhava com Nena, uma curitibana que estava em Natal para um festival de teatro, ela também trabalhava com arte e foi nossa companhia até o fim do dia. Estávamos indo, todos, para o mesmo lugar: O Consulado Bar e Restaurante, afinal já eram quase 14h e ninguém havia almoçado ainda.
CAPÍTULO TRÊS
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Dei muita sorte em encontrar Henrique, ele é o único morador do bairro da Ribeira que conheço, e durante o almoço aproveitei para ligar o gravador. Henrique aluga um apartamento no mesmo edifício de Nalva Melo - Café e Salão, na Av. Duque de Caxias.
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Faz quanto tempo que você vive aqui, Henrique?
Ó, entre a Cidade Alta e a Ribeira eu acho que deve ter uns 7 anos, ou um pouco mais.
Ah, então você morou na Cidade Alta também?
Morei. Morei nesse mesmo trecho aqui. Na subida da Junqueira Aires tem um prédio chamado Ed. Beira Rio. Morei nele e morei numa casa por trás dele por três anos. E ali no Bila, já tem 3 anos.
E por que você escolheu morar aqui?
Primeiro que eu amo o centro da cidade. Eu acho o centro da cidade sempre o lugar mais legal de se morar em todas as cidades. Por conta da história, por conta de uma facilidade de locomoção. Uma sensação de estar na cidade, né? Mas eu já começo a pensar em lugares mais sossegados. Bom, especificamente onde eu moro, que minha janela é para um trânsito muito pesado. Queria um pouquinho mais de sossego, mas não saindo daqui eu adoro essa parte. E acho que muito ligado à essa coisa da história. Pra mim, a arquitetura é um negócio que influência muito na minha vida, em estar em um lugar. Por exemplo, eu escolho comer aqui não é só porque a comida é boa, eu tenho um bem-estar nesse lugar.
Você é daqui?
Eu sou de Manaus, morei em Recife, Rio, Natal, daqui meus pais seguiram, aí eu fui pros Estados Unidos, voltei, fui de novo, voltei. Eu sou muito cigano. Agora, de uns 10 anos para cá que eu tô mais pacato cidadão. Mas, talvez por isso, eu busque tanto essas histórias desses lugares ou esses lugares que contenham essas histórias. E as lembranças que eu tenho, minhas memórias afetivas, bem, claro: Casa da Ribeira, é aqui. Tenho uma ligação de 20 anos com esse projeto. Desde o começo, o sonhar em ter o espaço. Existe uma imagem muito negativa, por um lado, né? Desses Centros Históricos das cidades que são tidos como violentos, perigosos, como áreas que as pessoas cometem muito crime, num sei o que. O que não é verdade. Eu tô nesse espaço há 20 anos. A casa, depois de 15 anos de aberta, o primeiro episódio aconteceu agora, aí o cara entrou, mas não levou nada, procurou, procurou o que ele queria e não levou nada. Eu nunca fui assaltado. Pra falar que eu fui abordado uma vez, fui abordado por um menino aqui que é filho de seu Valdemar, viciado em crack. Eu o reconheci, e disse
CAPÍTULO TRÊS
“Cê num tá lembrado de mim mas eu sei que você é filho de Valdemar”, acabei só conversando com ele. Assim, também tem esse aspecto, eu acho que não é uma criminalidade, a daqui, no nível de violência que se vê por aí. É mais um abandono. Ou então, as vezes é um desespero mesmo. Nos eventos, não. Nos eventos, claro, vem bandido de tudo quanto é canto, porque tem muita gente e eles vem atrás de se dar bem.
E quais os caminhos que você gosta de fazer, por aqui?
Eu gostava muito do Rio, agora vou voltar a gostar, porque liberaram um pedacinho da vista, eles tinham tapado e agora abriram de novo. Adoro aquele lugar ali. Gosto ali daquela área da pedra do Rosário. Não lá em baixo, em cima.
Onde fica a pedra do Rosário?
Ali em cima da Capitania. Mas tem um mirante que fica em cima, que é da igreja, em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. É um mirante lindo e dá pra ver o pôr do sol. Eu morei ali, né? Embaixo. Numa casa embaixo do mirante. Eu ia muito ali. E adoro andar pelas Rocas, pelo movimento que as Rocas tem. Pra mim é o bairro mais vivo dessa cidade, porque, a hora do dia ou da noite que você passar tem gente na rua, nas calçadas. Três da manhã! Tem gente sentado na calçada, em frente de casa, conversando. É muito rico.
Diferente daqui, pela noite, pelo menos quando não tem festa?
É, é. A Ribeira é uma região de passagem, as pessoas não permanecem aqui. Também porque não oferece lugares de convivência um pouco mais convidativos. Os lugares são meio ermos, estranhos, as pessoas não ficam. E é menos residencial, né? Um prédio que eu gosto muito, é o prédio da Tribuna do Norte, parece um labirinto por dentro. Merece visitação, é muito legal. Ah, Nalva, também é um espaço chiquérrimo, né? Que é no meu prédio. Às vezes, eu chego depois do expediente, tá lá rolando um jazz na porta da minha casa. Eu imagino que se outros lugares tivessem mais qualidade à noite, né? Mais vida à noite, seria massa. Sinto falta de um restaurante massa, aqui a noite, seria legal. Não tem, realmente isso não tem. O povo tem medo, mas esse medo é um medo construído, na verdade.
Tem algum lugar que você sente saudade?
Ah, eu sinto saudade das boates como eram antes, e claro, sinto saudade do Blackout. O Blackout B-52 era o onde hoje é o Galpão 29. E pra mim é o marco da Ribeira. A Ribeira me foi apresentada por Paulo Ubarana, que era dono desse lugar, que a gente
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vivia de segunda a segunda. Ele tinha programação de segunda a segunda. E a gente morava no Blackout.
E tem relação com essa época em que a Rua Chile era muito mais frequentada?
Isso, anos 90.
Depois ou antes da pintura das fachadas?
Foi durante, assim, depois, porque a pintura rolou em dois momentos né? Foi depois da primeira etapa. O pessoal se motivou mais, tal, veio, mas aí veio que não tinha muito eco do poder público. O problema é que assim, o poder público fez uma falsa promessa, né? Com essa coisa da pintura. Prometeu que ia revitalizar, todo mundo acreditou, veio com força, e aí não andou, não teve investimento junto, não teve a segurança prometida, a iluminação pública, acessibilidade e tarara, tudo que precisa ter. Até hoje é assim.
Os meninos pediram pudim de leite para a sobremesa, eu, Marinalva e Nena compramos
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água. Em seguida, nos despedimos de Henrique, ele ia viajar para São Paulo dali a pouco e não havia mais tempo para conversa. A caminhada continuava, agora em direção à Cidade Alta. Subindo a Av. Câmara Cascudo, Lenilton atentou para outras lembranças. Me mostrou uma casa onde, na sua juventude, foi espaço de ensaio, encontros e festas de “gente de teatro”. E me fez enfiar a cara em um portão gradeado para ver o pátio de uma casa em ruinas:
Cabe tanta coisa maravilhosa aí, e tá assim, abandonada.
Permanecemos à direita ao invés de acompanhar a Av. Câmara Cascudo até a Prefeitura, subimos a Rua Padre João Manoel, em direção à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Lenilton ia contando durante a subida a história da Viúva do Machado, que morava próximo à igreja.
A Viúva Machado: diziam que ela comia o fígado das criancinhas. Que ela tinha uma doença e para se curar ela comida o fígado das crianças. Ai aquela é casa dela, aquela da esquina.
CAPÍTULO TRÊS
A rosa?
Não, a outra casa, do lado dessa da esquina.
Sumia as crianças, e diziam que ela pegava pra comer. Mãe dizia: “ Você não pode sair de casa não, se não a Viúva Machado vai pegar você! ” Era o bicho papão.
Contemplamos a vista do mirante que fica justo em frente ao cruzeiro da igreja. Um transeunte se aproximou. “Lindão, né? Desde que eu cheguei aqui, não me canso dessa vista. ” Depois, passamos em frente à casa da Viúva, admiramos o jardim e a arquitetura bem conservada e seguimos caminhando.
Esse espaço aqui é muito bonito, uma pena que durante a semana fique lotado de carros de quem trabalha aqui por perto. A gente tem agora, a Praça André de Albuquerque; o Palácio - a Pinacoteca, né? E mais na frente tem outros lugares que a gente dá um giro - giro. Vamos?
Caminhamos até a André de Albuquerque, pela paralela à Rua João Manoel, parando um pouco para descansar e vislumbrar a vista do rio que a ladeira da Rua João da Matta proporciona. Cruzamos a praça, indo em direção à praça Padre João Maria, atrás da catedral.
Aqui tinha um monte de vela pra ascender. Ou as vezes tinha um monte de vela apagada e uma acesa, aí a pessoa pegava e ascendia. Era uma coisa engraçada, porque até os que criam e os que não criam, que não acreditavam em nada, vinham para esses lugares para fazer. Eu passei muitas vezes e ascendi vela por aí. Agora não tem a parte das velas como tinha antes.
Seguindo a direita, em uma via perpendicular à praça, Lenilton atenta para o nome da rua.
Ó, isso aqui é o seguinte: o nome dessa rua aqui é Voluntários da Pátria, certo?
Sim, tô vendo.
Ai, o que era mais legal nessa rua. Aqui em baixo, funcionava o ZumBar, que era o bar mais cult que você possa imaginar, da Cidade. E a gente zonava muito assim, “Onde é que fica o Bar? Na Voluntários da Pátria! ”. Nós, que erámos os voluntários da pátria que estávamos aqui.
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Siiim, hahaha.
Era uma viagem só nossa, que só a gente sabia rir dessa piada. Ninguém mais sabia rir dessa piada. E era aqui esse bar, dentro dessa casa aqui.
Essa?
Uma pequena casa residencial, branquinha de uma janela e uma porta, não aparentava em nada ter acolhido um bar um dia. A sua direita, um estacionamento, gradeado, cinza, atravessava o quarteirão.
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Sim, aí olha a doidera. Ele na verdade, era aqui, onde tá derrubado. Eram duas casas vizinhas, derrubaram uma delas. Essa casa (a que permanece) não sei se era do proprietário, e aqui do lado era a parte do bar. Era uma casa, você entrava numa porta como essa, era quase como se fosse a réplica dessa casa. E tinha um mini quintal, como tem essa daqui. E lá ficavam algumas cadeiras e na parte da sala outras cadeiras. E foi assim durante muito tempo, o ajuntamento dos malucos e artistas que você podia imaginar na vida. O ZumBar era um ponto que agregava. Eu acho que aqui é o lugar que eu mais gosto do Centro.
Dois quarteirões a frente, em uma rua paralela a que estávamos, a Rua Gonçalves Lêdo, paramos em outro bar, esse ainda existente. No Bardallo’s Comida e Arte, sentamos próximos a uma árvore que fica ao lado do portão. Pedimos suco de melancia com limão. Nena estava adorando o clima de Natal.
Ai que ventinho bom, gente, que num é de ar-condicionado.
Lenilton propôs que seguíssemos na mesma rua, adentrando à área residencial do bairro. Entramos a direita, na rua Dr. Heitor Carrilho, e já podíamos ver, ao final, o branco e o azul a Igreja de Santo Antônio com seu galo famoso lá em cima na torre. Continuamos, agora na rua da igreja, a Santo Antônio, seguindo na direção sul, até a Travessa Coronel Bonifácio.
Aqui ninguém imagina que são casas, entendeu? Eu acho isso esquisito. Quando eu me toquei que aqui tinha casa, eu pensei “Gente. Nossa. Eu não sabia que a Cidade tinha gente que morava”.
CAPÍTULO TRÊS
Entramos em uma série de pequenas e estreitas ruas residenciais: Rua Padre Calazans; Rua Apodi e Rua Padre Pinto. Nessa última, um pouco mais larga e que leva à região do Baldo, Lenilton nos levou até um grande muro com um grande portão de ferro, ambos guardavam um terreno baldio.
Aqui era o Cabaré de Maria Boa. Demoliram tudo.
A câmera descarregou na hora e não percebi, não tenho as palavras dele gravadas, mas me lembro do conteúdo. O Cabaré de Maria Boa era um famoso bar e casa de prostituição da Cidade Alta. Um ponto de encontro de homens e um ponto de referência do bairro. Regressando um pouco, ainda na mesma rua, na esquina com a Av. Gov. Rafael Fernandes, Lenilton lembrou da mãe.
Então, o ônibus vinha da Cidade fazia a curva onde tá esse carro ai e aqui tinha uma parada de ônibus. Quando eu vinha com mamãe pra Natal para fazer alguma coisa, sei lá, ir pro médico, ou outra coisa parecida, que vinha pra Cidade, a gente vinha pegar o ônibus aqui. Esse muro dessa casa era mais baixo. Bem mais baixo. E tinha um pé ali de jasmim, que botava os galhos bem grandes pro lado de cá. E mamãe vivia querendo pedir a dona da casa um galho de jasmim para plantar. Mas nunca coincidia da mulher tá perto do muro, chamar e pedir, ou sempre o ônibus vinha antes dela tentar chamar. Aí, é essa a história.
Descemos a avenida até a Rua da Misericórdia. De um lado, pequenas casinhas e becos, do outro, árvores, bancos, uma muretinha e o Rio. O pôr do sol estava prestes a acontecer, a luz deixava tudo laranja. Gatos, senhoras e crianças sentados de frente para o Potengi, curtiam a paisagem. A ambiência da rua era muito agradável. Presenciamos conversas entre vizinhos, brincadeiras de rua, bandeirinhas que ainda coloriam o céu desde a última festa de São João. Claro, a vista do mangue, do rio todo grandão, deixava tudo mais bonito, mas sem dúvida era um belo lugar, entre as construções e a natureza resistente, para se passar um fim de tarde. Seu Bosco se aproximou com aquela segurança de morador antigo. Ele gostava de falar. Um senhor de 70 e poucos anos, já vivia ali há “muuuuuito tempo”, conhecia todo mundo
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41. O antigo Zumbar, Põr do sol na Rua da Misericórdia e Bar da Meladinha. Acervo pessoal, 2015.
e todo mundo conhecia ele. Chegou dando um conselho: “Não apontem celular e câmera lá pra baixo, que eles vem tudo buscar.” Seu Bosco se referia a comunidade do Passo da Pátria. Foi a primeira vez em todo o trajeto que alguém nos falava de uma maneira pessimista sobre a segurança do bairro. Ele nos acompanhou de volta até a Praça João Tibúrcio, próxima à André de Albuquerque. No caminho foi reclamando da vida e dos problemas do bairro.
Vê isso aqui, pode ficar assim? Eu que limpei tudinho isso aqui. Minha mulher diz que eu me intrometo muito.
Passamos por uma quadra de esportes pública, na sombra da Casa do Estudante 32
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crianças jogavam bola. Quando chegamos na parte alta, quase já não tinha sol. “Voltem quando quiserem, podem me procurar!”. E Seu Bosco seguiu por outro caminho. Passamos em frente a Pinacoteca, onde Lenilton trabalhou por um tempo. Do outro lado da rua, a Prefeitura brilhava, era puro LED33. Av. Ulisses Caldas e depois à direita na Rua Vigário Bartolomeu. A rua dos sebos.
Vamos ali na meladinha de Nazih.
Antes, passamos em frente ao Cine França, que segundo Lenilton, até hoje exibe filmes pornô: “Lugar de encontro de rapazes, sabe?”. Paramos na Casa do Cordel, depois seguimos em frente: as lojas de festas ainda exibiam fantasias de halloween. Viramos à esquerda, na Rua Coronel Cascudo. O Bar da Meladinha estava lá, iluminando a esquina com o Beco da Lama.
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A Casa do Estudante é uma instituição de apoio a estudantes do estado do Rio Grande do Norte, construído para abrigar o antigo Hospital da Caridade, em 1856, a Casa do Estudante é um edifício eclético tombado como parte do Patrimônio Arquitetônico em Natal em 1993. 33 Light Emitting Diode, em inglês, é usado para a emissão de luz em locais e instrumentos onde se torna mais conveniente a sua utilização no lugar de uma lâmpada.
CAPÍTULO TRÊS
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Taí, Babina, cê não queria conhecer o Beco da Lama?
Conta, Lenilton, que eu sei que esse lugar tem história.
Ocupamos duas mesas de plástico e ele começou.
Nazih era um libanês chato que era dono desse bar aqui. Antigamente não tinha nada, só meladinha. Hoje que já tem essas coisas: água, refrigerante, num sei o que lá. Antes era só meladinha. Meladinha é uma bebida de cachaça, mel e limão. Quando Nazih era vivo ele quem fazia. Ele fazia uma por uma, demorava muito pra chegar. E era diferente, sabe? Agora é o filho dele quem cuida. Agora eles botam a cachaça, o mel e o suco de limão que já fica pronto, guardado ali em baixo. Não é a mesma coisa, sabe? Quando era Nazih, fazia uma por uma, assim (fazendo o movimento com as mãos), espremia o limão na hora. Ela vinha espumando, sabe? Era muito bom. Uma vez, uma amiga nossa veio para um congresso na universidade e eu trouxe ela pra cá. Ela era viajada, conhecia muitos lugares. Mas ela me pediu que eu levasse ela pra um canto que só tivesse aqui em Natal. Porque ela dizia que as vezes você vai em um lugar que parece o mesmo de outras cidades, sabe? Que não tem nada de diferente. Como um Mcdonalds da vida. Que tem em toda cidade. Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela gostou.
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Já era quase 18h. As lojas estavam fechando. Muito movimento de gente indo para casa.
Faltou te levar lá na SAMBA. Agora já tá tarde.
Samba?
É, Sociedade de Amigos do Beco da lama e Adjacências. Eles têm um jornalzinho daqui, bem legal. Tá na terceira edição, já. Fica pra um outro passeio.
E terminamos o dia, assim, sentados no Bar da Meladinha, esquina com o Beco da Lama, cada um com o seu copinho de cachaça, mel e limão, a não ser Marinalva, que estava dirigindo.
CAPÍTULO TRÊS
42. Luiz Gadelha, entrevistado do 2º passeio. Acervo pessoal, 2015.
PASSEIO 2. GADELHA O segundo passeio acompanhado aconteceu em presença do músico potiguar, Luiz Gadelha, 39, também membro do Grupo Estandarte de Teatro. Luiz preferiu concentrar a caminhada no bairro da Ribeira, que para ele tinha mais significância dentro de suas experiências pessoais no Centro Histórico de Natal. 05 de novembro de 2015. Conheço Luiz Gadelha desde os tempos do meu ensino médio. Mas, talvez ele nem se lembre de mim como uma das garotinhas daquele grupo de teatro do CEFET34, o qual ele fazia as trilhas sonoras dos espetáculos por amizade à Marinalva (a da entrevista anterior), que se esforçava em dirigir um grupo de adolescentes cheios de espinhas, e que hoje é minha colega no Grupo Estandarte. Lembro-me de sempre ver Gadelha em festas na Ribeira e de dar aquele sorrisinho de quem cumprimenta sem conhecer muito bem. No entanto, há alguns meses, ele começou
34
Atual, IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte, o antigo CEFET - Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte, foi onde cursei o curso técnico em Edificações durante o ensino médio, e comecei a participar do grupo de teatro Falas e Pantomimas com outros alunos da instituição.
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A PÉ
a frequentar os ensaios do Estandarte com assiduidade e hoje faz parte daquele grupo que é, para mim, quase uma segunda casa. Sendo assim, como gente de casa, eu o convidei para caminhar comigo em prol deste trabalho. Marcamos de nos encontrar em frente ao TAM – Teatro Alberto Maranhão, na Ribeira, já que nós dois iriamos de ônibus, a Praça Augusto Severo nos pareceu um bom ponto de encontro. Cheguei dez minutos atrasada, Gadelha estava ainda mais atrasado do que eu, mas, por coincidência, Lenilton Teixeira (o da entrevista anterior), estava por ali, como se me esperasse. Durante esses dias estava acontecendo o FLIN – Festival Literário de Natal e Lenilton auxilia na coordenação das atividades. Gadelha não demorou muito a chegar e iniciamos então, os três, uma troca de opiniões
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sobre Natal e sobre como nos sentimos em relação a ela. Como a vivenciamos, ou não, e de como, às vezes, não a sentimos nem nos sentimos parte dela.
Mas Natal é uma cidade esquisita, porque assim, com os americanos aqui, criou-se umas doenças. Uma que foi o lance do pioneirismo, essa história de ser “o primeiro” num sei o que lá, num sei o que. A primeira contaminação do ponto de vista do estrangeirismo de algumas coisas: do chiclete, da Coca-Cola. E também a mudança dos nomes das ruas em detrimento da facilidade dos americanos, botar: 1, 2, 3... Pra facilitar a locomoção deles. Então você perdia a identidade própria da rua que era Rua Fulano de Tal, num sei o que, e passou a ser 1, 2, 3, 4.
Mas a gente tem muita, ainda, assim, “coisa” com Natal. É difícil admitir que gosta das coisas daqui. É difícil, muito difícil. A gente vê outras cidades que tem muito orgulho. Você vê uma pessoa de Recife...
Não, Pernambuco é demais, é diferente.
Você vê uma pessoa da Bahia! Nossa senhora! Eles amam demais a Bahia.
Mas eu acho que Natal é essa cidade metida a besta que tem uma pretenciosa cosmopota, cospomotolinização, como é que é? Hahahaha. Cosmopolanitalidade. Como é que chama isso?
Eu acho que é cos-mo-politi-zação. Haha.
E tudo começou aqui, né?
CAPÍTULO TRÊS
Papo vai, papo vem, sentados debaixo de uma árvore, ficaríamos ali o dia todo. Mas o passeio nem tinha começado, precisávamos ir.
Falando nisso, Babina, vamos começar?
Vamos!
Por onde a gente começa?
Você que decide! Hoje quem faz o roteiro é você.
Então, a gente pode começar por aqui mesmo. Só o que tem aqui é história! Aqui, aqui e ali. (Apontando para o teatro, para a praça e para alguns edifícios em volta).
Começamos com as lembranças do Teatro Alberto Maranhão, já que estávamos ali em frente.
Nossa, olha: O primeiro show que eu fiz, de verdade, foi no Alberto Maranhão. Foi em 1997. Dentro do projeto Seis e Meia. Demorou muito para eu conseguir isso. Eu já tinha tentado bastante. Aqui já existia um movimento musical, mas só rodava aquelas pessoas, sempre. E o Seis e meia era muito legal, porque era o único projeto, famoso, que tinha na cidade e que abria espaço para pessoas de fora. Mas eu já apresentei peça aí, também. Quando eu era adolescente. E lotava! Teve uma época que esse negócio lotava muito! A direção ficava desesperada. Por que não podia, porque o teatro não aguentava. E esse pobrezinho, hoje tá totalmente esquecido, né?
Então iniciamos de fato a caminhada. Atravessamos a rua que contorna a praça, passamos pelos ambulantes que ocupam as paradas dos ônibus e ainda na mesma calçada, Gadelha apontou para uma janela no andar superior de um dos prédios que margeavam a praça.
Ali em cima, tá vendo aquele negócio colorido?
Sei.
É o único canto colorido que tem. Tem ali “Beto Lanches” e em cima era um lugar de uma galera de teatro que inventou de fazer uns sarais, umas coisas com música. Eles ocuparam esse espaço.
Quando isso?
Em 2008.
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CAPÍTULO TRÊS
Eu me apaixonei loucamente no dia que eu vim aí. Eu nunca vou esquecer. Mas, menina, isso aí é desse jeito, até hoje, quase caindo.
Mirando um pouco mais à frente e cobrindo os olhos, pela luz do sol que baixava a oeste e nos cegava um pouco, ele continuou.
Ó ali, tá vendo aquele “CDI ambientes”?
Tô.
Do lado num tem um prédio comprido?
Tem.
Ali, no último andar, era um lugar de uma galera bem alternativa que fazia festas, fazia eventos e que trabalhava com publicidade. Era um lugar muito legal. Depois virou um estúdio de gravação. É linda a vista que tem! Porque todos os andares, no fundo, têm uma varanda.
Dá pra ver o rio?
Dá pra ver o rio. É lindo.
Continuamos, pela Rua Sachet, e seguimos a direita para entrar na Rua Dr. Barata.
Olha ali em cima, o ano em números romanos, você sabe ler? (Apontando para os números em cima de uma janela, que provavelmente indicavam o ano da construção do edifício).
Sei, quer ver? Mil novecentos e vinte cinco!
Eita. Olha aquele outro (aponta para o frontão do segundo andar do edifício vizinho). Que lindo. Eu acho tão bonito isso.
É lindo, mesmo.
Ó, aqui nessa esquina era uma barbearia, que eu lembro porque funcionou até bem pouco tempo. E o primeiro panfleto de show que eu fiz foi em uma gráfica que tinha aqui. Uma bem pequenininha. Acho que era essa porta aqui. Mas não tem mais.
Você sente essa diferença, de que antes existam mais lugares abertos aqui?
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Sim. As pessoas vinham muito para a cidade, né? Pro centro da Cidade e pra Ribeira. Depois que teve a inauguração dos shoppings - Natal Shopping, Midway - tudo concentrou lá. As pessoas deixaram muito de vir pra cá. Então diminuiu bastante, né?
Nesse momento já estávamos na esquina com a Av. Tavares de Lira. E Luiz chamou a minha atenção para o rio, à esquerda.
Olha, ali no final, cê já foi até lá?
Sim, sim.
Ali, tinha um lugar que tinha um show, um evento que se chamava: Pôr do sol, num sei o que. Você cantava num barco.
Mas o show era ali?
Era ali, o barco saia dali. E todo mundo entrava, e tinha um show, voz e violão, num barco. E ficava todo mundo andando no rio. Era bem legal.
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Atravessamos a Tavares de Lira e entramos na Rua Frei Miguelinho.
Aqui acontecia, eu acho que você já deve ter ouvido falar, a Rua da Casa.
Rua da casa? - Entendi que se referia a Casa da Ribeira, mas não conhecia.
É, a Casa da Ribeira tava ainda sendo construída. Os Clowns35 tinham se apropriado do prédio, que era um prédio em ruínas, não tinha nada. E aí eles começaram a chamar artistas pra fazer eventos pra chamar atenção. Pra captar recursos, pra se apropriar desse prédio. E aí essa rua ficava fechada e as coisas aconteciam na rua, em frente à Casa da Ribeira. Acontecia um domingo por mês. Meu sonho era cantar nesse lugar. Tinha muita apresentação de teatro de rua. O Galpão36 se apresentou aí! Faz muitos anos isso, eu lembro. Ai muito artista que eu amava se apresentava e eu vinha ver. Era um evento muito importante, ficava multo cheio. Natal não tinha muita coisa não, sabe?
E quem frequentava?
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Criado em 1993, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare desenvolve desde então atividades artísticas na cidade de Natal. 36
Criado em 1982, o Grupo Galpão é uma das companhias mais importantes do cenário teatral brasileiro, cuja origem está ligada à tradição do teatro popular e de rua.
CAPÍTULO TRÊS
Então, não se tinha esse olhar pra artista daqui não. Era só artista que consumia artista daqui. Ou quem era da UFRN, que trabalhava com arte, era uma coisa muito fechada, porque as pessoas não queriam saber mesmo não. Olha aqui também já foi um espaço que a gente usou pra ensaiar, nessas janelinhas.
As janelas de madeira do grande edifício branco na esquina da Rua Frei Miguelinho com a Esplanada Silva Jardim estavam fechadas, e assim como ele, transmitiam uma sensação de esquecimento.
Uma galera se apropriou disso aí numa época. Várias pessoas usavam pra ensaiar. É bem legal lá dentro. É imenso.
Continuamos caminhando, entramos a esquerda na Esplanada Silva Jardim, em direção à Rua Chile.
Qual sua lembrança mais viva daqui?
Teve uma época que revitalizaram aqui, né? Isso foi público.
Sim, na época da pintura das fachadas?
Era. Foi principalmente na Rua Chile. Tudo funcionava e era muito cheio mesmo. E aí todo mundo que tinha vontade de fazer algum trabalho artístico, queria tocar aqui. Era um privilégio, viu? Era uma coisa muito importante. E eu vinha e ficava sempre pensando: “Meu Deus, se eu disser pra alguém que eu toquei em algum lugar na Ribeira?” Nossa, era muito importante.
Havíamos chegado ao largo da Rua Chile, alguns carros estacionados, e caminhões do porto estavam por ali.
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Uma das primeiras vezes que eu cantei, foi um palco imenso aqui. Não me lembro qual era o evento, mas era muita mesa espalhada aqui e um palco. E eu cantei. Voz e Violão. O Blackout37 era aqui (apontando para uma das portas que hoje compõe o Galpão 2938). O Blackout era só isso, o Galpão não existia não.
Blackout: Bar e casa de espetáculos localizada na Rua Chile entre 1997 e 2004.
Galpão 29: Espaço de festas e shows noturnos, atualmente ocupa o espaço onde anteriormente se localizava o Blackout.
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CAPÍTULO TRÊS
43. Início da caminhada; Sol na cara, Frontões com números romanos e Cerca no Terminal Marítimo de passageiros.. Acervo pessoal, 2015.
Você frequentava o Blackout?
Frequentava! Era uma das coisas mais maravilhosas de Natal. Todo mundo queria tocar aí. As melhores bandas vinham tocar. As melhores pessoas vinham pra cá: jornalistas, tudo, tudo. Tocar aí era alto nível! Eu só consegui muitos anos depois.
Ele foi seguindo para a lateral do Terminal Marítimo de Passageiros, onde ainda é possível ver o rio, mesmo que por trás de uma grade.
Aqui era lindo.
Aqui era aberto?
Era. Olha, era ali que eu estudava. - Luiz apontava para uma rampa que saia de um pequeno edifício antigo, branco com detalhes pretos. Levava uma espécie de letreiro acima das portas com nome “CENTRO NÁUTICO POTENGY” apontado para o rio.
Han? Que você estudou?
Era, eu estudei remo.
Sério?
Sim! Na primeira aula, a gente já entra no barco. Mas fica só experimentando. E a segunda, a gente já vai. Sozinho.
E vai até onde?
Vai até onde quiser. E o professor fica olhando. AÍ uma vez, eu fui até lá, tá vendo? Onde tem o mato?
Tô.
Encalhei!
Hahaha.
Porque tinha muita lama. E eu não conseguia sair, o professor teve que ir me buscar. Vamos lá, quero te mostrar lá dentro.
Demos a volta, passando novamente pela Rua Chile e adentramos no Centro Náutico Potengy. Algumas pessoas treinavam em aparelhos que simulam as remadas. Vários
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barcos estavam empilhados em uma espécie de prateleira para barcos. O espaço era um grande ambiente sob treliças de madeira e uma cobertura aparente de telhas cerâmicas. Ao fundo, o rio entre duas portas. Fomos em direção a ele.
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Aí, era aqui que a gente estudava. Bem cedinho, 7h da manhã. A vista era linda, né? Mas aí construíram isso (se referindo ao terminal marítimo), matou um pouco, né? E eu não sei como tá sendo as aulas, que tá meio fechado o caminho. Antes o professor tinha mais visão dos alunos né? É um esporte muito bonito, muito cheio de filosofia, é muito legal o contato com a natureza, né? Mas a água é muito suja. Na época que eu vim, eu vi bicho morto, vi fezes, aí eu fiquei um pouco assim, desisti, não consegui não. Tinha um barco da prefeitura que tirava lixo todo dia daqui. Todo dia. Todo dia. Mas, muitos, muitos quilos de lixo. Porque tudo vem pra cá, né? De esgoto.
E como é ver a cidade vista do rio?
Nossa, é impressionante. Parece outra cidade. É linda, é muito linda. Mas muito malcuidada também, né? E eles estão aqui, né? (Apontando para o edifício). Há anos resistindo nessa escola. Nesse prédio velho. Eu acho aqui um lugar muito especial, muito roots39 ainda, do jeito que era antes. O cara daqui é muito legal e ele leva a história do centro náutico com muito amor, mesmo sendo muito desvalorizado. Fico pensando o quanto ele é pressionado pra sair daqui. Não sei se tem muito aluno, e assim, é um esporte que depende muito da natureza, né? Não é todo mundo que se dispõe a isso.
Despedimo-nos do antigo professor de Luiz e voltamos para a rua. Andamos um pouco e paramos em frente ao Do Sol40.
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Aqui é o Do Sol, incrível. Essa semana tem festival de música aqui. Eles fecham a rua daqui até lá no final. Pronto, na época da revitalização, todos esses lugares ficavam abertos.
Você lembra quais eram os espaços?
Aqui ficava aberto (se referindo ao Do Sol), ali se chamava Armazém do Cais (apontando para a casa de Ferreira de Itajubá), aí lá era o Blackout, acho que esse aqui
Roots significa raiz, em inglês. É uma gíria que pode significar algo como “base” ou “essência”. O Centro Cultural Do Sol Combo, casa especializada em música autoral desenvolve atividades relacionadas à música, presente no cenário cultural da Ribeira desde 2004. 40
CAPÍTULO TRÊS
também é outro (para uma casa verde fechada). Eu sei que concentrava gente. As ruas cheias de mesinhas e cada lugar uma atração, cada lugar tinha uma coisa. Desde lá do começo da rua.
Devia ser muito bom.
Era muito bom. Eu tava começando na época e o sonho era tocar aqui. Mas abandonaram, né? Muito. Se tornou muito perigoso, muito distante.
Você sente que é perigoso?
Eu sinto que é perigoso. Eu já fui assaltado aqui. Aqui mesmo onde a gente tá agora.
Continuamos pela Rua Chile, Gadelha ia me guiando. Passamos por uma sessão de fotografia de uma adolescente, me pareceu algo como fotos para um álbum de 15 anos. E algumas crianças vestidas com roupas de balé brincavam na rua em frente a um casarão de onde se ouviam vozes de muitas pessoas.
Aqui, é a EDTAM – a Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão, muito bonito esse prédio, já ensaiei aí. Mas assim, hoje em dia, a maioria das coisas daqui da Ribeira é de comércio de peixe, né? (Estávamos passando em frente a uma empresa de pesca). Agora só falta te mostrar a Rua Buraco da Catita.
Voltamos para a Av. Tavares de Lira, caminhando em direção da Rua Câmara Cascudo, esquina com o Buraco da Catita.
Pronto, aqui já foi um dos maiores sucessos de público da Ribeira. Do nada, um samba e todo mundo ficava aqui. Cê já chegou a vir?
Já sim, mas eu preferia antes quando não fechavam a rua.
É, agora fecham, né? Porque antes era totalmente democrático. Tudo, né? Inclusive a música.
Ah, é? As pessoas entravam pra tocar?
Entravam! Era tudo aberto, tudo normal. E era bem improvisado, assim, uma mulher numa mesa vendendo ficha de cerveja.
Aqui? Sério?
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Era! Não tinha o que tinha hoje não. Era um lugar bem simples. Tinha um isopor com cerveja e a mulher vendendo. Aí vendia uns caldinhos, umas coisas, e a galera ficava aqui.
Mas já era Buraco da Catita?
Já! Mas a rua no começo não era assim, com esse calçamento de rua, era como essa de paralelepípedo, igual a esses becos. Foram eles que revitalizaram, né?
A Rua do Buraco da Catita foi o último lugar que Luiz escolheu para me mostrar. Depois disso fomos voltando para Praça Augusto Severo, quem sabe encontrar Lenilton outra vez e ir para casa. No caminho, revi algumas perguntas que eu não tinha feito.
Ah, Gadelha, não te perguntei, o que você gosta de fazer hoje, por aqui?
Hoje? Assim, nos dias de hoje?
Isso.
Eu gosto de ir ao Do Sol e ao Atelier, um bar que abriu lá na Rua Chile também, a gente passou em frente. Gosto. Eu tenho medo, na verdade. Eu só venho se tiver uma carona, porque eu tenho medo de descer aqui na praça e ir andando até lá. Jamais. Eu gosto desses lugares, me sinto bem. Mas é perigoso, viu?
E, por fim, você sente saudades de alguma coisa em especial?
Pra mim, as coisas são muito ligadas às pessoas. Cada canto tem uma situação que eu vivi com alguém, mas não é saudade, é alguma coisa que marca. Sabe?
CAPÍTULO TRÊS
44. Vista interrompida do rio, Bar Buraco da Catita. Acervo pessoal, 2015.
45. Personagens da 3ª visita de campo. Lenilton Teixeira, 2015.
160 160 PASSEIO 3. TÁRCIO, ADERBAL, PEDRO, ANTÔNIO E RAMOS A visita número três aconteceu no bairro de Cidade Alta. Inicialmente se intencionava realizar uma entrevista e um passeio acompanhado com Tárcio Fontenele, 49, presidente da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (Samba). Lenilton Teixeira, figura já apresentada anteriormente (visita 01) foi o responsável pela intermediação. No entanto, vários outros personagens surgiram durante a conversa e ajudaram a compor um múltiplo e rico depoimento sobre o Centro Histórico. Além de Tárcio, foram entrevistados: o advogado Aderbal Ferreira Silva, o músico Pedro Mendes, 53; o professor aposentado Antônio Capistrano e o proprietário do Sebo Balalaika, Severino Ramos. A seguir, a transcrição dos principais momentos das entrevistas que aconteceram na manhã de um sábado nas dependências do Sebo Balalaika, além do relato do pequeno passeio acompanhado realizado com Tárcio pelas adjacências do Beco da Lama.
A PÉ
7 de novembro de 2015 No final da visita 01, enquanto tomávamos a meladinha no antigo bar de Nazih, Lenilton me falava sobre a Samba - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, e prometeu me apresentar ao presidente dela, Tárcio Fontenele. Prometeu, teve que cumprir. Marcamos para 7 de novembro, sábado pela manhã, às 10h, em frente a Capitania das Artes. De lá, subimos a Av. Câmara Cascudo em direção à Cidade Alta. Eu imaginava que íamos encontrar Tárcio no próprio beco, mas depois de passar pela Prefeitura na Av. Ulisses Caldas, entramos na Rua Vigário Bartolomeu, em direção ao Sebo Balalaika.
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O escritório deles é aqui.
Nesse sebo?
Na porta do sebo algumas pessoas conversavam e Ramos, ao qual fui apresentada assim que entramos, proprietário do estabelecimento, organizava e limpava alguns livros. Fomos em direção ao final da loja e por trás de uma mesa repleta de equipamentos de som, computadores e material de escritório, estava Tárcio. Lenilton me apresentou como “aquela menina que eu tinha lhe falado, Bárbara Babina”.
Sentem aí, querem água?
Ele parecia um pouco ocupado, estava ao telefone e bebemos água, eu me sentei em frente à mesa, em um sofázinho antigo que havia por lá e esperei que ele terminasse a ligação.
Tárcio, eu posso conversar com você?
Poooode, omh.
Pois pronto, vou colocar o celular aqui pra gravar, tá certo?
CAPÍTULO TRÊS
Nesse momento, um senhor da pele vermelha queimada do sol e de cabelos bem branquinhos se aproximou da gente. Ficou ali observando a conversa que ia se iniciar, como se soubesse que poderia contribuir.
Então, o meu trabalho é sobre as experiências e lembranças de pessoas aqui no Centro Histórico.
Mas eu sou muito novo. Tá bom de você conversar com um caba de uns 80 anos, uns 70.
Não, qualquer pessoa que tenha vivido, ou trabalhado aqui, independentemente da idade, não tem problema, dá pra entrevistar.
Lenilton tentou me ajudar a explicar.
Mas as memórias que ela fala, não quer dizer velhice. Está mais relacionada aos afetos, as vivencias.
Eu entendi! Eu entendi. Dá pra eu fazer aqui algumas coisas, mas eu digo assim, Dunga, por exemplo, era muito bom, né?
Quem é Dunga? - Eu quis saber.
Nesse momento o senhor dos cabelos brancos, já havia se sentado próximo a mim e interviu na conversa.
Dunga é “um caba”41 que suja uns pano de tinta e diz que é pintor.
Após explicar novamente que independente de idade e ou de tempo de vivência no centro histórico, o que me interessava eram as experiências de qualquer um que tivesse uma relação com aquele lugar, me pareceu, que Tárcio e o senhor de cabelos brancos, que agora já havia se inserido definitivamente na conversa, haviam entendido que poderiam me ajudar e que eu não reclamaria nem desdenharia daquilo que lhes era importante. O senhor então começou:
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“Um caba”: um cabra. Expressão popular nordestina, que se refere a “um homem”.
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Em vim morar aqui em (19)75. No centro, aqui.
Pronto, óia, ele pode te contar mais coisa - Entendi que Tárcio iria passar a bola do discurso para quem ele pudesse.
Alcancei a Confeitaria Delicia; os porres homéricos de Navarro, Newton Navarro, arriado, os caba levava ele pra casa, lá em baixo na Confeitaria. Porque eu morava lá em baixo, na Ribeira e aí andava por aqui, né?
Pois eu vou conversar com vocês dois, então.
Eu ia da Ribeira pra Casa do Estudante. Quando a Casa do Estudante funcionava, que tinha uma importância social fantástica. A gente vinha do interior e escapava lá, sabe? Ninguém tinha condições de estudar no interior e nem os pais tinham condições de bancar, aí então a gente vinha. Aí tinha o 20 que era o povo do Jardim do Seridó, o 19 era o povo de num sei de onde. E quem vivenciou essa vivência da Casa do Estudante, por exemplo, você fica amigo pro resto da vida, sabe? E ficaram lembranças de porres de quando a gente andava aqui que tinha o RP, que era um fuscazinho azul com dois policiais. Num tinha crime. A gente saia do ABC, da festa de noite com o tênis na mão, a camisa nas costas e ia se despedir da namorada aqui nessa praça da Metropolitana, depois que lanchava no Chapinha. Natal tinha essa coisa de 40 anos atrás, se você andasse na Ribeira era muito legal. Porque você tinha essa coisa do erótico, dos cabarés com o cultural com o artista fazendo performance, sabe? Era aquela radiola de ficha antiga. Sem ser aquela colorida que você botava a ficha, era aquela radiola em cima do balcão tocando Genival Santos. Então, eu estudava nas Rocas, por exemplo, lá na Escola Alberto Maranhão, e eu fazia esse percurso toda a noite pra ir e vir.
Desculpe, qual percurso?
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Lembro-me de ter me perdido um pouco na conversa, porque além de tanta história e informação, o senhor da pele vermelha falava muito rápido e continuava a falar sem nenhuma intervenção da minha parte.
Da Ribeira ali, da rodoviária antiga pras Rocas, lá pra Escola Alberto Maranhão, que era depois do mercado.
Pela Av. Duque de Caxias, mesmo?
Pronto, era por ali. Então, esse percurso eu fazia toda noite e vinha, era tão tranquilo Natal que eu vinha a pé de dez horas da noite, das Rocas pra cá e num tinha problema. Um assalto era um negócio mais…; então a gente tinha essas coisas da boemia, uma boemia sadia, que as pessoas, figuras de nome aqui no estado, como eu sei de Newton
CAPÍTULO TRÊS
Navarro e outros mais, escritores, que ficavam ao redor de uma mesa contando história, bebendo, se divertindo. Não havia nada dessa história de violência. Você tinha uma Natal ainda tranquila. E isso aqui, o Centro Histórico de Natal, ó, daqui pra Ribeira até as Rocas, havia cultura. Uma coisa normal. Você não tinha esse business de butá um palco, num sei o que. Ah! “Os caba” tocava com um violão. Eu toquei muito violão de noite, na porta do prédio, juntava aquele pessoal tudo conhecido, sabe? Aí você tinha essa coisa na rodoviária, umas figuras que andavam lá. As festas eram nos clubes. Você tinha o América que era da elite, você tinha a AABB42 e você tinha o ABC43, tinha o Atlântico44, Natal era essa coisa bacana, sabe? Você andava a pé.
Era muito mais vivo aqui, então.
Tá doido! Era muito mais vivo. Hoje você tudo que cê vai fazer tem que ter uma verba, butá um palanque do tamanho do mundo, sabe? Então você tira o artista popular de fazer a performance espontânea. Que é o que a gente tá querendo trazer pra cá de volta. O pessoal da Samba tá querendo fazer eventos pra cento e cinquenta pessoas, pra cem, fazer pequenas performances, num barzinho, uma coisa que não tem uma preocupação. Como antigamente que a gente chegava aqui em Odete, era uma onda a gente vir tomar um porre aqui em Odete. Era aquela coisa do tira gosto, da cachaça. A meladinha de Nazih.
Sim, eu fui lá.
Pronto, a meladinha de Nazih era fantástica! E Nazih era aquele dono de bar chato que a gente ia lá porque ele era chato. Ele dava um carão na gente por nada. “Num sei o que num sei o que, quer mais não?” Esses negócio, sabe? Mas era por Nazih ser assim, e a meladinha dele só quem fazia era ele, que a gente frequentava.
Ramos, o proprietário do sebo, se aproximava dos fundos da loja, onde nós estávamos, e Tárcio, mais uma vez, tratou de me arrumar um novo entrevistado.
Ó, Ramos, Ramos faz tempo que ele tá aqui. Pelo centro aqui, você tá aqui faz quanto tempo?
Eu tô aqui de (19)78 pra cá.
42
AABB: Associação Atlética Banco do Brasil, fundada em 1945, localiza-se atualmente na Av. Hermes da Fonseca, Tirol. 43
ABC: ABC Futebol Clube fundado em 29 de junho de 1915.
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Atlântico: Clube dos Suboficiais e Sargentos Marinha.
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Expliquei para ele qual era o objetivo da entrevista e ele de pronto me contou sobre uma época da qual ele sente falta.
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Agora, o Centro já foi mais prazeroso quando havia as livrarias de Natal. As primeiras livrarias de Natal e os cinemas, os primeiros cinemas. Aí era muito prazeroso o Centro da cidade. O Nordeste aqui, o Cinema Rio Grande, o Cinema Rex e as livrarias. As primeiras livrarias de Natal foram aqui na Rio Branco, a livraria Universitária e a livraria Opção. Eu trabalhei em ambas as livrarias. Então, nessas livrarias, acontecia no sábado o encontro dos intelectuais, os poetas, os escritores. Também tinha a Clima, lá na Ribeira. Aí o centro tinha uma vida cultural mais ativa, mais bonita. Ó você pega, vê um filme no Nordeste, no Rio Grande, tinha um cinema de arte no Rio Grande, nos domingos de manhã. Aí o centro era mais bonito, mais prazeroso.
E quando foi que você começou a sentir que essa vida bonita e prazerosa começou a cair?
O centro começou a cair quando começaram a montar os shoppings em Natal. Aí, os shoppings levaram essa parte cultural mais ativa. Os cinemas ficaram concentrados nos shoppings, as livrarias, nos shoppings. Os shoppings desativaram o centro da cidade. Eu permaneço aqui, eu já tenho sebo há 23 anos.
E porque você permanece aqui?
Eu não vô sair do centro não. Eu comecei aqui e vou ficar por aqui. Até o final. Eu não vô levar meu sebo pro shopping.
Neste momento alguns clientes adentravam o sebo e Ramos levantou-se para atendê-los. Assim como clientes, percebi que algumas outras figuras chegavam como visitar o espaço, mas ao mesmo tempo para reencontrar velhos conhecidos, como se ali fosse um ponto de reencontro. Um deles se dirigiu a mim, perguntou o que eu estava fazendo ali, expliquei e acrescentei: “ouvindo pessoas”, ele disse que poderia me ajudar, que conhecia bastante o centro histórico.
Bom, meu nome é Pedro Mendes. Eu sou cantor e compositor.
Você é daqui de Natal?
Eu nasci em Parnamirim, mas isso é só um fato, papai era da Aeronáutica. Eu moro, sempre morei aqui, no Barro Vermelho. E vou fazer 53 anos. Já tenho uma história de
CAPÍTULO TRÊS
música há mais de trinta anos, e conheço muito dessa geografia que você tá estudando. Eu posso lhe falar, porque eu gosto muito, das ruas, dos prédios.
E qual a sua rua preferida daqui?
Do centro? Olha, eu gosto de andar não muito na parte mais comercial porque já acostumou demais, né? Eu gosto dessas ruazinhas que eu chamo “Olindinha”, né?
Olindinha?
É porque parece com as coisas de Olinda (PE), esses bequinhos, só que três séculos depois. Então eu gosto muito daqui. Eu me lembro que meu avô dizia muito pra mim, a primeira vez que ele veio a Natal foi em 1913, né? Pra você ter ideia. Ele já faleceu há muitos anos. Mas ele dizia que Natal era linda. Os casarios da antiga Ribeira, subindo, todos eram bonitos. Aí as pessoas começaram a descaracterizar tanto, sabe? Que é uma pena. Eu vejo as fotos eu fico me vendo aqui no bonde subindo aí, né? Mas eu sinto como se Natal não observasse, sabe? A minha música mais popular diz isso, fala um pouco disso. Ela fala assim: Que aqui não tem avenida São João Nem o mesmo padrão que se tem por aí Coisas que não tem em todo o canto não se deve exigir Isso é Natal, ninguém se dá muito mal Como dizem pessoas quase sem se sentir Linda baby, baby linda, volte sempre aqui. Eu fiz essa música, Linda Baby. Então, eu falo exatamente disso, o que me magoa é assim, eu quero te dizer em magoar não é falando em tristeza, mas é assim é esse aspecto que eu acho que o Centro tem e assim ele vai sobrevivendo e os prédios vão caindo, sabe? Mas eu acho muito bonitinho isso aqui. Eu gosto muito da Rua da Misericórdia, que eu acho que é o nosso píer, né? Pra ver a cena mais bonita do dia em Natal é o pôr do sol, o nascer é muito bonito, mas o pôr do sol vai avermelhando a cidade por lá.
A rua da misericórdia é aquela que acaba na Casa do Estudante, né?
É, aquela que tem um paredão. O prédio da Casa do Estudante, que você falou, aquilo é uma nobreza para o que a gente tem. Ele é uma nobreza, já já vai desabar! Tem uma história, mas vai se escorregando.
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A PÉ
Agradeci e nessa hora, chamei Tárcio para conversar, ele que já havia fugido de mim algumas vezes, meio que desacreditado da importância de suas experiências.
Mas Tárcio, deixa eu conversar com você. Já falei com todo mundo e ainda não falei com você. Me conta um pouco da sua relação com o Beco da Lama.
Assim, é porque minha mãe, minha mãe trabalhava na Praça Padre João Maria vendendo artesanato, certo? Isso em, sei lá, há uns vinte e tantos anos atrás. Aí eu sempre vivia aqui no Beco, aqui no centro, na verdade. Eu sempre andei por aqui. Então, começou por aí, agora o que é que muda? Nazih que não tem mais, Odete aqui que o pessoal ia muito.
Odete era um bar?
Era, era o Bar da Odete. Aí eu digo assim, o que eu tenho mais assim de coisa são mais os bares, entendeu? E a convivência de entrar na catedral na época que a nova, entendeu? Essas pequenas coisas de ficar por aqui andando, desde a época que eu era mais rapaz até hoje eu ando por aqui.
E como foi que você se tornou o presidente da Samba?
É que é assim, a questão de eu conviver muito por aqui, então, a Samba é uma coisa que é daqui. A Samba tem vinte ou vinte e um anos. E o único que precisa na verdade é do poder público pra fazer alguma coisa, ela não tem receita própria, não tem como sobreviver assim sozinha. Ai a gente faz algumas coisas sozinho, faz outras coisas. Ó, em dezembro agora a gente vai fazer o Carna Beco e o Pratodomundo que é o primeiro festival de gastronomia daqui do estado, entendeu? Tem 12, 13 anos, o Pratodomundo. Então é o que, os donos dos bares que apresentam suas receitas, né? A galera sai provando aí, a gente bota os jurados e são três sábados. Aí no último sábado tem show, tem eventos com música.
Vem muita gente?
Depende, né? Teve uma época que já teve mais gente, né? Mas vem.
Mas normalmente são as pessoas que já circulam por aqui?
Não, não. Vem pessoas novas, entendeu? Vem pessoas novas provar, vem conhecer. E esse ano a gente vai introduzir a meladinha, cê já foi tomar a meladinha ali?
Já, já fui.
Pronto, a gente vai tentar fazer com a meladinha também, começar um festival de meladinha, sabe?
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CAPÍTULO TRÊS
Ô Tárcio, e qual é a sua lembrança mais viva do Beco?
É, é na época de Nazih mesmo. Uma coisa assim quando a pessoa fala em Beco da Lama, já lembra de Nazih. Ah meu deus, deixa eu ver, eu devia ter assim, uns vinte tantos anos. Então já faz uns vinte anos que eu vinha aí em Nazih. Mas assim, o que eu gosto mesmo da questão do centro é a questão que eu sempre passava ali aí tinha um cara tocando violão, tinha um poeta recitando, aí tinha, como é nome daquele caba da caixa de fósforo? Hein Ramos? Que ficava aqui, omh.
Mário Solinha, Mário, Mário.
Isso, Mário Solinha. Então, esse senhor me chamava muita atenção. Ele sentava, e eu passava, eu novo, e ele ficava com a caixa de fósforo tocando um samba, samba. Ai pronto, tinha Maínha, que às vezes você pegava ele tocando sax, entendeu?
E isso, esse tipo de atividade continua?
Continua, continua, mais assim hoje tá muito essa indústria do evento, tem que pedir uma licença, num sei o que. Aí, a questão do espontâneo, assim, tem, tem, mas é menos, bem menos.
O senhor da pele vermelha, o qual eu ainda não sabia o nome, voltou a se aproximar e entrou na conversa.
Há poucos dias, o menino aqui do Café São Luiz45 levava uma velha guarda pra lá, com violão, cavaquinho, pandeiro pra fazer chorinho, era fantástico. Todos bem empregados, sem cobrar nada, levava uma vasilhazinha pra alguém da uns trocados pra eles beberem.
A prefeitura barrou, num foi?
Barrou, foi. É imoral, né? E assim, a gente tem uma preocupação muito grande com o crack.
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Como assim?
Por que assim, o melhor lugar de Natal pra ter crack é esse Beco. Porque o Beco, assim, tem gente que mora aqui há 50 anos e num conhece esse beco. Porque passa pra cá, passa pra cá, passa pra cá e num entra no Beco.
Fundado em 1937 o Café São Luiz Grande Ponto está localizado na Av. Princesa Isabel, foi reformado e reinaugurado em 29 de novembro de 2013.
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A PÉ
46. Entrevistas no Sebo Balalaika; Fotografando; Movimentação em frente do sebo. Lenilton Teixeira e Acervo pessoal, 2015.
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Mas por quê? Por medo?
Não, porque não precisa, você não tem necessidade de entrar nesse beco. Então você passa e não precisa nem olhar. Você num vê. Você passa de lá pra cá você num vê! Então a gente tem uma preocupação de quê? De que se começar a proibir evento, de começar a proibir os bares abrir, isso aqui vai tomar lugar pra quê? Pro abandono. Você tem uma vida aqui muito grande de alimentação. Mas a vida noturna, praticamente não tem. Tem assim, algumas coisas. Pronto, eu ando por aqui muito bem, que eu vivo por aqui há num sei quantos anos, mas eu acho que outras pessoas que num conhece aqui deve ficar assustado. O que é que acontece se começar a não movimentar isso aqui? Se começar a ficar abandonado essa coisa aqui, talvez a gente perca pra droga. Como aí, a Praça Padre João Maria até um dia desses, tava. Então tem umas coisas aqui que a gente tem que ter um resgate. A questão da iluminação desse beco, e de tornar um calçadão. É uma coisa importantíssima pra gente. A proibição de carro.
Eu ainda não conheço o Beco.
Eu te levo lá.
No caminho até a porta, parei para perguntar o nome do senhor de cabelos brancos e pele vermelha que tantas histórias me contou.
Qual o nome do senhor? Que eu não lhe perguntei.
Olhe, uma vez uma me perguntou isso lá em Brejinho e eu disse: O nome do senhor é Jesus!
Ai desculpa!
É brincadeira! Eu sou senhor mesmo. Meu nome é Aderbal Ferreira Silva. Eu sou o advogado, poeta, brincante, cantador, precursor da irmandade dos galegos feios do Brasil! Eu me auto denomino assim.
Paramos na porta o Sebo, eu queria fotografar a fachada e as pessoas que conversavam ali na frente. Estávamos a um pé de sair quando Tárcio me arrumou mais um “caba” pra entrevistar.
Ei professor! Você viveu muitos anos aqui pelo Centro?
Sim, os anos (19)60 todinhos.
Ajuda essa moça aqui na tese dela ali. Dê uns minutinhos pra ela conversar com você.
CAPÍTULO TRÊS
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A PÉ
O senhor da voz serena e de fala correta, de boina e óculos de grau me acompanhou até o final da loja. No caminho, passamos por Ramos, que anunciou: “Esse aí foi o precursor das livrarias. Quando ele tava saindo eu tava chegando nas livrarias”. E foi assim que iniciamos nossa conversa.
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Então o senhor é da época das livrarias?
A livraria universitária era ali na Rio Branco, né? Era a grande livraria de Natal. Do Nordeste. Era conhecida como o ponto de encontro da cultura potiguar. Lá a gente reunia todos os dias, mas principalmente aos sábados, ia a intelectualidade de Natal, toda. A velha e a que tava chegando: Vicente Cerejo, Franklin Capistrano, meu irmão, a turma de esquerda, praticamente todos frequentavam a livraria também. E Natal, o Centro de Natal, nos anos (19)60 passa a ser o principal. Porque até os anos 50 era a Ribeira.
Ah é? Como era na Ribeira?
Ah, a Ribeira era muito movimentada. A Ribeira era o centro boêmio de Natal. Era onde tinha os cabarés, os bares tradicionais na Ribeira, né? E foi migrando pra Cidade. A Cidade foi assumindo esse papel durante os anos 60. Aí durante os anos 60, os principais cinemas de Natal, o Nordeste. E a gente tinha uma movimentação muito intensa tanto da parte cultural, com formações de grupos e teatro.
Você sabe dizer qual sua primeira lembrança daqui, do Centro ou da Ribeira?
Olhe, a minha primeira lembrança é da Ribeira, que eu morava nas Rocas. Papai e mamãe eram funcionários dos correios e trabalhavam ali na agência da Ribeira, na agência central, ainda existe. E eu vinha muito das Rocas em 1952/53, eu tinha 6, 7 anos e eu ia muito pra Ribeira, aí eu andava pela Ribeira, né?
Você gostava de andar por onde?
Ah, pelas ruas da Ribeira, a Dr. Barata, porque era muito movimentada. Fervilhava de gente, né?
De dia e de noite?
De dia e de noite, mas eu, na minha idade, eu vinha mais de dia. De noite eu comecei a andar mais a partir dos anos 60. Nos anos 60, a gente tinha um prefeito que era uma figura extraordinária. O maior do Brasil.
Qual?
CAPÍTULO TRÊS
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Era Djalma Maranhão. Djalma Maranhão fez um trabalho extraordinário. Que era um prefeito que tinha uma visão progressista das coisas, tinha um compromisso com a cidade. Com a Arquitetura, com a preservação do patrimônio histórico da cidade, né? Mas a cidade acabou-se. Natal tinha muitos prédios bons, bonitos, né? Destruíram e vem sendo destruídos irresponsavelmente sem que as autoridades tomem uma providência. Eu passei agora na Praça André de Albuquerque, essa praça aqui da antiga catedral, aquela praça ali era o canto da gente ir pras festas da padroeira de Natal. Ali tava armado os parques de diversões, né? As barracas, aqueles alto-falantes transmitindo músicas e oferecendo às pessoas que tavam passeando, né? E tinha também na Praça André de Albuquerque, Djalma Maranhão construiu, alguns equipamentos que o golpe militar destruiu. Que era a galeria de arte. A galeria de arte era o local de exposição e vinha gente de todo canto pra expor, Brennand46 veio pra cá. E além da galeria de arte tinha a concha acústica, no centro da praça, que era onde era apresentado os corais, os recitais. E tinha a biblioteca pública, que uma biblioteca fixa e tinha uma biblioteca volante que passava pelos bairros de Natal. Além de uma preocupação imensa com a questão do folclore, das coisas populares, né? E Djalma era cercado por essa turma: Newton Navarro, Dorian Gray, Câmara Cascudo, Dr. Roberto Furtado que era secretário dele, Carlos Lima, Hélio Vasconcelos que depois foi secretário da educação, você tinha um grupo de jovens e intelectuais mais idosos que faziam parte do governo de Maranhão. E eles investiram muito na cidade de Natal. Natal era uma cidade muito pujante, muito fértil em termos de movimentação cultural, artística e cultural. Quer dizer, Natal era isso.
E você sente que não é mais?
Não. Vai desaparecendo. Claro que cada geração tem a sua cidade, a minha cidade acabou-se. Passou, né? A gente fica com saudade dela, querendo ver se retorna, mas hoje é o shopping, né? Hoje não é mais o grande ponto. Cê sabe o grande ponto?
Na rua João Pessoa?
É, na João Pessoa.
E o senhor tem algum lugar de afeto? Algum cantinho?
Tem. É o grande ponto, mesmo. Porque o grande ponto era o nosso ponto de encontro da nossa juventude. Domingo ali, fervilhava de gente a noite. Sentado. Conversando. O pessoal saia da igreja, da matriz, a missa da noite, e passava lá, ficava sentado, aí tinha o cinema, o Nordeste e o Rex ali perto, né? E a gente se encontrava no grande ponto. Do grande ponto que a gente saia para as coisas, né? Saia pras festas, saia pros encontros políticos, era a partir do grande ponto. E a gente quando queria marcar algum
Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand é um escultor e artista plástico pernambucano.
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47. Entrevista com Antônio Capistrano, Beco da Lama, Esquina do bar da meladinha e Sebos da Rua Vig. Bartolomeu. Lenilton Texeira e Acervo pessoal, 2015.
encontro com algum amigo a gente dizia “A gente se encontra no grande ponto a tal hora”. Natal ainda preserva esses lugares, mas tá indo-se embora, né? E quando eu passo vem a memória todo aquele período que era um período muito bonito. Claro que cada época tem seu período bonito, também. Natal tava sendo construída, né? E foi interrompida em (19)64 com o golpe. O golpe foi terrível para o Brasil e pra juventude, né? Eles interromperam um processo de transformação que estava ocorrendo, de uma transformação cuidadosa com as coisas do país. Eu digo muito que o Brasil caminhava bem e a gente estava acertando e por isso houve o golpe. A culpa não foi nossa, a gente não errou, a gente acertava, e eles não deixaram a gente continuar acertando.
Poxa, muito obrigada pela conversa.
Eu ia lhe perguntar seu nome, mas ele próprio se adiantou.
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Pronto, eu sou Antônio de Farias Capistrano, professor aposentado da universidade. Fui reitor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, e exerci outras funções, fui deputado estadual, fui vice-prefeito de Mossoró por dois mandatos. Hoje eu sou aposentado e militante, como sempre. E continuo com esperança e defendendo minha utopia.
Agradeci mais uma vez e lhe expliquei que precisava ir pois Tárcio esperava para me levar a conhecer o Beco. Saímos do sebo e foi então que eu entendi o porquê o “escritório” da Samba se localizar ali. Ao lado do Sebo Balalaika existe uma galeria dá acesso ao pedestre da Rua Vigário Bartolomeu ao Beco da Lama como é popularmente conhecida a Rua Vaz Gondim. Eu nunca tinha andado por ali. Passamos pelo o antigo Bar de Odete, onde hoje é o Bar Encontro dos Boêmios; o Bar da Meladinha, que hoje continua funcionando, mas sem Nazih, e seguimos pela Rua Coronel Cascudo, voltando para a rua do sebo. Perguntei a Tárcio o que ele mais gostava do centro.
Eu gosto muito do sábado à tarde, eu digo da questão da boemia.
E o que é que tem no sábado à tarde?
Geralmente aparece, sabe? Um samba em Nazaré, tem evento lá no Zé Reeira. Pronto, aqui ó, pode ser que daqui a pouco, lá pra duas, três horas, chegue um aí com um instrumento, chega outro, chega outro, aí fazem uma coisa.
CAPÍTULO TRÊS
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CAPÍTULO TRÊS
48. Despedida na sombra, calçada da Rua Vig. Bartolomeu. Lenilton Teixeira, 2015.
Paramos na esquina da Coronel Cascudo com a Vigário Bartolomeu, em baixo de uma marquise, que deixava a calçada sombreada. Em frente, alguns pequenos edifícios antigos ainda conservavam algumas características da construção original. Tárcio chamou atenção para essas casinhas que fazem parte do mesmo quarteirão da Assembleia Legislativa do
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Estado.
Olha, isso tudo aí, ainda bem que preservaram as fachadas, né? O povo diz que a Assembleia Legislativa tá atrás de comprar isso aqui. Dizem que tá negociando pra derrubar e fazer estacionamento.
Sério?
Ou pra ampliar, eu não sei. Falam muito em estacionamento.
E como é a questão de estacionamento aqui? É muito carro?
É, aqui é assim, toda hora você tem que ter paciência, eu dou umas rodadas e fico rodando até achar. É um pouco difícil estacionamento aqui. A mobilidade daqui no geral é muito difícil. Pronto, essa questão do Beco, lá, se interditasse pra carro essa parte que a gente andou e nivelasse a pista com o batente, já fazia a questão da mobilidade de tudo, botava uma iluminação, um calçadão, pronto, tava feito. A gente tenta essa questão na prefeitura, sabe? Mas não tá saindo nada.
Agradeci pela atenção, pela conversa, por cada entrevistado que ele me apresentou e pelo pequeno passeio. Me despedi dele e do centro que fervilhava mesmo em um sábado de manhã.
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49. Convidando Juliana. Acervo pessoal, 2015.
PASSEIO 4. JULIANA O quarto e último passeio acompanhado foi realizado na presença de Juliana Fernandes, 29, formada em jornalismo, atualmente estudante de Letras Espanhol na UFRN. Juliana
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vive em Natal desde os 12 anos, é carioca, mas antes de vir para capital potiguar viveu parte de sua infância em Brasília. Durante seu estágio acadêmico na Tribuna do Norte 47, localizada em um dos edifícios históricos da Av. Duque de Caxias, Ribeira, ela passou a frequentar o bairro, inclusive produzindo festas em estabelecimentos comerciais da região. 9 de novembro de 2015. A minha última entrevistada é a Juliana, eu a chamo de Ju, porque afinal ela é pequeninha. Ela é amiga de outras figurinhas do curso de Arquitetura e fomos apresentadas em uma das primeiras edições do Eco Praça48, mas acho o que nos aproximou foi um encontro meio que sem querer no Rio de Janeiro, as duas de férias caminhando e descobrindo o que fazer pelas ruas da cidade. Eu sabia que Ju já havia frequentado bastante a Ribeira e por isso a convidei para ser uma das minhas entrevistadas.
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A Tribuna do Norte é um Jornal diário impresso e digital publicado em Natal.
Eco Praça é um projeto de ocupação e revitalização das praças públicas de Natal, através da mobilização social.
CAPÍTULO TRÊS
Ju pediu que nos encontrássemos em frente à Nalva Melo Café Salão, na Av. Duque de Caxias. Cheguei antes e fiquei esperando sentada na escadinha que dá acesso ao edifício. Aproveitei para tirar algumas fotos e ela não demorou muito a chegar. Não nos víamos há algum tempo, já que o TFG costuma afastar a vida social da gente, então expliquei quais eram os objetivos da caminhada e ela decidiu que poderíamos começar por ali mesmo.
Então vamos aproveitar que a gente já tá aqui em Nalva mesmo.
Tá bom.
Aqui, era muito engraçado porque mudou muito, sabe? Mudou muito e mudou pouco na verdade, né?
Como assim?
Porque essa frente aqui de vidro sempre esteve. E esse chão lá de dentro, que eu acho bem legal, também. Mas por exemplo, não tinha a placa, não tinha nenhum desses móveis estilosos aí dentro. E eu trabalhava aqui na Tribuna, que é aqui do lado, né?
Ah! Você trabalhava aqui?
Trabalhei aí um ano e meio. Então eu passava aqui na frente todos os dias. Por isso que eu me lembro muito de como era.
Sim, entendi.
E aí, foi mudando num sentido assim: começou a ter exposição, começou a ter festa, às vezes tinha algum lançamento. Mas isso era bem esporádico, hoje em dia acho que todo fim de semana acontece alguma coisa. Eu lembro de quando eu comecei a trabalhar na Tribuna foi quando reformaram o Bila.
O Bila é o nome do prédio?
É, Edifício Bila. Tem aqui o nome. Tinha em algum local (procurando). Ah! É lá em cima, ó. Vem aqui pro outro lado da rua que dá pra ver. O nome é muito bom, né?
E eu entrevistei um cara que mora aí. E ele falou “eu moro no Bila” e eu achei que era o nome de um cara que alugava. Haha.
Ó, tá lá em cima!
Bonito.
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CAPÍTULO TRÊS
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Eu trabalhei na Tribuna em 2005 e 2006, é a época da reforma desse prédio, que inclusive fazia muito barulho na redação. Nalva já existia, o PROCON49 também e aqui também (apontando para um restaurante ao lado de Nalva), aqui era um local de comida, sempre foi. Mas o prédio em si era um prédio que tava fechado. E aqui é a Tribuna. Cê já entrou na Tribuna alguma vez?
Não, mas já me disseram que é muito interessante conhecer.
Você quer tentar entrar? A gente pode tentar conversar com alguém. Porque a parte da escadaria: o que me contaram na época é que como Jornalismo e Ditadura eram duas coisas que não combinavam, o prédio é meio um labirinto. Então você, pra chegar na redação, você sobe, você desce, você passa por dentro de uma sala e são escadas assim que são como se você estivesse indo para um esconderijo mesmo. Vamo lá tentar entrar, pra você conhecer.
Mas peraí, Ju, me conta da sua época festeira que eu sei de histórias aqui em Nalva.
Foi assim: em 2007, eu fui com uns amigos pra um festival de música em Pernambuco. O Coquetel Molotov50.
Huhun, conheço.
E lá, o festival acontecia na Universidade (UFPE51) e eles conseguiam uma coisa super legal que era: Colocar bandas, colocar discotecagem, ficar a noite toda e ser tudo muito divertido, tudo muito organizado. E a gente já ficou pensando: “Não é possível que a gente não consiga ter uma festa dessa em Natal. Se Recife consegue, como é que Natal não consegue? ” A única coisa que aqui na época tinha, na Ribeira, era o Do Sol e o Galpão 29. Mas não existia isso de discotecagem. Não existia. Mesmo. A gente ficou pensando numa festa que fosse só discotecagem “Não existe, não existe. Em Natal a gente nunca viu”, “Mas será que o povo de Natal vai? ”. Teria que ser uma coisa pequena pra gente testar. Éramos 5 e decidimos tentar, começamos a conversar em setembro, mas a festa só saiu em dezembro só, e foi aqui em Nalva. A ideia de ser aqui em Nalva, foi porque a única coisa que a gente tinha certeza era que a gente queria que fosse uma festa legal, num espaço bonito e que fosse pequeno suficiente caso não aparecesse ninguém a gente não ter o prejuízo do universo.
O edifício do PROCON se localiza na esquina da Av. Duque de Caxias com a Av. Tavares de Lira.
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Coquetel Molotov: Festival de música realizado desde 2004 no Recife reúne atrações internacionais e nacionais. Atualmente já conta com eventos em outras cidades do país, como Fortaleza e Salvador. 51
UFPE: Universidade Federal de Pernambuco.
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Como era o nome da festa?
A festa chamava: Lo que sea52.
A época era época de Orkut, aí a gente criou uma comunidade, falava da festa; fazia release; mandou pros jornais. Porque na época não tinha um site que divulgava como tem agora o Apartamento 70253, não tinha nada, a gente mandou pros jornais mesmo, e todo mundo divulgou, o que é mais louco. Aí a festa deu muito certo. A gente não tava preocupado em lucrar, a gente colocou o ingresso a 2 reais. Aí foi tudo tranquilo. A festa 2 foi em janeiro e a festa 3 a gente fez em março. Mas aí a gente começou a ter problema porque começou a ficar muito lotado. Na festa 3 a gente já teve que fechar a portaria porque não tinha condições de entrar mais ninguém. E aí essa parte de vidro da frente ficou toda embaçada! Toda embaçada! Porque tava muito quente lá dentro. Aí foi isso. A gente só fez essas três aqui. Ainda tentou fazer uma quarta no Galpão 29 por que achou que pudesse dar certo porque era um espaço maior, mas não era a mesma coisa que a ideia do espaço em Nalva passava. Aí depois a gente parou. Não produziu nenhuma festa mais. E em 2006 eu parei de trabalhar aqui, 2007/2008, depois disso mais nada.
Quando foi que você começou a frequentar aqui?
Eu comecei quando eu comecei a trabalhar aqui (na Tribuna), em 2005.
E aí você começou a conviver mais pelo bairro.
Isso. Foi logo no começo de 2005. Porque era uma região da cidade que num tinha muito apelo, né? Era escuro, era difícil de chegar, você só chegava com carro, se falava que era meio perigoso. Na época O Galpão, lá no largo da Rua Chile, ele até tinha uma movimentação bem legal, porque antes tinha sido um local chamado Blackout. E aí, em 2005, eu comecei a estagiar aqui, saia daqui de 6 horas da noite, comecei a ver que era mais tranquilo, já comecei a ter amigos na faculdade, então alguém já tava dirigindo, então a gente vinha pro Do Sol e pro Galpão. Nessa época a Casa da Ribeira começou a ter mais eventos, então, trabalhando aqui, às vezes eu ia direto. Teve uma época bem legal que a Casa da Ribeira tinha muita coisa. Eles fizeram um festival de curtas e aí a tela era na rua, então eles fechavam a rua, colocavam o telão, um monte de cadeira de plástico na rua. Era bem legal. Também tinha um festival que era com música, eu lembro que foi uma das primeiras vezes que eu escutei Simona Talma. Aí, lá perto da rodoviária, tinha um local na esquina que eu não vou lembrar o nome, mas tinha show grande porque não caberia em outros lugares, aqui, né? Na Ribeira. Que era mais fácil porque era bem mais perto da rodoviária pra quem chegava de ônibus.
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Lo que sea: O que seja em tradução livre para o português. Apartamento 702: É um projeto de produção de conteúdo em meio digital. Trabalha com notícias direcionadas para a cidade de Natal/RN, a exemplo da agenda de eventos da semana. 53
CAPÍTULO TRÊS
Porque pra todos esses eventos que a gente vinha, muitas vezes, a gente chegava no último ônibus, vinha andando isso aqui tudo, que é bem esquisito a noite, ficava na Ribeira até começar a passar ônibus de novo, por volta de 4:30h/5h, e aí voltava todo mundo andando pra rodoviária também. O que era superperigoso e eu não faria hoje, jamais assim, mas quando você é mais novo cê num tem muita noção de perigo, né?
E agora a gente vai pra onde, Ju?
Pra cá! (Indo em direção a Tribuna). Hoje em dia eu não conheço mais ninguém aí, mas a gente pode pedir, eu falo que já estagiei e você como estudante de arquitetura. Se falarem que não pode, a gente volta.
Você sobe um pequeno lance de escada para entrar no edifício. Uma porta bem alta e larga te direciona para um balcão na recepção. Ju informou que queríamos visitar a redação. A recepcionista ligou para o setor algumas muitas vezes até alguém atender. Explicamos a esse alguém do outro lado da linha que era uma visita de uma antiga estagiaria e de sua amiga curiosa que estava fazendo um trabalho sobre a Ribeira e que seria interessante conhecer o prédio, por sua peculiaridade.
Tudo bem, mas sem fotos.
Guardei a câmera fotográfica que levava no peito e seguimos por uma portinha lateral que te leva a um corredor curvo. Poucos metros depois, a peculiaridade começou a tomar forma: escadas, descemos, e então, uma porta à direita e outra escada subindo à esquerda, seguimos pela escada. Era uma escada estreita e curva. Chegamos a um outro patamar, uma outra porta e teto era bem baixo. Mais um lance de escadas para cima. A escada continuava subindo, mas dessa vez seguimos por um pavimento. Portas, salas e mais uma vez à direita, outra pequena escada, agora descendo. Você desce e a escada muda de direção e continua descendo. Passamos por um corredor de cor bege meio goiaba clarinho, sabe? Tinha cara de lugar antigo. As portas pareciam originais, tudo combinava. No final desse corredor, a redação. Para a surpresa de Ju, um colega dos tempos dela de estagiária ainda trabalhava ali. Ele nos recebeu e nos acompanhou até a parte do maquinário. Grandes estruturas metálicas pintadas de azul recebiam os rolos de papel gigantes. Fiquei imaginando aquilo tudo ligado, entrando papel, saindo jornal, deve ser
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50. Porta do Nalva Melo Café Salão; Letreiro Edifício Bil a; Escadas Tribuna ( aquelas que não deveriam ser fotografadas ). Acervo pessoal, 2015.
incrível. Ju matou a saudade dos tempos de estagiária e eu fiquei bem feliz pela oportunidade de vivenciar um edifício tão estranho. Agradecemos a recepcionista e saímos em direção à rua. O nível da recepção é mais alto do que o da calçada. Nas laterais da escadaria existe uma espécie de banquinho em que se consegue ver a rua desde um plano mais alto.
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Olha, aqui, quando você sai para fazer uma notícia, tem os motoristas do Jornal que te levam e te buscam, então era muito comum ficar sentado aqui, esperando o motorista chegar. Ficar sentado aqui? Sempre. Teve uma vez que eu tive que cobrir para o jornal online o carnaval da Ribeira, que é o carnaval de Natal na verdade, né? Que são os desfiles das escolhas de samba. E ele passa todo aqui, essa rua fica fechada, e fica lotado, cê já viu alguma vez?
Não, eu já vim pra um bloco de rua, uma prévia.
Não, tô falando do carnaval mesmo. As escolas passam, fecham essa rua aqui e elas passam aqui. E aí pra você conseguir ver tudo, também, tem que ser em cima dessa “bancada”, porque é bem difícil, e eu que sou pequena, então.
Nesse momento eu ia tirando a câmera da bolsa e perguntei a Ju qual seria o caminho a seguir.
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Ai não sei, tenho um medo de andar por aqui com isso (a câmera).
Pela sua história de assalto?
Ah é, né? Tenho que lhe contar. Foi assim, depois dessa época 2005/2006 que eu comecei a trabalhar por aqui e que começamos a fazer as festas teve uma época que o Ateliê54 reabriu, que era o local que tinha samba, e eu tava um dia no samba e ia ter uma festa no Galpão depois, não sei se no Galpão ou no Do Sol, eu sei que eu tava lá no samba e a gente decidiu ir andando. Eu tava com mais três pessoas, eu, mais duas meninas e um menino. Era basicamente chegar até a esquina da rua, virar e entrar na Rua Chile. E foi nessa rua grande aqui do lado, eu acho que é a...
Av. Tavares de Lira.
O Ateliê Flávio Freitas já teve parte de sua estrutura física ocupada por um bar, o Ateliê Bar e Petiscaria.
CAPÍTULO TRÊS
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É, na Tavares. Três crianças, eu diria, porque eu não acho que nenhum dos três tinha mais de 18 (anos), pularam assim atrás da gente. O maiorzinho deles tava com uma faca e colocou no pescoço do meu amigo, e aí todas nós paramos e ele fez assim: “entrega todo mundo a bolsa senão eu vou meter a faca” uma coisa assim. E aí a gente só esticou a mão, entregou a bolsa. E eles fugiram a pé mesmo. Então vamos andando em direção à Capitania (das Artes)? Eu também estagiei lá. Não quero ir prali não (indicando em direção à Rua Chile).
Por quê?
Porque você tá com essa câmera e eu sinceramente acho perigoso.
Seguimos em direção a Cidade Alta, passamos pela Av. Tavares de Lira e Ju quis entrar para me mostrar onde tinha sido o assalto: esquina com a Rua Frei Miguelinho.
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No dia que eu fui assaltada foi exatamente nessa esquina e a gente ia entrar na próxima rua. Mas aqui mesmo eu nunca entrei nessas outras ruas (indicando a rua Dr. Barata e a parte da Rua Chile paralela a ela), assim, de carro já, mas a pé mesmo nessas outras não.
Passamos pela Rua Câmara Cascudo em direção à Praça Augusto Severo. Seguimos pela praça, porque naquele horário fazia sombra entre o Teatro Alberto Maranhão e a antiga rodoviária, atual Museu da Cultura Popular. Ela relatou que antigamente os ônibus passavam exatamente por onde estávamos passando e que a praça não tinha esse espaço todo que tem hoje, já que era cortada por uma via repleta de paradas de transporte público. Na subida da Av. Câmara Cascudo perguntei a Ju se ela já chegou a frequentar a Cidade Alta.
Sim, eu fazia inglês lá na (Av.) Deodoro (da Fonseca). Eu andava muito e eu gostava muito de ir pro Rio Verde.
O que era o Rio Verde?
Era um cinema de rua que tinha ali do lado da catedral nova.
Não era Rio Grande, não?
Tinha os dois, mas o Rio Grande fechou primeiro. Pelo menos foi assim que a informação chegou a mim, eu só conheci o Rio Verde. Eu gostava muito do Rio Verde, eu ia toda semana. Eu andava muito e eu gostava muito de andar sozinha depois que
CAPÍTULO TRÊS
eu saia do curso de inglês. Eu tinha curso, eu acho que, de 14 a 15:30h, mas eu só voltava pra casa as 18h. Porque eu adorava ficar andando.
Na Cidade?
Aham, mas não só na cidade, eu gostava de ficar andando em geral. Eu gosto muito de uma casa que tem aqui perto do Solar (Belavista55) que eu acho que a casa mais bonita aqui do centro. Eu nem sei se eu ainda sei chegar nela, eu acho que deve ter alguma coisa de arquitetura assim, porque ela tem uma porta toda de vidro assim enorme, e ela era um pouquinho mais alta. Eu subia por essa rua de pedra. Assim, cada dia em inventava um caminho novo, sabe? Principalmente porque eu gostava muito, não sei porque, de quando eu saia com amigos que dirigiam e não dirigia eu saber indicar o caminho das ruas, eu tinha muito prazer nisso. E aí eu sempre ficava andando a pé e entendendo, e falando, e aprendendo os nomes. Hoje em dia eu acho até que eu sei menos do que eu sabia naquela época que eu não dirigia, porque eu andava muito pelo centro. E eu lembro uma vez, eu acho que em 2008, eu e minha prima decidimos fazer tipo um book, sei lá, tirar umas fotos divertidas da gente, e a gente veio tirar foto aqui nessa rua de pedra (Rua Tv. Pax, lateral ao Solar Belavista). E a gente tem um monte de foto aqui, só que olha como é que ela tá hoje.
É linda, né? Eu acho que é o calçamento original.
É, eu acho que é. Só que ela tá toda estragada. Tem que fazer a manutenção com essas coisas de patrimônio, mas olha ali, a quantidade de lixo acumulado. Primeira coisa, não era pra passar carro. A primeira a ser feita era proibir que passe carro. Eu acho o Solar muito bonito, acho lindo, mas eu acho ele muito subaproveitado, sabe? Porque é um espaço massa, que que tem um jardim massa, que podia rolar umas coisas tipo aquela música instrumental no Parque das Dunas, sabe?
Continuamos subindo, já estávamos quase na porta da Capitania. Entramos e descemos a rampa que dá acesso ao pátio externo.
55
Aí aqui na Capitania eu fiquei só seis meses, mas eu acho um espaço bem legal e completamente subaproveitado também. Poderia ter muita coisa, raramente acontece show. Esse ano eu vim pra um de música.
O Centro de Cultura e Lazer Solar Belavista coordenado pelo SESI (Serviço Social da Indústria) e ocupa um casarão construído em 1907, tombado pelo Patrimônio Histórico. É um espaço utilizado para fins educativos e artísticos e culturais
186 186
A PÉ
51. Rua de calçamento original; Atravessando a Rio Branco; Bagunça em meio aos camelôs. Acervo pessoal, 2015.
Ouvimos o som do trem ao fundo, uma espécie de buzina. Subimos de volta, bebemos água e nos sentamos em um dos peitoris das “janelas” da fachada para descansar um pouco.
Hoje quando você vem na Cidade Alta e na Ribeira, você vem fazer o que?
Só resolver coisa. Não que eu tenha problemas com a Ribeira, mas eu não gosto mais. Os espaços que tem hoje em geral não me atraem tanto. Porque eles continuam iguais há 10 ano atrás e eu mudei. E além disso, vir pra Ribeira é vir de carro, hoje em dia eu não tenho mais a coragem de vir de ônibus como eu vinha quando era mais nova. Pra mim é até tranquilo vir da Zona Norte pra cá, mas em geral o povo mora na Zona Sul e não quer vir pra Ribeira porque é muito longe, e aí vindo de carro não pode beber porque não tem como voltar para casa, aí não tenho vindo.
Decidimos continuar andando. Ju escolheu passar pela Rua Tv. Pax, a ladeira de 187
calçamento original, porque, segundo ela, a casa bonita que havia comentado ficava por ali por perto. Infelizmente não encontramos a casa, mas fomos andando em direção à Av. Rio Branco.
Por aqui faz muito tempo que eu não ando. Especialmente a pé. Eu gostava de andar pelas ruas menores, quanto menos carro, melhor, né? Mas depois de que eu parei de fazer inglês aqui no centro, isso foi em 2003, junto ao fato de eu ter começado a faculdade em 2004, eu não tinha mais muito o que vir fazer aqui. Então, vir para o centro era estar atrás de algo específico, em geral da rua dos armarinhos, eu gosto muito daquela rua, mas além disso, aqui no centro mesmo não tem nada, eu digo assim: sem ser comércio, né?
Continuamos na Av. Rio Branco até a Rua Ulisses Caldas, na qual entramos e seguimos até entrarmos a direta na Rua Princesa Isabel, e seguir até a Rua Coronel Cascudo, que é fechada para pedestres. Ali na “rua dos armarinhos”, paramos para lanchar no Delícias do Mate, uma pequena lanchonete que vende um mate com limão maravilhoso.
Pronto, Babina, este lugar é uma memória afetiva pra mim. Pode anotar aí se você quiser: eu adorava vir aqui quando eu andava no Centro.
Aproveitamos a pausa para colocar o papo em dia, descansar as pernas um pouquinho e tomar coragem para voltar andando para a Ribeira, onde o carro de Ju estava estacionado.
CAPÍTULO TRÊS
No caminho de volta, ela decidiu continuar pela Rua Coronel Cascudo, que segue sendo uma rua de pedestres e que nos quarteirões que margeiam a Av. Rio Branco fica tomada de ambulantes em ambos os lados.
Agora se tem uma coisa que eu gosto muito, é assim, essa bagunça. Adoro!
E você imagina o porquê?
Porque eu acho muito sucesso. Eu acho maravilhoso. E às vezes você tá procurando uma coisa específica e às vezes pessoa nem tem, mas às vezes ela te atende tão melhor do que numa loja. Olha só esse sapato!
3.5 SÍNTESE
E CONCLUSÕES DO CAPÍTULO O centro histórico de Natal, região compreendida entre os bairros de Cidade Alta, Ribeira e Rocas, é o universo de estudo deste trabalho. A fim de definir um perímetro inicial para o direcionamento da pesquisa em campo, foram sobrepostos as áreas correspondentes à ZEPH e o perímetro do sítio histórico considerado Patrimônio Histórico e Cultural. A poligonal de entorno foi escolhida devido à maior abrangência. Ao total, foram realizados 4 passeios acompanhados e 6 entrevistas. A caminhada em companhia do entrevistado é considerada a fonte de pesquisa mais importante deste trabalho, uma vez que se busca a apreensão da experiência e da narrativa do outro. Além disso, a busca por lembranças significativas da cidade auxilia na prática do olhar atento, contribuindo para o exercício de (re)descoberta da rua.
188 188
A PÉ
189
190
A PÉ
191
CAPÍTULO QUATRO
52. Parar para ver o que já estava ali. Acervo pessoal, 2015.
4.1 PRÓLOGO
LAMBE-LAMBE Sabe aquilo que eu comentei lá na
plásticos a músicos e atores, e devo a
introdução, sobre curtir mais a beleza das
eles todo o meu respeito e admiração.
imagens do que a poética das palavras? Então. Demorei para aceitar que esse trabalho seria completamente teórico, e na verdade, acho que ainda não aceitei. Entendo que meus objetivos deixam claro que o meu produto final é uma narrativa, a qual eu chamei de narrativa de apropriação. No entanto, o caminho da intervenção artística crítica na cidade, que descobri como possibilidade no segundo capítulo ainda me instiga e me faz acreditar na possibilidade de criar algo um tantinho visual.
Acontece que eu me cobro muito. Pergunte
aos
meus
amigos,
provavelmente eles vão revirar os olhos e dizer algo do tipo: “Ah! Babina é desse jeito mesmo! Ela lambe os trabalhos até o fim”. Acho que até mesmo o meu medo de competições vem da possibilidade de não me sair bem. E tratar de arte, que por mais próximo que fosse de mim, não me deixava completamente confortável. Eu não tinha certeza se seria capaz de propor uma intervenção artística crítica na cidade, parecia um peso muito grande
Eu convivo com “gente de arte” no teatro
para mim. Até porque, o tempo estava
e também na universidade, a exemplo da
passando, a data de entrega do TFG se
minha orientadora, que pinta aquarelas
aproximava e eu não sabia se teria tempo
belíssimas, por sinal. Também tive a
de propor, justificar, refletir e produzir
oportunidade de conhecer outras figuras
dois produtos finais com qualidade: a
artísticas durante as caminhadas que fiz
narrativa e a intervenção. Por mais que
por meio desse trabalho, desde artistas
eu considere a intervenção artística outra maneira de narrar a minha reflexão, não
192
A PÉ
havia tempo, nem conteúdo consolidado
Então, eu havia comentado algo sobre
para tal.
me inspirar na sinalização de trânsito, tão
Então, decidi que deveria me arriscar, iria propô-la, a intervenção, mas de maneira a ilustrar a minha narrativa. Sem preocupações, sem necessidade de cotar ou justificar o porquê de tal escolha de cores ou de tipografia. Quero, de verdade, que vocês a entendam como parte desses prólogos, como um momento de livre 193
interpretação. Sei que posso estar me antecipando e tentando conduzir o julgamento de quem lê, como quem diz: “Olha, eu não tive tempo de fazer algo melhor, então estou avisando para que você não se surpreenda e nem me cobre por isso.” Mas, acontece que eu sou assim. Faz parte de mim. Preciso me cobrar primeiro, antes que você o faça. E dessa forma, assumindo pessoalmente de que se trata de um momento de
comum ao meio urbano, para a criação de uma proposta artística. Não é minha intenção criar placas nem algum tipo de sistema de wayfinding56 tradicional, mas sim
me
apropriar
da
estética
e
principalmente da essência dessas peças urbanas. Segundo o Conselho Nacional de Trânsito - Contran, a sinalização de indicação tem por finalidade “identificar as vias, os destinos e os locais de interesse, bem como orientar condutores de veículos quanto aos percursos, os destinos, as distâncias e os serviços auxiliares, podendo também ter como função a educação do usuário” (Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito, 2014), e são alguns desses propósitos que
me
interessam,
objetivando
o
pedestre ao invés do condutor.
diversão e de criatividade, eu sei que vou
Não identificarei vias, nem destinos ou
conseguir relaxar e tentar dar o meu
locais iluminados de interesse. O que eu
melhor.
espero
56
conseguir,
através
das
Wayfinding é um ramo do design que estuda as formas de que as pessoas se orientam no espaço físico e como navegam partindo de um lugar a outro.
CAPÍTULO QUATRO
experiências apropriadas daqueles que
caso
caminharam comigo e partilharam suas
executada, encontrei nas ruas da Ribeira,
lembranças e vivencias na cidade, é
e um elemento da arte urbana que se
estampar de alguma maneira as zonas
encaixava nos meus objetivos: O cartaz
opacas do centro histórico, os lugares de
de rua ou, popularmente conhecido
experiência e de apropriação, e assim
como, lambe-lambe.
provocar a redescoberta da cidade e aproximação do pedestre da rua. Mesmo que esses espaços e essas histórias estejam no passado, me valho do poder que a arte tem de nos levar a outros tempos e a lugares os quais não visitamos.
um
dia
a
intervenção
seja
“Ora pintados sobre fachadas de lojas e prédios; ora circulando sobre tabuletas, homens-sanduíche e bondes, ou colados sobre
placas,
tapumes
e
muros”
(BEDRAN, 2015, p. 245), produzidos por meio das mais diversas técnicas: ilustrados ou pintados com látex, spray e
Entendo que faz parte dessa provocação
guache, impressos em fotocopiadoras ou
incitar a reflexão do interlocutor. Nada é
silks-creem, qualquer cartaz de rua
definido,
verdade
colado em alguma superfície no espaço
absoluta. Quem se sentir provocado,
público pode ser considerado um Lambe-
pode escolher se aquilo de alguma forma
Lambe.
nem
dito
como
lhe incentiva ou não a descobrir outras experiências na cidade. Não se busca a resolução de um problema, e sim uma reflexão sobre. Sendo assim, buscando para além da sinalização, uma base que me permitisse a efemeridade, que não é resolutiva, mas que tem a capacidade de provocar pelo tempo que for necessário; assim como a facilidade de aplicação,
Ele surge com a cidade moderna, no século XIX, mais precisamente em Paris, e se desenvolveu ao longo do tempo como uma linguagem voltada para a comunicação urbana. Esses primeiros cartazes divulgavam o lazer e promoviam o consumo de mercadorias, espelhando a visualidade da cidade moderna em diversas
partes
do
mundo.
A
194
A PÉ
intensificação da vida urbana exigia uma
comunicativa com aqueles que andam
comunicação capaz de alcançar os novos
apressados pelas grandes metrópoles.
hábitos. Entre os vários suportes de comunicação que se organizaram para esse fim, resultantes da indústria gráfica que se modernizou – jornais, revistas, folhetos, cartões postais e embalagens -, os cartazes de rua surgiram, sob formatos diversos, como expoentes da linguagem da publicidade em expansão (BEDRAN, 2015, p. 245).
Como
reflexo
dessa
comunicação
produzida em série, hoje “viver numa metrópole implica em estar cercado de imagens construídas artificialmente e que formam uma paisagem em constante mudança”
(CAIO;
LOMONACO;
SANTANA, 2015, p. 03). E como Lynch (1960) já dizia, os elementos gráficos
Pode até parecer contraditório a escolha 195
desse tipo de superfície como base de um produto que reflete sobre o processo de espetacularização das cidades, afinal, os
urbanos, a exemplo de um cartaz, nos ajudam a construir a identidade visual, estética e cultural das cidades, mesmo que inconscientemente.
cartazes de rua surgiram, e são utilizados até hoje, como aliados da mídia que usa da cidade para a divulgação de seus produtos e propagandas. No entanto, talvez por isso, eles sejam uma potente fonte de comunicação em meio urbano, o que lhe asseguraram presença na memória coletiva das cidades. Segundo Moretto (2008), em reflexão sobre a função social dos cartazes, entre as manifestações do design gráfico, essa categoria ganhou destaque no ambiente urbano, justamente por sua função
Estes elementos funcionam tanto como indicadores de fluxos urbanos (wayfinding), quanto como marcos que identificam e nomeiam pontos da cidade, auxiliando na definição de sua estrutura informacional. As letras e números que encontramos no ambiente urbano podem ser entendidos como parte do discurso identitário e comunicativo da cidade. (CAIO; LOMONACO; SANTANA, 2015, p. 03).
CAPÍTULO QUATRO
Em entrevista57, Alessandra Oliveira, mestre
em
comunicação
social
e
estudiosa da arte de rua, explica como o lambe-lambe passa de peça publicitária do passado para se inserir dentro das categorias
da
arte
urbana,
e
principalmente como ele, hoje, é capaz de ajudar na ressignificação da paisagem e do olhar. Bom, a técnica do lambe-lambe é um exemplo de como o passado está sendo revisitado. [...] Mas ele não é mais exatamente usado como era antes. Ele tem uma outra roupagem, ele tem um outro uso, e esse outro uso vai fazer com que ele tenha um novo sentido. É muito comum a gente ver, expressões que eram usadas em favor do comércio, em favor da reprodução em série - porque o lambe-lambe surgiu [...] com essa possibilidade de cópias, né? De ter muitas reproduções – hoje, assumindo um papel contrário. Na verdade, agora o processo é mais autoral, único. Cada impressão que a gente faz vai sair um pouquinho diferente. Então, o que é o lambelambe está fazendo hoje? Eu acredito que ele esteja proporcionando junto com as outras expressões da arte urbana, como o grafite e a pichação, um deslocamento. Porque a gente anda pela cidade sem olhar para o outro, sem perceber o que mudou, quais são 57
as cores da cidade. Com o lambelambe, a gente começa a ver a cidade de outra forma. A gente para. Então eu acho que o lambe-lambe, hoje, está trazendo isso para a gente. Essa possibilidade de deslocar esse nosso olhar dessa pressa, dessa correria, e enxergar alguma coisa que estava ali, mas que estava um pouco obscurecida. E essa volta ao passado, na verdade, é trazer à luz, é mostrar realmente como essas expressões podem ter uma nova roupagem, uma nova linguagem (OLIVEIRA, 2015).
Pensando nessa “nova” maneira de apresentar o lambe-lambe na rua, com caráter de intervenção artística e um foco direcionado a outras áreas se não a publicidade, me veio a memória os famosos cartazes comuns às ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Coloridos e tipográficas, em geral apresentam frases como “mais amor por favor”, transformando a pequena poesia em estampa para os muros das cidades. O movimento "Mais amor por favor" nasceu em 2009, em São Paulo, como um pedido de atenção à delicadeza das pequenas
coisas
em
meio
a
Entrevista presente no documentário “Lambe-Lambe: de peça publicitária a elemento de arte urbana” de maio de 2015, realizado por alunos de Comunicação Social da Universidade de Fortaleza.
196
A PÉ
agressividade, indiferença e velocidade
proponho uma organização da não
da vida na metrópole paulista. “Uma
linearidade dos caminhos, dos desvios,
proposta que tenta fazer com que o
lembranças
observador
erraram
se
surpreenda
com
o
afetos meu
daqueles lado
e
que que
conteúdo da frase inserida no âmbito
generosamente dividiram comigo suas
urbano, reflita por um tempo, ou pelo
experiências no centro histórico de Natal,
menos abra um sorriso no momento da
acompanhadas de uma proposta gráfica
leitura e passe adiante a mensagem”
de intervenção artística em papel, sob a
(MAROTTA, 2010). Impresso em época
base do cartaz de rua - lambe-lambe.
de
eleição,
os
cartazes
tentavam
competir com a propaganda política que 197
ao
e
invadia a cidade. “Não tem a intenção de agredir ninguém, apenas encontrou nos muros e paredes da cidade um suporte possível e eficaz para a mensagem”
E consigo idealizar tal narrativa se não em primeira pessoa. Sei que essa troca de vozes - ora ele, ora eu - pode nausear ou confundir um pouco, mas acredito que será a melhor maneira de lhes contar sobre o que apreendi dessas vivências.
(Idem). A minha intenção com essa proposta é exatamente essa: Fazer uso do cartaz lambe-lambe e da estética da sinalização urbana
para
tentar
transmitir
uma
mensagem. Uma mensagem de atenção à rua, de reflexão sobre as experiências que existiram, que ainda existem ou que hoje só podem ser acessadas através de lembranças. Assim, a seguir em “Ganhar e fazer corpo:
Narrativa
de
apropriação”
53. Quadro de referência s (da esquerda para direita, de cima para baixo): a. Stop Gendercide: Red light district ,, Campanha de rua, Vietnam. b. Grafite – Parking. Banksy, Reino Unido. c. Grafites e lambe -lambes na Rua Frei Miguelinho. Ribeira, Natal. d. Sinalização vertical. Muse u Café Filho. Cidade Alta, Natal. e. Cartazes Mais Amor Por Favor. São Paulo. f e g. Grafites e Lambe -lambe na Tv. José Alexandre Garcia. Ribeira, Natal. Disponíveis em: a. http://goo.gl/Owyf24 ; b. http://banksy.co.uk/out.asp ; e. http://goo.gl/9JTucd ; c, d, f e g. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO
198
A PÉ
199
CAPÍTULO QUATRO
54. Ginga e tapioca de Seu Pernambuco , Canto do Mangue, Rocas. Acervo pessoal, 2015.
4.2 GANHAR E DAR CORPO
NARRATIVA DE APROPRIAÇÃO Fui em busca de identificar e tentar compreender como processos urbanos, a exemplo da modernização e da espetacularização das cidades, interferiram e seguem interferindo na experiência do pedestre no centro histórico de Natal. Caminhei acompanhada de amigos e desconhecidos e tive a oportunidade de vivenciar suas memórias. Agora, a partir daquilo que me foi apresentado nas narrativas daqueles que acompanhei, arrisco uma reflexão, uma narrativa coletiva de apropriação, baseada em conceitos apreendidos previamente aos passeios e também enriquecidos de novas referências, necessárias devido as particularidades das experiências de apreensão em campo. O momento de “ganhar corpo”, que foi iniciado na apresentação das entrevistas e dos passeios acompanhados no capítulo três, é concluído agora com as reflexões trazidas na narrativa do “dar corpo” que se apoia na fala do outro, em imagens que ajudam na descrição das análises e em uma micro-resistência urbana que toma como inspiração a sinalização urbana sob a base do cartaz lambe-lambe. Organizei minha narrativa em dois momentos: Interferências de afastamento e Interferências de vínculo. “Interferências de afastamento” diz respeito aos processos urbanos que afetam a experiência do pedestre de maneira negativa, afastando-o da rua. Encontra-se dividida em: Carro; Insegurança e Espetáculo. “Interferências de vínculo” aborda aspectos que identifiquei como interferências positivas à vivência do pedestre no centro histórico de Natal, e são eles: Memória; Cultura & Boemia; Natureza; Arquitetura e Resistência. Ao final das cada uma das duas partes, são apresentados os lambe-lambes produzidos, finalizando e ilustrando as reflexões acerca das interferências de afastamento e de vínculo.
200
A PÉ
55. Beco da Quarentena, Ribeira. Acervo pessoal, 2015.
201
INTERFERÊNCIAS
DE AFASTAMENTO CARRO | INSEGURANÇA | ESPETÁCULO
CAPÍTULO QUATRO
CARRO
CORPO EM ALERTA
Cuidado o carro, vocês dois. Marinalva chamava atenção.
incomodo do choque, a reclusão do homem
moderno
contemporâneo
às
As advertências de atenção para os
grandes transformações da cidade e do
veículos que se aproximavam, muitas
cotidiano me parece bastante sensata.
além dos relatos acima, se tornaram constantes
ao
longo
da
primeira
caminhada realizada, e se repetiram durante as outras visitas acompanhadas. O corpo em frequente estado de alerta permanecia atento mesmo ao atravessar uma faixa de pedestres ou ao caminhar em
vias
afastadas
das
principais
avenidas, onde a movimentação de
Foi em Barra Bonita, interior do estado de São Paulo que eu descobri a rua pela primeira vez. Eu devia ter uns 6 anos, então estávamos em meados dos anos 1990. Vivíamos em São Bernardo do Campo e fomos visitar a família do meu pai. Tenho na cabeça a imagem de uma ladeira com as calçadas em níveis onde meus tios se sentavam em cadeiras de
veículos não era tão intensa.
plástico
e
observavam
as
crianças
Compreendo a preocupação de Marinalva
jogando amarelinha na rua. Pula corda.
quando ela me chamava a atenção
Elástico.
quanto aos veículos que se aproximavam,
árvore. Dimdim de coco. O sol se pôs. Os
mas me incomodava a necessidade de
adultos foram assistir a novela. E nós,
desviar o caminho a cada carro ou moto
primos que não se conheciam, sujos e
que aparecia. Fiquei imaginando o flâneur
felizes, nem percebemos a hora passar.
a caminhar pela cidade vivenciando a
Minha mãe costuma lembrar que eu liguei
transição
de
para ela naquela noite. Meia noite, mais
modernização das cidades, quando tal
precisamente. Muito contente: “Mãe! Eu
estado de alerta foi inaugurado. Se eu que
brinquei na rua, mãe! Na rua! ”. Nunca
nasci quase um século depois e já cresci
mais voltamos à Barra Bonita, em casa eu
com medo da rua, sempre olhando para
me contentava com a garagem.
histórica
do
processo
os dois lados, hoje ainda respiro o
Esconde-esconde
atrás
da
202
56. Eu e meus primos em Barra Bonita, SP. Acervo pessoal, A PÉ 1997.
Se eu, que tive a rua por um dia, mesmo
comemorava um projeto da Prefeitura de
que acesa pela ludicidade infantil, até
Natal chamado “Se essa rua fosse minha”
hoje consigo sentir a sensação de
que acontecerá na Ribeira no próximo dia
liberdade e diversão que aquela ladeira no
29 de novembro. O projeto consiste em
interior de São Paulo me proporcionou,
fechar a Av. Duque de Caxias, entre o
imagine como o flâneur ou o homem
Teatro Alberto Maranhão e a Av. Gustavo
moderno se sentiram quando a rua que
Cordeiro de Farias, e destiná-la à atividade
eles conheciam foi substituída por novos
de pedestres durante um domingo do
hábitos, entre eles o constante estado de
mês.
alerta que até hoje nos atinge. 203
Tais hábitos modernos nos trouxeram a percepção de que em grandes avenidas é compreensível a necessidade do trânsito rápido, a preocupação mais atenta e a
De acordo com a secretaria adjunta de Planejamento da Semurb, Floresia Pessoa, a ideia do “Se essa rua fosse minha...” é dar visibilidade à Ribeira, despertando novamente nos natalenses o sentimento de pertencimento, e assim fortalecer os vínculos com o bairro e sua história (Prefeitura Municipal do Natal, 2015).
escolha acertada pela faixa de pedestres. No entanto, em vias como a Dr. Barata, na Ribeira, por exemplo, em que a arquitetura te faz querer olhar para cima e ler os números romanos dos frontões das bonitas fachadas que seguem casadas com suas vizinhas, tal preocupação interfere e dificulta a apreensão do sensível, uma vez que esse se ocupa em
É muito bom ver esse tipo de ação em que o caminho inverso é estimulado. Talvez assim o estar na rua fora do estado de alerta desperte a necessidade de um hábito arquivado desde os tempos do
flâneur. Talvez assim tal sentimento de pertencimento apareça e mesmo fora da rua cedida por um domingo, continue provocando a vontade de se apropriar
manter o próprio corpo ileso.
cada vez mais até que essa e outras ruas Hoje
eu
li
uma
matéria
que
compartilharam no grupo de Arquitetura da UFRN no Facebook. A chamada
sejam nossas de verdade.
57. Travessa México, Ribeira. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO
DESVIO Todos
os
passeios
acompanhados
Eu gostava de andar pelas ruas menores, quanto menos carro, melhor, né?
Do centro? Olha, eu gosto de andar não muito na parte mais comercial porque já acostumou demais, né? Eu gosto dessas ruazinhas que eu chamo “Olindinha”, né?
apresentaram um elemento em comum: o espaço por onde caminhamos, sem exceção,
foi
a
calçada.
As
largas
geralmente seguiam as grandes avenidas e algumas até mesmo desfiguradas, traziam a faixa amarela do piso tátil
Nessas “ruazinhas” a divisão do espaço
direcional pelo centro. As calçadas mais
entre o carro e o pedestre restringe a quem
estreitas, pipocadas aqui e ali por
anda a menor parcela do resultado.
ladrilhos antigos resistindo ao tempo, nos levavam a competir com o carro por um espaço na rua, já que em algumas delas, caminhar lado a lado se tornava difícil devido a pequena largura, o que é compreensível se nos lembrarmos que tais vias, a exemplo da Rua Chile, na Ribeira, surgiram sem essa preocupação de divisão de espaço. Os limites do centro histórico de Natal são guardados por legislações que amparam a preservação do traçado original das vias da região, de ruas mais estreitas, becos e travessas. E foram por essas ruas que meus entrevistados resolveram seguir, tanto em presença quanto em suas lembranças.
Segundo Jacobs (1961), as ruas e calçadas são os órgãos vitais de uma cidade, pois são nelas que se percebem a diversidade e a intensidade de usos, são espaços de integração e convivência de uma sociedade, sendo as pessoas os principais protagonistas do uso desses espaços. A autora afirma que as calçadas devem ser largas pois são capazes de receber usos tão importantes quanto parques para atividades das crianças. E quando a calçada não apresenta espaço suficiente para o universo de possibilidades que a rua oferece à criatividade infantil, são as crianças as primeiras a desafiarem a fronteira estabelecida pelo meio fio.
204
A PÉ
Quem nunca passou por uma rua, destinada à passagem de carros, fechada, no sentido figurado, por pedaços de pau formando espécies de traves em um final de semana agradável e se deparou com crianças correndo de um lado a outro atrás de uma bola na busca incessante do gol?! (GAVAZZA, 2013).
do centro histórico em que a calçada extrapola a rua e que a rua não se incomoda, afinal nenhuma das duas de fato existe. Tal configuração, particular dos becos e travessas da região, não é
As calçadas largas de Jacobs não
questionada devido ao tempo em que
caberiam nas vias mais estreitas do centro
fazem parte do desenho dos bairros e do
histórico de Natal, a não ser que
cotidiano de quem vive ali. São espaços
levássemos
de desvio por natureza e tal característica
a
sério
a
questão
da
extrapolação proposta na brincadeira das 205
No entanto, já existem espaços próprios
crianças, aproveitando para revisitar o passado em que a calçada era rua, e a rua era calçada. Hoje ainda caminhamos por calçadas e desviamos pela rua. Erramos pelo desvio. Mas pude perceber a naturalidade do interesse em transformar o desvio em
já lhes confere um grande potencial.
Aqui tem muito espaço para esses espaços que a gente vê muito lá na Europa. Lá na França a gente vê, eles chamam de rua de passeio, né? É um beco, assim, onde de um lado e do outro são lojas. Que aqui a gente não vê. Não há investimento. Uma ruazinha dessa, que não passa carro, se tivesse um investimento de estabelecimentos comerciais né? Mas é assim, escura.
caminho através do discurso daqueles que passearam comigo.
A falta de iluminação, citada mais de uma vez em relação aos becos, e o acúmulo de
Primeira coisa, não era pra passar carro. A primeira coisa a ser feita era proibir que passe carro. A questão da iluminação desse beco, e de tornar um calçadão. É uma coisa importantíssima pra gente. A proibição de carro.
lixo presenciado durante os passeios são exemplos de evidencias da desatenção. Assim, o pedestre busca a experiência em outros lugares, a calçada muitas vezes não comporta e a rua acaba se tornando uma opção. Por fim, desvia-se o desvio.
CAPÍTULO QUATRO
NÃO TE ESCUTO A trama de desvios propícia à errância no
Além da divisão do espaço físico, a zona
centro histórico de Natal é bastante rica.
da audição é uma das mais prejudicadas
São inúmeras possibilidades entre becos,
quando
calçadas, ruas e desvios. No entanto,
experiência. Tive consciência de tal
enquanto parte deles está esquecida em
incomodo quando precisei transcrever os
meio ao lixo e o escuro, a outra é dividida
diálogos das visitas. Em vários momentos
arbitrariamente com a hegemonia da Era
não se podia ouvir a voz daquele que
do Automóvel.
caminhava ao meu lado devido aos ruídos
recorremos
aos
sons
da
produzido pelos veículos.
Passou um carro na hora, e eu não ouvi o que ele disse.
A relação do ser humano com o ambiente acontece através dos estímulos que ele recebe. O estímulo sonoro faz parte dessa interação, mesmo que muitas vezes de modo inconsciente. Em “Para evitar a construção de uma paisagem sonora autista, é preciso saber ouvir a arquitetura” (2001), Osvaldo Emery explicam
e
Paulo que
Afonso
nós
como
Rheingantz arquitetos
estamos acostumados a nos preocupar com a qualidade arquitetônica no que “refere-se, basicamente, à sua aparência”, mas que pouco ou quase nada de nossa atenção é voltada para a satisfação dos demais sentidos.
58. Calçada Av. Duque de Caxias, Ribeira. Acervo pessoal, 2015.
206
A PÉ
ESTACIONADO Segundo os autores, um passo importante
E mesmo quando o convidado escolhia
para a intervenção na paisagem sonora é
seguir por vias mais calmas como a Rua
a redução ou a eliminação dos ruídos
Frei Miguelinho, na Ribeira, afastada das
urbanos, muitas vezes ocasionados pelo
grandes e barulhentas avenidas, ou se
trafego de veículos.
lembrava
Mas eu já começo a pensar em lugares mais sossegados. Bom, especificamente onde eu moro, que minha janela é para um trânsito muito pesado. Queria um pouquinho mais de sossego.
de
lugares
agradáveis
de
contemplação da paisagem como o mirante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Cidade Alta, o carro, a moto e até mesmo o caminhão, mesmo parados, ocupavam a perspectiva.
“Um nível excessivo de ruídos, além de 207
acarretar problemas de natureza física e psicológica,
sobrepõe-se
aos
sons
desejáveis, dificultando ou até mesmo
Esse espaço aqui é muito bonito, uma pena que durante a semana fique lotado de carros de quem trabalha aqui por perto.
impossibilitando sua percepção” (EMERY;
Durante os passeios, tive a impressão de
RHEINGANTZ, 2001). Quanto mais tal
que sempre haveria espaço para mais um
problemática for combatida no meio
novo estacionamento, tanto em vias
urbano, mais as sensações auditivas,
públicas que se comprimem devido as
além das visuais e sinestésicas, poderão
atualizações diárias de novas vagas,
ajudar aliviar as tensões e a tornar a vida
quanto
em
cotidiana mais confortável e prazerosa,
rendem
a
provocando “um ambiente diverso e
modernidade da compra e venda do
estimulante, propício à interação do
tempo,
homem
estacionamentos privados.
com
o
semelhantes” (idem).
mundo
e
seus
edificações velha
antigas
arquitetura
comercializado
que à
nos
O ZumBar, espaço significativo das lembranças de Lenilton, lugar de reunião da juventude natalense de sua geração, hoje nada mais é do que um terreno cinza
CAPÍTULO QUATRO
59. Estacionamento em frente ao Mirante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Acervo pessoal, 2015.
na cidade, dividido em fatias com bordas de tinta pintadas no chão, e faz parte da categoria de espaços impessoais das cidades:
padronizados,
desabitados,
lotados de dia, vazios pela noite.
É, aqui é assim, toda hora você tem que ter paciência, eu dou umas rodadas e fico rodando até achar. É um pouco difícil estacionamento aqui. A mobilidade daqui no geral é muito difícil.
A questão dos estacionamentos privados
A ameaça por novos estacionamentos a
e da grande quantidade de carros parados
serviço da modernidade segue como
nas
receio na boca daqueles que ainda
contemplação e percepção da paisagem,
enxergam a beleza das fachadas do
dificultando
centro.
imagéticos e sensoriais; contribui para a
Olha, isso tudo aí, ainda bem que preservaram as fachadas, né? (Se referindo a dois sebos localizados em pequenos edifícios antigos). O povo diz que a Assembleia Legislativa tá atrás de comprar isso aqui. Dizem que tá negociando pra derrubar e fazer estacionamento.
O bar da juventude de Lenilton e os pequenos sebos da esquina da Rua Vigário Bartolomeu com a Rua Coronel Cascudo,
que
provavelmente
compartilharão do mesmo futuro cinza de um estacionamento, são exemplos da lógica de modernização das cidades: o antigo cede lugar ao novo.
E como é a questão de estacionamento aqui? É muito carro?
ruas
da
a
região
criação
interfere
de
na
vínculos
multiplicação de espaços homogêneos e impessoais, afeta o equilíbrio emocional ao lidar com a “paciência”, e participa da equação de divisão o espaço entre pedestres
e
motoristas,
somando,
obviamente, para o lado sobre rodas. Além disso, tal situação demonstra a escolha de uma parcela significativa de usuários do centro pelo transporte privado em prioridade ao transporte público.
208
A PÉ
PRECISO DE CARONA
209
Apesar dos bairros da Cidade Alta e
transporte que hoje não existe mais.
Ribeira receberem um grande fluxo que
Durante a infância de Lenilton, o centro
interligam todas as regiões administrativas
histórico ainda fazia parte da principal
de Natal e que circulam dentro dos limites
área central da cidade, e obviamente a
do centro histórico da cidade, os relatos
estação de trem e a antiga rodoviária,
sobre o uso do transporte público por
ambas localizadas na Praça Augusto
aqueles que entrevistei ou eram tidos
Severo, cumpriam o papel de dar boas-
como
ao
vindas natalenses aos passageiros que
passado, ou deixada em segundo plano.
viajavam desde o interior do estado, a
O carro, a carona ou alguém que dirija,
exemplo de Lenilton, e desembarcavam
foram os meios citados como prioritários e
na capital potiguar.
uma
experiência
fadada
seguros pelos entrevistados.
Onde hoje é o Museu Djalma Maranhão, era uma rodoviária que foi desativada, mas que tinha função de parar os ônibus. Como lá era o ponto final, você pegava ônibus mais vago e eu ia para lá para pegar ônibus.
E além disso, vir pra Ribeira é vir de carro, hoje em dia eu não tenho mais a coragem de vir de ônibus como eu vinha quando era mais nova.
E aí, em 2005 [...] eu já comecei a ter amigos na faculdade, então alguém já tava dirigindo, então a gente vinha. Eu só venho se tiver uma carona.
As lembranças do passado também ajudaram a revelar uma dinâmica do
A minha primeira lembrança é na rodoviária. Que quando a gente chegava aqui tinha um homem que dizia: (faz voz de locutor) Estação Rodoviária Presidente Kennedy, atenção passageiros… Eu chegava de ônibus ou de trem. Meu pai trabalhava de guarda-freio, que caminhava em cima do trem para frear junto com o maquinista.
Outra lembrança, essa agora de Flávio, diz respeito
à aventura mágica que o
transporte aquático proporcionava em sua infância, quando ele saia da Ribeira em direção à praia da Redinha tomando o Potengi como rota.
Eu tenho a lembrança também de pegar a lancha da redinha, era um momento muito mágico. A gente pegava aqui no cais da Tavares de
CAPÍTULO QUATRO 60. Parada de ônibus, Pç. Augusto Severo. Acervo pessoal, 2015.
Lira, cê conhece? [...] A lancha da redinha era muito mágica, porque não existia a ponte aqui (se referindo a Ponte Newton Navarro), só a de Igapó e era um momento de aventura.
de como se dava a relação entre a cidade e a saúde de seus moradores. Um desses relatórios, aborda a questão do transporte ativo e lista uma série de
O potencial de conexão do centro histórico
benefícios dessa modalidade. Entre as
com as outras regiões da cidade é
iniciativas
inegável, a exemplo da variedade de
implementação
modais de transportes existentes e de
transporte misto auxiliou no aumento do
viável
implementação
rodoviário,
ferroviário,
na
de
sucesso
descritas,
a
de
sistema
de
um
área
–
transporte ativo da cidade, uma vez que a
aquaviário
e
distância do trajeto é muitas vezes um
cicloviário - que por sua vez, são atrativos importantes para a quebra do rótulo de área acessível prioritariamente à veículos privados que pareceu existir entre os entrevistados.
fator limitativo. No entanto, não é só a distância que interfere na questão da experiência. Em uma situação em que o sistema de transporte público se combina com o ativo
Segundo a Associação Transporte Ativo,
para vencer a limitação imposta pela
tudo o que permite a mobilidade de
mesma distância que um carro consegue
pessoas apenas pela força de seu corpo,
superar, ainda assim, a variedade de
sem auxílio de motores, a exemplo da
possibilidades que o transporte misto
caminhada ou do ciclismo, é considerado
proporciona é mais rica do que a linha
transporte ativo.
contínua e direta do trajeto estabelecido
Em outubro de 2011, o relatório Healthy
por quem segue em um carro.
Toronto by Design foi lançado pela
É simples visualizar quando lembro que
Secretaria de Saúde Pública da cidade de
me encontrei com Luiz na Praça Augusto
Toronto no Canadá, e foi o primeiro de
Severo, porque nós dois chegaríamos de
uma série de documentos sobre a forma
ônibus na Ribeira, e que no caminho dali
210
A PÉ
211
até o Centro Náutico Potengy, na Rua
necessidade de se acessar o centro
Chile,
maior
histórico através do veículo privado.
significância o qual ele queria me
Afinal, boa parte das festas, dos shows, e
apresentar, passamos por lembranças
dos momentos de agregação de pessoas
pessoais, surpresas arquitetônicas, alguns
acontece após o expediente diário de
raios de sol na cara e muitas risadas
trabalho, no turno noturno, quando o
agradáveis que não teriam acontecido
transporte público deixa de funcionar
caso estivéssemos nos encontrado na
razoavelmente cedo em comparação ao
porta do clube.
horário dos eventos.
Outra questão atingida é a boemia e a
Aqui, a Era do automóvel interfere na
participação em eventos culturais da
apropriação
do
região. Tão citada durante os passeios
valorização
do
como essência impregnada no centro
detrimento do transporte público, e
histórico, a contar das lembranças da
consequentemente do transporte ativo.
década de 1950 em uma Ribeira
Mesmo em uma região rica em possíveis
movimentada por bares e radiolas de
alternativas de modais de transporte, o
balcão, até uma memória mais recente
carro segue em frente, restringindo os
das festas vanguardistas de jovens e
caminhos da experiência à caminhada do
adolescentes em edifícios tombados, nos
banco do motorista à porta do destino
anos 2000, a boemia pode ser diminuída
final. Além disso, dificulta a liberdade
àquele que dirige e não se permite à
prudente do aproveitamento da vida
cachaça da meladinha de Nazih ou a uma
boêmia, uma vez que beber e dirigir não
cervejinha com ginga e tapioca à beira do
combinam.
que
era
o
lugar
de
Canto do mangue. Podemos, empírica,
mesmo
espaço veículo
através
da
privado
em
Mas é a insegurança ressaltada pela noite que
também
de
maneira
associar
a
movimentação cultural da região à atual
que aparece de fato como a causa pela escolha do carro como bolha de transporte e proteção.
CAPÍTULO QUATRO
INSEGURANÇA
OUTROS TEMPOS
Era escuro, era difícil de chegar, você só chegava com carro, se falava que era meio perigoso. A gente hoje não anda tanto a pé, porque a sensação de insegurança é grande.
Quando Lenilton me relatou sobre suas experiências da infância, de que andava de ônibus sozinho e saia pelo centro da cidade a comprar soldadinhos de plástico e bolas de gude, “biloca” como ele disse, confesso que fiquei surpresa. A ideia de uma criança de 8 anos fazendo o mesmo hoje,
se
apega
quase
que
instantaneamente a minha preocupação com a segurança dela.
Mas assim, essa época, lógico que existia violência, lógico que existia problema, tudo existia, mas era sem grandes confusões. Era bem menor.
Aderbal, o senhor de cabelos brancos e pele vermelha, fez questão de me ressaltar como Natal era segura em sua juventude e como ele usufruía disso caminhando tranquilamente pela cidade.
61. Transporte ativo: caminhada. Acervo pessoal, 2015.
Num tinha crime. A gente saia do ABC, da festa de noite com o tênis na mão, a camisa nas costas e ia se despedir da namorada aqui nessa praça da Metropolitana, depois que lanchava no Chapinha.
Então, esse percurso eu fazia toda noite [...], era tão tranquilo Natal que eu vinha a pé de dez horas da noite, das Rocas pra cá e num tinha problema. [...] Não havia nada
212
A PÉ
ABANDONO dessa história de violência. Você tinha uma Natal ainda tranquila.
Cabe tanta coisa maravilhosa aí, e tá assim, abandonada.
Ao caminhar na cidade o nosso corpo
Já sabemos que a transição da Cidade
funciona como envoltória de proteção, e é
Alta que inicialmente ocupou o núcleo
nele que são impregnadas as sensações
habitacional de Natal para bairro de
tocantes ao ambiente que nos rodeia, as
comércio popular, foi incentivado com a
quais podem estar ou não vinculadas à
construção de uma Cidade Nova. O desejo
uma experiência agradável. Quando um
de modernização da capital, assim como
espaço
em tantas outras cidades, lançava luz
transmite
a
sensação
de
insegurança, a experiência apreendida é negativa e tende a afastar o corpo de tal 213
lugar, uma vez que ele provavelmente não voltará a visita-lo, ao menos não da mesma maneira.
seguro no passado e perigoso nos dias de hoje me foi transmitida por boa parte dos E
tentar
entender
as
possíveis causas dessa transição pode ajudar a explicar o porquê do afastamento do pedestre das ruas.
Com o tempo uma grande fração da parte alta do centro histórico deixou de ser a vizinhança da elite natalense, passando a ocupar o centro comercial da cidade em
A sensação de um centro histórico mais
entrevistados.
sobre novos interesses.
Era muito bom. Eu tava começando na época e o sonho era tocar aqui. Mas abandonaram, né? Muito. Se tornou muito perigoso, muito distante.
tomada pelas camadas populares. Por sua vez, a zona comercial da Ribeira que, segundo a lembrança da infância de Flávio Freitas, já contemplou comércios “finos” e de “status”, foi aos poucos perdendo público. Com o interesse e o investimento direcionados para outros lugares, o que restava para aquela área eram os cabarés, as zonas de prostituição e de boemia. Áreas consensualmente inseguras.
CAPÍTULO QUATRO
62. Lixo acumulado na rua, Ribeira. Acervo pessoal, 2015.
Tal fenômeno não foi particular da capital
Olha, a maioria dessas casas são casas particulares que os donos nem fazem nada nem ninguém compra para fazer algum investimento. Ai, fica assim, né? Ó. Abandonado.
Porque tá muito maltratada Ribeira, né? Faz pena.
Eu me lembro que meu avô dizia muito [...] que Natal era linda. Os casarios da antiga Ribeira, subindo, todos eram bonitos. Aí as pessoas começaram a descaracterizar tanto, sabe? Que é uma pena.
Potiguar, o processo de decadência dos centros urbanos faz parte da história de várias cidades brasileiras. Esses novos centros ou polos urbanos se converteram no foco principal de iniciativas públicas e privadas, redirecionando os grandes investimentos, o que intensificou a desvalorização de áreas urbanas centrais, outrora pontos de referência na cidade. Deste modo, o centro primário da cidade começou a ser identificado pela concentração de atividades econômicas informais, pela gentrificação, pela degradação de seu patrimônio histórico e pela subutilização e abandono dos seus edifícios. (ORREGO, 2012, p. 04)
A percepção dos efeitos desse processo foi
Juliana e Luiz relataram os assaltos que sofreram na Ribeira, e em consequência de tal violência, ambos demonstraram receio ao caminhar na região.
Eu sinto que é perigoso. Eu já fui assaltado aqui. Aqui mesmo onde a gente tá agora.
Eu tenho medo, na verdade. Eu só venho se tiver uma carona, porque eu tenho medo de descer aqui na praça e ir andando até lá. Jamais. Eu gosto desses lugares, me sinto bem. Mas é perigoso, viu?
E aí a gente só esticou a mão, entregou a bolsa. E eles fugiram a pé mesmo. [...] Não quero ir prali não (indicando em direção à Rua Chile).
Por quê?
Porque você tá com essa câmera e eu sinceramente acho perigoso.
levantada diversas vezes nas narrativas durante os passeios e entrevistas. A falta de iluminação das ruas; o lixo acumulado nos becos; o esgoto empoçado no meio fio; as casas fechadas; as ruinas repletas de vegetação; a descaracterização da arquitetura; e até mesmo os muros cada vez mais altos foram imagens presenciadas e assuntos abordados quase sempre em um tom de voz que combinava indignação e pena.
a
214
63. O comércio na Av. Rio Branco, Cidade Alta. Acervo pessoal, A2015. PÉ
USOS Tárcio contou como sente medo que o
Voltando a visitar Jacobs (1961), me
abandono do centro histórico dê chance
aproprio de reflexões apresentadas pela
para a tomada do espaço pelas drogas.
autora em busca da construção da lógica
215
A gente tem uma preocupação muito grande com o crack. [...] Se começar a ficar abandonado essa coisa aqui, talvez a gente perca pra droga. Como aí, a Praça Padre João Maria até um dia desses tava.
que pode explicar a insegurança no centro histórico de Natal. Para a autora, mais importante do que a polícia ou mais eficaz do que a iluminação
O processo de modernização das cidades,
pública, para garantir a segurança da rua,
que levou a vida cotidiana para novas
bairro ou região, é necessário o trânsito
centralidades, é capaz de produzir um
ininterrupto de usuários. Tais pedestres
sentimento e uma realidade de abandono.
em companhia dos “olhos atentos” de
O
está
donos de padarias, mercearias, lojas e
de
pequenos serviços, são essenciais para o
insegurança. E dessa forma, em um
sucesso dos bairros e distritos que
instinto de proteção, o pedestre se afasta
apresentam maior vitalidade e segurança.
da rua e leva com ele a brecha de acesso
Para que a expectativa de usuários e olhos
à uma classe de experiência que se abre
atentos seja alcançada é interessante que
unicamente àquele que caminha.
a presença desses “vigilantes” aconteça
abandono,
intimamente
por
ligado
sua à
vez,
sensação
em vários momentos do dia. E tal acontecimento é característico de áreas de uso diversificado. A Cidade Alta ainda possui uma fração do centro
histórico
destinada
ao
uso
residencial, no entanto, a divisão entre a zona comercial e as casas de quem mora
64. Área residencial, Cidade Alta. Acervo pessoal, 2015.
CAPÍTULO QUATRO
no bairro funciona quase como uma
estabelecimentos comerciais fecham, os
fronteira entre duas realidades distintas.
carros partem e as ruas ficam vazias,
Quando caminhava com Lenilton pelas ruas estreitas da zona residencial do
dando margem à insegurança.
Mas a vida noturna, praticamente não tem. Tem assim, algumas coisas. Pronto, eu ando por aqui muito bem, que eu vivo por aqui há num sei quantos anos, mas eu acho que outras pessoas que num conhece aqui deve ficar assustado.
Eu imagino que se outros lugares tivessem mais qualidade à noite, né? Mais vida à noite, seria massa. Sinto falta de um restaurante massa, aqui a noite, seria legal. Não tem, realmente isso não tem.
bairro, ele comentava em como ficou espantado quando descobriu que a região também era ocupada por casas.
Aqui ninguém imagina que são casas, entendeu? Eu acho isso esquisito. Quando eu me toquei que aqui tinha casa, eu pensei “Gente. Nossa. Eu não sabia que a Cidade tinha gente que morava”.
E em depoimento sobre a Ribeira, Henrique refere-se ao bairro como uma região de passagem.
A vida noturna do centro, em particular da Ribeira, além de pobre, parece estagnada. Segundo relatos de Luiz e Juliana, os
A Ribeira é uma região de passagem, as pessoas não permanecem aqui. Também porque não oferece lugares de convivência um pouco mais convidativos. Os lugares são meio ermos, estranhos, as pessoas não ficam. E é menos residencial, né?
mesmos estabelecimentos resistem desde os primeiros anos do século XXI.
Os espaços que tem hoje em geral não me atraem tanto. Porque eles continuam iguais há 10 ano atrás e eu mudei.
O prevalecente uso comercial e de
Apesar disso, alguns eventos pontuais,
serviços dos bairros da Ribeira e Cidade
como é o caso do Festival DoSol de
alta dispõe do trânsito de usuários e dos
música que aconteceu na semana em que
olhos de quem ali trabalha durante o
caminhei com Luiz pela Rua Chile,
horário comercial do dia. A noite essa
acontecem com certa frequência nos dois
realidade é completamente alterada: os
bairros. Apesar de agregar um público
216
A PÉ
POR OUTRO LADO significativo nesses momentos e de levar
O relato de alguns entrevistados, em
pela primeira vez ao centro histórico
especial o de Henrique, morador da
alguns usuários que desconhecem a
Ribeira e o Flávio que tem seu espaço de
região, tais eventos produzem uma
trabalho
ambiência diferenciada do cotidiano dos
amenizar o estigma criado sobre a região.
bairros, a exemplo do número de furtos e assaltos
que
quantidade
aumentam de
pessoas
devido e
Nos eventos, claro, vem bandido de tudo quanto é canto, porque tem muita gente e eles vem atrás de se dar bem.
Tais experiências negativas ajudam a reforçar o estigma de insegurança que atualmente pertence ao centro histórico de Natal, afastando o pedestre da noite. O que não contribui para a melhoria da situação, uma vez que quanto menos
tentam
Existe uma imagem muito negativa, por um lado, né? Desses Centros Históricos das cidades que são tidos como violentos, perigosos, como áreas que as pessoas cometem muito crime, num sei o que. O que não é verdade.
vulnerabilidade da multidão que se
217
bairro,
Não que seja da Ribeira. A Ribeira é um bairro menos violento do que muitos, mas eu digo porque a sensação de insegurança, ela está espalhada, né? Em toda a cidade.
a
dos pertences.
mesmo
a
concentra nas apresentações e se distrai
no
Assim, também tem esse aspecto, eu acho que não é uma criminalidade, a daqui, no nível de violência que se vê por aí. É mais um abandono. Ou então, as vezes é um desespero mesmo. O povo tem medo, mas esse medo é um medo construído, na verdade.
olhos atentos e relações entre pedestres e
A construção desse medo, que envolve o
usuários, mais a sensação de insegurança
processo de modernização das cidades e
vai estar presente nas ruas.
a hegemonia do veículo motorizado, explicitados
anteriormente,
também
acontece pela ação do processo de espetacularização
das
cidades,
que
através da iluminação de outras áreas de
CAPÍTULO QUATRO
interesse, conseguiu transformar o centro histórico
de
Natal,
quase
em
O centro começou a cair quando começaram a montar os shoppings em Natal. Aí, os shoppings levaram essa parte cultural mais ativa. Os cinemas ficaram concentrados nos shoppings, as livrarias, nos shoppings. Os shoppings desativaram o centro da cidade.
Mas hoje é o shopping, né? Hoje não é mais o Grande Ponto.
sua
totalidade, em uma zona opaca, oculta, mas que ainda dispõe de alguns focos de luz
sob
os
espaços
detentores
de
investimento e atenção da região.
ESPETÁCULO
A força do processo de espetacularização
SHOPPINGS Vários
entrevistados
das cidades se traduz claramente no o
exemplo do shopping center, que mesmo
esvaziamento do centro histórico à criação
localizado fisicamente em áreas distantes
dos shoppings centers na cidade. Espaços
do centro histórico, consegue interferir
luminosos por natureza, os shoppings
tanto no trânsito de pessoas, quanto na
padronizam, homogenizam e criam uma
movimentação cultural e nos hábitos
referência limpa de espaço comercial que
comuns a essa região. Ajudando a alterar
jamais
a ambiência e a identidade local.
será
associaram
alcançada
pelo
centro
comercial popular estabelecido na cidade. A propaganda e a concentração de espaços de cultura, lazer, alimentação e serviços ajudam a criar um consenso de que tais espaços são suficientes.
As pessoas vinham muito para a cidade, né? Pro centro da Cidade e pra Ribeira. Depois que teve a inauguração dos shoppings - Natal Shopping, Midway tudo concentrou lá. As pessoas deixaram muito de vir pra cá. Então diminuiu bastante, né?
218
A PÉ
ESPETACULARES À SUA MANEIRA Antes o professor tinha mais visão dos alunos né?
A desatenção e a sensação de abandono perceptíveis em muitas áreas do perímetro do centro histórico de Natal contribuem
A grade e a construção que limitam a
para a distinção e o realce dos pontos
janela para o rio, traduzem bem o que o
luminosos da região.
Terminal Marítimo representa dentro do processo
O Terminal Marítimo de Passageiros da Ribeira claramente é o foco de um dos holofotes. O edifício branco, limpo, e espelhado, que prometia “novos locais democráticos 219
de
lazer
gratuito
e
entretenimento tanto para os moradores locais quanto para turistas” (SILVA, MORAIS e NÓBREGA, 2015, p. 89)
de
espetacularização
das
cidades. Um espaço, que tem sua real preocupação voltada ao turismo como atividade econômica, vende a paisagem sem barreiras do pôr do sol àqueles que podem
pagar
por
ela,
e
oferece,
generosamente aos passantes da rua as brechas que sobram em um ato de democracia cercada por grades.
permaneceu fechado durante os passeios acompanhados. Nem mesmo o edifício
Um outro espaço, esse entendo que muito
restaurado que dá acesso ao prédio se
menos espetacular pela arquitetura ou
manteve aberto para visitação. O contato
grandiosidade, mas que revela interesses
mais próximo entre pedestre e terminal se
ocultos é a região do Canto do Mangue,
dá
nas Rocas, incluindo o Mercado do Peixe
através
gradeado,
de em
um que
espaço se
lateral,
destina
a
contemplação da vista do rio, mas dessa perspectiva a paisagem já não é a mesma.
Aí, era aqui que a gente estudava. Bem cedinho, 7h da manhã. A vista era linda, né? Mas aí construíram isso (se referindo ao terminal marítimo), matou um pouco, né? E eu não sei como tá sendo as aulas, que tá meio fechado o caminho.
e a praça onde Seu Pernambuco serve ginga com tapioca.
Mas, aqui é o Canto do Mangue, né? Já é mais conhecido mesmo, tem até no roteiro do centro histórico da Prefeitura.
Isso, isso. Mas é porque isso aqui é o que é vendido. O mercado. Entendeu?
CAPÍTULO QUATRO 65. Terminal de Passageiros da Ribeira, área de livre acesso ao transeunte. Acervo pessoal, 2015.
Particularmente
para
mim
é
nesse espaço. Que é: Não sei o que é.
difícil
visualizar a região como um produto fiel do processo de espetacularização das
Se a luz surge translúcida em meio ao
cidades. Prefiro entender como uma
Canto do Mangue, e me faz querer
tentativa de organização e padronização
acreditar
do espaço e que assim recebe mais
abrandada, ela não deixa dúvidas em
atenção do que o cais da Av. Tavares de
estourar de LED as fachadas do edifício
Lira, por exemplo, que dispõe do mesmo
que ocupa a Prefeitura Municipal de
tipo de serviço. No entanto, a cigarreira
Natal.
“brega” e o mercado que fede a peixe,
O processo de espetacularização das
devido
de
cidades também não age aqui de uma
vizinhança, em que as pessoas se
forma habitual, uma vez que a arquitetura
aproximam
“bolo
ao
peso
sem
da
ambiência
grandes
pretextos,
de
que
sua
noiva”
força
não
pode
permitiria
ser
a
trabalham sentadas em baixo de árvores
padronização, no entanto, o espetáculo se
onde apreciam a vista do rio, ainda
ocupa em não deixar passar despercebida
conseguem provocar por meio de uma
a sede de poder da cidade, realçando a
naturalidade própria a sensação de
hierarquia de valor e deixando claro onde
experiência genuína, mesmo que sob um
mora a autoridade da região.
pequeno feixe de luz espetacular.
É engraçado que a gente aprende que pra consumir você tem que ter tais regras. Tem que ser assim e assado. Há uma série de fatores, que dizem, desde a questão da higiene, a questão da apresentação, da recepção, e tudo mais. E aqui todas as regras são burladas. No entanto, é muito frequentado inclusive. Há outras formas que atraem a freguesia e o povo que não estão na escola de marketing, que não tá
66. Fachada iluminada, Prefeitura de LED. Acervo pessoal, 2015.
220
A PÉ
INDÚSTRIA DO PALANQUE
E isso aqui, o centro histórico de Natal, ó, daqui pra Ribeira até as Rocas, havia cultura. Uma coisa normal. Você não tinha esse business de butá um palco, num sei o que.
Em entrevista com os personagens do Sebo
Balalaika,
alguns
deles
mencionaram um incômodo que lhes parece natural a contemporaneidade e que lhes faz sentir saudade de um passado mais espontâneo. 221
Hoje tá muito essa indústria do evento, tem que pedir uma licença, num sei o que. Aí, a questão do espontâneo, assim, tem, tem, mas é menos, bem menos
Tudo que cê vai fazer tem que ter uma verba, butá um palanque do tamanho do mundo, sabe?
da “indústria do palanque” cria normas de ocupação do espaço que preocupam por vetar a “performance do artista popular”, afastando a sua essência vibrante da rua e dando espaço a ocupação de tais lugares por outros atores, a exemplo dos usuários
de
drogas,
ajudando
na
sensação de insegurança que acomete a região.
De que se começar a proibir evento, de começar a proibir os bares abrir, isso aqui vai tomar lugar pra quê? Pro abandono.
CIDADE METIDA À BESTA
Eles se referiam à espetacularização dos
Outra questão que me chamou a atenção
eventos e a burocracia que surge com ela.
durante os passeios acompanhados foi a
O que, segundo Aderbal e Tárcio, afastam
sensação mencionada pelos entrevistados
das ruas a essência cultural e boêmia do
de que o natalense não se identifica com
bairro.
a sua cidade, como se Natal não fosse valorizada por aqueles que vivem aqui,
A prefeitura barrou, num foi?
Barrou, foi. É imoral, né?
Além de ajudar a centralizar e criar ambientes prontos para os momentos de cultura na região, a dinâmica burocrática
atribuindo a tal constatação parte da culpa pelo
esquecimento
do
seu
centro
histórico.
Mas eu sinto como se Natal não observasse, sabe?
CAPÍTULO QUATRO
É difícil alguém admitir que gosta das coisas daqui. É difícil, muito difícil. A gente vê outras cidades que tem muito orgulho.
Segundo Hall (2004) é na modernidade que as sociedades experimentam a sensação de mudança constante, rápida e
Lenilton levanta a questão da tomada da
permanente. E é nesse momento em que
cidade
durante a
a transição entre aquele sujeito seguro de
Segunda Guerra Mundial, em que Natal
sua identidade unificada e estável, para
ficou conhecida por ser pioneira em
um
diversos
“constituído
pelos
americanos
aspectos
que
refletiam
a
personagem de
várias
fragmentado, identidades,
modernidade que chegava ao país. Ele dá
algumas vezes contraditórias ou mal
a entender que a cidade se acostumou em
resolvidas”
ser espetacular, se habitou a olhar para
acontece. O autor atribui à globalização a
frente e se apegar à modernidade.
responsabilidade por este fenômeno e
Mas Natal é uma cidade esquisita, porque assim, com os americanos aqui, criou-se umas doenças. Uma que foi o lance do pioneirismo, essa história de ser “o primeiro”. [...] E também a mudança dos nomes das ruas em detrimento da facilidade dos americanos, botar: 1, 2, 3... Pra facilitar a locomoção deles. Então você perdia a identidade própria da rua que era Rua Fulano de Tal, num sei o que, e passou a ser 1, 2, 3, 4.
(TINÔCO,
2015,
p.17)
entende que o “sujeito pós-moderno [...] não tem identidade fixa, ou permanente, mas se transforma todos os dias” (Idem).
Mas eu acho que Natal é essa cidade metida a besta que tem uma pretenciosa [...] “cosmopolitização”.
Natal foi exposta à modernização de uma maneira bastante agressiva, a população aumentou exponencialmente em pouco
O sentimento de pertencimento e orgulho
tempo e os novos costumes viraram
dos moradores de um território, de acordo
moda. Talvez a cidade tenha se moldado
com Krucken (2009, p. 102 apud
a essa “evolução” e tenha decidido seguir
TINÔCO, 2015, p.17) está associado a
nesse estado de constante transição, em
imagem que se tem da região, levando-se
que olhar para trás é moda do passado. O
em conta sua herança cultural, histórica e
processo de modernização não é um
social.
problema, ele faz parte do curso natural
222
A PÉ
da história dos centros urbanos, no entanto, ter a identidade associada ao seguir em frente, pode implicar em dar as costas a errância lenta, a valorização da experiência e ao cuidado com a história remanesceste, a exemplo da memória daqueles
que
vivenciaram
o
centro
histórico de Natal. A seguir, os lambe-lambes produzidos a partir 223
das
respeito
de
reflexões
apresentadas
a
carro,
insegurança
e
espetáculo. Sugere-se a leitura do Apêndice C para total compreensão dos conceitos adotados na produção dos lambes.
CAPÍTULO QUATRO
224
A PÉ
225
CAPÍTULO QUATRO
226
A PÉ
227
CAPÍTULO QUATRO
228
A PÉ
229
CAPÍTULO QUATRO
230
A PÉ
231
INTERFERÊNCIAS
DE VÍNCULO MEMÓRIA | CULTURA & BOEMIA | NATUREZA ARQUITETURA | RESISTÊNCIA
CAPÍTULO QUATRO
67. A caminho do Beco da Lama. Lenilton Teixeira , 2015.
MEMÓRIA Eu sabia que a memória seria uma boa
medo da viúva bicho papão e por acreditar
aliada no momento de identificar as
que ela possa comer o seu fígado.
experiências daqueles que caminharam ao meu lado ou que cederam um pouco de
seu
tempo
para
recordar
suas
lembranças mais significativas. Mas não podia
imaginar
o
quão
expressivas
seriam. Nas palavras e no tom da fala de cada entrevistado, pude notar que muitas das experiências das quais eles mais se orgulhavam
haviam
acontecido
no
passado. O
tempo
As histórias da juventude também não escaparam
aos
relatos
significativos,
talvez por ser esse o período da vida em que mais nos permitimos ao risco e a novas
experiências.
Como
os
que
atravessavam a Ribeira e a Cidade Alta a pé e de madrugada, voltando para casa depois de uma festa nos clubes da cidade, ou
a
garota
que
passava
horas
caminhando após do fim da aula, pelo nos
permite
perceber
a
simples prazer em errar sem rumo. Ouvi
experiência ligada à idade. A exemplo das
lembranças de rapazes que se despediam
aventuras da infância, quando um passeio
das namoradas, “aqui nessa praça”, e que
no rio acontecia por uma lancha mágica,
se reuniam com amigos para tocar violão
ou quando um caderno de colorir era
e conversar no Grande Ponto depois que
capaz de distrair e fazer a hora correr mais
saiam da missa. E quando a sessão de
rápido. Nos faz relembrar quando as luzes
cinema acabava, não partiam sem antes
de natal eram vistas de um plano baixo,
“traçar” um bom lanche e tomar vitamina
transformando a rua em parte de um
de sapoti numa taça riscadinha.
universo lúdico que o adulto já não enxerga depois que cresce. A experiência parece ser mais fácil para o menino, que descomplica
a
insegurança
ao
sair
sozinho para comprar biloca no centro, mas que escolhe não visitar a rua com
Vivem na memória as festas da padroeira na Praça André de Albuquerque e os parques
de
diversões
que
traziam
barracas e música para quem passava.
232
A PÉ
68. Bar da meladinha, Cidade Alta. Acervo pessoal, 2015.
Foi na Ribeira a primeira vez que alguém
a ocupar outros corpos. A memória, que
subiu para cantar em um palco, que fez
segue no passado é capaz de se fazer
um show de verdade, que resolveu
presente através do interesse e da
organizar uma festa com os amigos e
apreensão de quem ouve. E como o
acabou lotando um salão de beleza, ou
narrador conta e leva à frente o que ele
que passava a semana imerso em um
extrai da própria experiência ou daquela
intenso Blackout.
contada pelo outro, ela estará sempre se
renovando, acumulando novos discursos
Tá doido! Era muito mais vivo!
e novos acontecimentos. Ao narrá-la, a Na época em que o centro já foi “mais bonito, mais prazeroso”, também era a 233
época em que se andava a pé, em que Natal era coisa bacana. Mas Antônio tem razão quando diz que “cada geração tem
saudade da Natal da geração de Antônio deixa de ser somente dele, e a vontade de revisitá-la, mesmo que pela primeira vez, captura novos ouvintes, novos possíveis errantes.
a sua cidade”, e que se a atual já não compartilha as mesmas experiências e não usa a rua da mesma maneira, é natural sentir saudades.
A gente fica com saudade dela, querendo ver se retorna. [...] E quando eu passo vem a memória todo aquele período que era um período muito bonito.
A lembrança narrada é uma experiência genuína. É a parte mais significativa da memória e por isso ela é tão importante na
transmissão
da
experiência.
Ao
revisitar o centro histórico através das lembranças do outro a experiência passa
69. Lembranças de Aderbal. Lenilton Teixeira, 2015.
CAPÍTULO QUATRO
CULTURA & BOEMIA Entender o que movia e o que ainda leva
ainda surgem aqui e ali a batucar uma
usuários ao centro histórico da cidade me
caixa de fósforos ou a soprar um som em
pareceu
um sax.
evidente
interferências experiência sobretudo
do
na
busca
de
positivas
sobre
a
pedestre
sobre
na
os
região, vínculos
estabelecidos, uma vez que tais conexões são criadas através da preservação de relações de interesse. Não foi difícil encontrar uma motivação comum às narrativas dos entrevistados. Afinal a essência cultural e boêmia da região foi uma questão consensual no discurso daqueles com quem conversei.
Então a gente tinha essas coisas da boemia, uma boemia sadia, que as pessoas, figuras de nome aqui no estado, como eu sei de Newton Navarro e outros mais, escritores, que ficavam ao redor de uma mesa contando história, bebendo, se divertindo.
Atualmente, a herança boêmia é somada a vocação musical que perdura na região. O Buraco da Catita, o Galpão 29, e o DoSol foram citados como casas ainda em funcionamento que produzem shows, festivais, festas e espetáculos de música,
Mas, como a Ribeira não tem morador, quem era atraído para bares eram essas pessoas ligadas a algum tipo de movimento, ou à cultura, ou à boemia, à arte, essas coisas assim.
sendo responsáveis por ajudar a divulgar a produção de artistas locais.
A boemia aparece nas lembranças vivas de uma Ribeira movimentada por cabarés e
bares
tradicionais;
nos
porres
“homéricos de Newton Navarro”; nos bares de Nazih, de Odete e de Nazaré, revivida em fachadas coloridas e mesas postas na rua e na espontaneidade das performances de artistas populares que
Também tinha um festival que era com música, eu lembro que foi uma das primeiras vezes que eu escutei Simona Talma.
Em momentos das narrativas a boemia e a cultura se confundem, talvez pelo fato de estarem acostumadas a frequentar os mesmos
espaços,
a
exemplo
dos
intelectuais que se reuniam nas livrarias aos
sábados,
mas
que
certamente
compareciam os bares na sexta à noite.
234
A PÉ
Aqui em baixo, funcionava o ZumBar, que era o bar mais cult que você possa imaginar, da Cidade.
Os lugares que me foram apresentados como as casas em que cultura e a boêmia costumavam frequentar, e que ainda hoje
centro
seguem comparecendo, demonstram uma
histórico foi diversas vezes revisitada
íntima relação do ambiente interno com a
através, por exemplo, de lembranças das
rua.
A
movimentação
cultural
do
sessões de cinema na Cidade Alta como
Era um cinema de rua que tinha ali do lado da catedral nova.
Tinha [...] o bar dos intelectuais ali na esquina. Eu sempre passava e via os velhinhos.
programação obrigatória aos domingos; dos encontros nas livrarias na Av. Rio Branco; da presença ilustre de artistas na galeria de arte e das apresentações de 235
corais na concha acústica localizada em frente a antiga catedral, na Praça André
A exemplo de bares, edifícios que já ocuparam cinemas e teatros que ainda sobrevivem na região, tais espaços têm
de Albuquerque.
suas
Natal era uma cidade muito pujante, muito fértil em termos de movimentação artística e cultural.
portas
de
acesso
voltadas
diretamente a esquinas, becos, ruas estreitas e praças. Adentra-se ao espaço
Ultimamente, espaços como a Casa da
sem a necessidade de atravessar muros
Ribeira,
Frei
ou de passar por uma cerca. Durante os
a
festivais de música, teatro e cinema que
localizada
Miguelinho,
na
contribuem
Rua para
preservação dessa identidade cultural do
acontecem
na
região,
a
rua
é
bairro.
naturalmente fechada para a passagem de veículos, priorizando o pedestre. O
Teve uma época bem legal que a Casa da Ribeira tinha muita coisa. Eles fizeram um festival de curtas e aí a tela era na rua, então eles fechavam a rua, colocavam o telão, um monte de cadeira de plástico na rua. Era bem legal.
carnaval é exemplo de uma festa popular que também acontece na rua e devido a sua configuração obriga a preferência por quem anda em detrimento de quem dirige.
CAPÍTULO QUATRO
NATUREZA
O RIO Essa ambiência festiva e agradável típica
Quando perguntei a Flávio se ele poderia
dos movimentos boêmios e culturais
me apresentar, mesmo que em narrativa,
permeia tais eventos e contribui para a
um espaço particular da região, ele me
aproximação entre as pessoas e a rua.
respondeu que me levaria para ver a cidade de dentro do rio.
70. Meladinha na mesa, Cidade Alta. Acervo pessoal, 2015.
A mesma impressão foi passada pela fala de Luiz, em contato com suas lembranças das aulas de remo.
E como é ver a cidade vista do rio?
Nossa, é impressionante. Parece outra cidade. É linda, é muito linda.
Pude perceber durante os passeios que o rio não é de importância exclusiva das memórias de Flávio, que desde a sua infância
caminha
pela
Rua
Chile
vivenciando a conexão da cidade com o as águas do Potengi, ou para Henrique que sentia falta da vista quando ela estava cercada por tapumes. O Rio é o elemento mais antigo da região que hoje ocupa o centro histórico de Natal, estava presente quando a cidade era ainda uma criança provinciana, e talvez seja um dos elementos mais importantes da identidade da região.
236
A PÉ
JANELAS Apesar da poluição instaurada em suas
A topografia acentuada da Cidade Alta,
águas, que afasta quem tenta se apropriar
que já entrega a posição pelo nome,
dele através do esporte, por exemplo, o
incentiva a criação de janelas que
Potengi se faz presente mesmo quando
funcionam como uma organização visual
não o vemos: Nas ruas ventiladas com a
entre o urbano e a natureza. Nesses
brisa
nas
espaços a conexão entre cidade e
indústrias de pesca que ocupam a região;
paisagem acontece genuinamente mas
na ginga com tapioca servida em mesas e
chega a surpreender pela grandiosidade.
cadeiras de plástico. E quando temos a
A exemplo do mirante da Igreja de Nossa
oportunidade de contemplá-lo, o olhar
Senhora do Rosário dos Pretos que
não nega atenção.
espanta pela proximidade com o rio
úmida, nos mercados
e
237
correndo ao final da rua; e a surpresa agradável que se tem ao encontrar a esquina da ladeira da Rua João da Matta 71. A proximidade com o rio na rua em frente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos . Acervo pessoal, 2015.
em que o verde do mangue colore o plano de fundo.
Eu gosto muito da Rua da Misericórdia, que eu acho que é o nosso píer, né? Pra ver a cena mais bonita do dia em Natal é o pôr-dosol, o nascer é muito bonito, mas o pôr-do-sol vai avermelhando a cidade por lá.
Do centro histórico de Natal é possível ver o pôr-do-sol acontecer em namoro com o rio. Na Rua da Misericórdia, em que vi o sol se despedir do dia durante o primeiro passeio acompanhado, é possível sentir o tempo parar. Durante alguns instantes
CAPÍTULO QUATRO 72. Janela na Rua João da Matta. Acervo pessoal, 2015.
daquele
sábado,
todos
que
ali
contemplavam a mesma paisagem se aquietaram, pareciam estar imersos em
E acho que muito ligado à essa coisa da história. Pra mim, a arquitetura é um negócio que influência muito na minha vida, em estar em um lugar.
um estado de lentidão, de percepção. O
A nobreza da Casa do Estudante e as
pôr-do-sol e a paisagem pintada de rio
histórias de amizades que ali foram
funcionam como uma pausa na correria
construídas; a casa bonita que chamava
do dia-a-dia, como um espaço para a
atenção e fazia o caminho desviar para
sensibilidade da natureza cotidiana, que
que se pudesse contemplá-la; o prédio de
pinta de vermelho a cidade e que
letreiro reformado que hoje é casa de
consegue assim, chamar sua atenção por
alguém; a escadaria de onde se viam
alguns instantes.
passar as alegorias nas festas de carnaval; o teatro que lotava em apresentações da infância;
ARQUITETURA
consulado;
No curso de Arquitetura a gente aprende a dar valor, dar muita importância a arquitetura histórica, né? Porque ela conta a história da cidade nos seus prédios, nas paredes, nas fachadas. Na forma do espaço do bairro. Você caminha e você sente isso. [...] É uma motivação a mais para eu produzir arte.
entrevistados
associaram
a
importância da arquitetura como um incentivo
à
sua
permanência
e
experimentação no centro histórico de Natal.
restaurante o
espaço
que
já
foi
estiloso
e
aconchegante próprio para uma festa e o labirinto que desperta a curiosidade de quem ouve e experimenta seus degraus: são exemplos de como a arquitetura ajuda a contar história e a identidade de uma cidade através dos volumes e das formas. E
Alguns
o
a
preservação
contribui
para
a
dessa
arquitetura
permanência
de
narrativas que são capazes de despertar o interesse em manter portas abertas, subir escadas, aproveitar a varanda para olhar o rio, e assim sentir por dentro um pouco disso tudo o que contam.
238
A PÉ
RESISTÊNCIA Durante a minha apropriação teórica para
exemplo, a zona residencial da Cidade
a construção dos conceitos de base deste
Alta que parece desconhecida até mesmo
trabalho, li sobre a resistência das zonas
àqueles que sentem a região como área
opacas: espaços de criatividade, abertos e
apreendida. Mas talvez seja devido a isso
dissensuais que permanecem vivos em
que tais zonas revelam uma ambiência
meio aos processos de modernização e
diferenciada, intocável, e assim mais
espetacularização das cidades. E também
intima e pessoal, como é o caso da Rua
tomei conhecimento da existência de
da Misericórdia, única via em que
errantes e vaga-lumes, personagens que
presenciei crianças brincando.
permeiam tais áreas e que traduzem a experiência de alteridade na cidade.
Assim como o descaso e o abandono permitiram a identificação das áreas
239 Já citei, aqui mesmo nessa narrativa,
iluminadas, a resistência nos revela os
parte da minha opinião sobre as zonas
vaga-lumes.
opacas do centro histórico. Sinto que devido ao abandono, a insegurança, e ao investimento
em
outras
áreas
de
interesse, o centro histórico se configura, atualmente, como uma grande zona opaca. Mas com distinção em níveis de iluminação que despontam do LED das fachadas da Prefeitura e chegam ao breu total nos becos da região.
Eu não vô sair do centro não. Eu comecei aqui e vou ficar por aqui. Até o final. Eu não vô levar meu sebo pro shopping.
A lojinha apertada onde consertam-se roupas e calçados, sinaliza com uma luz pequena aquele que resiste há 40 anos. A escola que tem no rio o seu sustento e filosofia, mesmo com a passagem e a vista cortadas, segue ensinando uma nova
As grandes avenidas que se ocupam de
forma de olhar, e assim transforma
carros e do comércio, como a Av. Rio
diariamente remadores em pequenas
Branco e a Av. Câmara Cascudo, são mais
luzes sobre as águas do Rio Potengi. Uma
iluminadas do que as áreas residenciais
associação de amigos que se esforça para
de pequenas casas e ruas estreitas, por
criar alternativas de lazer mesmo com
CAPÍTULO QUATRO 73. Crianças brincando da Rua da misericórdia, Cidade Alta. Acervo pessoal, 2015.
poucos recursos, canta para que o beco,
embriaguez agradável, também segue
aquele que passa despercebido, não
resistindo em meio à luz da modernidade.
perca o samba para o crack. Os pequenos
Ela surge com o cheiro do peixe no
comércios de bairro que emprestam suas
mercado
cadeiras às calçadas observam o jogo de
determina o ritmo da caminhada, no calor
cartas improvisado do outro lado da rua.
que te obriga a sentar e descansar, na
O bar de esquina com o beco, que apesar
vista hipnotizante e na árvore que é capaz
do dono chato, oferecia o necessário para
de abrir o telhado de uma casa para seguir
ascender a boemia da região. As zonas
polinizando e resistindo em outros jardins.
opacas e os vaga-lumes do centro histórico resistem nesses espaços.
popular,
na
ladeira
que
A lembrança também está para além do material e é através da narrativa, que ela
Espaços em que as regras são burladas e
extrapola o corpo individual podendo
que os seus frequentadores aparecem por
resistir por mais tempo no discurso do
se sentirem em casa, por saberem que se
outro.
tratam de “cantinhos” únicos, repletos de uma identidade própria difícil de se encontrar em tempos de cidades cartões postais.
A seguir, os lambe-lambes produzidos a partir
das
Além dos espaços físicos da arquitetura construída, a natureza que refresca com a sombra de uma árvore e que pelo vento consegue provocar uma sensação de
apresentadas
a
respeito de memória, cultura e boemia, natureza,
Porque ela dizia que as vezes você vai em um lugar que parece o mesmo de outras cidades, sabe? Que não tem nada de diferente. Como um Mcdonalds da vida. [...] Aí, eu trouxe ela pra cá. Ela gostou.
reflexões
natureza,
arquitetura
e
resistência. Sugere-se a leitura do Apêndice C para total compreensão dos conceitos adotados na produção dos lambes.
240
A PÉ
241
CAPÍTULO QUATRO
242
A PÉ
243
CAPÍTULO QUATRO
244
A PÉ
245
CAPÍTULO QUATRO
246
A PÉ
247
CAPÍTULO QUATRO
248
A PÉ
249
5. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Domingo ali, fervilhava de gente.
e descobri o encanto de conversar com
A lembrança nostálgica de Antônio me faz
um desconhecido. Sentimos o alivio da
retornar à Espanha, naquela aula de
sombra e o cansaço nas pernas depois de
fotografia em que o professor atentou a
uma ladeira. Dividimos nossa comida e
falta de algo essencial para o sucesso de
bebemos juntos em uma mesa de bar.
uma boa narrativa, seja ela imagética ou
Percebi o sotaque forte e me proporcionei
oral: “Personas” ele disse.
mais tempo para ouvir do que falar.
Entendo as pessoas como a base material
A minha narrativa nada mais é do que um
mais rica deste trabalho, afinal, foi através
compartilhamento da narrativa de outras
da experiência delas, que hoje eu posso
pessoas. A minha reflexão se apoia no que
afirmar ter uma narrativa para ser contada
vivi ao lado deles, e no que eles tinham
sobre o centro histórico de Natal.
para contar. Entendi que onde fervilha
gente, fervilha a experiência. Pra mim, as coisas são muito ligadas às pessoas. Cada canto tem uma situação que eu vivi com alguém, [..] é alguma coisa que marca. Sabe?
E o dar corpo assume o propósito de convite à experiência do outro mas ao mesmo
tempo
ambiciona
uma
Cada pessoa que caminhou a meu lado,
ponderação
ou que sentou por algum instante entre o
tomamos na cidade e como se dá a nossa
meu gravador e eu, foi capaz de me
relação com ela. Tentei estimular o
fornecer narrativas que vão muito além de
pensamento
informações cruciais sobre o centro
contemporâneos: por onde caminhamos,
histórico de Natal. Ouvi histórias pessoais
por que deixamos de frequentar tal espaço
embaladas em gestos e expressões faciais
e
que denunciavam previamente o final da
estabelecidos.
frase. Reconheci aqueles que já conhecia
quais
sobre
sobre
são
os
as
posturas
hábitos
nossos
que
urbanos
vínculos
250
A PÉ
Somos
251
vítimas
dos
processos
de
tentaria distinguir os espaços luminosos
modernização e homogeneização das
das
cidades ou contribuímos para o abandono
teóricos, os quais eu havia apropriado
da rua e para a expropriação da
previamente
experiência?
acompanhados.
Temos frequentado os mesmos lugares
Mas foi somente ao escutar e ao caminhar
homogêneos que as luzes das cidades nos
lado a lado com o outro que fui capaz de
vendem? Ou será que nos permitimos
perceber as interferências de afastamento
errar pela rua, arriscar um olhar relaxado,
agindo no meu corpo e no daquele que
adentrar em um beco ou conversar cara a
me acompanhava.
cara com alguém que não conhecemos?
zonas
opacas.
aos
Eram
conceitos
passeios
Notei o constante estado de alerta que o
Talvez nem nos inteiremos dos processos
corpo assume em proximidade com
que decidem o que vemos e o que
trânsito de veículos. Senti o incômodo do
consumimos nas cidades. Mas como
ruído do trânsito que afasta o morador de
arquitetos e urbanistas que projetam
sua janela. Ouvi a voz de conformismo
espaços para pessoas, tais interferências
pelo novo estacionamento que tomou o
precisam ser assimiladas de forma que
lugar físico da lembrança. E, claro, me
nossas escolhas não espelhem produtos
identifiquei com a sensação de precisar de
homogêneos e impessoais, e que possam
uma carona.
alcançar objetivos para além da forma e da função.
Percebi no tom da voz a saudade por um tempo mais sossegado, mais seguro, em
Eu tinha ideia, mesmo que muito inicial,
que caminhar era coisa bacana, porque se
do que encontraria em campo. Sabia, por
fazia sem medo. E entendi no desvio o
exemplo, que poderia identificar indícios
receio que afasta e limita o caminho.
dos problemas causados pela hegemonia do veículo motorizado, ou que, então,
Vi, através do abandono do tempo, a vida que se afastou para outras centralidades.
E que as fronteiras entre o dia e a noite
A apropriação das interferências de
demarcam limites físicos.
afastamento e vínculo contribui para a
Senti a luz do espetáculo no desanimo de quem sente sua cultura roubada pelo espaço homogêneo. E pude ver através do gesto a vontade de voltar para quando a
quebra
de
consensos
e
para
o
enfrentamento a um urbanismo que foca suas ações em uma escala macro, afastando a experiência da rua. O estudo da escala do sensível fornece um tipo de
paisagem não tinha grades.
embasamento que não se pode alcançar E também foi aceitando os desvios que me
através de uma análise aérea.
ofereceram e seguindo pelos passos de suas lembranças que pude perceber os aspectos referentes àquilo que atrai, o que facilita a criação de vínculo e o que
Por mais que pareça difícil alterar uma lógica
planejamento
urbano
convencionada com o peso da história, a narrativa
provoca o pedestre à rua.
de
não
intenciona
a
sua
desconstrução total, mas questiona as Percebi
que
é
na
memória
onde
suas reais intenções.
guardamos nossos maiores tesouros. Que a experiência é facilitada pela infância e que
corre
os
riscos
da
juventude.
Presenciei a ambiência boemia e não pude nega-la uma dose. Parei um minuto para ver o pôr-do-sol e testemunhei que a cultura tem acesso direto à rua.
Quando escolhi o meu objetivo geral por: “Provocar a experiência urbana através de uma narrativa crítico-reflexiva, baseado na discussão da lógica do planejamento das cidades e em sua interferência na experiência sensível do pedestre no centro histórico de Natal”, eu sabia que dependia
Pude ir além de identificar as zonas
do
opacas, adentrei em seus espaços e
alcançado. Para mim, se em algum
agradeci a atenção que me foi dada por
momento desta narrativa você se sentiu
seus vaga-lumes.
provocado a compartilhar, levar a diante,
interlocutor
para
que ele
fosse
ou tomar como sua alguma experiência
252
A PÉ
aqui oferecida, sinto que meu objetivo foi
nos lugares errados motivos para errar
atendido.
pelo caminho certo.
Não coube a mim propor soluções ou criar
E cabe a nós, seguirmos experienciando o
propostas de intervenções para além do
outro lado e que essa experiência, de
efêmero e do crítico. Mas espero ter
preferência, seja feita a pé.
conseguido ascender algumas luzes sobre a importância da pequena escala e da valorização do sensível. Que de alguma forma contribua para a construção de uma nova maneira de pensar, para uma nova 253
forma de se fazer urbanismo, em que, por exemplo, o transporte ativo faça parte dos planos de gestão da mobilidade; ou que mais ruas sejam tomadas, e não só aos domingos; que a divisão do espaço possa ser repensada entre carros e pedestres, e que a lembrança, como parte significativa da memória, possa ser valorizada. Caminhar pela experiência impregnada de gente me proporcionou ver além do mapa; enxergar o problema de outra forma; perceber a beleza dos becos e entender que o desvio não é a maneira errada de seguir em frente. E que errar vale a pena. Errar pela rua quando a calçada parece pequena. Errar no escuro a procura da luz do vaga-lume. Narrar a errância. Buscar
NADAS Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. - Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas… E se riu. Você não é de bugre? – ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de gramática. MANOEL DE BARROS
254
A PÉ
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261
7. APÊNDICES APENDICE A. ROTEIRO PASSEIO ACOMPANHADO 1ª ETAPA. CONTEXTUALIZAÇÃO Conversar previamente com o pedestre que me acompanhará durante a caminhada. Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não precisa ser necessariamente efetuada em campo. (Iniciar com perguntas sobre o contexto, trabalho e atuação do entrevistado).
Qual a sua relação com o centro histórico?
Você o frequenta? Desde Quando?
2ª ETAPA. PREPARAÇÃO DA CAMINHADA Deixar claro que não existe roteiro pré-estabelecido, nem é meu desejo conhecer algum espaço em específico. O acompanhante tem total liberdade para me levar aos lugares significativos para ele. Indicar três objetivos, antes de iniciar a caminhada:
Quero andar pelos caminhos que você gosta de fazer.
Eu gostaria que você escolhesse os caminhos que normalmente faz, ou que tenham alguma significância para você. Procure me mostrar sua rua preferida, seus atalhos e desvios, mesmo que sejam becos ou ruas íngremes.
Quero conhecer onde suas lembranças mais significativas estão.
Me leve para conhecer espaços que você goste ou que sinta algum afeto especial. Me mostre onde está sua lembrança preferida, ou algum lugar que você sinta saudade.
Quero descobrir “novos” lugares e conhecer novas pessoas.
262
A PÉ Me leve para descobrir lugares que representem, acordo com as suas experiências pessoais, o centro histórico para você. E se possível, me apresente a outras pessoas que também tenham uma vivência neste lugar e que possam compartilhar suas experiências.
3ª ETAPA. A CAMINHADA Caminhar ao lado do entrevistado sem interferir em suas escolhas. Deixar-se guiar.
APENDICE B. ROTEIRO ENTREVISTA IN LOCO 1ª ETAPA. CONTEXTUALIZAÇÃO Conversar previamente com o pedestre que me acompanhará durante a caminhada. Objetivo da etapa: Entender a relação do entrevistado com o centro, esta etapa não 263
precisa ser necessariamente efetuada em campo. (Iniciar com perguntas sobre o contexto, trabalho e atuação do entrevistado);
Qual a sua relação com o centro histórico?
Você o frequenta? Desde quando?
2ª ETAPA. CAMINHOS Objetivo da etapa: Entender quais são os caminhos que o entrevistado faz usualmente faz.
Você caminha por aqui? Por onde?
Você faz algum desvio? Usa algum atalho?
Você tem alguma rua preferida? Ou algum caminho que goste de fazer? Porquê?
3ª ETAPA. AFETOS ESPACIAIS
Objetivo da etapa: Impregnar-se das experiências e memórias de relevância sensível para o entrevistado.
O que você gosta de fazer no centro histórico?
Qual sua lembrança preferida daqui?
Existe algum lugar, ou mais de um, que você tenha algum afeto especial? Que você mais gosta? Ou ache bonito? Qual é a história desse lugar? Existe algum espaço ou memória de qual você sente falta? ou Você sente saudades de algo aqui no centro histórico? Você lembra de alguma coisa que mudou?
4ª ETAPA - LUGARES PARA SE DESCOBRIR Objetivo da etapa: Conhecer, inicialmente através da narrativa, dos lugares e relevância sensível para o entrevistado.
Se você pudesse me levar ou me aconselhar a conhecer algum lugar que eu não conheça, qual seria?
O que você acha que tem a cara do centro histórico?
(Devido a subjetividade das respostas, atrelada à experiências e lembranças, as perguntas podem variar em ordem e quantidade. A ideia é deixar a conversa seguir livremente e escutar o que o outro tem a dizer. Não se espera que todas as perguntas sejam respondidas).
APENDICE
C.
APRESENTAÇÃO
LOCAÇÃO DOS LAMBES
E
PROPOSTA
DE
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A PÉ
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A PÉ
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