Psicodélica

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psicodĂŠlica



psicodĂŠlica



sumário 07

Introdução

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Origem da Contracultura

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Nasce a Música Psicodélica

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Red Dog Experience

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A Tribute to Dr. Strange

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Trips Festival

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Os Ballrooms

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O Verão do Amor

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Woodstock Music & Art Fair

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O Psicodelismo Brasileiro

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Altamont

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Tropicalismo

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Festivais

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The Sound na Cena Carioca

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Os Mutantes

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Psicodelismo de Garagem

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Paz, Amor e Baioneta

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As Comunas

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O Psicodelismo do Nordeste

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Paêbiru

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Ronnie Von

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Carona no Psicodelismo dos Anos 60


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introdução O verão de 1967 será para sempre conhecido como Summer of Love, O Verão do Amor. Este foi um ano de referência, não só na história do Rock & Roll, mas também na história da cultura em geral. Neste ano aconteceu o primeiro Human Be-In, um grande encontro, sediado no Golden Gate Park em São Francisco no mês de janeiro. Em julho, também na Califórnia ocorre o Monterey International Pop Festival que uniu um grupo não precedente de músicos da América e Inglaterra, entre estes estavam Big Brother and the Holding Company, The Who, Jimi Hendrix, e The Grateful Dead. Era lançada, dia 9 de novembro, em São Francisco, a primeira edição da Rolling Stones. Ao mesmo tempo surgiam as rádios undergrounds com a ajuda do radialista veterano Tom Danahue. Foi também neste período que Paul McCartney admitia usar LSD, como também Mick Jagger e Keith Richards passavam a noite na prisão após serem pegos com drogas. E no fim deste ano mais de 460 mil soldados americanos batalhavam na guerra do Vietnã e mais de 13 mil já tinham sido mortos em batalha. A lista de eventos podia continuar, e mesmo sem nenhuma recompensa, podemos afirmar que 1967 foi um ano notável. Mas esses acontecimentos não ocorreram sem motivo. Este foi o ano em que a mídia percebeu que algo estranho estava rolando. As pessoas estavam abertamente usando drogas como maconha e LSD. Pessoas viviam em comunas e viajavam por aí em ônibus ultras coloridos. A pílula radicalmente tinha alterado as relações sexuais. As notícias eram pegas de fontes alternativas como jornais e rádios undergrounds. Os anúncios para os shows de rock eram feitos com intricados desenhos em cartazes com cores vívidas. O rock & roll entrava na era psicodélica e, repentinamente, a música que em poucos anos era considerada apenas de jovens adolescentes, moldava uma nova cultura. Os primeiros rumores do que conhecemos como psicodelismo foi em 1965, quando os Beatles lançaram Rubber Soul; quando Ken Kesey começou a comandar Acid Tests perto de São Francisco; quando um grupo de São Francisco, the Charlatans, foi escalado como banda da casa no Red Dog Saloon. Em 1966, o psicodelismo florescia. Mas de fato, seu impacto só se deu no fim dos anos 60, quando a psicodelia se tornou onipresente. A influência psicodélica podia ser vista na moda, arte e literatura. Outros países também sofreram influência, e criaram sua própria vertente psicodélica como Inglaterra, Holanda, Canadá, Austrália, Camboja, México, Argentina e Brasil. Neste período o mundo não era um lugar perfeito, e desta forma este movimento também não o foi. As drogas, por exemplo, permearam todo o movimento e estava ao lado de todo o meio artístico e cultural da época. Alguns dos mais brilhantes artistas do período, como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison morreram prematuramente pelo abuso de drogas. Porém, este período, diferentemente de outros, foi um tempo de esperança, de otimismo. Foi um período em que as pessoas valorizavam a liberdade pessoal e a igualdade social. Este foi um momento onde tudo parecia possível. Eles achavam que poderiam mudar o mundo – e assim o fizeram.


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origem da contracultura A Contracultura foi, talvez, a maior responsável pela abertura sócio-cultural que ocorreu no Ocidente na história recente da humanidade. No epicentro desse tremor que afetou de modo profundo e marcante o status quo norte-americano (para aí se espalhar mundo afora) está um grupo de escritores que mudaram a própria vida para talhar de maneira única sua arte. Por conseqüência, acabaram transformando também o mundo. Traçar o caminho percorrido por estes artistas conhecidos como a Geração Beat, num estudo de história da literatura, de cunho sociológico, é uma tarefa que requer uma retomada historiográfica, visando situar no tempo e espaço as figuras em questão, sob pena de minimizar sua importância.

Ao lado poetas Beats e artistas juntos no City Lights Bookstore em São Francisco. Abaixo Michael McClure, Bob Dylan e Allen Gisberg juntos mostrando que os poemas beats começavam a gerar influências sobre a música.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo vivia dias de inconformismo, preconceito, intolerância, retração e fechamento sócio-cultural. Não é difícil de imaginar o que aquilo tudo simbolizou para a população mundial, e o que ficou marcado no inconsciente coletivo, especialmente nos Estados Unidos. Além do forte preconceito racial, existia ali toda a paranóia anticomunista que motivou a doutrina Truman e a Guerra Fria e todo o retrocesso conservador, moralista, hipócrita e preconceituoso que buscava repreender e controlar a cultura, a vida sexual e todos os aspectos da conduta dos cidadãos. Durante os cinzentos anos de 1943 e 1945, formava-se em Nova Iorque o núcleo inicial de um grupo que iria deflagrar, no futuro, toda uma revolução comportamental que seria a tijolada na janela da caretice e do retrocesso cultural. Surgia a primeira formação da Geração Beat. Sua base de operações era Greenwich Village, o bairro dos artistas, intelectuais, músicos e drogados de Nova Iorque. O interessante nessa fase, ainda que não haja produção literária, é o modo como os beatniks se dedicavam à literatura. Viam na manifestação artística e intelectual escrita um modo de pensar e viver, desenvolvendo assim o seu próprio cotidiano. Outra postura do grupo era a experimentação com drogas. Buscavam estimular a percepção através do desregramento dos sentidos e da alteração da consciência. Levavam, também, uma vida sexual promíscua e por este e outros motivos eram chamados por muitos de hedonistas. No final da década de 1940 o grupo vai se fragmentando e acaba por se separar. Passam alguns anos na estrada, viajando pelo mundo, nem que fosse de carona, num cosmopolitismo desenfreado. Até que no início da década de 50, Allen Ginsberg, um dos mais significativos membros do grupo, muda-se para a Califórnia, e logo São Francisco se tornaria o quartel general da agitação Beat. A década de 1960 chegava de maneira promissora. O Rock, surgido poucos anos antes, mostrava à juventude uma alternativa ao estilo de vida moralista e aos valores


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Nessa época de efervescência cultural, os beatniks não deixaram desamparada a nova geração que os reconhecia como predecessores. Neal Cassady dirigia o ônibus, de Ken Kesey, para o grupo Merry Pranksters, numa turnê que varreu a América distribuindo LSD gratuitamente. Também estavam sendo promovidos pelo mesmo grupo os Acid Tests que convidava quem estivesse afim de uma experiência mental coletiva ou um contato celestial imediato através do uso de drogas em meio a um espetáculo de luzes coloridas enquanto a banda de Rock Psicodélico Grateful Dead apresentava ao público suas longas canções experimentais.

ultrapassados que imperavam. Bob Dylan, o grande responsável por tornar a música popular um veículo de temas sérios, se aproximava dos beatniks pelo seu modo de composição e, mais que isso, era reconhecido por aqueles autores como sendo um igual. Não era por acaso que o Rock & Roll, esta nova manifestação artística, possuía muita semelhança com o Beat. Era dele que herdariam ideais e o comportamento. E todos aqueles que cediam àquele fenômeno de massa sabiam reconhecer as ligações que ambos possuíam. Fazia anos que a mídia tratava de transformar os beatniks em escritores malditos, e agora reciclava os mesmos argumentos para combater o Rock. De maneira consciente ou num nível mais subjetivo, a juventude estabelecia a relação entre os dois: eram proibidos pelos pais, negados pelo colégio, censurados por líderes políticos e religiosos. Se não o fizeram, logo surgiriam fortes indícios para isso - as letras de Dylan, declarações de influência como o “Beat” nos Beatles. A revolução comportamental, a revolução sexual, a busca por religiões e filosofias que atendessem as suas inquietações pessoais, a pioneira exploração de áreas obscuras do cérebro e da psique humana através de substâncias desregradoras dos sentidos, a transformação de valores que levou os jovens a se adaptarem e se engajarem politicamente, socialmente, ecologicamente em favores de ideais de paz, sustentabilidade, justiça social, aceitação da diversidade racial e cultural, o desejo de manifestar suas idéias e cultura... Existe nisso tudo influência da Geração Beat.

Em algum momento nos anos 60 a cultura Beat rapidamente se expandiu para uma transformação: esta geração abriu caminho para a Contracultura sessentista, a qual foi acompanhada pela mudança de sua terminologia de beatnik para hippie. A primeira aparição do termo hippie foi em setembro de 1965 no artigo de jornal “A New Haven for Beatnicks” (um novo lar para os beatniks), de Michael Fallon. Na matéria Fallon escrevia sobre o café Blue Unicorn e usava o termo hippie para se referir a nova geração de beatniks que vieram de North Beach para o distrito HaightAshbury. Este foi em vários aspectos uma transição gradual, alguns afirmam que esta mudança terminológica só se define de fato após o Human Be-In de 1967 no Golden Gate Park em São Francisco. A Contracultura provocou um impacto que mudou para sempre a história do ocidente. Seus reflexos foram sensíveis por anos e ainda o são hoje. Não é possível falar num fim ou num fracasso dela, pois, não fora um movimento organizado, com metas e propostas a atingir. Não propôs uma revolução política ou social, mas provocou rachaduras no establishment que permitiram o surgimento dos nichos culturais onde o espírito de mudança se desenvolve até hoje.

Acima, Ken Kasey à bordo da viagem que percorreu o país junto aos Merry Pranksters. À direita o ônibus escolar com pinturas psicodélicas nomeado “Furthur” que foi utilizado para fazer esta viagem.


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nasce a música psicodélica Nos finais dos anos 1950 e início dos anos 1960, São Francisco, Nova Iorque e Boston foram dominadas pelo chamado “Folk Revival”, impulsionado pela Bay Area’s Kingston Trio, em 1958, e depois, no início dos anos 1960, dominada por músicos de Greenwich Village, tais como Bob Dylan e Joan Baez. Neste mesmo início, em Cambridge, Massachusetts; Greenwich Village, Nova Iorque e Berkeley, Califórnia era promovido um circuito de música folk. Em dois cafés em Berkeley, o Cabale Creamery e o Jabberwock, artistas folk com influência do movimento Beat vinham sendo patrocinados.

Acima, Bob Dylan migra para a guitarra elétrica e é acusado de trair as raízes folk; Abaixo, 1ª participação dos Beatles no Ed Sullivan Show, no ano de 1964.

Em 9 de fevereiro de 1964, um acontecimento transformaria a cena musical dos próximos tempos: os Beatles faziam uma apresentação no lendário Ed Sullivan Show. Assim, nos meses seguintes as rádios americanas foram dominadas por bandas de rock britânicas anteriormente ignoradas nos Estados Unidos. Este período ficou conhecido como a Invasão Britânica. Esta reviravolta incentivou que muitos músicos da cena folk americana trocassem seus violões acústicos por guitarras elétricas. Entre os primeiros a fazê-lo está George Hunter de São Francisco, que formou no verão de 1964 uma banda de rock chamada The Charlatans. Dylan, em 1965 também inova no LP Bringing It All Back Home com um lado acústico e outro elétrico. A cena era de transformação geral, cada vez mais a contracultura se afirmava entre os jovens. A música também estava se modificando, as guitarras elétricas obtinham cada vez mais destaque. O rock ganhava um público cada vez maior entre os jovens e influenciado pelas experiências alucinógenas ganhava um tom mais experimental, de total viagem. Foram acrescentados efeitos sonoros; riffs eram rodados de trás para frente; phaser, delay e reverb davam um tom surreal às guitarras em solos intermináveis. Originava-se o estilo que marcou esta controvertida época, era o início da música psicodélica.


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red dog experience O Red Dog Saloon era um bar que oferecia música ao vivo, localizado na calma e isolada cidade de Virgínia, Nevada. Os Charlatans eram a banda da casa e ofereciam uma noite de novas experiências. Eles já haviam adotado as guitarras elétricas e sua música era algo novo que derivava da nascente contracultura misturado com as experiências com ácido licérgico. Em 1965 os organizadores do Red Dog Saloon recrutaram bandas de folk e rock originando uma mistura única que levou ao desenvolvimento da cena psicodélica. Eles criaram o que ficou conhecido como o “Red Dog Experience” onde figuraram grupos musicais que até então eram desconhecidos como Big Brother and the Holding Company, Jefferson Airplane, Quicksilver Messenger Service, The Charlatans, The Grateful Dead e outros. Neste happening percebia-se a cada música que uma nova sensação pairava em meio a todas as experimentações musicais e a um dos primeiros e primitivos light shows promovidos.

O Liquid Light Show era a projeção de efeitos psicodélicos que surgiu e permaneceu em voga nos anos 60. Este efeito era produzido ao colocar uma tijela de vidro, com óleos coloridos,sobre um retro-projetor apoiado numa caixa de som. Esta mistura era diretamente projetada no palco, pulsando conforme o ritmo da música tocada.


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a tribute to dr. strange Ao voltar para São Francisco no verão de 65, os participantes de Red Dog, Luria Castell, Ellen Harman e Alton Kelley criaram um grupo chamado de Family Dog. Afinados desde o Red Dog Experience eles organizam o Tribute to Dr. Strange (um tributo ao super-herói dos quadrinhos Dr. Strange) no Longshoreman’s Hall que seria realizado no dia 16 de outubro deste mesmo ano. Com a presença de mais de mil hippies, esta foi o primeiro desempenho do rock psicodélico em São Francisco, onde centenas de pessoas dançavam fantasiadas à luz do light show. Nesta noite se apresentava os Charlatans. Vestidos de cowboys, tocaram uma hipnótica versão do hit Wabash Cannonball. Os Jefferson Airplane vieram vestidos com roupas modificadas, cantando temas de amor com um jeito misterioso em uma profunda harmonia. Depois entra o Great Society, uma nova banda em que a vocalista, uma ex-modelo chamada Grace Slick, cantava num feroz contralto. Até o final do ano mais dois eventos foram realizados, um no California Hall e o outro no clube Matrix.

À esquerda, foto da apresentação psicodélica dos Marbles. À direita, cartaz do evento tributo ao Dr. Strange.


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trips festival Em 8 de Janeiro de 1966 os Mery Pranksters realizam um colossal Acid Test no Fillmore Auditorium em São Francisco. Apesar de terem posto avisos no hall apenas dois dias antes do evento eles sorriram quando por volta de 2400 pessoas apareceram. Foi uma noite de caos psicodélico. As pessoas bebiam de uma banheira no meio do salão, um refresco misturado com LSD em meio ao light show e muita música. Devido ao grande sucesso ocorrido, foram marcados três dias de evento para o final de janeiro, nos dias 21, 22 e 23 no Longshoremen’s Hall. Nesses três dias mais de 6000 pessoas passaram pelo local. Na primeira noite a banda Loading Zone liderou o palco e fez com que uma grande energia pulsasse no salão. No segundo dia foram projetados filmes de vanguarda e depois um light show embalado pela música dos Big Brothers and the Holding Company. Mais tarde o Grateful Dead sobe ao palco e transforma o evento num fulminante Acid

Test completo de flashes de luz estroboscópica ao mesmo tempo eram projetadas mensagens de kesey com cores fluorescentes num inigualável caos. No terceiro dia, que não foi completamente planejado, se transforma automaticamente em outro Acid Test ao som dos Grateful Dead. Num extraordinário caos um ginasta Olímpico usando uma máscara para não ser reconhecido, faz mergulhos num trampolim no meio do salão aos flashes da luz que pulsava de forma psicodélica.

Abaixo, a alegre energia que reinava o Trips Festival; Ao lado, cartaz do evento.


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os ballrooms No despertar dos Trip Festivals, concertos de rock começaram a ser feitos por toda Bay Area de São Francisco nas noites dos fins de semana. A música psicodélica logo acabara com a mania Folk que existia. Ken Kesey e o grupo original do Family Dog tinham ido para o México, então o empresário do Big Brother, Chet Helms, começou em fevereiro de 1966 a organizar os eventos do Family Dog no Fillmore Auditorium. Em abril, Helms abriu seu próprio hall, o Avalon Ballroon. Eles passaram a ter os dois melhores locais da cidade, ambos com boa acústica e capacidade para milhares. Cada hall tinha suas próprias características e estilo, mas ainda assim a experiência dos dois locais era basicamente a mesma. Andava-se por uma escura pista de dança cheia de espanto e contentamento. As pessoas dançavam qualquer coisa desde o Frug ao Twist, se contorciam e giravam em livres movimentos no escuro do salão ou embaixo de luzes estroboscópicas que transformavam os dançarinos numa série de flashes. Enquanto a pista era escura, as paredes reluziam. Os artistas que promoviam os light shows deram um jeito de preencher três grandes paredes da pista de dança com brilhantes, coloridas e fluidas luzes. Alternadamente com as projeções líquidas, eram projetadas imagens de caleidoscópios ou slides com rostos, mandalas ou flores. Às vezes passavam filmes. O motivo principal que fazia com que todos se reunissem nesses halls era a música. Bandas como Greatful Dead, Big Brother and the Holding Company com Janis Joplin no vocal, Quicksilver Messenger Service, Santana entre outros tocaram nestes eventos. Os músicos falavam das mais profundas preocupações do público. Não apenas sobre as atribulações do amor, pungente e transcendental. Ou mesmo o temor à destruição por bombas nucleares, que foi tratado nas músicas Morning Dew do Greatful Dead e Pride of Man do Quicksilver. Afinal os músicos folk já haviam feito isso. Suas músicas bizarras tratavam questões da exploração psicodélica: como lidar com as mudanças emocionais nesse estado vulnerável, onde se oscila no universo; o que a vida e a morte realmente significam. O LSD levantou questões sobre a natureza da realidade derradeira e sugeriu meias respostas aterrorizantes. Com as músicas falando dessas situações os músicos auto proclamaram-se irmãos nesta busca. Era espantoso pensar sobre isso. A cada fim de semana milhares de pessoas reunidas estavam tendo visões cósmicas, experimentando viagens numa montanha russa esmagadora em um local público. Começou a parecer que o mundo inteiro girava entorno dos acontecimentos desses encontros. Às vezes parecia que o Fillmore ou o Avalon era uma espaçonave que poderia escapar deste mundo de guerras e conflitos raciais através do poder da energia coletiva de centenas de pessoas que celebravam a vida tentando resolver o enigma que o LSD as proporcionava.

Na página ao lado, acima: foto do Fillmore embalado pela apresentação de Santana; Abaixo, uma equipe para fazer um dos mais exuberantes liquid light shows da época; À direita, uma fila interminável de pessoas para entrar num ballroom.


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o verão do amor Após o grande encontro em janeiro de 1967, chamado de Gathering of the Tribes for a Human Be-In, realizado no Golden Gate Park em São Francisco que reuniu cerca de 20 mil pessoas com o motivo de simplesmente estarem ali. Onde bandas psicodélicas tocaram, pessoas recitavam mantras e gritavam “todos somos um” foi o ponto de partida em que a mídia se tocou de que algo estava rolando. A frase “Você sabe que algo está acontecendo, mas você não sabe o que é. Não é, Sr. Jones?” da música de Bob Dylan, passava a fazer algum sentido. Em junho acontecia um outro encontro musical como o Human Be-In. Era o Monterey International Pop Festival, o maior encontro já realizado na costa de Monterey. Neste mesmo local haviam sido realizados o Monterey Jazz Festival e o Monterey Folk Festical. Este seria o marco para que a música rock fosse validada em um lugar de respeito como foi o Jazz e o Folk. O festival durou três dias e mais de 200 mil pessoas passaram por lá. Havia ali um clima de coalescência no ar, particularmente porque este evento juntou de uma vez as cenas psicodélicas de São Francisco e Los Angeles que até então se ignoravam mutuamente. De São Francisco tocaram o Jefferson Airplane, Big Brother and the Holding Company, Grateful Dead, Quicksilver Messenger Service entre outro. De L.A. tocaram The Mamas and the Papas, The Byrds, Canned Heat e Buffalo Springfield. Algo que marcou bastante o festival foi a presença de deuses do rock inglês. Afinal agora ficava claro que Inglaterra e América estavam juntas na mesma onda. Os Stones foram convidados, mas não puderam comparecer por possuírem acusação de porte de drogas. Porém, The Who e Jimi Hendrix - que apesar de americano fez inicialmente sua fama em Londres - estreavam na América neste festival. Mais uma vez a mídia teve sua atenção chamada para a cena psicodélica que parecia cada vez maior. Algo estava mesmo acontecendo. Em 7 de julho de 1967 sai na revista Time a matéria de capa “Os Hippies: a filosofia de uma subcultura”. No artigo era descrito o código desta subcultura: “Faça suas próprias coisas, aonde e quanto quiser fazer. Caia fora. Largue a sociedade como você a conheceu. Deixe-a absolutamente. Abra a mente de cada pessoa certinha que você puder alcançar. Deixe-a ligada, se não nas drogas, então pela beleza, amor, honestidade, diversão.” O movimento alcançou um outro nível. A subcultura estava agora exposta para quem quisesse ver. O distrito Haight-Ashbury de São Francisco há um tempo já vinha sendo considerado a capital da contracultura. Em 66 ele já não acomodava mais o número de jovens que vinham e muitos ficavam na rua pedindo esmolas. Mas nada se comparava ao verão de 67. Provavelmente 100 mil pessoas se dirigiram à Haight neste verão, era o


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desabrochar do movimento perante a sociedade, iniciavase o Verão do Amor. Muitos dos hippies locais acolheram grande parte destas pessoas que vieram e muitas outras migraram dali para comunas rurais. A despeito da expectativa de uma transcendência psicodélica, o movimento acabou por diminuir a partir deste ponto. Foi claro no momento que estas pessoas que se dirigiram à Haight não estavam iluminadas como as pessoas que precediam este fato. Era uma mistura de autênticos hippies e impostores, até mesmo com violentos criminosos como o futuramente conhecido Charles Manson. Em setembro, hippies originais incomodados com a exploração comercial do movimento e a cobertura superficial da mídia realizaram uma cerimônia em público chamada “A Morte dos Hippies”. Era a simulação de um funeral onde um caixão cheio de parafernália hippie foi solenemente queimado. Porém, disseram a imprensa que estava ali reunida: “os organizadores desta manifestação são homens sábios” e foram conhecidos a partir daí de “homens livres”. Algumas pessoas se tocaram da mensagem e até pediam desculpas ao usar a palavra “hippie”. Mas por outro lado, a cerimônia não teve efeito nenhum. Quer queira ou não, o estilo de vida de São Francisco cada vez mais se espalhava por todo o país.

Na página anterior, os Grateful Dead vivendo em comuna com amigos na rua mais hippie dos EUA, a Height-Ashbury. Acima, nesta página, a famosa cena onde Jimi Hendriz toca fogo em sua guitarra no Monterey Pop Festival. Ao fundo, imagem do Human Be-In no Golden Gate Park em São Francisco - CA.


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woodstock music & art fair Durante o verão de 1968 acontecia outra invasão à Haigth-Ashbury. Os auditórios Fillmore e Avallon apresentavam concertos quase toda noite. Contudo ninguém mais considerava um Verão do Amor ou qualquer tipo de fenômeno especial. Os eventos e as mudanças musicais não vinham mais tão rapidamente como costumava ser no ano anterior, mas o movimento hippie ainda estava em crescimento, porém encontrando resistência. O único fato político que os hippies estavam contestando neste momento era a guerra do Vietnã. Em protesto fizeram em 1968 marchas de grandes proporções numa demonstração pacífica de amor e não violência. Em 68 e 69, a nação inteira se aprofundava neste problema e dividia-se em opiniões. Em 1969, quando o clima político ficou mais obscuro e as manifestações se tornaram violentas, os fãs de rock de todo o país sentiram a necessidade de organizar encontros que trouxesse um clima de solidariedade e de identidade à Haight-Ashbury, de forma a recordar os primeiros concertos, os Trip Festivals, o Human Be-In e o Monterey Pop Festival. Assim o verão de 69 se tornou o verão dos festivais pop. Uns 40 festivais foram organizados por todos Estados Unidos e Canadá. A maior afirmação destes festivais foi feita em agosto nos dias 15, 16 e 17 em uma pequena cidade chamada Bethel em Nova Iorque. Umas 500 mil pessoas assistiram ao Woodstock Music & Art Fair. Bandas como Jefferson Airplane, Greatful Dead, Janis Joplin e Country Joel and the Fish tocaram junto com novas bandas de São Francisco como Santana, Creedence Clearwater Revival e Sly and the Family Stone. Passados quase meio século desde que a semente para revolução musical, política, artística, de moda e do estilo de vida foram plantadas em São Francisco, este não era mais a única capital deste movimento jovem. A onda que começou na Haight agora estava espalhada por toda nação, até mesmo pelo mundo. O estilo hippie de vestir estava sendo comercializado em várias lojas pelo país. Até mesmo os não hippies passaram a usar cabelos compridos, não sendo mais vistos como algo somente de pessoas ligadas ao estilo.

Ao fundo, Grace Slick, vocalista do Jefferson Airplane, ao se apresentar no Woodstock Music & Art Fair


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Nesta página, acima, econtro hippie em Nova York: a Haight não era mais o centro do psicodelismo. Ao fundo, Santana tocando para um público de aproximadamente 500 mil pessoas no Woodstock Music & Art Fair.


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altamont Com o sucesso da turnê nos Estados Unidos dos Rolling Stones a banda decidiu que faria um show grátis para agradecer a recepção e lucratividade. A princípio o show seria em São Francisco, no Golden Gate Park, onde em 1968 ocorreu o Human Be-In, porém a prefeitura aboliu qualquer festival no local. Com a repercussão da notícia, jovens de todo país rumavam para São Francisco a espera da confirmação do evento. Com a cobertura da rádio informando constantemente do andamento da situação, foi natural alguém procurá-la querendo oferecer uma solução para o problema. Foi então que Dick Carter, dono de um autódromo situado na região vizinha de Altamont, ligou para a rádio e ofereceu este local pare sediar o tão esperado show. Faltavam vinte horas para começar o concerto quando os Rolling Stones declaram oficialmente que ele seria realizado em Altamont. Imediatamente a população de viajantes que invadira a cidade de São Francisco nos últimos dias prosseguiu para o novo local. Então a equipe desmontou todo material que foi utilizado nos show e o colocaram nos caminhões para reconstruir tudo de novo em menos de vinte e quatro horas. Dentro da equipe, muita gente se mostrava contra o show do dia seguinte, pois, não seria preparado adequadamente. Mas a banda queria o seu Woodstock, não enxergando o detalhe crucial que aquele festival, realizado em agosto, teve seu planejamento iniciado em março. Naquela noite gelada de dezembro de 1969 a banda seguia para Altamont sem criar muito alarde. No autódromo já estavam espalhadas, junto ao portão da entrada do local, pessoas acampadas. Havia um ar de irmandade hippie por todo local, deixando Mick e Keith felizes e satisfeitos com o astral geral. A noite passou e ao nascer do sol da manhã seguinte, não havia quase nenhum banheiro público disponível, não havia pontos para comprar bebida ou comida, não havia linhas telefônicas ou praticamente nenhuma espécie de infra-estrutura, e a equipe ainda estava martelando tábuas de madeira para completar a montagem do palco. Os portões do autódromo foram abertos precisamente às sete da manhã Ás dez horas já havia mais de cem mil pessoas espalhadas pelos arredores. O povo, impossibilitado de trafegar em seus veículos, estava abandonando seus carros a mais de 15 km de distância e andando o resto do caminho a pé. Um detalhe crucial na falta de organização do evento foi que os Hell’s Angels foram contratados extra oficialmente para fazer a segurança do show. O pagamento oferecido foi 500 dólares em bebidas para não deixarem ninguém invadir o palco. Segundo consta, no máximo vinte Hell’s Angels apareceram para o evento.


23 início da canção, em um determinado momento, uma parte da platéia começa a abrir um círculo. Keith Richards e Mick Taylor param de tocar, ambos procurando enxergar o que se passava: era um homem que apontava uma arma para o palco. Os Angels caíram em cima do homem. Chutaram-no e esfaquearam-no incessantemente em uma fúria insana. Quando terminaram, um Angel ficou para garantir que ninguém fosse dar assistência: “ele vai morrer de qualquer modo, portanto deixem-no morrer em paz” - disse claramente. Só após certo tempo puderem chamar um médico, contudo o homem não resistiu aos ferimentos.

Santana Band foi a banda que abriu o festival e logo se iniciou a violência por parte dos Angels que ficaram irritados com a multidão que se aproximou do palco, espancando e agarrando um rapaz. Santana parou de tocar para pedir calma a todos e depois continuou com sua apresentação. A apresentação seguinte foi do Jefferson Airplane, contudo o clima de violência não diminuíra. Quando Marty Balin anunciava o nome da música seguinte, um rapaz pula apavorado no palco com vários Angels atrás dele, acabando por ser linchado até estar praticamente sem sentidos. Foi aí que Marty desceu do palco para tentar tirar os Angels de cima do homem. O primeiro que ele tentou tirar só olhou e sorriu. Um golpe com taco de sinuca foi desferido e Marty caiu desmaiado. Paul Kanter, que estava furioso no palco, grita até que a “segurança” tira seu microfone. Jack Casady também é ameaçado pelos Angels. Não havia mais nada a ser feito. Com ameaças para tocarem, Grace Slick começa a puxar a próxima canção, logo acompanhada pelos demais. Ao fim da canção, deixam o palco e vão embora terminando seu show. Quando a noite cai o show tão aguardado dos Rolling Stones começa. Porém durante a canção Sympathy For The Devil o clima volta a esquentar. Um garoto nu tentou subir ao palco, porém é travado com pontapés na cabeça que devem ter quebrado seu maxilar. O garoto agora tenta fugir, mas meia dúzia de Angels corre atrás com tacos de sinuca acertando-o até derrubá-lo. A violência transcende qualquer explicação, qualquer lógica. Foi tão selvagem a cena que Jagger parou para pedir calma a todos. Mas, o evento que marcaria definitivamente a história deste concerto, ocorre ao som de Under My Thumb. Logo no

A notícia do esfaqueamento chega ao palco e, portanto, eles pretendem encerrar, entretanto o líder do Angels encosta em Keith e lhe ameaça de morte se o show não der continuação, deixando então a banda sem muita alternativa. Assim eles continuam a tocar até completar o set, mas a violência ainda era evidente no local. Após terminarem, embarcaram rapidamente no helicóptero com cara de que não acreditavam no que acabaram de presenciar. Nos dias que se seguiram, Altamont foi muito noticiado pelos jornais, mas a euforia criada por Woodstock era forte demais e 1970 foi um ano carregado de otimismo. Contudo, uma hora Woodstock teria de ser esquecido. Aquele sonho colorido não poderia durar para sempre e, na falta de novas felizes confirmações, Altamont foi ressucitada com seus sombrios significados, como um despertar cruel para a dura realidade. Ninguém podia negar que Altamont foi a antítese de Woodstock. E assim, o movimento que já obtinha um aparente desgaste pela grande atenção da mídia, parece ganhar um fim. Este evento fez as pessoas questionarem sobre a relação de paz e amor que aparentemente ocorria e se perguntar se ainda havia sustentação para tal sensação. A resposta estava clara para todos: chegava ao fim a Era de Aquarius.

Na página anterior, Mick Jagger no palco ao lado de um Angel. Acima, nesta página, a violência provocada pelos Angels, espancando com tacos de sinuca.


o psicodelismo brasileiro Contexto Histórico No Brasil era um clima de instabilidade. A Guerra Fria – disputa entre as superpotências dos Estados Unidos e da União Soviética – alimentava conflitos na América Latina e no País. Em 1959, a Revolução Cubana transforma Fidel Castro e Che Guevara em heróis internacionais e atiça a pressão do bloco capitalista sobre os países do terceiro mundo. O presidente João Goulart propõe uma série de reformas de base para atenuar o grave problema da desigualdade social e as pressões políticas que vinha sofrendo dos movimentos de esquerda. Contra tais propostas – acusadas de comunistas – formou-se um movimento da direita política e de parte da sociedade, que preconizavam uma modernização conservadora. Com a participação do Congresso, das classes média e alta, essa facção venceu por meio do golpe militar de 31 de março. O Exército e seus aliados civis depuseram o presidente Jango e entregaram o poder aos militares. O golpe, apoiado pelos americanos, rompeu o já frágil jogo democrático brasileiro. Castelo Branco se tornou o primeiro de uma série de “generais-presidentes” ditatoriais que gradativamente iam ganhando mais poder. Culturalmente, o País fervilhava. Até 1968, intelectuais e movimentos de esquerda podiam agir com certa liberdade. A intensa produção ia das peças do Teatro Oficina aos grupos Opinião e Arena; das canções de protesto às músicas da Jovem Guarda, passando pelos filmes do Cinema Novo e pelas artes plásticas. Em todas as áreas, a política fazia-se presente, mantendo acesa no campo das artes uma polêmica que opunha experimentalismo e engajamento, participação e alienação. A partir de 1967, os antagonismos foram radicalizados. No campo da música, houve confrontos entre os artistas nacionalistas de esquerda e os vanguardistas do Tropicalismo pois, apesar de se manifestarem contra o autoritarismo e a desigualdade social, eles propunham a internacionalização da cultura e uma nova expressão


25 estética, não restrita ao discurso político. Para os tropicalistas, entender a cultura de massas era tão importante quanto entender as massas revolucionárias. Ainda no terreno político, 1968 foi o ano em que as tensões chegaram ao máximo no País. As greves operárias e as manifestações estudantis – com a consequente repressão policial – se intensificaram. As guerrilhas rurais e urbanas aumentaram suas ações. Com o crescimento da oposição, Costa e Silva respondeu com o endurecimento político. Em 13 de dezembro, o Ato Institucional no 5 decretou o fim das liberdades civis e de expressão, sacramentando o arbítrio até 1984, quando o general João Figueiredo deixa a presidência do País. A psicodelia brasileira surge nesta época, fruto das influências internacionais, como forma de repudiar a situação problemática brasileira da época. Era a contracultura que se enraizava às margens da sociedade, criando e experimentando em diversos campos como na música, nas artes, no teatro, na literatura e mesmo na imprensa. Em 12 dezembro de 1968, é publicado na revista O Cruzeiro o artigo “Marginália – arte e cultura na idade da pedrada” no qual divulga publicamente os primeiros nomes e trabalhos ligados ao tema desta cultura marginal.

Através de uma relação criativa entre a arte brasileira e o cotidiano social das grandes cidades, a marginália passa a incorporar em seus trabalhos uma série de elementos e representações da violência diária. Seu intuito era propor uma crítica aos conservadorismos da sociedade. Como obras de destaque relacionadas a marginália, encontramse filmes como Câncer de Glauber Rocha e A Margem de Ozualdo Candeias, livros como Me segura que Eu Vou Dar um Troço de Waly Salomão e Urubu-Rei de Gramiro de Mattos, textos de Hélio Oiticica, de Rogério Duarte e dos irmãos Campos, publicados em jornais alternativos como Flor do Mal, Presença e O Verbo Encantado, além das colunas publicadas por Torquato Neto no jornal Última Hora, com o título emblemático de “Geléia Geral”.

Na página anterior, Gilberto Gil na passeata dos 100 mil. Nesta página, acima, muitos artistas engajados da época à frente da passeata contra a ditadura; Ao lado, agressão dos policiais militares contra um cidadão que se opunha à ditadura.


26 Teatro Marginal Após um período intenso de produção – e perseguição – durante os anos sessenta, o teatro brasileiro inicia a nova década sob pesadas perspectivas. Com a censura militar, grupos que foram fundamentais para a expansão da dramaturgia brasileira, como Opinião, Arena ou Oficina (foto abaixo), estão quase ou totalmente desarticulados, com peças proibidas ou com impossibilidades financeiras para novos projetos. Nesse cenário, surge uma nova geração de diretores, atores e dramaturgos dispostos a ocupar com novas referências e idéias um espaço marcado pelo impacto de peças como O Rei da Vela e Roda Viva. Suas estéticas radicais e seus diálogos com a violência traziam afinidades diretas com a postura marginal na cultura brasileira. Literatura - Poesia de mimeógrafo Na literatura havia a “poesia de mimeógrafo”, batizada assim porque esses escritores marginais lançavam livros a partir de cópias feitas, literalmente, em “xerox” e mimeógrafos. Suas poucas cópias eram vendidas de mão em mão, em envelopes ou outros suportes artesanais, concretizando assim um processo alternativo de criação, produção e distribuição. Também conhecida com o nome genérico de “poesia marginal”, essa poesia foi marcante para toda uma geração que buscou, por meio da literatura, alguma forma de atuação cultural fora dos padrões oficiais da academia e da crítica literária. Seus principais representantes são os poetas Chacal (foto acima), com seus livros Muito Prazer e Preço da Passagem, Charles, com Travessa Bertalha 11, além de outros poetas que, apesar de não terem publicado seus livros de forma artesanal, compartilharam as mesmas posturas transgressoras e experimentais em seus trabalhos, caso de Francisco Alvim, Cacaso e Ana Cristina César. poesia marginal teve um momento marcante com o lançamento da coletânea 26 Poetas Hoje (1975), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Nessa coletânea, Heloísa faz um balanço de todo o período, publicando lado a lado a nova geração de poetas com alguns dos poetas que já estavam envolvidos em outros movimentos, como o tropicalismo e a marginália. Destes eram: Waly Salomão, Torquato Neto, José Carlos Capinan e Duda Machado.

Durante o início dos anos setenta, houve a influência de grupos como o americano Living Theather e uma série de questões relacionadas ao teatro, à contracultura, à vida comunitária, ao questionamento da palavra como centro da atividade teatral e à valorização do corpo e do êxtase como elementos cênicos passam a fazer parte das novas propostas.


27 Cinema Marginal ou Udigrudi Houve um tempo em que a máxima cinemanovista “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” era de um requinte improvável para o cinema brasileiro. Para alguns cineastas, uma idéia na cabeça era algo extremamente premeditado. Ou seja, idealizava-se quase que simultaneamente ao ato de filmar. Os seguidores deste movimento defendiam outro slogan: “seja marginal, seja herói”. Era o cinema underground, ou marginal como ficou mais conhecido. O cinema marginal surgiu como resposta ao cinema novo, com uma postura anárquica, com filmes feitos com pouco dinheiro e valorizando sobremaneira o caos. A partir do ano de 1968 o Cinema Marginal ganha força e vários filmes são feitos, mas nem todos acabam entrando em cartaz, os militares censuram alguns. Todavia um filme conseguiu grande público e até mesmo bateu recordes nacionais. O Bandido da Luz Vermelha (cena do filme abaixo), de Rogério Sganzerla que, além de grande sucesso com o espectador, acaba também por ganhar vários prêmios em festivais.

Imprensa Alternativa Imprensa underground, marginal ou alternativa foram termos dos anos setenta para definir uma série de publicações que passou a circular com frequência durante a ditadura militar. Sua ligação com a ideia de marginália vem de suas atuações clandestinas e iconoclastas, cujos textos rompiam com os padrões jornalísticos oficiais da época. Jornais, revistas, almanaques e suplementos foram produzidos e lançados no intuito de criar novos caminhos para a circulação de informação e ideias.

“O Bandido” foi um filme marco, um divisor de águas, mas não foi o único grande filme a ser lançado em 68. Jardim de Guerra de Neville d’Almeida e Hitler no III Mundo de José Agripino de Paulo são alguns outros grandes filmes que estrearam o novo estilo de Cinema Brasileiro.

Dos jornais relacionados a essas práticas o principal foi, sem dúvida, o semanário carioca O Pasquim (imagem a cima). A partir de seu lançamento em 1969, o jornal semanal passou a ser um espaço de informação obrigatório para grande parcela da população. O jornal foi fundado por um grupo eclético de jornalistas e humoristas das diversas redações dos anos 60 do Rio de Janeiro.

O modelo proposto pelos Marginais era um modelo de filme pobre, que questionava toda uma política cinematográfica e seu modelo padrão. Pregava-se uma contracultura, uma antiestética, toda uma rebeldia sessentista que refletia a efervescência do movimento tropicalista e da vanguarda teatral. Era a verdadeira rejeição do cinema bem feito em favor da tela suja e a estética do lixo.

Nos principais jornais alternativos dessa época havia dois eixos claros de interesse: a temática da contracultura, com jornais como Flor do Mal, Presença e Verbo Encantado e revistas como Pólem, Bondinho, Código, Rolling Stones e JA; e a temática da luta contra a ditadura militar, com os jornais voltados para o debate político e os problemas econômicos do país, como Opinião e Movimento. Os jornais ligados ao universo da marginália têm parte de sua origem nas colunas escritas por Luis Carlos Maciel e publicadas no Pasquim. Com o título de “Underground”, Maciel publicou uma série de reportagens sobre psicanálise, filosofia oriental, drogas alucinógenas, vida comunitária. O melhor exemplo da imprensa underground brasileira é o almanaque de exemplar único Navilouca (imagem no topo), organizado e editado por Torquato Neto e Waly Salomão por quase dois anos e publicada em 1973, após a morte de Torquato. Com tratamento gráfico ousado e bem acabado, a Navilouca reúne os principais nomes ligados à marginália, com textos e trabalhos ousados para os padrões da época.


28 Anti-Arte Um dos principais idealizadores da marginália foi Hélio Oiticica, que definiu em 1968 a anti-arte: uma arte experimental, fora dos padrões convencionais, superando os suportes clássicos do quadro e da escultura e invadindo o espaço para além de museus e de galerias. A anti-arte quebra a relação passiva do espectador com a obra, convidando-o e provocando sua participação direta no trabalho visto ou vivenciado. Além disso, passa a incorporar novas matérias do uso cotidiano e a investir na precariedade desses novos suportes. Essa nova perspectiva tira a arte do domínio absoluto da imagem e transfere para o “corpo” e para outros elementos a experiência estética de cada trabalho. Apesar de não ter sido um movimento organizado, uma série de artistas brasileiros, cujas obras subvertiam os valores tradicionais das artes, aliou-se ao grupo da anti-arte, tornando-se assim artistas marginais. Além de propagar o conceito da anti-arte, Oiticica criou umas das principais obras – e lemas – do período, o estandarte com a inscrição “seja marginal, seja herói” (uma homenagem do artista ao amigo Cara de Cavalo, famoso marginal carioca morto pela polícia). A polêmica obra fazia parte do cenário dos não menos polêmicos shows que Caetano, Gil e os Mutantes realizaram na boate Sucata, no Rio de Janeiro, em outubro de 1968. A frase do artista plástico acabou servindo como um dos pretextos políticos para a suspensão da temporada pelas autoridades e para a futura prisão dos compositores.

Alguns novos artistas como Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles também marcaram o período trazendo propostas radicais em sua arte. Com três obras realizadas em 1970, eles demarcaram o espaço da arte experimental na década e definiram as bases de propostas que ocorreriam posteriormente – o primeiro, com seu Corpobra, em que o artista apresenta no Salão de Arte Moderna do MAM-RJ seu próprio corpo nu como obra, causando escândalo na crítica e no público. Cildo Meireles é o autor de uma das obras mais subversivas e radicais do período, a Inserções em Circuitos Ideolégicos, em que garrafas de Coca-Cola e notas de cruzeiro eram postas em circulação com frases e alterações sutis feitas pelo artista plástico. Já Artur Barrio realiza, de forma clandestina, a obra Trouxas Ensangüentadas, em que trouxas de pano branco contendo carne, sangue e ossos eram jogadas em pontos estratégicos de cidades como Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Muitas das “trouxas” causaram comoção popular e tiveram a presença da polícia na tentativa de identificar aqueles “corpos” ensangüentados. Essa radicalidade e experimentação resumiam bem o espírito da época.

Acima, “seja marginal, seja herói” - estandarte feito por Hélio Oiticica. Ao lado, garrafas de Coca-Cola que eram postas em circulação com inscrições de Cildo Meireles.


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tropicalismo

Programa de TV tropicalista Divino Maravilhoso, liderado por Gal Costa.

O tropicalismo foi um movimento de ruptura que sacudiu a música popular brasileira entre 1967 e 1968, surgindo de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado. Em outubro de 1967, quando Alegria, Alegria e Domingo no Parque foram lançados no III Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record de São Paulo, não se apresentavam como porta vozes de qualquer movimento. Seus participantes formaram um grande coletivo cujos destaques foram os cantores-compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, além das participações da cantora Gal Costa e do cantor-compositor Tom Zé, da banda Mutantes, e do maestro Rogério Duprat. A cantora Nara Leão e os letristas José Carlos Capinan e Torquato Neto completaram o grupo, que teve também o artista gráfico, compositor e poeta Rogério Duarte como um de seus principais mentores intelectuais. A novidade, mesmo que muito simples, foi suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo público, pois, estes destoavam das outras canções da MPB, não se reconhecia facilmente uma postura política ou certo lirismo que davam a tônica da maior parte das canções da época. As músicas de Caetano e Gil eram ambíguas, gerando entusiasmo e desconfianças e acima de tudo, trazendo uma exigência diferente: impunha-se a reformulação da sensibilidade deslocando a música popular, que de gênero inferior, passaria a revestir-se de dignidade. Os tropicalistas deram um histórico passo à frente no meio musical brasileiro. A música brasileira pós-Bossa Nova e a definição da “qualidade musical” no País estavam cada vez mais dominadas pelas posições tradicionais ou nacionalistas de movimentos ligados à esquerda. Contra essas tendências, o grupo baiano e seus colaboradores procuram universalizar a linguagem da MPB, incorporando elementos da cultura jovem mundial, como o rock, a psicodelia e a guitarra elétrica. Ao mesmo tempo, sintonizaram a eletricidade com as informações da vanguarda erudita por meio dos inovadores arranjos de maestros como Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela. Ao unir o popular, o pop e o experimentalismo estético, as idéias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música, mas da própria cultura nacional. Sincrético e inovador o Tropicalismo misturou rock e ritmos regionais. Sua atuação quebrou as rígidas barreiras que permaneciam no País. Essa ruptura estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que assumiu atitudes experimentais para a época.


30 O procedimento inicial do tropicalismo inseria-se na linha da modernidade: incorporava o caráter explosivo do momento às experiências culturais que vinham se processando; retrabalhava, além disso, as informações então vividas como necessidade, que passavam pelo filtro da importação. Este trabalho consistia em redescobrir e criticar a tradição, segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos artísticos, e a sensibilidade pelas coisas do Brasil. O que chegava, seja por exigência de transformar as linguagens das diversas áreas artísticas, seja pela indústria cultural, foi acolhido e misturado à tradição musical brasileira. A mudança de um dos elementos da canção, como o arranjo, o ritmo e a interpretação vocal, por si só pode configurar a passagem de um estilo, ou mesmo gênero a outro. Com a simples introdução da guitarra elétrica nos acompanhamentos de Alegria, Alegria e Domingo no Parque desencadeou a hostilidade contra Caetano e Gil, como se realmente estivesse em jogo a integridade da música brasileira. Assim como a exploração vocal por Gil e Gal, embora não representasse novidade, tiveram importância decisiva na modificação da forma da canção no Brasil. Discos antológicos foram produzidos, como a obra coletiva Tropicália ou Panis et Circensis e os primeiros discos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Enquanto Caetano entra em estúdio ao lado dos maestros Júlio Medaglia e Damiano Cozzela, Gil grava seu disco com os arranjos de

Rogério Duprat e da banda os Mutantes. Nesses discos, se registrariam vários clássicos, como as canções-manifesto Tropicália (Caetano) e Geléia Geral (Gil e Torquato). Irreverente, a Tropicália transformou os critérios de gosto vigentes, não só quanto à música e à política, mas também à moral e ao comportamento, ao corpo, ao sexo e ao vestuário. A contracultura hippie foi visualmente assimilada com a adoção da moda dos cabelos longos encaracolados e das roupas escandalosamente coloridas. O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo, e da pequena burguesia que vivia o mito da arte. Em nenhum momento os tropicalistas perderam de vista o seu objetivo básico: desde o simples uso de instrumentos eletrônicos, ruídos e vozes, mantiveramse fiéis à linha evolutiva, reinventando e tematizando criticamente a canção. As últimas músicas do movimento: Questão de Ordem, Divino Maravilhoso, Cultura e Civilização e Objeto não Identificado são exemplos significativos. O movimento, libertário por excelência, durou pouco mais de um ano e acabou reprimido pelo governo militar. Seu fim começou com a prisão de Gil e Caetano, em dezembro de 1968. A cultura do País, porém, já estava marcada para sempre pela descoberta da modernidade e dos trópicos.

Na página anterior, imagens do programa de TV tropicalista “Divino Maravilhoso”. No topo, disco psicodélico de Caetano e capa do disco “Panis et Circensis”. Ao lado, imagem tirada da capa do LP “Legal” de Gal Costa.


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festivais Na década de 60 o Brasil vivia uma grande efervescência cultural. Muitos programas de televisão comandados por músicos surgiram na metade dessa década. Foi nesse período de otimismo com a MPB que foram criados pela Record, os Festivais de Música Popular Brasileira. Neles, um sem-número de novos talentos podiam apresentar suas mais recentes criações e entrarem para a já concorridíssima cena musical. Esses festivais marcaram a história da música brasileira pela comoção que instauraram, pelas discussões que detonaram, pelo espaço que representaram em meio à ditadura e, significativamente, porque, através, desses espaços, o movimento tropicalista pôde eclodir com todo seu arrojo.

Acima, Gal Costa apresenta “Divino Maravilhoso” no 4º festival da TV Record em 1968. Abaixo, Caetano apresenta “Alegria, Alegria” no 3º festival da TV Record em 1967.

Alguns festivais foram especialmente marcantes, como o terceiro festival da Record, em outubro de 1967. Ousando desafinar o “bom tom” da música brasileira predominante da época, Caetano Veloso e Gilberto Gil acrescentaram à suas canções elementos do rock, o que representava tabu e ojeriza para muitos, ou melhor, para quase todos. Caetano defendeu sua canção Alegria, Alegria acompanhado pelo grupo argentino de rock Beat Boys. Uma esperada vaia terminou abafada por aplausos de muitos. Gil também inovou apresentando a música Domingo no Parque acompanhado pelos jovens roqueiros paulistas Os Mutantes.


32 Defendidas as canções, vaiadas e polemizadas, desenhou-se o que a Tropicália levaria às últimas consequências. A partir daí, cresceram os desafios, assim como a violência da platéia. No entanto, para desgosto de muitos, Alegria, Alegria classificou-se em 4o lugar e Domingo no Parque, em 2o. Um ano depois, a emergente Rede Globo de Televisão lançou o III Festival Internacional da Canção (FIC), em setembro e outubro de 1968. O impulso tropicalista estava com força total nas mentes e produções de Gil e Caetano. Ambos se inscreveram, porém, não preocupados em vencer. Suas intenções eram questionar as estruturas do próprio festival e de toda atmosfera cultural vigente. No FIC, ambos levaram à máxima potência a crítica e a ironia tropicalistas. Gil apresentou Questão de Ordem ao lado dos Beat Boys. Junto a uma vaia abissal veio sua desclassificação. As guitarras, seu visual “black power” e seu modo de cantar não agradaram a ninguém. Caetano apresentou É Proibido Proibir. A canção era praticamente um pretexto para ele defender uma postura de ruptura declarada ao “bom gosto” que as patrulhas de esquerda e de direita impunham à cultura. Mais performático, junto aos Mutantes, armou uma verdadeira zoeira musical orquestrada por Rogério Duprat. Os Mutantes mal começaram a tocar a introdução da música e a platéia já atirava ovos, tomates e pedaços de madeira contra o palco. O provocativo Caetano apareceu vestido com roupas de plástico brilhante e colares exóticos. Entrou em cena rebolando, fazendo uma dança erótica que simulava os movimentos de uma relação sexual enquanto repetia o slogan francês: “é proibido proibir” e um hippie americano urrava ao microfone. Escandalizada, a platéia deu as costas para o palco. A resposta dos Mutantes foi imediata: sem parar de tocar, viraram as costas para o público.

Nesta página, Caetano apresenta “É Proibido Proibir” ao lado dos Mutantes e ganha vaia da audiência no III FIC. Na página seguinte, John Dandurand do The Sounds fazendo uma participação na música “É Proibido Proibir”.

Gil foi atingido na perna por um pedaço de madeira, mas não se rendeu. Em tom de deboche, mordeu um dos tomates jogados ao chão e devolveu o resto à irada platéia. E por fim Caetano fez um longo e inflamado discurso que quase não se podia ouvir, tamanho era o barulho dentro do teatro. Em novembro de 1968, a TV Record promoveu o seu IV Festival de Musica Brasileira, mas este não suscitou o calor das edições anteriores. Tom Zé defendeu a sua São, São Paulo, Meu Amor e obteve 1o lugar. Os mutantes concorreram com a música 2001, de Tom Zé e Rita Lee e ficaram em 4o lugar. Entretanto, a grande revelação deste festival foi Gal Costa, que defendeu Divino Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Com uma interpretação lancinante e agressiva, revelava-se ao país uma virada na carreira da cantora que, até então era conhecida como “Gracinha”. A canção classificouse em 3o lugar. O IV Festival Record teve, ainda que sob a ressaca do FIC, um saldo expressivo para os tropicalistas.


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the sound na cena carioca The Sound, banda proveniente da capital hippie HaightAshbury em São Francisco, provocou enorme influência na cena roqueira local. A banda trouxe de bagagem a sonoridade do psicodelismo californiano e, o jamais visto por aqui, liquid light show. Sem repercutir nas páginas dos jornais ou revistas da época, a lembrança da passagem da banda resta apenas na memória dos poucos felizardos que os viram em ação. Contudo, a história brasileira de The Sound vai um pouco além. Ela também revela a origem do gringo desvairado que subiu ao palco com Caetano Veloso e os Mutantes no III Festival Internacional da Canção. Tudo começou a partir do interesse de Florence de levar a banda para o Brasil. “Flo” era uma norte-americana que estudara no Rio, antes de ir para os Estados Unidos. Foi lá que se envolveu com The Sound. Além de cuidar do light show do grupo, também contribuía fazendo vocal em alguns números. Por ser a banda era muito boa, Flo convenceu o pai a patrocinar a vinda do grupo.

Como o Rio não é São Francisco, The Sound esbarrou logo de cara com um circuito muito reduzido para shows de rock. Limitava-se, na verdade, a alguns colégios, clubes e boates da Zona Sul da cidade. Tudo muito underground, contudo, a presença de uma banda norte-americana era uma tremenda novidade, sobretudo sendo de São Francisco. O bochicho se espalhou rapidamente, com muita gente correndo para o Colégio André Maurois para vê-los em ação. O impacto foi imediato. Gregg arrancava solos “viajantes” de uma Les Paul Customer. O careca John, com seus trejeitos estranhos, atraía a atenção do público com a densidade sonora de sua guitarra e com solos de gaita de tirar o fôlego. Completavam a banda o baterista David, namorado de Flo, e o baixista Danny. Os vocais eram repartidos por Gregg e John com esporádicas participações de Flo. Logo, porém, o pai de Flo descobriu que a filha andava num conjunto de rock, cortando, assim, relações com ela. Para piorar, um músico de alguma banda local roubou o baixo de Danny. Aborrecido, o baixista decidiu que era hora de voltar para os Estados Unidos. No segundo semestre de 1967, com o rompimento do namoro de David e Flo, a total implosão do grupo foi inevitável. Porém, ao contrário de seus companheiros de banda, John Dandurand ainda ficou um bom tempo no Brasil. Em 1968, John participou do lendário happening promovido por Caetano Veloso durante a apresentação de É Proibido Proibirno III Festival Internacional da Canção Popular. Em meio a apresentação, enquanto Caetano declamava Fernando Pessoa, entrou em cena “um rapaz americano, alto, muito branco, envolto num poncho hippie, sem um fio de cabelo em todo o corpo, dando urros e grunhidos inarticulados”. Era Johnny Dandurand, como assim o descreve Caetano Veloso no livro Verdade Tropical.


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os mutantes Os Mutantes, considerada a banda de maior influência psicodélica do país, começou como um sexteto, com o nome de Six Sided Rockers, que foi “apaulistado” para O’Seis. Integravam o Six Sided Rockers os músicos Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias, Rafael Vilardi, Sueli Chagas e Luiz Pastura. Arnaldo, Sérgio e Rita mais tarde formaram Os Mutantes. Em 1966, ainda como O’Seis, os futuros Mutantes realizam sua primeira gravação individual, com o antológico compacto pela Continental, contendo as clássicas Suicida e Apocalipse com letras vanguardistas e hilárias para a época. Com a saída de Rafael, Pastura e Mogly (que tinha entrado em lugar de Suely), Arnaldo, Serginho e Rita procuram um novo nome para definir agora um trio. Na época, Ronnie Von tinha um programa de TV com boa audiência na emissora Record e lá foram tocar, ainda sem nome, o novo trio. Como Ronnie gostava de música clássica, Arnaldo, Rita e Sérgio ensaiaram a Marcha Turca de Mozart, em ritmo de rock & roll, e se apresentaram lá. O conjunto ia bem, preocupava-se em ensaiar bastante. Mas faltava um nome definitivo. Com Ronnie Von e o empresário, os três passaram a pensar em vários. Arnaldo, Rita e Sérgio queriam um que não fosse estrangeiro, costume já tão batido. No meio de mil, surgiu aquele que então ficaria: Os Mutantes. A partir da aparição no programa de Ronnie Von o grupo se uniu ao maestro Rogério Duprat, aos tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso. Contudo o público e a crítica não sabiam definir os Mutantes. Faziam parte do “grupo baiano” sem ser baianos. Foram tropicalistas sem ser tropicalistas, e sem entender bem do que se tratava. Cantaram e tocaram música popular estrangeira e música erudita. Mas, antes de tudo, Os Mutantes são eles mesmos: três jovens que buscavam um caminho diferente na música popular e que acreditam tê-lo encontrado. Até conseguir isso, enfrentaram muita vaia. Mas sempre reagiram com otimismo.

Oprestígio do conjunto aumentara fabulosamente da noite para o dia, graças à sua ligação com o “grupo baiano”. Porém, os Mutantes fizeram um balanço de sua carreira e viram que não podiam mais continuar como simples coadjuvantes, precisavam criar também. Arnaldo, Rita e Sérgio decidiram então abandonar os baianos. Sentiram que o caminho melhor seria o de compor suas próprias músicas e fazer seus próprios arranjos, dentro de uma linha que fosse jovem como eles e ao nível das estrangeiras, mas ao mesmo tempo brasileira. Então eles se dedicaram integralmente em trabalhar suas próprias criações. Foi desta explosão criativa que nasceram músicas como: Mágica, Caminhante Noturno e Dom Quixote. Etretanto, mesmo afastados não podiam negar as influências dos baianos, gravando quatro de suas músicas: Bat Macumba, Trem Fantasma, Panis et Circenses e Baby.

Na página anterior, abaixo, o grupo ainda denominado O’Seis; Ao fundo, apresentação do grupo no programa de Ronnie Von. Nesta página, Rita Lee performática em show dos Mutantes.


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psicodelismo de garagem O psicodelismo se fez presente no rock nacional com suas guitarras distorcidas e letras lisérgicas desde o final dos anos 60, incorporando inclusive as sonoridades regionais, especialmente a nordestina. Enfrentando toda sorte de preconceito, o gênero contribuiu para alargar os horizontes da música jovem brasileira. Sem apelo comercial, o som psicodélico ficou restrito a grupos mais radicais, ao público mais descolado e sintonizado com o movimento hippie e a poucas gravações, em raros e valiosos LPs e compactos. As primeiras manifestações psicodélicas ocorreram em São Paulo, por meio de grupos como The Beatniks, Os Baobás e The Galaxies, que introduziram especialmente em seus repertórios clássicos do gênero produzido nos EUA. The Beatniks, grupo de palco do programa Jovem Guarda na TV Record, produziu ótimos compactos, com covers de, Jimi Hendrix e Turtles. Os Baobás também se destacaram por meio de cinco ótimos compactos e um LP, onde

registraram sua paixão por Doors, Hendrix entre outros. Enquanto The Galaxies, misto de paulistas, americanos e ingleses, deixaram um raro e clássico álbum gravado em 1968, contendo canções originais e covers como Love, Donovan e outros ícones da geração flower power. Ainda nos anos sessenta, outras bandas como The Beat Boys, Os Brazões e Liverpool produziram obras geniais que ficaram na memória de quem viveu a época. Os Beat Boys, depois de acompanhar Caetano Veloso em Alegria, Alegria e Gilberto Gil em Questão de Ordem, gravou um excelente álbum, lançado em 1968, que contém alguns clássicos do psicodelismo nacional, como Abrigo de Palavras em Caixas do Céu. Os Brazões também gravaram apenas um ótimo e “ultratropicalista” LP, que contém Gotham City, Pega a Voga Cabeludo (de Gil), Momento B8 (Brazilian Octopus), Planador (Liverpool), entre outras. Já o grupo gaúcho Liverpool é responsável por um dos melhores álbuns gravados nos anos sessenta, o LP Por Favor Sucesso, que contém as clássicas Impressões Digitais, Olhai os Lírios do Campo, Voando, entre outras. Menos conhecidos, grupos como Spectrum, Bango, Módulo 1000, Equipe Mercado e A Tribo também marcaram


37 com suas misturas sonoras o início dos anos setenta. O grupo Spectrum, de Nova Friburgo, com a trilha sonora do filme Geração Bendita, produziu um dos mais raros e desconhecidos discos psicodélicos dos anos setenta, com qualidade internacional e ainda atual. O carioca Módulo 1000, por sua vez, marcou o início da década de setenta com seu som psicodélico-progressivo, registrado no disco Não Fale Com Paredes, outros clássicos do rock nacional de todos os tempos, relançado em CD. A partir dessas primeiras experiências, inúmeros grupos transportaram a juventude brasileira para espaços mais livres e criativos, além dos limites impostos pela censura ditatorial. Apoiados na riqueza musical nacional, os grupos misturaram rock, tropicalismo, barroco, jazz, erudito, som oriental, música regional e tudo o mais disponível para criar um dos universos sonoros mais criativos daquele momento, sendo, portanto, responsáveis por fornecer uma contribuição de ousadia e inventividade sonora e poética para a história da música brasileira.

Na página anterior, acima, apresentação do Módulo 1000 à luz do liquid light show; Abaixo, os Baobás ao lado de Ronnie Von. Nesta página, acima LP do grupo Bongo; abaixo, Grupo Módulo 1000


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paz, amor e baioneta “Houve uma vez um Verão do Amor. Então, uma nova cultura veio à luz, em meio à alucinação vertiginosa da anterior”. Assim Naomi Sunshine abria um texto, na edição número 21 da Rolling Stone, falando de Haight-Ashbury, em São Francisco, Califórnia, como uma espécie de “Terra Prometida” das comunidades hippies mundiais. De fato, o ano de 1967, com seu festival Monterey Pop e a explosão da música psicodélica, levou muita gente a buscar espaços alternativos à sociedade estabelecida. A celebração daquele “sonho” veio dois anos depois com outro festival, o Woodstock, que por três dias transformou-se na maior comunidade planetária, espalhando o espírito do drop out para o resto do planeta. As tribos, então, começaram a se formar em todos os lugares do mundo, reunindo jovens descontentes com o modo de vida da sociedade de consumo. Algumas delas apenas voltadas para a subsistência de seus membros, muitas, especialmente nos Estados Unidos, dedicadas a organização da resistência política contra a Guerra do Vietnã e, ainda, outras, dedicadas a produção musical. No mesmo ano de 1969, alguns jovens paulistanos, liderados pelo artista plástico Antônio Peticov, também tentaram promover o seu happening coletivo ao ar livre. O festival tinha nome, data e local para acontecer: Festival Primavera, dias 15 e 16 de novembro de 1969, no Parque do Ibirapuera, na Zona Sul de São Paulo, gratuito. No palco, segundo a programação anunciada em folders e cartazes, estariam Mutantes, Beat Boys, Beatniks, Som Beat, Gal Costa, Rogério Duprat, Os Leif’s, Tim Maia e outros representantes da garagem paulistana. O festival, no entanto, acabou não se realizando, como conta Peticov: “Estava tudo certo, mas aí eu recebi um recado para ir na Prefeitura, falar com uma pessoa, um assessor não sei das quantas. O cara falou: ‘Seu hippie maldito, vocês tratem de suspender essa bagunça aí, porque se não quem for lá vai ser recebido na ponta de baioneta.’ Curto e grosso! Nem boa tarde, senta aqui ...”. Segundo Peticov, diante das ameaças em uma época de recrudescimento da ditadura, não teve outro jeito senão suspender o evento, pois, certamente seriam concretizadas. “Aí eu tive que sair correndo pra avisar em todo lugar que não ia ter o show. Avisar o pessoal das bandas, e correr em rádios pra dizer que foi cancelado. Era muito na base do boca-a-boca. Mas, mesmo assim, no dia foi muita gente” - lembra Peticov - “sem som, pegamos uma gaitinha, uns violões e ficamos tocando, até o pessoal dispersar”.


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as comunas No Brasil a experiência de viver em comunidades, prosperou com mais sucesso entre os músicos que buscavam levar uma vida diferente, longe da pressão e da rotina das grandes cidades. Entre 1970 e 1975, especialmente, diversos grupos ligados ao rock transformaram em realidade o sonho de uma “casa no campo”.

de “o primeiro filme hippie brasileiro”. Intitulado Geração Bendita, o filme dirigido por Carlos Bini, deixou registrado, além das imagens de uma época, uma trilha sonora tão surpreendente quanto rara. O filme retratava a vida de um grupo de jovens que viviam numa comunidade e produzia flores em um sítio na região.

Talvez a “comunidade” mais famosa tenha sido a que reuniu Os Mutantes, na Serra da Cantareira, próximo a capital paulista, no início dos anos setenta. Por algum tempo, em uma casa com estrutura de som especialmente projetada pelo irmão César, os Mutantes Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Rita Lee junto a Liminha e Dinho, e mais uma penca de malucos, fixos e passageiros, viveram e produziram música em total liberdade.

Além do som, da comida natural, de outros ingredientes alternativos, também faziam parte da vida de boa parte dos moradores dessas comunidades livros que, de alguma maneira, davam sustentação ideológica ao movimento. Um deles, e talvez o principal, era o livro A Contracultura, de Teodore Roszak. Nele, Roszak afirmava que quase tudo que está sendo feito de novo hoje em dia, seja em política, arte ou relações sociais é criação dos jovens profundamente alienados da geração de seus pais. On The Road de Jack Kerouac, era outra leitura obrigatória.

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Em meio a onda de “paz e amor”, um grupo de jovens músicos e cineastas de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, mergulhou fundo na produção do que se chamou na época

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Em Recife, o mesmo espírito organizou e mobilizou um conjunto de músicos, entre eles Zé Ramalho, Lula Côrtes, Lailson e as bandas Ave Sangria e Flaviola e o Bando do Sol. Nessa época, aconteceu a primeira manifestação coletiva do movimento, a Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém, uma espécie de “Woodstock” local, com dois dias de música com entrada franca na cidade-teatro de Nova Jerusalém. “Era a música pela música, a expressão criativa pelo prazer de criar e apresentar uma proposta original”, relembra o coordenador do evento, o desenhista, cartunista e músico Lailson.

A comunidade mais avançada e futurística da época, no entanto, foi uma sociedade organizada de forma “virtual”, que ganhou o nome de Sociedade Alternativa. Inventada por Raul Seixas, a sua comunidade provocou a ira da ditadura militar que suspeitou tratar-se de uma organização subversiva e, por conta disso, prendeu e despachou Raulzito para os Estados Unidos. A Sociedade Alternativa de Raul Seixas elevava o drop out das comunidades hippies para um terreno radical, atemporal e metafísico, o da espiritualidade e da magia.

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No Rio de Janeiro, outra comunidade também fez de sua convivência alternativa um centro de produção musical dos mais criativos daquele momento. Em Jacarepaguá, no povoado de Boca do Mato, entre rodadas de som, com direito a presença de João Gilberto, vivia a trupe dos Novos Baianos. A experiência resultou em uma das obras mais importantes do rock e da Música Popular Brasileiro, o LP Acabou Chorare, lançado em 1972.

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o psicodelismo do nordeste Em 1978,o lançamento de Avoha com Zé Ramalho, consolidava a presença da moderna música nordestina no cenário musical brasileiro, que cresceu e tornou-se parte definitiva da música nacional. Antes dele, em 1972, Alceu Valença e Geraldo Azevedo já tinham se aventurado pelo centro do país em busca de espaço, gravando, com ajuda de Rogério Duprat, um raro álbum anunciando as novas sonoridades nordestinas ainda ignoradas. Nesse meio tempo, Alceu Valença, com a trilha de A Noite do Espantalho, Molhado de Suor e, ainda Vivo, em 1974, apontou as possibilidades mercadológicas daqueles novos sons. Vivo, especialmente, registro de shows realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, talvez tenha sido a primeira demonstração do que estava sendo gerado em Recife naqueles primeiros anos da década de setenta. Na mesma música, havia a linguagem poética nordestina, o instrumental típico da região, mas também uma energia roqueira, principalmente por conta da guitarra do genial Ivinho. Esse movimento, espécie de “invasão nordestina”, no entanto, teve antecedentes. Entre os anos de 1972 e 1974, especialmente, a cidade de Recife, viveu uma grande agitação cultural, com destaque para a produção musical, que deixou raros e clássicos registros em vinil. Na raiz da produção musical recifense, estavam a influência da Jovem Guarda e da beatlemania, com seus diversos grupos locais, e também, ou principalmente, do psicodelismo original e sua versão nacional, traduzida pelo tropicalismo. Entre o final dos anos sessenta e o início dos anos setenta, Recife foi agitada por grupos como Os Ermitões, Os Bambinos, Os Moderatos, The Silver Jets e Os Selvagens, entre outros. Zé Ramalho, por exemplo, também passou pela experiência, tocando com Os Quatro Loucos, em substituição a Vital Farias e, depois, nos The Gentlemans. No início dos anos setenta foi a vez de grupos como Laboratório de Sons Estranhos, Arame Farpado, Phetus e, o mais famoso, Tamarineira Village que deu origem ao Ave Sangria. Esse caldeirão de influência resultou em obras geniais apesar de ainda desconhecidas. Um bom exemplo é o álbum duplo Paêbirú, que reunia Lula Côrtes e Zé Ramalho, em uma viagem psicodélica inédita para os padrões musicais brasileiros. São ainda dessa época os discos Satwa com Lula Côrtes e Lailson, No Sub Reino dos Metazoários com Marconi Notaro; Flaviola e o Bando do Sol, com Flávio Lira e ainda, Ave Sangria, com a banda de mesmo nome. Sobrepondo-se às dificuldades técnicas da época, a música contida nesses poucos, mas fundamentais álbuns, serviram de influência profunda na música nacional e internacional. Considerados clássicos, esses álbuns traduzem um dos momentos mais ricos, inventivos e alucinados da criação musical brasileira, tão desconhecido no país quanto reverenciado por colecionadores em todo o mundo, que pagam altas quantias pelos LPs originais.

De cima para baixo: Zé Ramalho, capa do LP Flaviola e o Bando do Sol e capa do LP Satwa; Ao fundo, inscrições da Pedra do Ingá, tema do disco Paêbiru de Lula Côrtes e Zé Ramalho.


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paêbirú Foi em 1974 que ocorreu a mais psicodélica incursão da música brasileira, o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado por Lula Côrtes e Zé Ramalho nos estúdios Rozemblit. “Drogas foram importantes para a criação de Paêbirú, mas não fundamentais: comíamos cogumelos como licença poética”, filosofa Côrtes. A criação de Paêbirú foi possível graças inspiração que Ramalho e Cortês tiveram ao visitar o sítio arqueológico da Pedra do Ingá, onde decidiram pela produção deste álbum, que se não fosse codificar os segredos das inscrições desta pedra, ao menos iria servir de tributo à remota ancestralidade brasileira. As inscrições existentes na Pedra do Ingá foram descobertas no dia 29 de dezembro de 1598, quando soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema). Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina, um imponente registro de ancestralidade pré-histórica. Em 1972, um amigo que Zé Ramalho conheceu no Bar Asa Branca, Raul Córdula, quis mostrar a Ramalho “algo que conhecera”, e organizou uma ida ao município de Ingá do Bacamarte. Sua localização é a 85 km de João Pessoa, caatinga litorânea, na zona de transição do Agreste para o Sertão. Para fazer a viagem, Córdula também convidou, o artista recifense, Lula Côrtes para lhes acompanhar nesta aventura. Nenhuma surpresa foi para o guia o fato de Côrtes e Ramalho ficarem tão maravilhados com a rocha quanto os expedicionários do capitão-mor da Paraíba. A charada talhada na parede de pedra lançava-lhes o provocante desafio: como decifrariam tais arcanos nunca compreendidos e tão majestosos? Acampados na caatinga sertaneja, frente a frente com a Pedra do Ingá, Ramalho e Côrtes se decidiram pela produção de um álbum conceitual.

O nome Paêbirú, de acordo com registros arqueológicos, é como os Cariris chamavam a trilha que iniciava a partir de São Tomé das Letras e conduzia até Machu Picchu, no Peru. As inscrições em baixo relevo foram feitas quando Sumé - entidade mitológica indígena - após ser expulso por guerreiros tupinambás, seguiu mata adentro, descerrando a milenar trilha “Peabirú” que em tupi-guarani significa “O Caminho da Montanha do Sol”. Este curioso álbum duplo é dividido em quatro lados, de acordo com os elementos Terra, Ar, Fogo e Água. Em Terra, o resultado “telúrico” foi conseguido com tambores, flautas em sol e dó, congas e sax alto. Foi simulado, com onomatopéias, “aves do céu” e adicionado berimbau, além do tricórdio. No lado Ar, além de “conversas”, “risadas” e “suspiros”, selecionaram-se harpas e violas. Em Água, as músicas têm fundo sonoro de água corrente, cantos africanos, louvações à Iemanjá e a outras entidades representativas do elemento. Fogo, como adverte o nome, é a faceta incendiária de Paêbirú, a mais roqueira também. Entram sons trovejantes: o wha-wha distorcido do tricórdio e o psicodelismo do órgão Farfisa. Da produção de Paêbirú foram prensadas 1300 cópias, porém, como para completar a exótica história deste disco, 1000 delas foram literalmente por água abaixo. A gravadora Rozenblit ficava na beira do rio Capiberibe, e o disco, depois de gravado, foi levado por uma das enchentes que assolavam a região. De todas as cópias sobraram apenas umas trezentas que estão hoje nas mãos de poucos e felizardos colecionadores, muitas das quais no exterior, onde foram parar a preço de ouro. O vinil original de Paêbirú está atualmente avaliado em mais de R$4 mil, sendo o álbum mais caro da música brasileira, desbancando até mesmo o primeiro álbum do Rei Roberto Carlos, que fica em segundo lugar avaliado pela metade do preço.


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ronnie von Um dos mais radicais beatlemaníacos; o responsável pelo batismo dos Mutantes, Ronnie Von construiu uma tão invejável quanto pouco conhecida discografia, especialmente entre 1966 e 1972.

que de forma inovadora contém uma vinheta publicitária de um bar paulistano. Em Anarquia, um diálogo improvável entre Cozzella e Ronnie antecede a música cujo título define com precisão a sua época.

Em 15 de outubro de 1966 seu programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von estreava na TV Record de São Paulo. Era uma espécie de programa alternativo ao concorrente Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos, que ia ao ar nas tardes de sábado. O Pequeno Mundo de Ronnie Von destacouse por lançar bandas de rock como Os Mutantes, que era presença constante ao lado de outros grupos, também de influência psicodélica, como Os Baobás e Beat Boys.

O disco seguinte, A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais, lançado em 1969, também com Damiano Cozzela, é menos ousado, mas contém inovações sonoras surpreendentes para a época. Em 1970, quando lança A Máquina Voadora, Ronnie ainda explora sonoridades, formando assim, juntos com os dois anteriores álbuns, o trio de discos psicodélicos do cantor.

Avesso a rótulos, depois do estrondoso sucesso com Meu Bem/Girl (de Lennon e McCartney), em 1966, e do estouro ainda maior do hit A Praça, ele entrou de cabeça no psicodelismo, o que lhe custou a incompreensão de boa parte do público. O LP Ronnie Von lançado no mês de janeiro de 1967, marcou o rompimento do artista com a fórmula clássica da Jovem Guarda. Influenciado pelo rock internacional da época e por maestros vanguardistas como Rogério Duprat e Damiano Cozzella, Ronnie Von apresenta neste álbum experimentalismos inéditos para época, os quais deram uma característica bastante radical à obra. Por haver um baixo apelo comercial, o álbum desapontou na época, porém, hoje em dia é disputado a preço de ouro por colecionadores. A abertura do LP não poderia ser mais simbólica. Meu Novo Cantar, com introdução cantada em versos emblemáticos - “Eu procurei o caminho no vento, mas ele não soprou” -, resume as intenções do cantor. “Doa a quem doer, agora eu vou cantar, meu canto é pra valer, meu canto é pra mudar”, canta Ronnie. O clima lisérgico é corrente nas faixas do disco. Espelhos Quebrados é tão surrealista quanto Lucy in the Sky with Diamonds (dos Beatles). A influência de Jimi Hendrix, por sua vez, aparece no riff de Sílvia: 20 Horas Domingo,

Em um momento musical, social e político pós AI-5, com a Jovem Guarda esgotada e o tropicalismo sendo banido, obras de tamanha ousadia não poderiam ter outro destino senão chocar-se com a massificação alienante que já apontava no horizonte. Sem hits marcantes, os álbuns gravados entre 1967 e 1970 foram varridos das rádios e, consequentemente, das paradas de sucesso, empurrando seu autor para um longo ostracismo. Ronnie Von pode ser apenas lembrado hoje pela beleza física, ou por ter sido considerado o Príncipe da Jovem Guarda, porém este foi um dos poucos artistas que ousaram e por isso pertenceram à vanguarda musical da época. Entre 1967 e 1970 lançou álbuns que fazem parte do preciosismo psicodélico brasileiro, obtendo, portanto, lugar de destaque na música nacional por sua destemida criatividade e inovação, “doa a quem doer”.

Ao fundo, rosto de Ronnie Von. Na página ao lado, de cima para baixo: LPs psicodélicos de Vanusa e Ronnie Von; grupo Loupha em apresentação.


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carona no psicodelismo dos anos 60 Em 1966, o conjunto psicodélico Loupha, de São Paulo, ganhava o Primeiro Festival Nacional de Conjuntos da Jovem Guarda, injetando lisergia no mundo ainda comportado da Jovem Guarda. Mas, engana-se quem pensa que Roberto Carlos e sua turma e músicos de outros gêneros não deram uma passada neste movimento que inundou o mundo a partir de 1967. O caso mais inusitado é, talvez, o da cantora Vanusa, conhecida por suas gravações da Jovem Guarda. Em 69, no entanto, ela apostou num mix de soul e psicodelismo, no álbum Vanusa. Com voz de “Grace Slick” (cantora americana do Jefferson Airplane), ela canta o clássico Atômico Platônico e outras canções, com orquestras e guitarras distorcidas. Outro que saltou da Jovem Guarda para dentro do caldeirão psicodélico foi o “tremendão” Erasmo Carlos. Em 1970, acompanhado dos Mutantes, Lanny Gordin e Rogério Duprat gravou o raro Carlos, Erasmo. Entre outras, ele canta Agora Ninguém Chora Mais com fuzz-guitar de Lanny. A dupla Tony & Frankye destacou-se no que se chamou de funk-soul, produzido na primeira metade dos anos setenta. Em seu único álbum, produzido por Raul Seixas, usam e abusam de guitarras ultra-psicodélicas. A música Trifocal, de Raulzito, é o melhor exemplo do que se poderia chamar de funk-psicodélico brasileiro. Ele também gravou um compacto com a música Adeus, Amigo Vagabundo, em tributo a Brian Jones (ex-Stones). Cantora e compositora, a bela Luiza Maria gravou um fantástico disco em 1974, desaparecendo inexplicavelmente a seguir. Com participação de Lulu Santos & Vímana, Rick Ferreira e Antônio Adolfo, entre outros, ela envolve suas canções com delicados climas psicodélicos. Para conferir: Maya, com solo de Lulu, e Universo e Fantasia. O samba, através de Jorge Ben, também entrou na onda psicodélica a exemplo do disco The Fevers de 67. da mesma forma que o jazz-bossa instrumental produziu seus clássicos psicodélicos em destaque no LP Som Psicodélico, gravado pelo grupo Fórmula 7. Os Íncríveis também tiveram seu momento garageiro-psicodélico, especialmente no álbum Os Incríveis Neste Mundo Louco. O crédito para essa inclusão se deve às geniais fuzz-guitarras de Mingo e Risonho. E também pelo repertório, que junta The Troggs com The Rokes e Los Brincos.


O texto que compõe este livro é a tradução, junção e edição de diversos textos de diferentes autores, realizado por Bárbara da Paz Ferraz Santos, acerca do assunto: música psicodélica nos anos 60, nos Estados Unidos e Brasil.

Projeto Gráfico: Bárbara da Paz Ferraz Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Santos, Bárbara da Paz F. (Org.) Psicodélica Rio de Janeiro: Editora E, 2009 44 pp. ISBN 500-12-3456-789-0 1. História da Música 2. Psicodelismo nos EUA 3. Psicodelismo no Brasil 4. Título 12-3456 Índices para catálogo sistemático: 1. Música: Anos 60: Psicodelismo 543.210

CDD 543.210




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