A busca da não religião

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A busca da não religião Mais de 15 bilhões de pessoas se declararam sem doutrina ou devoção no último Censo, divulgados pelo IBGE em 2010 REPORTAGEM E FOTOGRAFIA: BÁRBARA SOUZA

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m dia o filho mais perfeito de Yahweh, deus de Israel, feito a partir do fogo no primeiro dia da criação, cansou de seguir os dogmas do pai e quis caminhar sozinho, ser seu próprio deus. O pai ficou enfurecido com o mais belo, sábio e poderoso homem criado por ele mesmo e o exilou do Paraíso, o predestinando a viver para sempre no mundo dos mortos. Esse seria o preço pago por desejar ter o seu próprio reino. Essa história é contada no Antigo Testamento, e o tal filho é o conhecido personagem Lúcifer. Sendo verdadeira ou não, essa história é a primeira em que existe a rejeição de dogmas e doutrinas ou simplesmente a rejeição de aspectos religiosos pragmáticos. A mesma vontade teve Felipe Teixeira, 21 anos. É comum que as pessoas, quando o conhecem, relacionem o seu jeito de falar e até de vestir com líderes religiosos. Cabelo e barba que lembra a figura de Jesus, fala calma e lenta de Dalai Lama e um sorriso encabulado no estilo de Gandhi - praticamente um mix religioso por fora. É comum também que identifiquem que ele não se parece com a maioria dos

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jovens da sua idade e logo relacionam isso à prática de alguma religião. Perguntam se ele é espírita, budista, católico ou umbandista como se fosse óbvio sua ligação com algum dogma. Ele responde que é apenas ele mesmo. Felipe é um das 15.335.510 pessoas que se declararam sem religião no último Censo, divulgados pelo IBGE em 2010. Esse número, que representa 8% da população brasileira, é resultado de um aumento de 70% que ocorreu em duas décadas. Para o doutorando em Antropologia e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rodrigo Toniol, junto com o aumento desse número, aconteceu a disseminação das terapias consideradas não religiosas, mas que têm o aspecto do sagrado, que é um dos alicerces das religiões. A vontade de permanecer em contado com esse aspecto espiritual que pode ser representado por uma ligação com energias invisíveis não foi deixada pra trás para essas pessoas. “A negação do religioso rejeita dogmas, mas em diversos casos não é a negação do aspecto espiritual. Em muitas pessoas não religiosas há a vontade de desenvolver-se espiritualmente”, explica Toniol.

A meditação e o contato com a natureza são artif


fícios que Felipe usa para se religar com ele mesmo e com a espiritualidade

Procurei na verdade o meu caminho, tirando de cada uma das crenças e religiões o que tinha de melhor para mim e para a minha vida. Felipe Teixeira, terapeuta holístico

A família de Felipe nunca foi ligada a qualquer dogma religioso e talvez por isso, ele tenha se tornado um pesquisador não oficial do tema. Desde criança, se interessou por saber sobre as mais diversas religiões, mas não tinha como objetivo tornar alguma delas como sua. “Procurei na verdade o meu caminho, tirando de cada uma das crenças o que tinha de melhor pra mim e pra minha vida”, conta. Como para a maioria dos brasileiros que se declaram sem religião, o jovem também queria se religar espiritualmente. No seu caso, as chamadas terapias holísticas preencheram esse quesito. Para Felipe, essa era melhor forma de manifestar sua integração com o espiritual. Aos 18 anos ele conheceu as terapias holísticas apesar de meditar desde os 15 anos. Interessou-se tanto pela prática que quis se tornar um terapeuta. Hoje, ele atende em um consultório que construiu nos fundos da casa de seus pais e pretende expandir o centro. No local, atende pessoas que procuram auxílio espiritual, energético ou até mesmo físico e tenta fazer com que elas encontrem a forma particular de criar o seu próprio caminho que pode ou não ter relação com alguma religião. JULHO 2013 EXP 45


A terapia holística, que hoje também é vista também como tratamento alternativo de saúde tem como aspecto principal a crença de que o ser humano é composto de três corpos: o físico, o energético e o espiritual. Para os praticantes, esses aspectos de cada pessoa precisam estar em harmonia para se viver bem. Tratar somente o corpo material é irrelevante e ineficaz, na visão desses terapeutas. As doenças, mesmo que físicas, são tratadas como reflexo ou somatização de diversas desarmonias do corpo energético e da alma. O corpo físico seria o sinal de que algo invisível não vai bem. No Brasil, as terapias holísticas mais divulgadas são a meditação, os florais e o Reiki, criado em 1922 pelo monge budista japonês Mikao Usui. Segundo Usui, existe uma energia vital e universal que está em todos os lugares e sempre pronta para auxiliar a qualquer um que realmente deseje ser ajudado. Usui considerava que as mãos têm o poder de manipular e direcionar essa energia. Através de técnicas, os praticantes, chamados reikianos, posicionam as mãos sobre quem deve receber essa energia e com mantras e símbolos direcionam o benefício. Mesmo tendo semelhanças com rituais de benzedeiras ou até mesmo com passes, os praticantes afirmam que o Reiki não tem relação com nenhuma. A prática não é reconhecida pela comunidade científica apesar de ser aceita como terapia complementar a tratamentos físicos. Outra atividade que integra as diversas opções dentro das terapias holísticas é a meditação. Concentração e silêncio costumam ser os alicerces básicos da técnica. Presente em religiões orientais, a prática pode ser feita em pé, sentado ou até em movimento. Podendo ter como objetivo refletir ou esvaziar a mente, ela tem como definição etimológica “voltar a atenção para dentro de si”. E é exatamente essa atenção que busca o professor Tiago Oviedo Frosi. Com uma infância com muitos problemas de saúde, ele, que nasceu com glaucoma congênito, teve que ficar até os dez anos de idade sem fazer atividades físicas extenuantes. Cansado de não poder praticar nenhum esporte, o menino convenceu pais e médicos a deixá-lo treinar karate. Em 2008, com 22 anos, ele rompeu os ligamentos de um joelho e precisou se afastar das artes marciais com alto-rendimento competitivo. Procurando uma alternativa para não ficar completamente longe das atividades físicas, encontrou a prática oriental chamada Chi Kung. Esse é um termo chinês para identificar o trabalho ou exercício de cultivo da energia espiritual e física. Os exercícios que muito se parecem 46 EXP JULHO 2013

Chi Kung é uma das fórmulas da Alquimia Interna que Tiago ensina em suas aulas com alongamentos e ioga são lentos e têm grandes componentes meditativos. A prática tem a finalidade de estimular uma melhor circulação de energia vital no corpo, energia chamada pelos chineses de Chi. O Chi Kung é apenas uma das nove fórmulas da Alquimia Interior. Assim como nas terapias holísticas, os exercícios pretendem auxiliar não apenas o corpo. Para os chineses, existem quatro energias: Jing (essêncial), Qi (vital), Shen (mental) e Xu (espiritual). “Essa tecnica serve para integrar todos esses aspectos do ser para que

Tanto as imposições quanto a obrigatoriedade de um mediador sendo ele sacerdote pastor ou padre deixaram de ser atraentes.

Rodrigo Toniol, pesquisador do Núcleo de Estudos das Religiões da UFRGS

assim se possa abrir caminho para o despertar espiritual”, explica. Para que esse processo se dê, as técnicas mais comuns que fazem parte da tecnica chamada de Alquimia Interior são Tai Chi Chuan, Chi Kung, meditação, ginástica chinesa, reeducação alimentar, reeducação respiratória e correção postural. Frosi acredita que, com essas técnicas, diminui-se os desequilíbrios dos órgãos e músculos que vão sendo curados e também se equilibram nossas emoções. Com isso, o reencontro com a essência traria benefícios em todas as esferas da vida. O professor, além de ser mestre em Ciência do Movimento pela UFRGS, é considerado um terapeuta transpessoal e tem um grupo formado por pessoas de 20 a 80 em que onde ele ensina e prática da Alquimia Interna três vezes por semana. Para Frosi, a espiritualidade é um caminho que se amplia a consciência e se percebe uma conexão com coisas além do “eu” individualizado e material. Sua família sempre foi católica, religião que respeita e reconhece que foi importante para seu crescimento pessoal, mas que não responde mais aos seus anseios pessoais. “A maioria das religiões se tornaram corporações que promovem ritos em que as pessoas se tornam cada vez mais dependentes. O problema reside no fato de que as pessoas ficam totalmente fixadas numa única forma de pensar, numa única tradição e passam a acreditar num deus superior aos outros, em um povo escolhido, ou coisas desse tipo”, avalia. Para Toniol, substituir religiões tradicionais tem a ver com o crescente individualismo da sociedade que diminuiu seu interesse por religiões institucionalizadas. Tanto as imposições quanto a obrigatoriedade da figura de um mediador deixaram de ser atraentes. Toniol acredita que esse é um período de legitimação dessas terapias alternativas que, inclusive, tiveram sua oferta assegurada e legitimada por um plano lançado pelo Ministério da Saúde em 2006, chamado de Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Atividades que misturam o místico sagrado e o físico têm ganhado cada vez mais espaço. A Organização Mundial de Saúde (OMS), apoia oficialmente iniciativas terapêutica que visam ao bem dos pacientes inclusive financiando pesquisas. O Ministério da Saúde possui catalogados com cerca de cem diferentes modalidades terapêuticas. Algumas delas como a homeopatia e a acupuntura têm inclusive a prática permitida em hospitais universitários, instituições credenciadas e serviços públicos de saúde.


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