Bastidores
do rime
Os relatos de profissionais que ajudaram a elucidar os crimes mais chocantes do paĂs
Danielle Feltrin Jessica Dias Laura StĂŠphanie
Danielle Feltrin Jessica Dias Laura StĂŠphanie
Bastidores do crime
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F347b
Feltrin, Danielle Bastidores do crime: as memórias de profissionais que ajudaram a elucidar os crimes mais chocantes do país / Danielle Feltrin, Jessica Dias, Laura Stéphanie. 2012. 100 f. Monografia (graduação em Jornalismo) --Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. Orientação: Jairo Marques 1. Crimes e criminosos 2. Profissões - Brasil 3. Crime - Sociedade 4. Justiça 5. Jornalismo I. Dias, Jessica II. Stéphanie, Laura III.Título. CDD 070.4
Livrorreportagem produzido em 2012 pela Universidade Metodista de São Paulo, em cumprimento às exigências de formação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação. Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Daniel Malavazi de Oliveira Imagens: Danielle Feltrin Revisão: Gabriela Lousada
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sumário
introdução...............................................................11 I - ENTRE UM LAUDO E OUTRO..............................17 II - MONTANDO QUEBRA-CABEÇAS.......................29 III - HOMEM DE UM AMOR SÓ.................................41 IV - ERA UMA VEZ........................................................53 V - DO JURI À SENTENÇA...........................................65 conclusão.................................................................77 bibliografia...............................................................83
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Agradecimentos
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roduzir um livrorreportagem mostrando os perfis de alguns profissionais que lidam diariamente com o mundo do crime não foi fácil. Além da dificuldade natural de compreender os termos do universo jurídico, encontrar pesquisas confiáveis e personagens dispostos a falar sobre as rotinas pessoal e profissional foi um exercício complexo, mas que nos rendeu inúmeros ensinamentos. Queremos agradecer a todos que ajudaram de alguma forma a tornar este projeto possível. Aos familiares, amigos e todos os que acreditaram que Bastidores do Crime daria certo, também nossos sinceros agradecimentos. Agradecemos, sobretudo, o professor e orientador Jairo Marques, que deu todo o suporte e compartilhou, com entusiasmo, suas ideias e sugestões; os psicólogos Jan Luiz Leonardi e Lúcia Williams, por compartilharem conosco seus conhecimentos sobre o comportamento humano; o professor do Curso de Direito da Universidade Metodista, Fernando Schmidt, por nos ensinar sobre leis e nos esclarecer os termos jurídicos; à escritora e especialista em criminologia Ilana Casoy, por compartilhar seus conhecimentos por meio de suas obras e pela entrevista concedida; o investigador Marcus Vianna Nunes, profissional que não é mencionado nesta obra, mas que muito nos ensinou revelando detalhes de sua profissão; e o policial Marcelo de Jesus Guedes, que também compartilhou sua experiência na profissão com muita lucidez. Todos os entrevistados citados nesta obra também merecem agradecimento especial, uma vez que concordaram em compartilhar interessantíssimas histórias, dignas de serem registradas em um livro.
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Introdução
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m 2008, um crime realizado em Santo André, no ABC Paulista, ganhou repercussão nacional. Um garoto manteve a ex-namorada em cárcere durante uma semana e acabou tirando a vida daquela que dizia amar. Lindemberg Alves Fernandes recebeu uma pena de quase cem anos pela morte da adolescente Eloá Pimentel. Este foi um caso que teve grande repercussão não só pelo fim trágico, mas também pelas críticas direcionadas à. advogada de defesa Ana Lúcia Assad – que duraram até o último instante do julgamento, realizado em fevereiro de 2012. De fato, um profissional da área de Direito Criminal lida muito com a pressão. Em casos como este, o advogado do infrator acaba se transformando no “vilão” da história. Inconscientemente, as pessoas costumam confundir esses profissionais com os próprios criminosos. Certa vez, Ana Lúcia disse em uma entrevista que isso colocava em risco sua integridade física: “peço que o público entenda que eu não sou a acusada, apenas estou garantindo o direito de defesa de Lindemberg”. Profissionais da área criminal precisam ficar atentos. O estresse do dia a dia traz um efeito negativo na saúde daqueles que seguem estas carreiras. Esta não é uma realidade encontrada frequentemente no Brasil, mas, uma pesquisa realizada pela Associação Americana de Suicidologia, nos Estados Unidos, aponta que advogados são suscetíveis ao suicídio pelo fato de apresentarem maiores níveis de depressão, ansiedade,. perfeccionismo e competitividade. Outras pesquisas também mostram o comportamento depressivo ou solitário que algumas profissões possuem. A Table for Six, por exemplo, empresa especializada na recolocação social de executivos com grande poder aquisitivo, apresentou uma lista das profissões mais solitárias e os advogados ocupam o segundo lugar do ranking. A revista americana Health Magazine publicou uma lista com as profissões que mais causam depressão. A área da saúde, que envolve médicos e psiquiatras, é apontada como a quarta
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mais depressiva. Horários irregulares e o fato de lidarem com vidas seriam alguns dos motivos para tal colocação. Apesar das pesquisas apresentarem a dura realidade de quem escolheu atuar nestas áreas, Bastidores do Crime mostra a versão e detalhes da vida de alguns dos profissionais que trabalham neste universo. Mais do que passar horas em volta de laudos, processos e inquéritos, os personagens mostram um lado sensível e uma rotina familiar bem semelhante à de outros brasileiros.. Mesmo lidando com crimes hediondos diariamente, os entrevistados não se tornaram incomuns ou indiferentes à violência. Com muita dedicação pelas suas atividades, eles também transmitem, com veemência, sensibilidade e compaixão. Questões como até que ponto estes profissionais que lidam com crimes e criminosos são capazes de tolerar a pressão da sociedade e como eles conseguem manter o equilíbrio na vida pessoal, diante de tantas histórias trágicas que convivem diariamente no trabalho, são discutidas nas próximas páginas. O processo de elucidação de um crime também é encontrado nesta obra, dividido em capítulos. Em cada tópico, um personagem: advogado, psiquiatra forense, perito, delegado e juiz.. Os perfis são de profissionais que estiveram sob os holofotes da mídia enquanto atuavam nos casos que mais chocaram o país: Nardoni, Richthofen e Maníaco do Parque são alguns dos casos abordados pelos profissionais entrevistados. Além de mostrar os bastidores da rotina destes profissionais, a obra traz uma análise dos crimes de repercussão, bem como a opinião de quem esteve muito próximo destas histórias. As entrevistas foram realizadas de acordo com a disponibilidade dos profissionais, que possuem uma agenda bastante apertada. Por isso, a maioria delas foi realizada no próprio trabalho, após o expediente, em locais como o Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo), o Instituto de Criminalística de São Paulo, o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) e o Fórum de Santo André.
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As próximas páginas auxiliam o leitor a compreender a complexa rotina destes profissionais, o significado destas profissões para a sociedade e, principalmente, a dualidade que. enfrentam para equilibrar sua vida pessoal e profissional. “Se encararmos cada caso de morte como uma história, um enredo, é possível trabalhar em investigações de homicídios sem se contaminar com a tristeza das situações...” Cíntia Tucunduva - delegada.
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ENTRE UM LAUDO E OUTRO
“À medida que a idade chega, duas coisas acontecem: envelhecemos fisicamente e amadurecemos nossos princípios. A partir daí, enxergamos o trabalho de forma mais técnica. Tanto que, hoje, fiz 14 perícias e não me lembro de nenhuma – elas estão apenas na memória do meu computador” Paulo Sérgio Calvo – psiquiatra forense
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s cabelos são grisalhos e a expressão ostenta seriedade. Sentado envolto por laudos em uma sala do Imesc (Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo), o homem ali, atrás da mesa, parece um senhor de pouquíssimas palavras. Mas é só uma primeira impressão – gerada, talvez, pela atmosfera sombria e “pesada” do lugar. Ali tramitam casos assombrosos de violência e morte. “Quebrado o gelo” inicial, Paulo Sérgio Calvo, de 56 anos – médico cotado para entrar no livro Guinness World Record como o psiquiatra que mais realizou laudos no mundo (aproximadamente 20 mil) –, revela-se simpático e comunicativo. – Já vi de tudo. Desde casos em que os indivíduos não tinham cura (psicopatas) até crimes passionais e outros cometidos por débeis mentais. Formado em Medicina e Psicologia, o forense prestou concurso para perito psiquiatra em 1991 (passou em primeiro lugar). Depois, incrementou sua formação com cursos relacionados à psiquiatria forense. Atualmente, trabalha como médico psiquiatra efetivo do Governo do Estado de São Paulo. Após 21 anos de carreira – e alguns dos crimes que mais marcaram o país no currículo –, o psiquiatra é capaz de descrever com detalhes os casos em que trabalhou. Na memória, diz ainda guardar todas as entrevistas que realizou com os assassinos. Aliás, a repercussão de alguns casos na mídia trouxe ao médico um tipo de fama transitória. – O engraçado é que, quando isso acontece, não consigo andar pela rua e sair para fazer compras. Mas isso ocorre só nos dois primeiros dias em que o caso é comentado nos jornais e na TV. No terceiro dia, ninguém me reconhece mais. *** Com tantos anos de experiência na área, ele é, hoje, capaz de lidar com acusados de crimes bárbaros de forma profissional e distanciada, sem envolvimento. Mas nem sempre foi
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assim: no passado, realizar laudos de estupradores de crianças era um desafio. O profissional de currículo exemplar não suportava realizar tal ação. – Minha vontade era voar naqueles caras, mas, à medida que a idade chega, duas coisas acontecem: envelhecemos fisicamente e amadurecemos nossos princípios. A partir daí, enxergamos o trabalho de forma mais técnica. Tanto que, hoje mesmo, fiz 14 perícias e não me lembro de nenhuma. Elas estão apenas na memória do meu computador. Os anos de experiência também se encarregaram de atenuar o sentimento de repulsa aos criminosos. Nos anos 1990, quando fazia parte do quadro de funcionários da Casa de Detenção de São Paulo, o médico tinha alguns presos como auxiliares. Dentre os que ajudavam nas tarefas do dia-a-dia, havia um estuprador e assassino de crianças que, por ironia do destino, o salvou da morte em uma ocasião: dentro do presídio, um chefe de tráfico tentou subornar o psiquiatra em troca de um exame forjado que lhe garantisse liberdade condicional. O médico não aceitou a proposta e o traficante pagou outro preso para matá-lo. O estuprador, o “braço direito” de Paulo, percebeu a movimentação e conseguiu salvá-lo de uma emboscada. De fato, ninguém está livre de passar por situações extremas. Em uma avaliação sobre a convivência do médico psiquiatra com os presos, o psicólogo Jan Luiz Leonardi, especialista em análise comportamental pelo centro de pesquisa Núcleo Paradigma, comenta que “o impacto causado por esta profissão muda a maneira como ele passa a entender o mundo”. Segundo o psicólogo, “todos os dias este profissional tem contato com criminosos – seja um estuprador ou um psicopata –, e isso tem um grande potencial de afetar o modo que ele entende o que é bom ou ruim, certo ou errado”. *** Nesta profissão, o médico forense diz que é normal ter poucos amigos, mas isso não se deve somente à sua falta de tempo.
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– Muita gente gosta de pedir favores não tão convencionais. Pedem, por exemplo, que eu libere um atestado para afastamento pelo INSS. Então a gente acaba se distanciando... Temos poucos amigos, mas muitos colegas. É claro que nós vamos a festas de casamentos, aniversários e velórios. Quando o assunto é família, Paulo Sérgio aproveita para comentar que é “muito bem casado”. Sua esposa trabalha na área odontológica, assim como sua filha, que está se formando na mesma profissão que a mãe. Apesar do bom relacionamento com a companheira, ele diz que muitos dos psiquiatras que conhece são divorciados. Uma recente pesquisa feita pelo site Separados do Chile1, especializado em rompimentos matrimoniais, confirma o que o médico falou. A área de saúde, de acordo com o estudo, está entre as profissões mais propensas a levar um casal ao divórcio. Segundo o site do jornal El Clarín, para elaborar o ranking, foram analisados 1.150 casos de casais cujo relacionamento não deu certo. De acordo com os autores do estudo, as profissões da área da saúde são mais arriscadas “matrimonialmente” por estarem associadas ao contato permanente e direto com o público, além de exigirem longa jornada de trabalho. *** Na área forense, ao realizar o laudo psiquiátrico de um criminoso, é necessário todo um “esquema” na hora da entrevista (deve-se tratá-lo sempre no impessoal). O médico não expõe detalhes de como são realizadas as abordagens com os indiciados, mas deixa claro que isso depende muito do crime que foi cometido. – As perguntas são técnicas. Não temos um parâmetro específico, nem um questionário pronto. O exame psíquico não é baseado apenas no relato do entrevistado, mas também em seu comportamento, variações de humor e emoção. Diferentemente do teste psicológico, o psiquiatra não demanda de testes com máquinas – é tudo na conversa, na percepção. O psiquiatra forense foi o responsável pelos laudos de 1
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http://www.separadosdechile.cl
dois criminosos considerados serial killers brasileiros: Francisco de Assis Pereira, o “Maníaco do Parque”, e Francisco Costa Rocha, o “Chico Picadinho”. Um ponto em comum entre os dois crimes: as vítimas eram mulheres. O primeiro caso aconteceu em 1998, quando o “Maníaco” atraía suas vítimas até o Parque do Estado, em São Paulo (SP). O médico conta que o assassino confessou com frieza e com detalhes macabros como persuadia as vítimas sem utilizar qualquer tipo de arma: ele convencia as mulheres a acompanhá-lo de moto ao Parque para “testes fotográficos”. Já no local, com cadarço ou corda, ele apertava o pescoço delas até a morte. Os exames psiquiátricos concluíram que o autor dos crimes tinha desvios de personalidade, mas que não era doente mental. Dessa forma, ele foi denunciado pelo Ministério Público por homicídios triplamente qualificados (atentado violento ao pudor, vilipêndio de cadáver e ocultação de cadáver) e foi condenado, em 2002, a 130 anos de prisão.2 Já “Chico Picadinho” cometeu seu primeiro crime em 1966, quando tinha 24 anos, no apartamento onde morava, no centro de São Paulo (SP). Ele estrangulou e depois esquartejou a ex-bailarina austríaca Margareth Suida, retalhando seu corpo em vários pedaços (usando tesoura, faca e gilete). O criminoso foi preso em agosto de 1966, após ter sido denunciado pelo colega com quem dividia as despesas do apartamento. Ele confessou o crime sem hesitação, também o descrevendo com detalhes. Foi condenado a 17 anos e seis meses de prisão. Em 1974, “Chico” conquistou a liberdade condicional e, no mesmo ano, voltou a praticar outro homicídio: enquanto mantinha relações sexuais com Angela de Souza da Silva, asfixiou-a até a morte e esquartejou seu corpo em pedaços, com os mesmos detalhes de sadismo e crueldade do crime anterior – desta vez utilizando serrote, faca e canivete. Ele fugiu, mas foi descoberto em Niterói (RJ) e condenado a mais 30 anos de reclusão.3 Os laudos realizados mostram que os dois assassinos Informações retiradas do Museu da Polícia Civil e do site do Tribinal de Justiça (www.tjsp.jus.br).
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possuem transtorno de personalidade antissocial e, por isso, nunca poderão ficar em liberdade. – De acordo com as diretrizes diagnósticas e com a CID-10 (Classificação Internacional de Doença), ambos são indivíduos frios, que sabem que o que estão fazendo é errado, mas fazem porque não têm sentimento, não se emocionam, e, muito menos, sentem culpa. Todas as vezes que eles estiverem em liberdade, apesar de terem cumprido pena, vão voltar a matar. A psicopatia não tem cura. *** De fato, a profissão do psiquiatra é um tanto quanto curiosa para as pessoas que não conhecem de perto a rotina. – Quando descobrem o que eu faço, sempre perguntam como é que funciona. E muita gente também brinca comigo: “Ah, você é psiquiatra? Então você é louco”. Ou, então: “você está me analisando...”. Diante de tantos laudos e tantas histórias para contar, fica nítido que o forense não consegue se desvincular facilmente de seu trabalho, mesmo quando está fora de seu ambiente profissional, o que implica na limitação de hobbies e na disponibilidade para a família. – Meu grande problema é esse. Quando viajo com minha família, levo o notebook, o pen drive e os processos. Não me desligo. Até porque a quantidade é enorme (são mais de 150 laudos por mês), então eu trabalho todos os dias – inclusive aos domingos. Segundo a psicóloga Lúcia Williams4, outra razão para um profissional como este trabalhar em excesso é a possibilidade de transformar a realidade. “Quando uma situação é complexa e difícil se torna um grande motivador para uma pessoa se dedicar tanto tempo ao trabalho. Obter mudanças e conseguir resultados é extremamente recompensador para o profissional”, complementa. Leonardi comenta que o fato de trabalhar demais é um 4
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Professora titular da Universidade Federal de São Carlos
fenômeno que, em uma cidade como São Paulo, está generalizado – mas que, de qualquer maneira, isso traz um dano tanto físico quanto psicológico. “Todo comportamento é, por definição, de escolha. Se o ato de levar trabalho para casa é uma coisa que o deixa realizado, se ele gosta de estar o tempo todo envolvido, não vai acarretar problemas de estresse e demais fatores negativos psicologicamente”, explica. *** Conforme o psiquiatra vai se lembrando dos casos em que trabalhou, ele cita mais dois crimes que também chamaram a atenção da mídia: “Champinha” e “Farah Jorge Farah” – laudos que foram realizados de maneira peculiar, pelo modo que o médico os diagnosticou. Em 2003, Roberto Aparecido Alves Cardoso, o “Champinha”, junto com cúmplices, assassinou o casal de namorados Felipe Silva Caffé, de 19 anos, e Liana Friendenbach, de 16. O crime aconteceu em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo (SP), enquanto eles acampavam. Felipe foi assassinado com um tiro na nuca, por um dos comparsas de Champinha; já Liana permaneceu refém por mais quatro dias, e, após sofrer abusos sexuais, foi assassinada pelo menor com 15 facadas. No julgamento, Champinha, que na época tinha 16 anos, recebeu a seguinte sentença: internação na Febem, hoje Fundação Casa, onde ficou até dezembro de 2006. Quando completou 21 anos, ele foi internado por tempo indeterminado na ala psiquiátrica do Hospital de Tratamento e Custódia, em São Paulo, devido ao laudo psiquiátrico que atestou sua periculosidade.5 – O laudo deste caso gerou muita repercussão na mídia pelo fato de eu tê-lo diagnosticado como débil mental, gerando muitas críticas. No entanto, os exames realizados no garoto posteriormente tiveram o mesmo resultado: portador de retardo mental sem limite. O psiquiatra diz que ele não tem noção dos valores éti5
Informações retiradas do Museu da Polícia Civil e do site do Tribinal de Justiça (www.tjsp.jus.br).
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cos e morais e isso se deve ao fato de ele ter sido influenciado por más pessoas. “Ele possui um comportamento perverso aliado ao seu retardo mental e acaba agindo por impulso.” O médico lembra ainda que, em uma conversa informal com o juiz – após entregar o diagnóstico que causou aquele alvoroço na mídia –, ouviu do magistrado: “você começou tudo isso, então vai ficar cuidando desse moleque até o dia em que você ou ele morrer”. Até hoje, segundo o profissional, Champinha não lhe causou problemas: “inclusive, ainda lá na Febem, ninguém sabia que ele era o ‘Champinha’. Era apenas o Roberto”, disse. Quanto ao caso de Farah Jorge Farah, este foi um crime que a emoção falou mais forte. Segundo o psiquiatra, “dificilmente alguém não faria o mesmo que ele fez”. O cirurgião plástico confessou o assassinato e o esquartejamento de sua cliente e ex-amante Maria do Carmo Alves, em janeiro de 2003, no seu próprio consultório médico localizado em Santana, Zona Norte de São Paulo (SP). Antes de matá-la, o médico sedou a vítima e, com instrumentos cirúrgicos, esquartejou o seu corpo perfurando um de seus pulmões e esgotando o sangue de seu corpo. Com bisturi, as impressões digitais, a pele do tórax e a metade da pele de seu rosto foram retiradas. Após confessar o crime a familiares, o assassino foi denunciado à Polícia Militar. Farah foi condenado, em 2008, a 13 anos de reclusão. Mas passou apenas quatro anos e quatro meses na cadeia e obteve, na Justiça, o direito de recorrer em liberdade aguardando sentença definitiva.6 Ao comentar sobre este crime, o profissional expõe os motivos que levaram o cirurgião a ter esta reação um tanto quanto “descontrolada”. – O Farahzinho foi outra história. No processo consta que a vítima deu quase 80 telefonemas em um único dia para ele. Oi-ten-ta. Já imaginou alguém ligar para você 80 vezes? Não há Cristo que aguente! Informações retiradas do Museu da Polícia Civil e do site do Tribinal de Justiça (www.tjsp.jus.br).
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O psiquiatra ainda explica o motivo de Farah querer retirar os mamilos, bochechas e dedos da vítima. – É simples. Ele que fez todas aquelas cirurgias plásticas. A mutilação não foi premeditada, mas, no momento de raiva, ele quis desfazer todo o seu trabalho médico... Pessoalmente, ele é um doce de pessoa. *** Em meio a tantos casos escabrosos e de repercussão, ele ainda consegue achar “graça” de alguns delitos que passaram por suas mãos nesses 20 anos de carreira – são os “crimes engraçados”, histórias cômicas que aconteceram durante suas perícias. São tantos casos que, inclusive, o médico decidiu escrever um livro com esta temática. No momento, ele está no processo de seleção das melhores histórias. Seja um crime engraçado ou um daqueles de “tirar o fôlego”, o médico psiquiatra de currículo vasto conseguiu, entre um laudo e outro, ser reconhecido em sua profissão tanto pela quantidade de perícias que realizou – o que o levou a ser cotado para o Guinness –, quanto pelas polêmicas que gerou na mídia com seus diagnósticos. Ter paixão pelo que faz foi o fator crucial que trouxe a este profissional muitas histórias para contar. Além, é claro, de algumas características técnicas, como traduzir o conhecimento médico para o universo jurídico. Mas, o médico ainda cita duas qualidades primordiais que uma pessoa precisa carregar consigo para encarar sua rotina: – Em primeiro lugar, tem que ser muito honesto e muito imparcial. E, a segunda qualidade, é ter muita consideração pelo ser humano e pela vida.
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MONTANDO QUEBRA-CABEÇAS
“O local do crime guarda vibrações e carrega a energia do que aconteceu ali. Mas é preciso manter distância e pensar que a justiça será feita” Rosângela Monteiro – perita criminal
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garota suburbana que morava na Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo (SP), e que estudou em colégio público, hoje usa botas de salto alto, meia-calça e casaco de couro. A voz é doce, segura e cheia de personalidade. No rosto, maquiagem para esconder as olheiras, fruto de um trabalho árduo, porém muito “prazeroso”, como ela faz questão de definir. Rosângela Monteiro tem 52 anos. Trinta e dois deles de carreira. No currículo consta o status de uma das peritas criminais mais conhecidas do país, na área de Crimes Contra a Pessoa. Atualmente, ela faz parte da diretoria do Instituto de Criminalística de São Paulo. O resultado de uma carreira de sucesso está estampado em seu rosto, olhar e sorriso. As histórias em que trabalhou são as mais diversas e marcantes possíveis. A perita se recorda de todos. Na lembrança estão, entre outros casos, incêndios, homicídios e enforcamentos. – Na juventude, eu vivia aquela vida de bairro. Com a perícia, eu saio com a viatura para conhecer a zona leste, zona norte... A cidade inteira. Além de entrar em contato com os mais variados tipos de pessoas, culturas e situações diferentes. Escuto histórias que vão me lapidando, conheço outras realidades que ampliam o meu universo. Isto me dá uma experiência que ninguém mais tem. Rosângela começou a ter interesse pela profissão quando prestou concurso para técnico de laboratório do Instituto Médico Legal (IML), onde teve o primeiro contato com o mundo forense. Durante as passagens pelo necrotério para a coleta de materiais para exame, surgiu a curiosidade de saber como era a profissão daqueles que compareciam aos locais dos crimes: o perito criminal. “Na época, achava interessantíssimo”, disse entusiasmada. Formada em meados dos anos 1980, época em que não existiam cursos de especialização para perito criminal, Rosângela fez mestrado e doutorado na área de psicologia clínica. Em São Paulo, basta ter curso superior para atuar
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como perito, mas o ramo é vasto e requer alguma especialização, como, por exemplo, biblioteconomia (para ajudar na identificação de falsificações). – As pessoas acham que é só fazer um curso de criminalística e vai virar um perito CSI (série televisiva sobre investigação e perícia forense). Mas é preciso ter muito conhecimento, formação acadêmica, espírito de investigação e leitura. Além disso, tem que saber se expressar e defender o seu trabalho. Em resumo, o perito atua como auxiliar da justiça e analisa os vestígios de um crime. Ele produz a prova pericial (laudo técnico-científico) que dá assistência ao juiz, podendo direcionar a investigação e ser fundamental para condenar ou inocentar o réu. Apesar de ser reconhecida e muito bem-sucedida em sua área, Rosângela não escapou da discriminação por ser mulher. – No início da minha carreira éramos apenas eu e mais uma perita. Os fotógrafos até apostavam se a gente ia dar conta de mover cadáver ou se íamos chorar no local do crime! Mas hoje temos muitas mulheres, inclusive mais do que homens trabalhando na profissão. E, sim, elas dão conta do recado! Na capital paulista, só no primeiro semestre de 2012, 585 pessoas foram assassinadas.1 As equipes da polícia técnicocientífica passam dias e noites nas cenas de crimes em busca de qualquer vestígio que possa chegar ao autor do delito. Os mortos e os locais conseguem passar recados e cabe aos peritos interpretá-los. “Um fio de cabelo encontrado e tudo pode mudar”, define a profissional. *** Com tanta dedicação ao trabalho, Rosângela deixa claro que não consegue se desvincular da profissão quando está fora de seu ambiente profissional. Segundo ela, isso não traz problemas à sua vida familiar. – Tudo está incorporado em minha vida, não tem como chegar em casa e dizer: “ah, agora esqueci tudo”. Não dá para se 1
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Dados da Secretaria da Segurança Pública - 25/07/2012.
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desligar. E, se eu não me controlar, é capaz de eu chegar no trabalho às 7 horas da manhã e sair meia-noite. É dedicação total. Para conseguir se “equilibrar” diante dos casos escabrosos que diariamente aparecem no Instituto, a perita acredita que simplesmente existam pessoas “talhadas” para esta profissão, que tenham uma aptidão natural. Rosângela trabalhou em perícias de casos famosos que repercutiram bastante na mídia, como os do assassinato de Isabella Nardoni (2008) e do acidente com o avião da TAM (ocorrido em 2007, que matou 199 pessoas). Ela diz que casos como esses são muito marcantes, mas que sempre aparecem histórias semelhantes que não tiveram a mesma repercussão. A perita conta que nunca teve dificuldade, ao longo de sua carreira, de lidar com situações extremas na busca por pistas. – O local do crime guarda vibrações e carrega a energia do que aconteceu ali. É diferente lidar com um cadáver em um laboratório, quando o corpo está limpo e lavado. Tem legista que não vai ao local do crime por isso, afinal, ali estão todos os odores e toda a história impregnada nas lesões, no sangue, no imóvel, nas vestes... Essa energia é muito forte. Para fazer parte deste mundo não pode haver repulsa na hora de investigar o que aconteceu no local de um crime, nem ter problemas para analisar fezes, sangue, vômito e examinar um cadáver, por vezes, já em decomposição. – Para mim, o cadáver é um elemento a mais no local. Você tem que respeitar porque era uma pessoa. Tenho colegas que já perderam essa noção. No cadáver, enxergamos nossa própria fragilidade. Existem pessoas que não gostam nem de ir a velórios. Não é demérito de ninguém não ter condição para trabalhar com isso. Para seguir com as investigações, ainda é preciso controlar o lado emocional e ter uma visão extremamente técnica da situação. – Muitas pessoas ficam pensando no que aconteceu, no que a pessoa sofreu ali. É bonito “tecnicamente”. Os meus alunos ficam espantados quando falo isso, mas é no sentido técnico. E tem gente que se choca e diz: “nossa, você é uma ge-
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ladeira”. Não é isso, é que é preciso manter uma distância. Eu sei que a justiça vai ser feita e que devo fazer o melhor dentro das possibilidades que o local do crime me dá. Após anos de experiência, a perita diz conseguir presumir o que aconteceu em uma cena de crime. No entanto, mais do que ‘achismos’, são necessários elementos materiais para embasar suas conclusões. – Às vezes é frustrante, porque só podemos oferecer uma hipótese se ela estiver muito bem fundamentada. Não posso colocar a minha opinião, ela não importa. Até porque estou lidando com vidas, não só a que foi perdida, mas as que diretamente ou indiretamente estão relacionadas. *** Fora do Instituto, Rosângela continua sendo perita e psicóloga. O marido também trabalha na área jurídica e, mesmo nas horas livres e durante as viagens de família, os dois costumam discutir sobre temas ligados às suas profissões. Apesar do amor à carreira, ainda é preciso conciliar o tempo com o lado mãe e dona de casa. – Não fui aquele exemplo de mãe, mas sempre tentei conciliar vida pessoal e profissional. Às vezes chegava do plantão cansada, mas se o meu filho tinha uma prova eu o ajudava a estudar. Também sempre o levava à escola. Ele cresceu vendo tudo isso, mas não teve problema algum. A palavra mágica é equilíbrio e isso independe da profissão. Como a perita fez questão de frisar, “não dá muito para dissociar”. Quando ainda era jovem, Rosângela observava o empenho e dedicação do pai, que é projetista e trabalhou muitos anos com artes plásticas em feiras de exposições. – Sempre dei muito valor ao trabalho. Meu pai sempre falava que o indivíduo tem valor enquanto está produzindo. Tem gente que até questiona: “você não pode ficar vivendo só para trabalhar, trabalho é apenas um meio de vida.” Mas quando você gosta do que faz, nunca vai ser trabalho. Porque é tão prazeroso...
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*** “Entra em plenário a perita Dra. Rosângela Monteiro, para um dos mais esperados depoimentos desse júri.” Esta foi a descrição de Ilana Casoy, autora do livro “A Prova é a Testemunha”, que aborda a trágica história de Isabella Nardoni. Em 2008, quando tinha cinco anos, a criança perdeu a vida ao ser jogada da janela do sexto andar do prédio onde morava, na Vila Guilherme, em São Paulo (SP). O caso ganhou repercussão nacional e as polêmicas que giraram em torno dos autores do crime trouxeram à perícia papel fundamental para a condenação dos réus. Em função das evidências, obtidas durante as investigações, foram declarados como principais suspeitos da morte da menina o pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá. O crime causou perplexidade e indignação por parte da população e o rosto da menina estampou as capas dos principais jornais do país. – O laudo deste caso levou 28 dias para ficar pronto, mas trabalhei demais. Na última semana eu não dormi. Eu tinha que inserir fotografias, resultados de laboratório e depois checar tudo isso para fundamentar a hipótese. Neste caso, era um homicídio e a pessoa que o cometeu era quem estava vestindo a camiseta (uma das provas do crime), o pai. Eu tinha certeza que, na hora que saísse o laudo, eles iriam para a cadeia e não sairiam mais. As investigações coordenadas pela perita e o laudo forense foram cruciais para determinar a condenação de Nardoni a pouco mais de 31 anos de prisão. A madrasta foi condenada a quase 27 anos em regime fechado. Os réus nunca confessaram o crime. No julgamento, Rosângela depôs por cinco horas. Ela foi inquirida pelo juiz, advogados de defesa e pelo Ministério Público. Lá, teve que defender seu laudo e os métodos do Instituto, além de explicar a dinâmica da construção do documento para que o júri entendesse as provas e as análises complexas e técnicas utilizadas pela perícia. A perita teve ainda que esclarecer as dúvidas sobre o uso 2
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Informações retiradas do Museu da Polícia Civil e do site do Tribinal de Justiça (www.tjsp.jus.br).
de um reagente que constatava a existência de sangue no local. Além disso, a profissional descreveu as principais evidências coletadas, entre elas manchas de sangue no apartamento e no carro da família e as marcas da tela de proteção na camiseta usada pelo pai da vítima no dia do crime. Ainda no livro de Casoy é mostrada a importância da presença de Rosângela no julgamento para explicar, didaticamente, todo processo em busca de vestígios. “Rosângela Monteiro deu a mais importante aula de sua vida ali, defendendo seu laudo e Instituto com dignidade. Nenhuma pergunta ficou sem resposta.” *** Rosângela é a perita mais experiente de São Paulo e, até há pouco tempo, a única autorizada no país a fazer o uso do reagente para manchas de sangue, conhecido pelo nome comercial Luminol, substância azul que costumamos ver em filmes policias. No caso Nardoni, a perita poderia ter utilizado tanto o Luminol quanto o Bluestar Forensic, outro produto com a mesma finalidade, mas recorreu à segunda opção por considerá-la mais eficiente para comprovar que as manchas encontradas no lado de fora e de dentro do apartamento eram de sangue. O produto complementar, Hexagon Obti, permitiu detectar que o sangue era humano. Para se tornar especialista neste assunto, ela participou de congressos nos Estados Unidos e Europa e começou a desenvolver pesquisas no Brasil. A profissional, que regularmente é chamada para fazer os exames fora do Estado de São Paulo, ainda organiza cursos e treinamentos para o uso do Luminol. – Não basta saber a técnica e não conseguir colocar em prática. É interessante quando ensino os alunos e eles não conseguem enxergar, e, de fato, é preciso acomodar os olhos. São necessários muitos fatores para habilitar um profissional para este tipo de exame. *** Rosângela não vê de forma negativa o envolvimento da im-
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prensa nas investigações. Ela diz até preferir ajudar “para que os jornalistas entendam o papel do perito”, mas concorda que a cobrança da mídia traz uma certa pressão que precisa ser administrada. – Hoje a prova pericial é extremamente valorizada, e, no caso Nardoni, mais ainda. A pressão em trabalhar em casos de repercussão existe, sim. Mas eu sobrevivi. Chegaram até a colocar escuta aqui no Instituto, entraram disfarçados no prédio, me seguiram... Foi uma overdose de jornalistas e repórteres. Apesar destes tipos de crimes fazerem parte da rotina diária dos peritos, a atuação em casos importantes ainda traz o reconhecimento nas ruas. “Quando vou ao supermercado ou ao aeroporto, as pessoas me encontram e agradecem, choram, porque se envolveram demais e sabem quem são os personagens envolvidos.” A aparição na mídia também desperta o interesse dos familiares e amigos. “Quando acontece um caso em que o Datena (apresentador de programa policial na TV) está divulgando, sempre perguntam se eu participei da investigação daquele crime”. Em sua mesa do escritório, é possível observar pilhas e pilhas de papéis (em média, são realizados de 10 a 15 laudos por dia), mas ela não parece se incomodar com o trabalho em excesso. – Eu respiro criminalística e medicina legal 24 horas. Também não me incomodo se algum perito que esteja analisando um local me ligue às 2 horas da manhã pedindo orientação; gosto de ajudar. Seja qual hora for. *** Entre um laudo e outro, Rosângela encontra tempo para suas outras paixões – os 16 cachorros, gato, papagaio e tartaruga, que são criados em uma chácara no interior paulista. Às vezes, chega a levar a cachorrinha que vive com ela, uma pincher, para “dar uma melhorada no astral do Instituto”. Como lazer e para relaxar do estresse diário, ela chegou a fazer atividade física, como aeróbica e natação. Agora prefere se dedicar à culinária no forno à lenha, onde quer se especializar para receber amigos em casa. “Não tenho problema nenhum em exami-
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nar um cadáver e depois fazer uma carne mal passada!”, brinca. O fato de cumprir suas obrigações profissionais com tanto prazer fazem com que os temas relacionados a crimes estejam em suas leituras diárias e hobbies. – Estou sempre assistindo coisas relacionadas à profissão, posso até assistir a alguma coisa mais light, mas daqui a pouco estou assistindo Índice da Maldade, Law & Order, CSI... Leio também desde os clássicos da Ágata Christie a qualquer publicação de criminalística. O seriado da TV americana CSI aumentou o conhecimento da população sobre o trabalho da perícia policial. E ao mesmo tempo, as comparações tornaram-se inevitáveis. – Havia um padrão que só no CSI era possível fazer e que a gente não tinha capacidade. Agora que o nosso trabalho está sendo divulgado, acho muito bacana. Inclusive, é possível que tenha uma perita em alguma novela da Rede Globo. Sei disso porque vão me entrevistar para criar o perfil da personagem. Vamos ver se vai ser legal... Só espero que não a coloquem como uma “perita doida”!
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HOMEM DE UM AMOR SÓ
“Quando um cliente lhe entrega um problema, não há como se livrar dele. Você acorda, passa o dia e dorme com ele. Isto é constante, não há como se desvincular” Laertes de Macedo Torrens – advogado criminalista
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ais de 50 anos de carreira e muitas histórias para contar. Com uma trajetória tão longa, a vida de um advogado criminalista de 80 anos não poderia ser monótona. Os cabelos brancos e a audição – que já não é das melhores – entregam a idade, mas a memória de Laertes de Macedo Torrens continua vívida. Em sua carreira, além de atuar como advogado, o paranaense lecionou Direito Penal nas Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG), presidiu o Tribunal Penal do Mercosul e também foi conselheiro no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Devido à idade avançada e às fortes emoções que os tribunais penais lhe causaram, ele atualmente trabalha apenas com os crimes de “colarinho branco” em um escritório localizado na Avenida Paulista, em São Paulo (SP). O advogado relata as experiências que a área penal lhe trouxe e afirma que este é um ramo da advocacia que não admite amantes. A dedicação exige exclusividade. Habituado ao teatro dos grandes julgamentos, ele conta que um advogado criminal necessita muito mais da emoção do que da razão para realizar uma boa defesa. – É preciso que você esteja apaixonado por aquilo que vai expor ao júri e que acredite fielmente em sua verdade. Só conseguimos convencer outras pessoas quando realmente acreditamos naquilo que estamos falando. Eu costumo dizer que, durante um julgamento, há duas verdades: a verdade exposta pela defesa e a verdade exposta pela acusação. Nesse conflito, cabe ao júri tomar a melhor decisão. *** O advogado de defesa nem sempre é bem-visto pelas pessoas e, em alguns casos, se torna o vilão. No livro “A Prova é a Testemunha”, a escritora Ilana Casoy descreve esse sentimento causado em algumas pessoas nos casos de repercussão. “É incrível como a população confunde o papel do advogado e o ataca como se ele tivesse cometido o crime em questão. Será mesmo que a sociedade ficaria satisfeita com uma condenação
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sumária dos réus se eles não tivessem direito à defesa em um Tribunal do Júri?”, indaga. O advogado diz não se incomodar com as críticas. Segundo ele, a opinião alheia nunca o atrapalhou. – Nas aulas de Direito Penal, uma pergunta era muito comum entre os meus alunos. “Professor, como você tem coragem de defender alguém que estuprou ou matou uma pessoa?” A minha resposta era simples: eu não julgo. E com esta convicção, o profissional conta como deve ser o trabalho de um advogado criminal. Para ele, o primeiro passo a ser adotado é não julgar. “Se eu quisesse julgar alguém, teria me tornado juiz”. E foi dessa maneira que o paranaense com anos de carreira participou da defesa de grandes casos. – Quando alguém me procura para contar uma história, geralmente trágica, eu simplesmente escuto e tento identificar as razões pelas quais levaram a pessoa a agir daquela forma. Ou seja, o resultado das ações do indivíduo é o que menos importa. Os motivos que o levaram a agir daquela maneira é o que define como e se vou defendê-lo. A tese intitulada “Os Motivos Determinantes do Crime”, desenvolvida pelo advogado Cédio Pereira Lima, ressalta a importância de especificar as causas que levam ao delito, que servem não apenas para os autos do processo, mas também como uma forma de identificar, criar um padrão e assim prevenir a sociedade de crimes futuros. “Não há crime sem motivo”, afirma Torrens, citando a frase de Nelson Hungria que, para ele, é o melhor penalista que o Brasil já teve. Os motivos podem ser os mais variados possíveis. Torpe, fútil, ético, imoral... É a partir disso que o advogado pode construir uma defesa que exclui a culpabilidade do cliente. – Eu não tenho certeza, mas já devo ter recusado alguns casos, pois não me convenci efetivamente dos motivos que determinaram o comportamento infracional da pessoa ou que não teriam cabimento para que excluísse a culpabilidade. E o critério é justo, já que a partir do momento em que
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os advogados aceitam um caso, ele passa a fazer parte da rotina e, muitas vezes, se torna o foco da vida desses profissionais. – Quando um cliente lhe entrega um problema, não há como se livrar dele. Você acorda, passa o dia e dorme com ele. Isto é constante, não há como se desvincular. Nas raras horas de lazer, o trabalho também está presente. – Posso até sair para assistir a um filme, mas duas ou três horas depois já estou pensando novamente no caso. É o tal negócio do “amor único”, você não consegue se livrar... *** Além da devoção pelo trabalho e o amor incondicional pela advocacia penal, o criminalista tem ainda outras duas paixões: os automóveis e a gastronomia. A primeira o segue desde muito novo. Por lazer, chegou a participar de competições. Na garagem, já teve vários modelos da marca inglesa MG. Já a segunda paixão, adquirida há alguns anos, lhe garantiu bons frutos (ou pratos) na espaçosa cozinha de sua casa, localizada no bairro Campo Belo, na capital paulista (SP). A culinária francesa é a favorita. Na Europa, Torrens conheceu diversos chefs renomados. Atualmente, viajar em busca de ingredientes peculiares para a elaboração de pratos diferenciados é uma de suas distrações. Mas não só os quitutes franceses agradam o paladar do advogado. Ao saborear uma pizza, que lhe custara R$ 30, ele comenta o preço abusivo da mesma iguaria que é encontrada em Nova York (EUA). Ainda embasbacado com a lembrança, revela o preço: US$ 1 mil. “O sabor? Muito exótico. Caviar com lagosta fatiada”, brincou. Antes de dedicar parte de seu tempo à culinária, enquanto ainda atuava na advocacia criminal, o profissional defendeu muitos casos de repercussão, julgados como complexos. – Não existe caso fácil ou complicado, principalmente quando se trata de casos criminais. Pode ser que o crime tenha
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menor ou maior potencial ofensivo, mas todos eles são difíceis. Por quê? Nos casos criminais está em jogo a liberdade das pessoas, e, quando se trata desta questão, qualquer caso se torna difícil. Foi assim também que ele se sentiu ao defender João Acácio Pereira da Costa, conhecido popularmente como o “Bandido da Luz Vermelha”. O caso, que ocorreu nos anos 1960, ficou muito conhecido e chegou a virar filme. A princípio, o criminoso assaltava casas de pessoas com alto poder aquisitivo na cidade de São Paulo (SP). O apelido lhe foi dado pela imprensa. Sempre que assaltava uma casa, ele usava uma lanterna de luz vermelha. – Os jornais da época chegaram até a dizer que, além de roubar as casas, ele também seduzia as mulheres e que algumas até gostavam. Mais do que roubar residências, “Luz Vermelha” também chegou a cometer assassinatos. Segundo o advogado, um desses homicídios é considerado “um absurdo”. “Ao sair de um bar, durante a madrugada, João vestia uma roupa estranha. Com calça justa, camisa branca com babado no peito e nos punhos e uma botinha de salto, ele carregava ainda um violão no ombro, parecendo o Juca Chaves. Um homem no ponto de ônibus olhou para ele. Não satisfeito com a encarada, ele atirou no rapaz”, conta. – Quando o juiz me designou para defendê-lo, eu pensei: “mas não é possível, é um crime quase sem motivo”, o que contraria a versão de Nelson Hungria. Então eu peguei o processo e comecei a pesquisar todo o histórico do João Acácio desde sua infância para entender suas ações. As pesquisas levaram a um histórico de tuberculose crônica que João carregava. Essa doença ia e voltava desde que ele era criança. Em seus estudos, o criminalista descobriu a influência que essa enfermidade pode causar e que ela produz uma série de toxinas dentro do organismo, afetando o sistema nervoso central e desencadeando uma doença mental chamada esquizofrenia. “Matei a charada!”, recorda com empolgação. – Existia o laudo de um médico que caracterizava o João
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Acácio como uma “personalidade psicopática esquizotímica”, querendo dizer que ele não era doente mental, mas um semiimputável, e assim não teria isenção de pena. E eu tinha certeza de que ele era doente mental. Este foi meu objeto de defesa. João Acácio foi condenado pela morte de quatro pessoas, sete tentativas de homicídio e 77 roubos. Cumpriu o tempo máximo de reclusão permitido no Brasil (30 anos) e foi libertado em 1997. – Mas eu tinha razão! Quando ele saiu da cadeia, acabou cometendo outras barbaridades. Já existia um laudo na penitenciária dizendo que ele era esquizofrênico, e não portador de personalidade psicopática esquizotímica. Após quatro meses e dez dias de liberdade, o “Luz Vermelha” foi assassinado ao tentar praticar mais um crime. 1
*** É comum, entre os advogados criminais, utilizar “teatro” para convencer o júri de seus intensos argumentos. No caso do experiente advogado não é diferente: ao pisar no tribunal, era como se subisse em um palco e todos os holofotes se voltassem para ele. Durante os julgamentos, Torrens abusava dos artifícios que pudessem prender a atenção dos jurados, assim como balançar o lenço entre os dedos feito um maestro regendo sua orquestra. Para se valer de uma boa defesa, o criminalista explica que é preciso ter outros conhecimentos para desenvolver uma tese defensiva. “Não basta apenas conhecer a dogmática penal”. Por acreditar nisso, ele passava noites estudando não somente os processos, mas medicina, física e o que mais fosse necessário para comprovar suas teses. Em seu escritório é possível encontrar os vestígios do vasto conhecimento adquirido ao longo dos anos. Nas estantes, centenas de livros sobre os mais variados assuntos, utilizados para estudar casos e planejar suas defesas. Mas não é apenas a enorme quantidade de livros que chama a atenção no ambiente. Além dos automóveis e da gas1
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tronomia, Torrens tem como hobby – e paixão – os cachimbos. É possível encontrar vários deles “descansando” sobre a mesa. Ele conta que a prática do descanso é comum em cachimbos de madeira, que precisam repousar de 24 a 48 horas para que a saliva seque e possam ser utilizados novamente. *** Com tantas atividades e tamanha dedicação ao Direito Penal, dar atenção para a família nunca foi um problema. Pai de três filhos, que também se formaram em Direito, o renomado advogado sempre reservou um tempo na sua rotina exaustiva para praticar atividades com os filhos. Seu gosto por esportes, entre natação, tênis e iatismo, garantia várias horas de lazer com a família. Os filhos também estiveram presentes em sua trajetória profissional, assistindo a julgamentos como se fossem “termômetros”, dizendo se o ‘Doutor Laertes’ estava agradando os jurados. Nos intervalos, a conversa com seus mais preciosos expectadores era indispensável. A profissão que Torrens escolheu sempre esteve presente nas conversas com a família e os amigos. E isso não o incomoda. – Quando saio e converso com outras pessoas, fico chateado se o assunto não é Direito, pois eu não sei falar sobre outra coisa. Posso até comentar sobre a minissérie “Gabriela” (exibida em 2012 pela Rede Globo) e como a protagonista (Juliana Paes) é linda, mas se me perguntarem sobre qualquer caso, aí sim vou desenvolver uma conversa. É assim, esta é minha vida. Mas não é qualquer informação sobre os mais diversos casos trabalhados que podem entrar na pauta. Afinal, há o sigilo profissional. – O que é bem comum é trocar ideias a respeito de teses com outros profissionais, porque aí não há a quebra de sigilo. Você busca ampliar a visão sobre o processo em prol do cliente. O criminalista também aponta alguns cuidados que um advogado deve tomar em relação à imprensa, para que não haja confusão.
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– Certa vez, me entrevistaram sobre um processo e, quando a matéria saiu, estava tudo errado e eu fiquei parecendo o réu. Recebi algumas ligações. As pessoas me ligavam e perguntavam se eu precisava de ajuda. É preciso tomar muito cuidado com o que se fala para não expor você, o cliente e também sua tese defensiva. *** Defendendo sua posição sobre a advocacia penal, o. advogado ressalta que não se trata apenas de méritos e fatos (ser ou não ser autor de um crime). Ele define o Direito Penal como uma forma de exigir que o processo legal seja cumprido, que os direitos humanos sejam respeitados e que o juiz seja coerente. Tudo isso para que se mantenha a ordem durante o processo. Muitas vezes não há como excluir a culpabilidade do cliente sobre o crime cometido, mas é dever da sociedade conceder a qualquer cidadão o direito a defesa. O advogado criminal é quem possibilita que o réu seja julgado e receba uma pena justa, de acordo com os atos infracionais que tenha cometido. – Eu gostaria imensamente de ter um advogado. Quando temos um, passamos a ele todos os nossos problemas para que sejam resolvidos, diz com sorriso no rosto. O profissional completa sua definição sobre Direito penal comparando a advocacia a um jogo de xadrez. “É preciso mexer as peças com cautela e dar o xeque-mate na hora certa.”
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ERA UMA VEZ...
“Se encararmos cada caso de morte como uma história, um enredo, é possível trabalhar em investigações de homicídios sem se contaminar com a tristeza das situações” Cíntia Tucunduva - delegada
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o observar o lado de fora da antiga Delegacia de Incêndios e Danos, um prédio público localizado na Luz, em São Paulo (SP), é difícil imaginar que ali há um escritório que lembra a sala de estar de uma residência com atmosfera bastante aconchegante e harmoniosa. Na parede é possível encontrar um crucifixo. Sobre a mesa, uma imagem do Santo Ivo, padroeiro dos advogados, e mensagens de Seicho-no-ie gravadas em um calendário. Mas não só a decoração e os enfeites religiosos transmitem serenidade: o tom de voz calmo e acolhedor da delegada Cíntia Tucunduva, que trabalha neste escritório, deixa o clima – que tinha tudo para ser carregado e melancólico – agradável. Afinal, agora, o prédio abriga o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). No andar onde Cíntia trabalha, tramitam os casos da divisão de Crimes Contra a Vida de Crianças e dos Adolescentes. Para quem não compreendesse a língua portuguesa e tivesse a oportunidade de escutá-la ali, não imaginaria que Cíntia estaria falando o tempo todo sobre casos de violência e de morte. O volume baixo e tranquilo de seu discurso trazem uma interpretação de que, por um momento, ela estivesse contando uma história fictícia – os detalhes, por vezes, dão um ar cômico e de suspense. De fato, para trabalhar com os diversos homicídios que passam diariamente em seu departamento é preciso “incorporar” essa fantasia e se desvincular, como se tudo fosse apenas uma história. – Trabalhar com este tipo de investigação requer um certo distanciamento, uma vez que é pesado. Se encararmos cada caso de morte como uma história, um enredo, é possível trabalhar com isso sem se contaminar com a tristeza das situações. A delegada se lembra do caso de uma criança que morreu afogada em consequência de uma brincadeira de amigos (entre oito e 10 anos) que a jogaram na piscina. – Aí você pode encarar isso de uma forma mais chocante ou como uma história: aquelas crianças que fizeram arte, que pularam o muro para entrar na piscina... Tem todo um enredo que, para quem tem experiência, enxerga essa situação.
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*** Com 46 anos, Cíntia é casada com um investigador e mãe de uma menina de 10. Paulistana, teve avô e tios delegados. Formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) em 1988, prestou concurso para o cargo de delegado no ano seguinte. Seu primeiro emprego foi na Delegacia da Mulher, em Catanduva (interior paulista) e, depois, em Taubaté, também em São Paulo. Nestas e em outras delegacias que trabalhou, Cíntia sempre teve a função de investigar os crimes registrados nos distritos. Durante estas investigações, a delegada ouve testemunhas, pede exames periciais e é responsável por comandar os policiais. Duas outras delegacias em São Paulo foram marcantes na carreira da profissional: o 73º DP (Jaçanã) e o 39º (Vila Gustavo), onde foi delegada assistente e trabalhava em uma carceragem com mais de cem presos. “Lá, aprendi que os presos e suas famílias são seres humanos dignos de respeito”, revela. Em 1999, Cíntia entrou para o DHPP, onde foi titular das equipes I e C-Sul. Nesta última, a delegada presidiu a investigação do caso de Suzane Von Richthofen, acusada de planejar o assassinato dos pais. “A frieza dela me impressionou”, diz ela ao lembrar do caso. Em 2002, Cíntia foi titular da Terceira Equipe Especial de Investigação de Crimes Contra Crianças e Adolescentes que, em 2011, virou a 5º Delegacia de Polícia de Repressão Contra a Criança e o Adolescente. Nas investigações de crimes contra menores de 18 anos, a delegada consegue se desvincular sem muita dificuldade de seu trabalho. “Quando piso na calçada depois que saio do DHPP, já não lembro mais de nada”, conta. Fã de artes, Monet está entre suas paixões. Cíntia pinta telas a óleo – inclusive, um quadro de sua autoria enfeita uma das paredes de seu escritório. Ligada à música, a delegada conta que também já tocou piano. “Na época de colégio, inclusive, fiz curso técnico de arquitetura. A arte é bem oposta à violência, então desta forma consigo dar uma equilibrada.”
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*** A capacidade de ouvir com tranquilidade confissões detalhadas de crimes bárbaros é obrigatoriedade para o sucesso em serviço. – Tem que ter bastante frieza para ouvir um depoimento com calma e paciência. Nem sempre há testemunhas do crime, então é interessante que a pessoa confesse detalhes em seu relato. Claro que, no começo da carreira, não funcionava bem assim. Ouvir uma pessoa narrar com detalhes os crimes, principalmente os que envolvessem abusos sexuais, embrulhava o estômago da delegada. Cíntia também explica que a forma de tratar uma criança ou adolescente vitimado é diferente do tratamento dado aos maiores de idade. – Realizar depoimento de pessoas com esta faixa etária (menores) é mais difícil. São técnicas diferentes. Uma criança vitimada, antes de depor, tem que ficar à vontade, brincar. Temos que fazer com que ela fale. Teve casos de crianças que não falavam e tiveram que desenhar. O trauma era tanto que, falando, não conseguiam mostrar o que havia acontecido. De certa forma, os profissionais que trabalham nesta unidade e que possuem filhos acabam passando por um “treinamento” e automaticamente se reeducando. – Quem trabalha com vítimas crianças e adolescentes, alguma ‘neura’ vai ter. Então, em casa a gente toma cuidado com panela de água quente, não mandamos uma criança com dez anos ir à padaria sozinha, enfim, tem muitas manias que adquirimos aqui e não temos como evitar. Além da atenção redobrada com a família, a delegada procura não falar de trabalho em casa, nem assistir a programas televisivos que não sejam light. Segundo ela, é preciso ter interesses por outros temas e praticar atividade física. “Senão a pessoa começa a viver o crime, a só falar de crime e isso contamina a vida dela”, diz. – Aqui, a gente percebe que ninguém morre antes da hora. Tem casos bem tristes, como a de uma criança que foi ao
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mercado comprar cândida a pedido da mãe e, no local, estava ocorrendo um assalto. Ele levou um tiro na cabeça. Então, se eu levar essas coisas para casa, eu não conseguiria atravessar a rua. Porque a probabilidade de acontecer comigo, tendo em conta o material que recebemos aqui, é altíssima. Mas, por outro lado, é alta porque a gente só trabalha com isso, a gente só vê isso. Então sinto que é preciso haver distanciamento destes assuntos quando saio daqui. *** Foi na época em que Cíntia estava na equipe do Campo Belo, na C-Sul, quando o casal Richthofen foi encontrado morto. A profissional foi responsável por toda a investigação e realizou os primeiros depoimentos da filha do casal, Suzane Von Richthofen (19 anos); de Daniel Cravinhos (21 anos), o namorado na época; e Christian Cravinhos (26 anos), irmão de Daniel. Na noite do crime, ocorrido em 2002, Manfred Albert Von Richthofen, de 49 anos, e Marísia Von Richthofen, de 50, foram mortos enquanto dormiam. O crime foi planejado dois meses antes e as armas do crime, duas barras de ferro com pedaços de madeira, foram construídas pelos irmãos Cravinhos. As vítimas foram atingidas com o artefato até a morte. Durante o crime, Christian atacou Marisia e introduziu uma toalha em sua boca. Depois, cobriu o rosto da mulher com um saco plástico e a sufocou. Manfred foi atingido por Daniel diversas vezes com um bastão e, logo depois, teve o rosto coberto com uma toalha. Um revólver calibre 38 foi colocado perto da mão do pai de Suzane para simular um roubo. – Os parentes que perdem alguém em casos de homicídio costumam ter reações diversas. Uns ficam chocados e choram muito. Já outros, não. A Suzane poderia ser da parte daqueles que ficam frios, sem emoção. E tem que separar o sem emoção no sentido de estado de choque... Mas Suzane não. Ela estava fria e ao mesmo tempo namorando, abraçando Daniel. Então 1
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ela não estava com cara de quem estava chorando a morte. A hipótese da profissional (sobre a “reação alheia” da filha do casal Richthofen) se confirmou quando, no dia seguinte, Cíntia retornou para a casa onde aconteceu o crime e Suzane estava lá com os amigos na piscina. “Aí comecei a perceber que as coisas estavam muito erradas.” O primeiro a confessar o crime foi Christian e, por último, Suzane, por ser a “mais gelada”. – Lembro que o Daniel passou mal na reconstituição do crime. O policial que a gente colocou para fazer o papel do pai de Suzane era muito parecido. Aí este rapaz estava deitado na cama e, bem na hora em que o Daniel ia fazer a simulação do golpe, o policial abriu os olhos e falou: “já acabou?”. Foi nesse momento que ele travou e deu trabalho para continuarmos a reprodução. Segundo a delegada, este foi um dos casos mais emblemáticos em que trabalhou. – É um caso que choca pela crueldade. Matar o pai e a mãe desta forma. Ela tinha um futuro promissor, era inteligente, mas agora está pagando pelo que fez. A sentença de Suzane e de Daniel é a mesma: 39 anos e seis meses de reclusão. Christian pegou 38 anos e seis meses de prisão. *** Da Zona Norte à Zona Sul, Cíntia trabalhou em diversas delegacias da capital paulista. Dependendo da região, “alguns distritos eram mais complicados que outros”, como ela define. Na época em que ela trabalhava no 73º distrito, no Jaçanã, ocorrências de tráfico e homicídio eram frequentes. – Alguns moradores atacavam as viaturas da Polícia Militar, tinha muito bêbado naquela região também. Sem contar as mulheres que estavam prestes a dar à luz e não tinham como ir ao hospital, aí elas (as gestantes) entravam correndo na delegacia e uma viatura tinha que levá-las. Lá não passávamos uma noite tranquila. Outro momento de tensão aconteceu no 45º distrito, na Vila Brasilândia. Durante um plantão, a delegada flagrou
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uma tentativa de fuga entre os presos, que estavam cavando um buraco dentro da cela. “Interditamos o local e fizemos todo aquele trabalho de revista. Quando voltei dois dias depois, no meu outro plantão, tinha acontecido uma mega rebelião e já tinham matado três presos à espetada!”, conta. Certa vez, atendendo uma ocorrência no local do crime pelo 47º DP, no Capão Redondo, Cíntia estava acompanhando a perícia de uma morte naquele bairro. “O cadáver ainda estava lá. Não muito longe dali, eu só ouvia uns barulhos: ‘pá! pá! pá!’. E a gente lá, naquela madrugada fantástica.” Já em algumas delegacias de bairro aconteciam coisas que, segundo ela, “só serviam para dar risada”. – Uma vez, um rapaz foi na delegacia reclamando de um vizinho que estava dando uma festa e fazendo muito barulho. Eu disse que não poderíamos fazer nada e, mesmo assim, ele continuou lá. Depois, ele confessou que ficou por ali porque não estava aguentando, na verdade, a mulher dele! Com os anos de experiência, Cíntia foi aprendendo os “macetes” para lidar com os presos. “Tem que trabalhar dentro da ética, sempre respeitando os detentos. Tem que tratar bem, mesmo que seja um condenado. Desta forma, você vai receber esse respeito de volta”, afirma a delegada, que nunca sofreu nenhuma ameaça ou desrespeito por parte dos detentos. – Ao entrar em uma cadeia, primeiro tem que pensar na higiene. Eu só ia com roupa bem lavável e bota, porque lá tem aqueles bichinhos que causam doenças. Então eu usava calça jeans não muito justa e camiseta folgada, sempre cobrindo o quadril. Dessa maneira, eu mostrava uma imagem profissional e tratando os presos no lugar deles, conforme devem ser tratados. Nunca ouvi nada, nunca mexeram comigo por ser a única mulher ali. É tudo uma questão de se adequar ao momento. *** A espiritualidade e a fé são grandes alicerces na vida de Cíntia, que dão a base necessária para encarar a difícil
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tarefa de consolar uma mãe que perdeu um filho e de se conformar com mortes que, a princípio, são inexplicáveis. – A doutrina espírita tem a lei de ação e reação, em que as coisas acontecem por alguma razão, o que dá certo conforto aos parentes das vítimas. Independentemente do que eu acredito, a religião é importante para todos. Vejo mães que perderam os seus filhos e observo que, aquelas que acreditam em Deus ou em uma força maior, são mais calmas e aceitam o que aconteceu com mais tranquilidade. Não se revoltam tanto. Cíntia ainda explica que a reencarnação (volta do espírito à vida terrena em outro corpo), que faz parte do espiritismo, ajudaria a justificar algumas mortes incompreensíveis, principalmente as relacionadas às crianças. – Isso dá uma baita ajuda para quem acredita. Não é algo fatalista. Afinal, ninguém vem ao mundo fazer besteira, temos aqui nossas oportunidades e fazemos nossas escolhas. *** A curiosidade sobre o trabalho da delegada é constante. Quando têm oportunidade, as pessoas perguntam sobre os casos que repercutiram nos jornais. – Quando estou em algum lugar, como em um mercado, e a pessoa me reconhece, ela começa a olhar. Depois que tem certeza que sou eu, me aborda e faz perguntas sobre o meu trabalho. E lógico que quem convive comigo acaba perguntando algumas coisas. É assim que funciona. Basta sair uma reportagem para aguçar a curiosidade. Mesmo se esforçando para se desvincular totalmente do trabalho enquanto está com a família e os amigos, ela não vê problemas em conversar sobre o assunto fora do ambiente profissional. Quando perguntam o que é necessário para se tornar um bom delegado, Cíntia sempre responde que é preciso ter curiosidade, ser observador e detalhista. Ela ainda afirma que é preciso saber liderar, pois o delegado é quem coordena todos os profissionais em um distrito.
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– Essas qualidades me ajudaram a ter algumas sacadas durante as perícias. No caso da Suzane, por exemplo, tinha uma jarra de água sem copo no quarto e eu cismei com isso. No final das contas, os criminosos usaram esta jarra para jogar água na cara das vítimas. A delegada ainda entrega mais um segredo de como mergulhar em um caso sem se envolver. “É preciso tratar o inquérito como um jogo de quebra-cabeças e montar as peças para, assim, chegar a uma dura e triste realidade que precisa ser documentada”, conclui.
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DO JURI À SENTENÇA
“O juiz não pode deixar de ser humano, mas deve ter parâmetros. Os meus são a lei e a certeza de que estou julgando uma conduta e não uma pessoa” Milena Dias – juíza de direito
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odos de pé”. A voz suave, porém imponente, ecoou pelo plenário. A juíza Milena Dias está preparada para anunciar a sentença de. Robson Muriel dos Santos, de 26 anos, acusado de assassinar a ex-mulher, Beatriz da Costa Silva, de 19, em outubro de 2011 na cidade de Santo André (SP). O réu confessou ter assassinado Beatriz com 12 facadas (10 delas na garganta) na presença do filho do casal que, na época, tinha apenas três anos. Levado a júri popular, Santos foi condenado por homicídio triplamente qualificado e sentenciado a 32 anos e oito meses de reclusão. “Após o trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados”, sentencia a juíza. Com 38 anos, Milena já está acostumada com a rotina dos intensos julgamentos criminais. A audiência do caso do homem que matou a ex-mulher durou sete horas, mas ela conta que os júris começam, em regra, às 13 horas e não têm hora para acabar. “Devido à complexidade de alguns casos e o número elevado de testemunhas, os julgamentos podem durar dias.” Com 13 anos de magistratura no currículo, sete são dedicados exclusivamente à área criminal. Como juíza substituta, Milena teve a oportunidade de passar por todas as varas, como civil, criminal e da família. – Não foi algo pensado, mas a carreira vai te conduzindo. Tive muito contato com o direito criminal, e percebi que além de gostar, eu tinha o perfil para atuar nesta área. Quando recebeu uma promoção para atuar como titular na cidade de Santo André, o contato com o direito criminal fez com que Milena optasse pela Vara de Execuções Criminais. Foi nesta comarca que seu trabalho ficou nacionalmente conhecido após presidir o julgamento de Lindemberg Alves Fernandes, conhecido por ter mantido em cárcere por 100 horas e assassinado a ex-namorada Eloá Cristina Pimentel, em 2008, na cidade de Santo André (SP). Com os holofotes voltados para ela, Milena, que aparenta
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ser muito tímida, teve que ter jogo de cintura para lidar com as constantes entrevistas. Além da seriedade, nítida em seu rosto, a juíza mostra ser uma mulher de poucas e comedidas palavras. *** Os plenários definem os horários de Milena, que diz não possuir rotina. “Tudo se resolve aqui, na hora do julgamento”, afirma. Em alguns dias, o trabalho da juíza pode chegar a oito, dez horas por dia. Segundo ela, tudo depende do que acontece durante as sessões, mas nem sempre foi assim. – Eu já levei muito trabalho para casa. Trabalhei em lugares em que eu não dava conta, então tinha que sacrificar o final de semana. Nesta vara tudo é diferente, pois não tenho um horário fixo. A juíza que, para muitos, parece durona e pulso firme durante os julgamentos, demonstra sensibilidade ao relatar suas experiências e a maneira como lida com a responsabilidade de aplicar as sentenças. – O juiz não pode deixar de ser humano, mas deve ter parâmetros. Os meus são a lei e a certeza de que estou julgando uma conduta, e não uma pessoa. Para Milena, este pensamento se torna um exercício diário: “não é uma coisa que você se acostuma”. A experiência ajuda apenas a realizar as atividades de forma mais rápida, no entanto, a preocupação é a mesma. – Penso que este é meu trabalho, que tenho que fazê-lo da melhor forma e não me envolver emocionalmente com o fato, para que eu possa ser o mais justa possível. Mas esta não é a única preocupação da juíza. A votação realizada na sala secreta pelos jurados é o que mais lhe deixa apreensiva. A profissional conta que muitos jurados chegam assustados ou contrariados. – A minha preocupação é que os jurados, que são pessoas leigas e sem formação técnica, entendam todo o processo. Tento ser o mais didática possível e transmitir calma e tranqui-
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lidade para que eles possam julgar de acordo com a convicção deles, sem interferência e pressão. A apreensão da juíza é válida, afinal, em júri popular, como o nome mesmo já indica, são sete cidadãos comuns que decidem se o réu deve ser condenado ou absolvido. – A decisão do júri sempre é respeitada, seja ela qual for. A partir da decisão tomada por eles é que eu aplico a pena ou dou a sentença de absorção. Ilana Casoy, escritora e especialista em criminologia, explica que, quanto mais punitiva e totalitarista uma sociedade, maior é a pressão no Tribunal do Júri. “As pessoas não percebem que defender a defesa do outro é defender a si mesmo. Hoje, os jurados são muito mais propensos a condenar alguém do que absolver, pois vivem numa sociedade em que existe o culto da punição.” A escritora também afirma que este não é um fenômeno que ocorre somente em casos que tiveram repercussão. “Quando os jurados sentam ali nas sete cadeiras, pode ser o caso mais desconhecido do mundo – eu vou a muitos júris de casos que não tiveram repercussão –, percebo que eles mantêm a mesma postura punitiva, devido ao pensamento vigente na nossa sociedade.” Dentro de todo o cuidado que a juíza tem com os jurados, ela diz que, no final, sempre há gratificação. – Fico feliz quando percebo que eles gostaram da experiência e que entenderam todo o processo. É gratificante quando uma pessoa simples agradece e diz que se surpreendeu positivamente. Ultimamente, a juíza diz ver um ataque generalizado ao poder judiciário nos jornais dizendo que “juízes ganham muito, trabalham pouco, são marajás”. Mas quando os jurados convivem de perto com eles, adquirem uma visão diferente, respeitam e confiam. *** Fora dos tribunais, Milena divide o tempo com a família, o marido e os filhos (um menino de oito anos e uma menina de três). Para ela, a dificuldade na criação das crian-
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ças é a mesma que todas as mulheres de qualquer profissão. – A gente sempre se sente culpada achando que não dá atenção suficiente e tenta compensar no final de semana. Por outro lado, quero que eles tenham um bom exemplo, em que a mãe sai de casa para trabalhar. Eu tive este exemplo e isso foi muito bom para mim. Milena conta que sempre deixa bem claro para os filhos que não trabalha apenas para que eles possam ter boas condições, mas porque isso a deixa feliz. “É isto que quero passar para eles. Trabalho é fonte de felicidade.” Em seu tempo livre, ela não se incomoda em falar sobre trabalho e, segundo a juíza, a profissão em que atua gera curiosidade nas pessoas. – Tem gente que fala que chega em casa e esquece de tudo, mas eu não sou assim. Até porque gosto de lembrar e trocar ideia com outras pessoas sobre processos. Leio a respeito e também gosto de ver filmes sobre isso. Não vejo como um fardo. É também uma fonte de prazer. O marido, que também atua na área, já está acostumado com os assuntos da rotina profissional de Milena. Segundo ela, quem tem mais curiosidade sobre a profissão quer saber se é uma atividade perigosa ou se a juíza sente medo. – Não tenho medo e nem acho que seja uma profissão perigosa. Acho que juiz não pode ter medo. É estressante, mas tudo que você se preocupa em fazer bem feito e se envolve gera estresse. Mesmo quando se trata do caso Lindemberg, a juíza diz que a curiosidade das pessoas não é tão grande quanto poderia ser. “Acho que todo mundo já tinha visto pela televisão, o pessoal estava sabendo melhor do que eu”, diz descontraída. – Acho engraçado que não me reconhecem muito na rua. Talvez seja porque no trabalho estamos vestidos formalmente e quando saímos colocamos tênis e camiseta. Aí as pessoas perguntam: “mas é você? Não parece”. Sobre a complexidade do julgamento de Lindemberg, a juíza afirma “ter sido como qualquer outro”. Ela diz estar
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acostumada a receber crimes tão graves quanto este. – A diferença é que nunca tinha feito um júri tão longo, como este que durou quatro dias. Senti dificuldade pela exaustão. Minha preocupação era que os jurados aguentassem e não se deixassem abater pelo cansaço. Assim como a população, em 2008, ano em que ocorreu o crime, a juíza também acompanhou o caso pela televisão. Neste mesmo ano, Milena ainda não trabalhava na vara criminal de Santo André e não imaginou que três anos depois o caso pudesse gerar tanta repercussão. O julgamento ocorreu entre os dias 13 e 16 de fevereiro de 2012. – Passava muito tempo aqui dentro do Fórum. Excepcionalmente, o julgamento começava às 10 horas e terminava entre 20 e 21 horas. Mas eu já estava aqui desde as 6 horas e só ia embora depois de todo mundo. Em julgamentos longos, os juízes precisam estar atentos a muitos detalhes: designar um local para que as testemunhas de acusação e defesa possam almoçar (não pode ser no mesmo lugar), definir em que hotel eles vão dormir e evitar que os jurados não encontrem quem vai testemunhar. – Eram tantas questões para resolver que eu não tive tempo e nem oportunidade de acompanhar o que estava acontecendo fora do plenário. De certa forma isto foi bom, assim consegui transmitir a tranquilidade necessária aos jurados. Milena também diz que passou pouco tempo em casa e que não teve problemas com a imprensa, que colaborou e seguiu as regras estipuladas por ela. “Difícil mesmo foi o clima tenso e o cansaço”, conta. Sobre a questão da influência da imprensa na decisão dos jurados, a juíza para, pensa por alguns momentos, e diz não ter uma opinião formada sobre o assunto. “Prefiro deixar essa questão para que os acadêmicos discutam.” Além disso, quanto aos jurados, ela acredita que fez seu papel preservando-os e que, no julgamento, eles não tinham noção da repercussão.
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– Se este caso, como dizem, foi um crime cometido pela imprensa, ele (Lindemberg) também se valeu dela naquele momento e talvez, a partir daí, tenha ocorrido tal repercussão. A juíza se refere à entrevista de 20 minutos que o criminoso deu por telefone à jornalista Sônia Abrão, da emissora Rede TV, enquanto mantinha a vítima em cárcere. – O que posso dizer é que o que aconteceu foi um fato grave. Ali na minha frente tinha uma pessoa presa há mais de três anos, ela merecia ser julgada. Não há nada pior para o ser humano do que essa sensação de indefinição. É desconfortável e ninguém gosta disso. A juíza diz que vários casos, além deste, lhe marcaram. Segundo ela, os que mais chocam são os crimes cometidos contra crianças. “Não gosto de fazer esse tipo de júri”, diz. A juíza diz ter percebido um aumento nos crimes praticados contra a mulher. – É marido que mata a mulher, namorado que mata a ex-namorada... Rapazes jovens que acabam não só com suas vidas, mas deixam famílias desestruturadas, crianças órfãs e pessoas traumatizadas. Uma curiosidade relatada pela juíza é que os dois criminosos citados por ela – Robson Muriel dos Santos e Lindemberg Alves Fernandes – possuem o mesmo perfil: ambos mataram mulheres por ciúmes (considerado motivo torpe e fútil). Por ironia do destino, os condenados eram amigos e moravam no mesmo prédio. Ambos também jogavam futebol no mesmo time de várzea. *** No dia 16 de fevereiro, por volta das 19h50, o Brasil voltou suas atenções para o Fórum de Santo André. Todos esperavam pelo anúncio da juíza, que voltava da sala secreta com os jurados. – Em face da decisão resultante da vontade soberana dos Senhores Jurados, julgo procedente a pretensão punitiva do Estado, para condenar Lindemberg Alves Fernandes. A pena de Lindemberg chamou a atenção da população. A
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juíza o sentenciou a 98 anos e dez meses de prisão pela morte de Eloá Pimentel e pelos outros 11 crimes pelos quais era acusado. Entre os delitos citados, ele foi considerado culpado pela tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe contra Nayara Rodrigues da Silva (amiga de Eloá que também foi mantida em cárcere junto com mais dois colegas da vítima), tentativa de homicídio perpetrado contra o policial Atos Valeriano e por cada disparo de arma de fogo. 1
*** A juíza não tem como fugir da responsabilidade de sentenciar, mas acredita que o encargo deste profissional vai além desta função. Além de trabalhar muito, estudar os processos e prestar atenção em todas as partes do julgamento, há algumas características que ela acredita serem essenciais. “Ter humildade, não achar que sabe tudo, tomar muito cuidado para não errar e ficar atento à sociedade e as necessidades que ela possui.” Como tem laços na região do ABC (SP), Milena diz que sua vontade sempre foi trabalhar como juíza titular em Santo André e que está muito feliz por ter alcançado esse objetivo. Apesar de estar realizada profissionalmente, Milena afirma possuir ideias e projetos futuros que envolvem a proximidade do juiz com a sociedade. Para ela, esta relação do judiciário com a população tem que ser mais estreita. Sobre o ofício, uma última declaração: “me vejo fazendo isso para sempre”.
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Informações retiradas do site do Tribinal de Justiça (www.tjsp.jus.br).
conclus達o
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este livro, retratamos o cotidiano de pessoas comuns, que se emocionam e sentem medo. Pessoas que diariamente lidam com crimes cruéis, na presença de assassinos e vítimas. Estes profissionais carregam a missão de investigar, julgar, condenar e de, principalmente, defender a vida e a liberdade do ser humano. Foram nestas profissões que concentramos nossas atenções e que com elas nos surpreendemos. Cada um dos personagens que escolhemos como protagonistas desta obra nos deixaram marcas de suas personalidades e contribuíram muito para que pudéssemos compreender o universo em que vivem. Apesar de lidarem com assuntos considerados “desagradáveis”, estes profissionais se mostraram extremamente competentes no trabalho e no desenrolar das histórias trágicas que têm contato. Durante as entrevistas conseguimos observar que os personagens citados em Bastidores do Crime são pessoas que possuem diferentes personalidades. Talvez por trabalharem na mesma área, ainda assim possuem características em comum. A dedicação quase exclusiva ao trabalho, por exemplo, mostra ser um ponto marcante entre eles. Em cada capítulo buscamos destacar a forma como os profissionais lidam com as situações críticas que o trabalho lhes oferece. A maturidade, muitas vezes confundida com frieza, é nítida em todos eles. Apesar de utilizarem diferentes metáforas, cada personagem deixou claro que encara os casos em que trabalham como um desafio, seja usando a expressão “jogo de xadrez”, “enredo de uma história” ou “quebra-cabeça”. Todas essas abordagens demonstraram que, de fato, é necessário manter distância da tristeza que cada tragédia carrega, o que permite-os agir de forma justa e profissional, sem deixar se contaminar pelas emoções. As visitas aos locais de trabalho dos personagens também nos permitiu conhecer de perto a rotina de cada um deles, assim como sentir a energia e a “dinâmica” que os ambientes possuem.
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O Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, por exemplo, chega a lembrar um enorme hospital público, com a inegável diferença de possuir corredores bem vazios. Em meio às inúmeras responsabilidades que esses profissionais carregam – que não são nada fáceis pelo fato de suas decisões interferirem na vida de outros seres humanos –, um desafio para todos eles é a desvinculação do trabalho da vida pessoal. Como relatamos em Bastidores do Crime, todos possuem uma vida ‘normal’, com família e filhos. Mesmo os que buscam esse distanciamento a todo custo, como é o caso da delegada Cíntia, não foi algo que se conquistou facilmente, mas sim uma atitude adotada por ela e que surtiu efeito conforme foi adquirindo experiência na profissão. Independentemente da profissão que escolhemos é possível se desvincular totalmente do trabalho nas horas livres? Provavelmente esta não é uma característica somente de profissionais que atuam na área do crime. O fato de lidarem com temas que nos chocam, ocorre a impressão de que eles precisam e devem se distanciar. Em meio aos tantos casos que repercutiram no país, os profissionais conseguiram se destacar, trabalhando com eficiência, sem perder a empatia, sensibilidade e compaixão (características naturais dos seres humanos). Ilana Casoy, escritora que também lida diariamente com histórias chocantes, diz que a desvinculação do trabalho é essencial. “Claro que nos desvinculamos, se não nenhum de nós sobreviveria. Isso é algo que se aprende, mas não quer dizer que há diminuição na sensibilidade do profissional”. Em Bastidores do Crime, procuramos responder dúvidas sobre os profissionais da área criminal, além de mostrar com detalhes como é fazer parte deste mundo. Na obra, escolhemos falar apenas sobre os homicídios, que em meio aos inúmeros crimes hediondos, é um dos mais cruéis. Acreditamos que, com esse tema, conseguimos ajudar a população a compreender a importância destas profissões dentro da sociedade, além de mostrar o papel que cada uma deles exerce.
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Até.que.ponto.os.profi.ssionais.que. lidam. com. crimes. e. criminosos. são.capazes.de.tolerar.a.pressão.da. sociedade?. Como. eles. conseguem. manter.o.equilíbrio.na.vida.pessoal,.diante.das.histórias.trágicas.que. presenciam. diariamente. no. trabalho? Essas.e.outras.questões.são.discutidas. em.Bastidores do Crime,.obra.que. reúne.o.perfi.l.de.profi.ssionais.que.se. tornaram.protagonistas.de.crimes.que. ganharam. repercussão. na. mídia.. Casos.como.nardoni,.richthofen.e.Maníaco. do. Parque. são. abordados. pelos. entrevistados.ao.longo.do.livro. neste.livrorreportagem.são.apresentados.cinco.profi.ssionais.essenciais.para. a.resolução.de.cada.etapa.de.um.crime:. psiquiatra. forense,. perito,. advogado,. delegado.e.juiz. Bastidores do Crime. apresenta. depoimentos.marcantes.de.quem.convive. com.este.universo.e.mostra.ainda.os.desafi.os.que.os.profi.ssionais.possuem.para. chegar. à. justiça. sem. que. se. envolvam. com.a.tristeza.das.situações.