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DANÇA REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
UFBA
Reitora: Dora Leal Rosa; Vice-reitor: Luiz Rogério Bastos Leal; Pró-reitor de Ensino de Pós-Graduação: Robert Evan Verhine; Pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação: Marcelo Embiruçu de Souza; Pró-reitora de Extensão: Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva. ISSN
Coordenação: Lúcia Matos Vice-coordenação: Gilsamara Moura Docentes: Permanentes: Adriana Bittencourt, Clélia Queiróz, Dulce Aquino, Fabiana Britto, Fátima Daltro, Gilsamara Moura, Isabelle Nogueira, Jussara Setenta, Leda Iannitelli, Lenira Rengel, Ludmila Pimentel e Lúcia Matos. Colaboradores: Daniela Amoroso, Helena Katz e Maíra Spanghero. Secretaria: Ana Lúcia Araújo, Diana Falcão e Rachel Provedel. Comitê Editorial da Revista Dança: Daniela Amoroso, Gilsamara Moura, Helena Katz, Jussara Setenta e Lúcia Matos Conselho Editorial: Andre Lepecki (Tisch School of the Arts Department of Performance Studies - New York UniversityUSA); Adriana Gehres (Instituto Piaget – Portugal); Adriana Bittencourt (PPGDança - UFBA); Christine Greiner (PUC-SP); Daniel Tércio (FMH Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Grupo Etnocoreologia e Estudos Culturais em Dança na Universidade Nova de Lisboa - Portugal); Frederic Pouillaude
(Centre Victor Basch - Université ParisSorbonne - França); Leda Iannitelli (PPGDança - UFBA), Margarita Tortajada Quiroz (CENIDI Danza - México); Oswaldo Marchionda (Universidad Nacional Experimental de las Artes – UNEARTE – Venezuela); Raul Parra (Universidad Distrital José Francisco Caldas - Colômbia); Roberta Ramos (PGAV-UFPE); Teresa Rocha (UFC); Valéria Figueiredo (UFG). Editora executiva: Lúcia Matos Editoras da edição n.1: Helena Katz e Lúcia Matos Capa: Gabriel Cayres Projeto Gráfico: Gabriel Cayres Revisão: Equipe da EDUFBA Normalização: Adriana Caxiado Editoração eletrônica: Gabriel Cayres Contato: Revista Dança UFBA – PPGDança Escola de Dança Av. Adhemar de Barros, s/n – PAF Ondina – Salvador Bahia – CEP 40.170-110 Tel. +55 (71) 3283-6572 www.ppgdanca.dan.ufba.br Email: revistadanca.ppgdanca@gmail.com Revista produzida com recursos oriundos do edital Pró-consolidar - Programa de Apoio a Consolidação de Programas/Cursos de Pós-graduação da UFBA, promovido pelas Pró-reitoria de Ensino de Pós-graduação e Pró-reitoria de Pesquisa, Criação e Inovação da Universidade Federal da Bahia.
DANÇA REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
UFBA Salvador ISSN
Dança, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-136, jul./dez. 2012.
Declaração de Direito Autoral A partir da submissão do artigo, resenha, pensata ou ensaio, entende-se como automática a cessão dos direitos autorais para a Revista, uma vez tendo sido aprovado e aceito para publicação.
Ficha Catalográfica: Fábio Andrade Gomes – CRB-5/1513 D173 Dança : Revista do Programa de Pós-Graduação em Dança / Programa de PósGraduação em Dança. Escola de Dança. Universidade Federal da Bahia. – V. 1, n. 1, (jul./dez. 2012- ). – Salvador: EDUFBA, 2012. Semestral 1. Dança - Periódicos. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em Dança. CDD: 793.3 CDU: 793.3
SUMÁRIO Apresentação 7
Artigos Por uma economia das generosidades Christine Greiner
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Dança: Escrita metafórica do corpo como linguagem que traz a memória traçada Lenira Peral Rengel e Patrícia Cruz Ferreira
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Descrição darwiniana elucida: mecanismos psicológicos e comportamento artístico Marcos Bragato
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O movimento como dispositivo de poder Edna Christine Silva
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A dança contemporânea no corpo diferenciado e a poética de Antonin Artaud Nara Salles e Felipe Henrique Monteiro Oliveira
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Corpo imaginado: sobre vivências e conceitos percebidos no processo de criação Danilo Silveira e Zeloi Martins dos Santos
71
‘Táticas’ nas margens do rio e nos interstícios da vida: Corpografias urbanas em Sena Madureira-AC Joana de Oliveira Dias
81
Fórum temático: “Pesquisa em Dança na Universidade” Pesquisa em dança: entre a circularidade viciada e o mapa de navegação Helena Katz
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Tradução A dança e a ausência da obra Frédéric Pouillaude - Tradução de Lívia Drummond
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Resenha Lago Vermelho: retrato de uma sociedade agonizante Carmen Paternostro
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Normas para publicação
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Apresentação Dominique Noguez começa seu livro Si la danse est une pensée (2012) dizendo que pouco importa se o primeiro bailarino foi um caçador feliz, um guerreiro vencedor ou um amante febril, porque o primeiro bailarino foi quem pisoteou o chão, de alegria ou de exaltação, e comunicou aos outros a necessidade desse “pisotear”. A Revista DANÇA nasce desse mesmo tipo de necessidade, atada ao fazer-comunicar que distingue uma contingência natural. Afinal, ela surge de uma iniciativa do primeiro Programa de Pós-graduação em Dança do Brasil, implantado 50 anos depois (2006) e na mesma Universidade que lançou, em 1956, o primeiro bacharelado em Dança do país, a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A existência de um programa de pós-graduação específico (stricto sensu) para a dança sinaliza um fato da maior importância, uma vez que é na instância da pós-graduação que a pesquisa acadêmica se expande. E quando isso ocorre, se faz indispensável um espaço específico de visibilidade para os que estão envolvidos na consolidação e desenvolvimento daquilo que a pesquisa produz: o conhecimento. DANÇA chega para cumprir esse papel. A estrutura do primeiro número da Revista fala por si mesma do propósito que a guia. É composta por sete artigos científicos, um fórum temático, uma tradução e uma resenha. Os artigos são o termômetro da produção acadêmica da área, o fórum atende à necessidade de convocar discussões sobre temas que mobilizam os pesquisadores, a tradução tem por objetivo conectar-nos com pares que vêm contribuindo de forma destacada no cenário internacional com a construção do pensamento sobre dança, e a resenha tem uma característica especial: a de nos permitir acompanhar a nossa produção bibliográfica ou artística. Os sete artigos abordam os seguintes temas: • Christine Greiner, em “Por uma economia das generosidades”, propõe a possibilidade de se pensar em uma ecologia dos saberes de uma dança marcada pela ausência de teorias gerais, e em uma economia das generosidades, que desafiaria o paradigma dominante da imunização que marca a cultura narcísica gerencial; • “Dança: escrita metafórica do corpo como linguagem que traz a memória traçada”, de Lenira Peral Rengel e Patrícia Cruz Ferreira, parte da afirmação de que o próprio corpo age pelo que é denominado de procedimento metafórico (RENGEL, 2007) e avança no estado da arte desta
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questão passando a incluir nela qualquer figura de linguagem, e não apenas as metáforas, destacando, dentre elas, a memória; • Marcos Bragato, em “Descrição darwiniana elucida: mecanismos psicológicos e comportamento artístico”, sustenta que os mecanismos psicológicos subjacentes a traços da personalidade artística, quando lidos em uma abordagem evolutiva darwiniana, podem acomodar os universais com as diferenças individuais de personalidade; • “O movimento como dispositivo de poder”, de Edna Christine Silva associa Laban e Foucault para tratar da situação de crianças e adolescentes nas escolas; • Nara Salles e Felipe Henrique Monteiro Oliveira, em “A dança contemporânea no corpo diferenciado e a poética de Antonin Artaud”, pontuam historicamente como o corpo diferenciado tem sido visto nas artes cênicas, articulando a sua situação nos processos de criação com o teatro artaudiano; • “Corpo Imaginado: sobre vivências e conceitos percebidos no processo de criação”, de Danilo Silveira e Zeloi Martins dos Santos, apoia-se nos escritos de António Damásio sobre imagens corpóreas para apresentar o processo de criação da obra Corpo imaginado (2011) e as percepções nele presentes; • A partir do entendimento de que a experiência do corpo no cotidiano da cidade se relaciona com a experiência corporal criativa, Joana de Oliveria Dias, em “‘Táticas’ nas margens do rio e nos interstícios da vida: corpografias urbanas em Sena Madureira-AC”, trata corpografias e paisagens sonoras urbanas nas imediações do Rio Iaco, na cidade de Sena Madureira-Acre como práticas culturais que expressam a dialética entre corpo e cidade; O fórum, iniciado com o texto “Pesquisa em Dança: entre a circularidade viciada e o mapa de navegação”, de Helena Katz, propõe que o presente contexto da regulação que as Leis de Incentivo à Cultura promovem sobre a produção artística deve ser levado em conta para o entendimento da atual situação da dança na Universidade brasileira e da relação entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa artística.
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A tradução do texto de Frédéric Pouillaude, “La danse et la absence d’œuvre/A dança e a ausência da obra” – inédito, tanto em francês, sua língua original, como em português –, nos permite acompanhar uma discussão filosófica sobre o modo como a dança foi tratada por filósofos como Nietzsche, Paul Valéry, Erwin Straus e Alain Badiou. A sua leitura nos permite avançar nos modos de lidar com as implicações daquela insistente pergunta, “o que é dança?”. Carmen Paternostro, na resenha “Lago Vermelho: retrato de uma sociedade agonizante”, sobre o espetáculo Swan Lake que Idan Cohen apresentou em 18 e 19 de abril de 2012, no Festival Internacional VIVADANÇA-2012, em Salvador, inclui as ideias que o coreógrafo e dançarino israelense revelou no seu contato com alunos do módulo Estudos Críticos e Analíticos, do terceiro semestre da Escola de Dança da UFBA. DANÇA almeja ser “a irupção do repetível, no vivo da vida”1 (NOGUEZ, 2012, p. 11), isto é, iniciar, com este seu primeiro número,
1 NOGUEZ. Dominique. Si la dance est une pensée. Paris: Éditions du Sandre, 2012.
uma cadeia de continuidade, em sintonia com o que se transforma, com o “vivo da vida”. Uma tarefa que se realiza somente no coletivo, buscando “fazer do pensamento um laboratório do comum”, como disse Judith Revel2 na introdução do livro Antonio Negri: Inventer le commun des hommes (2010). Foi lá que também sublinhou que, para ser um laboratório crítico, uma revista necessita ser flexível e eficaz na formulação de suas razoabi-
2 REVEL, Judith. Faire de la pensée un laboratoire du comum. In: NEGRI, Antonio. Inventer le commun des hommes. Montrouge: Bayard Éditions, 2010. p.7-16.
lidades, nos seus ensaios de novos conceitos, nas hipóteses novas que serão nela arriscadas. DANÇA começa como uma cartografia do presente, mirando ser uma cartografia dos possíveis, pois, como nos ensinou Aristóteles na sua Metafísica, o que é real, é, em todo caso, possível.
Helena Katz e Lúcia Matos Editoras desta edição
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ARTIGOS
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Por uma economia das generosidades Resumo Nos últimos cinco anos, tive a oportunidade de viajar pelo Brasil para dar palestras e pequenos cursos, conhecendo cidades das quais nunca sequer havia ouvido falar. Além disso, durante duas edições seguidas (2010 e 2012) fiz parte da comissão de seleção do Rumos Dança do Instituto Itaú Cultural, que costuma receber projetos (acompanhados de DVD) de todas as regiões do país; e da comissão referente ao edital de Fomento à Dança da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Essas experiências me mobilizaram a compartilhar algumas questões que têm me feito refletir sobre a pesquisa de criação em Dança, dentro e fora de São Paulo (a cidade onde vivo e trabalho) e a possibilidade de se pensar em uma ecologia dos saberes da dança, marcada pela ausência de teorias gerais e por uma economia das generosidades que desafiaria o paradigma dominante da imunização que marca a cultura narcísica gerencial.
Christine Greiner é professora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP. Ensina no Curso de Comunicação das Artes do Corpo e no Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica, onde coordena o Centro de Estudos Orientais. É autora dos livros O Corpo, pistas para estudos indisciplinares (2005) e O corpo em crise (2010), além de outros livros e ensaios sobre estudos do corpomídia, biopolítica e cultura japonesa. E-mail:christinegreiner3@gmail.com
Palavras-chave: Dança; Ecologia dos saberes; Imunização.
Toward an economy of generosities Abstract Over the past five years, I have been working all over Brazil, by giving conferences and short courses. In 2010 and 2012, I was jury of the “Rumos Dança Itaú Cultural” and of the “Fomento à Dança da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo”. Therefore, I had the opportunity to analyze projects and DVDs from different regions of the country. After these experiences, I would like to share some questions that made me think on dance research and creative process, in order to test the possibility of an ecology of dancing knowledge without any general theory. I propose an economy of generosities that challenge the immunization paradigm, which has been defining a narcissist and gerential culture. Key-words: Dance; Ecology of knowledge; Immunization.
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Introdução Não é nenhuma novidade constatar a extensão territorial do Brasil e suas diversidades. Mas nem sempre é evidente, a necessidade de escapar de toda e qualquer hegemonia que ameace padronizar os modos como a dança pode ser pesquisada, assim como as teorias gerais – aquelas que serviriam para todo e qualquer contexto e experiência. Por isso tenho me perguntado como poderíamos criar uma ecologia de saberes – da maneira como propõe o professor da Universidade Coimbra Boaventura de Souza Santos – para que as experiências de dança sejam estudadas a partir dos diferentes contextos com as suas próprias particularidades. Com isso, não estou propondo a identificação de diferentes matrizes, origens ou essências regionais, nem tampouco a noção de paradigma proposta por Thomas Kuhn nos anos 1960, que dizia respeito a um certo modo fundamental de entender a ciência e que poderia sugerir “um modo fundamental de entender a dança”. Em uma palestra que virou texto publicado nos Anais do II Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA), comecei a falar um pouco sobre este tema das epistemologias locais e citei a definição de paradigma proposta por Giorgio Agamben (2008). Este filósofo redefiniu o termo, inicialmente conceituado por Kuhn, como “singularidades que reincidem”, ou seja, singularidades que costumam emergir cada vez que se constituem familiaridades cognitivas. Além destas singularidades não estarem apartadas dos ambientes onde atuam, é importante notar que elas se constituem a partir deles. Para entender melhor esse modo de pensar, ajuda adotar novos vocábulos como redes, cartografias e sistemas abertos. Isso porque, quando descrevemos ambientes com estes termos, sinalizamos que eles nunca estão prontos e dados a priori, pois emergem de situações específicas e são norteados por uma lógica de acontecimentos e não pelos fatos considerados oficiais ou “típicos” daquele local. Se na palestra de abertura da ANDA foquei na questão da história a partir de suas espacialidades, agora opto por buscar a especificidade dos métodos que reinventam as teorias. O método sempre emerge de uma prática. Por isso não é propriamente uma aplicação ou sistematização de uma teoria já constituída (e aparentemente pronta). Ele é prático como exercício do pensamento e acionado não apenas pelas ações do cérebro, mas no trânsito destes acionamentos com as nossas ações no mundo. Isso nada mais é do que o
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modo como o pensamento se constitui, sempre a partir do movimento e em trânsito com o ambiente. É importante observar que o método tem sempre uma inabilidade para separar ele mesmo, do contexto onde está, então todo tipo de escolha que fazemos sempre envolve uma tradução, uma estratégia adaptativa que implica na singularidade dos vínculos que criamos com o onde estamos/onde nos formamos. Como aponta o próprio Agamben (2009), em sintonia com outros autores que questionaram tudo aquilo que costuma ser chamado de origem ou raiz, nós nos constituímos no processo de sujeição aos dispositivos de poder aos quais estamos expostos. Eles podem ser de ordem institucional (academia, clinica, prisão), psicológica (memória, traumas), afetiva (na relação com o outro) e assim por diante. Neste contexto, as molduras teóricas e a linguagem também são dispositivos de poder que norteiam de modo significativo os sistemas de pensamento, por isso não devem ser usadas de modo aleatório ou automático. “Somente o pensamento que não oculta o que não é dito, mas usa isso para se elaborar, é que pode clamar por sua originalidade”. (AGAMBEN, 2009, p. 8) Assim, é possível incluir a singularidade como traço constituinte do pensamento sem banalizar ou neutralizar o que é diferente. Lidar com a precariedade, com a descontinuidade, com a falta de palavras que às vezes nos acomete, com os movimentos pouco visíveis e com as narrativas inconscientes que fazem parte deste processo. É preciso ainda tomar cuidado com alguns termos que aparecem com frequência na escrita de uma pesquisa como: problematização, objeto, formação discursiva, conhecimento, aparato, contexto e conceito. A partir de exercícios epistemológicos e empíricos que marcaram a segunda metade do século XX, matrizes, categorias e fronteiras disciplinares tornaram-se cada vez mais frágeis. Enquadrar as questões de um artista nos termos padrões nem sempre é possível. O mesmo se dá com outros fazeres, como a própria filosofia, cada vez mais atravessada por outros saberes (científicos, artísticos, políticos etc.). Uma boa parte dessas discussões surgiu por conta das discussões políticas, das redefinições de história, dos estudos da relação corpo-mente e da ênfase nas dificuldades de lidar com a alteridade em diversos níveis. A episteme ou paradigma não define apenas o que é conhecido em um dado período, mas chama a atenção para o que está implícito no fato de que um dado discurso ou imagem epistemológica existe, mas nem
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sempre tem visibilidade. Ou seja, não é só o que está estabilizado e já é reconhecido e visível, mas junto com tudo isso, o que não é dito ou visto ou sequer percebido. A episteme seria então um conjunto de relações que unem em um dado período as práticas discursivas que fazem emergir as imagens e seus sistemas em formação. Assim, para desenvolver uma pesquisa em dança tem se tornado cada vez mais importante reconhecer o diagrama dos mecanismos de poder e os modos como podem ser representados. Eles muitas vezes reincidem, uma vez que a história dos acontecimentos e das experiências não é sequencial e determinista (no sentido de que o que vem antes determina o que vem depois). É como se, argumentando de outra maneira, fosse importante perceber que operador que mobiliza cada pesquisa (as principais inquietações), para a partir daí construir uma rede de visibilidades expondo as principais conexões e desdobramentos. Em termos de estudos da dança, o que muda é que ao entender melhor como funciona a nossa relação com o ambiente através de habilidades como percepção, memória, consciência e imitação, percebemos que nem todos os métodos e formulações continuam fazendo sentido. Como não há nada pronto (nem o sujeito, nem a cultura, nem a história, nenhuma essência, nem identidade), as técnicas de dança e as coreografias, assim como as teorias, são reinventadas a cada vez que se implementam. A noção de continuidade e permanência de parâmetros da história sempre esteve ligada à soberania do sujeito. O sujeito que controla que é aquele que sabe. Por isso, a descontinuidade anônima do saber permaneceu excluída do discurso e rejeitada como impensável. Pagamos um preço alto por isso e o seu reconhecimento recente pede por novas formulações e metodologias. Na redefinição de paradigma, proposta por Agamben, não se trata de uma transferência metafórica de significados dados e sim de uma lógica analógica de exemplos. Do ponto de vista cognitivo, a ideia de que tudo se processa por metáforas e analogias, parece fazer mais sentido para entender como se constitui o conhecimento, movendo-se de singularidade para singularidade. O foco passa a ser a articulação das redes teóricas e as condições de possibilidade que despontam. Nada disso me parece contraditório em relação à hipótese da ecologia de saberes de Boaventura de Souza Santos e Menezes (2010). Segundo esse autor, existe um mal estar nas fraturas dos processos cognitivos que indaga quem somos em espaços específicos, atestando uma desconfiança do mundo globalizado. Temos uma participação neste mundo glo-
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balizado que por vezes parece subordinada a este geral fictício, dramatizando as diferenças e bloqueando a criação de cumplicidades. De acordo com este autor, esta é uma característica reincidente entre povos que foram colonizados que sempre sofrem um déficit de representação em nome próprio. Parecemos viver a contingência de viver a nossa experiência sempre no reverso da experiência dos outros. Se essa contingência for vivida como uma espécie de vigilância epistemológica, acaba impossibilitando a elaboração de uma teoria crítica. É difícil evitar o tempo da repetição, que é o que permite ao presente alastrar-se ao passado e ao futuro canibalizando-os. O problema mais grave deste tipo de atitude é que algumas vezes repetimos esse jogo de poder com aqueles que, supostamente, deveriam ser nossos pares e a operação presa-predador deixa de ser o modelo entre colonizadores e colonizados, sendo internalizada entre os próprios colonizados que inauguram disputas sucessivas entre si. Autores como Homi Bhabha (2003) identificam os modos como foram criados vários nomes de movimentos em sentido ao futuro como revolução, progresso, evolução, mas parece que o desfecho das lutas nunca é pré-determinado. Então toda a dificuldade para pensar transformação social e elucidação reside no colapso de teorias da história que nos trouxeram até aqui. Uma série de pressupostos foi erodida e não tem mais credibilidade. Infelizmente, a incapacitação do futuro não assegura a capacitação do passado. É por isso que não faz sentido pensar na transformação e na emancipação sem reinventar o passado.
O risco da imunização No que cessam as batalhas físicas irrompem as guerras metafóricas. Peter Sloterdijk (2012)
Quando buscamos construir uma ecologia de saberes, um risco iminente é o dos processos de imunização aos quais ficamos predispostos, quase sempre sem ter consciência deles. Na filosofia política, os paradigmas da imunização e a noção de redes autônomas têm sido amplamente usados para construir um pensamento crítico. Para entender um pouco mais sobre a importância das metáforas da imunização na política, a pesquisa de Roberto Esposito (2010) tem sido fundamental, uma vez que este autor relaciona a tendência à imunidade
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com a formação (e o impedimento da formação) de comunidades. Esposito indaga se a relação imunidade-comunidade é de justaposição ou de contraste ou ainda se esta relação não é parte de um movimento maior em que cada termo é inscrito reciprocamente na lógica do outro. Segundo este autor, a relação de imunidade com a identidade individual emerge quando a imunidade conota o significado pelo qual o indivíduo é defendido dos efeitos expropriativos da comunidade, protegendo aquele que tem a possibilidade de se defender do risco do contato com o outro. O risco a que Esposito se refere é o risco da perda de identidade, como já havia sido discutido por cientistas como Francisco Varela e outros no âmbito da neurofilosofia. (GREINER, 2005) Em termos políticos, a imunidade pressupõe a comunidade mas também a nega. Isso porque, para sobreviver, toda comunidade é forçada a introjetar a negatividade da sua própria oposição que, por sua vez, permanece como o modo contrastante de ser da própria comunidade. É na introjeção da imunidade, diz Esposito, que se forma a base da biopolítica moderna. O sujeito moderno que goza de direitos políticos e civis representa, ele mesmo, uma tentativa de obter imunidade a partir do contágio da possibilidade de se formar a comunidade. Esta tentativa de imunizar o indivíduo daquilo que é comum, termina por colocar em risco a própria comunidade, ao mesmo tempo, como uma virada imunizada sobre si mesmo e seu elemento constituinte. Esta é apenas uma, entre tantas outras ambivalências, que permeiam a discussão ontológica e epistemológica da identidade, da subjetividade e do reconhecimento sistêmico do si-mesmo. O poder soberano, tão discutido por Agamben na sua trilogia sobre o homo sacer, imunizaria a comunidade do seu próprio excesso, como se nota no desejo de adquirir bens do outro, assim como, em toda a violência implicada nesta relação. Isso porque, segundo Esposito, a imunidade que está na linguagem político-jurídica alude a uma isenção temporária ou definitiva do sujeito em relação a obrigações concretas ou responsabilidades que dentro de circunstâncias normais vinculariam um sujeito aos outros. Ao invés de justapor ou impor uma forma externa que sujeita um ao domínio do outro, o paradigma de imunização (bios e nomos, vida e política) emerge como dois elementos constituintes de um mesmo todo indivisível que assume significados a partir das suas inter-relações. Não se trata apenas de juntar vida e poder. A imunidade é o poder de preservar a vida. E não existe poder externo à vida, assim como a vida nunca está fora das relações de poder.
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De acordo com Espósito, a noção de imunidade está na intersecção biologia e política, ligando vida e lei. Imunidade alude na linguagem jurídico-política à dispensa da parte do sujeito para olhar obrigações concretas ou responsabilidades que em circunstancias normais ligam uma à outra. Alguns termos políticos são derivações da biologia como organismo e constituição. A imunidade é o poder de preservar a vida. A política é o instrumento para manter a vida viva: in vita la vita. Assim, a categoria da imunização abre duas declinações para o paradigma político: um afirmativo e outro letal. O poder tanto nega como aguça o desenvolvimento da vida. Neste contexto, discute-se politicamente a metáfora da prática de vacinação introduzindo algo em relação ao qual se quer que o corpo político se proteja. Thomas Hobbes (1588-1679) foi o precursor dessa discussão ao elucidar que o poder soberano sempre age para proteger e imunizar a comunidade. Desde então, a semântica imunitária tem sido o centro da autorrepresentação moderna. A etimologia do termo immunitas é o negativo da forma privada de communitas. Se communitas implica um vinculo entre os seus membros, uma obrigação de doação recíproca, immunitas é uma condição que dispensa esta obrigação e exonera o ônus da relação. A imunidade neste sentido recupera o que foi arriscado pelo comum. Mas se a imunização implica na substituição ou em uma oposição entre o privado e uma forma de organização comunitária; a conexão com os processos de modernização torna-se muito clara. Espósito não afirma que a modernidade só pode ser entendida pelo paradigma da imunização ou que a imunização só se aplica à modernidade. Mas os três modelos fundamentais do pensamento moderno (racionalização, secularização e legitimação), podem ser explicados a partir daí, incluindo ainda a noção de contaminação. Aquele que está imune, não tem nada em comum. Os paradigmas da racionalização, da secularização e da legitimação pressupõem uma certa maneira de alteridade (a ilusão, o divino, a transcendência). A secularização é o processo através do qual a religião deixa de ser um aspecto de agregação cultural. Há muitas ambivalências. Espósito chega a dizer que imunização é um mecanismo interno (como uma engrenagem) e, ao mesmo tempo, a fronteira que algumas vezes separa a comunidade dela mesma, protegendo-a de um excesso intolerante.
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O que tudo isso tem a ver com a dança Construir uma ecologia de saberes para dança no Brasil, implica em reconhecer as singularidades locais (questões, inquietações, formações, e assim por diante). Além disso, é importante focar nas reinvenções dos padrões que emergem dos processos de implementação (de ideias, movimentos, treinamentos) e no enfrentamento das tensões entre imunidade e comunidade. Durante a participação em bancas de editais e teses, os sintomas que envolvem o processo de descoberta de tudo isso são claros. Institui-se um jogo (quase sempre não deliberado) que visa a aprovação dos projetos, seguindo padrões e modelos que muitas vezes sacrificam o próprio projeto. Ou seja, para adequá-lo a regras (nem sempre deliberadas), o artista busca em primeiro lugar atender às expectativas de uma comissão que ele ainda não sabe qual será. Para tanto, nem sempre consegue efetivamente se colocar no texto que escreve. A comissão, por sua vez, muitas vezes, é integrada por artistas premiados em outras edições que, ao se encontrarem no papel de júri (e não mais de avaliados), lidam com as regras de avaliação de forma surpreendentemente radical. Cria-se o que Primo Levi identificava como zona cinzenta, ou seja, uma zona de indistinção entre amigos e inimigos. Nesta situação, a operação de imunização entre os concorrentes torna-se cada vez mais explícita. É absolutamente prioritário administrar as próprias necessidades. Essa é a regra que vale acima de todas as outras. Este pensamento gerencial das “próprias necessidades” ocupa um lugar bastante significativo promovendo uma obstrução no que poderia ser a reflexão de uma política cultural mais ampla e menos imunizada. O problema é que nesta rede, estamos todos implicados: os que concorrem, os que julgam, os que ganham e os que perdem. Construir conhecimento envolve tempo. Se há suporte financeiro, a pesquisa tem condições de ser desenvolvida. Se não há, o único modo de seguir é resistindo, resolvendo todas as etapas da forma que o cotidiano permite. Isso tem acometido a todos que trabalham com produção e criação, seja na forma de coreografias, concepção de treinamentos, análise de obras, inserção no mercado ou discussões epistemológicas. Não vejo nenhuma possibilidade de solução isenta, com tendências gerais ou imparciais. E para lidar com o viés político (e inevitável) da situação, será preciso enfrentar um fenômeno que sempre esteve presente na lógica tradicional (e importada do norte) dos procedimentos de pesquisa e criação: o narcisismo.
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Não sem motivos, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2010) tem discutido a possibilidade de um método antinarciso que teria como mote pensar antes no coletivo, desafiando a dualidade sujeito-objeto que vê no outro sempre um objeto (de estudo, de avaliação, de submissão, de autoafirmação). Viveiros de Castro detectou aí um ponto de inflexão a ser trabalhado por todos nós. Quando nos sentimos todos desqualificados e sem recursos, não é nada evidente privilegiar a comunidade, mas talvez seja a nossa única saída. Infelizmente, também neste caso, não há como propor procedimentos gerais ou critérios universais de valoração e comportamento. O filósofo alemão Peter Sloterdijk menciona uma “economia das generosidades”. Este termo me intrigou porque constitui-se como um dispositivo de poder que guarda uma ambivalência perturbadora. Isso porque, ao invés de voltar-se para dentro e alimentar apenas a si mesmo, oikos (casa), abre-se para a vida com a especificidade “das generosidades”. Seria possível prever uma nova modalidade de economia cuja matéria a ser distribuída e gerenciada teria no capital afetivo a sua fonte de riqueza?
Referências AGAMBEN, Giorgio. The signature of all things. New York: Zone Books, 2008. AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metaphysique cannibales, lignes d’ anthropologie poststructurale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009. ESPÓSITO, Roberto. Communitas, the origini and destiny of community. Stanford: Stanford University Press, 2010. GREINER, Christine. O corpo em crise, novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010. GREINER, Christine. O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SLOTERDIJK, Peter. A ira e o tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
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Dança: escrita metafórica do corpo como linguagem que traz a memória traçada Resumo Corpos (dançarino e espectador) na experiência da dança compõem uma escrita metafórica que presentifica a memória, sempre com a linguagem da dinâmica (Prigogine, 2011), um devir da memória. A partir de Lakoff e Johnson (1999) que demonstram a metáfora como embodied, surgiu a compreensão de que o próprio corpo age pelo que é denominado de procedimento metafórico. (RENGEL, 2007) Essa escrita metafórica compreende a memória como parte sua. É traçada pelo sistema de mapeamento cerebral do corpo (DAMÁSIO, 2011) e cria compreensões acerca da relação dança e linguagem e dança como linguagem. Com referência nas argumentações de Ruthrof (2000) de corpo na linguagem e a linguagem verbal como “parasita” desta linguagem podemos assim pensar um avanço no estado da arte da questão ao propor que toda e qualquer figura de linguagem, e não apenas as metáforas, emergem do procedimento metafórico do corpo. Essas figuras de linguagem abrangem a memória e são a própria escrita metafórica do corpo na dança.
Lenira Peral Rengel
Palavras-chave: Dança; Memória; Procedimento metafórico; Figuras de linguagem.
Licenciatura em Letras/ Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira – FUNCESI e Licenciatura e Bacharelado em Dança pela Universidade Federal de Viçosa – UFV. Mestranda do PPGDança – UFBA (2012). Bolsista FAPESB. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Corponectivos em Dança, E-mail: patycross8@ig.com.br.
Dance: metaphorical writing of the body as language that brings the memory traced
Professora Doutora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Dança da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Artes/Dança UNICAMP. Doutora em Comunicação e Semiótica PUC/SP. Coordenadora acadêmica da Pró-Reitoria de Extensão. Coordenadora do comitê Dança em Mediações Educacionais da Associação Nacional dos Pesquisadores em Dança-ANDA. E-mail: lenira@rengel.com.br.
Patrícia Cruz Ferreira
Abstract Bodies (dancer and spectator) in the experience of dance compose texts that presentified, always with the language of dynamics (Prigogine, 2011), a becoming of the memory. From Lakoff and Johnson (1999) that demonstrate the metaphor as embodied, came the realization that the own body acts for what is called metaphorical procedure (RENGEL, 2007). This metaphorical writing includes memory as its part. It is drawn by the body brain mapping system (DAMÁSIO, 2011) and creates understandings about the relationship between dance and language and dance as language. With references in the arguments of Ruthrof (2000) of body in language and verbal language as “parasite” of that language we can think one a breakthrough in the state of the art of the matter by proposing that any figure of speech, not just metaphors, emerge from this body metaphorical procedure. These figures of language embrace the memory and they are the very metaphorical writing of body in the dance. KEYWORDS: Dance; memory; metaphorical procedure; figures of language.
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Introdução Como destaque para os entendimentos e usos de linguagem, que neste artigo se propõem pensar, selecionamos duas compreensões: a primeira trata de linguagem (em grifo) e está relacionada a qualquer manifestação de linguagem, seja em sua forma verbal ou não verbal (texto, fala, dança, pintura, música), estendendo-se, ainda, para a linguagem não humana (linguagens dos pássaros, por exemplo) e de todo e qualquer “objeto biológico”. (DAWKINS, 2001) A arquitetura de um prédio, a cidade, uma praça, uma cabana, o cenário e o figurino de uma dança evidenciam modos de linguagem e denotam a presença humana. Por isso, a partir de Richard Dawkins, os consideramos “objetos biológicos”. Como segunda compreensão temos linguagem (sem grifo) e se refere a sua forma verbal. A noção que apresentamos é a que a escrita metafórica do corpo na dança é uma operação que envolve a linguagem verbal e a linguagem não verbal e muitas outras linguagens (gestos, sensações, emoções, movimentos). Dessa forma, não é nosso objetivo estabelecer uma relação inter ou transdisciplinar ou comparativa entre dança, linguagem e linguagem, mas buscar compreensões sobre as mesmas lá de onde emergiram, naquilo do qual emergiram: o corpo, ou seja, o corpo em movimento.
Dançarino e espectador: memórias em devir Dançarino e espectador: ambos são receptores ativos e concomitantemente criadores de uma escrita metafórica do corpo na dança, por meio de leituras verbais e não verbais do mundo em um movimento constante da memória. Katz (2003), ao falar de um receptor, que neste caso é o espectador da Arte Contemporânea, chama a atenção ao fato de que não há olhar inocente daquilo que percebe, tampouco o receptor é um sujeito passivo. Nessa ação metafórica conjunta não há mais espaço para a visão do corpo passivo, em especial para a ideia do espectador passivo. O espectador também age, como o aluno ou o cientista. Observa, seleciona, compara interpreta. Liga o que vê com muitas outras coisas que viu noutros espaços cénicos e noutro gênero de lugares. Compõe o seu próprio poema com os elementos do poema que tem à sua frente. Uma espectadora participa na performance refazendo-a à sua maneira, por exemplo, afastando-se da energia vital que esta supostamente deve transmitir para dela fazer uma pura imagem e associar
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essa imagem pura a uma história que leu ou que sonhou, que viveu ou que inventou. (RANCIÈRE, 2010, p. 23)
Ao explorar o universo da dança, corpo(s) (dançarino e espectador) se cooperam: informações-estímulos como sensações, imagens, sons, cheiros, texturas, temperatura, palavras, entre outros, através dos sentidos (tato, audição, visão, paladar, olfato) – signos não verbais e verbais entram em ação em uma relação intersemiótica. (RUTHROF, 2000) Ao considerar que tal relação é a interação entre diferentes ou semelhantes sistemas de signos, e é realizada por meio do que Rengel (2007) denomina de procedimento metafórico do corpo, o artigo propõe que uma comunicação significativa e a possibilidade de uma escrita metafórica do corpo, que presentifique a memória na experiência da dança, se tornam possíveis. Prigogine (1996) afirma que não há como negar o elemento de criatividade na projeção do tempo. Esta é a linguagem da dinâmica, o tempo da experiência do corpo na dança incluindo nele a novidade, a transmutação e reorganização das informações. Ao nos referenciarmos na reflexão de Prigogine (2011, p. 19) de que “não podemos conceber nem a vida nem conceber o pensamento se descartarmos o devir”, a memória, como parte da vida e do pensamento, só pode ser concebida como devir. Damásio (2011) ao tratar da interação entre o corpo e objetos (lugares, pessoas, palavras, movimentos, movimentos da dança etc.) ensina sobre a capacidade do cérebro de fazer registros de entidades, ou seja, memorizar. O cérebro aprende informações dessa interação como a aparência dos objetos ou as consequências sensitivas e motoras do corpo (gerando imagens perceptuais em diferentes domínios sensoriais), preservando-as (armazenando os padrões dessas imagens em algum lugar e de algum modo) e evocando-as (recuperando os padrões) em situações futuras: os registros da memória deste objeto. Dessa forma, visões, cheiros, sensações táteis, sons, entre outros tipos de percepções corporais ocorridas durante esse tipo de interação – leituras não verbais e verbais do mundo – poderão ser evocados quando da lembrança de um evento experienciado, variando conforme as circunstâncias e o valor do objeto. Importante pensarmos que na escrita da dança tais noções de evocar, recuperar em situações futuras traz uma temporalidade não dada de antemão. Ou seja, um passo, um movimento, e/ou um gesto não é o mesmo do passado, no presente e no futuro. Ter em um presente a memória de uma dança, embora seja um sistema com alta taxa de estabilidade, é saber que é fluxo, que há degeneração (EDELMAN; TONONI, 2000) no
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sentido em que há “ruídos” tanto para se repetir ou se suprimir, sejam passos, sequências, coreografias. O fato de argumentarmos sobre a escrita do corpo na dança como ações de memória em devir, denega o tempo no qual a realização do objeto que se propõe a estudar/observar/descrever (neste caso, a dança) é compreendido como “tempo espacializado”. (PRIGOGINE, 2011) Essa metáfora nos aponta um grave equívoco ao associarmos tempo-espaço em simetria temporal entre passado, presente e futuro. O problema dessa forma de entendimento é que, ainda, não somente a dança, mas os fatos do mundo são descritos e disseminados como ocorrências determinadas e reversíveis em um grande espaço, esse mundo, que tem um tempo imutável. Mesmo que tenhamos uma experiência com o tempo, como a vida e a morte, como o começo e o final de um espetáculo, por exemplo, insistimos em manter a noção de repetição de eventos; de resgate da memória; de recontagem de compassos em dança; de voltar atrás no tempo. Há uma direção temporal em que os eventos acontecem – o tempo da realização cênica - mas é uma direção evolutiva (no sentido darwiniano, ou seja, evolução é igual à transformação).
Mapeamentos do corpo e significado Conforme Damásio (2011) o processo de mapeamento do corpo pelo cérebro (que é corpo – devemos dizer) abrange não somente o seu meio interno (órgãos internos, sistema de músculos esqueléticos), mas, sobretudo os mecanismos da percepção localizados nos olhos, nos ouvidos, nas mucosas do olfato e do paladar e na superfície da pele. Assim, as informações do mundo afetam esses mecanismos especiais da percepção e irradiam no cérebro. Em razão desse curioso esquema, a representação do mundo externo só pode entrar no cérebro por intermédio do corpo, melhor dizendo, de sua superfície. O corpo interage com o meio circundante, e as mudanças causadas no corpo pela interação são mapeadas no cérebro. Sem dúvida é verdade que a mente toma conhecimento do mundo exterior por intermédio do cérebro, mas é igualmente verdade que o cérebro só pode obter informações por meio do corpo. (DAMÁSIO, 2011, p. 121)
Isso significa dizer que em momento algum o cérebro está separado do corpo, sendo este o seu foco central para a atividade de mapeamento.
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Quando o corpo interage com objetos ou eventos do mundo, o cérebro (que é corpo) reage a essa interação registrando as consequentes mudanças sensitivas e motoras correspondentes ao fato. Junto ao registro dessas informações emergem os mapas e as imagens do corpo. Importante reafirmar que o cérebro não age sozinho nesse processo de mapeamento e registro de informações do que lhe é externo, mas só o faz porque todo o corpo (vísceras, sangue, músculos esqueléticos, entre outros) está em ação. Uma ação conjunta. Corpo e cérebro executam uma dança interativa contínua. Pensamentos implementados no cérebro podem induzir estados emocionais que são implementados no corpo, enquanto este pode mudar a paisagem cerebral e, assim, a base para os pensamentos. Os estados cerebrais, que correspondem a certos estados mentais, levam à ocorrência de determinados estados corporais; os estados do corpo são então mapeados no cérebro e incorporados aos estados mentais correntes. (DAMÁSIO, 2011, p. 126)
Devido ao processo de mapeamentos do corpo e memorizações (em devir) dos objetos é que algo se torna significativo. “Significado não é uma coisa; ele envolve o que é significativo para nós. Significância deriva da experiência de agir como uma pessoa de um certo jeito em uma ambiência de um certo jeito”. (LAKOFF, 1987, p. 292, tradução nossa) Por meio deste entendimento, se propõe que os corpos na dança (dançarino-espectador) são capazes de cocriar e transformar significativamente as informações advindas de suas interações nesse ambiente artístico. Johnson (2007) em densa pesquisa de mais de trinta anos elucida significado no mais amplo e aprofundado sentido. Sendo modos de significação: esquemas sensórios motores, sentimentos, qualidades, emoções. E sendo esses aspectos significativos porque se dão em encontro com o mundo. De acordo com a perspectiva da semântica corporal, Ruthrof (2000) argumenta que o significado na linguagem verbal só é possível se somos capazes de imaginar algo, de ativar as nossas apresentações dos objetos. O autor prefere denominar de apresentações às imagens dos objetos resultantes da interação do corpo com o mundo. Para ele, o termo representações sugere uma ideia enganosa de cópia do objeto. Portanto, o significado na linguagem verbal se faz a partir da percepção corpórea, ou seja, da associação das construções não verbais (a interação com o ambiente físico, as experiências sensórias motoras – o tato, a visão, o olfato etc. – com
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as verbais – os signos linguísticos). A dependência da linguagem verbal das construções não verbais é que gera a significância das coisas, por isso o corpo, em todos os seus aspectos, suas instâncias e modo de operar, desempenha um importante papel cognitivo na estruturação da linguagem seja ela qual, inclusive a linguagem da dança. Dessa maneira, palavras e expressões linguísticas não passam de esquemas vazios desprovidos de significado. E, de fato, não existe esse, pois é impossível a palavra isolada do corpo. A partir de tal pensamento, Ruthrof (2000) coloca em evidência o corpo como base da comunicação linguística, pois ele está presente no discurso na forma dos signos não verbais. Ou seja, mesmo em termos abstratos, então, é o caso de combinar os sons de expressões linguísticas com construções adequadas de fantasia sobre o mundo. Não importa quão concreto ou abstrato o termo, para proceder de significantes a significados significa imaginar certa parte do mundo ou as relações adequadas entre as imagens. O duplo caráter dos nossos atos quase-perceptuais e os aspectos não verbais do que é imaginado então ‘ancora’ todas as expressões linguísticas no corpóreo. (RUTHROF, 2000, p. 120, tradução nossa)
Em consequência do fato do cérebro registrar a memória (em devir) dos mapas sensoriais e ser capaz de reproduzir com certa proximidade o conteúdo original (evocação do conteúdo) é que se torna possível não só o significado na linguagem (o reconhecimento de objetos e do mundo a nossa volta) como também a lembrança e a percepção de eventos e pessoas, ou o uso da imaginação para planejar coisas futuras. Tudo graças à percepção, o contato do corpo com o mundo.
A escrita metafórica do corpo na dança Como explicam Lakoff e Johnson (2002, p. 47-48, tradução nossa), “a essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra”, constituindo um recurso ordinário do pensamento e da ação humana. A pesquisa destes dois autores foi fundamental para importantes descobertas das Ciências Cognitivas, como o reconhecimento, de fato, de que a metáfora não é simplesmente um recurso da linguagem verbal (uma figura recorrente do discurso poético, da linguagem subjetiva – os valores morais, os julgamentos abstratos, os conceitos etc.), mas também do pensar e do agir no mundo. A partir desta visão, a metáfora é enten-
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dida como uma operação cognitiva própria à natureza do corpo em qualquer atividade cotidiana. A presença da metáfora se torna quase sempre imperceptível no dia a dia devido ao fato de que comumente o pensar e o agir seguem padrões de conduta e crenças que não deixam perceber os conceitos que movem e são movidos pelas ações. Grande parte do pensamento é inconsciente e é no sistema conceitual inconsciente, inconsciente cognitivo, que tais conceitos metafóricos se encontram. (LAKOFF; JOHNSON, 1999) Por fazer parte do inconsciente cognitivo, para Lakoff e Johnson (1999) o sistema conceitual inconsciente funciona como uma espécie de “mão invisível” que modela a forma como são conceitualizadas as coisas que são experienciadas no mundo, assim como os valores morais e as ações: ele molda o pensamento consciente. Nosso sistema conceitual inconsciente funciona como uma ‘mão invisível’ que molda a forma como nós conceitualizamos todos os aspectos da nossa experiência. Esta mão invisível dá forma à metafísica que é construída de nossos sistemas conceituais comuns. Ela cria as entidades que habitam o inconsciente cognitivo – entidades abstratas como amizades, negócios, fracassos e mentiras – que nós usamos no raciocínio inconsciente comum. Assim como molda como nós automaticamente e inconscientemente compreendemos o que nós experimentamos. Ela constitui o nosso senso comum irrefletido. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 13, tradução nossa)
Argumentamos que é nessa instância de alheamento, entretanto de não imunidade, que os modos de dança, sejam artísticos ou pedagógicos ou artístico-pedagógicos, podem nos ajudar a compreender e tornar mais potentes nossas “estratégias sensíveis”. (SODRÉ, 2006) Ação (metafórica) é, por sua vez, ato de percepção. (BERTHOZ, 2003; NÖE, 2004) E, ainda, a percepção seria – se não se referencia em temporalidade sequencial hierárquica ao tratarmos das afecções advindas e feitas por ela – um modo de conceituar. Perceber é explorar o mundo. É uma atividade temporalmente estendida. O que chamamos de ver a maçã é apenas um episódio de exploração. E assim podemos dizer que decretamos o mundo perceptivo pela exploração hábil. Neste modo de pensar sobre a experiência perceptiva, perceber não é uma forma de representar, é uma forma de reunir ou montagem de conteúdo. (NÖE, 2012, p. 59, tradução nossa)
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Ao compreender que o procedimento metafórico (RENGEL, 2007) é uma forma de pensar/agir sensório-motora em termos do abstrato e pensar/agir/ abstrato em termos do sensório-motor, torna-se possível o argumento de que o corpo na experiência da dança (dançarino-espectador) compõe textos metaforicamente significativos. Os corpos dançarinos também atuam nesse trânsito constante de informações neurais sensório-motoras e abstratas interagindo com objetos (pessoas, lugares, movimentos, movimentos de dança etc.). Os processos intersemióticos (que são as relações entre diferentes signos) e heterossemiótico (que são as relações que se referem às oposições entre diferentes tipos de signos) dos signos não verbais e verbais estão em “pleno vapor”! (RUTHROF, 2000) O dançarino (corpo), por exemplo, percebe/sente/ transforma a fria temperatura e aspereza do chão onde seus pés descalços se apoiam sobre os dedos, a incidência de uma forte iluminação sobre os seus olhos, o som de risadas oriundas das últimas fileiras de poltronas do teatro ou o som de inesperados aplausos, entre outros. Da mesma forma, o espectador (corpo), por exemplo, percebe/sente/transforma, o movimento circular do quadril ou a queda do corpo do(s) dançarino(s) no solo, o som calmo e relaxante ou ensurdecedor da trilha sonora de determinado espetáculo, o andar e o olhar direto e intimidador do dançarino para a plateia, a temperatura fria do ambiente cênico devido ao ar condicionado ligado, ou a lembrança de algo que ficou como tarefa a ser feita. Aquilo que é percebido, só o é porque este corpo passou por processos (anteriores e no momento de realização da dança) de memorização e de significação pelo sistema de mapeamento cerebral do corpo. Logo, o que é percebido se torna informação significativa devido ao fato de “toda significação humana gradualmente surgiu de uma estreita relação entre o corpo e outros corpos, bem como entre os corpos e o ambiente”. (RUTHROF, 2000, p. 85, tradução nossa) Deste modo, a atribuição de um significado à determinada forma percebida é mediada pelo ambiente, pela cultura, pelas vivências particulares do corpo, de cada corpo na dança (dançarino e espectador). Por isso, quando um foco de luz forte incide sobre os olhos do dançarino ou o espectador capta o som retumbante de uma música no espetáculo de dança, estes corpos poderão ligar a situação percebida a processos perceptivos já vividos com alguma semelhança ou mesmo conforme as convenções culturais vigentes; poderão associar a forma percebida a imagens já processadas anteriormente. Tudo isso devido à “espetacular capacidade do nosso
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cérebro para aprender informações compostas e reproduzi-las mais tarde, queiramos ou não, com considerável fidelidade e de várias perspectivas”. (DAMÁSIO, 2011, p. 166) Uma decorrência da interação entre corpos e objetos (lugares, pessoas, palavras, movimentos, movimentos da dança etc.) é a capacidade do cérebro de fazer registros de entidades, ou seja, memorizar. Por exemplo, o cérebro aprende informações dessa interação como a aparência dos objetos ou as consequências sensitivas e motoras do corpo (gerando imagens perceptuais em diferentes domínios sensoriais), preservando-as (armazenando os padrões dessas imagens em algum lugar e de algum modo) e evocando-as (recuperando os padrões) em situações futuras: os registros da memória deste objeto. (DAMÁSIO, 2011) Dessa forma as percepções corporais ocorridas durante esse tipo de interação – leituras não verbais e verbais do mundo – poderão ser evocadas quando da lembrança de um evento experienciado, variando conforme as circunstâncias e o valor do objeto.
Figuras de linguagem: dança, escrita, memória, cérebro, tempo: emergências do procedimento metafórico do corpo Muitos dualismos se perpetuam, apesar de veementemente, e superficialmente serem rechaçados. Churchland (2004) demonstra a existência de cinco tipos de dualismo, ou seja, não há somente o denominado “dualismo Cartesiano”. Propomos que o procedimento metafórico do corpo, ou seja, entendermos juízos abstratos em termos de experiências sensório-motoras, demonstra a impossibilidade de uma separação mente/corpo, corpo/mente, corpo/cérebro. Ao sabermos que: Met ou meta: antepositivo grego, que expressa as ideias de comunidade, participação, mistura ou intermediação, sucessão (no tempo e no espaço), no meio de, entre, durante, mudança de lugar ou de condição, interposição, transporte. Phora: pospositivo, também grego, que significa ação de levar, carregar. O que é procedimento metafórico, portanto, é esta comunidade permanente de conexões neurais sensóriomotorasinferentesabstratas que ocorre com/no corpo. Este meio durante no trans do inter, no entre dos textos da carne que pensa. Entre que tem lugar no corpo. (RENGEL, 2007, p. 77)
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Importante ressaltar que o sensório-motor é impregnado do inferente, está embebido do simbólico e do ambiente. O que se coloca é que o trânsito (o meta e o phora), que se revela no verbal, só assim se dá, pois os modos biológicos, físicos, químicos e motores do corpo o geram. Ao diferenciar procedimento metafórico de metáfora, pretendemos apontar, reafirmando novamente, que só podemos agir assim, em trânsito, em vínculo. Ao levar em consideração as proposições de Ruthrof (2000), principalmente a metáfora metonímica “parasita” atribuída à linguagem verbal, expandirmos nossas argumentações e, portanto a metáfora linguística, a metáfora gestual e a metonímia, ou hipérbole, ou o oxímoro, são emergentes desta maneira de proceder do corpo. Assim, a palavra “escrita” só existe porque o corpo se sentepensapercebe como escrito e escritor. Ele traça e é traçado por emoções, pensamentos, leituras, cenas de dança... Escrita provém do procedimento metafórico do corpo e se faz em metáfora, ou em hipérbole metafórica. A hipérbole é uma expressão intencionalmente exagerada com o intuito de realçar um pensamento, um sentimento, um movimento. Na dança podemos, por exemplo, prezar pela repetição excessiva de movimentos e gestos do corpo, de expressões faciais. Abusar de contraste de cores e a mistura de texturas diferentes na composição do figurino, maquiagem e iluminação, o excesso de informações de acordo com a quantidade de elementos cênicos. Tratar dança como linguagem é também, de acordo com a argumentação que fazemos uma ação metafórica que pode revelar metonímia ou catacrese. Posta a ação metafórica, a catacrese se dá quando a dança é estudada e cristalizada como linguagem (a catacrese é uma metáfora que se torna estabilizada pelo uso contínuo). Como metonímia (lembrando que há inúmeros tipos de metonímia, como empregar algo em lugar de outro, com estreita associação de relação), tanto dança pode se remeter à ideia de quaisquer danças (a parte pelo todo) quanto a linguagem se refere às manifestações verbal e não verbal. Memória e cérebro, apesar de serem corpo, no senso comum são abordados como objeto que se tornam, portanto, personificados. Na dança, obviamente, vemos o agir da prosopopeia, por exemplo, desde os Balés de Repertório nos quais seres inanimados e fictícios como flores, plantas, doces, fadas, bonecos etc. ganham características humanas. Na dança atual ideias como cor, som, formas geométricas e elementos como terra, água, ar, entre outros conduzem experimentações de movimentos e são temáticas para a criação em dança.
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Ao verificar no nosso dia a dia com a dança as suas figuras de linguagem a realizar e desenvolver uma escrita metafórica tem-se a certeza que devemos ter atenção para nossas ações, atitudes, falas e modos de nos comunicar. Muito embora saibamos que a nossa percepção é seletiva. Os estudos de pesquisas que fazem parte do projeto de Mestrado e do projeto de pesquisa das autoras busca efetivar a não hegemonia do verbal nos modos de fazer e ver dança. Todavia, o interesse não é criar uma valorização por inversão. Importa menos saber o quanto de verbal ou não verbal há na dança, e sim saber que ambos coabitam. Importa também saber que a memória não é um lugar como uma prisão, ela é fluxo de movimento. O fazer e refazer movimentos, dança e leituras cotidianamente, horas e horas nos traz conforme Sennett (2009) um alto grau de capacitação e a técnica como um prazer e não como uma questão maquinal. O prazer do fazer muito. Inovando, sutilmente, evolutivamente. “Não somos nós que geramos a flecha do tempo. Muito pelo contrário, somos seus filhos”. (PRIGOGINE, 2011, p. 12) Essa bela metáfora de personificação aponta para uma vida irreversível, uma dança irreversível. Nossas atitudes, nossas danças não têm volta, não há como repetir de novo. Repetir é repetir com o novo e não de novo.
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Descrição darwiniana elucida: mecanismos psicológicos e comportamento artístico Resumo A descrição darwiniana da psicologia humana elucida os mecanismos psicológicos subjacentes a traços da personalidade artística e possibilita acomodar os universais com as diferenças individuais de personalidade. Palavras-chave: Descrição Darwiniana; Natureza Humana; Personalidade Artística; Mecanismos Psicológicos.
Darwinian account elucidates: psychological mechanisms and artistic behavior
Marcos Bragato Docente na Licenciatura em Dança e no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorado (2002) e mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996). É membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA) 2011/2012. E-mail: mabragato@hotmail.com
Abstract The Darwinian account of human psychology elucidates the psychological mechanisms underlying personality artistic traits and enables accommodate the universals to individual differences of personality. Keywords: Darwinian account; Human nature; Artistic personality; Psychological mechanisms.
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Introdução A tábula da natureza humana nunca foi rasa e agora é lida. William D. Hamilton (1997, tradução nossa)
O entendimento da evolução e de suas consequências, como uma explicação geral da vida e do que é contemplado nela, têm se espraiado por diversos domínios do conhecimento. Mas ainda é particularmente dificultoso para as pessoas compreenderem a ação da seleção evolucionária no florescimento e nos processos que agem na cultura humana, como uma de suas características fundamentais na capacidade de aprendizado, armazenagem e transmissão das informações necessárias à reprodução e das consequências na modelagem da psique humana. E dos mecanismos subjacentes aos traços que moldam o jeito que somos. Como a evolução darwiniana opera com uma explicação suficientemente simples,1 as pessoas duvidam que ela possa estar relacionada com a cultura humana independentemente do tempo de avaliação para que ela funcione. (ALEXANDER, 2004) Os partidários da cultura como
1 O algoritmo da seleção natural é aplicável a uma grande quantidade de fenômenos de natureza diversa.
uma entidade autônoma atacam o entendimento darwiniano, advogam a cultura como o determinante primário da natureza e comportamento humano e defendem que somos moldados pela criação. “Então, nosso comportamento reflete as normas culturais em torno de nós. É o famoso ditado: fatos sociais podem somente ser explicados por fatos sociais”. (CARTWRIGHT, 2008, p. 328, tradução nossa) Assim, o modelo culturalista não considera o pensamento darwiniano ao não compreender a potência do pensamento evolucionista, encerra-se em circularidade e não possibilita avanços nas discussões da natureza do funcionamento do comportamento e da mente humana. Quando explanações materialistas da ciência não incluíam a entidade humana2 não ocorriam controvérsias de fundo. No entanto, desde a publicação de Sobre a origem das epécies através da seleção natural (1859), de
2 O entendimento de que a mente evoluiu como qualquer órgão de nosso organismo.
Charles Darwin, cientistas e não-cientistas passam a combater as explicações materialistas relacionadas aos humanos, especialmente à constituição da psique e comportamento. (STEARNS; HOEKSTRA, 2003) Na descrição darwiniana, a experiência atua sobre um substrato biológico (o cérebro ou corpo) e o modo reativo do cérebro é fundamentalmente um produto do equipamento biológico mais que o esquema sociológico. “O ponto crucial é que os efeitos da experiência são respostas facultativas”. (CARTWWRIGHT, 2008, p. 329, tradução nossa) Ajuda ter a
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compleição física de Tarzan se você tem interesses indeferentes à escolha de um parceiro e atividades sexuais de eremita? A descrição darwiniana declara a existência de universais humanos sobre os quais se unifica a humanidade. Embora algumas culturas amplifiquem alguns deles e suprimem outros, o fato crucial é que eles representam adapatações filogenéticas e carregam significado adaptativo. As adaptações, por sua vez, são produtos das forças similares da Seleção Natural (SN) e da Seleção Sexual (SS) que moldaram, e ainda podem atuar, a morfologia, fisiologia e comportamento. No primeiro caso, resulta da correlação de características com o sucesso reprodutivo em um período de vida. “Assim, as causas da SN são todas as razões pelas quais os organismos variam quanto a seu sucesso reprodutivo e suas relações com os caracteres”. (STEARNS; HOEKSTRA, 2003, p. 35) No segundo, força compenente da primeira que se associa “com o sucesso no encontro de parceiros sexuais”. (STEARNS; HOEKSTRA, 2003, p. 35) No entanto, a SN somente se realiza sobre a variação hereditária genética, e aqui pode produzir adaptações. Como explicitam Stearns e Hoekstra (2003), ao se reproduzirem podem variar quanto ao sucesso reprodutivo. Caso possam ser herdadas pelos descendentes, poderão passar pela evolução adaptativa e, certamente, experimentarão as mudanças herdadas que podem melhorar a performance reprodutiva. Os recentes avanços em biologia evolutiva aumentam seu direito em explicar importantes aspectos das questões humanas, como as diferenças individuais de personalidade. A aceitação da evolução como teoria para a psicologia tem motivado os psicólogos da personalidade a tratarem e conceituarem a personalidade dentro de um quadro evolutivo. Os filósofos da biologia (RUSE, 2009) ressaltam a positividade desses avanços, especialmente na área do comportamento social. A perspectiva darwiniana da natureza humana pode nos ajudar a uma explanação mais abrangente da mente e do comportamento humano, e de uma das facetas como é o comportamento artístico, e de seus mecanismos psicológicos subjacentes tratados pela psicologia evolucionista. Especialmente no tocante ao chamado Princípio da Savana (KANAZAWA, 2004),3 que nos ajuda a explicar porque falham as explicações sobre traços de um ou outro, aparentemente chamados apenas de artísticos, como os do otimismo ou pessimismo. O que se quer mostrar é com o entendimento de um truísmo ou de um lugar-comum – a natureza humana somos nós – amplamente escamoteado pelos defensores da tabula rasa4 –
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3 O cérebro/corpo humano evoluíram provavelmente ao longo dos 2,5 milhões de anos, durante o Pleistoceno na savana africana onde a linhagem homo viveu a maior parte do período como caçadores-coletores em grupo de 50 indivíduos. O cenário é chamado de ambiente de adaptabilidade evolutiva (EEE). 4 O conceito da tabula rasa entende a mente como um receptáculo vazio a ser preenchido pela criação, estranhamente à mercê de uma presumida volubilidade do mundo social e cultural.
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temos a possibilidade de acomodar os universais com as particularidades das diferenças individuais de personalidade.
Psicologia evolucionista e diferenças individuais de personalidade Recentemente, uma área da psicologia evolucionista se volta às análises do comportamento e da psicologia humana das diferenças individuais da personalidade por meio das contribuições da moderna teoria da evolução. A psicologia evolucionista é uma área híbrida do conhecimento que catalisa achados da moderna teoria evolutiva, como os estudos de genética comportamental, antropologia, psicologia cognitiva, biologia stricto sensu, economia e paleoarqueologia. Ela se debruça sobre uma base de proposições fundamentais, como a de que o comportamento manifesto é dependente de mecanismos psicológicos subjacentes ou módulos mentais funcionais especializados no processamento de informações alojadas no cérebro, conjuntamente com inputs internos e externos desencadeadores de sua ativação. Tais mecanismos psicológicos evoluídos são funcionalmente especializados para resolver problemas adaptativos que os seres humanos recorreram ao longo do tempo evolutivo profundo ou Pleistoceno. O entendimento está ancorado no chamado Princípio da Savana. Cada um deles é sensível a determinadas formas de inputs contextuais, que são combinados, coordenados e integrados, uns com os outros, para produzir o comportamento manifesto. (BUSS, 2008) São os módulos mentais especializados, que Robert Wright (2006) chama de botões da natureza humana. Nesse aspecto, a evolução por Seleção Natural, e Seleção Sexual, é a força primária responsável pela criação e desenvolvimento desses mecanismos, que são funcionalmente complexos. E “desenhados” a serem adaptativamente influenciados por classes específicas de informação do ambiente. A pesquisa conduzida pela área leva os pesquisadores a perguntas como: por que as pessoas de todas as culturas se preocupam com o status social, com as “fofocas” e se sentem culpadas, e em circunstâncias geralmente previsíveis? (WRIGHT, 2006, p. xix) e por que, em todas as culturas, homens e mulheres aparentemente diferem em alguns pontos básicos? As pesquisas conduzidas pela confluência da psicologia evolucionista com as questões das diferenças individuais da personalidade incluem os temas da primeira como estratégias de acasalamento, atratividade, sexualidade, linguagem, fala, lateralidade, homicídio, perseguição, conflito en-
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tre os sexos, status e prestígio, emoções sociais (ciúme, inveja, amor, entre outras); e o entendimento da segunda, com o foco em tais universais do comportamento humano, com a tentativa de explicar a variabilidade individual em termos de estratégias alternativas adaptativas. Como propõem os autores, qualquer adaptação psicológica é a base causal subjacente a sentimentos, emoção, criatividade, aprendizagem e comportamento que, por sua vez, são o produto do processamento da informação ambiental de uma determinada adaptação psicológica. (THORNHILL, 2003) A psicologia evolucionista é proeminente no estudo dos mecanismos psicológicos subjacentes às múltiplas motivações para o intercurso sexual, nas diferenças de estratégias universais entre os sexos na escolha de parceiros, no investimento da paternidade, no parentesco, e nas questões relativas à cooperação e agressão. São avanços teóricos e empíricos, afirma David Buss (2009), que têm alcançado discussões de níveis básicos como as adaptações diferenciadas entre os sexos, sem preocupação em integrar as análises evolutivas aos estudos das diferenças individuais de personalidade. No quadro evolutivo, as diferenças individuais de personalidade são, primeiramente, conceituadas como uma estratégia alternativa para a solução de recorrentes problemas adaptativos. (BUSS, 2009) São ubíquos em todos os agrupamentos humanos problemas adaptativos envolvidos, por exemplo, em negociação de hierarquias de status, formação de alianças sociais, extração de recursos de outros e solução de conflitos com parentes. (BUSS, 2009) Portanto, a chave da discussão é: “Algumas diferenças individuais podem refletir diferenças nas estratégias individuais utilizadas para resolver esses problemas adaptativos”. (BUSS, 2009, p. 364, tradução nossa) Desse modo, as diferenças individuais estáveis estarão refletidas no modo de negociação das estratégias adaptativas inscritas nas medidas de personalidade e comportamento interpessoal ou no modelo dos cinco fatores (Big Five) das características da personalidade: extroversão e socialização (ou ambas como sociabilidade ativa), conscienciosidade (responsabilidade e motivação de desempenho), neuroticismo (estabilidade emocional), cordialidade (confiança e conformidade) e compreensão (abertura intelectual à experiência/flexibilidade). O modelo dos cinco fatores tem causado impacto nas pesquisas e nas práticas de análise psicológica com controvérsias, entre o apoio enfático e a crítica por suas restrições. Diversos autores têm ampliado ou generalizado as correlações das dimensões ou facetas de cada um dos cinco
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fatores. Na teoria de David Buss (1996), uma das primeiras a acomodar os mecanismos psicológicos universais com as diferenças individuais de personalidade do modelo dos cinco fatores, atuam dois tipos gerais de problemas adaptativos: inferência estratégica e facilitação estratégica. No primeiro, estão envolvidas as soluções dos problemas relativos aos conflitos de interesse e no segundo, as soluções envolvidas nos problemas adaptativos relativos à busca de aliados. Segundo Buss (1996), uma orientadora hipótese evolutiva se encontra no entendimento de que as dimensões captadas pelo modelo dos cinco fatores “identificam em largas pinceladas alguns dos mais importantes custos e benefícios relacionados com aqueles que formam a nossa paisagem social adaptativa” (BUSS, 1996, p. 188, tradução nossa); ou talvez possa se afirmar que a assertiva de Buss diz respeito à identificação das diferenças individuais nos outros para se avaliar os custos e benefícios de se procurar estratégias particulares em um complexo ambiente social. A Seleção Natural propicia mecanismos funcionalmente especializados em atuação conjunta em muitas das combinações e permutações. Isso contraria a noção senso comum de mecanismos inatos como causadores de comportamentos inflexíveis. (BUSS, 2008)
Comportamento artístico em dança A identificação, embebida nos mecanismos psicológicos subjacentes ao comportamento, pode-se dar em base não-consciente. Como uma das facetas do comportamento espécies-típico,5 o comportamento artístico se realizaria sob a mesma confluência identificatória das dimensões básicas das diferenças individuais de personalidade com as estratégias de escolha de domínio específico. As características presentes no comportamento artístico podem não ser as mesmas encontradas no produto comportamental da mente de quem os produz. Quando, por exemplo, determinado produto artístico apresenta traços neuroticistas, em crescente tendência conflituosa com propalados traços de sociabilidade do autor. Outras podem produzir uma fórmula diferente dos fatores estáveis que operam como o temperamento do autor e não se expressam conflituosamente. No entanto, as estratégias,
5 Comportamentos e traçosespécies típico são os que podem ser observados na maior parte dos membros de uma espécie. Eles são fundamentais à sobrevivência e sucesso reprodutivo de uma determinada espécie e são disparados habitualmente por particulares estímulos externos a um determinado organismo. Em nosso caso, o do Homo sapiens sapiens, por exemplo, emoções e sentimentos são traçosespécie típico expressos em comportamentos fácio-corporais.
subjacentes a mecanismos psicológicos universais, continuam a conduzir às diferenças individuais no arco das dimensões dos Big Five. Os numerosos estudos têm apontado que as características tendem a se estabilizar ao longo da vida de um indivíduo, especialmente para ex-
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troversão e compreensão. Como o propósito evolutivo das diferenças individuais de personalidade é a solução de problemas adaptativos disparados pelo ambiente, o comportamento artístico é produto dessas soluções que embebem a sintaxe gerativa na dança. Essa que é uma realidade subjuntiva é apenas uma das subfacetas das diferenças individuais de personalidade. Ela pode conter os tipos gerais de problemas adaptativos – inferência estratégica e facilitação estratégica – face ao ambiente que pode, no primeiro caso, conformar ou alterar a sintaxe de uma determinada dança e no segundo, conferir o quanto dela poderá prosseguir no meio. Simular mundos alternativos quaisquer quando dançamos não elimina a atuação dos mecanismos psicológicos universais subjacentes a quaisquer das decisões no território das escolhas artísticas quando confrontados com as dimensões (Big Five) das diferenças individuais. Eles são os que nos possibilitam navegar no ambiente social para identificar correlações de custos e benefícios, e contínua barganha das estratégicas diferenças individuais aos diferentes problemas definidos nos ambientes. A realidade subjuntiva não se encontra em “outro” mundo. Ela é uma faceta da natureza humana. Como tal, uma grua, na definição do filósofo Daniel C. Dennett (1998). O filósofo estadunidense se utiliza da metáfora da grua para explicar como o mecanismo da seleção natural é ampliado com a ajuda de guindastes/fenômenos que permitem acelerar o processo evolutivo de forma mais rápida e eficiente. Como o sexo, que não surge como uma grua, e a linguagem, são exemplos de gruas. Observar, portanto, o comportamento artístico e seus produtos na forma de realidades subjuntivas requer o entendimento de quais forças operam e porque operam para se diferenciar na paisagem social. Talvez a dança modernista histórica pareça ter simulado sua realidade subjuntiva para integrá-la num quadro conceitual de reconhecimento e detecção de problemas adaptativos dos Big Five e os chamados pós-modernistas6 tenham desejado desintegrá-la. Neste caso, a licença é justamente para demarcar as diferenças individuais como estratégia para uma nova acomodação gramatical e sintática porque parece não haver escapatória da
6 Os membros originais do movimento da Judson Church propunham, entre tantas outras instruções, a eliminação da “atmosfera cênica” e psicológica.
reivindicação dos psicólogos evolucionistas que acomodam as diferenças individuais de personalidade como decisões utilizadas para resolver problemas quando se navega no ambiente social. As polêmicas questões em torno de autoria, por exemplo, podem ganhar novas ferramentas conceituais para não se ater na propagada dicotomia dos extremos do arco assinatura versus anonimato, e como tal se tem difundido o “fim da autoria”. Autoria diz respeito ao comportamento e
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diferenças individuais de personalidade que embebem o comportamento artístico e seus fenótipos na forma de danças, e expressam a confluência de estratégias da paisagem do ambiente que se avizinha.
Considerações finais A resistência das pessoas ao materialismo se dá quando ele incorpora o quadro conceitual da teoria evolutiva e suas hipóteses sobre a natureza humana. Ela não se justifica porque as ferramentas experimentais e suas consequências filosóficas ampliam nosso entendimento do porque somos o que somos e quais as forças nos levam a escolher alguém como amigo, alguém como namorado ou outro comportamento entre as facetas que conformam nossa natureza como a arte, os jogos e a religião. A biologia evolutiva nos oferece boas razões para se acreditar na existência de universais sistemáticos espécies-específico, circunscritos aos modos nos quais os sexos se diferem, na variação quantitativa randômica entre os indivíduos e na pouca diferença entre os grupos étnicos. (PINKER, 2006) Os mecanismos psicológicos universais governam nosso comportamento e atua de modo recombinado a cada estratégia adaptativa necessária para uma profícua navegação no ambiente social. Por isso, aspectos centrais de nossa mente operam a partir dessa recombinação de hereditariedade (genética) e meio ambiente. Não se trata de interação, mas sim de adaptação. A mente de um corpo que dança também está sujeita a essa recombinação, que induz as operações de escolha e conformam a linguagem nos modos que ele se posiciona na realidade subjuntiva. Os eventos operam, assim, do mesmo modo como operam na mente de um corpo que não dança, porque a natureza somos nós. Sem ela, não teríamos a possibilidade de realizar close ups e travellings como as gruas que carregamos nos permitem. A evolução nos dotou de numerosos mecanismos psicológicos e da especificidade necessária para coletar do ambiente as informações necessárias para a solução de problemas, e nos inscreverem diferenciados.
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O movimento como dispositivo de poder Resumo O movimento, desde o século XII, vem sendo utilizado como um dispositivo de poder. O controle do gesto, espaço e tempo geram a normatização do corpo-individual e avança para o corpo-social. As instituições de ensino reproduzem essa ação coibindo o movimento de discentes e docentes. É necessário considerar que crianças e adolescentes se comunicam principalmente por meio do movimento. Este artigo propõe discutir os apontamentos em torno desse assunto para entender melhor a relevância da pesquisa em movimento. Palavras-Chave: Movimento; Dispositivo de poder; Biopolítica; Dança; Educação.
The movement like apparatus of power
Edna Christine Silva Artista, pesquisadora em Dança e Movimento. Mestre em Comunicação e Semiótica – PUCSP, sob a orientação da Profª Drª Christine Greiner. Idealizadora e fundadora da Ekilíbrio Cia de Dança. Professora de Dança da Rede Municipal de Ensino de Juiz de Fora atuando na assistência técnica aos projetos de arte, desenvolvidos nas escolas – curriculares e extracurriculares - SAM/DEAP/SE/ PJF. Docente do curso de formação continuada “A Dança na Escola”. E-mail: christinesilmor@hotmail.com
Abstract The movement since the twelfth century has been used as an apparatus of power. The control of the gesture, space and time generates the standardization of the individual body and advances to the social body. Education institutions reproduce this action by restraining the movement of students and teachers. It is needed to consider that children and adolescents communicate mainly through movement. This article aims to discuss the points concerning this subject to better understand the relevance of the research in movement. KEYWORDS: Movement; Apparatus of power; Biopolitics; Dance; Education.
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O movimento na análise de Rudolf Laban e Michel Foucault O movimento, considerado desde sempre – pelo menos em nossa civilização – como um auxiliar do homem, utilizado para alcançar um propósito prático e extrínseco, mostrou-se como um poder independente que cria estados mentais frequentemente mais poderosos que a vontade humana (LABAN, 1990, p.13)
O artista/pesquisador Rudolf Laban (1879 –1958) revela em seus estudos que a arte do movimento pode potencializar a vida e ser um disparador para que pessoas possam exercer sua autonomia e singularidades. Esse autor viveu no século XX, pesquisou o movimento humano e suas implicações. Entretanto, percebeu que o movimento havia sido codificado e utilizado como uma técnica de enclausurar o corpo. Michel Foucault (1926 – 1984), filósofo/historiador, em suas pesquisas também teve percepção análoga. Foucault (1987) expôs como o movimento foi empregado para neutralizar a potência do ser humano. Era a arte do corpo humano que agia sobre a vida construindo seres potentes, porém, obedientes e submissos. Foucault (1987) analisou a sociedade que chamou de disciplinar e apontou que a disciplina tinha como objeto a coerção detalhada das ações e gestos, agindo principalmente na delimitação do espaço e na regulação do tempo. Dessa maneira, disseminava a energia e anulava a potência das pessoas criando uma relação de sujeição estrita. Estabelecia assim, a ligação entre uma aptidão corporal aumentada e uma dominação acentuada. Com o passar do tempo, o poder se especializou ainda mais e as técnicas disciplinares instauraram uma sociedade de vigilância cobrindo todo o corpo social. Foucault (1987) aponta para uma nova tecnologia do poder que ele chama de biopolítica da espécie humana. A biopolítica não exclui a técnica disciplinar e sim a embute, a modifica parcialmente, se utiliza dela e se articula com ela. Ao articular a técnica disciplinar com a regulamentadora, a biopolítica institui a norma como elemento que circula entre uma e outra técnica. Essa nova tecnologia é massificante, rege a massa global, cuida não do homem-corpo, mas do homem-espécie. A biopolítica um aprimoramento do poder sobre o corpo, normatiza, regula a vida humana em sociedade. A normatização tanto pode ser aplicada a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar.
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Foucault (1979) explica que essa normatização se expandiu principalmente para o controle do espaço. O espaço ampliou-se delimitando o território do corpo-social. Dessa maneira, o poder passou a definir o lugar em que a população pode ocupar ou permanecer, sem necessitar de uma vigilância local. O autor relata que foi por meio do estudo do espaço que conseguiu descobrir o que no fundo procurava que foram as relações existentes entre poder e saber. Ele explica que o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos se dá na análise do saber, em termos de região, de domínio, de deslocamento, de transferência. Através das metáforas espaciais é possível decifrar a análise dos discursos percebendo precisamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder. Sendo assim, de maneira precisa, no final do século XIX, a organização espacial passou a ser utilizada para alcançar objetivos econômico-políticos. A história dos espaços está diretamente ligada com a história dos poderes, podendo ser averiguada tanto nas estratégias da geopolítica, quanto nas pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional ou da sala de aula. Essa situação pode ser exemplificada com a disposição em sala de aula que prescreve o posicionamento de cada estudante como disserta Foucault (1987, p. 126) Haverá em todas as salas de aulas lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala [...] Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas [...].
Essas características ainda são possíveis de serem visualizadas em algumas instituições escolares que insistem em manter essa organização disciplinar. Em suas publicações o autor cita vários exemplos da distribuição dos espaços impostos pelo poder. Para ele, a fixação espacial é uma maneira econômico-política que precisa ser detalhadamente estudada. Esse é um mecanismo de controle significativo que desde o século XVII se constituiu primeiro no exército, depois nos hospitais, fábricas e também nas escolas com seus mestres, seus professores, seus vigias, dentre outros.
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O movimento como elemento político Foucault (2009) constatou, em suas pesquisas, uma negligência em relação ao estudo do espaço há várias gerações e assinala como um dos principais motivos é que a filosofia se ocupou principalmente do tempo, no momento em que a tecnologia política e a prática cientifica se apropriavam do espaço. Desde então, a medicina tornou-se a especialista do espaço e juntamente com os militares foram os primeiros gestores do espaço coletivo. O corpo-humano e o corpo-social adentravam no mecanismo de controle do poder espacial. Para Foucault (2011) o poder médico, desde então, se faz presente socialmente e basta que dêem uma ordem para cristalizar o sistema. Ao visualisar o caminhar social no final do século XX, afirmou que: A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longíquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e entrecruza a sua trama. Talvez se pudesse dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes escarniçados do espaço. (FOUCAULT, 2009, p. 411)
Essas afirmações feitas pelo autor no final do século XX, continuam presentes se transformando e se ampliando. O poder tornou-se transespacial, sem limites e sem resistência, e o tempo tornou-se tão veloz que consegue driblar a maioria das pessoas. O que se identifica é que o espaço e o tempo a cada dia estão mais interpostos. E, com isso, a percepção do tempo e do espaço está em constante transformação. Com o advento do mundo virtual, comunidades e organizações se integram e se vinculam em novas combinações de espaço-tempo, fazendo o mundo, em realidade e em experiência, mais próximos. Esse cooptação que encurta as distâncias e acelera a velocidade gera características novas de tempo e de espaço. Essa situação pode ser exemplificada com os acontecimentos ocorridos do outro lado do mundo e que podem ser noticiados em qualquer lugar em tempo real, como se o acontecimento estivesse presente naquele lugar onde está sendo noticiado. O tempo na sociedade disciplinar era cronometrado controlando as atividades das pessoas, cada uma com seu horário estipulado. Todos os horários eram demarcados com precisão, havia horário para todas as coi-
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sas. Com o encurtamento das distâncias, o tempo passou a ser contínuo preenchido por tarefas incessantes, que nunca terminam. Nessa nova configuração social as atividades tornaram-se consecutivas, promovendo uma sensação de que é necessário estar sempre ocupado, sempre a fazer algo. A justificativa é que o tempo não pode ser perdido ele tem que ser aproveitado ao máximo, e o controle tornou-se permanente, se distende em cadeias. Dessa maneira, as pessoas acumulam tarefas que nunca conseguem terminar, estão sempre correndo para fazer algo, obedecendo a um tempo coletivo e desprezando o tempo individual. De uma maneira em geral, o poder iniciou os sistemas de controle em primeiro lugar disciplinando o movimento humano, em seus gestos, espaço e tempo e, em seguida regulamentando-o. A biopolítica se incumbiu da vida em geral, é um poder que se incumbiu tanto do corpo como da vida. Pessoas iguais em movimentos, comportamentos, pensamentos, respostas e vidas. Toda uma população se comportando e desejando o mesmo. Uma concepção normativa do corpo instrumento. Adverso a essa maneira de pensar Laban (1978) identificou a experiência do (não) movimento para os viventes da sociedade industrial, como marca da impotência do indivíduo moderno em se mover autonomamente e em se comunicar. Esse autor percebeu que, em uma época em que se discutia os ideais eugenicos, higiênicos e os valores éticos, crianças e adolescentes nas instituições de ensino, adultos pertencentes a denominada classe intelectual e trabalhadores de linhas de montagem limitavam-se a reproduzir movimentos mecanicistas que impediam o indivíduo de ser um “possuidor de sua experiência”. (LAUNAY, 2006, p. 76) O corpo humano, anestesiado e empobrecido de movimentos adentrava uma maquinaria de poder que o esquadrinhava, o desarticulava e o refazia. A falta de compreensão do conhecimento da importância em se mover prejudicou o ser humano na visão de si próprio. É possível afirmar que Laban (1966, 1978, 1984, 1990) identificou os mecanismos de controle utilizados pela sociedade da época e buscou desenvolver uma proposta que explorasse e desenvolvesse toda a energia e potência do ser humano libertando-o do assujeitamento e dominação imposto pelo poder. Launay (2006) explica que Laban se horroriza com o espetáculo da multidão agitada e mecanizada, que se esgota no mundo das mercadorias construindo seu próprio labirinto “do qual ela nem sequer mais rir sabe.” (LABAN apud LAUNAY, 2006, p. 77) Laban (1978) compreendeu a importância da educação do corpo por meio do movimento, porém, percebeu também que essa educação vinha
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sendo realizada por aqueles que visualizavam o mundo como um lugar em desarmonia e que essas desarmonias precisavam ser erradicadas. A educação do corpo estava sendo medicalizada, dessa maneira, o corpo deveria ser exercitado como prática de saúde, higiene e beleza. O autor não era totalmente avesso a exercícios codificados, no entanto, dizia que qualquer movimento sem uma filosofia era árido, o movimento antes de tudo precisa de um objetivo. O movimento pronto poderia ser o início de uma experiência. Assim como Michel Foucault (2011), Rudolf Laban (1978) e Preston-Dunlop (2008) identificaram que as instituições educacionais se especializavam em educar o corpo para se manter e obter determinados tipos de comportamentos. As escolas se ocupavam em aprimorar técnicas de comportamento e adestramento corporal. “[...] a escola se tornou uma educação física“. (FOUCAULT, 2011, p. 238) Ao observar as atitudes corporais na experiência do movimento, Laban (1978) identificou os fatores que o constituem como ESPAÇO, TEMPO, PESO E FLUÊNCIA. A esses elementos Laban (1978) denominou de alfabeto da linguagem do movimento Nos dizeres de Rengel (2006, p. 123): [...] Todos os seres humanos têm uma forma de lidar com o ‘espaço’, um ritmo ao falar ou se mexer ‘tempo’, uma intensidade na movimentação ao tocar em coisas ou nas pessoas ‘peso’, e um modo de controlar ou deixar seguir o movimento ‘fluência’.
Laban (1978) criou a Teoria do Esforço definiu e conceituou os quatro fatores do movimento. O Fator ESPAÇO pode ser direto ou flexível; o Fator TEMPO pode ser súbito ou sustentado; o Fator PESO pode ser leve ou forte; o Fator FLUÊNCIA pode ser livre ou controlado. Em cada ação pode ser identificada uma acentuação, ou seja, são intensificações em um desses elementos. Não há como permanecer em apenas uma das qualidades dos fatores, o que existem são gradações diferenciadas entre elas. Sendo assim, alguém pode se relacionar melhor com o fator espaço flexível, no entanto, todos os outros fatores estão presentes, porém em uma gradação menor. O significado da ação se produz a partir da combinação dos fatores e suas qualidades. Para Laban (1978) é com base nos fatores do movimento que a pessoa adota uma atitude definida, produzindo assim o significado da sua expressão pessoal. O conhecimento das qualidades de esforço – ESPAÇO, TEMPO, PESO E FLUÊNCIA –, por meio da experiência em movimento pode revelar a singularidade de cada um. Nas
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explicações de Laban (1978), as experiências em movimento é que estabelecem o entendimento dos fatores. Na Corêutica, teoria também concebida por Laban (1966) a pesquisa e a compreensão do movimento têm ênfase no conhecimento espacial. O autor definiu Corêutica como a arte ou a ciência que trata da análise e síntese do movimento. Para Dell (1970), ao conceituar Corêutica, Laban tentou apontar as afinidades de certas qualidades de esforço com dimensões específicas do espaço. Laban (1966) explica que o movimento é sempre apresentado no espaço e o movimento sempre ocupa o espaço. Este autor esclarece que “espaço vazio não existe. Pelo contrário, o espaço é uma superabundância de movimentos simultâneos”. (LABAN, 1966, p. 3, tradução nossa)1 O autor esclarece que o espaço vazio é uma ilusão decorrente da percepção instantânea, ou seja, “a mente percebe mais do que um detalhe isolado, é
1 “Empty space does not exist. On the contrary, space is a superabundance of simultaneous movements”.
uma paralisação momentânea de todo o universo. Tal visão momentânea é sempre uma concentração em uma fase infinitesimal do grande fluxo universal”. (LABAN, 1966, p. 3, tradução nossa)2 Laban (1978, p. 4, tradução nossa) afirma que “o espaço é uma ca3
racterística oculta do movimento e o movimento é um aspecto visível do espaço”. A concepção de espaço como uma localidade ou lugar, no qual as mudanças ocorrem, é pertinente, no entanto, esse não é o aspecto fundamental do espaço. No espaço existe um intercâmbio contínuo de movimentos, que nem por um instante paralisam completamente. Eles podem estar extremamente lentos, fracos ou dispersos, e parecer em repouso ou
2 “What the mind perceives is, however, more than an isolate detail; it is a momentary standstill of the whole universe. Such a momentary view is always a concentration on an infinitesimal phase of the great and universal flux”. 3 “Space is a hidden feature of movement and movement is a visible aspect of space”.
imóveis. No entanto o movimento existe, pois, a matéria em si é um composto de vibrações. Laban elucida que no passado concebeu-se a existência de uma concepção estática. Esse entendimento levou à “compreensão de objetos como entidades separadas, estando estabilizado em poses, lado a lado, ocupando um espaço vazio”. (LABAN, 1966, p. 4, tradução nossa)4 Esses dizeres de Laban (1966) remetem para o exercício do poder disciplinador que construía quadros por meio de um jogo de repartição
4 “[…] understanding objects as separate entities, standing in stabilized poses side by side in an empty space”.
espacial, como apontou Foucault (1987). As diversas instituições e as instituições escolares distribuíam os discentes no espaço em filas, fileiras e em lugares marcados hierarquicamente. Dessa maneira, é possível afirmar que o que acontecia e permanece na atualidade é que a pessoa internaliza o conceito de espaço e se molda de acordo com esse espaço e com o que o ocupa, como por exemplo: objetos, pessoas, movimentos, dentre outros. “Todo o movimento tende para o espaço, tanto o espaço que nos rodeia como o espaço dentro de nós”. (LABAN, 1984, p. 54, tradução nossa)5
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5 “All movement tends into space, both the space around us and the space within us”.
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Laban (1984) afirma ainda que crianças e adolescentes percebem o mundo por meio de uma perspectiva corporal, ou seja, através da experiência em movimento. No entanto, explica que são capazes de ocupar todo o espaço em torno deles com seus movimentos e posições. Mas, também podem ficar restrito a linhas retas no espaço, negligenciando as muitas extensões de espaço e usando apenas um a cada momento. O autor aponta esse fato como uma negligência e falha em relação à base de toda atividade humana, ou seja, o movimento. Para o autor a experiência em movimento por meio do espaço é emancipatória e transgressora. Ele considerou que o ser humano, ao abdicar do conhecer e experienciar o movimento, “deixou de ser um criador de suas ações, tornando-se apenas um jardineiro”. (LABAN, 1984, p. 9, tradução nossa)6 Ao traçar um paralelo entre o estudo do movimento de Rudolf Laban
6 “[…] of which we are not the creators but only the gardeners”.
com as pesquisas das relações de poder de Michel Foucault é possível perceber como e por que a biopolítica atua moldando o movimento humano. Para Laban (1978, 1984) o espaço e o tempo são elementos do movimento e o espaço é composto por movimentos visíveis e invisíveis. Para o poder, o espaço e o tempo fazem parte dos operadores de controle, sendo assim, toda uma organização e reorganização dos espaços e a aceleração do tempo impostos pelo poder é também articulado pelo movimento humano. A biopolítica controla o gesto/comportamento, o espaço e o tempo e se apodera das pessoas em seus atos e pensamentos. Enfim, o poder soberano, da sociedade disciplinar já havia descoberto que codificar o movimento humano, limitar o espaço e cronometrar o tempo, era um meio eficaz de anular o potencial do ser humano, dizimar sua autonomia, criatividade, autoconfiança, comunicação, minar a sua elaboração e produção de pensamento. A biopolítica expandiu essas ações, sendo assim, anula a autonomia enquanto potência de ser e de agir individualmente e coletivamente, deixando o ser humano exposto mais facilmente, aos mecanismos de controle social. Além disso, o espaço e o tempo apontados por Laban (1966, 1978, 1984, 1990) como elementos do movimento humano, na sociedade atual, visivelmente se fundem e aparentam uma só coisa. Dessa maneira, a pouca experiência em movimento, provavelmente, poderá entrar em conflito devido a esse excesso de informação que não tem limites. Laban (1990) sinalizava, no início do século XX, que cada vez mais o ser humano se desapropriava da experiência da complexidade em movimentos, se especializando em movimentos simplórios. Dizia que até as crianças não
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aprendiam mais a apreciar e experienciar o movimento, apenas o identificavam como uma atividade prazerosa. O autor desenvolveu suas pesquisas enfatizando a importância em experienciar e pesquisar o movimento. A experiência tem um significado expressivo para Laban, assim como, para Foucault, Greiner e Katz (2005) que a consideram como parte do processo de formação do ser humano. Para Foulcault a experiência é assinalada como forma histórica das práticas de constituição do sujeito, ou seja, são práticas que permitem ao sujeito se transformar a partir de suas próprias práticas e das práticas externas sobre ele. Essas práticas externas podem ser produzidas por pessoas, objetos ou natureza. Para Katz (2005) a experiência estrutura o processo pelo qual as informações que nos constituem formam a forma do nosso corpo e nesse caso se refere a um estado cognitivo durável que tenha resultado da percepção. Para a autora, é dessa maneira que o ser humano inicia sua história pessoal. Greiner e Katz (2005, p.132) fazem a relação da experiência com o ato de dançar e afirmam: As experiências são fruto de nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional, etc.), de nossas interações com os ambientes através das ações de se mover, manipular objetos, comer, e de nossas interações com outras pessoas (em termos sociais, políticos, psicológicos, econômicos e religiosos) e fora dela. Nessa perspectiva o ato de dançar, em termos gerais, é o de estabelecer relações testadas pelo corpo em uma situação, em termos de outra, produzindo, neste sentido, novas possibilidades de movimento e conceituação.
A congruência de pensamento entre esses autores faz ver a importância da acepção da experiência. Em termos de movimento, é possível afirmar que a experiência significa improvisar, interagir, vivenciar e pesquisar os processos de movimento, funcionamento e atitudes do corpo em si. Rengel (2003, p.16) elucida que Laban ao iniciar suas pesquisas sobre a experiência afirmava que “Quando se emprega o termo experienciar, significa experienciar com todos os aspectos do agente: ‘corpo, mente e espírito’”. Thorton (1971) explica que para Laban o movimento não significa simplesmente um movimento de membros ou corpo, de alguma maneira casual, divorciado da participação intelectual. Para o autor movimento é a manifestação visível, verdadeiro estado intelectual, emocional e físico, é a base de toda atividade humana. O movimento é a ligação entre as inten-
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ções e sua realização através da ação. O movimento é a experiência fundamental da existência. (LABAN, 1966) Laban afirmava que o ser humano estava negligenciando ou ignorando sua necessidade de movimentar, pensando que assim, estaria privilegiando suas atividades intelectuais. Para Laban (1966) a restrição em experienciar o movimento reduz as possibilidades físicas, emocionais e intelectuais do ser humano. E, para Foucault (1987) produz a docilização. Nas palavras de Greiner (2010) a criação dos corpos dóceis na sociedade disciplinar, identificados por Foucault, está se transformando na construção de corpos inertes. Ou seja, não são corpos simplesmente imóveis, o que se aponta aqui é que essa inércia inibe a criação de ideias próprias, bloqueando a reflexão sobre o que gera o mover. Estes são os cidadãos que executam tudo que mandam, deixando-se controlar em todas as instâncias – dos gestos cotidianos a saúde, divertimentos e alimentação. É possível afirmar que o movimento humano, em sua forma, espaço e tempo, na tecnologia disciplinar e na biopolítica, tornou-se um dispositivo, agindo sobre as pessoas em sua singularidade. Os dispositivos podem ser assinalados como o principal agente que exerce poder de modificação no comportamento das pessoas e são resultantes dos cruzamentos das relações de poder e de saber. O ser humano tomado por técnicas de dominação teve como principal dispositivo o seu movimento. Na sociedade atual, o movimento permanece com essa mesma característica, no entanto, de maneira ampliada, atua tanto sobre corpo-individual, como se difunde para o corpo-social. Não é somente uma instituição que disciplina o movimento, na sociedade contemporânea, o poder disciplinar está em todos os lugares e em todas as pessoas. Dessa maneira, o movimento humano é um dispositivo em rede que exerce o controle em todos os locais e por todas as pessoas. Além do mais, é um dispositivo que faz com que a censura e a coerção seja exercida pelo próprio ser. Cada um coíbe o seu próprio movimento, gesto, atitude, conduta, comportamento, hábitos, discursos. Dessa maneira, o ser humano possui um olhar coercivo e minucioso para o seu próprio movimentar. O olho que vigiava no panóptico agora se estendeu e está em vários lugares. Não tem mais apenas um local de onde se é vigiado, em todos os locais existe um olho vigilante, podendo ser o olho humano ou o olho virtual. Além do mais, o próprio olho tornou-se um vigilante de si e dos outros. O movimento humano tornou-se um dispositivo de poder que atua em micro e macro, atua no corpo-humano e no corpo-social. Foucault (1979, p. 246) definiu dispo-
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sitivo como “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentados por eles”. Agamben (2009, p. 40) expande a definição de Foucault e diz que dispositivo é definido como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. O autor afirma que na atualidade não há nem um momento na vida que a pessoa não seja modelada, contaminada ou controlada por um dispositivo e que seria totalmente ingênuo pensar em destruí-los ou usá-los corretamente. A todo dispositivo corresponde um determinado processo de subjetivação ou dessubjetivação que parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dá lugar a recomposição de um novo sujeito. O que se percebe é que desde a época da sociedade disciplinar os seres humanos estão sendo adestrados para se adequarem a um formato de gesto/pensamento que atenda as exigências do poder. Sendo assim, comumente crianças e adolescentes são submetidos a ações disciplinadoras, coercitivas, modeladoras nos seus processos comunicativos, nos diversos espaços em que convivem – ambiente familiar, escola, as mídias, dentre outros. Essa é uma tentativa de normalização mental desses seres em crescimento. Esse operador de controle tem uma longa história, como aponta Foucault (1987), com o objetivo de obter um pensamento único. Os espaços escolares se estabeleceram como locais não apropriados para o movimento, ou seja, o movimento experienciado, interagido, vivenciado, improvisado, criativo. Estabeleceu-se um determinado tipo de gesto/ comportamento permissível, o que ultrapassava a esse limite passou a ter um tempo organizado, específico para esse fim. Dessa maneira, até nos dias atuais, estipula-se e cronometra-se o tempo para que o movimento possa ser executado. Esse tempo determinado é o momento considerado consentido para que crianças e adolescentes possam liberar suas energias. Aulas de educação física, jogos, ginásticas, danças, dentre outras são inseridas para esse fim. Nos outros momentos, a quietude e a inércia são cultivadas nas instituições educacionais, sinônimo de eficiência na aprendizagem. Com o decorrer cronológico, esse pensamento ainda é cultivado em várias instituições de ensino, não somente da educação básica, mas em escolas de línguas, danças e outras. É necessário considerar que crianças e adolescentes se comunicam principalmente por meio do movimento. Ao serem privados em seu modo de agir sentem-se reprimidos e podem se reduzir ao silêncio. É possível afirmar que crianças e adolescentes, nesses momentos, são induzidos a
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experimentarem a anorexia da ação comunicativa, que pode ser explicada como ações que rompem os processos de comunicação e desestabilizam a ação comunicativa, fragilizando a ação comunicativa por longos períodos de tempo. (GREINER, 2005, p. 82) De acordo com autora, essa interrupção do fluxo de informação, a partir de uma violência radical, provocará uma falta de apetite para o conhecimento. Nesse caso, é visível que essas crianças e adolescentes estão incluídos no espaço escolar, no entanto, não há uma relação de pertencimento. Greiner (2010, p. 36) aponta que para Badiou “o pertencimento está ligado à apresentação e a inclusão vincula-se a representação”. Essa situação pode ser explicitada como uma inclusão exclusiva, como aponta Agamben (2008), ou seja, crianças e adolescentes são incluídos nas instituições de ensino, mas para permanecerem nesse espaço necessitam abortar seus hábitos, comportamentos, gestos, e outros. “onde um fato é incluído na ordem jurídica através de sua exclusão e a transgressão parece preceder e determinar o caso lícito”. (AGAMBEN, 2008, p. 33) É necessário refletir que crianças e adolescentes são inseridos nas instituições de ensino com o objetivo de serem educadas e se desenvolverem, e nesse mesmo local são privadas do movimento criativo e espontâneo. Para Laban, nos dizeres de Thornton (1971), é através do movimento das pessoas e dos objetos que se aprimora e se amplia o conhecimento de mundo, porque os nossos próprios movimentos e os movimentos que percebemos ao nosso redor são experiências básicas. Ao perceber o movimento dos outros, novos movimentos podem ser disparados e despertar um grande número de atividades intelectuais, físicas, emocionais, perceptivas, dentre outras. A tentativa de privar o movimento de crianças e adolescentes pode ser considerada uma omissão em uma fase significativa do desenvolvimento humano. Thornton (1971 afirma que Laban acreditava no caminho da educação pelas artes, principalmente na arte da dança que envolve as habilidades físicas, emocionais e intelectuais. Esse autor aponta ainda que Laban sustentou que “todos os nossos sentidos são variações do nosso sentido único de contato”. (LABAN apud THORNTON, 1971, p. 24, tradução nossa)7 Ou seja, o sentido cinestésico e, é a partir do movimento e suas relações, que
7 “All our senses are variations o four unique sense of touch”.
se desencadeiam a atividade intelectual. Rengel (2006) esclarece que, a noção de que corpo e mente fazem parte de uma mesma realidade é a base da Arte do Movimento de Laban.
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Considerações É possível afirmar que essa omissão, na qual o dispositivo é o movimento, de acordo com os autores citados, despontencializa o sujeito e inibe sua autonomia; fragiliza a ação comunicativa; asfixia ou domestica a linguagem, estigmatiza o rebelde, controla a imaginação e a criação, impossibilita a ação. Nesse conjunto de apontamentos, há de se refletir e ainda questionar: será que devido a esses fatores a elaboração de pensamento poderá se inibir e inúmeras dificuldades de aprendizagem surgir?
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A dança contemporânea no corpo diferenciado e a poética de Antonin Artaud Resumo O artigo discute questões relacionadas aos corpos diferenciados nos processos de criação cênica, pontuando historicamente como este corpo foi visto nas artes cênicas ao longo dos séculos. Propõe uma articulação com o teatro artaudiano na perspectiva da alteridade do corpo colocada na cena tanto na dança quanto no teatro contemporâneo. Palavras-chave: Dança contemporânea; Teatro contemporâneo; Corpo diferenciado; Teatro da crueldade.
Nara Salles Professora Adjunto IV do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (2004). Mestre em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (1999). E-mail: narasalles@hotmail.com.
Contemporary dance in the body differentiated and the antonin artaud poetic Felipe Henrique Monteiro Oliveira
Abstract The article discusses questions related to the different bodies in the process of creation scenic, scoring historically as this body was seen in the performing arts through the centuries. Proposes a articulation with the theater artaudiano the perspective of otherness of the body placed in the scene in the dance and theater in contemporaneity.
Mestrando do Programa de Pósgraduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Licenciado em Teatro pela Universidade Federal de Alagoas (2010). E-mail: fhmoal@hotmail.com.
Keywords: Contemporary dance; Contemporary theatre; Body differential; Theatre of cruelty.
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Este artigo discute questões relacionadas a alteridade corporal nos processos de criação artística, sobretudo nas proposições cênicas, pois observamos que na cena nomeada como contemporânea, diferentes esferas públicas e privadas discutem sobre quais são as formas mais adequadas para instaurar a reflexão e a prática acerca da existência da diversidade humana na vida em sociedade; no entanto o reconhecimento e aceitação da desigualdade esbarram constantemente no desejo de assegurar uma possível homogeneidade social, que geralmente é produzida a partir de uma aversão à diferença, como forma de lidar com a situação, visto que a semelhança não é possível, pois as diferenças sempre se farão presente na esfera humana, e este fato faz com que o ideal de inclusão social postulado, na maioria das vezes tenha dificuldade tanto de ser construído quanto de permanecer nas diversas instâncias sociais, políticas, educacionais e culturais. As pesquisas, sobretudo antropológicas, apontam que a discussão em torno da inclusão muitas vezes desliza apenas para a afirmação da alteridade, visto que há diferenças e igualdades, e nem tudo deve ser igual e nem tudo deve ser diferente. É imprescindível que o ser humano tenha o direito de ser diferente quando a igualdade o descaracteriza e o direito de ser igual quando a diferença o inferioriza. No entanto, isto não acontece, visto que a lógica da exclusão ainda perdura firmemente neste mundo que marginaliza, rejeita a diferença e encara a questão dos corpos diferenciados como um problema em si. No campo das artes inseridas nesta sociedade excludente, e ao compreender que um dos pressupostos para a possível instauração do processo inclusivo nas variadas esferas sociais é a utilização do discurso, e que a linguagem humana é mediada por dispositivos discursivos e no seu cerne estão circunscritos os valores vigentes de cada época, iniciamos uma busca por um termo que fosse politicamente correto e não estivesse carregado de qualquer espécie de discriminação, tarefa muito difícil nesta sociedade, especificamente em relação ao trabalho artístico de pessoas que comumente são designadas de “deficientes”, cunhamos o termo corpos diferenciados para designar pessoas com alguma chamada “deficiência” corpóreo/vocal, pois nos parece a princípio que diferenciado tem o significado de apenas ser diferente, posto que no dicionário on-line Michaellis,1 diferente vem do latim differente e designa aquilo que é diverso, alterado,
1 Disponível em: < http://michaelis. uol.com.br/>.
mudado, modificado, variado; enquanto os outros termos utilizados sempre possuem um ranço de preconceito. No que tange à arte, observa-se que no decorrer da história das artes cênicas os artistas com corpos diferenciados pouco foram incluídos nos
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processos criativos e encenações. De acordo com Rosemarie Thomson (1996) e José Tonezzi (2008), entre os séculos XVII e XIX, os criadores intérpretes com corpos diferenciados eram excluídos dos espetáculos ou esporadicamente participavam das montagens, e quando estavam em cena, a eles ficava delegado disfarçar suas diferenciações corporais. Enquanto isso, com base em registros históricos, é somente a partir do século XVIII, com o aparecimento e o desenvolvimento do freak show, que se inicia a apreciação e a utilização espetacular de seres humanos com corpos diferenciados. Considerado uma manifestação artística reprovável e eticamente dúbia, para os parâmetros contemporâneos, o freak show ganhava cada vez mais importância como modo de entretenimento para a população da época e se tornara um negócio de extremo lucro para seus produtores. Suas apresentações ocorriam em feiras e eventos populares, onde eram exibidas pessoas com diferentes graus de diferenciação corporal e, posteriormente, indivíduos capazes de realizar atividades incomuns como pirofagia, contorcionismo, deglutição de objetos, adestramento de animais selvagens. Com o passar do tempo, foram integradas nas apresentações pessoas cujos corpos tinham marcas e alterações decorrentes de costumes culturais ou produzidas de forma voluntária, as quais, sobretudo, a partir de 1960 viriam a ser consideradas como body art. Posto à margem da cena cultural estabelecida pelo poder dominante e comumente associado a uma atividade desumana, o freak show foi considerado como uma manifestação artística inferior em comparação com outras. No entanto muito curiosa, pois era um local aonde era permitido olhar abertamente os corpos que no cotidiano eram olhados encobertamente. As razões que caracterizam este entendimento estavam relacionadas a questões éticas, morais, estéticas e principalmente ao estigma. Mas diferente do que se acredita, o freak show não maculava nem diminuía os artistas com corpos diferenciados exibidos; a questão era a exploração trabalhista em relação ao artista. Enquanto trabalhadores da cena, estes sujeitos que eram tidos como escaras da sociedade, podiam conviver e compartilhar com outros na mesma situação, e salvaguardado alguns casos, adquirir um status social e até mesmo podiam sobreviver financeiramente mediante o lucro obtido no comércio de excentricidades, muito embora na maioria das vezes fossem oprimidos e explorados por quem produzia o show. Finalmente, com o advento da arte contemporânea, os criadores intérpretes com corpos diferenciados que, até então, eram postos à margem dos processos e produtos artísticos ganham espaço, pois artistas de dife-
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rentes linguagens cênicas passam a perceber que os corpos sendo diferenciados podem e devem experimentar o que é dado como possibilidade a qualquer corpo: fazer arte. Neste ínterim podemos citar como expoentes internacionais os diretores de teatro e dança norte-americanos, respectivamente, Robert Wilson e Alito Alessi e no nordeste do Brasil a Companhia Gira Dança. Segundo Luiz Roberto Galizia (2004), no período que iniciou sua carreira artística como diretor, Robert Wilson, passou a conviver com pessoas com corpos diferenciados. Ainda na universidade, sob a orientação da bailarina Byrd Hoffman, desenvolveu atividades artísticas com crianças com corpos diferenciados. No período de 1960 e 1970, conheceu e desenvolveu diversos trabalhos em colaboração com dois artistas também com corpos diferenciados: Christopher Knowles (autista) e Raymond Andrews (surdo). Já o bailarino Alito Alessi é diretor artístico da Joint Forces Dance Co. (JFDC) e fundador da DanceAbility ou habilidade para dançar. DanceAbility é um método de dança para pessoas com ou sem corpos diferenciados que desejam compartilhar, explorar e criar danças. Nos últimos 30 anos, Alessi tem participado no desenvolvimento da dança contemporânea e é conhecido internacionalmente como professor e coreógrafo pioneiro nas áreas de Contato Improvisação, dança e corpos diferenciado. Na região nordeste do Brasil, temos a Companhia Gira Dança, originada na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte; local aonde a autora deste artigo colaborou e dançou no ano de 2011. A Companhia Gira Dança tem em seu elenco bailarinos e bailarinas com e sem corpos diferenciados. É possível atentar que o processo de estigmatização, a qual os criadores intérpretes com corpos diferenciados sofreram e ainda sofrem, está relacionado, sobretudo, a maneira como seus corpos são e se apresentam, já que suas diferenciações corporais fazem surgir uma corporeidade peculiar em cena. Ao apresentar seu corpo, o criador intérprete considerado fora do padrão, ainda que não seja de sua vontade, interfere e provoca reações de cunho social e estético que se opõem aos cânones cênicos tradicionais. Sendo a contemporaneidade uma [...] época em que prevalecem a economia de mercado e o valor simbólico das mercadorias, é preciso atentar para o fato da importância que o corpo adquire e alçá-lo a um patamar condizente com a sua condição e significação. (TONEZZI, 2007, p. 57)
Deste modo delimita-se que a percepção corpóreo/vocal das pessoas com corpos diferenciados é incitada pelos conceitos e valores desiguais
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e preconceituosos da sociedade, influenciando, sobretudo, na maneira como se pensa e idealiza sobre seus corpos. Compreendendo que o corpo é construído historicamente, pode-se entender o significado e a percepção individual e coletiva do que vem a ser o ideário sobre corpo para cada época ou ao longo da história. A sociedade contemporânea, enraizada da ideologia capitalista neoliberal, transforma os imaginários sociais das pessoas, principalmente as com corpos diferenciados através dos meios de comunicação de massa. Diante da nova forma de dominação política e social, nada, nem mesmo o corpo fugirá da métrica mercadológica, inclusive os corpos com diferenças não tão acentuadas, onde a soberania da força da imagem determina o padrão de corpo perfeito, esquecendo-se das variadas funções que o corpo pode realizar seja este corpo como for. Ocorrendo a proliferação nas mídias de imagens com pessoas com corpos malhados, esculpidos cirurgicamente e, por outro lado em contraste, os deteriorados, muitas vezes ocasionados pelo uso de drogas, a publicidade nos meios de comunicação em massa e a indústria cultural evocam, sob a égide da valorização corporal, no imaginário social as imagens de corpos, que na maioria das vezes os indivíduos não têm e nunca terão: saudáveis, jovens, sedutores, bonitos, magros. Neste sentido, os sujeitos com corpos diferenciados, incluindo os obesos, passam cotidianamente, nas trocas sociais, por atitudes preconceituosas e estigmatizantes, pois seu corpo impede que os outros se identifiquem fisicamente com ele. Assim sendo, nas artes cênicas contemporâneas os criadores intérpretes com corpos diferenciados propõem um contato imediato, devido a sua fragilidade e vulnerabilidade, com o receptor. A proximidade entre os corpos resulta em um contágio cênico. (TONEZZI, 2008) Não se trata de uma cena democrática, que dá voz as pessoas que estão à margem da sociedade, nem de uma prática de piedade, mas de um movimento contrário que afirma que o que é socialmente considerado improdutivo e/ou incapaz pode se tornar matéria de criação e experiência estética. Deste modo, as [...] possibilidades de existência reprimidas ou excluídas se efetivam em formas altamente físicas [...] desmentindo aquela percepção que se instalou no mundo à custa de ignorar o quanto é pequeno o campo no qual a vida pode se desenrolar em uma certa ‘normalidade’[pré-estabelecida e vigente]. (LEHMANN, 2007, p. 157)
Na dança e no teatro, a partir de propostas transdisciplinares entre as linguagens artísticas, principalmente com o advento da performance,
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houve mudanças à respeito do corpo na configuração cênica. A cena assume o reconhecimento e a apropriação das singulares características corpóreo/vocais dos criadores intérpretes com corpos diferenciados, não por uma questão assistencialista, como já mencionado, mas como elemento cênico, já que o criador intérprete através de seu corpo tem a oportunidade de participar de um processo criativo, inventar, executar e se transformar na própria obra de arte, tornando-se simultaneamente criador, criatura e criação, e não mais se impondo, apenas, como mero reprodutor-ilustrador textual-coreográfico em cena. O criador intérprete com corpo diferenciado não mais expõe seu corpo em função de seu virtuosismo corporal, mas a partir de uma confrontação com sua imperfeição, pois seu estado de incapacidade para realizar algumas ações se impõe na medida em que provoca o desequilíbrio do que acontece por meio da sua diferenciação, resultando na manifestação e no reconhecimento que o potencializa como matéria estética. O criador intérprete não oculta as limitações físicas do seu corpo diferenciado, pelo contrário, enfatiza-as, o que leva o espectador a ter um olhar mais voyeurístico2 e especialmente curioso diante deste corpo diferenciado em cena. Este fato na concepção de Hans Ulrich Gumbrecht (1998 apud TONEZZI, 2008), possibilita o criador intérprete com corpo diferenciado se tornar um exemplo de “desregulação do signo”, pois se coloca como efeito ilegível da relação entre o ser humano e aquilo que persiste em se opor a percepção e a compreensão de seu olhar. Toda essa dinâmica está pautada
2 Palavra da língua portuguesa relativa à voyeur ou a voyeurismo (voyeurista+-ico) que significa tendência para observar, às escondidas. Infopédia, <http://www.infopedia.pt/ lingua-portuguesa-aao/ voyeur%C3%ADstico>. Acesso em: 12 dez. 2012.
no deslocamento do campo semântico para o sintático e, consequentemente, para o pragmático nas artes cênicas, onde “[...] o corpo se aproxima do espectador de modo ambivalente e ameaçador - porque se recusa a se tornar substância significativa ou ideal e passar para a eternidade como escravo do sentido/ideal.” (LEHMANN, 2007, p. 345) Enquanto na cena tradicional, o corpo representa papéis, na arte contemporânea – centrada na presença do corpo – há a intenção em demonstrar publicamente o corpo e sua decadência e vulnerabilidade em um ato que vivifica muitas vezes arte e vida no sentido artaudiano da cena. Em virtude disto, na contemporaneidade quando o espectador é contagiado, ainda de acordo com os pressupostos de Antonin Artaud (2006), com a presença de criadores intérpretes com corpos diferenciados em cena, suas reações denotam algo de perturbador, pois a presença desses artistas gera alguma identificação por meio de sua diferenciada condição corporal, e isto consiste na lembrança de sua imperfeição e finitude, e, por consequência, a recordação da degeneração humana colocada em evidência.
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Este fato vai ao encontro do pensamento artaudiano, visto que a comparação entre o teatro e a peste como convocações de forças que conduz o espírito à origem de seus conflitos, fazem aflorar e revelar nos seres humanos o que há escondido em seus âmagos. Artaud afirma ser o teatro essencial como a peste porque ambos são revelação e exteriorização de um fundo de crueza humana, através dos quais se localizam no indivíduo as possibilidades perversas do espírito que são desveladas em ações. No teatro e na peste, existe uma espécie de iluminação extracotidiana, e sob essa luz, aquilo que é difícil e impossível de ser visto, é revelado, tornando-se um elemento presente. O teatro e a peste têm o poder de desenredar conflitos, liberar forças, acionar possibilidades. Ambos, peste e teatro, servem para fender coletivamente abscessos morais e sociais. Artaud vê o teatro e a peste como crises que fazem com que os seres humanos se desvendem, e para este impasse apenas existe resolução por duas possibilidades: a cura ou a morte. O teatro faz a humanidade se ver como realmente é, faz cair a máscara, revela a mentira, a ilusão, expõe o social a uma força oculta fazendo com que as pessoas assumam, diante do destino, uma atitude heróica e superior, que não seria possível tomar sem a presença do teatro. A peste e o teatro refazem elos entre vida e arte, profano e sagrado e neste sentido Artaud (2006, p. 29) era incisivo em seu pensamento: O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas [...].
Conforme Margareth Cryden (1974 apud AMARAL, 1991), o teatro proposto por Artaud pode transformar o espectador porque provoca uma desestruturação e mexe com as angústias internas elementares do ser humano. Além disso, a provocação possibilita perceber o que normalmente não é percebido, causa um certo incômodo, e isto pode fazer o teatro de Artaud funcionar como terapia, porque atitudes e situações externas
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provocam reações internas semelhantes. Artaud ainda afirma que deveríamos voltar a um tipo de teatro grave que, desmobilize todas as nossas representações, nos insufle ao magnetismo ardoroso das imagens e enfim atue sobre nós como uma terapêutica da alma. O teatro seria um delírio provocado pela desarmonia criada entre forças físicas e espirituais contrárias, fazendo com que o verdadeiro eu ou o outro venha à tona, o duplo, que vem provocar transformações. Esta suposição cênica foi aquela que Artaud nomeou Teatro da Crueldade, que para ele tinha o significado de um rigor cego desencadeado pela vida, pela tensão que provoca no espírito das pessoas. A vida por si traz uma tortura diária e um constante espezinhar de tudo. Nessas bases, podemos encontrar, desde o nosso nascimento, uma estrutura cultural pronta a que devemos nos adaptar. Na maioria das vezes, esta adaptação é permeada por questionamentos sobre as estruturas encontradas durante o exercício da vida, causando muitas vezes um sofrimento físico ou espiritual. Como podemos ver, este inquietação pode ser apaziguado também pelo teatro de acordo com teoria postulada por Artaud e entendido como eficácia mágica, próxima do ritual religioso ligado, portanto, ao sagrado e ao que as religiões são capazes de operar na vida das pessoas. No caso dos criadores intérpretes com corpos diferenciados na cena, em uma perspectiva artaudiana, o processo receptivo não padronizado dos espectadores está relacionado ao estigma destes corpos. Segundo David Le Breton (2011) o que contribui para a propagação da estigmatização na coletividade é a associação do ser humano com corpo diferenciado estar diretamente ligado a única certeza existencial da humanidade: a finitude humana, a morte. Através de suas singulares características corporais, a simples presença dos seres humanos, no seio das variadas relações sociais, se torna um fator de perturbação entre os demais, uma vez que suscita neles a recordação de que por mais que se tente escapar da precariedade e da fragilidade da condição humana, por meio de procedimentos obstinados a prolongar suas vidas, seus corpos não conseguirão fugir da progressiva e fatal morte. Ao colocar o espectador frente a um corpo diferenciado e a determinadas imagens e sensações provocadas por dissonâncias, imagens e sonoridades que tocam a paisagem interna do espectador, pode-se levá-lo a questionar a fragilidade da vida e o fazer perceber a estrutura social, com desigualdades que encontramos ao nascer, provocando, em alguns um sentimento de aflição, mortificação, suplício, atordoamento. É exatamente este fato que também pode levar as pessoas a questionamentos sobre
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as formas e estilos de vidas adotadas, suas e dos outros, pensar e repensar sobre suas vidas, e o que estão fazendo com elas, sendo cruelmente despertados e convidados a perceber. A cena expondo os criadores intérpretes com corpos diferenciados pode potencializar a crueldade artaudiana e pode instalar uma proposta de instauração cênica capaz de provocar, e a partir do aparelho sensório-perceptivo do espectador, atingir a sua subjetividade e paisagens internas. Provocação que pode ter o poder de proporcionar às pessoas questionamentos sobre a vida e a morte. Percebe-se que esta dinâmica cênica reverbera e se relaciona diretamente ao princípio de que por meio da ênfase da expressão cênica no Teatro da Crueldade deve emergir a emoção e comoção. O criador intérprete com corpo diferenciado pode aparecer como um atleta da afetividade. (ARTAUD, 2006) Neste caso deve acontecer uma linguagem não verbal de luz e som, e, principalmente, deve estar centrado no corpo deste artista, e em tudo que apele aos sentidos do espectador. O criador intérprete com corpo diferenciado deve estar penetrado pela ideia de que a massa humana pensa primeiro com os sentidos e que é absurdo, como no teatro dramático tradicional, dirigir-se primeiro ao entendimento racional das pessoas. A cena apresentada dessa forma pode vir a tocar o espectador em seu âmago, passando a ser um instrumento revolucionário, possibilitando uma reorganização da existência humana. Artaud propõe uma linguagem teatral que utiliza como base os sentidos, resultando de uma pesquisa incessante realizada com o corpo do criador intérprete, que deve ser totalmente preparado para a cena, principalmente através da respiração. Deve-se exprimir o que de hábito não se revela, transgredindo os limites habituais da arte. A encenação deverá tornar-se, para o espectador, uma perigosa terapia da alma, oferecendo expressões diretas de seus sonhos e obsessões, liberando-lhe as forças inconscientes para que ele retorne mais puro à sua existência e sob este aspecto o corpo diferenciado na cena pode nos levar a esta intervenção na vida cotidiana. O criador intérprete com corpo diferenciado sob a perspectiva da poética artaudiana pode passar a ser um atleta da afetividade, podendo desenvolver uma espécie de musculatura afetiva correspondente a localizações físicas dos sentimentos, pois o corpo é apoiado pela respiração, além de que no teatro da crueldade é do mundo afetivo que o ator e a atriz, o bailarino e a bailarina devem tomar consciência, como uma fisicalidade emocional. Assim, a importância da musculatura afetiva do criador intérprete, sobretudo com um corpo diferenciado, deve estar alicerçada na respiração e se estende ao fato de que quanto mais a representação é só-
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bria e contida, mais a respiração é ampla e densa, substancial, sobrecarregada de reflexos. Já se a representação é arrebatadora, volumosa e que se exterioriza, corresponde a uma respiração de ondas curtas e compridas. Cada sentimento, cada movimento do espírito, cada alteração da afetividade humana, corresponde uma respiração própria, que pode ser experimentada segundo os diagramas de respiração. (SALLES, 2004) No teatro e na dança, é do mundo afetivo em relação ao seu aparato corpóreo, que o criador intérprete com corpo diferenciado deve tomar consciência. Podemos exemplificar com o que acontece nas manifestações espetaculares populares, a respiração dos atores-sociais está impregnada pela afetividade, pois a arte faz parte de suas vidas no sentido de que têm um envolvimento emocional/religioso/mágico/sagrado com as manifestações culturais das quais participam efetivamente. E isto pode ser obtido pelos criadores intérpretes segundo Artaud, reduzindo fisiologicamente a alma a uma meada de vibrações através da respiração. Toda emoção tem bases orgânicas. Logo, é possível deduzir que também, além de todo o treinamento com as técnicas corpóreo/vocais, é possível cultivar a emoção no corpo, especificamente através da respiração. O criador intérprete com corpo diferenciado na contemporaneidade não mais ambiciona somente representar, mas se re-a-presentar. Ele passa a ocupar “o ponto central não como um portador de sentido, mas em sua substância física e gesticulação” (LEHMANN, 2007, p. 157) e, rejeitando o papel de significante, se apresenta como uma corporeidade autossuficiente, na qual a presença de qualquer tipo de corpo é utilizável. É considerado como uma realidade autônoma: não narra mais uma história, mas se manifesta através de sua presença como um lugar em que se inscreve a história coletiva. É neste vértice que entendemos que ao criador intérprete com corpo diferenciado também é possibilitado produzir e desenvolver o “corpo sem órgãos” do qual fala Artaud: não um corpo anatômico, mas um corpo imagético gerado por estados singulares de percepções do próprio corpo. É um corpo extracotidiano, na expressão de Eugenio Barba (1995). Um corpo que não tem fome, nem sede, é um corpo xamânico, em êxtase, um corpo que é decorrente da crença no sagrado, na operação da magia, porém este “corpo sem órgãos” pode ser provocado por exercícios psicofísicos, e isto só pode ser totalmente compreendido em sua dimensão total vivenciando-se corporalmente. O “corpo sem órgãos” é proporcionado por alguma interferência interna e/ou externa provocativa e catalisadora. Para entender plenamente esta proposição de Artaud é fundamental vivenciar. O sentido real só será dado para aqueles
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que se predisponham passar por uma experiência física, corporal, de imantação, psicofísica, pois de nenhuma outra forma é possível compreender o real significado do “corpo sem órgãos”, se faz necessário experimentar alguns exercícios que fazem parte do cotidiano dos criadores intérpretes em busca de um corpo para a cena. É preciso colocar no corpo, encarnar estes exercícios, pois eles podem e devem ser vivenciados plenamente pelos criadores intérpretes com corpos diferenciados. O “corpo sem órgãos” artaudiano tem um imenso “fundo falso”, um infinito estado de percepções, dado inicialmente pelo aparelho sensório-perceptivo e ampliado pela sua sensibilização, pela intuição, pelas crenças. O corpo é o relicário de um espaço infinito, de revelação e desvendamentos. O corpo é atravessado por pensamentos, impulsos, desejos, sensações, paisagens internas. E pode vir a ser um corpo sagrado, pois todo e qualquer corpo pode ter o status de sagrado. O corpo no estado sem órgãos permite uma reconstrução do exercício da vida cotidiana, pois uma transformação interna ocorre. O “corpo sem órgãos” provoca novas formas de interação com o mundo e é um espaço infinito que se desdobra sobre si mesmo, está dentro e fora ao mesmo tempo. O “corpo sem órgãos” provém da quebra dos limites e de referências habituais, o que significa nos colocarmos no tempo e no lugar da ação simbólica, fora da psicologia, fora da representação de si, fora da imagem constituída do eu do mundo, trata-se de uma representação espacial. A criação de um “corpo sem órgãos” passa por uma reeducação dos órgãos, por uma nova sensibilidade, e é bastante semelhante ao dilaceramento mítico do deus Dionísio e aos sonhos iniciáticos dos Xamãs. O esquema tradicional da cerimônia iniciática de um Xamã inclui sofrimento, morte e ressurreição. O conteúdo dessas experiências iniciais admite quase sempre o esquartejamento do corpo simbólico, seguido de uma renovação dos órgãos internos e das vísceras, da ascensão ao céu e diálogo com os deuses ou espíritos ou/e descida ao inferno. Para a construção de um “corpo sem órgãos” se faz necessário desconstruir a concepção de corpo organizado, formatado, funcional, com técnicas corporais estabelecidas para dar conta do exercício da vida cotidiana. Concomitantemente, compreendemos que o corpo humano, incluindo obviamente os diferenciados, se caracteriza como uma matriz corpóreo/vocal (SALLES, 2004), onde o corpo é compreendido inicialmente dentro de uma matriz identitária de autorreconhecimento, relacionado ao meio ambiente cultural, levando em consideração sua subjetividade: que corpo é esse; que movimentos do cotidiano podem-se decodificar em extracotidianos para ter um Corpo Sem Órgãos; como se move este corpo nos
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vários ambientes vivenciados e o que traz na memória e percepção corpórea, o imaginário deste corpo e as formas de lidar com os corpos, culturalmente estabelecidas. Neste sentido o autor deste artigo criou Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo, performance que se configura como a parte prática de sua dissertação, na qual propõe um diálogo entre as dores do corpo da artista plástica mexicana em relação ao meu próprio corpo diferenciado.3 Em Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo, além de estarem inseridos aspectos relevantes da biografia e
3 Tem Amiotrofia Espinhal Progressiva.
da arte de Kahlo, outra influência importante é o enfoque na instauração do estigma dos corpos diferenciados no acontecimento cênico e seus desdobramentos nas relações interpessoais na sociedade contemporânea. No início da performance é solicitado aos espectadores que o tirem da cadeira de rodas e o coloquem deitado no tatame posto no espaço. Neste momento eles se assustam e fazem diversas perguntas: Como a gente faz para te pegar? Está doendo? Está machucando? Em qual parte do corpo deve pegar com mais cuidado? Estas reações estão baseadas no entendimento de que através das dificuldades que o outro tem de se relacionar com as pessoas com corpos diferenciados, surgem questionamentos sobre quando, como e em quais situações se deve utilizar os comportamentos mais adequados no momento em que o indivíduo considerado diferente estiver presente e necessitar de ajuda. Provavelmente grande parte dos espectadores não teve relações cotidianas com pessoas com corpos diferenciados, daí o surgimento de suas reações adversas sobre a maneira ideal do deslocamento da cadeira de rodas para o tatame. De acordo com Erving Goffman (1975) fica evidente que quanto mais o indivíduo, considerado dentro das expectativas normativas, não saiba como se comportar diante daquele ser diferenciado e quanto mais suas características corporais não são semelhantes as do sujeito com corpo diferenciado, mais potencializada e difícil será a possibilidade de se começar e permanecer uma relação entre eles. No tatame, o criador intérprete pede aos espectadores que retirem seu figurino. Em seguida, induz que escrevam, individualmente, e fotografem a palavra ou frase sobre o que pensaram no momento em que viram seu corpo diferenciado seminu. Apareceram as seguintes afirmações: Medo; ousado!; mente; fragilidade; coragem; fragilidade aparente; ajudar; cautela; vida; corajoso; diferente; somos um só corpo!; confiante; cuidado. Quase todas as palavras e frases fazem conotação à fragilidade do seu corpo diferenciado. É válido lembrar que o estigma neste caso está ligado, principalmente, ao corpo. E, sendo o corpo uma construção social e cultural, códi-
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gos culturais estabelecem estereótipos corporais (feio/bonito, deficiente/ eficiente, improdutivo/produtivo, anormal/normal) que delineiam expectativas normativas, onde os parâmetros em relação aos diversos corpos cooperam para o estabelecimento de estigma. Todas essas questões acerca do criador intérprete com corpo diferenciado, que é corriqueiramente estigmatizado, relegado ao ostracismo social, porque provoca e desestabiliza a imagem tradicionalmente atribuída ao corpo humano “perfeito”, são intensificadas na cena contemporânea, pois estes artistas trazem registrados em seus corpos as inúmeras situações depreciativas que vivenciaram e vivenciam devido suas condições, e por fim podem e devem ter a oportunidade de questionar, denunciar e subverter junto aos espectadores todo o processo de estigmatização dos seres humanos com corpos diferenciados na arte contemporânea.
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CORPO IMAGINADO: sobre vivências e conceitos percebidos no processo de criação Resumo O artigo analisa a teoria de imagens corpóreas instauradas pelo neurologista António Damásio e sua aplicabilidade na organização cênica Corpo imaginado, realizada em 2011. O trabalho de cunho bibliográfico parte da experiência artística e processual, visando refletir a aplicabilidade dos conceitos teóricos presentes na vivência prática e como, a partir do entendimento desses conceitos a obra é construída. Desta forma, o trabalho se propõe não apenas discutir sobre as percepções alcançadas no processo de criação, mas também refletir sobre o próprio processo e sua organização. Palavras-chave: Corpo; Percepção; Imagem; Comunicação cênica.
IMAGINED BODY: about experiences and concepts perceived in the creation process
Danilo Silveira Acadêmico do Curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade de Sorocaba (UNISO), é integrante do UM – Núcleo de Pesquisa em Dança da FAP. Em 2007, foi intercambista de dança na Universidade Mayor em Santiago do Chile. Em 2009, realizou a micro residência na Cia de Teatro Bonecos de Santo Aleixo em Évora, Portugal. Atualmente,realiza a pesquisa Corpo Imaginado, iniciada em 2010 no Programa de Iniciação Científica da FAP. E-mail: danilosilveiraa@yahoo.com.br
Zeloi Martins dos Santos
Abstract The article analyzes the theory of corporeal images introduced by neurologist Antonio Damasio and their applicability in the scenic organization Imagined body, held in 2011. The work of source bibliographic starts of the artistic experience in process, to reflect the applicability of theoretical concepts found in practical experience and how, from the understanding of these concepts, the work is constructed. Thus, the study aims not only to discuss the perceptions achieved in the creation process, but also reflect on the process itself and its organization.
Professora Adjunta do Colegiado de Dança da FAP e Coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação da FAP. Líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes (GIPA). Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: zeloimartins@gmail.com.
Keywords: Body; Perception; Image; Communication scenic.
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O (re)início de um processo O corpo é imagem em fluxo no tempo e suas imagens emergem como modos de sua própria percepção. Adriana Bittencourt (2009)
O trabalho objetiva dar continuidade na pesquisa proposta para o Programa Institucional de Iniciação Científica da Faculdade de Artes do Paraná, no período de agosto de 2010 a julho de 2011, com o título De Delsarte a Damásio: uma reflexão sobre o movimento1 em que foi realizado estudo bibliográfico sob a orientação da professora Drª. Zeloi Martins dos Santos. A partir da pesquisa teórica tivemos condições para propor uma investigação prática que gerou um processo de criação e posteriormente
1 O artigo referido foi publicado na revista digital O Mosaico, n. 5 e encontra-se disponível em: <http://www.fap.pr.gov.br/ modules/conteudo/conteudo. php?conteudo=246>.
uma organização cênica chamada Corpo imaginado. Toda vivência artística pode ser constituída por diversas formas, meios e lógicas de organização, e essa vivência torna-se responsável pela existência da obra artística. Por hora paremos para pensar em projeto, processo e produto, sendo essa uma organização bastante comum em processos criativos em dança. Muito se discute sobre a arte pensando nestas formas de organização. Porém, podemos chegar a uma resposta exata sobre como se dá esta organização? Existe uma ordem para que ela aconteça? Para discorrer um pouco mais sobre as questões acima, escolhemos agora um ato presente em todo processo de criação: a reflexão. A obra artística Corpo imaginado é composta de projeto, processo e produto. E como parte desta trindade estabelecida, transita a reflexão. Após visitar os cadernos de anotações de pesquisa me interessei por um fato que gostaria de aqui compartilhar para que possamos introduzir o fio condutor da pesquisa. O lugar é a sala de ensaios da Casa Hoffman (espaço onde a pesquisa prática foi desenvolvida). Maio de 2011, início de tarde, início de processo. Estava só, parado em pé no meio da sala, de frente para a janela. Ao longe avistei um bando de pássaros voando entre os edifícios da cidade. Voava no mesmo sentido e mudava de direção juntamente com o vento, desenhando um abstrato trajeto no céu. Ao viver este momento, meu corpo encheu-se de imagens e com elas pus-me a mover no espaço sem pensar no que me fazia mover, apenas dançava através das sensações. A partir dessas sensações a obra artística Corpo imaginado inicialmente tornou-se uma organização cênica focalizada no estudo sobre imagens, embasada na teoria de António Damásio. Buscamos desenvolver
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uma reflexão sobre teorias que discutem o processo criativo em prol a reação do corpo com imagens internas geradas por uma provocação externa. A investigação tratou, deste modo, de análises teóricas sobre experimentações corporais influenciadas por imagens segundo a teoria de Damásio, propondo uma reflexão escrita, através da orientação estética do produto cênico Corpo imaginado, e como cenicamente a interferência sensorial foi trazida com o lúdico, por meio de imagens criadas no corpo do intérprete-criador, trabalhando as relações múltiplas de um o corpo que se constrói em imagens.
A imagem como conceito corporificado Todo corpo é construído por imagens. Tal afirmação, aqui apresentada, torna-se o fio condutor da pesquisa e, portanto, a principal questão de motivação da organização cênica apresentada anteriormente. Porém, antes de dar início à reflexão sobre o entendimento dos conceitos trabalhados em Corpo Imaginado, é de grande importância esclarecer qual o entendimento de “corpo” e “imagem” que orienta a pesquisa. Maria Lucia de Arruda Aranha e Martins (1993) discute o entendimento de corpo a partir das reflexões de Merleau-Ponty, expondo que o corpo não existe enquanto “coisa” e que a consciência não se apresenta apenas em pensamento. Não se separam estes dois objetos para elucidar uma ideia, o corpo torna-se um único fator complexo. Aranha e Martins (1993, p. 208) expõem que: “não existe outro meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o”. As considerações apresentadas dialogam com a teoria elaborada por António Damásio (1996). Para o autor, o conceito de corpo carrega um entendimento de que o mesmo apresenta informações internas e externas. Evidenciamos, assim, que Damásio não acredita que “corpo” esteja desassociado de “mente”. A palavra “corpo” já carrega em sua totalidade o entendimento de que esse tem uma “mente”. A evolução do entendimento dos conceitos aplicados por Damásio neste trabalho se constrói a partir da pesquisa iniciada em 2010 em que se entende a origem do movimento como agente de sensações e percepções corporais. Esse processo Damásio chama de fluxo de imagens. Aqui, este conceito – a imagem – é rediscutido, revivenciado ou, como propõe Damásio, repercebido. Segundo Damásio (2000), a imagem não é somente visual, ela se apresenta em todas as formas sensitivas corporais. Deste modo, esse conceito não se torna representativo, e sim um conceito
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físico. Toda ação realizada pelo corpo é composta por inúmeras imagens presentes no histórico corporal. Qualquer símbolo que se possa conceber é uma imagem, e pode haver pouco resíduo mental que não se componha de imagens. Até mesmo os sentimentos que constituem o pano de fundo de cada instante mental são imagens. (DAMÁSIO, 2004, p. 403)
Damásio (2000) explica que os padrões de movimentação do corpo enquanto organismo, respondem a diversos estímulos sensoriais e assim interagem com o meio. Desta forma, as evidências externas da consciência são facilmente apresentadas e o corpo sempre existirá em movimento a partir de estímulos do ambiente. Assim, o fluxo de imagens é a correspondência interior e cognitiva das ações observadas e realizadas por nós. Certas imagens irão ocorrer no corpo momentos antes de tais ações, porém, também existem imagens que serão criadas após a realização de determinado fato ou ação. A consciência central contém um senso interior aprimorado em imagens e o senso interior comunica uma prestigiosa mensagem não verbal sobre a relação entre o organismo e o objeto2 explica Damásio (2000). Assim, a consciência central é motivada para cada conteúdo do qual necessitamos estar conscientes. Ela é a informação que se internaliza quando alguma pessoa se vê perante a um objeto, arquitetando um padrão neural para ele e descobrindo automaticamente que a imagem do objeto agora realçada é constituída de sua perspectiva que lhe compete e que é plausível até mesmo operar sobre ela. Chega-se a essa informação instan-
2 Estes conceitos elaborados por Damásio (2000) são entendidos como: organismo sendo o meio de ocorrência da consciência, o próprio corpo do ser humano; já o objeto torna-se qualquer corpo externo que temos contato. As relações entre estes dois atores é o conteúdo do conhecimento que denominamos consciência.
taneamente, não existe nenhum processo coeso, existe a imagem da coisa e logo em seguida o senso de que essa imagem lhe pertence. “Apenas uma pequena parte do que ocorre mentalmente é de fato clara e bem iluminada o bastante para ser notada e, no entanto ela está lá, nada distante, quem sabe ao alcance de quem a busca”. (Damásio, 2000, p. 171) Adriana Bittencourt (2009), pesquisadora de dança e da teoria axiomática de Damásio, apresenta o conceito de imagem enquanto mecanismo de comunicação entre corpo e ambiente, ressaltando que esse não se aconselha a ser entendido como objeto representativo e sim como acontecimento, e/ou, informação física. Assim como Damásio, Bittencourt rediscute o entendimento desse conceito como canal de informação de reprodução fotográfica da realidade. “Corpo” e “imagem” são dois conceitos que se correlacionam ininterruptamente. As imagens, portanto, são vis-
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tas como informações configuradas em corpo e apresentando, desta forma, seus estados que por sua vez ocorrem a partir da organização singular de cada corpo e sua relação com o ambiente. Para Bittencourt (2009, p. 2), “imagem no corpo é sempre uma ação que desliza pela instabilidade dos ajustes que enfrenta para se tornar uma presentidade.” Toda imagem surge correlacionada com o ambiente e como auto-organização das múltiplas informações presentes no corpo. O corpo é coletivo de informações transitórias que se constroem e se revelam através das interferências de seu meio circundante e, por conseguinte, apresentado através de imagens. As múltiplas imagens, de que falamos aqui, são e se apresentam de diferentes modos no corpo. Para Bittencourt (2009, p. 3) “as imagens são formas de percepção do corpo”. Entender este pensamento nos faz refletir sobre as percepções alcançadas no processo criativo da obra em questão Corpo imaginado. As imagens são acontecimentos únicos, espetaculares e sempre se baseiam no histórico presente de cada corpo, uma vez que “o corpo opera em sua presentidade, sua ação de perceber é sempre modificada; imagens não copiam outras imagens nem tampouco os fenômenos aos quais elas se referem”. (BITTENCOURT, 2009, p. 4) O corpo está em constante transformação, e evidenciamos que essa se dá pela ininterrupta atualização de informação entre corpo, cérebro e ambiente e a relação entre todos esses fatores funcionais. Assim sendo, o modo de percepção é por consequência, atualizado da mesma forma. O ato de perceber determinada coisa nunca acontece da mesma forma que antes, tornando-se um ato efêmero, assim como as imagens. O corpo está em constante processo de reperceber. As imagens são acontecimentos temporários do corpo que é feito de acontecimentos, segundo afirma Bittencourt (2009). Compreendemos que sua operação é realizada entre informações organizadas e representadas como ideias. Desta forma, no processo de criação de Corpo Imaginado, compreendemos que “a percepção implica uma ação de modificação”. (BITTENCOURT, 2009, p. 6) Em Corpo Imaginado os conceitos se corporificam ao mesmo tempo em que o entendimento destes conceitos é repercebido e “imaginado”. Constatamos desta forma que o corpo atua por meio de imagens enquanto acontecimento físico e, assim, como defende Damásio, o corpo é imagem em movimento.
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Corpo imaginado: um relato reflexivo Habitualmente, no processo criativo em dança, muitas questões arquitetam a estrutura corporal do artista. Afinal, de onde parte o processo de criação? E a força de mobilização da ideia, de onde vem e para onde vai? Quem é a pessoa – corpo indivíduo – que está posta em cena? O que neste processo tem de real importância para o artista enquanto ser político? Estas questões podem ser muitas, mas o que nos cabe aqui discutir também é o corpo do artista criador em dança e como este se encontra no processo de criação. Vimos que o corpo é coletivo de informações e dentro do processo criativo este corpo lida com suas informações e com as questões que regem a obra artística a partir de suas dramaturgias corporais. Para Chistine Greiner (2005), a dramaturgia do corpo é o regimento incessante de um fluxo informacional entre corpo e ambiente, estabelecendo um processo palpável de comunicação. Segundo Greiner (2005, p. 81), “para pensar a dramaturgia de um corpo, há de se perceber um corpo a partir de suas mudanças de estado” –, existe uma infinita rede de contaminação entre corpo e mundo, entre o real e o imaginário e entre o presente e o passado. A dramaturgia do corpo é algo que surge da ação e, assim, constrói um corpo que vive a experiência criativa. Essa experiência é regada de percepções e constatações, fazendo com que o trabalho artístico se aprofunde em si mesmo para que o processo seja mutável por meio da compreensão dos litígios que habitam o corpo do artista pesquisador. Para Cecília Salles (2009), uma forma de compreender a criação pode ser aceitá-la como um processo contínuo de interconexões instáveis, em que o artista estabelece uma afinidade com seu espaço e seu tempo. O processo de criação se constrói de acordo com as relações destas interconexões realizadas pelo artista e este é um caminho que se distancia da linearidade e do estabelecimento de hierarquias. No processo de criação, a ideia de mobilização pode por muitas vezes se apresentar de forma caótica e ambígua, impregnada por distintas questões que direcionam o trabalho artístico para possíveis vertentes ulteriores. Temos conhecimento de que a transitoriedade de ideias no processo de criação artística pode ser cabível, contudo, nos compete nesta reflexão discutir a insistência do entendimento dos conceitos presentes no processo criativo para uma possível evolução (transformação) da obra artística. Salles (2010) defende que o ato de criar se dá no modo como as relações são constituídas. Essa laboração torna-se um artifício de mutação. A percepção do artista é uma atividade criadora, afirma Salles (2010),
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e por consequência, torna-se uma ação transformadora. Deste modo, as ações transformadoras no processo criativo do artista podem estar dentro da mesma organização artística de origem. Uma vez que o ato perceptivo da ideia é, por si só, transformador. O foco de atenção é o processo por meio do qual algo não existia antes, como tal, passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. Um artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. [...] O poder da descoberta de cada teoria e a habilidade interpretativa de cada pesquisador oferecem a possibilidade de nos aproximarmos mais do percurso criador. (SALLES, 2009, p. 13)
No processo criativo de Corpo Imaginado, se concretiza a percepção de que este é ao mesmo tempo repercebido. Esse acontecimento – ato de reperceber determinada coisa – é apresentado e defendido na teoria de Damásio, que vem contextualizar a organização tratada em Corpo Imaginado. A percepção de dado fato ou ação é constantemente atualizada, e por isso, evoluída. Assim sendo, aprimorar torna-se corporificar. Anteriormente foi compartilhado um instante vivido no processo de Corpo Imaginado, em que relatamos um momento de início do processo de criação. Estas percepções são agora dialogadas com os conceitos presentes na obra, sendo eles a imagem e seu entendimento a partir da reflexão proposta por Damásio. No processo de Corpo imaginado, esses conceitos foram surgindo juntamente com as necessidades artísticas, justapondo as informações e dramaturgias do corpo do intérprete criador e, assim, eles foram percebidos e processualmente repercebidos. Este fator faz com que a obra evolua por meio de si mesma, por meio da percepção e reflexão. Ideias outras, possíveis de serem acessadas no processo, não se tornam necessariamente um inusitado fator a ser esquadrinhado pelo artista. A ideia primeira de criação pode ser radicada, entendida, repercebida e, por conseguinte, coadaptada. Iniciamos neste texto, expondo algumas etapas que fazem parte da organização artística delimitando-as em projeto, processo e produto. Esta trindade de organização metodológica é presente em toda obra artística, porém, tal organização não se apresenta da mesma forma para todos. Podemos perceber que o modo de compreender o processo de criação se dá através de múltiplos fatores presentes no corpo de cada artista. “O olhar científico procura ditar explicações para o processo criativo, [...] o movimento do olhar nasce no estabelecimento de nexos entre os vestígios”.
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(SALLES, 2009. p. 19) Impossível perceber onde se iniciam ou terminam as etapas do processo de criar. Este processo pode estar repleto de rastros que o conduzem e o configuram. “O percurso da criação mostra-se como um emaranhado de ações que, em um olhar ao longo do tempo, deixam transparecer repetições significativas”. (SALLES, 2009. p. 21) Enquanto um sujeito se entender como artista, este continuamente estará à beira da reflexão de sua obra, à beira de um pós-passo do fim/início/meio.
Considerações finais Demos origem ao trabalho discutindo sobre a vivência artística e suas formas de organização. Concluímos que a organização da obra de Corpo Imaginado se deu a partir do ato de reperceber, assim como defende Damásio. Após a reflexão sobre a vivência e os conceitos percebidos no processo de criação da obra, compreendemos com o trabalho que o modo (receita) de organização de tal processo pode vir a ser irrelevante. No entanto, o entendimento dos conceitos presentes na obra é que constrói a prática artística em questão, como propõe Salles, ressaltando vários aspectos que contribuem para o pensamento do individuo como sujeito atuante de um contexto sociocultural. Desta forma a vivência em dança, calcada no desenvolvimento criativo, no exercício coletivo e no olhar poético, pode promover transformações no modo de ver e vivenciar as condições de convívio artístico reflexivo. Sendo assim, evidenciamos que a dança se configura em forma de comunicação e sua essência pressupõe o contato com diversas áreas de conhecimento, ampliando os limites de suas fronteiras e aguçando no sujeito-artista o senso crítico sobre suas ações em comunhão com os múltiplos processos existentes no corpo. Estes processos, sejam eles internos ou externos, existem independentes da percepção ou do reconhecimento que se tem para com eles. No entanto, a dança, antes de qualquer coisa, é um processo de organização de informações que parte de outro também processo de organização de informações que é o próprio corpo, ou seja, torna-se quase que uma arte metalinguística. Desta forma, o processo interno posto em questão sempre estará presente e passivo a reconhecimento. No entanto, acredito enquanto artista, na ação de tatear estas informações, no reconhecimento dos processos internos e externos, no fazer dança em seu artifício metalinguístico, resumindo a dança no puro ato de ser.
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Referências ARANHA, Maria Lucia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução a filosofia. 2. ed. rev. atual. São Paulo, SP: Moderna, 1993. 395 p., il. BITTENCOURT, Adriana. Dispositivos da comunicação: as imagens como propositores do corpo. Revista Científica, Curitiba, v. 4 n. 2, p. 1-15, 2009. DAMÁSIO, António R. Em busca de Spinoza: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DAMÁSIO, António R. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 4. ed. São Paulo: Fapesp: Annablume, 2009. SALLES, Cecília Almeida. Processo de criação como redes em construção. Redes da Criação, 24 set. 2010. Disponível em: <http://www.redesdecriacao.org.br/?p=215> Acessado em: 19 maio. 2012.
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“Táticas” nas margens do rio e nos interstícios da vida: corpografias urbanas em Sena Madureira-AC Resumo A experiência do corpo no cotidiano da cidade não é vista de maneira antagônica à experiência corporal criativa, mas como prática cultural que expressa a dialética entre corpo e cidade. Nas fissuras da tradição estética amazonialista, estudos corpográficos configuram-se como possibilidades de compreensão da questão urbana – uma alternativa de produção e circulação de novos sentidos sobre a experiência cotidiana da cidade por meio da arte. As corpografias e paisagens sonoras urbanas foram tomadas como categoria de análise de práticas culturais nas imediações do Rio Iaco, na cidade de Sena Madureira-Acre. Inspirado nas letras de Michel de Certeau, Guy Debord e Richard Sennett, este texto trata de não mais imaginar o corpo humano asfixiado pelo nó do poder, mas desatar esse nó e explorar os prazeres corporais que não se deixam aprisionar pela sociedade.
Joana de Oliveira Dias Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) e cursa o Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Acre. É docente em Ecologia do Instituto Federal do Acre/ Campus Sena Madureira e pesquisadora do grupo Ateliê de Pesquisa Sóciotécnico-tecnológica em Cenas Amazônicas. E-mail:joana.dias@ifac.edu.br
Palavras-chave: Corpografias urbanas; Estéticas territoriais; Práticas espaciais.
“Tactics” on the banks of river and in the interstices of life: urban corpographies in Sena Madureira-AC Abstract The corporal experience in the day to day of the city is not so antagonistic to the creative corporal experience, but a cultural practice that expresses the dialectic between body and city. In the fissures of the amazonialist aesthetic tradition, corpographic studies are configured as a possibility of understanding urban issues – an alternative to produce and circulate new meanings regarding the everyday experience of the city through art. The urban corpographies and soundscapes were chosen as a category of analysis of cultural practices in and around the Iaco River, Sena Madureira, Acre. Inspired by the lyrics of Michel de Certeau, Guy Debord and Richard Sennett, this text aims to imagine the human body no longer suffocated by power relations but loosen the knot and explore corporal pleasures that are not imprisoned by society. Keywords: Urban corpographies; Territorial aesthetics; Spatial practices.
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Cartografar corpografias Essa história começa ao rés do chão, com passos. Michel de Certeau (2011)
E esta viagem não/ tem cartografia./ Sabe-se apenas/ que todas as ruas começam no rio/ e não voltam de suas/ enormes distâncias/ lentas. O território/ da cidade é o nada. Aldísio Filgueiras (2006)
Este ensaio aceita o convite à interdisciplinaridade na pesquisa e nos processos criativos em dança ao analisar a prática espacial cotidiana como poética do espaço, portanto, como criação, invenção do espaço – e do tempo – por meio da corporeidade que dá acesso ao mundo. O estudo de corpografias na cidade de Sena Madureira-AC serve para problematizar as formas de inserção da arte no dia a dia da cidade e contribui para tornar mais complexos os processos criativos em dança. Em outras palavras, a arte poderia então configurar-se como possibilidade de compreensão da questão urbana – uma alternativa de produção e circulação de novos sentidos sobre a experiência cotidiana da cidade. Inspirada nas letras de Michel de Certeau, Guy Debord e Richard Sennett, e nas paisagens sonoras de Murray Schafer, esta experiência tem como referência as abordagens teórico-metodológicas da Plataforma Corpocidade, do Projeto Caminhar na Cidade, dos Grupos de Pesquisa Laboratório Urbano e Visões Urbanas (PPG em Arquitetura e Urbanismo) e Laboratório Coadaptativo (PPG em Dança), da Universidade Federal da Bahia. Entre as diversas formas de apreender as práticas espaciais, a abordagem metodológica “fazer corpo – ganhar corpo – dar corpo” às ambiências urbanas considera o corpo do pesquisador, de tal forma afetado pelas diversas situações das quais ele participa, não só um instrumento de captura, mas um instrumento de inteligibilidade dos processos engendrados no cotidiano com relação aos pedestres, entre eles e nas ambiências urbanas. É preciso se misturar ao lugar em observações sistemáticas. Pensar o corpo envolve a criação/apropriação de linguagens e instrumentos narrativos – um esforço de tradução da materialidade da experiência urbana: as “miniaturas urbanas videográficas”, apresentadas neste ensaio por meio de fotografias.
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Um observador de uma pessoa em movimento fica imediatamente consciente, não apenas dos percursos e ritmos de movimento, mas também das atmosferas que os percursos carregam em si, já que as formas do movimento através do espaço são tingidas pelos sentimentos e pelas ideias. E o conteúdo dos pensamentos e emoções que temos ao nos movermos ou ao observarmos o movimento podem ser analisados tanto quanto as formas e linhas traçadas no espaço (LABAN, 1978 apud FERNANDES, 2006, p. 22)
A partir daí, foram realizadas inúmeras caminhadas nas imediações do Rio Iaco, em diferentes horários, dias da semana, dias do mês e condições climáticas, que levaram à definição de pontos fixos de registro audiovisual: o acesso à catraia – um pequeno barco – que faz a travessia de um lado a outro do rio (Fig.1 e 2) e a feira (Fig.3). Figura 1: Vista do porto da catraia.
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Figura 2: Vista do porto da catraia.
Fonte: Arquivo autora.
Figura 3: Vista da Feira Municipal de Sena Madureira-AC.
Fonte: Arquivo autora.
A linguagem audiovisual reflete uma forma de ver imbricada às relações sociais, na interação que dá forma ao contexto espacial e temporal que cria o instante apreendido pela “racionalidade matemática” da máquina, a partir da escolha estética, técnica ou ideológica de composição da imagem. (FRANCO, 1993/1994)
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O material gerado foi sistematizado e a análise consistiu em um exercício de aproximação dos instrumentos apresentados por Patrice Pavis (2008) e Ciane Fernandes (2006): descrição das ações que permeiam os fluxos de circulação no espaço, os objetos que compõem esses fluxos, paisagens sonoras, caracterização da ambiência percorrida – estruturas, texturas, odores, cores. Paola Jacques (2010) relacionou as práticas de apropriação do espaço à produção de espaços em movimento. Portanto, não se refere ao espaço físico como “cenário”, mas, sobretudo, ao ato de quem o percorre, constrói e transforma continuamente. A ideia de corpografia urbana expressa a dialética entre corpo e cidade: a cidade concebida como cofator de configuração da corporalidade de seus habitantes e condição de continuidade das próprias corpografias que contribui para formular. (BRITTO, 2010) Chamamos de corpografia urbana este tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, as diferentes memórias urbanas inscritas no corpo, o registro de experiências corporais da cidade, uma espécie de grafia da cidade vivida que fica inscrita, mas ao mesmo tempo configura o corpo de quem a experimenta. A cidade experimentada é percebida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo, em sua corporalidade, corpografias urbanas. A corpografia seria então uma espécie de cartografia corporal, que parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta e, dessa forma, também o define, mesmo involuntariamente. A ideia de corpografia propõe articular os aspectos processuais e configurativos implicados no relacionamento do corpo com a cidade que tanto registra quanto reorganiza a síntese desse relacionamento e, assim, estabelece as novas condições para continuidade desta complexa relação. Em resumo: além dos corpos ficarem inscritos e contribuírem na formulação do traçado das ruas, as memórias destas ruas também ficam inscritas e contribuem na configuração de nossos corpos. ( JACQUES, 2010, p. 114)
Tomar a corpografia urbana como uma categoria de análise faz pensar que as minhas trajetórias na cidade, no momento da interlocução com as pessoas e os espaços sobre os quais me debruço nesta pesquisa, produzem também uma corpografia. Portanto, querendo ou não, trata-se de uma ação que acontecerá de acordo com uma série de condicionantes que serão
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[...] negociadas, moldadas, adaptadas, incorporadas ou negligenciadas a cada instante: os ritmos da cidade, os comportamentos e as reações dos passantes, as leis (formais e/ou informais) que regulam os usos do espaço [...]. É exatamente nesta relação situacional, ocasional e circunstancial entre a ‘intervenção urbana’, os interventores e o urbano é que a obra acontece: na experiência de estar lá. (BRASIL, 2010, p. 125)
O porto da “catraia de cima” Calçadas e escadarias/ se precipitam a dançar/ sob os dorsos dobrados/ dançam-que-dançam/ no balanço morno/ das águas/ de viagem. Nunca mais/ vão parar/ de chegar/ a qualquer lugar nenhum/ estes pés/ e mãos sem prumo no convés das calçadas. Aldísio Filgueiras (2006)
São bonés e sombrinhas de muitas cores. A “zuada” do motor da catraia marca a temporalidade do porto: a correia puxada na partida, a palheta rodada fora d’água nas manobras precisas (ou não), a aceleração na travessia do rio que torna o som do motor distante. Aí o galo canta, as crianças riem e são muitas as conversas no alto do barranco do rio. Passarinhos, insetos, cachorros e uma canoa pequena que “encosta” no porto. Ouve-se o rap ou o forró no celular que passa. Os passos levam as sandálias. O ar se pode ouvir no vento, constante, e na respiração ofegante de quem sobe as “escadinhas”. Nas brincadeiras ouve-se “ai não to conseguindo subir”, quando de mãos dadas um puxa o outro. A câmera convida ao pedido “a gente quer é a ponte!”. A catraia não é só lugar de passagem, mas também de encontros que interrompem a subida ou descida do barranco: “vai lá em casa no sábado”. As bicicletas são levadas na lateral do corpo, suspensas na altura do quadril, mas principalmente apoiadas em um dos ombros – com o braço flexionado, a mão segura o quadro, enquanto o braço oposto permanece livre ou equilibra a bicicleta pelo guidão (Fig. 4, 5 e 6). O momento culminante é o giro com a parte superior do corpo, que transfere a bicicleta do ombro ao chão da embarcação, em três passos que levam da escada – estrado de madeira sobre a água – à borda e em seguida ao chão da canoa, onde a transferência de peso produz também sonoridade específica.
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Figuras 4,5, 6: Imagens do porto da catraia no Rio Iaco e seus fluxos (Sena Madureira-AC)
Fonte: Arquivo da autora.
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O barranco é descido com pressa quando a catraia já vai, ou aos pouquinhos enquanto a catraia não vem. A descida acelerada leva aos saltos. Os gestos dos braços buscam equilíbrio, de acordo com o relevo acidentado – quando livre, o braço insiste em estender-se na lateral do corpo, com suavidade, e chega a subir à altura da cabeça, de forma repentina, apressando-se para evitar a queda. É comum o caminhar ziguezagueando e são muitas as estratégias de esquiva – movimentos evasivos para evitar o contato: rotação do tronco, mudanças na trajetória do percurso, além de pausas para permitir àquele que desce da catraia passar primeiro, principalmente nos trechos limitados pela água. Na topografia do barranco, o ritmo dos passos torna-se bastante variado e o caminhar exige esforço e destreza nos joelhos e tornozelos. Ao embarcar e desembarcar da catraia as mãos buscam apoio no varejão que serve de baliza ao catraieiro, assim como a parte superior do corpo curva-se por conta da cobertura da catraia. A subida do barranco tem a cadência marcada por movimentos do tórax, levemente inclinado para frente, e por impulsos fortes. Nessa hora, crianças “pedem colo”. Muitas vezes uma mão é apoiada na coxa, ou ambas as mãos entrelaçadas, acompanhando o movimento dos passos. São muitas as texturas, mas chama atenção o espelho d’água do rio, a vegetação rasteira da “praia”, o barranco de areia alaranjada, as escadinhas – estrados de madeira sobre o rio e acidentes do relevo – e os degraus marcados na terra com toras de madeira.
A feira no sábado Na feira, ouve-se o famoso “burburinho” das conversas, aliás, ouvem-se até cotovelos. Risos e silêncios em diferentes línguas. Ouvem-se dedos em riste e chinelos arrastados no chão de azulejos ou tijolinhos, para frear a bicicleta. Nem as paredes ficam quietas. Ouve-se o rádio pendurado no poste ou à venda no balcão. Ouvem-se os cachorros e as galinhas à venda no cercadinho de madeira e arame. Freios, buzinas, motos, caminhões, passos, aros de bicicleta. A ignição e a partida. Bancos e mesas colocados no chão ou arrastados. Assovios, cumprimentos, risadinhas. Ouvem-se as panelas da pensão. Os copos de lata no saco de feijão e o escorrer dos grãos para a sacola. A fita elástica que prende e desprende o bolo de DVDs. Muitos celulares: “vou já ligar pra ele” e muitos carros de campanha eleitoral. A câmera vira motivo de comentário, hesitação, brincadeiras e muitas poses.
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O chão da calçada é compartilhado: motos, bicicletas, melancias, galinhas caipiras (viva ou congelada e temperada), verduras, pães, CDs e DVDs, carrinhos de picolés, carrinhos ambulantes que vendem “de um, tudo”. Os fluxos do caminhar são constantemente redefinidos a cada nova ocupação do espaço. São difusos, imprevisíveis: ora orientados pelo ir e vir à feira, ora pelo interesse em produtos, ora pelo (des)encontro com outras pessoas, e também para aproximação ou distanciamento da câmera. Na área aberta, a configuração no espaço é orientada também pela variação da luz do sol. A circulação leva a manobras de todos os tipos, que se tornam ainda mais interessantes quando envolvem objetos que são como prolongamentos do corpo, como os carrinhos ambulantes (Fig. 7 a 11). Figura 7: Movimentos de um vendedor ambulante na calçada da feira municipal
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Figura 8: Movimentos de um vendedor ambulante na calรงada da feira municipal
Figura 9: Movimentos de um vendedor ambulante na calรงada da feira municipal
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Figura 10: Movimentos de um vendedor ambulante na calรงada da feira municipal
Figura 11: Movimentos de um vendedor ambulante na calรงada da feira municipal
Fonte: Arquivo da autora.
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Muitas pessoas carregam sacolas plásticas, bolsas, carteiras, cachos de banana comprida, melancias, e também muitas delas não manipulam objetos, apenas caminham em diferentes ritmos. Mas há vendedores que levam do prato à lanterna: de mochila nas costas, apropriam-se momentaneamente de espaços nas bancas de outros para efetuar a venda. As pessoas alimentam-se em pé ou mesas e cadeiras com muita pimenta. Ao sentar-se, é comum o uso de banquinhos (tamboretes), principalmente por vendedores nas bancas. Com a disposição dos produtos no chão, os corpos sobem e descem o tempo todo – ora com as pernas dobradas, ora com giros da parte superior do corpo – e carregam peso, concentrado na parte superior das costas e nos ombros.
A feira no domingo O subúrbio é um aterro/ sanitário/ de onde oficiais/ de justiça despejam/ a exclusão dos campos/ e das fábricas// mas tudo são ordens. Aldísio Filgueiras (2006)
No domingo, o forró de teclado tocado ao vivo muda a ambiência da feira... O alto volume do som faz com que as pessoas se aproximem ou gesticulem em um espaço mais amplo, por vezes aproximando-se da mímica. Em frente ao tocador, na sombra das árvores, o espaço é reservado para a dança. Ao redor, em pé, sobre as muretas ou sentadas nas bicicletas, pessoas de todas as idades espalham-se observando (e sendo observadas), apontando e comentando sobre os dançarinos e suas estripulias. A dupla “mais arrojada” no forró ganha como prêmio um DVD, assim, o rebolado é caprichado. A descontração permeia os movimentos dos que dançam sozinhos, mas em interação com os demais, que parecem mais brincar com as possibilidades do corpo. Saltos, corpos vibrantes, descidas e subidas, calcanhares e ombros a tremer, palmas e braços estendidos seguindo a expressividade da música. A mão na altura do umbigo às vezes imita a dança com o par, entretanto não há linearidade ou ideia de conjunto dos movimentos, mas um corpo submetido a impulsos. Sandálias, botas, pés descalços. Gritos de animação respondem ao ritmo intenso impresso pelo teclado. As crianças espiam do alto das árvores. As bancadas, que serviam para a exposição minuciosamente ordenada dos produtos, agora abrigam os cotovelos de pessoas escoradas ou trans-
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formam-se em bancos. Mãos nas cinturas, pernas cruzadas, sorrisos nos rostos. Nos bares da feira, o fluxo de pessoas também é intenso. Vende-se cigarro a varejo, picolés, bombons, catam-se as latinhas. Quando o teclado silencia, o som das conversas toma conta do espaço, e a configuração antes observada aos poucos se desfaz...
Estéticas territoriais Uma camisa/ sem pé nem cabeça/ Despenca/ dos andaimes/ frouxos/ mão na/ frente/ outra atrás/ sem pagar o aluguel. Aldísio Filgueiras (2006)
As relações sociais inscrevem-se no espaço e no tempo, produzindo-os, constantemente, em seus limites e possibilidades. Essa produção social do espaço é para Ana Fani A. Carlos (2001) a prática socioespacial: [...] as relações sociais possuem existência real como existência espacial concreta na media em que produzem, efetivamente, um espaço, aí se inscrevendo e se realizando. As relações sociais ocorrem em um lugar determinado, sem a qual não se concretizariam, em um tempo fixado ou determinado que marcaria a duração da ação. É assim que espaço e tempo aparecem por meio da ação humana em sua indissociabilidade, uma ação que se realiza como modo de apropriação. A ação que se volta para o fim de concretizar, ou melhor, viabilizar a existência humana realizar-se-ia como processo de reprodução da vida, pela mediação do processo de apropriação do mundo. (CARLOS, 2001 p. 13)
A prática sócio-espacial supõe gestos, falas, olhares, escutas, toques, intuições do corpo e entre corpos. Portanto, o que aqui se denomina “táticas de espaços” (e tempos) poderia ter como metáfora a mediação cultural entre o corpo, outros corpos, o tempo e o espaço. A dialética sócio-espacial articula materialidades e práticas discursivas e não-discursivas, nos permite vislumbrar que diferentes práticas espaciais são tanto o resultado quanto a causa de dinâmicas sociais. (PIAZZINI, 2012) O termo “tática” é tomado de Michel de Certeau (2011), que propõe o percurso ao rés do chão como ação espacializante. O olhar voltado às táticas de espaços analisa menos o que permanece, enquanto
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[...] fornece os meios de reconhecimento do efêmero, da ocasião aproveitada ou perdida, desse fazer que não capitaliza seus efeitos em um lugar definido, breve, de como ‘se’ praticam comumente, isto é, no dia-a-dia, de maneira indefinidamente recorrente e nunca idêntica, os espaços ordenados que não ‘se’ construiu nem ‘se’ quis, mas dos quais ‘se’ é simplesmente usuário. É isto mesmo a invenção do cotidiano. (CHARTIER; HÉBRARD, 1998, p. 31)
Interessa a assertiva de Michel de Certeau na qual o espaço remete ao movimento que condiciona sua produção. Ao contrário das “estratégias” definidas a priori em planos, mapas, documentos ou leis, nas táticas de espaços não há texto enunciado a inscrever-se no espaço: o praticante se apropria do espaço transformando o ordenamento de fluxos pré-estabelecido. Como nas palavras de Aldísio Filgueiras (2006, p. 35): “Nômades do rio/ Nômades da rua// Ai! Este povo em fuga// Nômades de não/ mais ser que/ um zé sem nome// Ai! Este povo em fuga”. Por certo, a opacidade do corpo em movimento só pode ser tomada como desviante nos interstícios dos códigos que desmancha em seus deslocamentos. Portanto, é das margens aos interstícios a trajetória percorrida para situar essas práticas. “(O subúrbio não é só/ o longe, quase invisível,/ como refere a gramática/ tola das academias./ Às vezes, se insinua/ tão perto essa distância,/ que nos atropela/ sua roda de quatro patas)”. (FILGUEIRAS, 2006, p. 27) A tradição estética a partir da qual a relação entre ser humano e espaço na Amazônia foi inventada – uma espécie de prisma que cerceia a percepção da cultura, e, portanto, da diferença – enquadra olhares e análises segundo formas e relações de poder hegemônicas. Reside aí, portanto, a importância da dimensão estética como forma de apreender e pensar as coimplicações entre corpo e cidade, expressas na ideia de corpografia urbana. Às palavras de Beatriz Sarlo (2005, p. 59) “Olho a partir de minhas preferências estéticas”, é possível acrescentar-se: olho, ouço, cheiro, falo, ando – sinto em todos os sentidos. Consiste em um desafio, portanto, cartografar corpografias sem tentar simplesmente adequar uma visão de mundo prévia ao que se percebe, mas abrir-se à experiência estética como acontecimento, dilatando a intensidade dos encontros. O olhar voltado para o ser humano e a complexidade das práticas culturais nos remete à educação dos sentidos, analisada por Norbert Elias (1994) e retratada em poema: “É assim que a cidade/ invade a floresta/ de tangas e miçangas/ pisa nas fontes/ de água e de vida/ afoga os peixes/ dá uma raiva na gente/ e ensina a dizer// bom dia, obrigado.” (FILGUEIRAS,
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2006, p. 67) Entretanto, é notória a astúcia da criatividade cotidiana que liberta o corpo de qualquer determinismo anti-histórico. Nas palavras de Richard Sennett (2010), trata-se de não mais imaginar o corpo humano asfixiado pelo nó do poder, mas desatar esse nó e explorar os prazeres corporais que não se deixam aprisionar pela sociedade. Nas imediações do Rio Iaco, as práticas espaciais e os constantes itinerários e intercâmbios – ou seja, os fluxos – nos permitem explicitar que as corpografias não são “tão urbanas assim”. Em outras palavras, a questão urbana não é entendida dissociada da questão agrária. Ao relacionar a construção de territórios à construção de subjetividades, chegamos à análise de estéticas territoriais – comumente atribuídas apenas à arquitetura e mobiliários – vislumbradas agora em corpografias que não se aprisionam aos consensos da cidade-“espetáculo” (DEBORD, 1997): “rolo compressor do bem, do bom e do belo”. (BAUDRY, 2006, p. 25) O conflito que deriva do compartilhamento do espaço público é explícito em olhares, gestos, enfrentamentos e recuos, onde e quando a cultura oral se abriga nas fissuras do ordenamento estatal ou do mercado (caso sejam considerados diferentes), por meio de códigos com significados nada universais. Logo, está construída a noção de relação entre a experiência corporal e a esfera pública, ou política, da cidade. Portanto, na análise de como o corpo reage e funciona em ações simples, no porto da catraia ou na feira, é possível perceber a corporeidade diversifica os prazeres dos sentidos e afirma-se como processo – inacabada, dinâmica, diferenciada. Nossa sociedade tem dificuldade em aceitar o envelhecimento de nosso corpo físico, cada dia surge uma nova técnica anti-envelhecimento, creme, lifting ou cirurgia plástica... Também a restauração patrimonial das cidades se parece com um lifting. Esse envelhecimento, tanto para os corpos humanos quanto para o corpo urbano, é uma transformação que acompanha a gênese dos movimentos corporais e da cidade como metáfora de vida urbana. ( JEUDY; JACQUES, 2006, p. 8)
Nesses tempos em que a ordem estética convida a hierarquias binárias, aos muros e à ordem, corpografias nas margens do rio – nos interstícios da vida – e seus processos lançam intrigantes perguntas sobre a relação entre a condição política do ser humano e o seu exercício como experiência corporal, pois é o corpo que dá acesso ao mundo e permite transformá-lo com a instalação do conflito que deriva das diferentes experiências do corpo na cidade.
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FÓRUM TEMÁTICO pesquisa em dança na universidade
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Pesquisa em dança: entre a circularidade viciada e o mapa de navegação Resumo A associação da dança com a pesquisa se popularizou ao mesmo tempo que o uso da expressão “dança como produção de conhecimento”. Este artigo parte da identificação do contexto produtor dessa situação e sugere a necessidade de recorrer à epistemologia para melhor entendê-lo. Reconhecendo a pouca familiaridade da dança com a produção bibliográfica sobre epistemologia, inicia aqui uma reflexão, reconhecendo caber à Universidade a responsabilidade de produzi-la e de compartilhá-la com os que se interessam em enfrentar os danos identificados na situação atual.
Helena Katz Professora na PUC-SP e na UFBA (graduação e colaboradora do PPGDança), coordena o CED-Centro de Estudos em Dança e é crítica de dança do jornal O Estado de S. Paulo. E-mail: katz@ced.pro.br
Palavras-chave: Dança como produção de conhecimento; Pesquisa em dança; Epistemologia.
Dance research: between the vitiated circularity and the navigation map Abstract The association between dance and research occurred simultaneously with the spreading of the expression “dance as knowledge producer”. This text starts from the identification of the context that produced this situation and suggests the need of Epistemology to understand it. Due to the unfamiliarity that dance maintains with the bibliography production of epistemology, and the problems that grow from this circumstance, the University is now in charge of providing the ways of changing this situation. Keywords: Production of knowledge in dance; Dance research; Epistemology.
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Introdução Em tempos recentes, duas expressões espalharam-se como um vírus e transformaram-se em senhas ecoadas como mantras: “dança como produção de conhecimento” e “pesquisa em dança”. Elas se entrelaçam e devem ser compreendidas a partir de uma reflexão sobre esse entrelaçamento. Todavia, a reflexão é, ela mesma, já um tipo de conhecimento e aqui, a tentativa é a de seduzir o leitor a adentrar no terreno da lógica das arquiteturas do conhecimento. O objetivo não é o de desenhar o mapa, mas o de produzir uma carta de navegação1 sobre o problema que guia esse artigo. Para tal, serão necessárias perguntas de cunho epistemológico sobre o conhecimento e o que mais importa é desmistificar que gente de dança não entende e nem precisa entender de epistemologia. O argumento básico desse convite é a certeza de que a monstrificação de certos assuntos (como a epistemologia, por exemplo) necessita ser desmanchada pelos que se interessam em resgatar a dança do puxadinho das artes cênicas no qual ela ainda se encontra confinada. Precisamos da epistemologia porque, como se sabe, a dança é dependente de um fazer e será necessário defender a experiência como apta a produzir conhecimento – o que não é tão simples como parece a quem não tem familiari-
1 A proposta de carta de navegação e não de mapa inspira-se no que Edwin Hutchins, um dos pioneiros da cognição situada (situated cognition), propõe no livro Cognition in the wild (1995). Hutchins formula o conhecimento como fruto de uma combinação de vários mapas, que se comunicam sem separar cultura, corpo e cognição, três instâncias consideradas como mediadores conectados entre si. Com Hutchins, pode-se propor o conhecimento como uma cartografia.
dade com as discussões filosóficas sobre o conhecimento. Sendo a dança fruto de um fazer, importa saber que a física moderna estabeleceu um método de investigação (empírico-experimental) para explicar o funcionamento do mundo da experiência – justamente esse ao qual ela pertence. Com Sir Isaac Newton (1642-1727), os problemas formulados no mundo da experiência passaram a ter explicação. Mas, como na dança se fala também que ela é ‘um algo a mais’ do que aquilo que está acontecendo - porque o fazer seria da ordem da técnica e a dança seria esse fazer técnico com um “algo a mais”, sendo que esse “algo a mais” é o que a legitimaria como arte –, talvez seja necessário juntar física e metafísica para lidar com a sua complexidade. A física estuda a natureza e de seus fenômenos, ou seja, as coisas que podemos experimentar no mundo, e a metafísica estuda o que é necessário para explicar a experiência, mas não está na experiência. O objeto da metafísica é necessariamente um objeto que está para além da experiência possível – o que combina bem com esse “algo a mais” tão usado para se falar de dança, que também não está lá no fazer da dança. Ou seja, quem pleiteia a existência desse “algo a mais”, está fazendo metafísica, saiba ou não disso, e talvez seja aconselhável saber.
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A metafísica estuda as condições gerais da experiência e cuida de tudo aquilo que a física já precisa pressupor para estudar a natureza e seus fenômenos. Dizendo de outra maneira, a questão pode ser assim enunciada: sendo a dança um fazer que pleiteia produzir conhecimento, há que formular as razões pelas quais pode atribuir-se tal propriedade. E, para tal, não há como ignorar a rica discussão sobre os tipos de conhecimento que os filósofos vêm fazendo ao longo de tantos séculos. De toda essa vasta tradição, nesse momento, vamos ficar somente com a inquietação investigativa que permite identificar uma crença – que é também um tipo de conhecimento bastante estudado, e que hoje povoa com grande força a dança no Brasil. Distinta da superstição, a crença tem uma fonte, que pode ser racional. [...] alguém poderia entender o que é ser a ‘fonte’ de uma crença como sendo apenas uma ‘base’ para aquela crença, algo no que a crença está baseada. Até mesmo os evidencialistas que focam em justificação proposicional fazem uso dessa noção. E o fazem, por exemplo, ao explicar o seu conceito de uma crença ‘bem fundada’ como aquela sustentada ‘na base de’ um corpo de evidência. É dito para ser não apenas a evidência que alguém ‘tem’, mas também a evidência que alguém ‘usa’ ao sustentar a atitude (SOSA, 2011, p. 213, tradução nossa)2
O fato da crença ser um tipo de conhecimento que pode vir de uma base racional nos ajuda a entender o sucesso de uma série de falácias que se tornaram “verdades” na dança, como, por exemplo, repetir o tão conhecido mote “o balé é a base de tudo” ou um dos mais recentes, o que entende que fazer dança contemporânea é sinônimo de fazer pesquisa em dança. Para entender a base racional dessa nova crença, a hipótese da qual
2 “[...] one could understand what it is to be a ‘source’ of a belief as just to be a ‘basis’ for that belief, something that the belief is based on. Even evidentialists who focus on propositional justification make use of this notion. They do so, for example, in explaining their concept of a ‘well-founded’ belief as one held ‘on the basis of’ some body of evidence. This is said to be not only evidence one “has” but also evidence one ‘uses’ in holding the attitude”.
parte-se aqui é a de que, no Brasil, vem ocorrendo um fenômeno relevante, que se manifesta pela combinação de duas situações distintas: a existência das Leis de Incentivo à Cultura (que regulam a produção de dança no que deveria3 ser o seu mercado) e a ação da Universidade enquanto difusora de entendimentos sobre conhecimento e pesquisa. Esse fenômeno pode ser inicialmente diagramado com as seguintes linhas: 1) Nem dentro nem fora da Universidade, a “dança como produção de conhecimento” vem sendo suficientemente trabalhada na sua perspectiva epistemológica; nós nos auto-autorizamos a
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3 O verbo está no condicional (deveria) porque não se pode chamar de mercado a uma cadeia produtiva na qual não existe consumidor pagante. A quase totalidade da dança feita no Brasil hoje é hoje financiada pelas Leis de Incentivo à Cultura. Os espetáculos são produzidos com dinheiro público incentivado e, com muita frequência, oferecem ingressos gratuitos.
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falar sobre conhecimento sem investigarmos o estado da arte do assunto e isso, evidentemente, traz consequências; 2) O termo “pesquisa” popularizou-se como uma tarja que identifica a dança com interesses que não se esgotam em uma única obra e necessitam continuar a se desenvolver em outras; por razões para além das que cabem aqui apontar, acabou sendo transformado em grife de qualidade, passando a distinguir apenas uma parte da dança contemporânea, aquela que realmente mereceria a nomeação de contemporânea; 3) Mas, como a produção é hoje quase que inteiramente dependente das Leis de Incentivo à Cultura, que distribuem seus fundos por editais, e a condição para deles participar é a de escrever um projeto, muitos desenvolveram essa habilidade, reproduzindo o modelo de projeto acadêmico da Universidade. E também passaram a declarar que fazem pesquisa e que sua dança é contemporânea; 4) Como o hábito de associar dança e epistemologia está longe de ser popular, não se investigou o tipo de conhecimento produzido em dança – o que resultou na não distinção entre o propósito dos artistas que precisam escrever projetos para concorrer aos editais e não estão imbuídos de qualquer preocupação acadêmica e os outros, artistas e não artistas que estão fazendo dança na Universidade e que necessitam atender às demandas acadêmicas. Sem formular a pergunta do que seria um projeto artístico Assim, o modelo do projeto acadêmico vigente na Universidade para outro tipo de finalidade foi eleito para pautar os editais e os artistas, dificultando a percepção de que se tratava de uma inadequação grave, uma vez que silenciava a necessidade de se planejar um modelo de projeto artístico para as duas situações, tanto a dos artistas fora quanto a dos que estão dentro da Universidade; 5) Dentro da Universidade, a situação também não é confortável, pois paulatinamente se adensa a percepção de que o modelo hegemônico de projeto acadêmico – que é sempre o deu um projeto de pesquisa - não abriga bem os pesquisadores da área da dança, por razões que serão melhor identificadas adiante; 6) Tendo sido esse modelo de projeto (o que se refere à pesquisa de natureza acadêmica) aquele que foi adotado fora da Universidade, junto com ele veio também o seu complemento: “de pesquisa”. Não somente todos os artistas aprenderam a fazer esse tipo de projeto, como passaram a se auto-identificar como pesquisado-
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res, uma vez que apresentam o que fazem através de projetos de pesquisa acadêmicos. É indispensável reconhecer o contorno desse cenário, porque é nele que projeto, pesquisa e produção de conhecimento se emaranham, enredando na sua teia tanto a dança produzida na Universidade quanto a de fora dela. Como é chegado o momento de adentrar na epistemologia, cabe um alerta: aqui se indica o conceito de epistemologia que provém da Epistemologia Social4, que se dedica a rastrear as dimensões sociais do conhecimento. Segundo Goldman5 (2011), em A Guide to Social Epistemology, a Epistemologia Social abriga seis eixos epistêmicos: testemunho, desacordo entre avaliadores, relativismo epistêmico, abordagens epistêmicas à democracia, evidência na lei, a epistemologia da colaboração coletiva (como a Wikipedia) e o juízo agregador. Ele chama a atenção para o fato da epistemologia tradicional trabalhar com uma noção idealista, que conta com uma capacidade ilimitada de compreensão lógica e de fontes investigativas, que seriam “[...] as fonte do conhecimento, da justificação e da evidência”. (GOLDMAN, 2011, p. 13) Uma fonte de evidência negligenciada por muito tempo tornou-se proeminente em décadas recentes, a saber, o testemunho ou as afirmações que alguém ouve (ou lê) de outras pessoas. Pelo fato da epistemologia consagrada haver ignorado o testemunho por um longo tempo, o campo permaneceu quase todo ou todo não-social. A epistemologia contemporânea consagrada, contudo, considera o testemunho uma fonte importante da evidência. Portanto, uma certa parte da epistemologia contemporânea já se encaixa perfeitamente no social. (GOLDMAN, 2011, p.13, tradução nossa)6
Goldman contrapõe o argumento de que possuímos restrições epistêmicas porque pertencemos a sistemas epistêmicos que são sociais e, com tais restrições é que escolhemos qual a mais crível entre duas ou mais propostas rivais, por exemplo.
Um sistema epistêmico é um sistema social que abriga uma variedade de procedimentos, instituições e padrões de influência interpessoal que afeta a produção epistêmica de seus membros, Sistemas epistêmicos e suas propriedades podem
4 A Epistemologia Social se organiza em duas tradições: em torno da questão do testemunho e focando aspectos mais sociológicos e políticos do conhecimento, como, por exemplo, o conceito de ideologia de Karl Marx, que poderia ser considerado parte da Epistemologia Social, e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Os autores se referem à Epistemologia Social usando suas iniciais, em inglês (SE para Social Epistemology). 5 Alvin I. Goldman é membro do Quadro de Dirigentes, Professor de Filosofia e Ciências Cognitivas na Rutgers University e, junto com Dennis Withcomb, editou o livro Social Epistemology. Essential Readings (2011).
6 “A long-neglected evidential source has become prominent in recent decades, namely testimony, or the statements one hears (or reads) from other persons. […] To the extend that mainstream epistemology largely ignores testimony for a long period, the field remained largely or wholly nonsocial. Contemporary mainstream epistemology, however, regards testimony as an importante source of evidence, So a certain portion of contemporary epistemology is already squarely social”.
assomar e evoluir de muitos modos. Alguns podem ser deliberadamente projetados; outros podem emergir por formas
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mal-entendidas de evolução histórica. (GOLDMAN, 2011, p. 13, tradução nossa)7 A dificuldade em produzir conhecimento confiável, como se vê, é grande, uma vez que pertencemos a sistemas sociais sustentados por epistemes vinculadas a relações interpessoais e, cada um dos membros do sistema social lida com o mundo através da sua percepção, que é sempre parcial e parcialmente “inventora” desse mundo.8 Se essa condição já configura um assunto e tanto para os filósofos, não é difícil imaginar o tamanho do nosso problema, no caso da dança, cujo conhecimento tem sido povoado pela produção de crenças. Ou seja, além da percepção ser parcial em todos os humanos e da epistemologia ser social, a dança tem essa característica bem sua, resultante do fato de haver sido historicamente constituída basicamente pela transmissão oral9. O maestro10 não somente detém a informação, mas constitui-se como sua fonte única – o que, evidentemente, instala uma situação de poder. Cabe ao maestro transmitir o conhecimento e a quem o recebe, não duvidar da sua confiabilidade. O maestro atua como a testemunha da veracidade/confiabilidade do conhecimento que transmite.
Circularidade viciada Jennifer Lackey11 (2011) postula que tudo o que sabemos depende, de alguma maneira, do testemunho dos outros, que nos relatam até mesmo a nossa existência. Na verdade, subtraindo de nossas vidas a informação que possuímos via testemunho a deixaria dificilmente reconhecível. Descobertas científicas, batalhas ganhas e perdidas, desenvolvimentos geográficos, costumes e tradições de terras distantes – todos esses fatos estariam completamente desaparecidos para nós. Portanto, não é surpresa que a importância do testemunho, tanto epistemológica como prática, seja quase universalmente aceita. (LACKEY, 2011, p.71)
7 “An epistemic system is a social system that houses a variety of procedures, institutions, and patterns of interpersonal influence that affects the epistemic outcomes of its members. Epistemic systems and their properties can arise and evolve in many ways. Some might be deliberately designed; others might emerge through ill-understood forms of historical evolution”(GOLDMAN, 2011, p.13) 8 A explicação da percepção ser parcial e parcialmente “inventora” do mundo não será aqui desenvolvida. Dentre muitos outros autores que se dedicam ao tema, destaca-se Alva Nöe (2004, 2009, 2012). 9 Os manuais de dança existem desde o século XIV. Domenico da Piacenza (1390-1470) escreveu o seu, De la arte di ballare et danzare, em 1460, por exemplo. Mas a tradição oral, durante muito tempo, foi a principal fonte do conhecimento em dança. Hoje, com a disseminação das tecnologias de produção de imagem, essa situação se modificou. 10 Na dança brasileira, a denominação de maestro/a (em referência ao termo em italiano) se manteve para identificar os professores considerados referências nos seus campos de atuação (geralmente estrangeiros que escolheram ficar no Brasil) 11 Jennifer Lackey é Professora Associada de Filosofia na Northwestern University.
O testemunho a que Lackey se refere é aquele que leva alguém a aceitar como verdadeiro o que lhe é apresentado como verdadeiro, a menos que exista alguma evidência para não fazê-lo. Seria o testemunho produzido por aquele de quem não se tem motivo para duvidar. Todavia, para poder aceitar um testemunho, as razões da sua aceitação não podem ser baseadas nele – pois, se o fossem, não seriam razões confiáveis, uma vez
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que teriam sido produzidas pelo próprio testemunho e dele não conseguiriam duvidar. A estrutura lógica desse testemunho – que, para ser aceito como verdadeiro precisa ter razões produzidas fora dele – é a de algo vinculado ao que lhe é exterior e, portanto, lhe falta. De alguma forma, tangencia o testemunho como relato pessoal e como documento histórico de que trata Agamben em O que resta de Auschwitz (2008). Mas, como não se refere a um estado de exceção que se transformou em regra, como é o caso do campo de concentração nazista tratado por Agamben neste livro, o testemunho de Lackey não chega ao limite do muçulmano. Segundo Agamben (2008), ele se tornou a única testemunha possível daquela situação, justamente por ser aquele que nada pode relatar porque perdeu a linguagem. Testemunha pela falta, pelo que não pode ser dito. O testemunho de Lackey, que não se refere a esse tipo de situação limite, transmite o conhecimento (lembrando sempre que se lida com o testemunho do seu exterior, com o que não está nele contido). Diz ainda que o testemunho necessita ser fruto de uma visão interpessoal porque conta-se somente com uma limitada coleção de relatos, que “provê apenas uma fração do que seria requerido para legitimamente concluir que o testemunho é geralmente confiável”. (LACKEY, 2011, p. 76) Conhecendo um pouco sobre o testemunho, trafega-se com mais segurança no tipo de conhecimento produzido pela dança. Afinal, se a história desse conhecimento esteve sobretudo apoiada na transmissão oral, e hoje está bastante atada às formas de registro de imagem (que podem ser manipuladas, como se sabe), a dança permanece marcada pelo mesmo traço: a necessidade da confiabilidade do seu informante/da sua fonte. Lembrando que a norma da confiabilidade é socialmente construída (resulta do acordo interpares), e que ela permeia os tipos de conhecimento produzidos pela dança, convém conhecer a proposição do filósofo Stewart Cohen (2002),12 conhecida como KR. Nela, Cohen diz que uma fonte potencial de conhecimento K pode prover conhecimento para S somente se S souber que K é confiável. Nesta formulação, existe o que se chama, em epistemologia, de “circularidade viciada”, ou seja, K pode trazer conhecimento para S se já for
12 Stewart Cohen trabalha no Departamento de Filosofia do College of Social & Behavioral Sciences da Universidade do Arizona, e tem uma extensa produção sobre o assunto (philpapers.org/s/Stewart%20 Cohen)
reconhecido como apto a fazê-lo; e, para ser assim reconhecido, K necessita atender ao critério indispensável de ser confiável. E quem confere essa possibilidade a K é justamente S, aquele que vai receber o conhecimento. A circularidade da proposição KR de Cohen, na qual a confiabilidade depende de quem necessita dela, identifica bem o momento que a dança vive no Brasil. Se voltarmos aos seis itens apresentados na p. 3, identifica-
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remos que se relacionam por circularidade viciada. Uma vez que o projeto se tornou uma senha de acesso à sobrevivência, por exigência jurídica dos editais, e o modelo adotado foi o do projeto acadêmico de pesquisa, todos os que fazem projetos, sejam ou não acadêmicos, passaram a fazer aquilo que o projeto acadêmico sistematiza: o que a Universidade aceita como pesquisa. Ou seja, a pesquisa artística em dança entrou em circularidade viciada a partir do modelo de projeto de pesquisa aceito na Universidade. Por essa razão, cabe agora à Universidade investigar as especificidades de dois tipos de projetos: aquele para ser praticado por seus membros que fazem da dança o seu objeto de pesquisa, e um outro projeto, que também tem o mesmo objeto (a dança), mas não o mesmo objetivo, que passa a ser artístico e deixa de ser acadêmico. Um seria o projeto acadêmico artístico e o outro, o projeto artístico acadêmico. Além desses dois, caberia aos artistas não ligados à Universidade, desenvolver um terceiro tipo de projeto, que seria o projeto artístico que não precisa obedecer a normas acadêmicas. Quando se conhece a proposição KR de Stewart Cohen, fica mais fácil identificar a circularidade viciada que tomou conta da expressão “pesquisa em dança”. A sua disseminação irrestrita, dada a proporção que tomou, foi ganhando a força de uma verdade que ignora tudo ao seu redor – lembrando um pouco o prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787). Foi nele que Kant (1724-1804) registrou ser um escândalo que a existência do mundo exterior não tenha sido comprovada. E a banalização crescente da “pesquisa em dança” se dá à custa daquilo que preocupava Kant na ocasião, pois simplesmente nega o que não conhece, ou seja, o mundo exterior. Desconhece tudo o que já foi escrito sobre conhecimento, projeto e pesquisa, como se fosse possível criar um mundo somente com a sua ignorância do que é exterior a essa ignorância. Foi assim que todos os tipos de dança passaram a ser dança “de pesquisa”. Fora da Universidade, as distintas formas de produzir dança precisaram aprender a apresentar-se debaixo de um mesmo modelo de projeto – aquele da Universidade, que já se mostrava inadequado para atender um habitante mais recente da sua comunidade: o artista que escolhe ser professor universitário e fazer pesquisa artística na Academia, ou seja, pesquisa artística acadêmica e não pesquisa acadêmica sobre objetos artísticos. Sendo a Universidade um espaço que a sociedade sustenta para produzir pensamento crítico, lhe cabe formular a distinção entre os três tipos de projeto que a dança pode abrigar: o projeto acadêmico que trabalha com objetos artísticos (e que o modelo hegemônico de projeto que circula na Universidade acolhe bem), o projeto artístico de cunho acadêmico (que
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ainda não está formulado), e o projeto artístico sem propósito acadêmico. Este artigo abre, no presente Fórum, uma convocação para que outras abordagens sejam propostas, de modo a que, mais adiante, se consolide a episteme capaz de lidar com a atual demanda.
Epistemologia social e cognição situada Estivemos, até tempos recentes, tão treinados no não duvidar que sustenta a tradição oral, que esquecemos de desconfiar da universalidade/confiabilidade não somente do conhecimento assim produzido, mas sobretudo do tipo de mundo a que esse comportamento dá forma, como se não existisse nenhum outro, que lhe fosse exterior e que pudesse ser organizado de outra maneira. Esse tipo de ambiente disciplinar desenvolve hábitos cognitivos. Não à toa, quando solicitados a apresentarem projetos pelos editais, os artistas tomaram o modelo praticado por quem entende do assunto ‘fazer projeto’. Não à toa, os artistas que se tornaram professores na Universidade, tomaram o mesmo modelo para seus projetos acadêmicos. Um único modelo de projeto para três tipos distintos de demanda. Talvez seja agora o momento de voltarmos à carta de navegação de Hutchins (1995) para podermos entender como chegamos a essa situação, no que diz respeito à “pesquisa em dança”. Ainda hoje, muitos supõem que o conhecimento acontece “dentro” de nós. Ainda se trata o conhecimento como aquilo que se consegue dizer a respeito do que se conhece. A busca pelas suas estruturas desconsiderou o fato de que a cognição humana acontece sempre em um ambiente sociocultural que, evidentemente, a afeta. Importante lembrar que o ambiente nunca é um conjunto de condições fixas sobre o que existe em torno de nós, mas sim um processo dinâmico no qual a cognição individual ocupa somente uma pequena parte. Ao dizer que o que lhe interessava era distinguir a cognição estudada em laboratório daquela praticada no mundo cotidiano, esse no qual nossa cognição se adapta ao que lhe cerca,13 Hutchins nos ajuda a compreender que foi uma mesma situação que produziu, dentro e fora da Universidade, o mesmo tipo de comportamento. Se o ambiente consagrado como detentor do conhecimento (a Universidade) havia produzido um modelo de projeto, tanto o artista-pesquisador-acadêmico como o artista-pesquisador-
13 “[...] I have in mind the distinction between the laboratory, where cognition is studied in captivity, and the everyday world, where human cognition adapts to its natural surroundings”. (HUTCHINS, 1995, p. 3)
-não-acadêmico haveriam de adotá-lo. Mas é também o mesmo ambiente que agora se encarrega de avançar nessa questão.
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Nossa forma de conhecer é cultural – o que significa que corpo e ambiente estão todo o tempo se comunicando e produzindo transformações um no outro, conforme propõe a Teoria Corpomídia. (KATZ; GREINER, 2005) Se o ambiente da dança é agora pautado pela combinação entre as demandas das Leis de Incentivo à Cultura e a expansão dos cursos de dança na Universidade, é nele que a trivialização da ‘pesquisa em dança’ necessita ser contida. E, para tal, pode-se começar pelo tipo de objeto ao qual cada um dos três modelos de projetos acima referidos deve considerar. Por que começar pelo objeto? Porque ele é o centro do projeto, aquilo que será investigado. a) Projeto Acadêmico Artístico Dois pontos se destacam nele: o objeto e a metodologia. A metodologia é acadêmica, isto é, obedece às normas que definem as metodologias aceitas para a realização de uma pesquisa acadêmica; e o objeto deve ser bem definido – o que supõe que possa sê-lo, ecoando a proposição KR, de Stewart Cohen (2002) e sua circularidade viciada. O objeto K deve ser uma fonte potencial de conhecimento, capaz de prover conhecimento para um investigador S, porque S sabe que K é um objeto confiável, e que pode realmente ser conhecido. Quando alguém elege um objeto artístico para sua pesquisa acadêmica, o objeto cabe na proposição KR, pois trata-se de um objeto com contorno definido, para o qual o pesquisador olha para descobrir algum aspecto que ainda não é conhecido. Para isso, faz uma pergunta a esse objeto e tem uma hipótese de como ela poderá ser respondida. Além disso, tem também uma proposta de como essa investigação pode ser feita e sabe justificar a sua importância. No mundo acadêmico, o projeto se constitui no fiador da pesquisa. O projeto de pesquisa é a operação que legitima o conhecimento em quaisquer dos seus campos. O projeto atravessa as especificidades dos campos com o seu modelo epistemológico de existência e neles se torna uma norma reguladora. A construção de um campo epistemológico vem do projeto, da ação de planejar, através de um conjunto de procedimentos metodológicos, e da sua posterior disponibilização para os pares dos resultados a que tais procedimentos conduzem. O final de um projeto toma formatos variados como, por exemplo, o de um documento escrito (de natureza monográfica, reflexiva, crítica, assertiva, propositiva, etc), ou o de um produto ou o de um serviço. (KATZ, 2010, p.152)
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b) Projeto Artístico Acadêmico Sua questão central é mais a metodologia do que o objeto. Aqui, necessitamos definir que metodologias artísticas podem ser aceitas como capazes de operar o que as metodologias acadêmicas operam, isto é, sejam capazes de produzir conhecimento acadêmico. O objeto, seja ou não artístico, será necessariamente investigado com alguma metodologia artístico-acadêmica. Para iniciar a definição destas metodologias artístico-acadêmicas, talvez ajude lembrar da abdução, que Peirce nos ensina ser uma estrutura lógica que inicia os processos de inferência que nos encaminham para a pesquisa, e ligá-lo com o entendimento de evolução proposto por Darwin como sendo um projeto de transformação gradual da Natureza. Ambos carregam os traços geralmente encontrados nos fazeres artísticos que, com estes dois aportes teóricos, podem vir a consolidar metodologias possíveis de serem aceitas na Universidade como produtoras de conhecimento. Falando desse projeto da Natureza chamado evolução, Dennett (1998, p. 546) diz assim: O que é o trabalho do projeto? É esse maravilhoso casamento de acaso e necessidade, acontecendo em trilhões de lugares ao mesmo tempo, em trilhões de níveis diferentes. E que milagre causou isso? Nenhum. Simplesmente aconteceu, na plenitude do tempo.
A partir daí, talvez tenhamos material para seguir na direção de um projeto que se assemelhe a “um dispositivo cognitivo de características evolucionistas, costurado pela abdução em todos os seus momentos de realização”. (KATZ, 2010, p.166) c) Projeto Artístico Uma vez que está desobrigado de produzir conhecimento acadêmico, o projeto artístico pode pensar-se tendo uma forma aproximada à da criação que pretende pôr no mundo. E dedicar-se a não oferecer o desenho exato de um existente, uma vez que seu objeto não ganhou forma precisa. Esta foi uma primeira formulação, uma carta de navegação iniciante de um percurso que carece de muitas outras contribuições para estabelecer-se. E, como toda carta de navegação, ganhará sentido a partir das correções que seu uso for produzindo.
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TRADUÇÃO
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A dança e a ausência da obra Resumo Nos poucos textos que dedicou à dança, a filosofia não citou obras, tratando a dança de forma abstrata. A hipótese do texto é a de que esse fato designa algo para além dessa circunstância porque ela evidencia uma dupla característica, que distingue a própria dança: o fato dela depender de um evento que a produza na forma de um espetáculo, e sua impossibilidade de se perenizar como uma obra de arte que sobreviva a esse momento. Realizando uma leitura de quatro abordagens filosóficas (Nietzsche, Paul Valéry, Erwin Straus e Alain Badiou), este artigo propõe a dança como a ausência da obra.
Frédéric Pouillaude
Palavras-chave: Coreografia; Ausência da obra; Dança e filosofia.
Mestranda do Programa de Pósgraduação em Literatura e Cultura da UFBA
Dance and the absence of the work of art
Conferencista em Filosofia da Arte. Diretor do Centro Victor Basch (pesquisa em Estética e Filosofia da Arte). Professor na U.F.R. de filosofia e sociologia, Université Paris-Sorbonne. E-mail: frederic. pouillaude@paris-sorbonne.fr
Tradução de Lívia Drummond
Revisão da tradução Helena Katz Professora colaboradora do PPGDANÇA – UFBA.
Abstract In the few texts that philosophy dedicated to dance, dance was presented as an abstract issue. The hipothesis that guides this text is that this fact indicates something related to the constituition of dance in itself that can be presented as a double characteristic: dance happens as an event that is shaped as spectacular and cannot rest as a work of art after its end. After the readings of Nietzsche, Paul Valéry, Erwin Straus e Alain Badiou, the article proposes the dance as the absence of the work of art. Keywords: Choreography; Absence of the work of art; Dance and philosophy.
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Introdução Michel Foucault (1978) escreveu, ao final da História da loucura na Idade Clássica: “A loucura é a ausência da obra”. Aplicarei essa formulação abruptamente à dança, dizendo, à minha maneira: “A dança é a ausência da obra”. Este novo enunciado deverá ser entendido em dois sentidos. Inicialmente, como uma formulação paródica ou crítica, denunciando o caráter extremamente abstrato e desinformado dos discursos filosóficos sobre a dança. “A ausência da obra” é o que se distingue, em primeiro lugar, a partir das leituras dos raros textos consagrados pela filosofia à dança. Isso indica, quão vazio é o não-saber do filósofo sobre as produções coreográficas reais. Todavia, essa “ausência” toca igualmente a coisa em si. Ela designa uma fragilidade própria da dança no que concerne a sua capacidade em produzir objetos perenes e sua dependência específica em relação à performance e ao evento espetacular. É a articulação entre as duas dimensões da formulação – a abstração do discurso filosófico e a fragilidade das “obras” coreográficas – que me proponho a estudar aqui.
A filosofia da dança e a ausência das obras Vejamos quatro casos de discursos, explicitamente filosóficos, sobre a dança. Quatro nomes próprios: Nietzsche, Paul Valéry, Erwin Straus e Alain Badiou. Por mais diversas que possam ser suas teses e argumentações, um traço em comum se destaca: a ausência, nesses textos, de qualquer referência às obras e aos coreógrafos. Em momento algum, nenhum desses autores cita o título de uma obra ou o nome de um coreógrafo. No lugar dessas marcas empíricas ausentes, apresenta-se um termo vazio, comum, geral e abstrato, do mesmo tamanho da sua maiúscula: a Dança. É da Dança que fala Nietzsche. E não do balé romântico ou acadêmico. É da Dança que fala Valéry. E não dos Balés Russos ou dos Balés Rubinstein (com os quais, no entanto, colaborara). É da Dança que fala Straus e não de Wigman ou de Laban (os quais não podia ignorar, então, ele menciona as experiências, de passagem, mas sem dar os nomes próprios). Finalmente, é da Dança que fala Alain Badiou e não de Merce Cunningham ou Mathilde Monnier (mesmo apreciando muito as suas obras). O discurso filosófico consistiria em uma série de silêncios e nomes ausentes, em uma operação de apagamento dos traços empíricos, e isso em favor de um único termo, encantatório e superior: a Dança.
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Esse seria o primeiro sentido da formulação: “a dança, ausência da obra”. Poderíamos alegar que a crítica da abstração filosófica não é específica apenas à dança. Kant, falando sobre a pintura ou sobre a música, é da mesma forma avaro com relação aos nomes próprios. E mesmo Hegel, em suas Lições de estética, permanece bem reticente em citar e nomear. Mas o esvaziamento das obras coreográficas remete, aqui, à uma determinação mais precisa do que aquela da simples abstração filosófica. Ela designa o lugar mesmo (ou, antes, o não-lugar) da dança dentro das estéticas filosóficas. Basta nos lembrarmos que no instante em que se inventa, com a Crítica da faculdade de julgar de Kant, a disciplina nomeada “estética”, a dança se encontra radicalmente excluída da classificação das Belas Artes. Kant (2005) consagra apenas duas muito breves observações à dança. No entanto, e isso é o essencial, Kant não faz qualquer referência a ela quando se trata de enumerar e ordenar as verdadeiras artes na classificação do § 51 (“Da divisão das Belas Artes”). Hegel e Schelling farão apenas radicalizar tal omissão. Nenhuma palavra sobre a dança, seja nas Lições de estética, ou na Filosofia da arte. Arquitetura, pintura, música e poesia: eis as que contam enquanto artes verdadeiras. A dança: de forma alguma. E para ela, com rigor extremo, algumas observações eventuais. Essa primeira ausência, que é conveniente chamar de “literal”, engendra uma segunda. Tendo sido excluída da classificação, a dança pode apenas retornar na filosofia sob um regime muito especial, totalmente diferente daquele que vigora nas artes empíricas: um certo regime transcendental que, vendo na dança muito “mais” e muito “menos” que uma arte constituída, estabelece, de antemão, o lugar de sua possível discussão. Se a dança esteve ausente dos grandes sistemas estéticos, foi, em última análise, porque o corte do que lhe vestia, na virada do século XVIII e XIX, era, a um só tempo, “pequeno e grande” demais para ela. Vestida inapropriadamente no desfile das Belas Artes, a dança estava sempre deselegante, simultaneamente flutuante e encoberta. Pois é, de um outro espaço que ela emerge, menor e menos fundamental, desdobrada, abaixo e além, do que se pratica ordinariamente sob o nome “arte”. Essa lógica do abaixo e do além, já cruzados, indica o enraizamento “antropológico” da dança e a possibilidade de sua elevação ao transcendental. Prática universal, presente antes de toda separação de domínio ou de objeto, a dança se tornará, pela própria virtude de seu caráter infra-artístico, o transcendental de toda arte. Pois - e é assim que a coisa se formulará - a dança não é uma arte, mas o lugar antropológico da possibilidade de cada um. A sua expulsão do sistema das Belas Artes age aqui como uma restrição
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evidente. Posto que, enquanto a dança é negada como arte, porque o lugar de sua existência efetiva foi bloqueado pelo discurso estético, no qual foi definitivamente inscrita como registro menor, é fora da empiricidade que ela vai girar: a dança cessa então de ser uma arte e torna-se a origem e a condição da possibilidade mesma das artes constituídas. Resumidamente, uma arte transcendental. Nietzsche constitui aqui um elo essencial. Mas ainda se faz necessário periodizar um pouco. Digamos que até a Gaia ciência a dança ainda funciona como um referente positivo no texto nietzscheano. Ela é algo que acompanha o “drama musical grego”, no qual alguns traços, ainda podemos ler nas fontes filológicas. E, de fato, é sua formação como filólogo que conduz Nietzsche aqui a falar da dança por cima dos grandes brancos das estéticas românticas. Certamente, as coisas já são infinitamente complexas. A dança é ora relacionada ao dionisíaco,1 ora ao apolíneo.2 No entanto, ela parece ainda funcionar como objeto de discurso. A partir daí – e Assim falou Zaratustra é um marco evidente – a dança se torna outra coisa: essencialmente um operador metafórico. Desse status metafórico resulta a extrema diversidade das funções que lhe são atribuídas: a dança como anúncio de uma escritura verdadeiramente dionisíaca e simultaneamente impossível3; a dança como máquina de guerra antiwagneriana e antialemã;4 a dança como pedra de toque que permite desmascarar os ídolos5; a dança como moral para além de toda moral, etc. Em poucas palavras, a dança é tudo o que se quiser, exceto a frivolidade estúpida e positiva do balé. Se a dança deixa de ser uma arte empírica com Nietzsche, esse movimento vai apenas aumentar e se tornar patente com Valéry, Strauss e, mais próximo de nós, Alain Badiou. Valéry não fala jamais das danças tais quais aparecem no teatro, no palco ou nos bailes, fala antes de uma dança originária e fantasmática na qual se entreveria a origem das artes constituídas. Como nunca dantes, a Dança inscrita com um grande D representaria este momento primeiro no qual o corpo vem trabalhar inutilmente, despender sua força em pura perda, e refinar esse gasto somente pelo prazer. Dessa maneira, ela manifestaria um núcleo originário atestando a possibilidade de toda arte, núcleo esse que as diferentes artes empíricas não poderiam
1 O nascimento da tragédia, § 1, e a dança de Saint-Guy “na qual, nós reconhecemos os coros báquicos dos gregos”. (NIETZSCHE, 1949) 2 O nascimento da tragédia, § 9: “Na parte apolínea da tragédia grega, no diálogo, tudo o que aflora na superfície parece simples, transparente e belo. Nesse sentido, o diálogo é com a imagem de Helena, cuja natureza revela-se na dança, pois, na dança, a força máxima continua em seu estado potencial, traindo-se simplesmente pela leveza e riqueza de movimentos.” (NIETZSCHE, 1949, p. 63) 3 Assim falou Zarathoustra, “Ler e escrever”. Ver igualmente Bernard Pautrat (1971) 4 Cf., entre outros, Nietzsche contra Wagner, ou a pag. 368 du Gai savoir. 5 “Eu só posso acreditar em um deus que saiba dançar”, Assim falou Zaratustra, “Ler e escrever”.
recusar, de acordo com a diversidade de seus objetos e técnicas. A dança é esse momento no qual o homem deriva no inútil para refiná-lo. De modo geral. Antes de qualquer especificação de domínio ou de objeto. Antes de qualquer determinação técnica. E é por isso que, segundo Valéry, é necessário ver aí bem mais do que aí se discerne ordinariamente: não um divertimento fútil, não uma produção vulgar de espetáculos, mas, nada menos
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que a possibilidade geral da arte se apresentando enquanto vida. Esta versão genética – ou diacrônica – da elevação da Dança ao transcendental (a Dança como ponto de origem de toda arte) deve acolher uma versão sincrônica. Faz-se necessário mostrar de que maneira a origem está na obra, no presente de cada arte, e como cada arte é apenas o caso particular de uma certa ideia geral da Dança, compreendida como arte transcendental, como Arte anterior à dissipação empírica das artes. Valéry (1957, p. 1400, grifo do autor) anuncia assim: Este ponto de vista, de tamanha generalidade (por isso eu o adotei hoje), abarca muito mais que a dança propriamente dita. Qualquer ação que não tenda à utilidade, e que, por outro lado, seja susceptível de formação, de aperfeiçoamento, de desenvolvimento, está ligada a esse imagem simplificada da dança e, consequentemente, todas as artes podem ser consideradas como casos específicos desta ideia geral [...].
Encontramos em Ewin Strauss (1992) uma versão semelhante dessa elevação ao transcendental. Tanto no Do sentido dos sentidos quanto no artigo anterior, Die Formen des Raümlichen, a aparência da dança insiste na tese da unidade fenomenológica do sentir e do mover-se. A dança, enquanto reação imediata à música, mostra que qualquer sensação encontra-se, necessariamente, prolongada pela atividade do corpo e que nenhuma delas é totalmente passiva. Em sua relação espontânea com o som, a dança evidencia uma articulação anterior a toda convenção e a toda aprendizagem; ela manifesta, em sua forma mais simples e mais geral, um certo entrelaçamento entre receptividade sensível e atividade criadora, sobre a qual se apoia o conjunto das artes constituídas. Origem desse entrelaçamento, anterior a toda especificação de domínio ou de objeto, a dança permite falar de Arte no singular, segundo a dupla aparência da essência e da origem. Fato que Renaud Barbaras (2003) comenta nos seguintes termos: Basta dizer que é na dança que se lê a essência da arte. [...] Como o mostrou Strauss, a dança manifesta uma unidade originária do sentir e do mover-se, unidade anterior a qualquer aprendizagem, constitutiva de um e de outro. Ela é uma formação espontânea de ordem auditiva inerente à própria audição; revela uma atividade de criação inscrita na própria receptividade sensível. Como observa Strauss, a arte coreográfica, não é nada além de uma modelagem específica, de uma unidade geral que preexiste nas impressões sensoriais e nos movimentos, ela se confunde com a própria abordagem. Assim, a dança se situa entre
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a articulação das criações espontâneas da sensibilidade e a criação artística, revelando em si uma continuidade.
Para finalizar com a discussão do transcendental, deixemos falar Alain Badiou (1998, p. 109): “A dança não é uma arte, antes, ela é o signo da possibilidade da arte, pois está inscrita no corpo”. Para Badiou (1998), esse enunciado se enraíza em um certo cruzamento entre Nietzsche e Mallarmé. Nietzsche teria cometido o erro ao classificar a dança como arte, pautando-se por uma medida comum ao teatro. Mallarmé, ao contrário, tivera a sabedoria de excluir a dança do domínio teatral, fornecendo, assim, os meios para pensá-la de acordo com sua essência verdadeira.6 Tudo isso pode ser verdade, com a condição de inverter pura e simplesmente os termos. De fato, é Nietzsche quem expulsa a dança do espaço do teatro, e é Mallarmé quem, um crente do teatro, aí a reintegra. Avancemos este ponto. E retenhamos apenas a singularidade da formulação: a dança, não como arte, mas como condição da possibilidade exibida sobre o corpo, ele mesmo: Diria que a dança é precisamente aquilo que mostra que o corpo é capaz de produzir arte, e a medida exata na qual, em um momento dado, ele é capaz disso. Mas, dizer que o corpo é capaz de arte não quer dizer: fazer uma ‘arte do corpo’. A dança acena em direção a esta capacidade artística do corpo, sem, no entanto, definir uma arte singular. (BADIOU, 1998, p. 109)
Se não é evidente que o corpo seja capaz de arte, é porque é necessário, se não o provar, ao menos o demonstrar, o apresentar. Talvez o corpo seja apenas uma massa fechada a todo pensamento, a toda invenção, absorvido em rotinas sensório-motoras que o unem ao mundo, aprisionado em esquemas práticos exigidos para sua sobrevivência. Para escapar de uma tal imagem, seria necessário que se atestasse aí uma certa “capacida-
6 “Antes, é preciso lançar um enunciado provocante, mas necessário: a dança não é uma arte. O erro de Nietzsche foi crer que existe uma correspondência entre a dança e o teatro, correspondência essa que seria sua intensidade artística. Nietzsche, à sua maneira, continua a classificar o teatro e a dança como artes. Em contrapartida, quando Mallarmé declara que o teatro é uma arte superior não pretende, com isso, afirmar sua superioridade em relação à dança. Seguramente, ele não diz que a dança não é uma arte, mas podemos dizêlo por ele, caso aprofundemos o verdadeiro sentido dos seis príncipios da dança.” (MALARMÉE, 1945) Observemos simplesmente que, no texto de Mallarmé, nada autoriza a pensar que a dança seja o termo implícito de comparação contido na formulação “O teatro é essencialmente superior “.
de”, que se exibe aí em um signo exterior às artes, um advento em si: seria necessário que a possibilidade da arte já fosse dada no corpo, que seu transcendental nele se manifestasse. A dança é o lugar de tal apresentação. Assim – e esse é o preço da elevação – ela se encontra, necessariamente, excluída da empiricidade artística: demonstrando uma capacidade, ela não define uma arte singular. A dificuldade de tal posição consiste, então, em levar em conta, malgrado tudo, em ressaltar do empírico: a saber, a arte coreográfica. Esta dificuldade se resolve no texto de Alain Badiou numa
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tentativa de historicização do transcendental. Certamente, a dança não é uma arte e sim uma condição de possibilidade; no entanto, sabemos que há uma arte coreográfica e que esta arte tem uma história, somos pressionados – para aclimatar a tese – a atribuir ao emblema geral uma certa vida histórica correlata às histórias das verdades e paralela à história das artes constituídas: Como a dança não é uma arte, é somente um signo da capacidade do corpo para a arte, [suas invenções de pensamento] seguem de perto toda a história das verdades, aí compreendidas como as verdades ensinadas pelas artes propriamente ditas. Por que existe uma história da dança, uma história da exatidão da vertigem? Porque não existe a verdade. Se houvesse a verdade, haveria uma dança extática definitiva, um encantamento eventual místico que, sem dúvida, persuadiu o derviche dançante. Mas o que há são verdadeiros disparates, múltiplos eventos aleatórios. Na história, a dança se apropria desta multiplicidade. (BADIOU, 1998, p. 110-111)
Se há uma história para a dança, se podemos escapar do “encantamento eventual místico” não é de forma alguma por que a dança constitui uma arte empírica, tendo igualmente a qualquer outra, seus artistas, suas obras, suas correntes etc., mas sim por que o transcendental que ela manifesta é em si histórico: há uma história das capacidades da arte do corpo que segue de perto a história das verdades, e, mediadamente, aquelas das artes constituídas. Entretanto, dessa historicidade simplesmente postulada, mas jamais descrita, não se saberá nunca. Alain Badiou jamais menciona o título de uma obra ou o nome de um artista. Nem mesmo o de um estilo. De forma que a historicidade parece ser aqui tão somente uma promessa. Esse seria o segundo sentido da nossa formulação: a dança, a ausência da obra. Não apenas a abstração geral do discurso filosófico, mas um dispositivo mais preciso: a elevação da dança ao transcendental. Se seguirmos Valéry, Strauss ou Badiou só será possível falar filosoficamente da dança renunciando o real das obras e dos espetáculos, em favor de um transcendental verdadeiramente imaginário e fantasmático. Desde então, é normal que uma tal concepção da dança não produza nada. Arte antes da arte, arte antes da produção empírica do objeto, essa dança só poderia existir sem obra. Finalmente – e esse seria o terceiro sentido de nossa formulação – a ausência de obra designa igualmente a experiência da dança (ou antes, do dançar) tal qual descrito pelos filósofos. Pois, não é precisamente a dança
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– como conjunto de ritmos, de figuras ou de passos determinados - que os filósofos descrevem, mas o “dançar” como experiência íntima do sujeito: é isso que é o dançar para aquele ou aquela que dança. E essa experiência íntima deverá ela mesma compreender-se como experiência do não-produzir, a qual será denominada ora “gozo” (com Valéry), ora “êxtase” (com Strauss). Escapando do tempo da ação e da produção, a dançarina valeriana é tomada de um movimento de puro gasto, pelo qual ela se autoafeta no seu presentificar. A dançarina está aprisionada em um presente perpétuo, estranho a qualquer projeto ou qualquer antecipação, não tendo outro horizonte que a esfera fechada da auto-afetação. O que se nomeia corretamente: gozo.7 Do mesmo modo, segundo Strauss, a experiência do dançar inaugura uma nova relação com o espaço: a espacialidade não é mais dirigida
7 Sobre este ponto, me permito citar meu artigo Un temps sans dehors: Valéry et la danse, (2005).
e orientada por movimentos práticos, ao contrário, ela se torna fundamentalmente desorientada, ébria, aberta pela música e prolongada pela dança. Essa nova experiência do espaço se nomeia corretamente: êxtase.8 Quer se trate de gozo ou de êxtase, o que há por trás da experiência não é nada além
8 Sobre este ponto, me permito citar meu artigo De l’espace chorégraphique: entre extase et discrétion, (2007).
do não-produzir: a ausência de obra apreendida como intensidade de uma experiência irredutivelmente subjetiva. Resumindo, a formulação – a dança, a ausência da obra – designa, então, três coisas: 1. a abstração geral do discurso filosófico sobre a dança, 2. a elevação filosófica da dança ao status de arte transcendental, 3. a experiência do dançar descrita como gozo ou êxtase.
A ociosidade coreográfica Que posição adotar em face a esses discursos? É preciso rejeitar todos, denunciando sua desenvoltura e sua falta de informação? Sem dúvida. No entanto, há nisso, inconscientemente, um fundo de verdade. Bem inconscientemente, esses discursos apontam para uma dificuldade inerente à arte coreográfica. Pois a ausência de obra não é apenas um aspecto do discurso. Ela diz respeito à coisa em si. Ela é o que fragiliza por dentro a obra coreográfica como tal. Compreenderemos mais facilmente essa fragilidade da obra coreográfica se a compararmos com as obras teatrais ou musicais. A obra teatral ou musical, uma vez colocada em forma de texto ou de partitura, pode sobreviver independentemente de suas atualizações ou interpretações sucessivas. Uma obra pode não ser encenada durante anos, até mesmo séculos. Ainda assim continuará viva, idêntica e ela mesma. Podemos exumar a
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partitura e tocar a obra “identicamente”, mesmo que o estilo de interpretação tenha mudado (o que não deixará de acontecer). Para retomar as categorias proposta por Nelson Goodman (1968), é preciso dizer que a obra teatral ou musical (ao menos, em seu modo padrão) constitui um objeto alográfico: não uma coisa material fixada pela singularidade de seu ser, mas um objeto ideal repousando sobre uma divisão entre as propriedades essenciais (afirmadas pelo texto ou partitura) e as propriedades contingentes, deixadas para livre escolha dos intérpretes ou das pessoas encarregadas de materializar a obra (tempo, entonação, qualidade etc.). É precisamente esse status alográfico que autoriza retomadas e atualizações “exteriores”, independente da história da obra e de suas reproduções sucessivas. Podemos ignorar toda a obra de Shubert, e nada conhecer dos pianistas que a tocaram sucessivamente. E, apesar de tudo isso, posso pegar, sem dificuldade, a partitura do Terceiro Impromptu e executá-lo corretamente (sob a única condição de saber ler uma partitura e de ter alguma competência pianística). A alografia (nesse caso, a inscrição gráfica) é o que abre para a obra a possibilidade de uma sobrevida e de uma reatualização, independentes da continuidade das transmissões pessoais. Em larga medida, a dança escapa a um tal status alográfico. Suas práticas e suas obras não podem nunca ser transmitidas de outra forma, a não ser de um corpo a outro corpo, de uma presença a outra presença9 e dificilmente sobrevivem às rupturas de transmissão. Nos casos das obras clássicas, uma forte tradição, assim como um vocabulário comum vêm a enquadrar os processos de transmissão, de modo que a perpetuação das obras pareça nelas facilitada. No entanto, em meio a esse dispositivo, a obra já se dá segundo um movimento necessário. Cada grupo, em todo o mundo, dispõe de sua própria versão e adaptação dos grandes balés de repertório. E para uma mesma obra – por exemplo, O Lago dos cisnes, de Petipa e Ivanov –, existe uma multiplicidade de versões concorrentes com as quais nós nos confrontamos, sem que a coreografia original (pois quem pode afirmar conhecê-la?) seja, em alguma medida, acessível. Por outro lado, é suficiente que a tradição se interrompa para que as obras desapareçam para sempre.10 Esse foi o caso, por exemplo, do conjunto das obras de Noverre. Essa fragilidade da obra parece mais aguda ainda no caso das obras modernas ou contemporâneas, que são, muito frequentemente, incapazes de ser trans-
9 Tenho consciência de deixar, aqui, de lado a questão da transmissão por vídeo, que exigiria ser estudada a parte. Digamos simplesmente que uma gravação em vídeo não retém uma obra, mas uma atualização singular (tal noite, tal realização) da obra. Assim, utilizar uma gravação como fonte para uma remontagem é fazer, implicitamente, funcionar o vídeo como uma partitura: separar a dança do corpo singular que a apresenta e isolá-la como um núcleo ideal que qualquer um poderia reatualizar. 10 E essa desaparição engaja, então, um trabalho eventual de reconstituição arqueológica, como aquele feito, por exemplo, por Pierre Lacotte com La Sylphide.
mitidas para além da companhia que as produziram. A obra permanece propriedade do grupo, inseparável dos corpos que originalmente a criaram. Esse status singular da obra coreográfica é, evidentemente, a consequência de um certo fracasso da notação. Mesmo que, dispondo desde o fim
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do século XV de sistemas notacionais, mais ou menos elaborados,11 a dança permaneceu uma arte fundamentalmente oral. No entanto, com a notação, era justamente a promessa de uma mudança radical que se anunciava: o
11 Para uma análise comparativa e histórica dos diferentes sistemas de notação coreográfica ver Ann Hutchinson-Guest (1989).
alinhamento das obras coreográficas com o padrão de funcionamento teatral e musical, e a instituição de um princípio de identificação da obra, independentemente da sua história material de produção e transmissão. Surgia a possibilidade de fazer da obra coreográfica um objeto ideal, funcionando como uma classe de ocorrências concretas (da mesma maneira que uma obra musical ou teatral), autorizando, assim, retomadas exteriores às séries lineares de transmissões orais. Para dizê-lo diferentemente, retomando o vocabulário goodmaniano, era a possibilidade de uma passagem da autografia à alografia que assim se anunciava. Essa passagem nunca aconteceu. A dança ficou presa na exigência de uma presença necessária e os procedimentos de ausência autorizados pelo texto se tornaram letra morta. Ainda hoje, as obras coreográficas não são concebidas sobre a página, na solidão do escritório, mas no corpo dos intérpretes mesmo, no espaço coletivo do estúdio. Elas, também, não se transmitem por intermédio de um texto que, fixando de uma vez por todas as condições da identidade da obra, tornaria supérfluas as indicações dos seus participantes originais, mas por intermédio de transmissões pessoais, de “retomadas do papel”, como se diz. Daí resultaria essa surpreendente dependência pessoal das obras coreográficas, essa dependência em relação a presença, de acordo com o que foi aqui exposto, constitui uma fraqueza específica da dança, mas também, constitui, sem dúvida, sua força. É conveniente explicar esse fracasso da notação. Apresentaremos aqui apenas uma hipótese de ordem lógica.12 Essa hipótese sustenta que há uma contradição entre as condições de instituição de uma notação e as condições de sua assimilação prática. Para discutir esse ponto me apoiarei sobre dois exemplos opostos de sistemas notacionais: o sistema Feuillet (1979) e o sistema Laban. Toda prática da dança, toda dança constituída, repousa, da
12 Para um estudo mais aprofundado das razões do fracasso notacional, eu me permito indicar o meu artigo D’une graphie qui ne dit rien: les ambiguïtés de la notation chorégraphique, (2004a).
mesma forma que sua notação, sobre o recorte e a identificação de entidades discretas, nomeáveis e repetíveis; qualquer dança isola passos, figuras, posições; a constituição de tal vocabulário, mesmo que implícito e transitório, tem por condição de possibilidade a introdução de descontinuidades no seio do conjunto dos movimentos corporais possíveis; para que haja dança e vocabulário, é preciso que o continuum infinito dos movimentos possíveis sejam desmembrados, rarefeitos, de maneira que se destaquem alguns seres identificáveis : um “dégagé”, um “développé”, um saut de basque, uma “curva”, uma “contração”… A notação gráfica não opera diferen-
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temente, pois qualquer instituição de signos funciona simultaneamente como recorte de entidade, isolamento de categorias e divisão do contínuo. Por essa razão, podemos afirmar que toda dança repousa sobre uma arqui-escritura, no sentido que lhe confere Derrida, uma espécie de articulação primeira introduzindo descontinuidades no ser e funcionando como condição de lembrança e identificação. O problema é que, no caso da dança, as duas “escrituras”, a arqui-escritura do vocabulário coreográfico e a escritura gráfica da notação, nunca foram realmente coextensivas. As divisões categoriais subjacentes aos signos gráficos estiveram sempre de fora, e não superpostos às diferentes entidades isoladas pelo vocabulário coreográfico. Mais precisamente, a adequação dos dois sistemas somente se manifestou em breves momentos. A Chorégraphie de Raoul-Auger Feuillet (1979) corresponde a um desses momentos, sem dúvida o mais arrebatador. Ela marca e projeta maravilhosamente o vocabulário da “bela dança”, dessa dança que se nomeia hoje – sem dúvida, de forma pouco apropriada – “barroca”. Os recortes categoriais operados pelo sistema reproduziam graficamente a arqui-escritura do estilo; eles apenas inscreviam, sob forma de signos, entidades já isoladas pelo vocabulário. O sistema tinha, então, todas as chances de se tornar realmente imanente às práticas que descrevia, pois o que se soletrava sobre a página não era diferente do que se pensava e se efetuava na prática. E, de fato, a notação Feuillet obteve um sucesso e uma difusão consideráveis. Editada em 1700, a Chorégraphie foi imediatamente reimpressa em 1701, e reeditada regularmente daí em diante. Teve tradução para o inglês em 1706 e parece ter sido um consenso, quase universal, durante sessenta anos.13 Desde 1700, paralelamente à apresentação do sistema, ela propôs um verdadeiro corpus de danças que cada um podia se apropriar e executar por si, desde que soubesse decifrar os signos. (FEUILLET; PECOUR, 1979) Tal foi o sucesso que em 1706 com a obra Recueil de contredances mises en chorégraphie d’une manière si aisée que toutes personnes peuvent facilement les apprendre, um novo corpus aparece. Os “mestres de balé” são então convidados, seja por razões de fixação, de difusão ou de propriedade intelectual, a tornar-se eles próprios “coreógrafos”, a notar e inscrever suas obras em forma de páginas escritas que se podia juntar à partitura musical e ao texto
13 No entanto, alguns melhoramentos ou rearranjamentos foram proposto, sem grande repercussão. Ver, por exemplo, l’Abrégé de la nouvelle méthode pour écrire pour toutes sortes de danses de ville de Pierre Rameau (1725), ou ainda, o artigo consagrado por Goussier à “Choreography ” na l’Encyclopédie de Diderot et d’Alembert, no qual Goussier menciona a proposta de um certo Favier.
do libreto. De modo que, nesse curto espaço de tempo, parece que a dança falhara em se constituir enquanto prática real de escritura e de leitura. A imanência do sistema notacional nas práticas descritas (a homogeneidade das categorias instituídas, tanto de um lado quanto do outro), ao menos tornavam possível tal constituição. No entanto, essa imanência de-
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via ser paga às custas de uma sobrevivência necessariamente limitada. A aderência do sistema a um dado estilo autorizava sua assimilação, mas o condenava, simultaneamente, a tornar-se, ele próprio, obsoleto quando o estilo desaparecesse. O que aconteceu, aproximadamente, por volta de 1750-1760.14Essa dependência geral de notação em relação a um dado estilo explicaria, parcialmente, a surpreendente abundância de sistemas que se sucediam, uns aos outros, após o fim do século XV.15 Cada sistema apenas projetaria um vocabulário particular e estaria, consequentemente, destinado a perecer com ele. A notação Feuillet foi o exemplo mais evidente de tal fenômeno de aderência. Resta a possibilidade –ou o fantasma –de um sistema realmente universal, registrando não apenas esse ou aquele estilo, esse ou aquele vocabulário, mas todo o movimento possível. O sistema seria, então, capaz de as-
14 Ver as Lettres sur la danse (1950), nas quais Noverre, visando o princípio da notação, exagera nos argumentos e demonstra que o sistema Feuillet tornou-se incapaz de assumir a responsabilidade pela crescente complexidade dos gestos e dos movimentos. 15 Ann Hutchinson-Guest, no quadro cronológico que propõe, não enumera menos que 60 tipos de sistemas!
sumir qualquer estilo de dança, às custas de uma exterioridade necessária. O sistema só poderia se tornar um sistema de inscrição de todos os movimentos possíveis instaurando suas próprias divisões categoriais, suas próprias entidades, indiferentes aos passos, às expressões e às posições de um dado vocabulário. Consequentemente, essas categorias deveriam produzir o objeto para uma aprendizagem exterior e secundária, dissociado das entidades ordinárias sobre as quais se sustentam as práticas. Resumidamente, aparece a figura do notador.16 A notação Laban17, com a qual justamente se instaura a figura contemporânea do notador, é o exemplo perfeito de tal
16 Pode-se, também, traduzir notateur como coreólogo. (Nota da tradutora)
exterioridade do universal. A cinetografia, outro nome da notação Laban, consegue lidar com qualquer tipo de movimento, quer ele seja coreográfico ou não. Mas ela só pode fazê-lo abandonando toda categoria local, todo elemento da arqui-escritura coregráfica; ela só pode fazê-lo instaurando suas próprias categorias e instituindo um momento de pura arbitrariedade, indiferente às entidades “domésticas” do uso. A cinetografia Laban teria, então, conhecido um fracasso exatamente inverso àquele experimentado pela notação Feuillet: não pela aderência a um dado estilo, às custas de uma impermeabilidade da história, mas por uma inevitável exterioridade de toda a linguagem, que se pretende universal. A cinetografia Laban, juntamente com a notação Benesh, constitui hoje um dos principais sistemas de notação em uso. Mas esse uso opera sempre segundo o mencionado regime de exterioridade. Muito poucos coreógrafos e dançarinos sabem ler ou escrever uma partitura Laban, e o ensino da notação se tornou um domínio específico e marginal no currículo coreográfico. Se combinarmos as duas figuras do fracasso, a impossibilidade da assimilação prática da escritura toma a forma de um trilema: 1. Para que a atividade de leitura e
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17 Rudolf von Laban é geralmente considerado como o “pai fundador” da dança moderna. Começa a elaborar seu sistema de notação do movimento nos anos 1920-1930, na Alemanha. Os princípios básicos dão lugar a duas publicações: Choreographie (1926) e Schrifttanz : Methodik, Orthographie, Erläuterungen (1928). O sistema foi objeto de constantes reelaborações e deságua, em 1956, nos Principles of Dance and Movement Notation. Encontraremos uma apresentação definitiva e exaustiva do sistema no Dictionary of Kinetography Laban (1979), elaborado por Albrecht Knust, aluno e colaborador de Laban, e de uma forma mais acessível, no manual de Ann Hutchinson-Guest, Labanotation (1961).
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escritura se torne indissociável das práticas coreográficas, é necessário que os recortes categoriais operados pela notação sejam suficientemente próximos das obras criadas pelas práticas. 2. Entretanto, para que se estabeleça uma verdadeira tradição escrita, é necessário que o sistema seja suficientemente aberto, de modo que ele suporte a mutação dos estilos e dos gêneros, conservando uma certa estabilidade temporal. 3. Essa “abertura” do sistema – termo destituído de sua universalidade – é possível apenas sob a condição de um abandono das categorias locais de uso, o que parece desobedecer a primeira condição. A cinetografia Laban assumiria as condições 2 e 3, excluindo a 1; a notação Feuillet se ocuparia exclusivamente de 1, em detrimento das 2 e 3. No entanto, é preciso notar que a cinetografia Laban também conheceu seu breve momento de incorporação prática. As danças de massa e os coros de movimento (Bewegungschöre) da Alemanha dos anos 1920-1930, reunindo, o mais das vezes, milhares de participantes, não seriam possíveis sem uma ampla difusão da notação e as possibilidades de aprendizagem que ela oferecia à distância.18 Por outro lado, para Laban, o sistema de decomposição do movimento subjacente à cinetografia não se reduziria, de forma alguma, a um simples artifício de descrição. Trata-se do sistema real do movimento humano, sistema que é o próprio objeto dessa dança dita “moderna” ou “livre” que se cria na mesma época, e cujo uso correto seria funcionar para além de qualquer código, de qualquer vocabulário gestual estabelecido. A dança “moderna” compartilha com a cinetografia um mesmo espaço de universalidade, no qual se veem subitamente autorizadas a produzir e a considerar um movimento realmente qualquer, um movimento sem repertório, inédito. Nesse sentido, pode-se dizer que as categorias
18 “Com meu amigo Knust, escrevi a partitura de uma peça, reunindo mil participantes e enviei a notação para as sessenta cidades donde vieram os participantes. Como nossas partituras tinham sido estudadas pelos sessenta grupos locais, o conjunto dos participantes conseguiu dançar juntos desde o primeiro ensaio, não somente as grandes linhas, mas a coreografia em todos os seus detalhes, e com poucos erros e interrupções”. (LABAN, 1956, p. 1)
de pensamento da notação estavam destinadas a se tornar as mesmas categorias da dança. Apenas a cinetografia podia estar a altura desse vazio preliminar que a dança compreendia como condição de sua “modernidade”. De fato, os conceitos da cinetografia foram, desde a origem, concebidos de acordo com a seguinte regra: tanto notacionais quanto coreográficos. O conceito de kinesfera –a esfera virtual formada pelo conjunto dos movimentos dos membros ao redor do corpo – é, pois, uma condição de domínio gráfico do espaço (daí resulta a decomposição do espaço em 27 direções elementares dando lugar a 27 signos correspondentes), um suporte analítico para a improvisação e a composição. No entanto, essa ligação originária entre os dois regimes de conceitualidade, que supostamente jamais aconteceu, desfez-se progressivamente. Os conceitos labanianos sobreviveram graças a dois modos de perpetuação distintos: garantia implícita do código
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notacional e a série velada e deformada das transmissões orais. Podemos encontrar hoje, em certos coreógrafos ou em certos pedagogos, o traço de tal conceito labaniano. Porém, nunca com um vínculo que o associaria à Laban e que daria ao sistema notacional o caráter prático que lhe falta.
Desconstrução da presença e arqueologia da oralidade Desse fracasso da notação (ou mais exatamente, do fracasso de sua integração prática), resultaria o surpreendente idealismo da presença que parece saturar as práticas de dança, sejam elas passadas ou atuais. Parece que o dançar faz sempre questão de uma presença confrontada (ou não) a uma outra presença, e isso em uma recusa explícita de qualquer traço, de qualquer arquivo, de qualquer colocação. O discurso antinotacional de Noverre (1950), que representa o emblema de tal idealismo, ainda hoje, se encontra às margens de nossa modernidade mais avançada. Um duplo programa de trabalho surge então, e eu faço apenas esboçar aqui o que espero ter, parcialmente, realizado em meu trabalho Le Désœuvrement chorégraphique: por um lado, tentar desconstruir no âmago dos discursos coreográficos a predominância da presença (que só faz reenviar a um certo modelo orgástico ou extático da dança), e por outro, analisar os diferentes regimes de oralidade que organizaram historicamente a sobrevida e a transmissão das obras coreográficas: a estética da variação e das versões que competem, próprias do dispositivo clássico, o dogma moderno da imanência das danças nos sujeitos criadores originais, ou enfim, a consciência contemporânea da historicidade e de suas variações... Tantos são os motivos que vieram contrabalançar a formulação de partida – a dança, ausência da obra –, mas que, infelizmente eu só posso evocar, aqui, sob a forma da preterição, ou seja, pela apresentação de um ausência.
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RESENHA
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Lago vermelho: retrato de uma sociedade agonizante Red lake: portrait of an agonizing society
Durante a programação do Festival Internacional VIVADANÇA - 2012, foi apresentado, nos dias 18 e 19 de abril, no Teatro Vila Velha, o espetáculo Swan Lake (Lago dos Cisnes), dirigido pelo coreógrafo e dançarino israelense Idan
Carmen Paternostro Encenadora e Professora, doutora da Escola de Dança da UFBA. E-mail: paternostro@gmail.com
Cohen (1978-), conhecido internacionalmente por seus trabalhos instigantes que trazem novas reflexões sobre a dança. Em agosto de 2010, ele estreou, em seu país, a coreografia Brazil, uma visão coreográfica pessoal sobre suas impressões, a cerca da cultura corporal e rítmica brasileira, levantando a polêmica questão: “O que se passa em nossa cabeça quando pensamos no Brasil?” Entre suas obras de relevo, vale citar Mad Sirem e My Sweet Little Fur. Na sua segunda visita ao Brasil, destacou-se na programação do festival com um espetáculo pleno de rupturas com o clássico Lago dos Cisnes de Tchaikovski, que foi além do esperado. A coreografia Swan Lake convidou o público para um local estranho, desconfortável, o lugar do incômodo. Os ouvidos do público, solicitados pela música tocada muito alta, sofriam. Talvez, não pelo volume, mas por estarem distante da música clássica, gênero, raramente, presente no cotidiano de Salvador, cidade na qual predomina o universo rítmico da música popular. A plateia, em crescente afundamento, encolhia-se na cadeira, à proporção que o espetáculo evoluía e sempre que entravam cisnes pesados e ruidosos na cena. O gênero farsesco escolhido para interpretação deu lugar ao distanciamento total com a forma clássica. Tratava-se de cisnes não brancos e diáfanos, mas cisnes tipo “patinho feio”, que não elevavam o espectador ao mundo dos sonhos e sim o aterravam com imagens representativas de uma realidade, as quais, metaforicamente, traduziam algumas facetas sociais do tempo atual. Logo na chegada ao teatro, o espectador se deparou com doze refletores no chão, em fileira, indicando a direção para cima. Foco no teto? Algum cisne iria voar? Que nada! Primeiro, foi tocada a música de Tchaikovski sozinha, poderosa, ocupando toda a sala durante a cena de abertura, com o objetivo de sugerir a atmosfera do lago. A música falava por si só. Ao longo desse tempo, ouvindo a música, a atenção do público voltou-se mais ainda para os tomates espalhados perto dos refletores. Em seguida, a dança começou sonoramente, executada por três dançarinas com figurino preto. Uma, após a outra, realizava movimentos fortes e precisos de uma quarta posição no chão. De repente,
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entraram arrastando uma perna num ruond de jamb pás terre – ao invés de au Lair1 –, fazendo ruído. Um arrastar e um cair tão propositalmente pesado e anticisne clássico, que apontavam para os espectadores, logo de início, a necessidade da travessia de outro lago: àquele imaginado por Idan Cohen – um antilago dos cisnes. O espetáculo, criado em 2009, foi elaborado com o propósito de desconstruir a versão romântica de Swan Lake, que há séculos encanta o pú-
1 Roda das pernas no chão e roda de pernas no ar.
blico da dança clássica. Em conversa exclusiva com os alunos de Estudos Críticos e Analíticos do III semestre da Escola de Dança da UFBA, após o espetáculo, Idan Cohen explicou sua intenção de criar sombras sobre a interpretação do clássico. Segundo o dançarino israelita, a proposta foi sair do conto de fadas e inventar uma obra que falasse da sociedade contemporânea, repleta de tensões e problemas, onde não existe muita coisa linda e nada é romântico; ao contrário, há muita opressão nas relações entre os indivíduos. Para isso, o coreógrafo desenhou, principalmente, no chão uma dança com seres desequilibrados, quase neuróticos e um tanto perversos. A segunda parte do espetáculo foi permeada de cenas compostas de arabesques entrecortados de quedas de troncos, mexendo o diafragma como sanfona, com movimentos curtos de um soluço interminável. Assim, os cisnes foram morrendo, num lago vermelho de tomates amassados pelo corpo das dançarinas. Idan Cohen e sua companhia, pensando nas vaias e na possibilidade do público atirar coisas sobre os dançarinos, elaborou a ideia dos tomates vermelhos representarem o lago. O tomate, símbolo de aparente solidez, num toque se derretia em água. Decidido a mostrar que a beleza clássica do Swan Lake não faz mais sentido na sociedade contemporânea, o coreógrafo investiu com fantasia numa desmontagem da beleza falsa, da harmonia de corpos sincronizados e do equilíbrio perfeito. Ele explorou diferentes maneiras de perder o controle e mostrou o corpo descontrolado. Exauriu de diversas formas a dificuldade do corpo em permanecer em equilíbrio nos movimentos. Demonstrou com veemência através de brincadeiras estúpidas – a exemplo da cena do aniversário do príncipe (na primeira parte), na qual todos os elementos são over – como tudo entre as pessoas pode ser bruto. As dançarinas riam de uma forma exagerada, denunciando as relações do riso, muitas vezes, num sorriso alto e vazio. A história que atribui ao cisne negro a maldade e ao branco a bondade também foi distorcida. As figuras eram “clownescas”. Na primeira parte, essas figuras jocosas encontraram eco em algumas pessoas não acostumadas com a proposta sofisticada de Idan Cohen. Aos poucos, também, os risonhos e ruidosos do público entraram
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no jogo proposto pelo dançarino israelita, que considera que não há mais espaço para uma interpretação romântica do Lago dos Cisnes. No âmbito da dança, essa temática é muito apreciada pelos coreógrafos, como é o caso da dançarina alemã Suzanne Linke que, em 1989, se ocupou do assunto quando criou a coreografia Balé de Mulheres: não podemos ser cisne para sempre, com o Folkwang Studio da cidade de Essem. Esta, também, foi mais uma tentativa de borrar os ecos românticos da montagem original. Idan Cohen tentando mostrar as diferentes facetas de sua identidade com o clássico criou um estilo de dança próprio para explorar a monumental peça de Tchaikovsky. Vale destacar, ainda, os soluços corporais que acompanhavam a música, transformando-se em sequências de movimento no chão, predominantes no espetáculo. Uma delas fazia com que as pernas impulsionassem respostas das outras partes do corpo como cabeça, ombros e braços com movimentos curtos. Era quase como se o corpo tivesse tomado um choque que fizesse estremecer as outras partes. Convulsões corporais foram vistas com frequência. Talvez uma batida de asas dos cisnes de Cohen? Ou uma forma de preencher sua proposta de fazer um retrato agonizante da sociedade contemporânea. Os corpos bem treinados das dançarinas foram solicitados com frequência para desafiarem a gravidade, porém não na posição vertical, mas na inclinada, com vários battement de pernas sagitalmente realizados. Eles pareciam estar voando rente ao chão. Swan Lake é um espetáculo que exige bastante do espectador. A ideia do coreógrafo de rejeitar a forma romântica dos personagens do conto e revelar o comportamento caótico e desorientado da atualidade relaciona-se com o pensamento de Boaventura Souza Santos (2009), à medida que este menciona a existência de excessos de determinismos e de indeterminismos que causam uma desestabilização das expectativas. De acordo com o autor, atualmente, vive-se numa sociedade intervalar e paradigmática. E os cisnes desorientados de Idan Cohem traduziam essa passagem de uma nova era: a do “desassossego”, termo utilizado por Boaventura para referir o assunto. Esta coreografia foi, sem dúvida, um dos melhores trabalhos apresentados no festival, sobretudo no que diz respeito à interpretação madura das dançarinas e à tradução dada a uma obra clássica com muita liberdade e humor.
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Ficha Técnica: Coreografia: Swan Lake Coreógrafo: Idan Cohem Dançarinos: Cia. de Dança Dalfi Altabed Música: Lago dos Cisnes de Pyortr Ilyich Tchaikovsky Cenário/figurinos: Criação coletiva Data de estreia: Junho de 2009 Apresentação em Salvador: dias 18 e 19 de abril de 2012, Teatro Vila Velha, Festival Viva Dança – 2012.
Referências SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2009.
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Dança - Revista do PPGDança/UFBA Chamada para a Segunda Edição
Seguindo uma tradição inaugurada com a criação dos primeiros espaços universitários para a dança no Brasil, o Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia lança o primeiro periódico exclusivamente direcionado à pesquisa em dança do país. DANÇA, a nova revista que o PPGDança apresenta a seus pares, nasce com o objetivo de fortalecer a produção dos pesquisadores universitários que se dedicam à dança e suas articulações com outros campos. DANÇA terá periodicidade semestral (junho-dezembro), será composta por artigos acadêmicos; resenhas de livros e eventos (congressos, festivais, seminários, encontros); traduções de artigos que tenham se transformado em referência entre os pares; e um Fórum temático dedicado a questões identificadas como emergentes pelos pesquisadores. A chamada de artigos a serem submetidos ao peer-review para publicação do segundo número encontra-se aberta. Serão aceitos artigos, resenhas e tradução. A seção Fórum continuará a explorar o tema “Pesquisa em Dança na Universidade”. O material para a publicação deverá ser encaminhado em formato digital, seguindo as normas da Revista, até o dia 30 de março de 2013, para o e-mail revistadanca.ppgdanca@gmail.com, aos cuidados do Comitê Editorial da Revista. Será enviada uma mensagem eletrônica confirmando o recebimento do material.
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