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Os Retratos da Miséria Ceará, Seca De 1877-79

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Femicidas

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Texto ARY BEZERRA LEITE

Quando a novidade da fotografia chegou em 1848 à província do Ceará, no nordeste brasileiro, sua população já tinha sofrido as agruras da fome provocada pela estiagem dos anos 1844-1845, fenômeno cíclico e secular maldição que pairava sobre a região. Somente três décadas depois, com as lembranças do flagelo já esmaecidas, abre-se a mais longa e terrível das tragédias, iniciada em 1877, aprofundada em 1878, e apenas atenuada no ano seguinte após 1.000 dias de dor coletiva e alto índice de morte por inanição e febres endêmicas.

O episódio é lembrado simplesmente como a Seca de 1877 ou a Grande Seca. Um capítulo histórico onde se encontram todos os vícios e mazelas da má gestão pública, desde o negativismo e a desinformação, a ausência de planejamento, a omissão de socorro, corrupção e desvio de recursos financeiros, superfaturamento na aquisição de alimentos, enriquecimento ilícito, insensibilidade ante o dantesco quadro de fome e morte de milhares de seres humanos desamparados. Um rol de mazelas que iriam se repetir na Seca de 1915, e em grande parte aparece a nível nacional, até hoje, como na atual epidemia que ameaça o mundo.

A Seca de 1877, por ter sido precursora de ações públicas inusitadas, é ainda hoje tema freqüente de ensaios acadêmicos, que lamentavelmente mal interpretam uma das soluções improvisadas de retirar as legiões vítima da fome e doenças endêmicas, que ocupavam ruas e praças das cidades costeiras, para reuni-los em “campos de concentração”, onde deveriam receber assistência alimentar e sanitária.

O benemérito cientista Rodolfo Teófilo, o mais feroz crítico da ação governamental na Grande Seca, em uma de suas obras, comenta que estranhava que essa solução conhecida como “abarracamento”, batizada pelo povo de “curral”, fosse oficialmente denominada de “campo de concentração”. Denominação que hoje, lamentavelmente, tem sido usada para dizer que o Ceará teve algo similar aos campos de concentração do nazismo.

Ao contrário de assemelhar-se a campos de extermínio, os relatos da época, que detalham a organização e gestão desses espaços, levam a compará-los corretamente aos campos de refugiados contemporâneos, criados em áreas de conflito e no recente êxodo de emigrantes para a Europa, com a agravante de na experiência cearense os acolhidos eram pessoas famintas e doentes, muitas delas semimortas.

A abordagem desse tema foi-me proporcionada ao preparar o livro “A História da Fotografia no Ceará do Século XIX”, quando levantei os caminhos de três testemunhas oculares do martírio de 1877: os jornalistas visitantes José do Patrocínio e Herbert Huntington Smith, e o fotógrafo local Joaquim Antônio Correia, cujas chocantes fotos foram repercutidas na Corte em cópias do desenhista Rafael Bordalo Pinheiro, editor da revista satírica “O Bezouro”.

Nessa época imperava a negligência federal, e quando jornais da Corte começam a narrar fatos dramáticos da seca, o ilustre escritor cearense, glória da sua terra, membro do Parlamento, José de Alencar, faz um discurso de crítica ao exagero das notícias que deveriam ser motivadas um pouco pelo espírito de oposição. Talvez por isso, José do Patrocínio, futura figura de frente do combate à escravidão no Brasil, solicitou ao diretor da “Gazeta de Notícias”, do Rio de Janeiro, em maio de 1878, que lhe credenciasse para ver de perto o drama cearense.

Patrocínio iria assistir ao espetáculo de fome e miséria na capital cearense, invadida em janeiro por mais de 90.000 retirantes, os flagelados da seca. Na primeira de uma longa série de reportagens publicadas no jornal carioca, diz o redator: “Os que não vieram assistir a tremenda exposição da miséria, os que não estão nesta infeliz província, onde por toda a parte se encontra o pânico, a ruína, a fome, a enfermidade, a morte, não podem nem ao menos acreditar nos fatos que lhe forem narrados. Eu tenho pago bem caro a minha incredulidade! ... Parece-me que estou habitando a cidade da morte e espontaneamente a memória parodia-me os pavorosos versos do Dante: “Seres criados, não poupeis jamais, Deixai toda esperança - oh! Vós que entrais!” ... A cada canto há um quadro horroroso que nos prende a atenção, uma lágrima a enxugar, uma indignação a conter.”

Um fotógrafo local, Joaquim Antônio Correia, chamou a atenção do jornalista carioca, por uma decisão inconcebível. Retratista profissional em Fortaleza, estabelecido no centro da cidade, recolhia flagelados nas praças da cidade e os conduzia ao estúdio onde foram feitos centenas de retratos das tristes vítimas. Surgiram então os cartes-de-visite mais tristes e chocantes já produzidos no Ceará. São miseráveis seres humanos, esqueléticos, famintos, maltrapilhos ou desnudos, destituídos de qualquer dignidade. Todos os cartões trazem a inscrição: Secca de 1877-1878; ou Secca de 1877 a 1879 – Ceará. Nas laterais variados versos que expressam o lamento desesperado dos fotografados.

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