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Arnon Golçalves Ca|mar Sa|lar
Arnon Gonçalves é repórter fotográfico em Sergipe. Constantemente enviado para cobrir pautas em diferentes municípios do interior do estado, o fotógrafo aproveita para observar e resgatar neles aspectos de uma memória afetiva que remete aos ambientes que, mais do que comporem cômodos de uma construção qualquer, remetem a sua própria atmosfera familiar. ‘Ca | mar’ e ‘Sa | lar’ nasceram justamente daí.
Qual a relação entre os ensaios Ca | mar e Sa | lar? Eles fazem parte de um projeto maior? Pensando-as em retrospectiva, creio que a conexão entre elas não começa no seu momento de execução. A minha vontade de fotografar cômodos do interior do estado em que fui criado está impregnada da minha própria memória afetiva. Moro na capital do estado desde jovem, mas sou de uma família interiorana que, ao se mudar para Aracaju, fez questão de carregar para a ‘cidade grande’ certa ambiência rural. Ao lembrar da minha infância, recordo da casa em que passei a minha infância como uma roça perdida em meio à agitação urbana, refúgio que era nosso: meu e de meus familiares. Foi esse aspecto familiar que acabei retomando nessas séries – que, não a toa, foram batizadas com uma combinação de sílabas que jogam com palavras muito caras a esse meu universo familiar: ‘casa’, ‘mar’ e ‘lar’.
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Qual é sua relação com os lugares apresentados? O que você pretende contar com essas fotografias?
Não sei se existe propriamente uma narrativa fotográfica nessas séries, mas, há, sim, uma relação íntima com a disposição dos elementos que meu olhar acabou reencontrando nas casas em que fotografei. Falo de ‘reencontro’ justamente porque me percebi fotografando lugares que pareciam me transportar às minhas lembranças perdidas de garoto. A casa da minha família, talvez pela ânsia de preservação da atmosfera interiorana que todos nós carregávamos, era marcada por objetos e disposições considerados pra mim ultrapassados para a época e para a cidade em que se encontravam. Lembro que em casa tinha cama de madeira com mosquiteiros, mesa de jantar no centro de uma das salas e poltronas distribuídas entre os corredores. Tais objetos perduravam há anos na família. A preservação desses elementos, típicos das casas do interior, durante anos e anos talvez fosse fruto de uma necessidade de conexão com o nosso lugar de origem. Fotografar, já adulto, esses mesmos elementos que povoaram a minha infância foi como voltar no tempo e, de novo,
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preservá-los.
A maioria das suas imagens não possui elementos vivos e consegue muito bem contar uma história. Como você encontrou esses objetos narrativos?
As pessoas que hoje habitam cada uma dessas casas não me interessam em particular. Meu interesse era resgatar, através das fotografias, o que algum dia foi meu. E, nesse contexto, qualquer pessoa que nelas figurassem que não fossem aquelas que de fato fizeram parte da minha história seria trair as minhas lembranças. Mantive nas fotos apenas o que cada um desses moradores resguardou de um lugar e de um tempo semelhantes aos que eu, minha mãe, minha avó, meus tios e meus primos vivemos: as paredes sem reboco ou descascadas, as cortinas de pano, os móveis repletos de santinhos e fotografias antigas, os sofás cobertos por panos remendados, as cadeiras de área, as camas de madeira, os mosquiteiros decorados, os cestos de palha etc.
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Suas fotografias tem uma iluminação muito bonita e que conduz muito bem o trabalho. Como você desenvolveu essa estética?
Isso surgiu de maneira natural nessa minha busca afetiva. Enquanto fotografava, não me dei conta de que preferia trabalhar com ambientes pouco iluminados, mas hoje tenho consciência que eles me ajudaram a criar a percepção de um outro tempo, de um tempo passado, que pode não ter a vivacidade e as cores de outrora, mas que se preserva de alguma forma em minha memória. Além disso, ao trabalhar com uma luz reduzida, acredito que o resultado que consegui nessas fotografias remete ao aconchego desses espaços do meu tempo de infância ou, ao menos, das lembranças que guardo deles. e que só não se enchem de trevas de vez porque ainda há flashes de memórias para registrá-los, ainda que com pouca clareza.
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Há sempre uma área de sombra nas imagens, que cria uma sensação dúbia entre o aconchego dos espaços e a escuridão que os rodeia. Como você lida com essa dualidade? Qual a intenção dessa abordagem visual?
Você tocou em um ponto crucial dessas séries. O tipo de iluminação que me leva ao aconchego é a mesma que cria zonas sombreadas nas fotografias. Mais do que um cuidado formal, essas sombras induzem à escuridão das minhas lembranças. É como se elas pudessem, alegoricamente, induzir ao vislumbre de cômodos que perderam o seu antigo brilho, a sua antiga grandeza. Esses cômodos, do jeito que foram fotografados, são desprovidos de materialidade, pois.