a palavras... abro páginas de mim

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a palavras… abro páginas de mim

Autoria Alunos das turmas 10CT1 e CT2 11CT3 e LH2 Orientação Professora Leonor Melo


Ficha técnica:

Autores: alunos das turmas 10.º CT1 e CT4 e 11CT3 e LH2 Orientação: professora Leonor Melo Disciplina: Português Fotografia: Leonor Melo Desenho gráfico: Isabel Bernardo Paginação: Conceição Sacarrão Edição: Biblioteca Escolar Clara Póvoa, 2018 Agrupamento de Escolas Lima-de-Faria, Cantanhede

Licença: a palavras…. abro páginas de mim is licensed under a Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional License.



SUMÁRIO

Introdução

11

[O degrau seguinte é sempre o mais alto.]

13

Andreia Batata

15

Mafalda Neves

19

[Haverá física / química nas palavras?]

23

Alexandre Salgado

25

Matilde Faria

29

[Há sempre uma folha em branco à espera do meu silêncio.]

31

Beatriz Moleiro

33

Camila Lourenço

37

[E, pelo caminho, esmago pedras como folhagem] Joana Pessoa

39 41

Laura Oliveira

45

[Do alto daquela árvore, voa o pássaro que sou.] Joana Pessoa

49 51

Mariana Lopes

53

Mariana Lacerda

55

[Às vezes, em dias cinzentos, preciso de um confidente...]

57

Isa Ribeiro,

59


[...é pela noite que vou... num rasto de lua cheia]

61

Carlota Silva

63

[É fácil ser-se corajoso… ao longe.]

65

Eva Vinhas

67

Laura Oliveira

69

Maria Inês Cera

73

Rita Manco

77

[Na matemática da vida, os números não contam.]

81

Diana André

83

Mayllanne Silva

89

Thomas Fresco

91

[Foi culpa da música!]

95

Leandro Ferreira

97



"Desafiar a palavras é acordar a alma, é desassossegar o espírito, é alimentar a vida a escrever... a voar em páginas de dizer, de Ser e de sonhos infinitos..." Leonor Campos de Melo



INTRODUÇÃO

A importância atribuída ao domínio da escrita, na disciplina de Português, pretende um gradual desenvolvimento da capacidade de lidar com a informação recebida, de a compreender e, consequentemente, de a saber utilizar em novos contextos, direta ou indiretamente relacionados com

os conteúdos programáticos. O projeto de produção de textos escritos complexos, que implicam o treino de um trabalho de pensamento assente na observação, na análise, no recurso à criatividade e na continuidade do raciocínio, visou o objetivo de “escrever

para aprender e escrever para pensar, na sua articulação com o ler para escrever” (Programa de Português, 2014, p.9). E revelou, também, a sensibilidade na interiorização de princípios e de valores transmitidos a partir dos diversos conteúdos programáticos lecionados, nos 10.º e 11.º anos. Leonor Melo



[O degrau seguinte ĂŠ sempre o mais alto.]



Carlota, mais conhecida por Loti, era uma menina outrora feliz e com a maior energia que se podia imaginar. Aquela menina, de cara sardenta e com um cabelinho ondulado e ruivo, cor de uma cenoura pronta a colher, tinha, na altura, treze anos. Sim, na altura, porque, agora, é uma mulher nos seus vinte e seis anos. Quem diria que ela iria mudar tanto. E que mudança! Aos treze anos, Loti sofreu um acidente de viação. A sua mãe ia distraída e bateu com o carro num muro alto. O carro ficou completamente destruído e Loti nunca mais foi a mesma. Tinha sofrido um grande embate, fora projetada do carro e ficara paraplégica. Ficara dependente de uma cadeira de rodas, mas já se tinha habituado à sua limitação. Dizia ela para a mãe: “Tenho muito tempo para me habituar. São só pernas!” Tão novinha e já tão sabida! Carlota tem um emprego. É secretária numa grande empresa. O seu patrão, o senhor Sousa, é muito simpático e o salário não é mau. Dá para pagar o indispensável e ainda sobra para alguns luxos de Carlota. O senhor Sousa tem um filho, Gabriel, que tem vinte e nove anos. Inicialmente, quando ele ia visitar o pai à empresa, Loti ficava sempre atrapalhada: ajeitava a saia, penteava o cabelo com as mãos e corava muito. Tinha sempre medo que fosse malvista, talvez pela sua condição física. Mal sabia Loti que o amor da vida de Gabriel era ela. E que amor!


Gabriel arrumava-se muito bem antes de ir ao escritório do senhor Sousa: perfumava-se com o melhor perfume que havia comprado, passava horas em frente ao espelho a dar um jeitinho aqui e ali… Tudo isto para agradar Carlota. Até que o tempo foi passando, o amor dos dois (já assumido) ia aumentando e eles casaram. Mas a história não acaba sem os pormenores do casamento, em especial, o que tornou Gabriel num homem muito mais feliz. Antes do casamento, Carlota decidiu dedicar-se mais à fisioterapia, pois tinha tirado dois meses de férias(e bem merecidas, depois de seis anos de trabalho sem férias).

Ela queria deixar Gabriel feliz durantes os votos, no dia do seu casamento. Ambiciosa, celebração.

Loti

queria

levantar-se

durante

a

Sim. Levantar-se e andar como ela nunca fizera depois do acidente.

Esforçou-se tanto, mas tanto que, uma semana antes do grande dia, ela conseguiu andar e, nessa semana, andou muitas vezes. Esforçou-se tanto para o conseguir! O fisioterapeuta, que era o melhor amigo de Gabriel e iria ser seu padrinho de casamento, escondeu esse feito do seu amigo, até porque era para ser surpresa.

Chegado o grande dia, Loti começa os seus votos: “Gabriel: Lembras-te do dia em que nos conhecemos? Eu toda corada e tu todo atrapalhado! Que


lindas figuras! Pensei que ninguém se iria apaixonar por mim, esta miúda dependente de uma cadeira de rodas. De uma cadeira de rodas!” Dito isto, Carlota levanta-se e anda na direção do noivo que, comovido, chora e a abraça com muita força.

Continua ela os votos: “Sempre me rebaixei perante os outros, mas hoje, com a tua ajuda, sei que o degrau seguinte é sempre o mais alto, mas não é isso que o torna impossível de alcançar. Tu, que sempre me consideraste capaz e sempre me amaste como sou e me ajudaste a ultrapassar a minha limitação, és hoje o homem com que todas deveriam sonhar, perfeito de corpo e alma, que sabe amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Nesta altura, costuma dizer-se ‘Até que a morte nos separe’, mas acho, ou melhor, tenho a certeza, de que nem essa nos vai conseguir separar.”

Andreia



A vida nem sempre é nossa amiga. Prega-nos partidas, põe-nos uma pedra à frente do pé, é feita de altos e baixos e, por vezes, chega até a ser bruta e violenta connosco. Mas tudo isto faz parte daquilo que é viver e de todas as circunstâncias que nos fazem ser quem somos e que moldam a nossa personalidade. Ultrapassar estes obstáculos no nosso caminho é percorrê-lo. No entanto, todos nós temos formas diferentes de o fazer. Crianças, adolescentes, adultos e idosos veem aquilo que os afronta distintamente: uns, porque a inocência ainda os comanda; outros, porque são influenciados por amigos ou família; e outros, ainda, porque, por tudo o que já viveram, encaram a vida com mais calma e naturalidade. Vencer peripécias e obstáculos é viver. É lidar com a frustração e seguir com a vida. É, indubitavelmente, retirar das experiências ensinamentos, valores e princípios que facilitem a ultrapassagem da próxima “casca de banana” que surgir no nosso caminho. Tomando como exemplo o excelente caso de milhares de alunos, custa lidar com o facto de não conseguirmos alcançar os nossos objetivos. Muitos estudantes são diariamente confrontados com notícias escolares que não os agradam. Notas, por exemplo. Estudar para um teste ou para qualquer outro momento de avaliação e não se atingir a nota pretendida é frustrante. Causa tristeza, insegurança, perde-se a vontade de continuar a trabalhar e a estudar. Mas a chave para não deixar que esse momento ou problema nos afete tanto é aceitar. Temos de perceber que nem sempre as coisas correm como planeado e que, por vezes, é mesmo preciso bater de frente com o corpo todo para reorganizarmos a


nossa vida. Com o tempo, toda a dor atenua. Pode não desaparecer, mas vai-se tornando mais suave e vai apenas estar connosco para nos lembrar do que devíamos ou não fazer e do que não correu assim tão bem. Depois, vai ser muito mais fácil lidar com a frustração e com a desilusão. Infelizmente, a vida é mesmo assim. Num momento pode estar tudo bem e, no momento a seguir, tudo mal. É costume dizer-se que o que não nos mata torna-nos mais fortes. Para tudo se tornar mais suave e simples, temos de encarar a vida como uma escadaria. Cada degrau representa um objetivo ou um obstáculo. Pode ser cansativo subir o degrau, mas, quando o fazemos, o sentimento de realização e de orgulho é enorme. Em cada degrau subido, há um sem número de conselhos, memorandos, memórias, lágrimas e sorrisos que correspondem à jornada a que esse degrau nos levou. No fundo, é tudo uma questão de estratégia e perspetiva. O que já passou não deve assombrar o que está para vir – subir o próximo degrau. Porque, no fundo... “o degrau seguinte é sempre o mais alto.”

Mafalda




[Haverá física / química nas palavras?]



É comum ouvirmos a expressão “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Na China, provavelmente, pelo facto de os nativos terem um campo de visão reduzido, podemos ouvir o provérbio “Há três coisas que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.” No primeiro exemplo, a palavra é desvalorizada, sendo subestimada perante uma imagem. Ao contrário, o provérbio chinês valoriza tanto a palavra que a coloca em pé de igualdade com uma arma. Não deixa de ser curioso o facto de as palavras serem comparadas a armas. Se considerarmos a definição de arma (“Todo o instrumento cortante, perfurante ou contundente, usado como forma de ataque ou defesa”), afinal, o que são as nossas palavras? Efetivamente, não cortam nem perfuram, mas, será que não magoam, será que não podem ser usadas como meio de ataque ou defesa? Se as nossas palavras são mesmo armas, teremos de considerar o dicionário como cofre onde as guardamos. Assim sendo, recorrendo ao meu cofre, e consultando a definição de “palavra”, obtenho algo como: “unidade linguística dotada de sentido, constituída por fonemas organizados numa determinada ordem”. Na teoria, de facto, as palavras são apenas unidades estruturais da frase. Na prática, será que se procede da mesma forma? As palavras não terão uma magia, uma química que é diferente, mediante o contexto, o conteúdo e, até mesmo, o seu recetor? O modo como nos expressamos, quer queiramos ou não, afeta as nossas relações interpessoais. e até mesmo as intrapessoais. Se a nossa mãe nos elogiar, provavelmente não iremos valorizar. É normal a receção desses elogios. Porém,


se o elogio vier daquela pessoa especial, a tal de que não estávamos à espera, como reagimos? É nestes momentos que se revela a química presente nas palavras. As palavras proferidas pela mãe e pela outra pessoa poderão ter sido as mesmas… mas tiveram o mesmo impacto? Os reagentes também eram os mesmos. No entanto, tiveram diferentes produtos de reação. As palavras são uma arma química poderosíssima. Com apenas uma bala podemos destruir ou edificar o dia de alguém. E esta arma tem a capacidade de traduzir todos os nossos pensamentos complexos em estruturas moleculares simples. Temos um cofre de armas bastante vasto. No entanto, preferimos atirar o nosso bom dia ensonado e carrancudo, em vez de escolhermos algo que mude o dia do outro. As palavras só terão o devido efeito “químico” quando começarmos a ambicionar ligações triplas e a quebrar todas as outras.

Alexandre




As palavras são mais do que letras, sílabas ou sons. São o resultado de um processo interno que mistura sentimentos, vivências e pensamentos. Podemos dizer que há química nas palavras, quando estas chegam a uma pessoa e a transformam, provocandolhe uma reação, alterando um comportamento. A química das palavras desperta-nos sentimentos que podem ser de alegria, euforia, ou, então, tristeza, amor ou ódio. Portanto, há química nas palavras, quando estas têm o poder de modificar a essência das pessoas. E, às vezes, basta tão pouco...

E, depois, há física nas palavras, quando são sussurradas ao nosso ouvido e nos arrepiam as veias e nos fazem corar. Ou quando tornam o longe mais perto. E, depois, há aquelas que friccionam e nos aquecem nos dias mais frios. E é com palavras que pintamos a “tela” da nossa vida.

Umas deixam marcas mais quentes, outras mais frias. Umas são coloridas, outras mais esbatidas. Umas passam a correr… outras passam devagar. Com química ou com física, todas ficam para a vida.

Matilde



[Há sempre uma folha em branco à espera do meu silêncio.]



Todos os dias de inverno a via. Todos os dias entrava no café, de rosto rosado e frio. Todos os dias pedia um café e, de olhos fechados, com as suas longas pestanas a descansar no topo das bochechas, saboreava o sabor amargo. Todos os dias eu me sentava em silêncio e escrevia, no meu caderno velho e gasto, como se vestia, o

que fazia e o que a ouvia dizer. Hoje, como todos os dias, senti a brisa gelada do mundo exterior e da realidade de outros a bater-me no rosto. Como todos os dias, olhei para cima e vi-a. Usava o casaco preto, o rosto sorridente e as botas gastas de sempre, mas, para meu desagrado, algo não combinava com o normal, a que tanto me habituara. Hoje, pediu uma água e sentou-se no lugar junto da janela, olhou para as crianças e para os casais de mãos dadas que professavam o seu amor, como se durasse para sempre. Para sempre é promessa que não podemos cumprir,

para sempre é demasiado tempo para alguém saudável querer viver... mas nem eu nem eles sabíamos isso, não sabíamos que não tínhamos para sempre, não sabíamos que amanhã podia não ser outro dia “normal”. E o “amanhã” não foi um dia normal. Nesse amanhã ela não veio, não bebeu um café com leite, não vi os seus sapatos

ou o seu sorriso. Nesse amanhã, senti a brisa gélida no meu rosto, não a vi a ela, mas uma amiga com quem já a tinha visto a desfrutar de uma tarde naquele lugar. Vi-a com um ar preocupado, os olhos inchados (talvez do frio,


pensei, naquele momento), de cabelos cacheados e negros a aproximar-se da D. Clara, a empregada do café. Vim a saber, depois, que a minha deusa tinha falecido durante o sono, de “causas naturais”. Poderia escrever um livro só de sentimentos e emoções que me invadiram naquele momento. E podia escrever outro livro com as notas e os textos que fui esboçando sobre ela. Desde os dezassete anos que lhe escrevo. Tenho oitenta e três e sempre pensei em para sempre. Sempre pensei que, sentado na mesma mesa de café em que a encontrei, nunca a iria perder e que iria haver sempre uma folha em branco à espera do meu silêncio.

Beatriz




São quinze horas de uma tarde de sábado, o tempo está frio e uns pingos de chuva fazem lembrar que o inverno está próximo. Sentada, na secretária do meu escritório, olho pela janela, com um olhar vago e perdido na imensidão dos meus pensamentos. Agarro numa folha de papel em branco e tento dar início ao próximo romance que preciso de escrever... mas o tempo passa, olho para a folha de papel e ela continua em branco, branco como a solidão que sinto dentro destas quatro paredes, como o vazio do meu pensamento. Solidão! Solidão de estar só, solidão de pensamentos,

solidão de amizades, enfim, solidão da vida que tenho e que escolhi, ou a que, pelas circunstâncias, fui obrigada a escolher. E, subitamente, olho para a folha de papel que continua em branco à minha frente, e percebo que ali estava escrita a minha vida. Nada. Sem conteúdo. Vazia. Chorei, ao mesmo tempo que agarrei na folha em branco para a rasgar. Mas, no meio do silêncio, pensei que podia mudar. Assim o faria. Então, agarrei na caneta e comecei a escrever o ditado do fundo da alma. A folha ia ficando cheia, o silêncio ia-se desvanecendo...

Parou de chover. O sol apareceu. Senti a companhia dos sons da natureza... e uma enorme vontade de continuar a viver.

Camila



[E, pelo caminho, esmago pedras como folhagem]



Todos os dias passo pelo mesmo caminho de pedra. Um caminho que todos usam, mas que quase ninguém conhece. É contornado por grandes plátanos e flores de todas as cores. Umas vermelhas como o sangue da paixão, outras azuis a combinar com a liberdade do céu, no verão. Plantas baixinhas que pintam a relva de verde e pequenas

margaridas que rebentavam aos primeiros raios de sol. As pedras brancas da calçada escondem a triste história de uma menina. Uma história triste, mas sentida. Só eu falava com ela. E ela contava-me tudo, mesmo sabendo que eu não percebia nada. Dizia que o caminho

cor da neve conseguia protegê-la. Explicava-me que havia alguém que tentava magoá-la, alguém que não queria que ela fosse feliz. Depois, criava uma história, diferente da do dia anterior, só para mim. Sem saber, fui eu o responsável pelo fim da liberdade e da loucura dela. Contei ao meu primo o quanto gostava

dela, e ele denunciou-a à minha mãe. Semanas depois, ela foi internada numa clínica. Foi lá que aprendeu a odiar-me, a mim e a todos. Não voltou a pisar o nosso caminho cor da paz. Deixou de querer pensar e, com o tempo, deixou de perceber o mundo. Assim, deixou de viver. Foi difícil para mim. Pensar que, agora, tinha de ir para a escola sozinho. Tinha de pisar o caminho que não era só meu. Eram os quinze minutos mais animados do meu dia e desapareceram com ela.


Comecei a inventar histórias para me recordar da sua alegria sincera. Davam-me força e faziam-me acreditar na vida. E, hoje, aqui estou eu, um contador de histórias, um homem que vive na imaginação, um maluco completo,

orgulhoso de si mesmo. Hoje, vou pelo mesmo caminho, mas esmago as pedras... como folhagem.

Joana




Vi. Ouvi. Senti. Vivi demasiado. Pânico. Sofrimento. Dor e medo, muito medo. Se posso resumir tudo aquilo que senti por palavras, por gestos? Não posso, mas posso dar nome a todo este horror: guerra.

Engraçado pensar como tudo aconteceu tão rápido, como um dia normal, banal, vulgar, acabaria num terror que duraria três anos. E eu era tão ingénua! Mal sabia o que me esperaria... Os meus pais estavam tão tristes, tão apressados. Eu não sabia porquê, sabia apenas que tínhamos de deixar o país

e que tínhamos de o fazer rápido. Tínhamos de o fazer mesmo muito rápido. Tão ingénua! Quando estávamos a sair de casa, um enorme som cobriunos. Foi alto o suficiente para que eu deixasse de ouvir, ver

ou sentir. Perdi os sentidos e também perdi os meus pais. Quando voltei a abrir os olhos, encontrava-me noutro lugar, o lugar onde passaria três anos. Fizeram-me escrava e, enquanto escrava, vi, ouvi, senti. Vi crianças como eu a serem maltratadas, abusadas. Ouvi os canhões, os tiros, os aviões. Senti os maus-tratos infligidos

por quem não merecia sequer respirar. Senti a guerra. Senti ódio. Não havia um dia em que não pensasse na minha família, nos meus amigos, nos meus cobertores e nos meus


peluches com cheiro a morango e ternura. E foi toda essa saudade que me fez agir. Eu não merecia aquilo e as outras crianças também não. Estávamos a sofrer injustamente. Juntámo-nos. Pegámos em armas e mantimentos. Foi difícil,

complicado,

violento,

horroroso.

Fugimos.

Conseguimos fugir! Agora, estou a caminho de um lugar a que possa chamar de lar, longe de todo este medo que não me deixou agir durante três anos, mas perto da minha nova família. E, pelo caminho, esmago pedras como folhagem, olho as memórias como miragens distantes.

Vi de mais. Ouvi de mais. Senti de mais. Mas, agora, vou ser feliz. E quero de mais!

Laura




[Do alto daquela รกrvore, voa o pรกssaro que sou.]



Ainda hoje sinto as dores daquela queda em casa da avó. Se o meu irmão não me tivesse empurrado, eu nunca teria ficado uma semana de cama, cheiinha de dores. Mas a culpa foi minha. Eu é que quis ver os passarinhos no ninho. Na verdade, eu não queria vê-los. Eu queria apenas saber como é que eles voavam, para aprender. Depois, só precisava de praticar uns meses. Quando a técnica estivesse aperfeiçoada, já podia viajar pelo mundo fora, visitar todos os cantos e recantos escondidos... conhecer tudo. Mas, para conseguir tal proeza, era preciso ser muito

especial, ser diferente o bastante para conseguir voar. Não demorei muito a aprender. Cerca de dois anos. E algum tempo mais, para oficializar a formação. E então pude voar pelos céus vivos, entre as correntes de ar livre e o calor aconchegante, perdida no meio das luzes que me envolviam, achada nas que rodeavam o universo... Ah! Cansada de correr pelo tempo, mas maravilhada por viver no sonho...

Joana



Não, eu não ganhei asas, não voo sempre que quero, não viajo de país para país em cada estação do ano. Sou apenas eu…com inveja da liberdade dos pássaros. Sinto-me presa, sem qualquer liberdade de escolha. Não tenho livre arbítrio para poder ser, fazer, gritar o que eu quiser. O meu trilho está traçado, o meu trabalho é apenas percorrê-lo. Não posso voar… tenho aulas para assistir. Não posso viajar para outro país… tenho pessoas em casa que precisam de mim. Não posso ser livre... Há dias em que imagino como seria a liberdade absoluta. Há dias em que me dói ouvir dizer que não é bom ser livre, assim. E dói-me mais. Dói-me saber que há quem é livre e voa, que cai, que se levanta e volta a voar, e voa cada vez mais alto... mas reclama, reclama, reclama...

Não, eu não ganhei asas. Só penas. E estas não me permitem dizer que, do alto daquela árvore, voa o pássaro que sou...

Mariana



Amélia é o meu nome. Sou uma sonhadora. Nasci numa família bastante humilde. Os meus pais eram camponeses, por isso, tinham uma condição financeira precária. Além disso, o meu pai, pobre homem, tinha um vício terrível - era alcoólico. Já a minha mãe era uma senhora extremamente trabalhadora, mas isso não chegava para eu e

o meu irmão termos uma vida confortável. E, então, eu sonhava, sonhava com uma vida melhor. Mas nem tudo são sonhos... e as coisas pioraram. Aos meus 10 anos, minha mãe faleceu. Desabou o céu na minha vida! Pareceu-me o fim! Mas valeu-me o sonho... e a liberdade de escolher. Saí da escola e fui trabalhar com uma senhora que era feirante,

solteira e sem filhos. E a D. Aurora começou a gostar de mim, por ser trabalhadora (herança da minha querida mãe) e propôs-me passar a viver com ela. Aceitei, mas continuei a ajudar a criar o meu irmão, até ele poder trabalhar e orientar a sua vida. Quanto ao meu pai, infelizmente, faleceu um ano depois da minha mãe.

Em casa da D. Aurora era feliz e tratada como sua filha. Todavia,

eu

continuava

a

sonhar

com

uma

vida

independente, com uma família. A vida deu-me um casamento feliz e duas filhas lindas. E D. Aurora sempre me apoiou em todas as minhas escolhas. Um dia, já velhinha, faleceu nos meus braços. Senti-me

a reviver a partida da minha mãe. Mas a vida não para, e eu queria continuar a sonhar... Hoje, tenho 70 anos e quatro lindos netos. E ensino-os a sonhar... e a serem livres...

Mariana



[Ă€s vezes, em dias cinzentos, preciso de um confidente...]



Em dias cinzentos e frios, és o único que me faz sentir bem. E, apesar de só te mostrares depois da chuva, és tu quem me consegue bem-dispor um grande sorriso no rosto. Agradeço-te. Tu compreendes quão triste e deprimente é ter um dia a preto e branco. E, mesmo de

longe, colores e mudas o dia de muita gente... e também o meu. O teu vermelho lembra-me os momentos de amor e paixão. O teu laranja diz-me para ser uma boa amiga. O teu amarelo traz-me ânimo e alegria, até quando tudo parece errado. O teu verde ensina-me o respeito e a

esperança. O teu azul dá-me paz e tranquilidade. O teu anil exige-me paciência. O teu violeta mostra-me a importância da partilha. Obrigada, Íris, confidente em arco, que preciso em dias cinzentos.

Isa



[...ĂŠ pela noite que vou... num rasto de lua cheia]



Navego em fase de quarto crescente, flutuo pela estrada da imaginação, reflito sobre tudo e sobre nada... no esplendor do meu mundo, o que tenho de mais sublime. Sou lua de luar mágico. Assim, sem mais nem menos, e é pela noite que vou!

No meio da escuridão, no nada, no vazio, no infinito da noite, eu caminho, caminho em busca daquilo em que acredito. Sou lua e marco a diferença, ainda que seja a mais pequena à face do Universo. No meio da escuridão, percorro um caminho sem fim, deixo um rasto, um brilho. E cruzo-me com outros brilhos,

outros caminhos, outras luas, outras marcas, outras buscas. Ou a mesma. No meio da escuridão, em fase de crescer, é pela noite que vou... num rasto de lua cheia.

Carlota



[É fácil ser-se corajoso… ao longe.]



Nascemos, crescemos, vivemos, morremos. Vivemos. Vivemos da opinião dos demais. Ouvimos, sentimos, engolimos. Avançamos com a opinião dos demais. Biliões de pessoas, triliões de problemas, cada um mais pessoal do que o outro. Vivemos da opinião dos outros, e, quantas vezes, apenas da opinião dos outros. Vivemos em sociedade. Desenvolvemo-nos por nós e pelos outros. Fazemos, ou deixamos de fazer, vamos, ou deixamos de ir,

influenciados pela opinião alheia. Ou não vamos... e renunciamos. É, de facto, árduo ir com ouvidos cheios. É preciso coragem e medo, também. E ir também é um ato de coragem. “Não há montanhas que não se possam escalar, distâncias

que não se possam encurtar, certezas que não se possam mudar.” Mas, certamente, “é sempre mais fácil para quem está de fora”. Alvitrar… ao longe, é fácil! Pronunciar-se… ao longe, é fácil! Ser-se corajoso… ao longe, é fácil! Viver com os outros é difícil. Se é.

Eva



- É fácil ser-se corajoso... ao longe! - protestou Tânia para o lado de lá do muro que dividia a sua casa da mansão requintada da vizinha lambisgóia – Ainda estou para ver o dia em que esse rato me morda os joelhos! Brígida olhava, boquiaberta, perante a falta de classe da sua vizinha Tânia, uma mulher na casa dos cinquenta. Nunca casou. Nunca quis casar. Tinha uma filha. Sofia. Quem era o pai? Não sabia ao certo. Também não queria saber. - Não é um rato, querida. - disse Brígida – É um cão pequenino. E não lhe vai morder, não se preocupe. Só

ladra, ladra muito. Aquela amostra de cão era deveras desagradável. Quem o ouvisse ladrar, carente de destruição, pensaria que aquele baixote era realmente pavoroso. Tânia assim pensava, até ao dia em que o viu fugir de uma joaninha, aterrorizado. O cão era realmente uma farsa. Uma pequena grande farsa.

Mas, mais embuste do que a salsicha ambulante de quatro patas, só mesmo a dona e a sua cara de plástico. Brígida tinha um irmão, um enfermeiro divorciado, por quem Tânia sempre tivera uma grande paixão. Em tempos, Nilson fora um homem bonito e charmoso. Porém, agora, esse charme já não era tão visível, talvez estivesse escondido pela barriga de cerveja. Mesmo assim, sempre que Tânia pensava nele, lembrava-se daqueles seus avultados músculos. E foi isso que a fez arriscar. Tentar a sua sorte.


Encheu o peito de ar. Tocou à campainha da sua vizinha, pois Nilson estava de visita a casa da irmã. Esperou a receção. A amostra ladrava, desalmadamente. Foi Nilson que a recebeu.

Nos primeiros minutos foi só Tânia que falou. Confessou tudo. Depois foi ele. Ele também gostava dela. Tânia decidiu ser corajosa, mas de perto. E correu bem. Por alguma razão, Tânia não foi a única. Estavam os dois a conversar, sentados no jardim, como

dois jovens, quando uma dor angustiante se apoderou do joelho de Tânia. Era a amostra. Decidira vingar-se das palavras de Tânia. Só por coragem!...

Laura




França, 30 de janeiro de 2001 Querido John, Hoje o dia esteve frio, assim como o meu coração. Nevou, tudo ficou branco como o casaco que ele

usava naquele dia. Já passou um mês desde que vim fugida daquele país. Entretanto, o mundo vai ganhando alguma cor. Nunca fui capaz de descrever aqueles dias, mas talvez tenha chegado a altura de o fazer, talvez só assim consiga

ver um pouco de luz… Raptou-me no dia 25 de dezembro de 1999, estava calor como era habitual onde eu vivia, mas, no momento em que fui levada para aquele bordel, o meu sangue gelou. A casa tinha aproximadamente quinze mulheres, todas elas lindas, todas elas com um olhar vazio, todas elas com um sorriso postiço. Assim que lá cheguei, ele agarrou-me por um braço e apresentou-me ao grupo. Nesse dia não fui lá acima. Disseram que tinham de me ensinar as regras do sítio. Fiquei fechada num quarto com ele, o homem do casaco branco.

Sentou-me, abriu um armário rosa, que parecia o meu de criança, apesar do conteúdo estar mais fustigado, tirou algumas roupas e mostrou-me o que vestiria daí em diante: vestidos curtos, lantejoulas, sapatos bem altos (eram tão


parecidos com os que “roubava” à minha mãe para “desfilar” com eles). Mas ali estava eu... prestes a perder toda a minha inocência. Mandou-me vestir, fiquei bonita, mas não sentia qualquer beleza. Voltei a sentar-me. Beijou-me. A partir

daí, tudo para ele fluiu naturalmente. Eu tinha quinze anos e ele violou-me, roubou-me o armário rosa, roubou-me os desfiles com os sapatos da minha mãe, roubou-me toda a minha infância, roubou-me a minha dignidade. Nunca pensei deixar de ser virgem assim, nas mãos de um monstro. Mas foi então que veio toda a realidade: já não

era mais a princesa para um final feliz. Para ele tudo era fácil, assim como outrora fora para aquela criança feliz. Para ele, o nosso sofrimento nem era apenas mera miragem. Provavelmente, nem lhe tocava a consciência. No dia seguinte fui lá acima, e mais uma vez vesti

aquela pele que não era minha. A sala estava cheia de homens engravatados, meninas serviam bebidas, eram mais velhas do que eu e usavam saias travadas e compridas, mas estavam ali com um propósito diferente do meu.

No canto da sala, estavam as quinze mulheres que antes eu conhecera, todas arranjadas. Os homens aproximavam-se, escolhiam, assim como eu um dia escolhera as minhas bonecas na vitrina daquela loja, na


baixa. Algumas delas não chegavam a voltar. Outras, como vim a descobrir mais tarde, demoravam dias, semanas, meses, a fazê-lo. Apesar da pouca experiência, fui escolhida logo na

minha primeira semana. Um homem velho, cerca de setenta anos, levou-me para um hotel de luxo e lá estive à sua mercê, durante cerca de duas semanas. Depois, fui devolvida. Passei por várias situações idênticas durante alguns meses, até que, no dia 25 de dezembro de 2000, a polícia

invadiu o bordel e fomos libertadas. Passado um ano, pude ver novamente o mundo como realmente era. Vi o meu pai e deram-me uma nova identidade para que pudesse recomeçar a minha vida em segurança. Vim, então, para França. Vou aprender a língua e, em setembro, volto à escola. Nada tem sido fácil. Aliás, acredito que só seja fácil ser -se corajoso, enquanto não nos tiram quem somos, enquanto o horror da sociedade vagueia ao longe, encasacado de branco. Espero que o próximo Natal possa ser realmente Natal e que eu, devagar, volte a ser Eu. Um beijo sentido, Nádia

Maria Inês



1 Dia, 24 horas, 1440 minutos, 86 400 segundos, é o que basta para mudar uma vida. Às vezes as coisas acontecem sem

sabermos

bem

o

porquê

e

acontecem

tão

rapidamente que nos atordoam completamente. É como que se nos tirassem o tapete e, do nada, caímos, caímos e custa, e magoa, e é difícil levantarmo-nos novamente. É

como se, de um momento para o outro, tudo aquilo que conhecemos mudasse completamente e nos sentíssemos como personagens que deixadas à toa num filme que não é o seu. Esta mudança pode ser algo insignificante, mas é tão marcante, tão pequenino, mas tão arrebatador, que nos deixa

completamente

capacidade

de

estonteados,

resposta,

sem

completamente

voz,

sem

despidos,

desamparados, sem fôlego. E esta perda total de apoio, este embaraço profundo, já nos aconteceu a todos. A mim, aconteceu-me hoje mesmo. Uma mudança que, se comparada aos problemas todos do mundo, parece tão… mas tão irrelevante, tão estúpida. Porém, ao aparecer numa vida patética e simples e rotineira como a minha, é como um tornado, uma força sobrenatural capaz de virar tudo do avesso. Isto é o que marca um coração partido, e eu sinto-o como se fosse o fim do mundo, embora para os outros seja só mais um clichê. E é por isto que escrevo, que escondo aqui tudo o que sinto, num caderno velho que conta tanto, que conta a história de uma vida, uma vida dramática de uma diva que exagera todos os seus problemas, que se sente nascida na época errada.


Num tempo onde todos são vazios, ocos, cheios de aparência, onde conhecer alguém que me espante, cuja personalidade vá mais fundo do que aquilo que os outros veem, é algo raro. Tão raro que, quando aconteceu, me fez apaixonar rapidamente. Como quando adormecemos, sem dar conta disso. E então eu adormeci e vivi um sonho, umas

semanas de borboletas na barriga, uns meses de amor. Mas, como qualquer sonho, também este acabou. Acabou hoje mesmo, com uma futilidade, com uma frieza impressionante. Aquele que eu julgava ser diferente, afinal era igual. 1 Dia, 24 horas, 86 400 segundos, uma mensagem, foi tudo o que bastou para me acordar de um sono que eu pensava durar para sempre. Uma mensagem!… É fácil, assim, não teres de me olhar nos olhos, não teres de ver o que estás a deitar fora, poderes fingir que não me magoaste, que não me amaste. É fácil ser-se forte ao longe, é fácil dizer que não te dói. É fácil ser-se corajoso… ao longe, dizer que já não sentes nada, que tudo passou. Uma mudança que me tirou o chão, uma mensagem que me destruiu por dentro, que me fez pensar e repensar mil e uma vezes se vale a pena, que me fez desacreditar em tudo aquilo em que eu acreditava, que me fez perder a fé no

amor. Na verdade, tudo isto é uma imensa hipérbole, o amor é uma hipérbole, ou uma infantilidade, um egoísmo total...

Ficamos amigos. Afinal de contas, é só mais um

fim, mais uma desilusão no meio de tantas, algo tão ínfimo


e estúpido. Otimista que sou, ou que quero ser, sorrio, finjo que não dói, que não sinto nada. É com pena que me despeço, mas não insisto, não peço que não vás, que não me deixes, não te digo que não consigo viver sem ti, porque consigo, consegui-o até tu apareceres, e vou conseguir... agora que vais embora. Peço-te apenas que nunca te esqueças de mim. E espero encontrar aquilo que me fizeste perder. Afinal, estou a menos um desgosto de distância de encontrá-lo.

Rita



[Na matemática da vida, os números não contam.]



- Ele já não fala com ninguém! – disse a mãe do rapaz, exaltada. E era verdade. John tinha-se afastado de toda a gente de quem alguma vez tinha sido próximo, ou conhecido, ou de alguma maneira relacionado. Tinha-se afastado da Dona Odete, a bibliotecária que o mantinha a par das novidades de ficção científica que chegavam, semana sim, semana não, à Biblioteca Municipal; tinha-se afastado de Jim, o estudante de bioquímica que o acompanhava nas suas corridas matinais duas vezes por semana, não mais; e distanciado a milhas do florista a quem comprava rosas todos os domingos para entregar à avó. Se já não via a família, para quê importar-se? Ele tinha empurrado para longe qualquer vestígio de amor na sua vida. Estava agora sozinho, até a compaixão da mãe o tinha abandonado. - Eu já não aguento mais, Doutor. O meu John nunca foi assim, não sei o que lhe aconteceu! – disse novamente a

mãe de John – Parece que a massa cinzenta desapareceu! Até o Doutor Ameirinho arregalou os olhos. Seria agora o John um mau aluno? Já o seguia e conhecia desde criança, não só o seu histórico clínico, como o académico, que os pais lhe faziam questão de gabar sempre que podiam. Ao ver a reação do médico, a mãe passou de imediato a esclarecer que os dezanoves e os vintes se tinham mantido. As poucas células da massa cinzenta que o seu pequeno John reservara para o senso comum é que estavam com avarias. Não os vintes. Nunca os vintes!


Mas, mais uma vez, o doutor não pode ajudar. Já passavam de vinte e sete consultas nos últimos dois anos. As teorias dos pais do jovem eram muitas: manifestação tardia de autismo, depressão, uma gripe mal curada (segundo a avó) ou mesmo tendências psicopatas, por causa da aparente falta de empatia e assim… O problema é que ninguém tinha verdadeiramente observado o que se passava. Há pouco mais de três anos atrás, o avô de John falecera. O Alzheimer tinha finalmente tirado ao velho Tim mais do que a memória: a vontade de ficar neste mundo para ver se a sua neta Carlota ia nascer ruiva como a mãe ou loira como o pai. Ele amava aquela criança, mesmo sem nunca a ter conhecido, mas tinha ainda mais apreço por John: a única pessoa que partilhava o seu jeito e gosto por xadrez e tríleres. Os dois, em conjunto com o Senhor Macedo (amigo de longa data do velho), passavam tardes entretidos. Porque tinham de lá

estar sempre os três. Um a mais para ver se faziam batota e para reler pela trigésima vez “E não sobrou nenhum”, de Agatha Christie. Nos seus últimos dias, o avô já não reconhecia ninguém. O médico, a avó, o seu companheiro de longa data. Mas o nome de John repousava sempre nos seus lábios, pronto a

ser libertado às cinco, quando o neto saía da escola para ver o velho, e novamente recolhido às oito, quando a mãe de John achava que eram horas de jantar. E tudo recomeçava, outra vez, no dia seguinte.


Até um dia enregelado de dezembro, quando John viu entrar na sala de aula a mulher do senhor Macedo, com lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo. Os poucos Celsius

que

tornavam

a

sala

antiga

acolhedora,

desapareceram, dando lugar a um ambiente frio e triste. Como John. Dois dias depois foi o funeral. Estava a chover. Ninguém sabe se se devia às lágrimas dos indivíduos presentes ou a um simples percalço da meteorologia. O ambiente estava árido. Não havia o sorriso calmo do avô nem o cheiro da sua colónia, exclusiva para senhores estilosos com mais de

setenta. Somente restava o choro soluçado da avó nos braços da mãe, acompanhado dos pesados pêsames dos que vinham assistir. Mas, o que provocava uma revolta nas entranhas do jovem, eram as muitas pessoas que ali estavam pelo espetáculo. Havia a senhora Sousa, que fora em jovem

uma das paixões do avô e esperava que ele lhe tivesse deixado aquele terrenozinho atrás da sua casa que tanto lhe pedia (pela conveniência, é claro!). E a tia Joana? Todos sabiam que ela tinha saído de casa do avô logo após a faculdade. Dizia-se “independente”, mas procurava, no testamento, meia dúzia de linhas com o seu belo nome. Depois de ver toda aquela ganância, até por parte daqueles que rodeavam o velho Tim nestes últimos meses, John prometeu a si mesmo que ia afastar para longe todos os que o rodeavam! Assim, não havia como ter amigos


interesseiros e traiçoeiros, se não se tem amigos em primeiro lugar. Foi uma tarefa difícil, mas, depois de muito ódio e palavras nas quais, verdadeiramente, não acreditava, lá se foram. Primeiro os amigos e depois a família, o que muitos poderiam até argumentar ser as maiores riquezas do mundo. Pois bem, John era pobre. Uma das pessoas das quais custou mais, a John, afastar-se foi o Senhor Macedo. Ele era o dono de um dos cafés do bairro. Logo após a morte do avô, John costumava ir ao café, pedia uma cola e matava as saudades do xadrez e

dos tríleres, enquanto falava com o velho. A sua expressão tranquila e as palavras sábias lembravam-lhe o avô. Doía de mais lembrar-se de coisas tão tristes no meio de páginas e de bispos. Por isso, tal como os outros, também ele acabou por ir. Um dia, andava o John pelo parque, quando viu o Senhor Macedo.

Bem

tentou

escapar-se,

mas

a

vontade

escondida que tinha de falar com o seu velho amigo acabou por fazê-lo ceder. Passaram umas boas horas a atualizar-se um ao outro acerca dos acontecimentos mais recentes das suas vidas. E, ao contrário de todos os outros que rodeavam o John e passavam todos os instantes a gritar e a ralhar com ele, o velho ouviu. Ouviu-lhe as mágoas, os arrependimentos, os sonhos… - John – disse o velho, num tom sério e cru, que o jovem


não reconhecia – eu fui ao médico no outro dia. John sentiu no seu peito um vazio. Já antes tinha ouvido aquela conversa, quando o avô decidiu contar à família as desavenças da sua saúde, naquele mesmo tom. Levantouse e começou a pontapear tudo o que via: pedras, árvores… - John! John! – disse Macedo, enquanto tomava o jovem nos seus braços, relutante e cheio de raiva – Acalma-te, rapaz. - Não é justo, Macedo! Não é justo! – disse o jovem enquanto chorava agarrado ao velho, temendo que esta

pudesse ser a última vez que o fazia. - Não chores por mim, pequeno John. Tens toda uma vida pela tua frente. Uma vida de experiências para aproveitares – disse o Senhor Macedo – Achas que o consegues fazer sozinho? Viver uma vida completa e emocionante sozinho? Não. Podes ter um excelente emprego, resultado do teu trabalho na escola, com os números, as ciências e as línguas. Mas, na matemática da vida, os números não contam, meu jovem. E posso não durar muito mais tempo. Sei que não, – lamentou com um suspiro – mas sabes o que é que te deixarei? – perguntou contemplando os olhos de John, onde ainda havia memória da criança alegre que outrora tinha sido – A minha felicidade, pequeno John. Deixar-te-ei a minha felicidade.

Diana



Aprendemos que, na vida, é importante saber somar boas amizades e andar com boas companhias. Como aquelas pessoas que sabem reconhecer as suas qualidades e fraquezas e que estão sempre do nosso lado em qualquer situação. Infelizmente, também encontramos no nosso caminho pessoas que precisamos de subtrair do nosso

caminho: as invejosas, as gananciosas, as maldosas... Mas, como vivemos em sociedade, é preciso apagar o egoísmo e multiplicar as alegrias. E, se a luta estiver difícil, dividi-la com alguém, pois em equipa tudo fica mais fácil. No entanto, nem todos sabem trabalhar em equipa, pois atualmente a sociedade está muito individualista. A raiz da parte dos problemas na sociedade, geralmente, é o egoísmo e a falta de humildade que, infelizmente, se desenvolve de forma exponencial e dificulta o convívio em grupo. Não, a matemática da vida não é simples. Enquanto

nos lamentamos que a vida é curta, agimos como se tivéssemos à nossa disposição um armazém infinito de tempo. E esperamos de mais para fazer o que precisa de ser feito, num mundo que só nos dá um dia de cada vez e incógnitas do amanhã.

Mayllanne



Diz-se que são os pequenos momentos que mudam as pessoas. No meu caso, foi exatamente um desses momentos que mudou a minha vida: uma conversa, aparentemente insignificante, que teve lugar depois de um almoço de família. -Albert Einstein! Vem já para a mesa! - gritou a minha mãe, da cozinha. Como era hábito, todos os domingos íamos almoçar a casa dos meus avós. Aquele dia não foi exceção. Os almoços de família eram longos e secantes para qualquer criança como eu. Com nove anos e meio, ali estava e aguentava, quieto e

silencioso. -Tchim, tchim! Tchim, tchim! - diziam todos. Embora

não

quisesse

estar

a

ouvir

as

conversas

desinteressantes dos adultos à volta daquela mesa velha da avó, tudo era melhor do que a matemática da escola. O meu avô observava-me discretamente, intrigado com a minha expressão de tédio. Parecia estar preocupado. Não dizendo nada, continuou a sua refeição. A avó tinha feito rolo de carne no forno e, quando acabámos de lamber o fundo dos pratos, ela trouxe a sobremesa – um bolo de chocolate delicioso, feito pelo seu carinho. Pouco tempo depois, já só restavam as migalhas do bolo em cima da mesa. A minha mãe deu ordem para que eu saísse e fosse fazer os meus trabalhos de matemática. Sem reclamar, saí da cozinha. Espalhei melancolia por todo aquele corredor. Arrastando os pés no tapete comprido que a avó lá


colocara, naquele que parecia ser o corredor mais longo que alguma vez tinha atravessado, cheguei ao meu destino. Bati à porta do escritório do meu avô, já pronto para trabalhar. Lá dentro, encontrei o velho. -Entra, Albert! Senta-te aqui ao colo do avô! - pediu.

Sem dizer uma palavra, sorri e obedeci ao pedido. Já no seu colo, comecei a olhar para as prateleiras cheias de livros e para a grossa camada de pó que existia sobre eles. O velho encostou-se para trás, ajeitou a cadeira e pediume que lhe mostrasse os meus exercícios sobre aqueles números horríveis. Com toda a calma do mundo, pegou

no meu caderno e sorriu. Descobriu uma caneta azul e dourada que guardava na última gaveta da sua secretária e

começou

aterrorizadoras.

a

explicar-me

Durante

hora

aquelas e

meia

expressões falámos

de

matemática. Poucos segundos após ter fechado o caderno, o vetusto olhou para mim seriamente e enunciou

aquilo que, mais tarde, veio dar sentido a toda a minha vida: -Não

podia concordar mais contigo. Esta matemática é

entediante, justamente pela sua exatidão. Terás de aprender a lidar com ela, mais tarde. Mas, como na vida nada é exato, à exceção da morte, não é esta a

matemática que é verdadeiramente importante para nós. Na matemática da vida, os números não contam: se eu não soubesse somar, não teria filhos; se eu não soubesse dividir, não teria amigos; esta família não existiria, se eu


não soubesse multiplicar; teria perdido tudo, se eu não soubesse subtrair. Por isso, se te lembrares sempre que a amizade soma, o amor multiplica, o ódio divide e a inimizade diminui, saberás sempre como ser feliz. Um momento de silêncio encheu o escritório. Olhei para

o relógio de parede que existia mesmo por cima da porta: eram seis da tarde. Tinha de ir embora. Agradeci e despedi-me com um beijo na sua careca velha. Apesar de não ter significado muito para mim naquele dia, aquela pequena conversa mudou completamente a minha maneira de pensar, ao recordá-la, uns anos mais

tarde. Tenho muito a agradecer ao meu avô, pois, graças a ele, consegui a inspiração necessária para formular a Teoria da Relatividade e ganhar o Prémio Nobel da Física.

Thomas



[Foi culpa da música!]



posso fazer asneiras... por causa da música posso remediá-las... por causa da música às vezes, mudo de ideias... por causa da música motivo-me... por causa da música concentro-me... por causa da música faço coisas e acontecem-me coisas... por causa da música gosto de futebol e de música vivo para o futebol e para a vida... por causa da música a música pode mudar vidas

a música pode mudar-me os dias se conseguir realizar os meus sonhos vou poder dizer: " Foi culpa da música! "

Leandro



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