diĂĄlogos possĂveis
dialogos possĂveis 2020
Ficha técnica
Autores: alunos da turma 12 LH2 Orientação: Madalena Toscano (professora de Português) Escola Secundária Lima-de-Faria, Cantanhede Edição: Isabel Bernardo, Biblioteca Escolar Clara Póvoa Desenho: Júlio Pomar, Fernando Pessoa Licença Creative Commons 4.0
Diálogos possíveis A atividade Diálogos possíveis surgiu como resposta ao desafio lançado a algumas turmas do 12.º ano, no âmbito do estudo de Fernando Pessoa ortónimo e seus principais heterónimos, tendo como objetivos sensibilizar os alunos para a leitura do texto poético, mobilizar informação adequada ao tema, desenvolver a criatividade em termos da expressão escrita e participar construtivamente em situações de interação oral. Em trabalho de pares, os alunos produziram textos destinados a serem dramatizados em contexto de sala de aula, partindo da seguinte situação: colocar o poeta Fernando Pessoa e/ ou os seus heterónimos em interação entre si ou com outros intervenientes, quer sob a forma de entrevista quer simplesmente sob a forma de diálogo. Após a apresentação de todos os trabalhos, seguiu-se um momento de debate, Debate entre Pessoas, o mesmo é dizer, entre ortónimo e heterónimos. No início, os alunos não se mostraram muito entusiasmados, pois estavam a iniciar o estudo desta unidade temática e pouco ou nada conheciam de Fernando Pessoa. Contudo, à medida que foram descobrindo o carácter sui generis do universo pessoano, a sua atitude mudou completamente, ao ponto de se identificarem com alguns dos múltiplos “eus” que povoam esta “galáxia” que é Pessoa. O importante é que ninguém tenha ficado indiferente ao espetáculo que é a sua obra, drama em gente de um ser fragmentado, perdido no labirinto de si mesmo. Terminada a atividade, os alunos sugeriram que se devia repetir a ideia com outros autores do programa. Quem sabe se partindo de Diálogos possíveis não poderemos chegar a possíveis diálogos…
Diálogo entre Fernando Pessoa e Alberto Caeiro Numa tarde de calor, num banco de jardim, um pastor chamado Alberto Caeiro e um pensador chamado Fernando Pessoa conversam sobre coisas da vida, até que o pensador se lembra de iniciar uma estranha conversa. Fernando Pessoa - Olha lá, mestre! Alberto Caeiro - Diz camarada. Fernando Pessoa - Às vezes, dou por mim a desejar poder ser tu, sendo eu! Alberto Caeiro - Porque é que dizes isso? Fernando Pessoa - Estou cansado desta inútil agonia, desta dor de pensar. Alberto Caeiro - Então não penses! É muito simples! Fernando Pessoa – Não consigo, pois o que em mim sente está pensando. Alberto Caeiro - Pensar é estar doente dos olhos. Fernando Pessoa – Isso não é verdade. O pensamento é como uma flor e se a flor flore sem querer, sem querer a gente pensa. Alberto Caeiro- Acho tão natural que não se pense, mas isso é para mim, que sou um simples guardador de rebanhos. Por exemplo, pensar numa flor é vê-la e cheirá-la. Nada mais do que isso. Fernando Pessoa – Estou tão cansado de pensar! Nem sabes como invejo a inconsciência daquela pobre ceifeira e a sorte daquele gato que brinca na rua. Alberto Caeiro – Então pensa com os olhos e com os ouvidos, com as mãos e os pés, com o nariz e com a boca. Não vai ser fácil, eu próprio dou por mim a querer perceber, mas quem me disse que havia que perceber? O mundo não se fez para pensarmos nele Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…. Fernando Pessoa – Pensar com os olhos? E com os ouvidos? Pensar com as mãos e os pés, com o nariz e a boca? O que estás para aí a dizer? Não pensas nas coisas? Na razão delas existirem? Não pensas no ontem e no amanhã? Alberto Caeiro - O ontem? O amanhã? Fernando Pessoa - Sim, o tempo. Ontem, eu senti-me infeliz e hoje estou cansado de pensar no facto de me sentir infeliz. Isto é o tempo! Alberto Caeiro – Não, para mim não. A minha biografia tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma coisa e outra todos os dias são meus. Fernando Pessoa - Temos filosofias diferentes!
Alberto Caeiro - Não, não, eu não tenho filosofia: tenho sentidos. Posso dizer-te que sou o único poeta da Natureza e que o rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Fernando Pessoa - Ah, para mim, pensar é tão natural! É a minha maneira de compreender o mundo, mas, mesmo assim, sinto a necessidade de encontrar um lugar onde a vida é jovem e o amor sorri. Alberto Caeiro - Pensar é não compreender… Fernando Pessoa - Ah, quem me dera ter a tua inocência! Alberto Caeiro - A única inocência é não pensar. Faz o seguinte: num dia de calor, quando te sentires triste, deita-te ao comprido na erva e fecha os olhos. É aí que saberás a verdade e serás feliz. Tu nunca foste feliz? Fernando Pessoa - Sim, fui-o outrora. Agora, já não sei se consigo voltar a sê-lo. Alberto Caeiro - Ouve-me, procura raspar a tinta com que te pintaram os sentidos. Tenta retirar de ti tudo o que a sociedade te impingiu. Fernando Pessoa - Não me parece ser assim tão fácil, deixar de pensar, deixar de ser o que fui até agora. No labirinto do que sou, não sei quantas almas tenho. Alberto Caeiro - Nunca te disse que ia ser fácil, até porque não o é (aponta para si próprio). Ainda assim, sou alguém. Sou o Descobridor da Natureza. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Fernando Pessoa - Adeus, meu pastor! Alberto Caeiro - Adeus, meu pensador!
Daniela Moreira e Luís Gonçalves
Diálogo entre Ricardo Reis e Lídia Lídia e Ricardo Reis davam um dos seus habituais passeios semanais, à beira do rio. O nosso Reis apresentava a sua versão mais tranquila possível, tão tranquila que se tivéssemos vivido antes de Cristo, confundi-lo-íamos com o próprio Epicuro. Quanto à nossa querida Lídia, esta continuava à espera de que a paixão batesse à porta de Ricardo, da mesma forma que a ela lhe tinha batido. Curiosamente, iam de braço dado. Reis, taciturno e em silêncio, vai olhando para Lídia, discretamente. Lídia sorri apaixonadamente, olhando para ele de forma carinhosa. Ao sentarem-se, Reis retira o seu braço do de Lídia com uma expressão de incómodo contido. Lídia volta a agarrar-lhe no braço, mas Ricardo Reis, com delicadeza, retira novamente o seu braço do dela. Magoada, Lídia levanta-se e começa a andar de um lado para o outro, muito nervosa. Reis observa-a em silêncio e contempla a paisagem, com um ar absorto. Calmamente, levanta-se, colhe uma rosa vermelha e oferece-a a Lídia. Ricardo Reis - A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido já o Sol, e acabam Antes que Apolo deixe O seu curso visível. Lídia - (aparte)Talvez o melhor seja eu começar a cair em mim. Ele não vai mudar. Tem tanto medo de sofrer que acaba por não viver. Vive numa ataraxia tão grande que não percebe que a vida é para ser vivida e não vê-la simplesmente passar. Ricardo Reis - (declamando) Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento de mais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar.
Lídia - O rio sempre correria, e sempre iria ter ao mar… sim, já sei, Ricardo, já sei. (Lídia volta a sentar-se) Ricardo Reis - Enlacemos as mãos, Lídia. (Lídia sorri esperançosa) Ricardo Reis - Não. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Lídia - Porque ages assim? Porque renuncias ao amor, a mim e a ti, ao prazer, mesmo aquele tão inocente como o de dar as mãos? Eu tinha a esperança de que ao fim de tanto tempo juntos, que tivesses um pouco mais de apreço por mim... Ricardo Reis - E eu tenho, Lídia, eu tenho, mas… Lídia - Mas o quê? Vais dizer-me que a vida é para ser (faz o símbolo das aspas com as mãos) “aproveitada” placidamente, pois a morte é certa? Ricardo Reis - Sim, Lídia. Façamos nossa vida um dia, Inscientes, Lídia, voluntariamente Que há noite antes e após O pouco que duramos. Lídia - Mas não és tu que apregoas o Carpe diem? Então se isso significa aproveitar o dia, gozando os prazeres do momento, como é que podes ser coerente com o que dizes, quando pensas em cada passo que dás e conténs toda e qualquer emoção? Ricardo Reis- E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio? Lídia - (Lídia interrompe-o) Então por isso não criaremos memórias nem seremos felizes? Viver e morrer faz parte do ser humano, Ricardo. E se morrermos com a consciência de que levamos memórias um do outro, morreremos felizes.
Ricardo Reis - (derrotado) Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Lídia - Se sofreres, então, com certeza, terá valido a pena viver. Ricardo Reis - Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. Lídia - Viver é mais do que existir, Ricardo. Viver é criar laços (dá a mão a Ricardo). Ricardo - (tenta retirar a mão) Se todos vivessem como eu, deveras, não haveria tantas tragédias. Lídia - (Lídia agarra com força a mão de Ricardo Reis) Tragédias como as de Romeu e Julieta? Fica sabendo que são tragédias como estas que nos fazem acreditar que a vida só vale a pena se for vivida intensamente. Ricardo - (levanta-se bruscamente, forçando Lídia a retirar a mão. Lídia desiste) Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Lídia coloca a rosa no regaço, observa melancolicamente o rio e deixa escapar uma lágrima que Ricardo Reis finge não ver.
Ana Maria S. Conceição e Diana Ferreira
Entrevista a Ricardo Reis O jornalista vai ao encontro de Ricardo Reis, que se encontra sentado num banco do Jardim da Estrela. Jornalista – Bom dia, caro Ricardo Reis! Será que me poderia conceder uma pequena entrevista? Ricardo Reis – Ao longe, os montes têm neve ao sol, Mas é suave já o frio calmo Que alisa e agudece Os dardos do sol alto. Jornalista – Desculpe, caro Ricardo Reis, aceita a minha entrevista? Reis, sugando o charuto e expelindo o fumo, chega-se para um canto Ricardo Reis – Claro, meu caro amigo. Sente-se. Jornalista – Ricardo Reis, como consegue sentir tanto prazer ao olhar para a natureza? Parece que se desliga do mundo e que se perde nos seus pensamentos. Conte-me sobre a sua luta diária para atingir a felicidade. Reis, sugando mais uma vez o charuto, sorri para o jornalista. Ricardo Reis – Ah, a felicidade! Carpe diem, meu amigo, carpe diem. Goza este dia como Se a vida fosse nele. Este é o meu lema. Temos que aproveitar o dia e os prazeres do momento, mas de forma tranquila e com moderação. Em relação à minha paixão pela natureza, eu considero-a como algo que me dá a tranquilidade de alma de que necessito e isso dá-me um prazer imenso…. As rosas amo dos jardins de Adónis, Essas volucres amo, Lídia, rosas Que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem.
Jornalista – Caro Reis, notei a sua perturbação quando citou o nome de Lídia. Conte-me mais sobre essa jovem. É amor? Ricardo Reis – Ah, a paixão, o amor, Lídia… Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Sabe, a paixão, tal como o amor, o ódio e a inveja dão “movimento demais aos olhos”, desassossegam-nos, percebe? Sei que é difícil de compreender, mas um simples toque poderia abalar a minha ataraxia. Jornalista – Não estará a ser demasiado disciplinado com os seus sentimentos? Ricardo Reis – Por vezes, desejo mais e mais! Mas não posso, não posso afeiçoar-me demasiado. A vida é tão efémera! Se me apegar a ela, o meu mundo pode acabar em mágoa. Jornalista – Caro Reis, já pensou em dar uma oportunidade ao afeto, às carícias, ao amor? Ricardo Reis – Luto todos os dias para viver o presente da forma mais tranquila possível. Confesso que tenho receio dessas emoções “bonitas”, tenho medo que me destruam por serem tão intensas. Claro que a curiosidade permanece, assim como o desejo, mas não quero nem posso pensar nisso, tenho de me autodisciplinar. Sustine et abstine! Jornalista –- Foge, então, das emoções? Ricardo Reis –-Talvez eu fuja, sim! A emoção cria desejo, vício, dor, paixão, sentimentos que perturbam a apatia. A nossa vida está determinada pelas leis do Destino, por isso, não podemos quebrálas. Jornalista –- Quer dizer que estamos sujeitos às leis do Destino e não podemos ter vontade própria?
Ricardo Reis – Claro! Como acima dos deuses o Destino É calmo e inexorável. Jornalista - Então, quer dizer que não podemos fazer nada para sermos senhores de nós próprios? Ricardo Reis – Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio. Quer melhor filosofia de vida? Jornalista – Continuo a achar que devemos gozar a vida de forma plena e não sermos tão passivos. Ricardo Reis – Mas tal como é, gozemos o momento, solenes na alegria levemente e aguardando a morte como quem a conhece que há noite antes e após o pouco que duramos. Jornalista – É o que se chama realmente “uma arte de viver”. Ricardo Reis – É verdade, não se esqueça de que Não consentem os deuses mais do que a vida. Jornalista - Ricardo Reis, o seu estilo tão rigoroso e a sua linguagem tão culta são fruto de uma educação clássica, não é assim? Ricardo Reis – Fui educado num colégio de jesuítas, sou médico e posso dizer que sou um latinista por educação alheia. O meu vocabulário é erudito e está repleto de arcaísmos. Utilizo muitas expressões latinas. As obras poéticas latinas fascinam-me, em particular a obra de Horácio. Jornalista – Para terminar, reparei que a sua incessante luta para atingir um ideal de felicidade e de tranquilidade, evitando a frustração e a dor, faz de si um epicurista triste. Quer partilhar o seu ponto de vista?
Ricardo Reis disfarça as lágrimas, deixando perceber toda a comoção que lhe sai dos versos: Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) Jornalista – Muito obrigado, Senhor Ricardo Reis, por me ter concedido esta entrevista. O senhor é realmente um grande poeta.
O jornalista apercebe-se da tristeza de Ricardo Reis e não ousa incomodá-lo com mais perguntas, deixando-o a contemplar a Natureza, como se mais nada existisse em seu redor. Érica Matias
dialogos possĂveis 2020