|im|permanĂŞncias MemĂłria, tempo e paisagem urbana em Santo Amaro
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Elaborada pelo sistema de geração automática de ficha catalográfica do Centro Universitário Senac São Paulo com dados fornecidos pelo autor(a). Ramos, Beatriz Prete Impermanências: Memória, tempo e paisagem urbana em Santo Amaro / Beatriz Prete Ramos - São Paulo (SP), 2020. 51 f.: il. color. Orientador(a): Prof. Ralf José Castanheira Flôres, Profa. Dra. Myrna de Arruda Nascimento, Profa. Eneida de Almeida Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Beatriz Prete Ramos) - Centro Universitário Senac, São Paulo, 2020. Memória urbana, Santo Amaro, Intervenção urbana, Intervenção efêmera, Patrimônio cultural. I. Flôres, Prof. Ralf José Castanheira (Orient.) II. Nascimento, Profa. Dra. Myrna de Arruda (Orient.) III. Almeida, Profa. Eneida de (Orient.) IV. Título
Beatriz Prete Ramos
(Im)permanências: Memória, tempo e paisagem urbana em Santo Amaro orientação: Prof. Ralf José Castanheira Flôres Trabalho Final de Graduação Arquitetura e Urbanismo | Centro Universitário Senac
São Paulo, nov 2020
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AGRADECIMENTOS ao meu marido que me apoiou em todos os momentos e decisões difícies, sendo sempre carinhoso e compreensivo; à minha filha que sempre soube os momentos que mais precisei de um abraço; à minha familia, que mais uma vez foi minha base e meu suporte durante todo processo; ao meu orientador, pelas discussoes valiosas, pelas sessões de terapia e pelos empurrões nos momentos necessários; às minhas amigas que me lembraram constantemente da minha força e não me deixaram desistir.
SUMÁRIO 10 A memória urbana e o patrimônio urbanos em Santo Amaro: da desindustrialização à ameaça de apagamento 41 Do Eixo à poligonal Histórica de Santo Amaro 52 Projetando (Im)permanências 71 Referências 81 Apêndice 102 Considerações finais 105 Referências Bibliográficas
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RESUMO
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O presente trabalho tem como foco principal a memória e o patrimônio urbanos na área central do bairro de Santo Amaro em São Paulo. Inicialmente é realizada pesquisa teórica quanto ao significado e relevância de tais termos, relacionando-os à realidade e efetividade da preservação do patrimônio no Brasil. Santo Amaro funciona, portanto, como o elemento condensador das dinâmicas e tensões presentes em diversas regiões da cidade de São Paulo. São criados mapas diagramas e colagens para ilustrar as tensões, conflitos e potenciais presentes no território de estudo. Finalmente, é compreendida a importância de uma proposta de intervenção no local, de forma a despertar a tomada de consciência e apropriação do espaço por parte dos habitantes, o que seria condição precedente para a realização de uma intervenção de requalificação eficiente. Assim, é sugerida a criação de estruturas metálicas temporárias implantadas de forma parasitária nos edifícios históricos. Tais estruturas têm caráter crítico e provocativo, buscam deslocar o espectador de seu lugar comum, causar reflexão, estranhamento e surpresa. Têm ainda, o papel de denunciar o descaso e a degradação do espaço público e dos edifícios históricos da região, além da substituição massiva destas áreas degradadas ou abandonadas por condomínios verticalizados, que representam a negação da cidade e dos espaços públicos; Palavras-chave: 1. Memória urbana 2. Santo Amaro 3. Intervenção urbana 4. Intervenção efêmera 5. Patrimônio cultural.
ABSTRACT The present work’s main point is the urban memory and heritage in the central area of Santo Amaro neighborhood in São Paulo. Firstly, a theoretical research is done concerning the meaning and relevance of those terms, relating them to the reality and effectiveness of the heritage preservation in Brazil. Santo Amaro is, therefore, a condensing element of the existent dynamics and tensions in many regions of the City of São Paulo. Maps and diagrams were created to illustrate the tensions, conflicts and potentials in the territory of study. Finally, the importance of an intervention proposal in the place is understood, in order to promote an awakening of consciousness and appropriation of the place by the inhabitants, which would be a previous condition to make an effective qualifying intervention. Thus, it is suggested the criation of temporary metallic structures implanted as parasites of historic buildings. Such structures have a critical and provocative condition, seeking to displace the viewers from their common place, causing reflection, strangeness and surprise. They also have the role of denouncing the neglect and degradation of public space and historic buildings in the region, in addition to the massive replacement of these degraded or abandoned areas by vertical condominiums, which represent the denial of the city and public spaces; Keywords: 1. Urban memory 2. Santo Amaro 3. Urban Intervention urbana 4. Ephemeral intervention 5. Cultural heritage
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INTRODUÇÃO
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A globalização e seus resultados têm provocado a homogeneização dos espaços, a criação de cidades genéricas, onde reinam os condomínios fechados e as grandes avenidas. São cidades sem memória. No caso do Brasil a situação é ainda mais complexa, pois durante muito tempo cultuamos aqui o novo, “o progresso”, e muito de nossa memória urbana se perdeu. São Paulo é a cidade símbolo do progresso, a cidade “que não pode parar”. Esta ideologia, gera uma violência no tratamento do tecido e das camadas de tempo da cidade. Para Abreu (1998), estamos em um recente e longo processo onde buscamos preservar o que nos restou do nosso passado. Podemos talvez atribuir os nossos “insucessos” a uma falta de consciência quanto a questão do patrimônio e memória urbanos? Podemos dizer que o descaso do poder público aos monumentos e edifícios históricos é um reflexo da ignorância dos cidadãos? Episódios como o incêndio do Museu da Língua Portuguesa 2015 ou do Mercado Municipal de Santo Amaro em 2017 nos levam a pensar: como estamos cuidando da nossa me-
mória? Por que estamos permitindo que nossa identidade, nosso pertencimento social seja apagado? O tempo não parece ser um aliado da conscientização. Em abril de 2020, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, acusa Iphan pelo embargamento da obra de uma loja do empresário Luciano Hang, no Rio Grande do Sul e demite a diretora do órgão, Kátia Bogéa. De acordo com a nota de esclarecimento publicada 07 de agosto de 2019, no site do Iphan, ao assinar o Termo de Compromisso do Empreendedor a empresa Havan “assumiu a responsabilidade de autolicenciar-se junto ao Iphan, o que significa suspender, por livre iniciativa, as atividades caso fossem identificados sítios arqueológicos”. Entretanto, para o empresário e para o presidente, não se pode deter o progresso em nome de “um cocô petrificado de índio”, afirmação do presidente durante uma reunião, divulgada pelo Jornal Estado de Minas em 25 de maio de 2020. No momento presente em que este trabalho é realizado, temos uma grande ruptura com o passado. As diversas questões políticas e a pandemia do Covid-19, nos trouxeram grandes incertezas. Diversos estudiosos afirmam que
em tempos de transição há uma necessidade de se reencontrar, de reforçar a identidade, e consequentemente, um apego ao passado. Será que memória ganhará força ou mais uma vez os impulsos do “progresso” falarão mais alto? Este trabalho busca, portanto, enfatizar a valorização do cotidiano e da atribuição de significado aos locais do bairro de Santo Amaro como forma de resgatar seus lugares de memória, sua identidade e o pertencimento de seus habitantes. A requalificação e preservação do remanescente histórico do bairro é compreendida aqui como um produto da tomada de consciência e da apropriação pelos habitantes, e apenas torna-se efetiva e possível, quando as primeiras são alcançadas. No capítulo I, fazemos um compilado sobre a importância e os diversos significados da memória e do patrimônio urbanos para a humanidade ao longo do tempo, até a formação do que se tornou convenção nos dias atuais. Falamos sobre o caso específico do nosso país, que infelizmente, ainda encontra-se longe de ser capaz de preservar e compreender tal importância. Analisamos, ainda, a região de Santo Amaro, compreendendo que
ela funciona como um “corpo de prova”, um reflexo das dinâmicas de violência contra o tecido e as camadas de tempo da cidade, e é exemplo para a compreensão dos campos de força e tensões presentes em outras localidades. Realizamos, portanto, uma contextualização da área de intervenção, trazendo a tona suas dinâmicas de formação, sua importância para a cidade e as suas características, tais reflexões estão condensadas na criação de mapas, diagramas, e recortes de reportagens. Tais mapas e diagramas são produzidos com base na teoria de leitura visual de Kevin Lynch e nas observações por parte da autora considerando sua vivência no local e as reflexões geradas ao longo do curso de arquitetura. No capítulo II, discutimos nossa proposta de intervenção para o território, sugerindo meios de criar unidade na região histórica e buscando mostrar os conceitos que embasam a nossa escolha pela realização de uma intervenção efêmera visto a necessidade clara de haverem intervenções permanentes no local. No capítulo III descrevemos estas estruturas metálicas temporárias implantadas de forma parasitária nos edifícios
históricos. São apresentadas as imagens, detalhes técnicos e descrição da intervenção em cada um dos locais escolhidos esclarecendo a fundamentação crítica das escolhas em cada projeto. Dedicamos o capítulo IV às referências, trazendo fichas-síntese e a justificativa da importância de cada uma delas para o desenvolvimento do projeto. Por fim, temos um apêndice que reúne algumas fichas ou postais dos lugares de memória identificados por nós em Santo Amaro, estes foram parte importante no processo de análise do território.
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I A Memória e o Patrimônio Urbano em Santo Amaro: da desindustrialização a ameaça de apagamento
Patrimônio Cultural é o que se pode chamar de uma construção social, no qual um pretérito passa a ser aquele que o grupo irá destacar como representativo de sua memória. (DIAS e SOUSA, 2017, p. 145)
Introduzimos este trabalho a partir da afirmação de Dias e Souza, para refletir sobre uma questão importante que surge quando se estuda sobre patrimônio cultural, mais cedo ou mais tarde, iremos nos perguntar: Afinal, quem define o que é digno de ser lembrado? Abreu (1998) nos faz refletir mais a fundo, sustentado que não basta apenas resgatar o passado, mas sim registrar as memórias presentes, que ainda são vivas no cotidiano da cidade. Observação que nos leva a perceber que o patrimônio e a memória de um lugar ou grupo, ao contrário do que se pode pensar, não tem ligação apenas com o pretérito, mas sim com o presente e também com o futuro. Daí quem sabe, a razão do assunto ser complexo e delicado. Decidir o que é patrimônio de uma cidade ou povo é
selecionar um passado para projetar um futuro. Para compreender como isso se dá ao longo dos séculos faremos aqui uma rápida retrospectiva, tendo por base as palavras de Jacques Le Goff. De acordo com Le Goff (1924) a memória sempre teve papel fundamental na história do passado e do futuro das sociedades. O processo de seleção da memória coletiva se dá ao repensar o passado a partir de necessidades do presente. Conferindo, portanto, à memória um caráter mutante. Escolher o que será lembrado ou esquecido sempre foi preocupação dos reis, líderes e classes dominantes. Ao longo da história podemos identificar movimentos de “amnésia” forçada e exaltação de acontecimentos específicos, de acordo com o que se idealizava para cada época. Afinal, o que estamos compreendendo por memória e qual sua importância? A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memó-
ria coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. (Le Goff,1924, pp 476)
No mundo antigo a memória tinha o propósito de servir aos mitos de origem, nas civilizações sem escrita, mantinham a coesão e unidade das famílias, levava a tradição. Com o advento da escrita, o documento passa a ter o papel de armazenamento da memória. Esta também é manifestada a partir da celebração, como por exemplo, “através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável”. (LE GOFF,1924, p.431) Com o surgimento da imprensa, as sociedades passam a ter contado com uma memória coletiva enorme, a qual não é mais capaz de fixar integralmente, cujas quais, também são responsáveis pela construção de sua própria memória. O iluminismo e a revolução industrial trazem a ciência e o “progresso”, gerando um momento, onde as sociedades ficam mais condicionadas a olhar para o futuro e cultuar o novo. A instalação das indústrias e as intensas migrações para as áreas urbanas acarretam insalubridade nas cidades, que se tornam incapazes de comportar os usos e a quantidade de
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[fig. 1]
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A cidade de Londres em condições insalubres durante a Revolução Industrial. fonte: DEMANTOVA, Graziella. Sustentabilidade e o futuro das cidades. A arquitetura como indutora de transformações sociais e ambientais. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 150.05, Vitruvius, nov. 2012.
moradores da mesma forma. Iniciam-se as grandes reformas urbanas radicais, como a famosa reforma realizada por Haussmann em Paris, muito criticada por sua monotonia, falta de estética, destruição do tecido antigo e mutilação de monumentos públicos da cidade, como nos aponta Choay (1925). Entretanto, apesar de tais questões, já era reconhecida na época, a necessidade de uma reforma (talvez não da forma como foi feita) para garantir a salubridade da vida nas cidades. [fig 1] Este processo de transformação do espaço resultou em uma mudança no olhar que se tinha sobre o espaço da cidade, que “por contraste, se torna objeto de investigação.” (CHOAY, 1925, p. 193) Investigação esta que seria fundamental para o surgimento do conceito de patrimônio urbano, que buscamos elucidar com base no texto de Choay. A autora nos apresenta três figuras da cidade antiga: A figura memorial, iluminada por John Ruskin, a figura histórica entendida pelas visões de Camilo Sitte e Viollet-le-Duc e a figura historial traduzida nas ideias de Gustavo Giovannoni. Ruskin é o primeiro a levantar a bandeira da preservação, em 1849 es-
creve o livro As sete lâmpadas da arquitetura, onde cada lâmpada representa uma demanda que a boa arquitetura deveria atender. Uma das 7 lâmpadas é a memória, para ele os edifícios deveriam respeitar a cultura a partir da qual se desenvolveram. Apesar do seu caráter muito conservador e intolerante quanto às intervenções nas cidades pré-industriais, Ruskin é responsável por trazer questões fundamentais para a compreensão atual de patrimônio urbano, segundo Choay: Ruskin faz uma descoberta que a nossa época não acabou ainda de redescobrir. Ao longo dos séculos e das civilizações, sem que aqueles que a edificavam ou a habitavam tivessem essa intenção ou disso estivessem conscientes, a cidade representou o papel memorial de monumento. (CHOAY, 1925, p.194) Para compreender a segunda figura da cidade precisamos falar sobre Viollet-le-Duc. Estudioso responsável por iniciar o pensamento do conceito moderno de restauração e iniciar um trabalho metodológico para a intervenção em monumentos históricos. Apesar do reconhecimento atual de sua importância, suas teorias e projetos sempre foram muito questionados devido a forma dogmática
e abusiva com que atuou. Viollet-le-Duc foi um idealista, concebendo um sistema teórico que procurava intervir em edifícios não apenas reconstituindo-os, mas restabelecer e reformular o projeto em sincronia com a época da intervenção, criando muitas vezes uma obra completamente diferente da original. No caso de Sitte ao publicar seu livro Der Stadtebau em 1889, traduzido como Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos, o reconhecimento da cidade e da sociedade industrial é legítimo e convida a reflexão. Há uma compreensão da falta de estética na constituição da cidade a eles contemporânea, uma falta de beleza que as configurações espaciais antigas irradiam. Em busca de uma solução racional, analisam os sistemas arquitetônicos do passado, a procura de princípios imutáveis, que permaneceriam verdadeiros mesmo com o passar dos séculos. Como escreve Choay (1925) Sitte vê o papel das cidades do passado como algo terminado, mas sua beleza plástica permanece. De acordo com a autora, em dado momento, as cidades antigas são afastadas de sua característica útil para abrigar a vida cotidiana e foram compreendidas
como obras de arte em um museu, colocadas sob uma redoma de proteção, para que fossem preservadas à custo de sua inutilização ou mesmo transformadas em “museu” de visitação controlada. O grupo de arquitetos modernistas se posiciona. Em 1925, Le Corbusier desenha o Plano Voisin, uma proposta de reforma urbana para Paris, que isola e descontextualiza os monumentos em relação ao seu entorno, o novo tecido proposto. fig [2] A terceira figura da cidade antiga é a “síntese e superação das duas precedentes” (CHOAY, 1925, p. 207). Sob a figura de Giovannoni, esta visão traz ao mesmo tempo, valores museológicos e de utilização para a cidade antiga, que agora deve possuir integração com o entorno do território em que se insere. Giovannoni entende que as cidades estão em movimento e transformação constante e fundamenta seus pensamentos no comportamento dual e cíclico dos seres humanos: a necessidade de mover-se, transformar-se e de repousar, habitar e encontrar-se. Giovannoni descobre uma forma de coexistência para a “[...] preservação dos conjuntos urbanos antigos [inseridos] na dinâmica do de-
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[fig. 2]
Detalhe do Plan Voisin de Le Corbusier (1925). Evidencia-se o contraste e a ruptura entre a cidade histórica e a projetada, notamos a mudança no tratamento do espaço urbano, agora contínuo e indiferenciado. fonte: CARDOSO, de Oliveira Tiago. A forma e a figura no espaço urbano moderno. 2014
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senvolvimento” (CHOAY, 1925, p. 213) e encontra nestes a possibilidade de atendimento de uma necessidade: a criação de unidades de vida cotidiana. Trazendo vida e uso novamente ao patrimônio, sempre respeitando suas limitações e possibilidades de uso. A cidade histórica é monumento, mas, ao mesmo tempo, é um tecido vivo. É inegável a importância das contribuições de Ruskin, Sitte, Viollet-le-Duc e Giovannoni para criação do conceito de patrimônio urbano que temos atualmente. Até o século XIX, as transformações urbanas e modos de produção do espaço não eram considerados relevantes para estudo, o espaço das cidades era apenas descrito através de seus monumentos, como escreve Choay (1925). A questão trazida por Choay é reforçada pelas palavras de Abreu: [...] o trabalho de recuperação daquilo que ainda é possível resgatar tem privilegiado apenas o processo social ocorrido nos lugares e não os próprios lugares. ( ABREU,1998 p.94)
O autor traz uma visão em que o lugar e as suas particularidades são fun-
damentais no resgate do passado e na preservação das memórias urbanas. Compreende ainda, a importância do cotidiano e da produção de memória do “dia a dia”, questões presentes também no pensamento de Giovannoni, e de alguns outros autores que faremos referência no presente trabalho. Ainda quanto as conquistas relacionadas a preservação do patrimônio urbano, temos em 1972 a criação da Conferência geral da Unesco, que instituía diversas obrigações relativas à identificação, proteção, conservação e possibilidade de transmissão do patrimônio cultural às próximas gerações. A partir de 1975, a integração dos conjuntos históricos na vida coletiva é colocada de forma internacional, Choay afirma que: [...] a conservação viva dos conjuntos antigos é apresentada como um meio de lutar não apenas pela proteção de particularismos étnicos e locais, mas também contra o processo planetário de banalização e de normalização das sociedades e do seu ambiente. (CHOAY, 1925, p.238)
A autora nos alerta, entretanto, que apesar da criação de legislações pro-
tetoras, a destruição de conjuntos e edifícios ao redor do mundo continua, sob outras vestes: a da modernização, a do restauro, e muitas vezes, das pressões políticas. Para que possamos compreender a atualidade destas questões, em 1984, o professor, arquiteto e urbanista, Carlos Nelson Ferreira dos Santos escreve o artigo “Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo” trazendo reflexões sobre as práticas em relação ao patrimônio no Brasil. Separamos um trecho para introduzir esta realidade, infelizmente, ainda tão atual: Espaços centenários ou bicentenários são substituídos sem parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem todo tipo de uso. Os novos são inferiores, mesmo no caso excepcional de serem bem desenhados. A razão é simples: excluem a mistura, especializam, isolam e tornam as variações difíceis. Há situações mais graves, quando, onde antes havia quarteirões e bairros carregados de vitalidade, são criados apenas vazios e estacionamentos.(SANTOS, 1984, p.61)
Como se pode perceber na coloca-
ção de Santos, falar de memória coletiva no Brasil é assunto complexo, isso pois o movimento de resgate do nosso passado é relativamente recente. Tivemos um longo período de valorização do novo e do estrangeiro, o processo de busca de uma preservação e revalorização do que nos restou do passado foi deixado de lado. Este momento tem a ver com o surgimento, no início do século XX, dos ideais modernizadores no país. O modelo republicano, baseado em ideais positivistas, envergonhado de seu passado, propõe construir o novo e destruir o antigo em nome da ordem e progresso. De acordo com Abreu (1998), a fé no “país do futuro” tornou-se avassaladora. Inúmeras reformas urbanísticas radicais são realizadas nas cidades brasileiras. Estas, palco do cotidiano e da memória cultural, têm suas faces completamente transformadas. Tais reformas modernizadoras são acolhidas pela elite, que compreende os antigos usos e valores sinônimo de subdesenvolvimento e conservadorismo. Podemos levantar ainda o papel do poder público na manutenção dos interesses da classe dominante e no incentivo da necessidade de novos símbolos e
paisagens para a cidade, revelados nos slogans “São Paulo não pode parar”, “cinquenta anos em cinco”, “pra frente Brasil”. (ABREU, 1998, p.81) Abreu nos atenta, ainda, ao fato de apesar de nossas cidades terem uma fundação muito antiga, como é o caso do Rio de Janeiro fundado em 1565, a preservação do “Corredor Cultural”, por exemplo, conta com edificações construídas no séculos XIX e XX. Confirmando o processo de modernização radical que citamos, onde houve uma substituição completa de edificações mais antigas para dar lugar às que hoje lá estão preservadas. As práticas de modernização e as intervenções sanitaristas de estética desagradável se manifestam no Brasil com força intensa, bem como o movimento rodoviarista, favorecendo a acessibilidade para o automóvel em primeiro lugar. Estas posturas adotadas a partir de modelo importado, custaram muito ao tecido e memória da cidade. Para compreender este movimento, trazemos as palavras de Flavio Villaça (1999) sobre a caracterização das políticas públicas e planos de intervenção nas cidades brasileiras. Vilaça divide-os em 3 períodos: o
[fig. 3 e 4]
Esquema teórico de Paris X Esquema teórico de São Paulo. Fonte: ANELLI, Renato. Redes de mobilidade e urbanismo em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 082.00, Vitruvius, mar. 2007.
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[fig. 5]
Diagrama do plano de avenidas de Prestes Maia para a cidade de São Paulo com destaque para a ligação centro-sul. Fonte: ANELLI, Renato. Redes de mobilidade e urbanismo em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 082.00, Vitruvius, mar. 2007. Alterações da autora.
primeiro se dá de 1875 a 1930 “marcado pelos planos de melhoramento e embelezamento (...) que destruiu a forma urbana medieval (e colonial, no caso do Brasil)”, o segundo, de 1930 a 1990 onde o foco é a solução para os “problemas urbanos”, o chamado “urbanismo sanitarista”, e o último que inicia-se em 1990, onde buscamos reagir às transformações trazidas pelo 2 período. Este, de acordo com o autor, está apenas no começo de um longo processo. (VILLAÇA, 1999, p.182) Em São Paulo não foi diferente, as reformas de embelezamento e o Plano de Avenidas, proposto por Prestes Maia e Ulhoa Cintra, eram baseados em modelos franceses de urbanismo [fig. 3 e 4] e aplicados sem considerar a realidade de São Paulo, as especificidades de sua escala, distâncias e topografia. A concretização do plano se dá na criação de avenidas de grande porte responsáveis por ligar áreas distantes da cidade e alterar os padrões de ocupação. Tais Avenidas transformaram-se em grandes rupturas urbanas, sua relação com o pedestre e com o tecido dos bairros que cortam é quase nula. Daremos destaque aqui a ligação centro-sul, estabelecida pela Av. Nove de Julho e Av. 23 de Maio que de-
pois bifurcariam nas Av. Santo Amaro/ João Dias e Av. Vereador José Diniz/Adolfo Pinheiro [fig. 5]. Estas, trazem em seu “DNA” as características descritas anteriormente para a região de Santo Amaro, nosso objeto de estudo, o qual trataremos agora com mais detalhes. A reflexão aqui apresentada coloca em pauta as memórias coletivas a partir do patrimônio urbano da região de Santo Amaro, hoje, bairro de São Paulo. Apesar de suas particularidades, o bairro revela em seu tecido e na sua história, as dinâmicas geradoras da metrópole paulista. Ou seja, a forma com que o espaço urbano é produzido em Santo Amaro, retificando e canalizando rios e córregos, demolindo conjuntos importantes para a memória urbana do bairro e da cidade, reproduzindo a segregação socio-espacial e acentuando a periferização das classes populares, é um reflexo da forma com que o espaço urbano é produzido em São Paulo. Ao falar sobre a valorização do passado de Santo Amaro, e da cidade de São Paulo, é preciso lidar com a violência a qual seu tecido e suas camadas de tempo foram (e ainda são) submetidos. Portanto, buscamos com este trabalho
resgatar os lugares de memória, criando ou recriando ligações físicas e simbólicas no território, de forma a reafirmar a identidade e a memória da região. Para tanto, é importante inserir Santo Amaro na dinâmica da cidade e compreender seu processo de desenvolvimento. Santo Amaro passa de vila independente a bairro da cidade de São Paulo em 1935. O vínculo entre às duas regiões já era antigo, devido ao fornecimento de insumos agrícolas, mas é acentuado com a construção da Represa de Guarapiranga (na época chamada Represa de Santo Amaro), do aeroporto de Congonhas (1934) [fig 6] e da atual Avenida Santo Amaro, já asfaltada em 1933.
A retificação dos rios Tietê e Pinheiros foi realizada pela empresa São Paulo Tramway Light and Power Co, mais conhecida como Light, e teve como propósito a construção das represas Billings e Guarapiranga em 1908 [fig 7 e 8]. As represas possibilitariam a produção de energia elétrica na Usina Hidrelétrica de Parnaíba. Nos anos 30, Represa do Guarapiranga torna-se reservatório para o abastecimento da cidade e passa a abrigar chácaras, clubes e sítios utilizados para o turismo da população de alta renda. A região atraiu, ainda, imigrantes europeus, principalmente alemães. A construção da represa foi um processo fundamental na história e ocu-
[fig. 6]
[fig. 7]
[fig. 8]
Fotografia aérea do aeroporto de Congonhas em 1936. fonte: SECRETARIA Municipal de Urbanismo e Licenciamento. Censo de 1940. Fotografia aérea que mostra os meandros do Rio Pinheiros antes da retificação. fonte: Instituto de Engenharia. Disponível em <https://www.institutodeengenharia.org. br/site/2019/11/08/agora-vai-governo-doria-promete-despoluir-rio-pinheiros-ate-2022-para-especialistas-ha-risco-de-enxugar-gelo-iejn/> Fotografia aérea durante a construção da represa de Guarapiranga, 1907. fonte: Acervo da Fundação Energia e saneamento.
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[fig. 9, 10 e 11]
Mapas de Expansão da Área Urbanizada da Região Metropolitana de São Paulo - anos de 1930 a 1974. fonte: Emplasa 2002/2003.
[fig. 12]
vista aérea da área central de Santo Amaro na década de 70. fonte: Jornal do Brooklin, 6 a 12 de jan. 1973.
[fig. 13]
manchete da década de 60 sobre o “progresso” em Santo Amaro. fonte: Jornal A Tribuna, São Paulo, ano 28, n. 1396, 13 de jun. de 1963.
pação de Santo Amaro, isto porque nesta retificação geraram-se imensas áreas de terra, que possibilitaram a implantação industrial na década de 40. Época na qual Santo Amaro se expande expressivamente, sofrendo uma grande mudança em sua função: As chácaras e grandes glebas rurais transformam-se em importante centro industrial para a cidade de São Paulo. Como podemos observar nos Mapas de Expansão da Área Urbanizada [fig 9, 10 e 11] Santo Amaro inicia seu processo de urbanização entre 1930 e 1950, processo que podemos afirmar ser um provável reflexo de sua anexação à São Paulo, entretanto, é entre 1950 e 1962 que esse processo tem seu ritmo acelerado. Tal fato é compreendido ao observarmos este momento histórico de um panorama mais geral, onde tínhamos a intensificação da industrialização, fomentada pelo Plano de Metas de JK e seu slogan “50 anos em 5”, responsável por reafirmar a “necessidade” de desenvolvimento acelerado na futura metrópole, São Paulo recebe, nesta época, um número expressivo de imigrantes, grande parte da região nordeste do país. A urgência e orgulho do progresso
presentes no imaginário da época podem ser observados nas manchetes dos jornais [fig 12 e 13] A conformação da região de Santo Amaro como parque industrial, resulta na formação de inúmeras vilas operárias em sua periferia as primeiras foram os bairros hoje conhecidos como Jd. São Luís e Vila das Belezas. Posteriormente, nos anos 70, com o aumento da população há um crescimento expressivo na periferia, o número de habitações irregulares e precárias aumenta e inicia-se a ocupação das áreas de mananciais, como podemos observar no Mapa de Expansão da Área Urbanizada (1963-1974) [fig.11] . Para compreender este processo devemos olhar mais uma vez para a situação da cidade de São Paulo. De acordo com o que escreve Bonduki em seu livro Origens da habitação social no Brasil (1994), o processo é resultado de vários fatores combinados. De acordo com o autor, a população de São Paulo multiplicou-se por seis em 14 anos, e há, portanto, um aumento da demanda por habitação, que inicialmente é absorvida pelos cortiços e construção de casas de aluguel. Segundo Bonduki, os cortiços eram o inimigo número 1 da saúde públi-
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[fig. 14]
Fachada da antiga fábrica de plásticos York, atualmente abandonada. fonte: Acervo da autora.
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ca e com a lei do inquilinato determinando o congelamento dos alugueis, a construção de imóveis para locação tornou-se uma atividade pouco rentável. Finalmente, as políticas públicas de habitação eram insuficientes, deixando às poucas vilas operárias a imensa tarefa de fornecer moradia de qualidade às famílias. Tais fatores somados, são condicionantes do
surgimento dos lotes de habitação autoconstruída na periferia. Esta foi a conformação dos bairros hoje conhecidos como Jd. Ângela, Capão Redondo, Cidade Ademar, entre outros, resultados de um processo de “urbanização com baixos salários”, expressão aqui emprestada do urbanista João Sette Whitaker para descrever este processo. Ao olhar para a história de Santo Amaro podemos afirmar, portanto, o quanto esta está relacionada a história e a identidade dos imigrantes nordestinos, dos operários e da população socialmente vulnerável. A industrialização foi seguida pela rápida desconcentração industrial. O surgimento da necessidade de uma reestruturação produtiva com a crise do modelo fordista e o crescimento expressivo do setor terciário, resultam em uma valorização significativa das áreas onde se concentram edifícios de escritórios. O eixo Paulista-Faria Lima-Berrini ganha importância e é consolidando o vetor de investimentos na região sudoeste da cidade. O passado se torna cada vez mais próximo do presente e a cidade industrial passa a ser tão digna de conservação
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[fig. 15]
reportagem “os traços do progresso” trazendo imagens da transformação do centro de Santo Amaro. fonte: Jornal A Tribuna, São Paulo, ano 40, n. 1993, 3 de jan. 1976.
[fig. 16]
recorte de Jornal sobre os ambulantes em Santo Amaro, considerados “invasores”. fonte: Jornal de Santo Amaro, nº 270 Agosto de 1989.
[fig. 17]
Ambulantes em Santo Amaro. fonte: Acervo da autora.
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quando as cidades antigas. Após o grande surto de industrialização, com as mudanças estruturais na economia e inovações tecnológicas, os grandes armazéns, fábricas, entrepostos, etc, são deixadas para trás, criando grandes conchas vazias. [fig.14] A saída das indústrias da região de Santo Amaro provoca uma intensa crise econômica. A mão de obra industrial, agora desempregada, era desqualificada para o mercado de trabalho, e a alternativa viável para essa população foi o comércio informal [fig 10]. O Largo 13 passou a concentrar este novo uso e a paisagem sofreu grandes alterações. Antigos galpões receberam novos usos, shopping, igrejas, universidades, armazéns, casas de espetáculo e condomínios. Entre os anos 80 e 90, todo “glamour” e “progresso” do bairro relatado pelas manchetes de jornais nas décadas anteriores [fig. 12 e 13], dá lugar a diversas queixas que tratam desde problemas de higiene, como acumulo de lixo em floreiras e vasos, passando pelo tema da insegurança, até a questão do local estar sendo “mal frequentado” por “desocupados” e ambulantes [fig. 15 e 16]. A cidade, se mostra aqui como o
extremo da ambição e da degradação, e o planejamento urbano utópico mais uma vez trata de intervir para “resolver” os problemas (CERTEAU, 1980). De acordo com a matéria de 5 setembro de 1990 da revista Veja São Paulo, Santo Amaro, já com 2 milhões de moradores, seria contemplado com um plano de mudanças em sua paisagem urbana. A ARSA (Administração Municipal de Santo Amaro) em parceria com a EMURB foram responsáveis pela transformação. De acordo com a revista, o Largo 13 deixaria de ser “um mar de marreteiros” e seria adaptado com a criação de escadas e arquibancadas para abrigar shows. A Praça Salim Farah Maluf se tornaria uma praça para crianças, e a Rua Capitão Tiago Luz se transformaria em calçadão com painéis artísticos. A reforma teve como propósito atender às solicitações dos comerciantes e favorecer o deslocamento e conforto do pedestre e, principalmente, teve a missão de retirar os comerciantes informais do local, deixando de lado a implantação de muito do que foi proposto no documento oficial. [fig 17]. Em 97, a prefeitura realizou o concurso de ideias chamado São Paulo Eu
Te Amo, o objetivo era selecionar ideias que fornecessem diretrizes de desenho urbano ao Poder Público. Diversos locais da cidade foram objetos de proposição, e entre eles, Santo Amaro. O compromisso com desenvolvimento futuro das ideias, entretanto, pareceu não ser interesse da administração pública. As intervenções e reformas seguintes deixaram os espaços de convívio e o conforto do pedestre de lado para dar prioridade ao transporte público, com a construção do metrô da Linha 5 Lilás, e realização de pavimentação e alargamento de vias para favorecer a passagem de ônibus e automóveis.
Apesar de ter sido anunciada em 1990, a construção do primeiro trecho da Linha 5 Lilás do metrô, foi entregue em 2002, e conclusão das obras só ocorreu em 2018. Durante as escavações, a história de Santo Amaro se revela: foram encontrados dois mil itens domésticos dos séculos XVIII e XIX. O local de escavação foi categorizado como sítio arqueológico. Além de tais itens, as escavações também revelaram os trilhos do bonde que ligavam o bairro à região central. Em 2013 são realizadas obras para alargamento de vias e corredores de ônibus na região. O Binário Santo Amaro, alargou as avenidas Mario Lopes Leão,
[fig. 11]
planta da proposta de reforma para o Largo 13. fonte: Recorte do Jornal Gazeta de Santo Amaro, 10 de mar. de 1990.
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[fig. 18, 19 e 20]
Sobreposição de imagens atuais e antigas de Santo Amaro nos revelam as antigas linhas de bonde no largo 13 onde hoje é a Av. Adolfo Pinheiro, a presença das fachadas ecléticas (hoje descaracterizadas), acompanhadas por vegetação, e a quantidade de edifícios verticais que foram (e estão sendo) construídos na região. fonte: Produção da autora
entre a Rua Doutor Antônio Bento e a Praça Salim Farah Maluf e a Rua Barão do Rio Branco, entre a Avenida Mario Lopes Leão e Rua da Matriz. Os pontos de ônibus foram trocados e nova iluminação instalada. Tais decisões quanto ao investimento dos recursos públicos no espaço urbano de Santo Amaro resultam na criação ou reafirmação de algumas dinâmicas que comentaremos a seguir. Podemos citar como resultado do investimento massivo em transporte público, a reafirmação de uma centralidade periférica associada à região e, ainda, a criação de um nó de passagem, responsável por fazer ligação entre a zona sul e a área do centro de São Paulo. Consequentemente temos uma imensa popu-
lação flutuante em Santo Amaro durante o dia, que, alem do acesso à outras áreas da cidade, buscam a região para resolver assuntos pessoais e fazer compras. Entretanto, o mesmo não ocorre a noite. A falta de manutenção do espaço urbano de Santo Amaro incita mais degradação e insegurança. A maior parte dos espaços coletivos da região está gradeada, não favorecendo o uso e a apropriação por parte da população. Além disso, os investimentos públicos em obras de infraestrutura viária, construção do metrô Linha 5, os grandes galpões remanescentes industriais e a instituição de instrumentos urbanísticos na região, como veremos a seguir, são fatores geradores de interesse por parte do mercado imobiliário.
Aqui precisaremos olhar a questão com mais atenção. Temos uma junção de situações que favorecem o processo de apagamento da memória do bairro de Santo Amaro. O descaso com o espaço público, com a preservação de elementos e símbolos históricos, e principalmente, de sua inserção no cotidiano da população, somado aos grandes vazios deixados pelas industrias, torna-se uma oportunidade perfeita para o concretização do interesse imobiliário na região: a construção de condomínios verticalizados. Estes, contribuem para acentuar ainda mais a deficiência de espaços públicos de qualidade, a falta de segurança do pedestre nas ruas, e a preservação e inserção dos elementos (materiais e imateriais) da memória de Santo Amaro. A complexidade dos problemas existentes na região e sua importância para a cidade, revelam a presença de seu passado como município independente e abrem um leque extenso de possibilidades e necessidades de intervenção e remodelação do espaço. Para isso, compreendemos, primeiramente, essencial a realização de um levantamento e caracterização da região. O distrito de Santo Amaro está
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[fig. 21]
Santo Amaro e a área de inserção com destaque para as dinâmicas urbanas que geram as tensões identificadas por esse trabalho conforme a legenda. Fonte: produção da autora.
[fig. 22]
Croqui de estudo Santo Amaro como nó de passagem. fonte: produção da autora.
compreendido na zona sul da cidade, próximo a Marginal Pinheiros. Delimitado por importantes vias: Av. Professor Vicente Rao, Av. das Nações Unidas e Av. Washington Luís, e cortado pela Av. Adolfo Pinheiro, Av. Santo Amaro, Av. Vereador José Diniz e Av. Chucri Zaidan. [fig.21] Seu tecido é composto predominantemente por áreas residenciais, comerciais e remanescentes industriais. Está em parte inserido na Macroárea de Estruturação Metropolitana da cidade que, segundo o site da Gestão Urbana de São Paulo é: [...] um território estratégico de transformação, onde podem incidir instrumentos específicos que tenham condições de promover essas transformações, como, por exemplo, os Projetos de Intervenção Urbana (PIU) e as operações urbanas consorciadas. (GESTÃO URBANA SP)
Estas diretrizes são representadas na porção sul da cidade pelos Eixos de Transformação: Operação Urbana Água Espraiada (OUCAE) e no PIU Arco Jurubatuba. Sem a pretensão de analisar pro-
fundamente tais eixos, podemos levantar os reflexos que suas intervenções tiveram (e possivelmente terão) nas proximidades do nosso recorte de estudo. Compreendemos importante salientar ainda que os instrumentos urbanísticos em si foram pensados para serem benéficos à região a que sejam implantados, entretanto, na prática o que observamos é bem diferente, pois o sucesso ou fracasso de tais operações de transformação acaba sofrendo influência direta dos interesses do mercado imobiliário. A Operação Urbana Água Espraiada foi aprovada em 2001 e está dividida em 5 setores. O setor Chucri Zaidan localizado em Santo Amaro tem como objetivo um prolongamento do eixo Faria Lima - Berrini buscando transformação e valorização da região. A operação foi responsável por diversos investimentos em infraestrutura viária e desapropriações de moradores locais, como aponta a matéria do dia
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[fig. 23 e 24]
Resquícios das áreas de molidas para possibilitar a construção da Rua Laguna e alargamento da Av. João Dias realizados na Operação Urbana Água Espraiada. fonte: acervo da autora.
[fig. 25]
Rua Laguna próximo à Av. João Dias, ao fundo os edifícios residenciais verticais e uma grua, simbolizando as obras na região. fonte: acervo da autora.
[fig. 26, 27, 28 e 29]
Alguns dos edifícios residenciais verticais em construção atualmente na região. fonte: acervo da autora.
[fig. 30]
infográfico região de Santo Amaro X PIU Arco Jurubatuba. fonte: Jornal o Estado de São Paulo, 24 de jun. de 2017.
24 de ago. de 2018 do Jornal Gazeta de Pinheiros. Além da criação de inúmeras áreas residuais na avenida João Dias e proximidades, que foram chamados de praças, mesmo sem qualquer incentivo ao uso como podemos observar nas imagens [fig 23, 24 e 25]. Sobre o PIU Arco Jurubatuba, aprovado em 2018, destacamos trecho da reportagem do Jornal do Estado de São Paulo do dia 24 de junho de 2017 publicada no site da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos): A secretária municipal de Urbanismo, Heloísa Proença, explicou que o Arco Jurubatuba foi dividido em seis setores conforme as especificidades de cada região e com objetivos diferentes. Já na região classificada como Polo de Negócios e Turismo, perto da Ponte João Dias, o intuito é promover o adensamento urbano com grandes prédios residenciais e comerciais. (ANTP, 2017, grifo da autora)
Ao analisar a legenda do diagrama presente na reportagem [fig.30], nota-se a intenção de construção de condomínios verticais em diversas áreas, não
apenas próximo a ponte João Dias, mas também nos grandes lotes das áreas industriais, o que nos revela um interesse considerável na região por parte do mercado imobiliário, ilustrado nas fotografias realizadas da região [fig 26, 27, 28 e 29]. Em seu artigo Instrumento urbanístico operação urbana (2012), o Prof. Dr. Eduardo A. C. Nobre realiza uma análise de tais operações em São Paulo ao longo do tempo. Em suas considerações finais ele aponta que as operações urbanas funcionam aonde já existe interesse do mercado, o que reforça a concentração dos investimentos em regiões em que eles já são concentrados. Afirma ainda: A falta de um programa de atendimento social faz com que ela [a operação urbana] funcione como um instrumento que aumenta a exclusão social na medida em que haja a expulsão da população residente [...] (NOBRE, 2012, p. 07)
Fato que podemos notar ao voltarmos o olhar para a imagem apresentada anteriormente [fig. 25], onde os lotes das antigas casas dão lugar aos condomínios residenciais, comerciais e sho-
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ppings centers, expulsando a população antiga da região, que já não se encaixa no padrão de renda para quem foi desenhada a “cidade nova”. Além disso, Nobre aponta que tais operações acabam tendo um resultado apenas imobiliário, lhes falta um projeto urbanístico que norteie tais operações em busca de melhorias no espaço público. O assunto é reforçado por outras estudiosas do assunto como Mariana Fix e Fernanda Chagas, trazendo argumentos que afirmam que tais operações de transformação são apropriadas pelo mercado para obter lucros provenientes da flexibilização das leis, desapropriações estratégicas e investimentos públicos. Criando bases para um processo de especulação imobiliária, gentrificação e transformação da cidade em uma mercadoria, o que nos distancia cada vez mais da diversidade e da espontaneidade características intrínsecas ao urbano. [fig. 31]
eixos e tendências de verticalização na região de Santo Amaro. fonte: produção da autora.
No diagrama a seguir [fig. 31] apresentamos uma síntese deste processo de transformação e identificamos as tendências de verticalização e adensamento que poderão interferir na condição da paisagem de Santo Amaro. Entra no “jogo” do mercado a região de Santo Amaro, favorecendo a transformação de seus tecidos e assim, o possível apagamento de suas memórias. Compreendamos aqui que não estamos defendendo a postura conservadora de Ruskin, intolerante às renovações urbanas. O que é questionada é a forma como as intervenções e transformações urbanas são feitas de modo geral no Brasil. Trazemos as orientações de Santos quanto ao assunto: Um bom caminho seria o uso do estatuto da preservação ambiental.[...] Usando a preservação ambiental, teriam de levar em consideração os laços entre os espaços e as atividades econômicas e sociais que já suportam, antes de pensar no que se deseja para o futuro. Teriam, portanto, de observar com cuidado como é a vida onde querem intervir e entrar no seu fluxo. Isto significa
enorme contato com moradores e usuários, esclarecendo-os, levando-os a descobrir e cultivar os valores do lugar, permitindo que participem das decisões. (SANTOS, 1984, p.63)
Para Santos (1985), a falta de afetividade pelos lugares é responsável pela incompreensão por parte da população em relação à memória, gerando uma pobreza cultural e desorientação quanto ao passado e ao futuro. Diversos autores trazem o conceito de “lugar de memória”, “lugares de referências” “lugar especial” ou “lugar antropológico” para designar um espaço carregado de identidade, relações entre indivíduos, tempo e história. Lugar este que dá conta de um passado, que remete a símbolos, ritos, fatos, referências e relações. Portanto, o que dá sentido a um lugar de memória não se restringe ao espaço físico. Está ligado aos significados e símbolos que a cultura local imprime nele, levando outros a sentir sua importância, a partir de seus valores. Para compreender a cidade em sua complexidade, Meneses (2006) a divide em três dimensões: a cidade como artefato, a cidade como campo de forças e
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a cidade das significações. Em sua concepção, tais qualidades da cidade não são divisões, mas focos para observação e estão intimamente entrelaçados entre si. Para ele, a cidade como artefato se manifesta na dimensão física que é apropriada pelo homem, estão listadas aqui os traçados urbanos, a arquitetura, os equipamentos e objetos da cidade. A segunda dimensão da cidade se dá na esfera das relações sociais. Expressa-se nos desejos, tensões, conflitos e confrontos de diversas naturezas, econômica, política, social, cultural… Para Meneses a primeira e segunda dimensão se retroalimentam, o artefato é produto das relações, crenças e padrões sociais, e esta produção física alimenta o campo de forças. Por outro lado, há uma dimensão mais sensível da cidade, compreendida pelo sentido e significado dado aos lugares pelas práticas sociais realizadas neles. Trazendo, portanto, a visão da cidade como representação e imagem. A imagem que os habitantes se fazem da cidade ou de fragmentos seus é fundamental para a prática da cidade. (MENESES, 2006, p. 36)
O imaginário está presente no momento de identificação e apropriação da cidade quando caracteriza seus espaços sociais, que são lugares do cotidiano. Podemos compreender, portanto, que sem a atribuição de sentido, representação e a identificação com os lugares da cidade, não há sentido nas relações entre os homens e assim a produção do artefato se perde. Esta terceira dimensão é, portanto, fundamental na compreensão da necessidade de resgate e preservação da memória dos lugares. Os significados nos dão proposito e motivação para nossas ações diariamente, e para Meneses (2006), estes são produtos de escolha, historicamente instituídos, portanto, mutáveis. Isso nos leva a reflexão importante sobre como os lugares de memória têm sido (des)tratados no nosso país. Choay nos traz uma questão importante e muito ambígua: a “valorização” do patrimônio urbano. A autora levanta que muitas das operações que pretendem valorizar o patrimônio, podem ser apenas disfarce para concretização de interesses políticos e/ou econômicos, e critica o fato de que muitos monumentos têm sido tratados de forma a alimentar a
“indústria cultural”: […]os monumentos e o patrimônio histórico adquirem um duplo estatuto. São obras que facultam saber e prazer, colocadas à disposição de todos mas também, produtos culturais, fabricados embalados e difundidos tendo em vista o seu consumo.(CHOAY, 1925, p.226)
Este é um dos diversos dilemas relacionados ao mercado e a dinâmica capitalista de produção do espaço que precisarão ser enfrentados ao pensar em uma intervenção de valorização de um monumento ou conjunto urbano como no caso de nosso local de estudo. Podemos listar ainda as questões ligadas à gentrificação, ou “expulsão dos pobres” tão recorrente em São Paulo. A exclusão social está disfarçada de interesse cultural. Tal situação depende, portanto, da vontade de intervenção por parte do poder público, como forma de equilíbrio e mediação entre os interesses e tensões geradas com a valorização. Gerar condições favoráveis de inclusão dependem do reconhecimento da importância do cotidiano e do mundo do trabalho nas políticas de preservação e valorização do patrimônio urbano. (ME-
NESES, 1925) No caso do patrimônio industrial apesar de existir um valor documental e afetivo de memória, a preservação real não parece possível devido às suas dimensões. Nos deparamos, então, com uma necessidade de encontrar novos usos a estas antigas estruturas. Mas, esta é uma questão paradoxal, atribuir novo uso é um processo que deve ser estudado e realizado com bom senso e sensibilidade. As propostas de atribuição de novos usos aos conjuntos preservados no Brasil são, em sua maioria, desenhadas para abrigar o uso cultural, são criados incontáveis museus. [...] como se as qualidades reconhecidas nestes edifícios não pudessem ser contaminadas por usos “menos nobres” atribuídos ao trabalho e ao cotidiano. (MENESES, 2006, p. 37)
A cultura é considerada “coisa a parte”:
Tem-se, assim, uma pirâmide sem base (que seria precisamente o universo do trabalho e do cotidiano), apenas com o topo isolado, concentrado fora do alcance dos espaços vitais que poderiam irrigá-lo. (MENESES, 2006, p. 38)
O habitar e o cotidiano são a vida necessária para a preservação, manutenção, e uso dos edifícios de valor histórico e cultural. Sendo ainda o cotidiano a instância que institui as relações sociais, gerando as práticas sociais e a manifestação dos interesses. É, portanto, o cotidiano e o habitar, que validam a intenção de preservação, pois são responsáveis pela apropriação, pela constituição de relações sociais que transformarão o espaço em lugar de memória. Ao voltar o olhar para Santo Amaro podemos compreender tais questões de forma ilustrada, e como forma de condensar as questões observadas anteriormente e buscar o direcionamento para o projeto, delimitamos um recorte da região central do bairro de forma a englobar os edifícios e espaços urbanos que consideramos fundamentais para tratar da questão da memória
[fig. 32]
Croqui de estudo para a caracterização do recorte em “bairros”. fonte: produção da autora.
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no local. Podemos destacar diversas tensões ao aplicar os conceitos de Meneses. A dimensão da cidade tratada pelo autor como artefato, pode ser dividida em “bairros”, os quais para Kevin Lynch, são partes razoavelmente grandes da cidade na qual o observador “entra”, e que são percebidas como possuindo alguma característica comum, identificadora.” (LYNCH,1960, p. 66) Fizemos, assim, divisões no recorte de estudo agrupando áreas com características semelhantes em sua ocupação, arborização, calçadas, entre outros [fig. 32]. A partir daí criamos um mapa,
dividindo o tecido em 6 “bairros” [fig. 33]. A região I é constituída por grandes lotes, resquícios da antiga ocupação industrial, que atualmente abriga novos usos ligados a educação, eventos e negócios. A avenida João Dias é uma enorme ruptura no tecido. Dá-se prioridade aos veículos e os usos imediatos são pouco convidativos e muito genéricos, como em muitas avenidas da cidade, o que gera desinteresse por parte do pedestre apesar da presença de praças e comércio. Parte da proposta do PIU Arco Jurubatuba, é adensar a região com a cons-
[fig. 33]
mapa: caracterizando Santo Amaro: passado, presente e tendências de transformação. fonte: produção da autora.
[fig. 34]
Antigo Mercado de Santo Amaro e sua praça gradeados e com acumulo de lixo. fonte: acervo da autora.
[fig. 35]
Calcadas estreitas e mal cuidadas na região do Largo 13. fonte: acervo da autora.
[fig. 36]
Pedestres e automóveis dividem o espaço das vias, visto que as calçadas não são capazes de garantir uma boa circulação. fonte: acervo da autora.
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[fig. 37]
Fachadas das antigas construções ecléticas descaracterizadas e mal cuidadas. fonte: acervo da autora.
[fig. 38]
Edifício residencial recém construído próximo à Av. Adolfo Pinheiro. fonte: acervo da autora.
[fig. 39]
Ruas largas e arborizadas, atenção ao segurança em frente a uma residência de alto padrão. fonte: acervo da autora.
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trução de grandes prédios comerciais e residenciais; [fig. 26 a 30] Na região do eixo histórico (II), as ruas são estreitas e o espaço é muito disputado entre pedestres e veículos. As áreas publicas de praças e lotes envoltórios a edifícios históricos importantes, se encontram gradeados e por vezes feitos de depósito de lixo. A arquitetura colonial e eclética que restou está descaracterizada pelo abandono e poluição visual, característica do comércio popular que se instalou no local. [fig. 34 a 37]. Nos lotes próximos ao Teatro Paulo Eiró (IV) há notável presença de edifícios comerciais e condomínios residenciais de alto padrão. Percebe-se uma verticalização crescente ao longo da Av. Adolfo Pinheiro e quadras imediatas. [fig 38] A região V é caracterizada por residências de alto padrão, em sua maioria casas. As ruas são mais largas e arborizadas. [fig 39] Compreendemos a região III como área de transição, pois não possui característica forte e marcante que a unifique as outras. Em sua composição estão alguns lotes subutilizados, como estacionamentos e lotes vazios, alguma presença de comércio, residências, antigos
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galpões e fábricas, alguns deles reestruturados para novos usos, como o edifício da Universidade de Santo Amaro (UNISA). [fig 40 e 41] Realizamos a partir do levantamento dos lotes e edificações subutilizadas, um mapa, com objetivo de espacializar em nosso recorte. Estes, foram divididos em áreas livres/verdes, lotes usados para estacionamento, lotes vazios e galpões. [fig. 42] A segunda dimensão da cidade de Meneses, o campo de forças, é visível através das diversas tensões produzidas no espaço. A região considerada neste trabalho um importante remanescente histórico e de memória está sendo pressionada e encurralada, por vetores de crescimento urbano (vetor sudoeste Av. Faria Lima - Av. Santo Amaro) e por operações de transformações urbanas intensas (Operação Urbana Consorciada Água Espraiada e PIU Arco Jurubatuba) como demonstrado anteriormente pelas imagens [fig 26 a 29] e pelos mapas [fig.21 e 31]. Há ainda uma tensão gerada pela presença de classes mais abastadas e da especulação imobiliária, com a verticalização da região próxima à estação de metrô Alto da Boa Vista. A crescente
[fig. 40 e 41]
Área considerada “de transição”, caracterizada por diversos estacionamentos e lotes subutilizados. fonte: acervo da autora.
[fig. 42]
lotes ociosos ou subutilizados: possíveis áreas para intervenção. fonte: produção da autora.
[fig. 43]
A cidade genérica, foto tirada do muro de um dos condomínios residenciais da região. fonte: acervo da autora.
presença de condomínios fechados nesta região é uma manifestação de rejeição ao cotidiano, as relações com a cidade e gera a produção de não lugares onde o modelo é a cidade genérica de muros intermináveis. [fig 43] Na área central do bairro os espaços públicos são desqualificados, a relação entre o volume de pedestres e o espaço disponível para a circulação segura é díspar. As praças e áreas envoltórias de edifícios importantes como a Igreja da Matriz, o Antigo Mercado e a Praça Floriano Peixoto, se encontram gradeadas, diminuindo as possibilidades de permanência [fig 44]. Os remanescentes históricos se encontram descaracterizados e mal preservados. Estes fatores, somados a uma região nebulosa repleta de lotes subutilizados favorecem a formação de mais condomínios fechados e shoppings centers, alimentando a cidade genérica, e gerando o apagamento da memória local. Por fim, no mapa seguinte [fig. 45] buscamos sintetizar as reflexões trazidas, como os eixos e tendências de verticalização na região, as rupturas criadas pelas largas avenidas, a marcação das vias saturadas e disputadas entre pedes-
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tres e veículos, os calçadões e pontos referenciais. Somamos ainda as camadas presentes em mapas anteriores como os lotes passíveis de intervenção e as áreas verdes. Buscamos neste capítulo contextualizar a questão da memória, trazer um panorama geral da região escolhida para o projeto de intervenção e as análises iniciais realizadas. No próximo capítulo discutiremos as possibilidades de intervenção e seus fundamentos.
[fig. 44]
Conflito entre pedestres e veículos muito comum na região. Na calçadas podemos notar senhoras sentadas em caixotes deixados pela feira em frente a Praça Floriano Peixoto, gradeada. fonte: acervo da autora.
[fig. 45]
A imagem de Santo Amaro: identificação de marcos e pontos de referência, tensão e conflitos. fonte: produção da autora.
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II Do Eixo a Poligonal Histรณrica de Santo Amaro
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No centro de Santo Amaro temos uma área chamada Eixo Histórico de Santo Amaro, esta é uma região delimitada no bairro que foi tombada pelo CONPRESP em 13 de agosto de 2002 a partir da Resolução n. 14/2002. Tal tombamento considera o valor histórico, urbanístico e ambiental da área, como representação da formação e desenvolvimento desse antigo núcleo urbano, que hoje faz parte da cidade de São Paulo. Outro dos motivos do tombamento é seu valor afetivo para a população do bairro e de toda a cidade, visto que o local concentra significativas formas de expressão cultural e social paulistanas. Alguns elementos constitutivos desse ambiente urbano, foram também protegidos, considerando o valor arquitetônico e paisagístico dos mesmos. Tais elementos são: 1. Igreja Matriz de Santo Amaro; 2. Largo Treze de Maio; 3. E.E. Prof. Alberto Conte; 4. Praça Floriano Peixoto e Edifício da Antiga Prefeitura de Santo Amaro; 5. Praça Salim Farah Maluf; 6. Imóvel Praça Dr. Francisco Ferreira Lopes, nº 787; 7. Antigo Mercado Municipal de
Santo Amaro; 8. Estúdio e Residência do Artista Júlio Gu.erra; 9. Biblioteca Pública Prestes Maia; Temos ainda em nosso recorte de estudo, algumas outras edificações tombadas por serem consideradas representativas de um momento ou pensamento construtivo paulista e por seu significado social e/ou afetivo (Resoluções n. 45/ 2018 e 34/2018). Estas são: 10. Teatro Paulo Eiró. 11. Colégio XII de Outubro; 12. Casa Pery Campos. Como este trabalho foca exatamente nos pontos de contato entre este passado ameaçado, tanto material quanto imaterialmente, e as dinâmicas urbanas que inviabilizariam sua permanência, propomos, de imediato a ampliação de Eixo Histórico Santo Amaro para Poligonal Histórica de Santo Amaro. Tal proposição se baseia na compreensão e identificação de “lugares de memória” situados para além do eixo tombado pelo CONPRESP, porém, carentes de consolidação. [fig. 46 e 47]
Acrescentaríamos, portanto, à esta lista de edifícios de valor cultural e histórico, compreendendo como detentores de valores semelhantes, os edifícios: 1. Biblioteca Belmonte; 2. Antiga Fábrica de Plásticos York; 3. Novo Mercado Municipal de Santo Amaro; 4. Paideia Associação Cultural; 5. Cemitério de Santo Amaro. Para justificar tal escolha, trazemos o Artigo 1º da Carta de Veneza (1964): A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural. (ICOMOS, 1964, p. 1, grifo da autora)
Esclarecemos ainda que existem muitos outros locais importantes e que fazem parte do cotidiano de Santo Amaro, mas aqui faremos um recorte selecio-
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[fig. 46]
Proposta de ampliação do Eixo Histórico para Poligonal Histórica de Santo Amaro. fonte: produção da autora.
[fig. 47]
Croqui da proposta de integração do território: A Poligonal Histórica de Santo Amaro. fonte: produção da autora.
nando edificações significativas do período de “construção” de Santo Amaro, ou seja, edificações construídas até a década de 70. Para facilitar a compreensão do papel que tais edificações têm na história do bairro, criamos algumas fichas ilustradas, como se fossem postais dos lugares de memória aqui considerados. Estes foram categorizados por uma faixa vermelha quando se tratam de edificações tombadas, e com uma faixa cinza quando identificados por nós como edificações de valor cultural e histórico. [ver apêndice] Com a anexação de tais locais reconhecidos, teremos, portanto, um polígono resultante formado por estes “lugares de memória” agora denominada Poligonal Histórica de Santo Amaro [fig.46 e 47]. Visto que o patrimônio cultural de Santo Amaro além de desconhecido pela população residente e flutuante, é tensionado permanentemente pelas dinâmicas contemporâneas inerentes ao processo de modernização e transformação testemunhado nos últimos anos, entendemos esta ampliação como uma forma de criar unidade e conectar os edifícios de valor cultural e histórico da região de estudo
e auxiliando no processo de combate ao apagamento de tais remanescentes. Entendemos, também, que os bens culturais têm matrizes subjetivas e suas representações precisam se integrar à vida social, pois “é por meio de elementos empíricos do ambiente urbano que os significados são instituídos […]. Afinal a corporalidade é a base da nossa condição humana.” (MENESES, 2006, p. 36) Portanto, realizar uma intervenção neste território será o elemento catalisador da mudança cultural e comportamental que gostaríamos de estimular. Primeiramente é preciso dizer que a proposta deste trabalho não é resolver todos os problemas encontrados na região e sim realizar um primeiro movimento rumo a tomada de consciência pelos habitantes de Santo Amaro e da cidade, quanto a importância da memória desta região. Assim, apesar de termos clareza sobre a necessidade e a urgência de intervenções permanentes em Santo Amaro, decidimos pela realização de intervenções efêmeras, explicaremos os motivos desta escolha a seguir. Como já relatamos anteriormente, a região escolhida tem problemas diversos e extensos, passando pela preserva-
ção das fachadas e edifícios históricos, necessidade de remodelação do espaço público, incluindo calçadas insuficientes e o transito caótico causado pela disputa de espaço entre automóveis e pedestres, até chegar em dinâmicas de transformação intensa presentes na região que, sem uma intervenção do poder público, tem sua memória urbana ameaçada. Tais questões nos apresentam diversas possibilidades de intervenção, como por exemplo: a criação de uma proposta urbana de remodelação no espaço publico, a criação de uma cartilha de diretrizes para uma preservação e manutenção dos lugares de memória, a realização de intervenções em edificações importantes, ou nos lotes subutilizados, e até a criação de uma família de equipamentos urbanos responsável pela criação de unidade na Poligonal Histórica. Para a escolha levamos em conta o processo completo do trabalho e o desejo de tratar de questões mais sensíveis relativas ao espaço urbano e sua relação com aqueles que habitam o espaço. Podemos citar aqui a memória e o imaginário urbanos, as relações do habitante com o espaço - tempo naquele local, as projeções de futuro e a potência crítica
característica das intervenções artísticas. Todas estas questões foram base importante para a construção do conceito da intervenção e dos resultados esperados. A escolha pela implantação de estruturas temporárias reflete-se no desejo de realizar uma provocação, criar estranhamento na população e simular as possibilidades de futuro, ao mesmo tempo em que chamam atenção para o patrimônio e criticam suas condições de preservação, seu diálogo ou falta de diálogo com os habitantes cotidianos da região. Compreendemos, portanto, as intervenções aqui propostas como a materialização de uma intenção, a condensação de uma necessidade revelada, o primeiro passo. Uma intervenção transitória entre o passado, presente e futuro, um gesto não permanente, mas essencial para gerar um novo olhar sobre a região, que se encontra desarticulada quanto aos seus pontos de interesse históricos, e portanto, desconhecida pelos que frequentam. Estas estruturas estão dispostas em uma relação parasitária com algumas das edificações de importância histórica e cultural e têm como objetivo deslocar o observador de seu lugar-comum, física e/ ou psicologicamente, propondo-se a ini-
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ciar uma estratégia de revelação, conexão e unidade da Poligonal Histórica sugerida, influindo na escala da paisagem - gabaritos e skyline, do território – criação de pontos de referência, passagem e/ou permanência e, ainda, nos fluxos de automóveis, pedestres, etc. Podemos compreender os primeiros estudos de intervenção a partir das colagens [fig 48 a 53] e dos diagramas realizados. Nossa proposta tem caráter simbólico pois, além de atrair atenção para o local e estimular o uso, representa uma denúncia à precariedade do espaço público na região, à espera pela deterioração dos lugares de memória, ao descaso por parte do poder público e à substituição do tecido antigo por edifícios altos e murados. A escolha das edificações que receberão as intervenções foi subordinada a alguns objetivos gerais que gostaríamos de alcançar: 1 Criar unidade no quadrilátero; 2 Estabelecer novos marcos visuais e pontos de referência na paisagem e revelar questões estudadas por este trabalho; 3 Deslocar o espectador de seu lugar comum, causar reflexão, estranha-
[fig. 48 e 49]
Colagem de estudo da proposição de intervenção em na Fábrica da York. Visibilidade da Poligonal / Crítica ao abandono das estruturas industriais remanescentes. fonte: produção da autora.
[fig. 50]
Colagem de estudo para a criação de passarela entre a Biblioteca Prestes Maia e o antigo Mercado. Reconexão das praças / Revelar a ruptura criada pela Av. João Dias. fonte: produção da autora.
[fig. 51]
Colagem de estudo para a criação de uma estrutura metálica cobrindo a Praça Salim Farah Maluf. Incentivar o uso / Revelar espaços públicos não convidativos. fonte: produção da autora.
[fig. 52]
Colagem de estudo para a criação de passarela entre o Calçadão da Rua Cap. Tiago Luz e a Praça da Igreja da Matriz. cobrindo a Praça Salim Farah Maluf. Incentivar o uso da praça / Revelar a ruptura criada pela Av. Adolfo Pinheiro. fonte: produção da autora.
[fig. 53]
Colagem de estudo para a criação de estrutura que dialogue com os prédios do entorno em altura. Denunciar o abandono do Teatro / Revelar a verticalização no eixo da Av. Adolfo Pinheiro. fonte: produção da autora.
mento e surpresa. 4 Criação de uma “entrada” clara para a Poligonal sugerida; 5 Criticar o descaso e a degradação do espaço público e dos edifícios históricos da região; 6 Revelar as rupturas causadas no tecido antigo de Santo Amaro; 7 Denunciar a substituição massiva de áreas degradadas ou abandonadas por condomínios verticalizados, que representam a negação da cidade e dos espaços públicos; 8 Estimular o uso noturno, bem como usos mais diversos da Poligonal Histórica. Os diagramas [fig. 54 e 55] são a digitalização de um processo manual realizado como forma de aproximação e estudo de implantação das estruturas. Estes são o resultado da sobreposição de camadas sobre uma foto aérea impressa, e sobre ela, foram realizados croquis de estudo. No primeiro diagrama [fig. 54] estão sinalizados em preto os principais eixos da intervenção formados pela Av. João Dias, Rua Tenente Coronel Carlos da Silva Araújo e Rua Capitão Tiago Luz (eixo 1)Rua Desembargador Bandeira de
Mello e R. Min. Roberto Cardoso Alves (eixo 2) e Avenida Adolfo Pinheiro (eixo 3). Adicionamos a camada dos lotes subutilizados levantados em laranja e os edifícios verticais em vermelho, e em amarelo, os lugares de memória mais favoráveis a receber as intervenções. Na imagem seguinte [fig. 49], temos o resultado da adição de mais uma camada, um dos diversos croquis realizados durante a concepção das intervenções. [fig. 55] Entendemos esta intervenção como um ponto de encontro entre a arquitetura e a arte, entre o sensível e o concreto. Representa o patrimônio que não é museu, mas que se faz exposto aos olhos da população por meio da adição de novo elemento, valendo-se dos efeitos do contraste, da luz e da verticalidade. Traduzem-se na intenção de educar e conscientizar de forma não-textual, por meio da arquitetura. Em busca de uma relação parasitária com as edificações históricas, consideramos a escolha de estruturas leves, e com a possibilidade de desmontagem, de forma a gerarem menos impactos pós-ocupação.
Utilizamo-nos, portanto, de andaimes, gruas e estruturas metálicas como suporte de intervenção, elementos cotidianos, utilizados na construção civil, que além de possibilitarem trabalhar com a transparência, têm caráter simbólico, criando uma relação com elementos presentes nas construções dos edifícios verticais que estão substituindo grande parte do tecido antigo do bairro. Teremos, portanto, uma “arquitetura fantasma” capaz de transformar o espaço e dialogar com o passado e com as inúmeras projeções de futuro para Santo Amaro. Aqui entendemos ser necessária uma breve explicação sobre a importância da luz na arquitetura ao longo dos séculos, justificando também seu protagonismo em nossa proposta. Como escrito por Montaner (2002), a luz sempre foi fator importante para a concepção da arte e arquitetura ao longo da história. Desde a Idade Média nas catedrais góticas com os vitrais, passando pelo barroco e os reflexos da luz e sombras criadas pelos adornos, a diluição do interior e do exterior criada no Palácio de Cristal de J. Paxton, o movimento da “pintura com a luz” nas obras de e J. M.
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[fig. 54]
estudo da proposta de intervenção no território. fonte: produção da autora.
[fig. 55]
croquis de estudo das estruturas a serem implantadas na Poligonal Histórica sugerida. fonte: produção da autora.
[fig. 56 e 57] Tower of Winds Toyo Ito, 1986 Intervenção em edifício preexistente com extenso uso de tecnologia, as lâmpadas instaladas mudam de cor de acordo com o som externo, e os anéis ondulam de acordo com os ventos da cidade. A fachada então torna-se uma uma representação direta do ambiente, projetada em superfície de 21 metros de altura. fonte imagem: Archdaily.
[fig. 58 e 59]
Glass Video Gallery Bernard Tchumi, 1990
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Estrutura temporária para um festival de música e vídeo, hoje é obra permanente. A Galeria de vidro dialoga com a condição arquitetônica contemporânea em que a aparência de permanência desafiada pela representação imaterial das imagens eletrônicas. fonte imagem: Uncube Magazine
W. Turner, Claude Monet e Pierre A. Renoir, até as manifestações da arquitetura expressionista alemã de W. Gropius, os experimentos de Bruno Taut e as fachadas de vidro de Mies van der Rohe. Podemos destacar ainda as palavras de Montaner sobre a potência da luz como forma de desenho do espaço e de influenciar a percepção dos corpos e nosso psicológico: Ao manipular a luz, não manipulamos algo que possa ser determinado exclusivamente de maneira racional e funcional, senão que também intervêm fatores da intuição e da sensibilidade, elementos simbólicos, culturais e perceptivos. a utilização da luz natural e da artificial sempre inclui uma margem para o imprevisível. (MONTANER, 2002, p. 220)
Atualmente, a arquitetura contemporânea ainda emprega a luz como forma de desmaterialização da construção, “explorando uma nova condição ágil e leve, virtual e em suspensão, do espaço contemporâneo”. (MONTANER, 2002, p. 230) Traz-se uma nova forma de transparência, a fenomenológica,
[...] que não é a literal da arquitetura moderna (que se baseava na transparência do vidro), mas que [...] ao mesmo tempo que mostra, oculta, compõe-se de luzes e sombras, [...] trata-se agora de uma transparência baseada no véu e na narração. (MONTANER, 2002, p. 230)
Ainda no campo da desmaterialização, introduzimos agora um ponto importante na conceituação da proposição: a compreensão da arquitetura como tela, como suporte para a projeção do imaterial, como forma de deslocamento e amortecimento da realidade. Relacionada a esta questão Montaner discorre sobre o processo de supremacia da visão na arte e na arquitetura, e assinala o cinema (imagem em movimento na tela) como um possibilitador de novas propostas de intervenção artística e arquitetônica. Introduzimos, assim, um mundo imaterial, virtual, mas completamente capaz de influir em nossa realidade e produzir efeitos narcóticos e alienantes naqueles os quais captura o olhar. Em nossa proposta de intervenção a luz e a projeção têm, também, papel fundamental. Além de serem responsá-
veis por atrair a atenção e causar novas sensações e percepções do espaço, são capazes de criar uma versão noturna da Poligonal Histórica de Santo Amaro completamente nova e diferente daquela durante o dia ou anterior à intervenção. Após realizada a justificação de nossas escolhas e expostos os conceitos adotados no projeto, no próximo capítulo buscaremos explorar mais profundamente os locais e as estruturas de intervenção desenvolvidas. Durante esse processo a busca de referências projetuais e teóricas foi muito importante, pois nos auxiliou a vencer as dificuldades inerentes a proposta de uso incomum das estruturas cotidianas em nossas intervenções. Para explorar melhor o assunto, o capítulo IV é exclusivamente dedicado às referências.
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III Projetando (Im)permanĂŞncias
Dedicaremos este capítulo a explicação mais detalhada da caracterização dos lugares de memória escolhidos e das intervenções que serão realizadas. Como podemos observar no mapa de situação [fig. 60] teremos 5 intervenções temporárias dispostas em pontos estratégicos da Poligonal Histórica de forma a serem os vétices do polígono de preservação da memória neste território. O primeiro vértice é formado pela Biblioteca Prestes Maia e a Casa de Cultura de Santo Amaro (antigo mercado), neste lugar de memória identificamos que há uma ruptura no tecido causada pela Avenida João Dias. Esta é fator determinante para a segregação existente entre a Biblioteca e o restante do Eixo Histórico, apesar da mesma pertencer a ele. Esta ruptura ainda é responsável pela divisão da antiga praça (que unia as duas edificações citadas) deixando uma área verde em frente ao mercado que poderíamos caracterizar como uma área residual, pois parece servir apenas de suporte para o painel de Júlio Guerra ali presente. Nesta não há qualquer incetivo a uso ou permanência. A área publica envoltória ao mercado também se encontra gradeada e acumula lixo em alguns cantos.
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[fig. 60]
Mapa de situação das estruturas impermanentes propostas em Santo Amaro fonte: produção da autora.
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[fig. 61]
Implantação da passarela sugerida. fonte: produção da autora.
[fig. 62 e 63]
Imagens da intervenção inserida no local. fonte: produção da autora.
Além disso, este ponto é considerado por nós a entrada principal para o Eixo Histórico atual, bem como para a Poligonal sugerida. Compreendida a importância deste local, procuramos pensar em uma intervenção que desse conta de sinalizar essa entrada marcando a paisagem local, e ao mesmo tempo, restabelecesse a conexão entre as praças / edifícios históricos. [fig. 61, 62 e 63] Para tanto, criaremos no local uma passarela ligando o terraço da biblioteca e a atual casa de cultura, possibilitando o acesso por uma torre de escada e elevador na calcada da Praça Marcos Manzini. A estrutura metálica da torre e da passarela se dá por perfis tubulares de 100mm de diâmetro conectados por meio de parafusos, facilitando sua desmontagem. A vedação será feita com painéis de vidro laminado com película vermelha. [fig. 64] Apesar da possibilidade de desmontagem de tal estrutura metálica, consideramos que esta intervenção, além do caráter simbólico e crítico, tem caráter funcional na dinâmica e nos fluxos da região, pois resolve a questão da travessia segura e de forma independente. Podendo, portanto, tornar-se uma intervenção permanente. Assim, sugerimos aqui a
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pedestrianização da via de menor porte adjacente à Casa de Cultura e a retirada das grades da mesma. Devolvendo, portanto, a praça à cidade. A passarela proposta é, ainda, responsável por criar novas perspectivas do local, bem como, relações diferentes entre os lugares de memória e o usuário. [fig. 62 e 63] Alguns metros mais a frente na Rua Tenente Coronel Carlos da Silva Araújo temos a edificação da antiga fábrica de plástico York que se encontra abandonada. Enxergamos certo valor em sua fachada eclética, ritmada verticalmente pelos pilares, com grandes janelas emolduradas pelos peitoris. Para nós tal edificação é parte da memória da fase industrial do bairro e simbolo das dinâmicas que ocorrem em toda a região de Santo Amaro, onde os remanescentes industriais esperam a degradação e desvalorização até serem substituídos pelos condomínios verticais. Aqui, a escolha da intervenção foi baseada na criação de uma torre, simulando um futuro provável, e estabelecendo um novo ponto de referência na paisagem por meio da possibilidade de ser vista à distância, já que o entorno imedia-
Estrutura metálica tubular com 100 mm de diâmetro e 3mm de espessura. As peças variam em 3 tipos, para formação do módulo base com distância horizontal de 2,65 entre os nós estruturais.
Detalhe da conexão entre os tubos metálicos realizada por parafusos. Vedação da cobertura com chapa metálica
Vedação lateral realizada por vidro laminado com película vermelha Piso metálico anti-derrapante Fixação do piso na estrutura de forma a deixar uma área de “respiro” entre o piso metálico e a vedação.
[fig. 64]
Detalhes da estrutura da passarela proposta fonte: produção da autora.
[fig. 65]
Implantação da torre sugerida. fonte: produção da autora.
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[fig. 66 e 67]
Imagens da intervenção inserida no local fonte: produção da autora.
[fig. 68]
Detalhes das estruturas propostas fonte: produção da autora.
to ao lote tem um gabarito menor. Esta torre é constituída por um sistema estrutural denominado tensegrity que foi criado Kenneth Snelson, quando trabalhava com Buckminster Füller. Tal sistema consiste em barras rígidas e cabos tracionados de tal forma que se tornam estáveis. Segundo Rebello (2009) as torres feitas com esse sistema podem alcançar até 30 m de altura. [fig.68] Além desta torre, interviremos na fachada da antiga fábrica, com a colocação de telões LED sobre as janelas em seu exato tamanho de modo que agora não sejam mais orifícios de entrada de luz no edifício e sim fonte de luz projetadas para o externo. Introduziremos por meio de tais telões de alta definição, um mundo imaterial e virtual, capaz de alienar a atenção de quem transita pela rua. [fig.66 e 67] Como uma extensão de tal intervenção vemos a possibilidade da criação de exposições igualmente temporárias dentro dos galpões da fábrica, de modo a trazer informações sobre a memória do bairro e seus lugares de memória. Seguindo em frente nesta mesma rua em que se encontra a fábrica, chegaremos ao Calçadão da Rua Cap. Tiago
Detalhe dos tubos metálicos com espessura de 3 mm, que serão perfurados nas extremidades para receber os cabos de aço (1,3 mm) e pintados com a tinta luminescente Corion Led Cell que se ilumina no escuro após absorver raios UV.
Esquema da fixação das telas LED na fachada.
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Detalhe da fixação de estrutura metálica de suporte para o LED
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[fig. 69]
Implantação da passarela sugerida. fonte: produção da autora.
[fig. 70 e 71]
Imagens da intervenção inserida no local fonte: produção da autora.
Luz e à Catedral de Santo Amaro. Aqui encontraremos uma série de problemas comuns nos espaços públicos deda região. O conflito frequente e perigoso entre automóveis de passeio, o transporte coletivo e os pedestres, escancara a necessidade de uma uma travessia segura. Mais uma vez temos uma imensa ruptura no tecido urbano original causada por uma larga avenida, que segrega a igreja e sua praça lateral do antigo largo onde terminava a linha do bonde. Há aqui, como na primeira intervenção, uma desconexão dos caminhos do pedestre e das áreas públicas entre si, nestes lugares de memória. A praça da igreja encontra-se gradeada e em situação de subutilização. Visto que temos neste ponto características comuns às da primeira intervenção, decidimos por criar aqui uma passarela semelhante à anterior, saindo da torre de circulação criada no calçadão e passando, não apenas por cima da avenida, mas também por cima da igreja, num abraço parasita que engloba a praça até chegar na segunda torre de circulação. [fig.69 a 71] A implantação das torres foi pensadas de modo a serem vistas de diversos
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pontos nas ruas do entorno, mais uma vez deslocando o pedestre de seu lugar comum, física e psicologicamente. [fig. 69] Se continuarmos pela Avenida Adolfo Pinheiro chegaremos a mais um vértice de nosso polígono, o Teatro Paulo Eiró. Este, apesar de tombado, e, por assim dizer, ter seu valor reconhecido, passa por problemas em sua infraestrutura desde 2011, chegando a ficar anos fechado, e mesmo após reformas ainda não esta apto para abrigar espetáculos. Como uma forma de crítica a essa situação de descaso do poder público na resolução desta questão, decidimos criar um segundo espaço de apresentação suspenso sobre a caixa cênica, como se a alma do teatro original tivesse se deslocado no espaço e no tempo. [fig.74 e 75] Este espaço tem seu piso apoiado sobre treliças metálicas as quais ligam-se à 2 linhas de andaimes, uma de cada lado, conduzindo a carga para o solo. O acesso se dá por uma torre de circulação posicionada na parte posterior do teatro. As vedações são feitas com chapas metálicas vermelhas, ora perfuradas para favorecer a ventilação e possibilitar ao usuário ver a vista. [fig.77]
Vedação superior feita por chapa metálica sem perfuração. Vigas de perfil I e tubos metálicos de seção quadrada compõem a estrutura da caixa de elevador
Esquema da estrutura das passarelas.
Pilar árvore metálico com 200mm de diâmetro. Os vãos entre pilares é de 15m, com exceção ao vão sobre as avenidas, que é de aproximadamente 20 m.
[fig. 72]
Detalhe das torres de de acesso e circulação vertical propostas fonte: produção da autora.
Vedação lateral feita por chapa metálica perfurada com furos de 5mm de diâmetro
[fig. 73]
Implantação da estrutura sugerida. fonte: produção da autora.
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Telha metálica tipo sanduíche
Espaço temporário para apresentações
Treliças metálicas são responsáveis pela sustentação do piso e do telhado.
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Vedações laterais feita por chapas metálicas vermelhas.
Edifício do Teatro existente
Circulação Vertical, escada e elevador
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[fig. 74 e 75]
Imagens da intervenção inserida no local fonte: produção da autora.
[fig. 76]
Detalhes da estrutura proposta. fonte: produção da autora.
Vedação frontal feita por chapa metálica vermelha sem perfuração.
Vedação lateral feita por chapa metálica vermelha perfurada com furos de 5mm de diâmetro. Os quadros metálicos que servem de suporte para as vedaçoes estão presos às treliças por abraçadeiras metálicas.
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[fig. 77]
Detalhes da estrutura proposta fonte: produção da autora.
[fig. 78]
Implantação da estrutura sugerida. fonte: produção da autora.
As treliças estão fixadas nos andaimes por abraçadeiras metálicas. Treliças metálicas tubulares de 2mm de espessura e 800mm de altura são apoio para o piso, além de realizar o travamento lateral dos andaimes.
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Sobre este espaço, suspensa por uma grua, temos uma estrutura, também formada por andaimes e treliças, que servem de suporte para telões LED. [fig.76] Este volume tem as medidas iguais às do espaço de apresentações abaixo, possibilitando ao cérebro a criação, de uma idéia de continuidade, de acordo com o princípio de Gestalt, assim criando a ideia de um edifício contínuo até a altura final, que é a mesma dos edifícios do entorno. A criação deste volume luminoso suspenso pela grua é fruto de uma intenção crítica à massiva substituição que ocorreu, e que ainda ocorre, nas quadras próximas ao teatro, isolando assim o seu volume e sua praça em meio a quadras de muros intermináveis, sem qualquer relação com o espaço público ou com o teatro. Este edifício parasita por nós idealizado pretende ser uma ponte entre o passado e as projeções do futuro do bairro. De forma irônica, propõe uso, ao sugerir um pequeno auditório temporário que duplica o teatro, e ao mesmo tempo sinaliza a ameça ao tecido antigo quando suspende os telões LED. Por fim teremos uma intervenção de menor escala no atual Mercado de
Santo Amaro. Apesar de simples esta instalação cumpre um papel importante no contexto geral da proposta. Ela é o ultimo vértice de nosso polígono e pretende dialogar não apenas com o mercado mas replicar uma realidade presente em toda região. Como já abordamos diversas vezes ao longo deste trabalho, a falta de consciência por parte da população e o descaso do poder público quanto a questão do patrimônio e memória urbana são fortes potencializadores da degradação dos lugares de memória. Aqui temos um exemplo concreto deste descaso, com o episódio do incêndio no Mercado Municipal de Santo Amaro em 2017, causado pela falta de manutenção e displicência pública. Este fato não é apenas a destruição de boa parte de um edifício significativo para a história de Santo Amaro, mas é a destruição de um lugar de memórias cotidianas dos habitantes locais. Há 3 anos o mercado têm funcionado em tendas provisórias posicionadas nas áreas de estacionamento do lote. Este tipo de acontecimento dá ainda mais força às dinâmicas de substituição e apagamento, e é isto que buscamos criticar com esta intervenção.
A fixação das telas LED nos andaimes é realizada por abraçadeiras metálicas.
Os módulos dos andaimes têm 1,80m x 2,40m e 2,00m de altura entre os travamentos laterais (este padrão se repete em todas as intervenções com a presença de andaimes). As telas LED têm 2m de largura por 3m de altura, sendo necessárias 2 telas para cumprir a altura total do módulo 6m. (este padrão também se repete nas outras intervenções)
As sapatas ajustáveis permitem a implantação da intervenção apesar dos desníveis no terreno. São removíveis se não forem necessárias.
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[fig. 79]
Detalhes da estrutura proposta fonte: produção da autora.
[fig. 80 e 81]
Imagens da intervenção inserida no local fonte: produção da autora.
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Assim, implantaremos uma estrutura composta por andaimes com telões LED fixados, assim como no teatro. [fig.79] Estas telas fixadas no grid formado pelos andaimes estabelecem um paralelo com o grid das quadras do entorno, que passam a abrigar os novos edifícios verticais, representados pelos telões também dispostos verticalmente. [fig.78] A implantação e a escolha da altura dos andaimes na intervenção se dá de forma estratégica, buscando criar um obstáculo à visualização da fachada antiga na perspectiva de quem entra e sai da estrutura temporária que abriga o mercado, e substituindo-a por alguns instantes pelas linhas de grid projetadas nas telas. Um momento de vislumbre do que o futuro pode trazer. [fig. 80 e 81] A unidade entre as intervenções se dá por meio dos das estruturas metálicas utilizadas, das vedações em vidro/ chapa de aço, das telas led, do uso da luz e da projeção como forma de criar outras realidades e principalmente da cor vermelha, símbolo da violência, do poder e ao mesmo da força. Como dito anteriormente elas têm como base a criação de uma arquitetura
esquelética, as quais apoiam-se no passado (edifícios de históricos) para projetar o(s) futuro(s), e ao mesmo tempo que expõem, são expostas. Seria interessante pensar nas diversas interpretações possíveis para estas estruturas e seus efeitos no imaginário urbano da região. Seriamos assim capazes de criar ainda outras realidades para o espaço urbano, e imaginar futuros muito diversos, sejam estes mais ou menos otimistas. Gostaríamos de pensar que ao criar esta grande exposição urbana estaríamos abrindo possibilidades para uma futura Santo Amaro onde os espaços públicos são entendidos como áreas importantes, seguras e que convidam à permanência, diurna e noturna. Onde os edifícios históricos e os lugares de memória se integram à vida cotidiana, são bem cuidados e protegidos pelo poder público e apropriados pela população. Onde a verticalização não é um objeto de especulação imobiliária e gentrificação ou uma ameça ao patrimônio e a substituição dos espaços integrados ao entorno, mas apenas uma forma vertical de cidade.
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IV ReferĂŞncias
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Como dissemos anteriormente a busca de referências projetuais e teóricas teve um papel fundamental durante o processo da concepção do projeto. Portanto dedicamos este capítulo a expor um resumo breve de algumas das diversas referências estudadas. Como forma de facilitar a leitura, compreensão e consultas futuras de tais estudos adotamos a estratégia da criação de fichas - síntese. Algumas das intervenções serviram de inspiração conceitual e outras tiveram reflexo mais direto no projeto. A primeira é a intervenção na Praça do Patriarca, a escolhemos por conta da inquietação e do efeito contrastante que a estrutura provoca no espaço, a cobertura ao mesmo tempo que resolve a questão a que se propõe cria um monumento na paisagem, tão incomum que até chega a ser agressivo na visão de alguns. Este caráter nos interessa como fundamentação crítica para a proposta. Trazemos também a Hearst Tower, projeto de Norman Foster em Nova Iorque, um arranha-céu de 46 andares que foi construído sobre um edifício Art-Decó projetado em 1928. O projeto é capaz de manter o diálogo do edifício antigo com o
pedestre, e criar novas relações com seu entorno. Conceitos os quais gostariamos de explorar também. A terceira referência é o projeto do Estúdio Heartherwick, The Vessel, entra em nossa lista de referências por se tratar de um edifício de estrutura pré-moldada montável, possibilitando transparências, com a finalidade de ver e ser vista. Ou seja, funciona como mirante para ver a cidade mas também como obra escultórica a ser admirada. As obras dos artistas Christo (19352020) e Jeanne-Claude (1935-2009), intervêm na paisagem e em edifícios com o objetivo de promover a mudança da percepção entre o observador e o objeto e, assim, promover sua ressignificação, conceitos que se aproximam muito da nossa proposta. O mesmo podemos dizer sobre as intervenções não convencionais do grupo Arte/Cidade, visto que seu trabalho de intervenção busca compreender, criticar e iniciar um movimento quanto as dinâmicas presentes nos locais escolhidos. Outra fonte muito rica de conceituação e base para a resolução das dificuldades técnicas com que nos deparamos devido ao uso incomum das estruturas
escolhidas foi o projeto do Pavilhão Humanindade 2012, de Carla Juaçaba e Bia Lessa. A estrutura de andaimes mede 170m de comprimento e 20 metros de altura e dá conta de um programa extenso. As salas de exposição atuam como reforço de toda a estrutura, enrijecendo a estrutura como um todo. A arquiteta justifica o uso de andaimes como sendo ”o único material que conhecemos capaz de suportar tal peso e por onde passam a chuva e o vento”. Outros dois projetos que contrubiuram muito para o trabalho foram aspassarelas criadas pelo escritório Metro Arquitetos para a fábrica da Nestle e as intervenções luminosas de Muti Randolph.
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V ApĂŞndice
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83 Criamos este apêndice para agregar as fichas/ postais que criamos durante a primeira fase deste trabalho. Estas fichas serviram como uma primeira forma de análise e condensação dos levantamentos realizados sobre as edificações de interesse dentro do nosso recorte. Buscamos englobar às edificações tombadas, outras que consideramos também importantes na trajetória do bairro, nomeando-as “lugares de memória”em Santo Amaro. Tais fichas tiveram papel significativo na compreensão do território e nas escolhas projetuais.
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VI Considerações Finais
De modo geral este trabalho busca discutir e revelar a importância da memória e do patrimônio urbano, utilizando como objeto a região central de Santo Amaro. O foco está em compreender os pontos de contato entre um passado ameaçado e a dinâmicas urbanas de transformação e crescimento, alimentadas pelo mercado e vetores da cidade, que inviabilizariam esta permanência. A região considerada neste trabalho um importante remanescente histórico e de memória está sendo pressionada e encurralada, por vetores de crescimento urbano (vetor sudoeste Av. Faria Lima - Av. Santo Amaro) e por operações de transformações urbanas intensas (Operação Urbana Consorciada Água Espraiada e Arco Jurubatuba). A valorização da região gerada por tais operações, passa a atrair investimentos do mercado imobiliário. Uma grande tensão é gerada pela especulação imobiliária, presença das classes mais abastadas com a construção de condomínios fechados e a geração de eixos e tendências de verticalização na região. Situação que é agravada pelos espaços públicos desqualificados na área central do bairro, remanescentes históricos descaracterizados e mal pre-
servados e a existência de uma “região nebulosa” repleta de lotes subutilizados que favorecem a formação de mais condomínios fechados e shoppings centers, alimentando a cidade genérica, e gerando o apagamento da memória local. Tais conflitos e tensões presentes em Santo Amaro podem ser identificadas em diversas localidades da cidade de São Paulo e do país, tamanha a relevância de sua discussão. O objetivo deste trabalho é, portanto, resgatar os lugares de memória, criar unidade e favorecer a apropriação por parte da população, possibilitando condições para uma real preservação do remanescente histórico existente. Ao estudar o histórico da região pudemos compreender que não há intervenção de requalificação bem-sucedida sem que seja considerado o cotidiano, ou seja, se não há atribuição de significado aos espaços por parte dos habitantes, não há afetividade, o local não se transforma em lugar. O “urbanista-Deus”, sem considerar tais fatores, não é capaz de intervir em lugares de forma a respeitar sua memória, suas dinâmicas e seu cotidiano, fatores fundamentais para gerar identidade e o pertencimento.
As reflexões aqui apresentadas foram realizadas agregando a vivência prévia no local, reportagens, levantamentos bibliográficos e coleta de dados. Podemos listar como desafio, ainda, a complexidade de frentes de estudo, análises e propostas possíveis para Santo Amaro e a impossibilidade de utilizarmo-nos da dimensão física do lugar como anteparo e corpo de prova às nossas reflexões. A fundamentação da proposta é baseada na necessidade de uma tomada de consciência e apropriação do remanescente histórico pela população, que atualmente desconhece sua existência e importância, reforçando o potencial apagamento. Sugerimos, portanto, uma ampliação do Eixo Histórico de Santo Amaro para Poligonal Histórica de Santo Amaro, incluindo ao perímetro por serem detentores de valores semelhantes, a Biblioteca Belmonte, o Mercado Novo de Santo Amaro (o que restou dele), a antiga Fábrica de plásticos York, o edifício remanescente industrial que abriga a intituição Paidéia e o Cemitério de Santo Amaro. Tal medida cria unidade, reforça a importância da região e cria o cenário para a realização da nossa intervenção, que
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consiste em estruturas efêmeras instaladas de maneira parasitária em algumas das edificações consideradas lugares de memória do bairro. Entendemos esta intervenção como um ponto de encontro entre a arquitetura e a arte, entre o sensível e o concreto. Representa o patrimônio que não é museu, mas que se faz exposto aos olhos da população por meio da adição de novo elemento, valendo-se dos efeitos do contraste, da luz e da verticalidade. Traduzem-se na intenção de educar e conscientizar de forma não-textual, por meio da arquitetura. Utilizamo-nos, portanto, de andaimes, gruas e estruturas metálicas como suporte de intervenção, elementos cotidianos, utilizados na construção civil, que além de possibilitarem trabalhar com a transparência, têm caráter simbólico, criando uma relação com elementos presentes nas construções dos edifícios verticais que estão substituindo grande parte do tecido antigo do bairro. Teremos, portanto, uma “arquitetura fantasma” capaz de transformar o espaço e dialogar com o passado e com as inúmeras projeções de futuro para Santo Amaro.
De forma a deslocar o observador de seu lugar-comum e provocar reflexão, como um elemento catalisador da mudança cultural e comportamental que gostaríamos de estimular. Tais estruturas não têm como propósito resolver todos os problemas de Santo Amaro, que como já discutimos, vão da escala urbana à preservação de fachadas, mas propõem o início de uma estratégia de revelação, conexão e unidade da Poligonal Histórica sugerida. Gostaríamos de pensar que ao criar esta grande exposição urbana estaríamos abrindo possibilidades para uma futura Santo Amaro onde os espaços públicos são entendidos como áreas importantes, seguras e que convidam à permanência, diurna e noturna. Onde os edifícios históricos e os lugares de memória se integram à vida cotidiana, são bem cuidados e protegidos pelo poder público e apropriados pela população. Onde a verticalização não é um objeto de especulação imobiliária e gentrificação ou uma ameça ao patrimônio e a substituição dos espaços integrados ao entorno, mas apenas uma forma vertical de cidade.
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