LIBERDADE
Beatriz Santos Simone Brito Vanessa Silva
LIBERDADE A Voz da Revolução Síria
Prefácio Wagner Belmonte Projeto Gráfico Roberto Cetra Fotos da Guerra e Capa Gabriel Chaim Orientador Vanderlei Dias
Santos, Beatriz / Brito, Simone / Silva, Vanessa Liberdade (A Voz da Revolução Síria) São Paulo, novembro de 2014 Brasil Fotografias da Capa: Gabriel Chaim Arte final e editoração gráfica: Roberto Cetra
ÍNDICE
Novos horizontes à prática da reportagem................................. 11 Notas da Revolução ....................................................................... 15 Capítulo 1 ........................................................................................ 17 Capítulo 2 ........................................................................................ 36 Capítulo 3 ........................................................................................ 52 O Ópio da Síria ............................................................................... 68 Sobre a Síria .................................................................................... 73
Dedicado às nossas famílias Daniel Cetra, Daniele Alves, Eliete Alves da Silva, Maria Izabel dos Santos, Nélia Carrer Cetra, Paulo Alves, Roberto Cetra e Valdemar Roldão
PREFÁCIO
Novos horizontes à prática da reportagem
É frequente o debate, principalmente nas faculdades, da premissa segundo a qual o jornalismo deve ser encarado como atividade que se proponha a construir um diálogo real com a opinião pública. Da mesma forma, a lógica dos meios de produção de notícias tem sido acuada pela imprecisão e pelo show e, ironicamente, amplificada pela multiplicidade de maneiras de “fazer jornalismo”. Um ponto é certo: a informação se transforma de modo acentuado e quase tudo é espetáculo. A morte é um espetáculo. A guerra é um espetáculo. O poderio da indústria bélica é um espetáculo. A vida, um acessório... Há quem diga categoricamente que a "grande reportagem", aquela que pressupõe um texto detalhado, com maior profundidade e conexões literárias, está "fora de moda". Nada disso. Eis que a obra Liberdade – a Voz da Revolução Síria estende a mão para quem mais precisa do jornalismo e do papel que se espera do repórter: o público, o leitor, aquele que quer e demanda informação. Ela reúne elementos pelos quais é possível se informar e refletir, nessa ordem e sem pregação, sem apelos. Noticiar, as autoras sabem bem disso, embute apurar e contextualizar. O relato de situações com o objetivo de melhorar a vida das pessoas é
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algo que sempre traz uma contribuição expressiva ao jornalismo e ao maior interessado na qualidade de uma cobertura: o público, novamente. A professora Cremilda Medina, com várias incursões práticas sobre a produção de novas narrativas no meio acadêmico, define a arte de tecer o presente como “uma das respostas humanas diante do caos”. Este livro-reportagem traz histórias de resiliência de pessoas como Ahmad Almazloum, um homem de 28 anos que, brutalizado pela guerra em outubro de 2013, abandonou a família, os amigos e o emprego. Deixou a sua história e o seu passado de dor para trás. Conta também a esperança de Hazem Ezzy Rubino, que adotou o nome de Javier, e só sonha rever seus parentes. Ahmad e Hazem são apenas dois dos mais de 1,2 mil sírios que o Brasil abriga. Ambos são exemplos de pessoas que deixaram a Síria e que, como era de se esperar, não saíram imunes e impunes da guerra civil naquele país; eles perderam pelo menos uma pessoa próxima, tiveram atingidas suas integridades físicas e mentais. Mas, nesse novo caminho num novo País, lutam para seguir em frente, se adaptam com as forças que têm e que constroem a cada dia. Eles estão reescrevendo a própria história e este é o maior legado da obra que você comece a ler agora. Ao todo, entre 2011 e 2014, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), 162 mil pessoas vítimas da guerra - entre elas mais de 53 mil civis - morreram na Síria. A guerra é um jogo pago com vidas. Vidas que luta-
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ram, a princípio, por um ideal que lhes fora ceifado: a liberdade. O trabalho de Beatriz, Simone e Vanessa é um alento e traz esperança a quem espera um jornalismo mais solidário, mais humano e mais livre, com o compromisso único e real de funcionar como um instrumento para construir um mundo melhor. Mesmo que o ponto de partida para isso seja apenas restabelecer a voz de quem só sonha com a liberdade e conhece bem o sabor da arbitrariedade e da opressão. A vida não é um acessório e o jornalismo que a percebe assim, como o que Beatriz, Simone e Vanessa buscaram, torna mais possível compreender o “nosso tempo”.
Wagner Belmonte, 45, é jornalista.
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Notas da Revolução
Um músico e poeta de cabelos negros, pele branca, um pouco mais de trinta anos. Em sua face permanecia um semblante de preocupação com o que os seus olhos estavam vendo. Na sala de sua casa havia apenas os móveis para compartilhar toda a sua tristeza e a sua arte para expressar a guerra, em meio àquela ditadura que não o permitia falar sobre suas ideologias. Em frente à televisão percebe que a Síria não é mais a mesma. Os tanques de guerra invadiram a cidade, pessoas mortas, casas bombardeadas. Já não se respira mais paz, nas ruas o medo é constante. A opinião abafada por uma ditadura. As pessoas iam às ruas protestar por uma liberdade em um lugar que jamais existiu. Haviam de pagar um preço por isso. Suas vidas eram o alvo. A música era um meio perfeito para reivindicar. E finalmente, lançar-se em uma esperança de um dia poder falar. Sentado na ponta em um grande sofá branco, o músico pousou sua mão no queixo, enquanto assistia na televisão, os homens do exército com suas máscaras de gás lacrimogêneo, grandes armas que talvez nem suas mãos conseguissem carregar. Mas o peso da guerra era mais que isso. Vidas tiradas, direitos humanos violados e nenhuma liberdade de expressão.
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Somente as partituras compunham essa solidão temporária. As notas gritavam ao sair do piano. A Síria permanece calada há mais de 40 anos.
Referência à música de Malek Jandali, pianista e compositor Alemão que cresceu na cidade de Homs, que acredita em um futuro de liberdade para Síria
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1 Ahmad Almazloum é um homem alto, de sorriso grande, olhos castanhos pequenos que se perdem em sua face oval. Aos 28 anos, aparenta ser intangível. Sua tristeza fica obscura ao estampar em sua face um largo sorriso bonito e simpático. A guerra civil na Síria o trouxe para o Brasil, embora não tenha sido uma escolha premeditada. O caminho trilhado em busca de refúgio somam inúmeras tentativas, levando-o na contramão de seus sonhos. Nossa primeira entrevista oficial foi na Mesquita da região do Brás, no Centro de São Paulo. Era um dia comum no local, muçulmanos e refugiados iam e vinham, uns para o Salat, a oração feita cinco vezes ao dia pelos praticantes do islã. Outros para as aulas de português, oferecidas em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e com a ajuda de voluntários. Começamos por volta das 21h, o rapaz nos guiou até o segundo andar do prédio, lugar em que fica a cozinha e um espaço de confraternização com mesas redondas distribuídas pela sala. Ostentava uma postura esguia e um belo sorriso, porém, seus olhos ainda resguardavam um misto de dor e abandono. Vestia uma camiseta verde e amarela, da seleção brasileira, pouco depois do Brasil perder o jogo para a Alema-
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nha na Copa do Mundo. Talvez fosse por causa da fama do futebol no Oriente Médio. Talvez fosse mero acaso. “Gostaria de nos contar sua história na guerra?”, perguntamos-lhe. “Sim, tanto faz, as pessoas precisam saber o que está acontecendo lá na Síria”. Ele muda a entonação da voz e faz uma careta, suspira profundamente, como se tivéssemos tocado em uma ferida aberta.
... Era um sábado quente do mês de agosto quando nos encontramos com Javier pela segunda vez. Tínhamos nos conhecidos meses atrás, numa palestra em uma livraria da Vila Madalena. Trocamos contatos e, por fim, marcamos a primeira entrevista na casa do jovem, no bairro do Campo Limpo, Zona Sul da capital paulista. Chegamos às 19 horas e fomos convidadas a entrar. Javier tem um semblante tímido e grandes olhos castanhos, que parecem esconder um mistério que não somos capazes de identificar. Tem estatura mediana, pele amarronzada e cabelos negros, que um dia já foram compridos. Seus traços ainda não revelam os 29 anos de vida que ele tem. Apesar de já ter viajado bastante, aparenta-se curioso para descobrir o mundo. Sua orelha leva um singelo brinco, seu braço esquerdo exibe uma tatuagem do Che Guevara e sua perna, do mesmo lado, uma corrente quebrada. Seu nome de batismo é Hazem Ezzy Rubino. Mora com sua esposa brasileira, Roseli, e Bernardo, o filho da
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moça. Uma parte do seu passado ele tenta esquecer, pois há coisas que o tempo jamais será capaz de curar. Sobre sua infância nunca saberemos, metade de suas experiências vividas durante a guerra estão aos poucos sendo relembradas. Mas o futuro de Javier nem ele sabe. A esperança de rever sua família é muito viva dentro dele. Seu olhar guarda uma tristeza que seu sorriso esconde, mas fica perceptível o êxito em compartilhar experiências vividas no Oriente Médio. O semblante muda ao falar de Síria. Seus olhos ficam tristes, más lembranças são desenterradas de memórias de um tempo em que não podia expressar os pensamentos, sem sentir medo do que lhe podia acontecer. A vontade de ir para qualquer outro país era evidente.
... No início dos anos 80, na pequena cidade de AlKessweh, na Síria, as senhoras Assia Shakkothman e Zahra Kaddour conversavam sobre o matrimônio dos filhos. “Por que não casar os dois?”, as famílias diziam animadas com a oportunidade de realizar um bom casamento para os jovens. Depois da decisão dos pais, Iyman Alghothani e Abdul Sattar Almazloum tiveram a oportunidade de se conhecer e, assim, concordar com a futura cerimônia. Meses depois, no ano de 1985, passariam a dividir a mesma casa na cidade de Daraa, onde Abdul trabalhava como mecânico de carros grandes. A felicidade do casal completou-se em 1986, com o nascimento do filho mais ve-
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lho, Ahmad, cujo nome seria uma homenagem ao pai de Abdul. No ano seguinte viria o segundo filho, Moath, e, em 1991, Ammar Almazloum. Viviam numa casa grande, cercada pela natureza, com direito a árvores frutíferas, uma horta e flores. As crianças se divertiam no parquinho, jogavam futebol e brincavam de esconde-esconde. Antes de ir para a escola, Ahmad aprendeu com sua mãe algumas letras. Aos seis anos, foi pela primeira vez ao colégio. Estava acostumado a ficar com sua família e se assustou com a quantidade de pessoas novas, o que o fez chorar e ir embora mais cedo. Com o passar do tempo começou a tomar gosto pelos estudos. Suas notas sempre foram boas, apesar de às vezes faltar para passear com os amigos e brincar. Em 1996, a família celebrou a chegada da primeira menina, Rama. No ano seguinte, nasceria a caçula Réêm. Como manda a tradição, todos os filhos de Eman e Abdul nasceram em Al-Kessweh, onde a mãe teria amparo dos familiares na hora do parto e nos primeiros dias de vida dos bebês. Nas férias, sempre voltavam à cidade, onde ficavam na casa das avós. Aos finais de semana, era comum visitar o sítio da família, onde juntos brincavam na piscina e aproveitavam a natureza. Quando entrou no ensino médio, Ahmad começou a fazer academia e conheceu uma nova paixão: o basquete.
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Todos os sábados, o menino combinava com os amigos de jogar à tarde. Passava horas praticando o esporte, que fazia questão de ganhar. Além dos momentos com os amigos, outros bons eram vividos com a família. Lembra-se de uma vez, aos 17 anos, quando os cinco irmãos e os pais foram a um lago que ficava perto de casa. Chegaram cedo e tiveram um bom dia, onde puderam conversar e brincar. O segundo grau chegou ao fim e, agora, Ahmad se preparava para o vestibular. Nas férias, fez um curso para conhecer a prova e aprender as matérias que poderiam cair. Durante o tempo de preparo, organizou todos os seus horários: tinha hora para acordar, comer, estudar, ir à academia. Uma rotina que o ajudava a se concentrar para um momento que seria decisivo em sua vida. A organização o ajudou a mudar também a sua aparência. Já não era mais gordinho e todos se impressionavam quando o viam. “É o Ahmad mesmo?”. “Não, metade de Ahmad!”, sempre respondia o jovem, com bom humor. Queria seguir a profissão da área de engenharia da computação, mas sua nota no vestibular não o permitiu que fizesse. Tirou uma nota boa: faltaram apenas doze pontos para a nota máxima. Decidiu, portanto, cursar engenharia biomédica. No dia 15 de setembro de 2004 começaria uma nova etapa: a primeira graduação na Faculdade de Engenharia Mecânica e Elétrica - Departamento de Engenharia Biomédica, em Damasco.
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... Aos 20 dias de abril de 1985, a cidade de Al-Sweida recebia um novo habitante. Jehad Ezzy e Majdoleen Abu Hassoun, pais de Samah de oito anos, Inas de seis e o pequeno Mazen, de quatro anos, alegravam-se pelo nascimento do filho caçula. Os avós queriam colocar um nome, mas o casal optou por chamá-lo de Hazem, que significa decidido. A família pertencia a comunidade religiosa drusa, que se diferencia do islã em muitos aspectos, como não permitir o casamento com mais de uma pessoa e nem exigir o uso da burca. Durante a infância, Hazem recebeu os cuidados da sua irmã mais velha, Samah, que era carinhosa como uma mãe. Com o passar dos anos, a afinidade não diminuiu. Já casada e morando em outro local, fazia questão de sempre visitá-la. Entrava direto para a cozinha, abria a geladeira e pegava todas as guloseimas que encontrava. Passava horas conversando com a moça, queria saber tudo de sua vida, como estavam os sobrinhos e as novidades. Fazia isso enquanto comia. Já sua outra irmã, Inas, morava em um local distante e, apesar de sentir saudade, tinha preguiça de ir até a casa dela. Viam-se apenas quando ela ia à casa de seus pais.
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Com Mazen, a relação não era de grande amizade. Tanto que quase não se lembra dos momentos em que viveu com ele ou mesmo não quer recordar o real motivo da falta de empatia entre os dois.
... Em seu primeiro dia de aula, Ahmad já percebeu que sua vida seria diferente dali em diante. Conheceu alguns colegas e foi recebido por um professor, que explicou como seria o cotidiano na faculdade e deu outras informações que os 50 estudantes deveriam saber, como, por exemplo, o sistema de notas. Ao ir para o seu departamento, conheceu as duas pessoas que seriam suas amigas pelos próximos cinco anos. Até o segundo ano da faculdade, participava da maioria das aulas, que eram similares às do Ensino Médio, só que mais intensas. Às vezes, faltava para tomar café, jogar com os amigos ou fazer algo que lhe desse vontade. Em um dia, combinou com alguns conhecidos de ir até uma piscina recém construída no prédio da Universidade. Apenas eles estavam lá. Fizeram churrasco, saladas e muitas outras coisas que garantiram a diversão do dia. Gostava muito das aulas de matemática e programação, por isso, quase sempre seus professores favoritos ministravam essas matérias. Também se alegrava em ajudar os amigos que tinham dificuldade. Quando o procuravam não hesitava em auxilia
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... Dois anos foi o tempo que Hazem aguardou até receber a resposta da bolsa de estudos em Cuba. Depois de toda essa demora, o jovem nem lembrava que, em 2003, tinha se inscrito para ir ao país fazer um curso superior de ciências humanísticas. Inscrevera-se porque acreditava que era algo que poucos queriam: a maioria dos sírios preferia estudar medicina ou engenharia. Preparou-se para ir à América Latina, pesquisou sobre a cultura do lugar, mas com a demora acabou se desinteressando. Foi uma surpresa quando recebeu a ligação que o convidava a ir até a embaixada para retirar o visto. Estava chegando ao terceiro ano do curso de agronomia, que não o agradava, quando lhe deram a notícia. A princípio ficou feliz, mas depois começaram a surgir dúvidas. “O que vou fazer, já estou avançado na faculdade, vou abandonar tudo?”. Decidiu ligar para a mãe, contar a novidade e pedir a opinião. “Esqueça disso, já tem muito tempo”. “Tudo bem, vou fazer os documentos, mas não vou viajar”. Foi à embaixada e no mesmo dia já recebeu o visto. Quinze dias depois embarcaria para Havanna. Com o visto na mão e as malas prontas e pesadas, seguiu no dia 13 de dezembro de 2005 para o frio aeroporto junto com seu pai, o irmão e a irmã. A ansiedade era enorme, já que era sua primeira viagem de avião e a primeira internacional. Despediu-se da família, que sabia que veria o
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menino em breve. Abraçaram-se e, então, seguiu rumo a Cuba. O avião fez uma escala de sete horas em Madrid. Não pode sair do local e decidiu caminhar um pouco. Tentou falar com algumas pessoas, apesar do seu espanhol não ser tão bom. Depois, embarcou novamente e em breve estaria em seu destino. Seu primeiro sinal de liberdade foi dentro do avião. Dois italianos, que também eram passageiros, perguntaram ao rapaz de qual país ele vinha. “Síria”. “Ah, Bashar”, respondeu o senhor, que levou os dedos ao pescoço e fez um gesto como se uma faca estivesse cortando-o. “Sim, sim”, concordou o rapaz, coisa que jamais ousaria fazer se estivesse em sua terra natal. A viagem seguiu tranquila, sem turbulências. Hazem estava acompanhado por outros três conterrâneos quando desembarcou em Havanna. Ao chegarem, ligaram para um sírio que morava há oito anos no país latino e ficou encarregado de recebê-los. Seu nome era Bashar: um respeitoso e conhecido médico da região. Já era tarde quando Bashar chegou e levou os jovens para o local onde eles passariam a primeira noite. Dentro do carro, Hazem observava as ruas de Havanna. Viu um campo de golfe e um cemitério, ao qual faria muitas visitas no futuro. “Era muito bonito, com muitas esculturas. Parecia um museu”, lembraria tempos depois. No dia seguinte, enquanto todos dormiam, levantouse e foi conhecer a cidade. A princípio tudo chamou sua a-
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tenção, em um País com uma cultura diferente, as pessoas, os lugares, as cores, cheiros e aspectos tomavam forma. A teoria se transformava em realidade. Nunca tinha visto o mar. Sentou-se e aproveitou aquele dia para apreciá-lo, debaixo do sol quente de Havanna. Naquela parte da cidade não havia praias, apenas uma avenida que ficava a beira do mar do Caribe. Observou as pessoas e o que mais o chocou, de primeiro, foram os casais se beijando na rua. Na Síria não havia isso. Viu os carros dos anos 50 que ainda rodavam nas ruas da cidade e as belas construções espanholas da época colonial. Tudo era lindo: Havanna tinha um sabor diferente e especial para ele. Ao chegar em casa, descobriu que iria para Pinar Del Rio, que está a oeste de Cuba, onde passaria os próximos cinco meses dividindo a casa com dois companheiros sírios para fazer um curso preparatório e, assim, aprender o espanhol. Foram dias e noites de muito estudo, que eram recompensados com a alegria de conhecer a América Latina e sua cultura. Após finalizar o curso, voltou para a Síria, onde ficou dois meses com a família. Quando retornou a Cuba, descobriu que o campus de sua universidade ficava em Sancti Spiritus, capital da província de mesmo nome. Assim que chegou, foi recebido pelo Decano, que o levou até o quarto que dividiria com outro sírio. Após isso, desceu para conhecer o local onde estudaria os próximos anos. Várias pessoas iam e vinham pelos corre-
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dores, mas uma em especial lhe chamou a atenção. Era um moço vestido com uma camiseta da seleção Argentina, time para qual Hazem torce. “Você é estrangeiro?”, indagou o rapaz. “Sim”, respondeu, de pronto, o jovem sírio. O homem, então, começou a fazer muitas perguntas, o que o deixou atrapalhado, já que seu espanhol não estava tão bom assim. Descobriu que seu nome era Deibis Buchaca. Aquele era início de uma longa amizade. Durante os dois primeiros anos em Cuba, dedicou-se exclusivamente aos estudos. Em alguns dias, chegou a estudar das 8h até às 20h, já que a língua diferente exigia um esforço maior. Além disso, ele não conhecia muitas pessoas no país e, por isso, não tinha para onde ir. Se a dificuldade de Hazem para aprender o espanhol era grande, a dos seus companheiros para pronunciar seu nome ou algumas palavras árabes também não era diferente. Depois de muitas brincadeiras, apelidos e pseudônimos, decidiram dar-lhe um novo nome: Javier. Em seu primeiro aniversário longe da família, ninguém foi parabenizá-lo. Sentiu-se sozinho com seus livros. A leitura começava a ficar cansativa e estava cada vez mais difícil prestar atenção nas palavras que lia. O tédio se instalou naquele quarto. Foi, então, que lembrou que havia uma garrafa de rum guardada do outro lado do aposento. Não tomara antes por achar muito forte, mas, naquele momento, parecia ser tudo o que precisava.
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Atravessou o quarto, pegou um copo e colocou um pouco da bebida. Bebeu até o fim e decidiu repetir a dose. Repetiu por várias vezes, sem perceber que as grossas doses já alteravam seus sentidos, sua visão começou a turbar, a audição se modificar e a tontura, por fim, aparecer – “borracho”, como se diz em Cuba. O que Javier não sabia era que seus amigos lhe preparavam uma surpresa. Algumas horas depois, chegaram ao local e encontraram o jovem sírio bêbado. Ao ver os amigos, pegou dois ovos e apertou contra as têmporas. Em meio a risadas e tonturas, não teve outra saída, foi arrastado pelos companheiros até o banheiro e, após a ducha fria, jogado na cama. Mais um ano havia se passado. Mais um aniversário comemorado.
... A partir do terceiro ano, as matérias começaram a ficar mais pesadas e, então, Ahmad teve que se dedicar mais aos estudos e sair menos com os amigos. Este período é considerado decisivo para todos os estudantes universitários na Síria: é nele que se decide se quer continuar ou desistir. Dos amigos de Ahmad, três acabaram repetindo. Apesar do grande esforço para ter boas notas, foi neste ano que Ahmad viveu um dos momentos mais especiais de sua vida. O final do inverno se aproximava quando conheceu Rama Hadeed, uma jovem estudante de Engenharia de Energia que ele descreve como “um conjunto artístico
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de beleza e graça”. Viu a moça pela primeira vez quando seu amigo, Muhammad Aldakis, tentava conhecê-la, mas não sabia que naquele momento iria amá-la daquela maneira. Marcaram várias vezes de se encontrar para que pudessem se conhecer cada vez mais. Estudavam em departamentos diferentes, mas na mesma faculdade, e pouco a pouco se acostumaram a aguardar um ao outro depois das aulas para ficarem juntos por um tempo. Ele não imaginava que pudesse amar alguém assim ou que pudessem amá-lo do jeito que era. Com o advento da primavera, a relação cresceu e os dois começaram a fazer planos e organizar o encontro com os familiares. Tudo estava muito lindo, até que o verão chegou e, junto com ele, diversos problemas. No final da quente estação, a relação entre os dois acabou. “É como na natureza. As flores crescem, ficam bonitas demais e aí não tem outro jeito. Tudo tem um final, então elas finalmente acabam”.
... A vida em Cuba era relativamente barata. O governo sírio ajudava Javier com uma bolsa que cobria os custos que tivesse no país, já que não tinha como trabalhar devido ao horário dos estudos. A partir do terceiro ano, já conhecia mais pessoas, que sempre o convidavam para visitá-los em outras províncias. Teve a oportunidade de ir a lindas cidades, como Santa Clara, Holguin, Cienfuegos, Camaguey e Ciego de Ávila.
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No tempo em que viveu em Cuba morou em diferentes casas, passando a conviver com pessoas de culturas distintas e interessantes. Morou com um venezuelano, depois com um mexicano e com uma namorada – não deu muito certo, logo o relacionamento acabou. O jeito tímido do sírio fez com que ele conquistasse muitas garotas no período em que viveu na América Latina. Quando tinha um tempo livre, tomava cerveja com os amigos num lugar próximo à universidade. Além de Buchaca, outra pessoa que sempre ia com ele era Duñiesky, seu professor. Os dois homens eram grandes amigos de Javier e, além dos bons momentos, ajudavam-no sempre que ele pedia. Diferente dos primeiros anos, o sírio já não se interessava tanto por algumas aulas. Certa vez, disse ao professor que não ficaria na aula. “Estou passando mal, posso sair para ir ao médico?”. O professor concordou. Então, o moço assinou a lista de presença e saiu da sala. Na verdade, ele só não queria assistir à aula. Foi ao bar, mas não esperava que algum tempo depois o professor passaria por ali e o veria. “Doente, né?”. Quase não dormia: ia para a cama tarde, quando a madrugada já estava se aconchegando. O sol ainda estava tímido quando o despertador o acordava para se levantar, escovar os dentes e se aprontar para ir novamente à faculdade.
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Em todas as suas férias, Javier voltava para visitar a sua família. Naquela época, tinha a liberdade de ir e vir quando quisesse. Só em 2009 foi para um local diferente, o Equador. Escolheu o país por poder entrar sem necessitar de visto e aproveitou a estadia para comprar algumas coisas que seriam vendidas posteriormente na faculdade, era uma viagem a negócios. Ficou uma semana na casa de um amigo e depois decidiu conhecer as belezas do país. Conheceu Ambato, uma cidade localizada no centro do Equador, às margens do rio de mesmo nome, e Baños, cidade famosa por suas fontes hidrotermais de água mineral. Fez uma viagem de 76 km de bicicleta com pessoas que conheceu no próprio país, onde pôde ver a heterogeneidade do Equador: das montanhas cobertas de neve das Cordilheiras dos Andes até o calor da Amazônia.
... As aulas na Universidade de Ahmad costumavam ser práticas, para que os estudantes pudessem vivenciar, de alguma forma, o dia a dia da profissão. Além disso, havia uma preocupação em realizar workshops e outras atividades que ajudassem ainda mais os alunos. No quarto ano, o jovem conseguiu o seu primeiro estágio, no hospital da Universidade de Damasco. Ficou muito contente, já que teria a oportunidade de conhecer os escritórios dos engenheiros e descobrir como funcionava todo o sistema.
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Seu tempo dividia-se entre os estudos, o estágio e, agora, também o seu Trabalho de Conclusão de Curso. Resolveu fazê-lo junto com dois amigos numa área que muito lhe interessava: processamento de imagens médicas. Seu orientador era o Professor Abdel Razzak al-Hinnawi, pelo qual tinha muito carinho e admiração. Quando o prazo para a entrega do trabalho estava acabando, os três meninos correram para conseguir terminar o projeto mas, no fim, tudo deu certo. Em 22 de agosto de 2009, Ahmad e seus companheiros de classe se formaram em Engenharia Biomédica. Todos muito animados comemoraram o encerramento dessa etapa de suas vidas com uma festa recheada de confetes, dança e fotografias para registrar o momento. Naquele dia, viu pela última vez alguns colegas de classe, depois cada um seguiu o seu rumo. Alguns voltaram para sua cidade de origem e a conversa se manteve por redes sociais. Sempre muito estudioso, assim que acabou a primeira graduação, Ahmad já pensou em fazer o mestrado. Inscreveu-se para a difícil prova da Universidade de Damasco e, dias depois, receberia a notícia de que passou no exame como o quarto melhor colocado. Em novembro começou o Mestrado e, em paralelo, um curso de inglês. Para fechar o ano das conquistas, no mês seguinte conseguiu um trabalho na Syrian Medical Services, uma das três maiores empresas de Damasco.
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Em novembro de 2010, Ahmad foi para Florença, na Itália, por quinze dias, para um curso de especialização na área. Estudioso, a explícita felicidade nas fotografias tiradas junto aos amigos durante a viagem, falam por si só.
... A princípio, Javier estava em Cuba sem saber de nada que estava acontecendo na Síria. Soube apenas de algo que tinha acontecido no Egito, mas de qualquer forma não tinha informações. Periodicamente, conversava com os familiares por Skype, que lhe contavam as novidades e falavam sobre a situação da Síria, sem explicar a gravidade da situação por lá. Em seus últimos oito meses em Cuba morou com o casal simpático e acolhedor Clara e Alberto. Os amigos, que não tinham filhos, o tratavam como tal e Javier os considerava seus pais cubanos. Nessa época, estava fazendo o seu trabalho científico, que era obrigatório para que se formasse. O orientador sempre perguntava como estava o trabalho. “Está tudo certo!”, respondia de pronto o rapaz que, na verdade, não tinha nada escrito. Faltava um mês para a entrega do trabalho quando Javier confessou ao professor que não tinha sequer começado a escrevê-lo. Mesmo bravo, o orientador o ajudou
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e, o jovem, passou as madrugadas escrevendo a monografia que seria entregue em uma semana. Em junho de 2011, 14 estudantes se formaram em ciências humanísticas pela Universidade Pedagógica de Sancti Spíritus. Entre eles estava Hazem Ezzy Rubino, que terminou o curso como o segundo melhor colocado entre todos da universidade. A alegria de concluir a graduação era imensa, mas por outro lado, a tristeza batia a porta, já que sabia que seus dias em Cuba estariam chegando ao fim. Na tentativa de continuar em Cuba, ou em qualquer outro país da América Latina, tentou pedir visto para a Jamaica, pois lá eles davam visto de uma forma fácil e barata, apenas U$ 25 dólares. Foi à embaixada do país e, quando estava quase conseguindo o visto, perguntaram-lhe de qual país ele era. “Síria”. “Sinto muito, mas há uma lista de países que não podemos conceder a permissão para ficar no nosso país...”, explicou a atendente. Os sírios não têm acesso a todos os países, principalmente por causa do preconceito que provém da crença de que os moradores do Oriente Médio são terroristas. Quando chegou o verão, começou a se despedir de Cuba. Faltava pouco para seu visto expirar e suas tentativas de permanecer na América Latina falharam. Passou seu último dia triste, mas na companhia dos Buchaca, Pepe, Wichi e Pérez. Não queria voltar para a Síria, pois lá não teria a liberdade que Cuba lhe proporcionava. Além disso, a possibilidade de nunca mais ver seus amigos o assustava.
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Comprou a passagem para a Síria com escala na Rússia, pois era a opção mais barata. Devido a um problema no voo, foi obrigado a passar dois dias em um hotel do aeroporto de Moscou. Tentou ligar para a família, mas a cara ligação internacional caiu sem que ele pudesse explicar que perdeu a conexão. Assim, enquanto Javier estava assistindo ao jogo de futebol entre Argentina e México, que terminou com 4 a 0 para os argentinos, seus pais se preocupavam em casa.
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2 Quando se vive numa ditadura, pouco se sabe sobre liberdade. O que se sabe, na verdade, é o que não se deve fazer, olhar, ou mesmo, tentar. Com o tempo, a repressão passa a fazer parte da vida. O pensamento não pode ser controlado, embora, muitas vezes, fique reprimido nos sentimentos de cada um. A falta de liberdade passa a ser algo normal, mas não para todos. Mohamed Bouazizi era um vendedor de frutas tunisiano. Sem outras opções para ganhar a vida, escolheu esse meio para ajudar a família. Certa vez, policiais exigiram que pagasse propina para que pudesse vender os seus produtos. Ele negou. O seu carrinho foi levado para um prédio do governo. Pediu para que o devolvessem, mas o pedido foi em vão. Um grito de protesto não era o suficiente para apontar essas irregularidades. A atitude, então, foi extrema: decidiu por fim a sua própria vida, ateando fogo em seu corpo em frente ao prédio público. Durante muito tempo, os massacres e os abusos dos ditadores ficavam ocultos. Hoje, nada mais se esconde das redes sociais na internet. A auto-imolação foi o que impulsionou a revolução de jovens que se alastrou do Oriente Médio até o norte da África. As exigências desses povos eram muitas aos olhos dos donos do poder, mas o mínimo necessário para uma
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vida digna: cidadania, melhores condições sociais e uma reforma política e econômica. Os protestos chegaram à Síria. “Fora, Bashar!”, muitos gritavam contra o regime autoritário. Entre as vozes que se ouviam no início, era possível escutar as de Ahmad e Javier.
... Enquanto trabalhava na Syrian Medical Services e fazia seu mestrado, Ahmad morava em al-Kessweh e seus pais e irmãos em Daraa. Sua dedicação e competência o ajudaram a crescer cada vez mais na empresa. Pode, inclusive, viajar por várias cidades de seu país, dando consultoria e fazendo manutenção de equipamentos hospitalares. Em um dia quente de agosto de 2011, participou de sua primeira manifestação. No local, todos os seus vizinhos e parentes estavam reunidos sob a liderança do primo de mesmo nome e sobrenome de Ahmad. Tudo parecia ótimo, ir ao protesto era como um encontro entre amigos. Ninguém imaginaria que o exército começaria a apontar armas, a dispersar as pessoas com bombas e a assustar com seus tanques de guerra.
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... Os primeiros dias de Javier de volta a Al-Sweida, na Síria, foram tristes. Queria voltar para Cuba ou ir para qualquer lugar no mundo. “Não, não quero ficar aqui”, dizia. Seus amigos já não moravam mais ali, cada qual seguiu seu rumo. Quase sempre estavam viajando ou ocupados fazendo outras coisas. A solidão era sua única companhia. Não tinha vontade de fazer nada. Ao chegar em casa pôde comprovar com seus próprios olhos como estava a vida por lá. Sua cidade não entrou no conflito bélico, mas a energia elétrica estava instável, não era possível tê-la por mais de quatro horas seguidas, e não tinha internet. Em alguns momentos, até a água era cortada. As manifestações em Al-Sweida eram rápidas, de cinco a dez minutos, e aconteciam à noite. Aos poucos foi descobrindo o que ocorria na Síria. “O governo resolverá isso matando a todos que não concordam com seus ideais”, pensou, já que ao longo do tempo era assim que funcionavam as coisas no país. Ao saber de tudo, cogitou fazer parte do Exército Livre da Síria - o ELS, que, em sua maioria, eram desertores do governo. Queria isso mesmo sem concordar com os ideais, principalmente por ver tanta injustiça acontecendo. O governo sírio sempre tentou deixar as minorias de algumas religiões fora da guerra. De certa forma, quis proteger essas pessoas, não se sabe exatamente por quais inte-
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resses, a única coisa que se pode afirmar é que Bashar quer permanecer no comando. Os drusos estão entre essas religiões que faz parte da minoria e, por isso, Al-Sweida não entrou diretamente nos conflitos. No início, as pessoas não iam às ruas com armas, porém, depois dos bombardeios, em que o governo sírio armou-se contra a revolução, o povo voltou às ruas. Dessa vez, eles também estavam armados. Armas que foram vendidas para os manifestantes pelos próprios soldados do exército do governo sírio, depois contrabandeadas da Rússia, que para o bem ou para mal, não deseja a paz na Síria, mas também não interfere diretamente, uma vez que depende do gás fornecido pelo governo e da abertura do porto de Tartus no país – caminho usado pela indústria naval. Atiça-se assim a eterna rivalidade herdada da Guerra Fria entre os Russos e Americanos; dissemina-se o ódio do pensamento de serem todos do Oriente Médio terroristas. Por trás disto camufla-se o real interesse: o petróleo, tão cobiçado “ouro negro” do Oriente Médio. Em um dia de verão Javier foi visitar uma amiga. Ao chegar na casa da jovem, ela lhe contou que haveria uma manifestação no bairro Massaken Barzi, em Damasco, que era dominado pelo Exército Livre da Síria. “Quer participar?”, perguntou-lhe. “Sim, vamos”. Às 17h, encontrou-se com a moça, seu namorado e outros dois conhecidos. Juntos, seguiram para o local que estava animado, com cerca de
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500 pessoas que gritavam pelo direito à democracia, direito a ter voz e a ser ouvido. Durante uma hora, todos cantaram contra o regime e Javier segurou a bandeira da Síria que pegou emprestada de um manifestante, enquanto se sentia livre por gritar e falar o que quisesse contra o governo. Na volta para casa, tentava conter toda a emoção que sentiu durante o protesto, já que, se alguém percebesse, ele poderia ter algum problema com o governo. Era novo nas manifestações e, por vezes, esquecia-se que não poderia falar sobre o assunto. Já no ônibus, pediu para que o amigo enviasse a foto com a bandeira e, ao recebê-las, falou algo que dava a entender que participou do protesto. Rapidamente, seu amigo fez um sinal para que ele não falasse mais. Gostou dos bons sentimentos, de libertação, que teve e resolveu ir novamente. Na outra vez, um grupo maior se reuniu em uma pequena rua de Damasco. Era noite e a multidão se apertava entre as casas. Apesar de não haver muito espaço, a sensação de liberdade tomava conta de todos que ali estavam presentes. Pelo menos em um pedaço daquele grande território, o povo poderia se expressar sem temer. O medo sempre foi companhia constante de quem vive na Síria. Não é um ano, dois ou três de ditadura, são 44 longos anos cheios de massacres, torturas, violência e repressão. Um fato marcante, dentre as várias histórias de opressão síria, é o caso do Massacre de Hama, ocorrido em
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1982. A respeito disso, o escritor sírio Mostafá Khalifa disse em uma viagem para a França que o governo al-Assad não lhe agradava. Ao chegar de volta ao seu país, os homens do ditador estavam armados a sua espera. Apesar de ser cristão, foi acusado de fazer parte de um grupo extremista chamado Irmandade Muçulmana. No cárcere, escreveu um livro descrevendo as torturas vividas e presenciadas por ele enquanto esteve preso. Pelos buracos da sala, viu tudo o que aconteceu no local durante os treze anos que permaneceu ali. A obra foi proibida, mas durante a revolução os manifestantes conseguiram fazer com que as pessoas tivessem acesso. Qualquer manifestação artística ligada à política sempre era reprimida pelo governo.
... Ahmad ia às manifestações só para olhar. Os encontros ocorriam preferencialmente às sextas-feiras, dia da congregação para os muçulmanos que se reúnem para adorar o “Deus Único”, segundo os hábitos deixados pelo profeta Muhammad, uma reafirmação da devoção e da fé. Depois da reza no meio do dia, muçulmanos e não muçulmanos se reuniam na rua e caminhavam em forma de protesto. Carregavam cartazes e fotos da repressão do governo contra o povo ou com imagens de pessoas que morreram
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durante o conflito por causa das bombas. As vozes ecoavam contra a ditadura passada de pai para filho. Muçulmano sunita, Ahmad ouviu várias vezes que os praticantes do islã são violentos e bárbaros, ou mesmo, homens bomba e que maltratam as mulheres, entre outras crendices generalizadas. Na verdade, a religião prega o amor e a paz. Os seguidores desse pensamento acreditam no Alcorão, livro de Deus, e na “sunnah”, cujo significado é caminho trilhado, como modelo de conduta dos hábitos de Muhammad, escritos por seus seguidores durante sua vida como mensageiro de Deus.
... A bolsa de estudos em outro país que Javier ganhara tinha uma contrapartida: era preciso prestar serviços para o Estado. Para começar a trabalhar na Universidade de Damasco, precisava passar por um processo burocrático que exigia muitos documentos. Alguns dos que precisava estavam em Damasco e, em uma manhã de um dia quente de maio de 2012, decidiu buscá-los. Ao falar com a atendente, descobriu que os papéis ainda não estavam prontos. “Volte daqui duas ou três horas. A pessoa que tem que assinar não está aqui”, informou. Por volta do meio dia, começou a caminhar pelas ruas próximas ao local, quando pensou em seguir por uma pequena rua. “Não, aqui tem muitas pessoas”, pensou e foi por outro caminho. Quando estava a cerca de 50 metros de distância, uma bomba explodiu na ruazinha. Depois da ex-
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plosão, começaram os tiros. O barulho foi enorme e todos começaram a correr. Não conseguiu pensar em nada, seguiu a multidão que corria, sem saber para onde ia. Quando conseguiu por fim entender o que estava acontecendo, pensou que deveria voltar para Al-Sweida. E foi o que fez. Pegou o ônibus e foi para a casa de seus pais. Nunca mais voltou para buscar os papéis. Em setembro de 2012, Javier começou a dar aulas no instituto de idiomas para estudantes do primeiro ano do curso de Turismo. Para complementar sua renda, decidiu trabalhar como tradutor de capítulos das novelas brasileiras Avenida Brasil e Cordel Encantado. Dedicava as madrugadas a fazer a tradução do espanhol para o árabe de histórias que nunca saberia o final. “Que trabalho chato!”, pensava, já que não se interessava pelo assunto. De domingo a quinta ficava em Jaramana, a 15 minutos da capital da Síria, e aos finais de semana voltava para Al-Sweida. Apesar de estar a poucos quilômetros do seu trabalho na capital, os pontos de controles do exército faziam a viagem demorar mais de uma hora. O deslocamento era tenso e receoso. A qualquer momento, um soldado poderia obrigar Javier a servir ao exército, os homens de Bashar tinham autonomia para fazer o que bem entendessem. Ele temia que isso acontecesse, não queria abandonar sua família para matar inocentes ou, quem sabe, morrer. Certa vez, decidiu ficar em Jaramana, pois o caminho estava muito perigoso. No dia seguinte, uma batalha acon-
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teceu a poucos metros de onde morava. O Exército Livre da Síria queria dominar uma avenida importante, que ligava até o aeroporto e que era controlada pelo governo. Os tanques de guerra chegaram nas ruas e os aviões voavam cada vez mais baixo. Os prédios balançavam muito, como num terremoto.
... Em uma noite, no início da guerra, o céu estava mais escuro que o normal, mas não tinha a ver com alterações do tempo. A negra fumaça que o encobria fora obra do exército de Bashar al-Assad, também, pela falta de energia elétrica controlada pelo governo. As bombas e as explosões nunca haviam chegado tão perto de seu apartamento. Apenas uma das noites que o povo sírio silenciava em alerta, enquanto os militares marchavam vasculhando suas casas – a tensão das armas apontadas pelos homens fardados a mando do Presidente que golpeavam as portas atrás de desertores e aliados do Exército Livre da Síria. Ahmad e seu irmão Ammar Almazloum estavam em um apartamento quando os militares bateram à porta com golpes de fuzil. Os irmãos escondidos dentro do quarto, mal podiam respirar. Permaneceram assim até o momento em que o grupo foi embora. Nas ruas apagadas, gritos de medo e desespero ecoavam nas paredes do cômodo. Um momento ao lado do irmão que o jovem muçulmano jamais esquecerá.
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... Javier gostava de acompanhar as notícias pela televisão e, com o tempo, foi percebendo o quanto elas eram distorcidas. Certa vez, viu pelo canal Al-Jazira um bombardeio em Duna. No outro dia, seguiu para a aula e conversou com um dos seus alunos que moravam no local. “Eu vi na Al-Jazira a fumaça do bombardeio, isso é verdade?”. “Não, isso que apareceu eram pneus que colocaram fogo”, explicou o estudante. Notou que o canal Al-Arabiya, de Arábia Saudita, também costumava manipular as informações e que as emissoras do governo eram as que mais mentiam. Lembra-se de uma vez que muitas pessoas saíram em protestos contra o regime. Dessa vez, a Al-Jazira mostrou o que realmente estava acontecendo. Já o canal estatal disse ao seu público que aquelas pessoas estavam agradecendo a Deus pela chuva. O que acontece é que cada um tem uma política e informa as pessoas de acordo com o que defendem. Há tanta manipulação que uma vez seu amigo, um artista plástico, foi preso. Exigiram que ele dissesse que era um terrorista. Assim, não teve outra escolha a não ser dar um depoimento falso em frente as câmeras, que depois seria noticiado para milhões de pessoas. “Ele não pegava nem em armas, não conhecia armas”, defende Javier. Em outras situações, crianças de 13 ou 14 anos eram obrigadas a falar que seus pais
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as deixavam com outros homens para manter relações sexuais. Em meio às cenas armadas pelo regime, as únicas informações confiáveis vinham das pessoas que trabalhavam com Direitos Humanos. O tempo passara doloroso na guerra civil, a vida em Damasco começou a ficar mais difícil. As explosões de bombas, disparos de arma de fogo, tapete de cápsulas nas ruas, já pertenciam ao cotidiano de quem morava ali. Os olhos de Javier registraram várias vezes as explosões das bombas que estouravam a menos de 50 metros de distância.
... Ahmad nunca teve nada com facilidade. Tudo que conquistou fora fruto de seu esforço e vocação para os estudos, embora, nunca tenha ficado imune aos desmandos do governo. Agora, o conflito tornara tudo pior, com os assassinatos sem precedentes entre os grupos rebeldes e o exército. Foi obrigado a mudar da casa em Al-Kessweh, que fica em média há 20 km da capital, para um apartamento no centro Damasco, onde dividiria o aluguel com amigos. Isso o ajudaria a terminar o curso e ficar próximo à empresa Syrian Medical Services. Estava muito perigoso se locomover por causa das barreiras militares, fora o tempo que perdia no trânsito provocado pelos desvios na rota. Mesmo nas
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cidades que não haviam sido bombardeadas a infraestrutura e os acessos ficaram comprometidos. As vítimas da guerra passaram a ser investigados por rondas do exército até nos atendimentos dos hospitais. Tudo para controlar o fluxo de pessoas e para saber se faziam parte da oposição. Dessa forma, famílias inteiras eram interrogadas ou tinham suas casas vasculhadas pelo regime, em busca de desertores. A guerra é paga com vidas. Vidas essas que lutaram, a princípio, por um ideal que fora arrancado. Todo significado de liberdade de expressão e um futuro democrático se perderam. No papel, as teorias são aplicáveis, os direitos alcançados, as leis cumpridas e a justiça liberada ao povo. Na realidade em que os sírios vivem, a democracia está amordaçada. Infiltrados na sociedade, os homens de Bashar al-Assad descobrem a ideologia alheia, que algum cidadão ousou divulgar os pensamentos contrários ao governo sírio. A tortura vem sem piedade. Vendo toda a injustiça que acontecia no país, Ammar, irmão de Ahmad decidiu lutar contra o regime. Uniuse ao ELS e lutou para libertar seu povo. Morreu em combate, em maio de 2013, vítima de um bombardeio.
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... Na Síria não é permitido falar sobre política. As pessoas do governo estão infiltradas na sociedade, prontas para sequestrar, torturar ou tirar a vida de qualquer pessoa que pronunciar uma frase contra o governo. Javier conheceu muitas pessoas que foram torturadas. A forma como isso vai acontecer depende da escolaridade, da religião, de onde moram e a situação econômica. Entre os amigos, estava o médico Ayham Azoul. Ele cuidava dos feridos, das pessoas que precisavam de assistência em meio a guerra. Esse foi o seu crime. Os soldados o detiveram e começaram a fazer-lhe perguntas. “De qual cidade você é?”, o homem respondeu o nome de uma cidade conhecida por ser aliada do governo. “Como você é dessa cidade e faz isso?”, questionavam os soldados, enquanto o torturavam. “O que você faz na vida?”. “Sou médico”. “Estudou nas universidades do país e está contra o governo?” e, assim, vinha o pesadelo. Ficou catorze meses preso. Quando saiu, encontrou Javier e contou-lhe as histórias. Pensou que sua rotina voltaria ao normal quando, na Universidade, os soldados procuraram-lhe novamente. Os espancamentos começaram ali mesmo, na porta do local. Ainda não tinha se recuperado do trauma anterior e, por isso, sua saúde já estava debilitada. Apanhou até a morte. Outra vez, quatro amigos que faziam parte das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho pre-
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pararam uma comemoração de fim de ano para as crianças que moravam em Aleppo. A festa foi alegre, com direito a música, dança e presente para os pequenos da região. No dia seguinte, uniram-se a outras 21 pessoas, que também participaram do festejo, e decidiram sair para fazer uma manifestação. O avião do governo estava perto, mas eles não perceberam. Quando se deram por conta, os estilhaços da bomba já atingiam todos que ali estavam. Um pedaço acertou o coração de um jovem, que morreu na hora. Os outros três ficaram no hospital por dois meses. Quando se recuperaram, foram até a casa de Javier, em Jaramana. No local, alguns conhecidos aguardavam ansiosos para saber notícia dos três jovens. Depois de algumas horas de conversa, decidiram ir até Al-Sweida fazer um protesto para pedir justiça pela morte do companheiro. Javier tinha medo do que poderia acontecer, mas sentia que era seu dever ir até lá pelo seu amigo. “Ele foi valente, fez algo pelas crianças, por que eu não posso fazer algo por ele que já morreu?”, pensava. As forças do governo logo chegaram e começaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo e depois a atirar. Todos os que estavam no local começaram a correr, mas um dos participantes do protesto acabou sendo preso. Ficou detido por duas semanas, quando saiu, suas costas estavam machucadas, por causa dos choques elétricos a que foi submetido no local. Os artistas também fazem parte do repertório dos torturados pela a ditadura. Malek Jandali é um alemão que
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cresceu em Homs, na Síria. É um talentoso pianista, que tem um interesse especial em música árabe. As entonações das notas que saiam do piano eram muito parecidas com as batidas e vozes do povo sírio, que gritavam nos manifestos que ocorriam nas ruas da Síria. Após participar de um protesto em Julho de 2011, seus pais, Mamoun Jandali e Linah Droubi, foram espancados em sua casa. Durante o momento de terror, os homens ameaçavam e insultavam Malek. Não satisfeitos, levaram alguns dos bens materiais da família. Aos jornalistas, o pianista disse que culpava as forças de segurança síria. Algumas fotos mostrando que o casal de senhores foi brutalmente espancado foram publicadas nas redes sociais. No mesmo ano, em setembro, dois homens armados invadiram a casa novamente. Dessa vez não havia ninguém, pois os pais de Malek Jandali fugiram da Síria após o ataque anterior. Não satisfeitos, os homens levaram consigo todos os pertences que puderam pegar no domicílio. O bombeiro e poeta amador Ibrahim Qashoush, nascido em 1977, de Hama, na Síria, era conhecido por cantar músicas de autoria, das quais zombavam do presidente Bashar al-Assad. “Vamos lá, Bashar, hora de sair”, é um hino que cantava nas manifestações. A garganta do amador poeta foi cortada, suas cordas vocais arrancadas, como punição por expressar suas opiniões em músicas. Em Julho de 2011, seu corpo foi encontrado no rio Orontes.
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Outros artistas também foram punidos por usar a arte para se expressar contra a ditadura. Ali Ferzat, na época com 60 anos, era um cartunista conhecido na Síria por seus desenhos contra o regime. Mas, o que ele não esperava, era que as forças de segurança o espancariam e o abandonariam sangrando em uma estrada. Seus dedos foram quebrados, tudo para que não pudesse mais desenhar.
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3 Tudo parecia uma alucinação ou uma brincadeira de mau gosto em contraste com o que Ahmad havia conquistado até então. O motivo que o levaria a deixar sua terra natal é que, mais cedo ou mais tarde, seria obrigado a servir o exército de Bashar al-Assad. No país, todos os homens, com saúde para tal, devem prestar serviço militar, salvo os que são filho único. A lei permite que enquanto tiverem cursando ensino superior, não precisam se apresentar, porém, a idade limite é de 30 anos. Então com 27 anos, vivendo em um país em guerra, em que pessoas somem sem deixar vestígios ou são silenciadas por meio de ameaças, sem nenhuma desculpa para dar depois que concluísse o mestrado, Ahmad poderia ser convocado a qualquer momento, ou mesmo, levado contra a sua vontade por um militar de plantão. Caso resistisse, a punição seria o cárcere. Sem a menor vocação para empunhar uma arma, seja ela contra ou a favor do governo, a única saída seria procurar ajuda nas fronteiras do Oriente Médio ou se refugiar em um país ocidental. Em fins de setembro de 2013, seus últimos dias na Síria foram de reflexão. Precisava ir, mas os caminhos eram incertos. Ahmad, o primeiro de cinco filhos, antes de partir, jantou com os pais, as duas irmãs e um irmão. Lembra-se da
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mãe ter preparado uma sobremesa da qual gosta, e dela ter chorado ao se despedir, lágrimas que ele mesmo fez questão de tranquilizar. De certa forma, a guerra acabara levando mais um de seus filhos para longe. Assim, também se despediu dos amigos com quem dividia o apartamento, as últimas pessoas com quem falou em território sírio. O medo, a tristeza e a angústia eram eminentes, mas, sabia que deixar a Síria era a melhor opção naquele momento.
... Javier adiou o quanto pode o serviço militar. Uma das saídas encontradas para não fazer parte do exército foi se matricular em um curso de pós-graduação, já que estudantes não são convocados. Inscreveu-se em uma faculdade particular, embora a mensalidade fosse cara. Não corria risco de ser descoberto pelo governo, mas o medo ainda morava dentro dele. Percebeu então que a solução seria sair do país. Preferia pensar que mesmo fugindo, sua família ficaria bem. Na época, por causa do trabalho na Universidade, teve que inventar uma desculpa qualquer para sair sem que ninguém percebesse. Disse ao governo que sua licença não passaria de, no máximo, dez dias. Nunca mais voltou. Javier saiu da Síria em direção ao Egito, a única opção que tinha naquele momento. A dor de sair do seu país era imensa, já que seu destino não tinha nenhum significado para ele. “Será só uma fase, a guerra logo acaba e eu vol-
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to para casa”, pensava. Mas, diferente do que imaginou, a guerra não acabou e ele teve que encontrar um novo lugar para viver. Ao chegar ao Cairo, conheceu Monir, um chefe de cozinha que tinha um pouco mais de 40 anos. Dois de seus filhos se aliaram ao ELS. Com apenas 19 e 22 anos resolveram abandonar seus lares para seguir uma ideologia e pegar em armas, contando com a sorte e a proteção de “Allah” para sobreviver a cada dia em meio aos conflitos. O pai não queria que seus filhos tomassem essa direção, mas não teve como impedi-los, já que os garotos não aceitavam sua opinião. Atualmente, o chefe mora no Líbano com sua esposa e outros filhos. Nos primeiros quatro meses, mantinha-se com o dinheiro que havia guardado. Estava procurando um emprego na sua área quando recebeu uma proposta de um dono de uma ótica para trabalhar no local. Passou, então, a trabalhar doze horas por dia, com apenas uma folga na semana. Javier tem memórias dos seis meses em que esteve no Cairo. Desde o momento em que pisou na cidade não se sentiu acolhido. Os dias se arrastavam. Morar, trabalhar e, de alguma forma, sobreviver no Egito tornara-se uma obrigação. Na ótica, sofreu muitos insultos por ser sírio, druso e refugiado ao mesmo tempo. Alguns negavam-se a comprar com ele. Muitos pensavam que sua presença ali tomaria os empregos dos nativos. Além disso, ele acreditava que os e-
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gípcios não gostavam dos sírios pelo que ouviam da mídia que os manipulavam. Somente as conversas com uma brasileira, de alguma forma, lhe preenchiam. Antes de sair da Síria, sua paixão pela leitura o levou a curtir uma página no Facebook cujo título era “Eu amo Ler”. Na rede social, uma moça lhe chamou a atenção: a paulistana de cabelos negros, lisos e pele clara, Roseli Rubino. Decidiu, então, enviar a solicitação de amizade, que foi aceita pela jovem. No início, falavam-se pouco, mas foi no Egito que o relacionamento se intensificou e eles começaram a namorar e a fazer planos de se encontrar. Em um dia, estava em um restaurante quando ouviu uma pessoa falando em espanhol. Tratava-se de um tradutor egípcio, casado com uma espanhola e que trabalhava no consulado brasileiro. Ao saber disso, lhe contou que queria ir ao Brasil e pediu-lhe a lista de requisitos para poder entrar no país. Ao saber das exigências, descobriu que não estava dentro das condições necessárias para conseguir o visto, pois exigiam comprovante de residência, extrato de conta bancária, e documentos trabalhistas. Para dificultar ainda mais, o visto no Egito estava com a data próxima do vencimento. Após algum tempo, recebeu a notícia de que o Brasil estava facilitando a entrada para os sírios. Foi, então, à Embaixada, entregou o passaporte e cinco dias depois conseguiu embarcar para o país da América Latina.
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... Triste e brutalizado pela guerra, em outubro de 2013 Ahmad abandonara a família, os amigos e o emprego. O primeiro destino foi o Líbano. Durante a viagem de carro, na companhia de Mohammed Eitoni e Ahmad Sawaf que iam a trabalho para o país, teve tempo para chorar e conter o choro. Silencioso, os 55 quilômetros do trajeto levaria, em média, uma hora, mas com as barreiras militares não soube mensurar quanto tempo passou. A guerra civil síria já havia chegado no Líbano antes dele, apesar da curta distância que separava um país do outro, a perspectiva era viver um dia de cada vez. O cenário na capital Beirute também não era bom. Muitos refugiados tentavam naquele momento reestabelecer suas vidas ali, mas as ofertas de emprego eram preferenciais aos libaneses e a moradia limitava-se aos hotéis e comunidades, ou a hospitalidade de um amigo ou parente. Outro problema era a controversa aliança entre o governo sírio e o Hezbollah. Dificultando a estadia dos que escolhiam o país como destino. Milícias locais e membros do exército a mando de Bashar tinham liberdade para investigar e prender a quem bem entendessem. As instituições e órgãos públicos também respondiam à política do Partido de Deus. Nos dois meses e meio que passou no país, ele tentou um emprego em Dubai, mas sem sucesso, a guerra trans-
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formou todos em suspeitos. Chegou a assinar o contrato de trabalho, mas não conseguiu o visto para viajar. O olhar de desconfiança não era só por parte dos países do Oriente Médio. No British Council Líbano em Beirute (IELTS), a Embaixada Britânica, fora recusado para um intercâmbio, não por falta de qualificação, pois já sabia falar inglês. Também pediu refúgio no Canadá e na Alemanha, porém, dessa vez a recusa foi porque a política de acolhimento desses países possui cotas. Na Alemanha, tanto o refúgio quanto uma oportunidade de emprego seria um desejo realizado, pois o país é o mais avançado em tecnologia e pesquisa em equipamentos hospitalares. Além disso, os amigos engenheiros biomédicos, Ferand Dalatieh, Anas Yaghshi e Mohamed Dabileh, estavam instalados em Berlim, e Ahmad Arab no Distrito Duisburg em Düsseldorf, próximo à capital. Pessoas com quem poderia contar. Mesmo antes da guerra, chegou a estudar a língua alemã para poder se estabelecer lá, assim como os colegas de curso. Porém, não deu certo porque ainda não tinha o certificado da língua e nem experiência em um determinado tipo de laboratório biomédico. O tempo estava passando e seu passaporte prestes a vencer. Sem o documento não teria como sair dali e ficaria a mercê das autoridades libanesas. Foi então que soube por meio de Eyad Khauandeh, que se encontrava no mesmo dilema que Ahmad, que a Embaixada Brasileira na capital
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Beirute estava facilitando a entrada de refugiados no país. Eyad escolhera o Brasil porque seria recebido pelo seu tio Yasser Kabbani, já estabelecido aqui. Apenas Ahmad conseguiu o visto de turista. A informação que teve na Embaixada é que quando chegasse ao aeroporto deveria imediatamente procurar a Polícia Federal para se declarar refugiado de guerra. A viagem foi cansativa, o voo que saiu do Líbano fez escala em Abu Dhabi. Na capital dos Emirados Árabes Unidos, teve nove horas para remoer as motivações que o levara a deixar seu país até embarcar com destino a São Paulo.
... Os sapatos novos lhe apertavam os pés, a mochila estava pesada, o sono penetrava seus olhos como areia. Javier saiu do Cairo com destino à casa da brasileira Roseli. O receio era inevitável, mas a vontade de vê-la pessoalmente era enorme. Foram três horas de Cairo à Istambul, onde fez uma escala. Estava com muito sono, mas não encontrou um lugar para sentar no aeroporto. Resolveu andar e admirar as vitrines das lojas. Por sorte, achou um banco sem encosto. A exaustão tomou conta do seu corpo e, então, dormiu sentado. Depois de dez horas de viagem chegou finalmente ao Brasil e desembarcou no aeroporto de Guarulhos. A chegada ao país era um recomeço, já que a experiência no Egito não tinha sido boa. Roseli foi buscá-lo, a emoção do encontro foi
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grande, depois de quase três anos conversando virtualmente se viam pessoalmente pela primeira vez. Javier passou a morar em um aconchegante apartamento com Roseli e Bernardo, filho da moça, no Campo Limpo, zona sul da capital paulista. Na primeira semana não saiu de casa, mas depois pôde conhecer pontos turísticos da cidade, como o Parque do Ibirapuera e o Teatro Municipal. Um dia decidiu ir até a Mesquita do Pari, no Brás, se oferecer para ajudar os refugiados de guerra que estavam ali. A partir do momento em que seus pés pisaram no lugar, os olhares preconceituosos se voltaram para Javier. Estava magro, com os cabelos negros presos para trás com um elástico e a barba cerrada estampada no rosto com olhos expressivos. Mas não foi propriamente sua aparência física que causou espanto, foram suas tatuagens e seu brinco que chamaram a atenção dos praticantes do islã. Características marginalizadas na cultura da religião.
Menino de classe baixa, na Síria, no Equador, em Cuba ou no Brasil, Javier sempre trabalhou e conseguiu seu sustento como pode. Os quatro primeiros meses na capital paulistana foram os mais difíceis, pois não conseguiu emprego. Além disso, no quinto mês, descobriu que a situação da sua família tinha piorado: o problema de falta de água, de energia e alimentos estava ficando mais intenso. Às vezes, passava quatro dias sem ter notícias. As crises de ansie-
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dade, visitas ao psiquiatra e os remédios controlados começaram a fazer parte de sua rotina. Quem o ajudou, mais uma vez, foi Roseli, que esteve ao seu lado o tempo todo. Aos poucos sua vida volta ao ritmo normal. Ainda há ajustes que precisam ser feitos. Começou a dar aulas particulares de inglês, árabe e espanhol, porém ainda sofre preconceito para conseguir trabalho de professor de língua estrangeira. Não perdeu seu espírito viajante, sonha em conhecer os Estados Unidos, a Alemanha, a Argentina e se possível voltar à Síria nem que seja a passeio. Javier conta histórias que já ouviu falar, histórias em que foi o protagonista. Expõe suas opiniões sem medo de alguém estar infiltrado. Sabe que está no Brasil, e a ditadura está bem longe de si. Toda a pressão do governo sírio está distante, mas ainda teme por sua família, também, distante - medo de perdê-los, de acontecer algo e jamais voltar a vêlos. A situação financeira de Javier é complicada para trazer seus pais para o Brasil. Desde que chegou ao país, o jovem sírio não consegue um trabalho fixo. A idade avançada de seus pais também implica na vinda. O arrependimento aos poucos se instala. Se fosse hoje, não participaria das manifestações, pois a revolução se desviou dos objetivos iniciais.
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... Às 20h do dia 14 de dezembro de 2013, Ahmad desembarcou no Brasil. No aeroporto de Guarulhos, já com decorações natalinas, sentia-se perdido como nunca na vida. Não sabia pronunciar uma palavra sequer em português, mas seguiu as recomendações da Embaixada e procurou a Polícia Federal. Dor que não poderia traduzir em palavras. Dúvidas que não seriam sanadas facilmente. O nervosismo foi constante, ninguém no aeroporto sabia falar árabe e poucos falavam inglês. Com a ajuda do amigo Wael Sawan, que mora na França, já havia reservado um hotel na Região da Penha por três dias, tempo que precisava até contatar Yasser Kabbani. Estar aqui significava o abandono forçado de tudo que conquistou. Enquanto esteve no hotel, um funcionário o ajudou a se comunicar e a telefonar para Yasser. O contato o levou até a Mesquita do Brás. Na comunidade muçulmana, muitos viviam e viriam a viver uma situação parecida com a dele. Além da dificuldade de se comunicar, também se tornou vítima da burocracia do Brasil. Com o visto de turista e o protocolo, redigido em um papel sulfite A4, só conseguiu agendar a entrevista para obter a concessão de refúgio em julho de 2014, sete meses depois de sua chegada. A primeira etapa foi se registrar na Cáritas Arquidiocesanas de São Paulo, que é um organismo da Conferência
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Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), independente do governo, embora sejam responsáveis pelo cadastro e agendamento da entrevista dos refugiados na Polícia Federal e no Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), para conseguir documentos como Carteira de Trabalho e o Registro Nacional do Emigrante (RNE). Depois de tudo, quando o jovem muçulmano, por fim, conseguiu o RNE as grafias de seu nome e de seus pais estavam incorretas e invertidas. O documento só chegou escrito corretamente no dia 01 de outubro de 2014. No início do conflito, o governo brasileiro foi muito criticado pela comunidade internacional e a ONU. O visto de turista concedido pela embaixada brasileira, com validade de três meses, acabava por deixar desamparados os refugiados diante das exigências excessivamente burocráticas dos órgãos responsáveis, como comprovação de renda para alugar uma casa ou documentos para abrir uma conta bancária, impossíveis para alguém que acabara de chegar de um país em guerra civil. A situação só melhorou devido aos esforços do Projeto Oasis, criado pela Liga da Juventude Islâmica do Brasil, com sede na Mesquita do Pari, e a ONG de Política Internacional Conectas que conseguiram ajuda da Prefeitura da cidade de São Paulo para pensar saídas diante da complexidade em atender as vítimas da guerra. A partir daí, uma vez que cruzassem a fronteira da Síria para cá, já seriam considerado automaticamente refugiados.
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Em apenas 10 meses no Brasil, Ahmad já fala português muito bem, com poucas limitações no vocabulário. Atualmente trabalha na Mesquita como auxiliar do Amer Mohamad Masarani, da Liga Islâmica de São Paulo, ajudando outros refugiados a se comunicar e a entender como funcionam as leis aqui. Assim, lida com a questão do passaporte na Polícia Federal, autoridade migratória, e o processo para conseguir o RNE, junto ao Ministério da Justiça. Ahmad nunca tinha tido tanto tempo livre para fazer um trabalho voluntário. Encontrou nessa função uma forma de superar a falta que o faz estudar. Pode ajudar a pessoas que, como ele, precisam se reestabelecer. A falta de informação sobre a guerra, não é algo essencial no seu dia a dia aqui. Não enxerga a necessidade de acompanhar os acontecimentos, pois acredita que a imprensa não reporta mais como se encontra a atual situação da guerra civil da síria. Os jornalistas não captam as principais informações sobre o que ocorre com as pessoas naquele país e a imprensa mundial não está preparada para cobrir uma guerra. As informações não chegam às caixas pretas das salas de estar nos quatro cantos do mundo – e a manipulação está a serviço, principalmente no Brasil. A palavra central resume-se a impactante ou estatística. A religião é usada como escudo para guerrear, mas por baixo da ditadura, são os propósitos econômicos, políticos e relações comerciais que prevalecem.
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... Cinco amigos de infância acompanham a rotina de Javier por meio das redes sociais e grupos em aplicativos no celular. São amigos que estudaram com ele no ensino fundamental, já que brigas e futebol fizeram parte da sua vida quando era criança. Um deles Javier o apelidou de “Martelo”, pois quando menino tinha a cabeça muito grande que lembrava a ferramenta. Atualmente, Martelo mora na Itália. Dois amigos estão na Síria e outro no Canadá. Por causa do fuso horário, as mensagens no grupo dos amigos começam a chegar para Javier às quatro horas da manhã, horário de Brasília. “Vocês não me deixam dormir!”, manda para eles assim que acorda, sempre em tom de brincadeira. Javier não será registrado como refugiado aqui no Brasil. Ao procurar a Polícia Federal para dar entrada no pedido do seu protocolo foi orientado a solicitar a permanência definitiva no Brasil, já que estava casado com a Roseli. Mesmo se não tivesse começado a guerra, não queria permanecer na Síria. Viver na América Latina era algo que sempre lhe passou pela mente. O grande problema, no entanto, é não poder voltar para ver a sua família. E nem saber se um dia poderá vê-la novamente.
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... No domingo do dia 14 de setembro de 2014, Ahmad estava empolgado para ir ao parque Villa Lobos. Desde que saiu de Damasco não jogara mais basquete, seu esporte favorito. Aos 9 anos jogava na escola e em clubes de inserção ao esporte e à cultura, similares ao SESC aqui, embora nunca tenha praticado profissionalmente. O céu estava azul celeste - impressão típica de quem vive em grandes cidades, em que saímos do transporte caótico, do barulho e entramos em um espaço de natureza, em que podemos relaxar e se exercitar. Até o som do farfalhar das árvores com o vento passam a ter um valor especial, sobretudo para o rapaz que a muito não compartilhava um momento de lazer. Naquela tarde de sol, famílias passeavam, muitas crianças corriam e jogavam bola, casais de namorados e esportistas se permitiam sair da rotina da metrópole, cada qual com sua história. Aos poucos, o jovem sírio conversava com os brasileiros que se revezavam para a partida na quadra de basquete. Até um simples jogo sofreu alterações na vida de Ahmad. Durante a conversa a compreensão se instalava aos poucos e driblava as tristezas, mas era nítido que certas perguntas lhe feriam. Toda sua rotina fora modificada, mas nunca deixou de sorrir ao narrar suas histórias.
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Apesar de ter saído da casa dos pais e vivido muitas coisas, ainda hoje não queria estar longe de sua família, de seu país e da vida confortável que tinha. A guerra na síria o obrigou a abandonar sua cultura, seu emprego, seus familiares, para sobreviver. Porém, hoje ele não pode mais voltar para casa chorando por querer ficar ao lado da mãe como quando era criança. Lembra-se de Reem, a irmã brincalhona, e de como tentava irritá-la com o seu jeito perfeccionista e reclamão. Sempre gostou de ajudar as pessoas, com seus irmãos não era diferente, seu jeito altruísta falava mais alto. Costumava auxiliá-la nas lições de casa, principalmente de matemática. A relação com seu irmão mais novo, Ammar, de 22 anos, sempre foi de pura descontração. Em festas familiares ou no dia-dia, Ammar era um rapaz que gostava de brincar, conversar e assim torna a vida mais leve. Atualmente, o outro irmão, Moath, mora na Turquia e também está aliado ao ELS. Apesar da distância, Ahmad o aconselha a abandonar o grupo para que não aconteça a mesma tragédia que ocorreu com Ammar. A irmã Rama, 18 anos, sempre foi boa nos estudos e conseguiu uma boa pontuação para entrar na universidade. Apesar da afinidade que tinha com todos os irmãos, a timidez de Rama fazia com que se distanciasse um pouco por não haver brincadeira, ou mesmo, pequenas brigas como na relação de Ahmad e Reem, 17 anos, a caçula. Certos sentimentos Ahmad ainda não sabe em português - os diversos significados daquilo que se passa dentro
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dele está em processo de aprendizagem. Ao falar de seus quatro irmãos, o tempo presente passa, o silêncio cobre os espaços entre uma frase e outra. A tristeza se instala novamente. O olhar distante viaja, mas por mais difícil que seja, tenta relembrar os momentos com seu irmão de cabelos e olhos negros e cada qual com seu jeito de ser. O rapaz narra sua trajetória de perdas e incertezas com a maturidade e sabedoria. Sobre seu futuro, apenas deseja, um dia, rever seus pais e irmãos, também, voltar a estudar. Tanto faz se for aqui ou em sua terra de origem. Alimenta-se da esperança de que um dia a guerra se dissipe, porém, não seja algo acredite de verdade.
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O Ópio da Síria A música é uma abstração, uma vez composta e reproduzida, a experiência sonora é concebida rapidamente, de formas diferentes, no imaginário de cada um de nós. Para cada momento da vida, há sempre uma canção que nos invade. Já, ler um livro é, quase sempre, uma escolha, mais que isso, pode ser um reconhecimento. Momento em que vivemos uma história que não é a nossa. Se não tiver qualquer significado para o leitor, a obra acabará corroída pela poeira do tempo em uma estante. Escrevemos isso ao som de Freedom Qashoush Symphony, interpretada pelo pianista Malek Jandali, cujo significado remete a revolução síria. A canção narra a busca pela liberdade sem precisar da pauta, da apuração e das fontes exigidas no jornalismo, mas mesmo assim descreve com a riqueza as dores vividas na guerra. A princípio, a manifestação era um motivo de orgulho. Jovens estudantes davam voz às reivindicações de muitos cidadãos - liberdade de pensamento, expressão, política e religião. O povo creditou sua fé na possibilidade de igualdade; o alívio da dor e da ausência de direitos provocados pela ditadura de Assad. Assim, o ópio da revolução síria. Primeiro a sensação de felicidade e entorpecimento. A busca pela primavera Árabe foi ao mesmo tempo a cura e o vício - ninguém poderia
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imaginar que de uma flor que nasceu tão bela sairia um veneno, ao mesmo tempo, tão doce e fatal, que, independente das motivações, acabaria em destruição. O grito que se ouve aqui no ocidente é Allah Akbar, Deus é grande, na revolução e na guerra. Guerra esta que ninguém consegue enxergar um fim, assolados pela violência, que não são alheias à religião. Assim, diferentes grupos usando os princípios das leis islâmicas, ou não, invadem, corrompem e matam tanto quanto o governo, por interesses, também, alheios à religião. Agora as oposições são tantas que os militares de Assad, muitas vezes, apenas se defendem - ataques em que todos contra todos tentam tomar áreas com algum valor econômico e estratégico. A possibilidade de um acordo não existe mais. Nessa disputa por poder, o Exército Livre da Síria que, em sua maioria, eram desertores do governo, perderam-se na busca por justiça e democracia. Agora, protegemse dentro de algum perímetro tomado pelos próprios punhos armados. Quem não tem opção, vive à margem dos direitos básicos sociais em campos de refugiados ou nas fronteiras, como no Líbano ou na Turquia, esperando ajuda humanitária – esperançosos que um dia possam reconstruir suas casas e cuidar de seus filhos. Quem tem opção de ir embora e é contra a política de Assad, a muito partiu do país. Ahmad e Hazem são exemplos dessas pessoas que deixaram a Síria. Contudo, ninguém sai imune da guerra civil, todos perderam pelo menos uma pessoa próxima a
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quem amava. Alguns perderam a integridade física e mental – coisas difíceis de devolver. Os jovens, agora na condição de refugiados no Brasil, escondem muitas histórias. Histórias que a imparcialidade que reza o jornalismo não pode contar sem silenciar um instante. É nesse intervalo de tempo que calamos a objetividade e seguramos o choro.
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Sobre a Síria A Síria já foi berço de muitas civilizações. Já fez parte dos impérios persa, macedônico, romano e árabe e esteve sob o domínio do império turco otomano de 1516 até a derrota na Primeira Guerra Mundial, em 1918, quando teve seu território dividido entre a França e a Inglaterra. Permaneceu assim até obter independência em 1946. O território que compreende o país atualmente foi a parte que pertenceu aos franceses. Está localizado na Costa Leste do Mar Mediterrâneo em uma estratégica região banhada pelo rio Eufrates. A natureza é, ao mesmo tempo, montanhosa e desértica com uma zona de estepe que favorece a agricultura. Essa posição geográfica lhe rendeu muitos conflitos políticos, étnicos e religiosos, que variam desde o uso de recursos a limitações territoriais nas fronteiras, pois se encontra bem no meio entre Turquia, o Iraque, a Jordânia, o Líbano e Israel. São mais de 40 anos sob regime de opressão, desde que Hafez al-Assad, pai do atual Presidente, Bashar alAssad, assumiu a política da Síria, em 1971, com um golpe de Estado promovido um anos antes. Um dado importante para destacar é que o regime em ambas as gestões é representado por uma minoria da religião islâmica, a alauíta. Estes acreditam que a permanência no poder é algo imprescindível à sobrevivência do grupo.
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Apesar disso, ainda é um dos poucos países de raiz islâmica do Oriente Médio que permitem que os cidadãos sigam outras religiões: Cerca de 90% são praticantes do islã, das ramificações sunitas, a maioria no país, xiitas, alauítas, da etnia curda e drusa, o último se diferencia dos demais por não exigir o uso da burca, nem a prática dos cinco pilares do Islã (o testemunho, a oração feita cinco vezes o dia, a esmola, o jejum feito no nono mês do calendário islâmico e a peregrinação à Meca daquele que disponha de condições para tal). Os outros 10% são de comunidades cristãs. A hegemonia al-Assad detêm cargos no governo, melhores empregos e bolsas de estudos. Situação em que absolutamente ninguém, até o início da Primavera Árabe, em dezembro de 2010, poderia falar de política, questionar direitos civis, ou mesmo, reivindicar uma possível democracia. A falta de transparência do governo durante o período de votação garantiram a sucessão à presidência para Bashar alAssad, após a morte de seu pai, em 2000, e sua reeleição em 2014, em plena guerra civil. O que mudou hoje, no contexto da ditadura, é o alcance dos meios de comunicação. Basta uma pessoa presente com recursos de áudio e vídeo para relatar um fato a milhares de pessoas em tempo real. Diferente de 1982, ano em que ocorreu o Massacre de Hama, uma pequena cidade da Síria composta por muçulmanos sunitas, em que a população foi quase dizimada pelo ataque promovido pelo governo e praticamente ninguém no mundo ficou sabendo. Nessa época os meios de comunicação não obtinham a mesma
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tecnologia atual, que permite narrar e compartilhar nas redes sociais o que acontece a quilômetros de distância. No início da Revolução Síria, o calor das manifestações atiçou o desejo por liberdade e pela deposição de Bashar. Os principais oponentes do regime eram cidadãos que se uniram a militares desertores do governo - formava-se o Exército Livre da Síria (ELS). Mas, violência por parte do governo durante os cortejos da revolução na primavera árabe tornou a Síria um alvo fácil e frágil, despertando a ira e o interesse de outros grupos, com razões que vão desde religião a disputas territoriais e econômicas. De março de 2011 até novembro de 2014, a guerra civil na Síria completa mais de 3 anos, sem a perspectiva de um acordo. O grito de liberdade deu lugar ao grito de dor - a luta agora é por sobrevivência. A razão inicial dos que se aliou ao ELS se perdeu no caminho que, largados a própria sorte, tornaram-se também algozes da destruição na Síria em meio aos diversos grupos que ali se instalaram. O que sobrou da revolução foram as vozes ouvidas por meio da imprensa no mundo todo, se são ouvidas ou não, algumas vezes resultam em trabalhos como o do fotojornalista Gabriel Chaim, autor da imagem da capa, e em trabalhos como este livro reportagem cujo objetivo é retratar a dor e a coragem das vítimas da guerra.
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Ahmad Almazloum, no dia da visita ao Parque Villa Lobos.
Javier Ezzy Rubino em foto de arquivo pessoal.
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