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Samba registra a pandemia da covid-19 como fez com a Gripe Espanhola
O SAMBA ENSINA Símbolo da identidade nacional, gênero vem registrando a pandemia da covid-19 como fez com a gripe espanhola GABRIEL DIAS COLABORAÇÃO PARA SPLASH, DO RIO
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O samba e a morte
Não conseguimos fazer o gurufim do Nelson Sargento. O lamento é de Pedro Miranda, direto de Palmares, bairro de Paty de Alferes (RJ), onde está isolado com a família. Por "gurufim", o cantor e compositor carioca refere-se à festa que se dá nos velórios dos sambistas que fizeram história em vida. No gurufim, os familiares e os amigos bebem e cantam para espantar a dor e garantir a partida tranquila do poeta que se foi. Hábito bem comum no Rio de Janeiro pré-pandemia do novo coronavírus.
O samba tem isso de cantar a dor com alegria. Mas, atualmente, está difícil para o mundo do samba. Nelson Sargento não conseguiu morrer de velhice e foi uma das mais de 500 mil vítimas da covid-19 no Brasil. No mesmo dia 31 de maio, Dominguinhos do Estácio teve hemorragia cerebral e também se foi, deixando cinco filhos e um samba concorrente para a Unidos do Viradouro em 2022. Por acaso, a escola desfila no ano que vem com o enredo "Não Há Tristeza Que Possa Suportar Tanta Alegria", relembrando o maior Carnaval da história, o de 1919, depois que a cidade do Rio viu a cara da morte de perto com a gripe espanhola. Será que, com tanta tristeza, os sambistas de hoje conseguem escrever sobre a felicidade? Vamos desbancar o título do Carnaval de 1919 e fazer história na avenida no ano que vem ou vamos lidar com o luto no Sambódromo? Voltemos mais atrás...
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A bailarina O jornalista David Butter é muito incisivo quando fala sobre a gripe espanhola: "O Rio de Janeiro viveu, de 15 a 20 dias, uma descida ao inferno. Ao inferno". Ele acaba de escrever um livro sobre o Carnaval de 1919, em que a população do Rio de Janeiro descontou a dor das perdas e viveu a folia como se não houvesse amanhã. A gripe espanhola desembarcou no Rio de Janeiro em setembro de 1918 a bordo do navio britânico Demerara, que veio de Lisboa e fez escala em Dakar, no Senegal. Os primeiros casos apareceram no início de outubro do mesmo ano. Em apenas um mês, cerca de 60% da população carioca (que era de um milhão de pessoas) se contaminou. De 12 a 15 mil pessoas morreram vítimas da
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doença —dados que David acredita serem muito maiores, pois dificilmente abarcam a periferia e as zonas rurais daquela época. da identidade nacional, gênero vem a pandemia da covid-19um comoretorno fez com aagripe espanhola mesma forma que a tragédia seregistrando impôs, se impôs também algum tipo de Mas, daSímbolo
normalidade.
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David Butter https://www.uol.com.br/splash/reportagens-especiais/o-samba-da-pandemia/#cover
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Com o fim da Primeira Guerra Mundial e a diminuição dos casos de gripe espanhola na cidade, outros assuntos já pulsavam no fim de 1918. "As batalhas de confetes estavam ocorrendo, havia um debate político muito intenso sobre a eleição presidencial que viria, houve uma insurreição anarquista no final do ano... então, quando chega o Carnaval de 1919, é como se tudo já tivesse aterrissado".
O alívio Apesar das cenas horríveis de carroças transportando os cadáveres que se espalhavam pelas ruas da então capital federal, o luto foi um assunto pouco abordado no Rio após a gripe espanhola. Um grupo carnavalesco da época, chamado Zuavos, fez o seu primeiro grande desfile no Centro em 1919 e trouxe pontualmente um carro alegórico simulando uma daquelas carroças. "Isso foi algo recebido com impacto nos jornais da época. Uns acharam incrível, outros acharam de péssimo gosto", diz David.
O que dominou o mundo do samba foi o alívio, a alegria e muito sarcasmo. Na Festa da Penha de 1918, que foi parcelada em outubro e dezembro por conta do apocalipse, o compositor Caninha lançou um maxixe chamado "Gripe Espanhola". Virou, claro, sucesso no Carnaval do ano seguinte:
A Espanhola está aí / A Espanhola está aí / A coisa não está brincadeira / Quem tiver medo de morrer não venha / Mais à Penha Em Madureira, um bloco chamado Miséria e Corda também ironizou:
SAMBA doente / VouENSINA interná-la num hospital / Dando-lhe o chá bem Meia-noite vai bater / Minha sograOestá quente / Fico livre do animal
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COLABORAÇÃO PARA SPLASH, DO RIO O bloco tinha esse nome porque fazia alusão à Santa Casa da Misericórdia, o principal destino da população pobre quando
acometida de alguma doença. E o tal "chá" era o famoso "chá da meia-noite". Butter contextualiza: "Corria a lenda de que, na Santa https://www.uol.com.br/splash/reportagens-especiais/o-samba-da-pandemia/#cover
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Casa, se dava um chá, o chá da meia-noite, para 'despachar' os pacientes mais graves e liberar vagas de enfermaria. Essa imagem circula com muita força no Rio de Janeiro".
O samba e a covid-19 Com a pandemia de covid-19 completando um ano e três meses no Brasil e o país se tornando o epicentro global do coronavírus, a
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realidade não é lá um bom estímulo para os compositores. "Há o bloqueio criativo. Muita gente está bloqueada mentalmente nessa pandemia", relata a sambista Teresa Cristina, coroada "rainha das lives" durante a pandemia.
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Mas, além documentar o atual momento por meio de lives, a artista está escrevendo a história em versos, como fez na música GABRIEL DIAS "Gatilho", em parceria com Moyseis Marques:
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Meu samba se confinou / Batuque foi de panela / Saudade do meu ioiô / Que eu vejo por trás da tela. A canção de Teresa respeita o isolamento. Para ela, se posicionar diante do atual contexto do Brasil é um ato urgente:
A mensagem do samba é política. Isso [compor sobre a pandemia] me deixa contente, realizada, porque o samba não é só para regozijo e alegria. Ele dá um conselho, conta uma experiência: sobre a vida, a verdade, a liberdade e a integridade.
Pedro Miranda foi outro que registrou a quarentena na música "Vontade de Sair". Agitador cultural no bairro da Gávea, na zona sul do Rio, ele diz que o samba nasceu de uma angústia natural do momento:
É mais legal quando o artista não tenta fazer uma coisa política. Ele está simplesmente botando as coisas para fora. 'Vontade de Sair' não é sobre política, mas é sobre política. Meu corpo político é tão espontâneo quanto a música que eu faço.
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Documento histórico Moacyr Luz é um sambista que sempre se dedicou a escrever sobre a alma encantadora das ruas. Mas, no recente álbum "Jogo de Cintura", em que o cantor Douglas Lemos interpreta suas letras, há um quê de penumbra e solidão em suas composições:
Como eu não podia sair, esse assunto me faltou na cabeça. Então, eu comecei a botar para fora o que eu tinha. Eu falo pouco de mim, prefiro falar dos dramas sociais dos outros. Mas tive que abrir essa exceção e acabei me libertando um pouco de algumas coisas, como a saudade Moa escreveu praticamente um samba por dia nessa pandemia. E, de alguma forma, o atual momento transborda em seus versos: "O samba fala da realidade porque ele é muito evocativo, é o meio de comunicação mais fácil. Está na genética do brasileiro". Um desses sambas está concorrendo ao enredo da Mangueira de 2022, que homenageará o compositor Cartola, o cantor Jamelão e o mestre-sala Delegado. Não tem nenhuma referência à pandemia porque o tema já estava acertado desde 2019 —como o de muitas escolas. Mas, se ele pudesse, mexeria em uma coisa ou outra só para registrar o presente. "O samba é um pergaminho" para Moacyr. Ele acredita que, daqui a uns anos, pesquisadores vão buscar suas composições para entender como foi a pandemia do novo coronavírus. Perguntado como acha que vai ser lembrado nessa época, ele responde: "Vão saber que fui um cara antenado, preocupado com as pessoas".
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Com que roupa eu vou? Aos compositores de samba-enredo, cabe o difícil trabalho futurológico de escrever sobre um sentimento que será cantando na avenida depois que a pandemia acabar. Mas David Butter projeta:
Nenhuma escola de samba vai desfilar sem lembrar de quem ficou pelo caminho. Disso eu não tenho a menor dúvida.
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O jornalista ajudou os atuais carnavalescos da Viradouro, Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, a desenvolver o enredo de 2022, que vai relembrar a folia de 1919. Para além do sentimento de alívio pós-gripe espanhola, Tarcísio comenta que aquela festa serviu Símbolo nacional, gênero vem registrando a pandemia da covid-19 como fez com a gripe espanhola como "firmamento paradao identidade nosso Carnaval atual": GABRIEL DIAS
PARA SPLASH, DO RIO grande por ser o primeiro Carnaval que o samba se tornou o Historicamente, ele tem um peso muito COLABORAÇÃO maior ritmo, por ter sido o primeiro desfile do Bola Preta e por ter esse aspecto emocional
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importantíssimo para a virada de página na história do Rio. E retomar a força do samba é muito importante no próximo ano. Como reflete Claudio Russo, outro compositor que está concorrendo a um samba na escola campeã:
Está em jogo a permanência das escolas como grandes difusoras de cultura. Não tendo o Carnaval de 2021, abre um vácuo para quem é contra acreditar que isso não é necessário. É a hora de gritar a liberdade, brincar e fazer o Carnaval.
Assim como Moacyr Luz, Russo acredita que os sambas-enredo não virão muito politizados, pois muitos já estavam prontos antes da pandemia. Mas, ele aposta: "Se [a pandemia] não estiver nas letras, vai estar no discurso e no visual das escolas". Para ele, esse ano foi o mais difícil para compor.
Mas o samba foi a salvação para não enlouquecer nessa realidade do Brasil. Todos os entrevistados acreditam que o Carnaval de 2022 precisa ser intensamente celebrado por respeito a quem resistiu a tudo isso. Como disse Teresa Cristina, retomando um conceito do pesquisador Luiz Antonio Simas:
O maior Carnaval da história, o de 1919, foi uma resposta à morte. O contrário da morte é festa. Não é vida.
Publicado em 19 de julho de 2021.
Ilustração: Marcos de Lima; Motion: Santhiago Lopes;
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