Arquitetura religiosa em Mariana: reflexões para um restauro. Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho final de graduação | junho 2014
Benjamim Motta Saviani Beatriz Mugayar Kühl (orientação) Vol. 1
Ă€queles que me ensinaram a cultivar os ClĂĄssicos, sempre em compromisso com uma sociedade mais justa: Meus pais, Maria Aparecida e Dermeval; meus tios, Nereide e Frederico.
[...]. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Antônio Vieira. Sermão da Sexagésima, 1655
Índice
captatio benevolentiæ
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Agradecimentos
exordium
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1 | Premissas
narratio
23
2 | O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo
narratio
47
3 | A capitania, a cidade e a capela
narratio
59
4 | História recente: incêndio e intervenções
refutatio
69
5 | Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários
divisio
85
6 | Por uma arqueologia das formas de representação
confirmatio
127
7 | Flos Carmeli
peroratio 149
8 | Da reflexão ao projeto
conclusio 169
9 | Conclusão
175
Bibliografia
Agradecimentos [captatio benevolentiæ]
Muitas são as pessoas a quem devo, de alguma forma, o desenvolvimento deste trabalho, e vários são os motivos pelos quais as relaciono a ele. É preciso mencionar o pessoal do Escritório Técnico do IPHAN, em Mariana: Isabel Nicolielo, chefe do escritório técnico; Cássio Vinícius Sales, responsável pelo arquivo, todos muito atenciosos, interessados e eficientes em sempre me ajudar com todas as informações e dados de que precisava. Os funcionários do Santuário de N. Senhora do Carmo de Mariana, e ao Pe. José Carlos, que desde o início se mostraram interessados e respeitosos ao meu trabalho, permitindo-me fazer muitas das fotos que mais à frente ilustrarão estas páginas; permitindo meu amplo e livre acesso a todos os locais possíveis do edifício; concedendo-me minutos a mais dentro do edifício para terminar os trabalhos, mesmo depois de encerrado o seu expediente. O pessoal do Arquivo Eclesiástico da Diocese de Mariana, que gentilmente me enviou dados importantíssimos via correio. Os amigos historiadores, sempre muito solícitos: Natalia Casagrande Salvador, que sempre me ajudou com fontes documentais e bibliografia; Leandro Gonçalves de Resende, indicando com propriedade inúmeras referências documentais e os lugares-comuns da iconografia religiosa, facilitando seu acesso e leitura.
Vista urbana de Ouro Preto. (Foto do autor)
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Os amigos que sempre contribuíram de variadas formas para meu trabalho, seja com ajudas técnicas com os softwares que sempre nos pegam desprevenido, e seja pelos diálogos, troca de ideias sempre edificantes: Alex Sartori, Estevão Sabatier, Thaís Maio, Carolina La Terza, Joana Silveira Melo; André Costa, Ivan Zurawski, Gabriel Sabino, Guilherme Arce, Lucas Bracher todos verdadeiros irmãos. A Rayssa Oliveira, que habilmente gravou em metal as flores que estampam este trabalho, concebido desde as ideias escritas e desenhadas, até o suporte físico. Os professores que atenciosamente sempre me atenderam com dúvidas e preciosas conversas, ainda que de maneira mais informal: Rodrigo de Almeida Bastos, Altino Barbosa Caldeira, Andrea Buchidid Loewen, Mário Henrique S. d’Agostinho; também o mestre violinista e rabequeiro, Luis Henrique Fiaminghi, de cujas conversas foram algum ponto de partida para toda esta sanha por reconstituir os vestígios de culturas do passado; o colega de trabalho e amigo Luiz Fernando de Almeida. A quem sempre me ofereceu excelentes aulas e oportunidades de pesquisa e formação: Luciano Migliaccio, orientador de um trabalho de iniciação científica que muito em ensinou; Beatriz M. Kühl, orientadora deste trabalho, e certamente uma das pessoas que permitem continuar rendendo uma reputação de excelência em pesquisa e crítica arquitetônica a esta Escola. Uno speciale ringraziamento ai docenti della Facoltà di Architettura dell’Università degli Studi di Firenze, professori e maestri per eccellenza, che gentilmente mi hanno accolto al loro corso: Fauzia Farneti (storia), Silvio Van Riel (consolidamento strutturale) e Stefano Bertocci (rilievo architettonico). Senza loro non potrei avvicinarmi adeguatamente alle metodologie di analisi tecnica e storica essenziali al corretto restauro degli edifici. Ringrazio anche a Monica Tomea e alla Fondazione del Monte di Bologna e Ravenna (Oratorio di S. Filippo Neri - Bologna) e a Gabriella Sorelli (Museo Marino Marini - Firenze) per permettere riprese fotografiche nell’interiore dei suoi edifici storici, punti di riferimento essenziali per il progetto da me svilupato in questo lavoro.
Agradecimentos
Finalmente, agradecer a meus familiares e mencionar meus pais e meus tios, a quem dedico este trabalho, pois são professores de profissão, e sempre foram professores em minha vida. A meus tios devo o incessante questionamento de tantas contradições contemporâneas, bem como o entendimento coletivo e político de um indivíduo perante a sociedade. A meus pais devo não somente minha existência, mas o situar-me neste mundo. A eles, a gratidão por, desde pequeno, sempre me mostrarem tantas e variadas coisas que a cultura humana já produziu: Devido à sua formação em história e filosofia, em casa sempre se citou Marx, mas também Kant, Descartes e Platão com profunda naturalidade e sem qualquer pretenção professoral; graças a isso hoje sei que criar os filhos com base em uma sincera dialética é o maior ato de amor que alguém pode ter para com os seus, e mesmo para com a própria Humanidade.
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1 Premissas [exordium]
Os anos que constituíram minha formação acadêmica, e mesmo alguns anos anteriores a ela, já que estudei música a partir dos conceitos de Performance Historicamente Orientada para os repertórios musicais que abarcam os séculos XVI a XVIII, vêm constantemente descortinando para mim as doutrinas e práticas artísticas de uma sociedade pré-iluminista. Estudar as sociedades que se desenvolveram sobremaneira após a Contrarreforma Católica e tiveram fim com o advento das Sociedades Românticas e Industriais Burguesas implica em um estudo de suas manifestações artísticas já que, além de estas formas de expressão constituírem-se sempre como atestados psicológicos e interdisciplinares do pensamento de uma sociedade, no caso em questão é também patente o uso das Artes com finalidades políticas. Ao mesmo tempo em que se estuda este período histórico descobre-se o enorme anacronismo dos conceitos aplicados para analisá-lo, nas historiografias correntes. Além disso, no que constitui a materialidade de suas inúmeras manifestações, isto é, seu legado físico hoje considerado monumento material (por exemplo, arquitetônico), seja decorrente deste anacronismo ou seja meramente por falta de metodologia, é verificada uma tutela inadequada destes bens, fato que implica em gritantes problemas de conservação, especialmente no Brasil, onde metodologias do Restauro são, ainda, pouco consolidadas, e onde uma forte indústria da construção civil vai de encontro com culturas tradicionais de construção e conservação. Diante disto, proponho neste trabalho uma revisão historiográfica e metodológica para a análise de meu objeto de es-
Mariana, atual Praça Minas Gerais. (Desenho do autor)
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tudo, baseado em duas frentes de trabalho, levando em conta, certamente, as possibilidades e o escopo de um trabalho desta natureza. A primeira das frentes de trabalho leva em conta a revisão historiográfica acerca do contexto social que fomentava as manifestações artísticas, que é pré-Iluminista, enquanto a segunda frente de trabalho dedica-se às questões relativas a uma adequada tutela dos remanescentes materiais deste período, a partir de uma proposta metodológica de ação conservativa. Tendo em conta este propósito revisionista, decidi estudar Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, em Mariana, que considero problematização exemplar para relacionar ambas as frentes de trabalho: As Minas Gerais do século XVIII são a materialização (antes de tudo) política do que se considera o princípio do Brasil como nação, ideia esta cunhada desde o Segundo Reinado brasileiro e retomada inúmeras vezes nas subsequentes Repúblicas, construindo, exaltando e mitificando personagens e processos políticos e artísticos como a Inconfidência, o Tiradentes e o Aleijadinho. A celebração desta sociedade fomenta, por sua vez, o estudo das manifestações artísticas, em especial a arquitetura, colocando-as no cerne de um projeto cultural nacional, sobretudo desde os anos 1930, consolidado e “materializado” na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ao longo do século XX, muito se estudou a Minas Gerais do Setecentos, curiosamente pelo pensamento de arquitetos nacionais e historiadores estrangeiros, mas muito sob o crivo de anacronismos e superficialidades conceituais, consolidando o mito do “Barroco Mineiro”, além de princípios conservativos que até há poucos anos pouco se atualizaram em relação às práticas do antigo SPHAN. No que concerne ao Restauro em si, observa-se de um lado, o abandono da conservação feita pela simples manutenção permanente, muitas vezes, por dificuldades financeiras, mas também por certa perda desta cultura conservativa secular; de outro, as reconstruções “originais”, algo que pretendo demonstrar ser virtualmente impossível, insistem programaticamente em nossa ideologia conservativa. Descuidadas reintegrações, intervenções literalmente incorretas e canteiros de restauro inadequados levam eventualmente ao desastre (situa-
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ções que culminam no episódio do incêndio do edifício em questão, em 1999, durante o fim de um trabalho de restauro). Mas não só: a falta de manutenção em um tipo de arquitetura que funciona baseada na manutenção constante, traz para obras “restauradas” há menos de 15 anos severas patologias arquitetônicas, que variam desde fungos e vegetação infestante, até problemas de estabilidade das superfícies muradas ou estanqueidade das coberturas (veja-se o caso da capela de São Francisco de Assis em Mariana, hoje fechada ao público por problemas decorrentes de sua falta de manutenção, desde o último restauro, feito em fins dos anos 90). Ainda assim, por que Mariana? Por que a arquitetura colonial? Creio, neste âmbito, ser a situação dos monumentos coloniais mineiros, em particular estes marianenses, uma boa fonte de estudos de caso dos mais variados gêneros, que atestam o desenrolar da consciência patrimonial brasileira, e do que se entende por necessidade de restaurar seus testemunhos. Mariana o atesta de formal plural, pois desde cedo teve obras aclamadas como monumentos nacionais e, portanto, alvo ações de salvaguarda institucional e física das mais variadas possíveis, especialmente em um local que viu seu papel político regional variar muito até hoje: de arraial a cidade, e depois capital da Capitania de Minas Gerais, sede do bispado e de um importante Seminário Episcopal, gozou durante o Setecentos de variadíssimas e refinadíssimas manifestações culturais, das quais o maior legado seja, talvez, a salvaguarda de um órgão feito por um dos mais célebres construtores de então. Outrora capital de Minas Gerais, uma das primeiras cidades de traçado urbanístico planejado ortogonalmente, Mariana é hoje uma pequena cidade de interior, cujos monumentos dão suporte a uma gente humilde que vive economicamente de turismo, mas também de atividades rurais e mineradoras, conferindolhe diversidade e simplicidade singulares, quase pitorescas. Este contexto, desde o princípio de minha formação superior, me chamou a atenção devido à sua força e particularidade, levando-me ao progressivo interesse em seu estudo.
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Órgão da Sé de Mariana. (Fonte: http://www. overmundo.com.br/ agenda/comemoracao-dos-25-anos-derestauro-do-orgao-arpschnitger)
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Novamente, como símbolo, vem à mente o órgão de sua Sé, a querer quebrar o mito do autóctone, de uma suposta “nova sociedade”, que já é brasileira e culturalmente inventiva, antes da nossa independência. Aquele instrumento fora construído por Arp Schnitger, organeiro de prestígio na Alemanha, nomeadamente apreciado por Bach devido à qualidade de seus instrumentos. Foi concluído em princípios do séc. XVIII e, a pedido do rei Dom José I, presenteado à Sé de Mariana, em 1753. Já é raro o fato de um órgão alemão ser enviado a Portugal (o reino havia encomendado dois a Schnitger; o outro continua em Portugal), já que este país cultivava outra tradição organeira, de sistema construtivo e registração ao costume ibérico. Desde sempre um instrumento de reconhecida qualidade, trata-se do único feito por aquela oficina que se encontra fora do continente europeu, fato que, na verdade, atesta de maneira irônica e poética, a importância desta região sul-americana como parte cultural e ativamente integrante do reino de Portugal, dentro do Pacto Econômico Colonial estabelecido, de maneira especialíssima. E foi durante uma tarde jogando sinuca em um típico boteco marianense que eu e um grande amigo, ele músico, nos demos
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conta disso tudo: “você já parou pra pensar que enquanto estamos aqui jogando sinuca junto com esta gente que passou o dia trabalhando com a terra, logo ali há uns 200 metros de nós, está um dos órgãos históricos mais importantes da Europa hoje em dia?”, disse ele. E, de fato, lá está aquele monumento, ao alcance de todos, e inacreditavelmente vivo, pois o instrumento está em pleno funcionamento e qualquer manianense sabe de sua existência. Além deste curioso legado, outras circunstâncias despertaram-me a atenção há já algum tempo, destacando-se a trágica história recente de seu templo de Nossa Senhora do Carmo. Edificado como Capela de sua Ordem Terceira na segunda metade do Setecentos, e passado a propriedade da Arquidiocese de Mariana quando da extinção daquela Ordem, no século XX, este templo atesta inúmeros problemas de gestão pública do Patrimônio Histórico Artístico, como a falta de segurança no canteiro de restauro: o inapropriado uso do querosene para a descupinização de seu forro, somado ao uso de lâmpadas incandescentes, culminou em 1999 em um incêndio que destruiu os elementos lígneos, e algumas cantarias
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Típico bar em Mariana, de caráter mais popular e em pleno centro urbano. (Foto do autor)
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de sua nave, coro e nártex; a intervenção posterior, concluída em 2001, foi conduzida por quadros que atuam juntamente ao IPHAN, e leva em conta alguns princípios coerentes ao restauro crítico brandiano, como a recusa ao falso histórico e a retomada de ideias volumétricas. Ainda assim, a falta de detalhamento de projeto e a qualidade final dos artefatos, pode-se dizer, não atendem a sutis demandas estéticas que não podem ser esquecidas em um edifício de valor histórico, mas também artístico e ativamente religioso, o que suscita um rico debate técnico e teórico no campo das reconstruções, em restauro. Por fim, é preciso lembrar que o restauro arquitetônico, tema ao qual já tenho me dedicado ao longo de minha graduação, configura-se em uma das mais completas modalidades de projeto, pois materializa, de maneira obrigatoriamente interdisciplinar, reflexões acuradíssimas sobre os diversos produtos, materiais e imateriais, de nossa sociedade. Mais que “especialização” projetual, os princípios metodológicos do restauro podem ser os mais sutis e refinados possíveis, que forçam o projetista a escolhas sempre de grande maturidade, como o a consideração do entorno existente, o projeto coadjuvante, ou mesmo o não-projeto/não-intervenção. Em uma perspectiva ampla, o escopo deste trabalho não é um projeto. É um discurso de respeito e consideração aos diferentes produtos intelectuais de nossa cultura.
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2 O levantamento arquitetônico como instrumento cognitivo [narratio]
A primeira atividade concernente ao Restauro Arquitetônico é o levantamento. Quero frisar que não se trata de uma atividade “preliminar” ao restauro, e sim, de atividade de restauro em si, pois visa a uma compreensão conceitual de parâmetros “diretos” do objeto de estudo, além de envolver projeto específico para seu fim. Para seu sucesso, dependemos de uma rigorosa metodologia, capaz de regular os erros advindos de um trabalho de campo, através de condições de contorno/revisão da tomada de medidas, mas não só: para o êxito de um trabalho de levantamento cabe entender, antes de tudo, a que serve isto. Entender que o desenho é instrumento cognitivo e código representativo arquitetônico, e que o levantamento se manifesta como análise de um artefato construído, por via de medições, mas não apenas. Partindo-se, inclusive, do pressuposto que a atividade de medição nunca é integral, admitimos que não se poderá jamais produzir material de análise de um artefato construído sem entender o que é uma atividade de medição e a que objetivos diretos se presta, já que a relação entre objeto real e representação gráfica possui rigor variável, de acordo com a finalidade das análises a serem feitas. É necessário, pois, entender o que é uma atividade de medição, entender o que é a catalogação de elaborados físicos, bem como entender o que é um levantamento (no caso) arquitetônico e, por fim, identi-
Levantamento da Capela da Ordem Terceira de N. S. do Carmo de Mariana. Frontispício. (Desenho do autor)
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1 | DOCCI, Mario, MAESTRI, Diego. Manuale di rilevamento architettonico e urbano. Bari: Editori Laterza, 2010.
ficar o que estas atividades compartilham entre si.
Dá-se que o levantamento arquitetônico é uma operação destinada à compreensão da obra em sua globalidade e em seus detalhes; fazer levantamento, portanto, significa antes de tudo compreender a obra em questão e apreender todos os seus valores, desde aqueles dimensionais àqueles construtivos, daqueles formais àqueles culturais.3
Trata-se de teorizar para que se possa regular uma atividade aparentemente prática. Surge, então um conceito por trás da prática do levantamento arquitetônico, que vem constantemente sendo atualizado dentro de culturas construtivas/con2 | O termo italiano é rilie-servativas, em particular a italiana, que tem ampla experiência vo. Difícil traduzi-lo sem-acumulada neste campo. Ao consultar manuais e tratados sopre de forma imediata poisbre o tema, de uso corrente nas escolas italianas de restauro a palavra, que literalmente arquitetônico a partir dos anos 90, podemos nos deparar com para o português traduz-se por relevo, contém múlti-manuais e tratados exemplares nesta prática. Tomo como ex1 plas acepções, como levan-emplo o Manuale di rilevamento architettonico e urbano , que dedica tamento, catalogação, medição,parte de seu texto a definir e discriminar as diferentes e posdesenho de observação, etc. Ésíveis atividades de levantamento arquitetônico, assim começa importante lembrar queseu capítulo quinto: rilievo designa o produto do rilevamento, e não a atividade de rilevamento em si, o que põe sua significação, neste momento, mais próxima a uma atividade concernente a análise de uma grandeza física, que literalmente a “relevos físicos”, se entendida em português. Tal circunstância se constitui em dado cultural sutil e muito interessante: Rilevamento possui significado específico, mas rilievo não, embora ambas estejam ligadas ao mesmo contexto. A palavra rilievo é sempre mais incidente, e possui significação múltipla/ampla na língua italiana, mas sempre que ocorre em textos sobre restauro, não incorre em ambiguidades de significado, justamente por o “levantamento” ser uma atividade que, ainda que precisa metodologicamente, se desenvolve por
Conhecimento da obra a ser levantada 2 Fazer o levantamento de uma obra arquitetônica significa penetrar na sua complexa realidade, analisando todos os seus aspectos: trata-se, portanto, de por em prática um complexo procedimento, que leve ao conhecimento “profundo” da mesma, através de uma pontual e fundamentada análise. Um conhecimento preliminar da obra deve proceder conjuntamente com a individualização de seus caráteres peculiares e com a finalidade do levantamento; de certa maneira se pode dizer que ocorre saber primeiro o que se deve desenhar e ter em conta que não é a elevação, a planta e a secção, como imagens, às quais se deseja alcançar em primeira instância, mas a representação do espaço físico, da qualidade arquitetônica e as transformações estruturais que ocorreram na obra em si. A operação de levantamento se constitui em elemento importante, mas não único, em um processo que tende a chegar a um conhecimento completo da obra arquitetônica, compreensão que se desenvolve em várias fases, as quais podem sinteticamente serem assim resumidas: a) conhecimento da obra a ser levantada e escolha das técnicas de levantamento; b) levantamento [medição]; c) representação gráfica; d) leitura da obra através de medições, análise do artefato, documentação histórica, fontes de arquivo, bibliográficas, etc.
Disse acima que a compreensão é “conceitual”, pois envolve uma metodologia para medir e representar o objeto construído, que se manifesta materialmente por parâmetros “diretos” de cognição, como largura, altura e profundidade; ângulos, composição física dos materiais, etc. No entanto, a apreensão destes parâmetros e a sua representação gráfica constituem-se como interpretações da realidade física, que envolvem também um preparo cultural. São interpretações passíveis de diversidade de soluções gráficas, tanto na apreensão da geometria, quanto na classificação do estado de conservação de um elaborado físico, ainda que tenha por linguagem os códigos de representação comumente aceitos nas linguagens técnicas de desenho. Um bom trabalho de levantamento arquitetônico, portanto, irá ponderar sobre metodologias de tomada de medidas e o rigor de representação das mesmas, de acordo com cada objeto de estudo específico. Há casos em que se demanda o uso de técnicas de levantamento com alto nível tecnológico, como o laser scanner 3D, que propiciam a representação, inclusive tridimensional, de espaços complexos, com alto grau de detalhamento e dimensões, de maneira específica 4; há casos em que, no entanto, este recurso não se fará necessário, nem mesmo mais eficiente que os tradicionais métodos de medição, auxiliados por instrumentos de levantamento topográfico (destinados a medir ângulos conjuntamente a distâncias), e a instrumentos ainda mais simples de medição direta, fundamentados no uso regrado da escala métrica, regulada por dados escalares com parâmetros de referência horizontais (níveis d’água) e verticais (fios de prumo), cabendo sempre ao técnico a escolha do método mais apropriado e que esteja melhor ao seu alcance.
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diversas maneiras. Portanto, é possível sempre entendermos a acepção da palavra rilievo pelo contexto em que está inserida; mas, diria, é também possível por esta pertencer a um conceito de práticas bastante amplas. Tal acondiciona a tradução para o português em palavras que variam, e muitas vezes não apreendem unicamente o significado do tipo específico de rilievo ao qual um texto original italiano está se referindo, como é o caso das traduções que faço neste capítulo. A esse respeito, consultar os verbetes “rilevamento” e “rilievo”, em bons dicionários de italiano, como: ZINGARELLI, N. Lo Zingarelli: vocabolario della lingua italiana. Zanichelli, 2005. Pp. 1536-1537.
3 | Idem, p. 67 (tradução minha). 4 | Recentemente também se tem constatado que, devido ao funcionamento do instrumento ser fundamentado na emissão e reflexão entre um feixe de luz e o objeto escaneado, pode-se também obter dados interessantes relativos aos materiais analisa-
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Croqui (projeto) preparatório para o levantamento do Oratorio dei Filippini em Roma, elaborado por E. Chiavoni. (Fonte: DOCCI, M., MAESTRI, D. Op. Cit, p. 71)
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Desenho de observação preliminar ao levantamento de um púlpito (lado do evangelho) do Carmo de Mariana. (Desenho do autor)
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dos; isso também leva a análises relativas a seu estado de conservação com respeito à sujidade, por exemplo, já que a reflexão do feixe de luz é influenciada microscopicamente pelo índice de reflexão do objeto no qual incide. A esse respeito, ver: SANTOPUOLI, Nicola. Colorimetria e diagnóstico: a superfície qualitativa do escâner a laser 3D, Pós. Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da FAUUSP, 2011, n. 29, pp. 211-215.
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Por isso se afirma, inclusive, que o levantamento arquitetônico demanda um projeto em si, onde o técnico planeja uma eficiente tomada de medidas, bem como a forma pela qual estas medidas serão traduzidas à linguagem arquitetônica universal, isto é, o desenho. Seja utilizando-se de métodos tecnológicos, levantamento instrumental, fotogramétrico, ou de medições diretas, o que fundamenta o Levantamento é a garantia de metodologia para a tomada de medidas, capaz de reduzir os erros aos quais um trabalho de campo está sujeito. Neste âmbito, não se pode classificar os trabalhos de levantamento arquitetônico como meros “trabalhos técnicos”, pois são frutos de análises que também requerem o reconhecimento do objeto de estudo como elaborado cultural (objeto artístico, arquitetônico, etc.). Não obstante, é necessário lembrar que um trabalho de desenho à mão livre, feito de maneira criteriosa e proporcionada, também opera no campo do levantamento preliminar, pois é nele que o técnico demonstra “ler” os diferentes elementos do objeto construído: parâmetros gerais de composição, mas também proporções e imperfeições na estrutura dos muros, vegetações infestantes, danos materiais, etc. Os levantamentos da Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo Ao comentar sobre metodologias de levantamento arquitetônico, admitindo a sua importância como fundamental para qualquer intervenção em um contexto construído, venho a explicitar como tenho trabalhado a documentação disponível sobre meu objeto de estudo. Antes de mais nada, é necessário frisar que um trabalho de restauro integral e efetivo deve, por obrigação, fazer, revisar e refazer, sempre que necessário, o levantamento arquitetônico completo de um edifício, a fim de garantir uma representação gráfica capaz de catalogar com eficiência e propriedade o espaço edificado e as particularidades que o acometem. Para meu Trabalho Final de Graduação, deparo-me com a necessidade de, não dispondo de uma equipe nem estrutura para fazer os levantamentos desde o início, lançar mão de condições
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de contorno para este problema, a fim de produzir bases suficientemente confiáveis para minhas subsequentes análises. É fundamental aclarar, então, que não faço um trabalho de levantamento completo, mas de revisão dos levantamentos existentes, o que incorre em correções e ajustes que, quando necessário, permitem a maior aproximação destes elaborados gráficos com a realidade física de meu objeto de estudo. Com relação ao Carmo de Mariana, uma pesquisa em suas bases cadastrais localizou dois trabalhos: O levantamento arquitetônico feito em 1988, a pedido do prof. Altino Barbosa Caldeira, então chefe do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, e o projeto de intervenção feito em 2000 pelo prof. Rodrigo Meniconi, que se utiliza claramente do levantamento feito em 1988, com respeito à espacialidade arquitetônica. Estranhamente, o trabalho do prof. Caldeira não se encontra mais nos arquivos mineiros do IPHAN (nem na Superintendência em Belo Horizonte e nem no Escritório Técnico de Mariana). Imagino que possa ter desaparecido durante os projetos de 2000 (feitos após o incêndio de 1999), mas o fato é que até agora não se pôde determinar o paradeiro destes trabalhos, nem a real causa de sua desaparição. Encontrei duas pranchas do levantamento feito em 1988 no arquivo do IEPHA5, em Belo Horizonte, que dão margem à hipótese de o trabalho do prof. Caldeira ter sido usado de base gráfica para o trabalho do prof. Meniconi, já que é idêntico o grafismo dos elementos, inclusive daqueles evidentemente desenhados à mão, além de ambos os trabalhos serem estruturados com um número total de pranchas muito similar: quatorze em 1988 e quinze em 2000. Devido a esta condição, utilizo como base para meus estudos as pranchas remanescentes do levantamento produzido em 1988 e que se encontram no IEPHA, juntamente com os outros elaborados gráficos contidos no projeto de 2000, admitindo uma relação de correspondência direta entre estes desenhos, para poder reconstituir, através de computação gráfica, uma base de trabalho confiável sobre a Capela. Em minha reconstituição, faço o redesenho da planta baixa do Edifício através das cotas levantadas em 1988, contidas na
5 | Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Minas Gerais)
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“Igreja de Nossa Senhora do Carmo/Mariana”. Planta baixa.Levantamento realizado por A. Caldeira em 1988. As cotas contidas nesta prancha serviram de referência para a reconstituição digital da planta, em AutoCAD. (Fonte: Arquivo Público do IEPHA.)
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Exemplo e demonstração: Etapas da restituição gráfica da Sacristia do Carmo, por meio das triangulações feitas na medição da planta: 1 - 5 | Todas as variações possíveis das medidas tomadas (perímetros e 2 diagonais), tendo como eixo comum o vértice em vermelho. 6 | Sobreposição das variações, a partir do eixo comum. 7 | Detalhe: O triângulo em vermelho mostra a o erro entre as medidas tomadas, inerente ao trabalho de medição direta.
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8 | Para compensar geometricamente estas distorções, o vértice corrigido que será desenhado, por fim, localizar-se-á no baricentro do triângulo vermelho. 9 - 11 | Resumo: Sobreposição geométrica dos vértices; poligonal básica, corrigida; desenho final da planta. Note-se que a medição por duas diagonais permite o controle dos erros, pois a distorção é visível graficamente, e varia entre limites aceitáveis (geralmente, até 3cm para o triângulo que liga os vértices).
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prancha 2/15, refazendo as triangulações de acordo com as medidas anotadas, e distribuindo as distorções geométricas segundo critérios admitidos em trabalhos de levantamento. Os demais elaborados gráficos são feitos a partir desta planta, coincidindo-os geometricamente e considerando as demais cotas assinaladas nas pranchas que os dão origem, além de outras medições feitas por mim. A partir desta “estrutura” inicial, começo os subsequentes refinamentos do grafismo final, conferindo cotas planimétricas e altimétricas, e sobretudo redesenhando a ornamentação em cantaria, através de medidas tomadas por mim in situ e do auxílio de fotos e a leitura de tratados arquitetônicos. O redesenho com base nas medidas tomadas em 1988 é, portanto, a primeira condição de contorno à tomada de medidas que, sozinho, não posso fazer; o uso de fotos é a segunda condição de contorno, no caso, para o desenho dos ornamentos contidos em lugares altos, onde não tenho acesso direto. Além disso, decidi reforçar este trabalho, no que tange ao desenho das modenaturas, por uma terceira condição de contorno, que é a recíproca conferência entre as modenaturas existentes e a tratadística arquitetônica. Através da leitura de diversas edições de tratados arquitetônicos, pude entender com maior clareza a geometria que constitui muitos destes ornamentos no edifício, podendo chegar a um desenho mais aproximado da realidade.
6 | CALDEIRA, Altino B. Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Mariana. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 2 , p. 11-33, ago. 1994.
Além destas fontes, procuro rastrear a totalidade dos trabalhos de 1988 a partir de algumas publicações daquele levantamento pré-sinistro, feitas em periódicos de arquitetura 6. A publicação dos levantamentos do prof. Caldeira (na verdade supervisionados por ele, mas produzidos pelos arquitetos Celeste Maria Rodrigues e Miguel Ángel Ferman), mostra o levantamento pormenorizado de outros elementos integrados à arquitetura, como balaustradas, e também o pórtico em esteatite, além de vergas das janelas e o tapavento consumido pelo fogo de 1999, mas não pude encontrar as pranchas de todos os pormenores. Por o trabalho de 1988 ter sido feito à mão, é compreensível que o detalhamento destes elementos viesse figurado apenas em separado dos cortes e elevações gerais, estas últimas em menor escala. A totalidade destes levanta-
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mentos, bem como o que eventualmente se perdeu/está por ser reencontrado, não pôde ser precisada nem mesmo pelo próprio prof. Caldeira, como me revelou em conversa telefônica concedida em setembro de 2013. Além das condições de contorno adotadas para viabilizar o desenho, procuro colocar em discussão a estrutura final de um trabalho de levantamento, uma vez que não se verifica no Brasil uma normativa específica para este fim 7, o que impossibilita a unificação das formas de representação deste processo analítico, dificultando a verificação do rigor técnico e qualidade final deste tipo de trabalho. Tal é um tema que merece uma discussão específica e empenhada, já que a falta de exigência formal sobre quais são os componentes de um levantamento cadastral arquitetônico, dificulta tanto a compreensão do que é esta prática, por parte de nossos profissionais, bem como a fiscalização de projetos de restauro, por parte dos órgãos patrimoniais. O resultado disso é, muitas vezes, uma documentação lacônica e pouco detalhada, quando não, feita de maneira errada e imprestável a uma análise do estado de conservação do objeto construído. Estruturarei meu levantamento cadastral a partir de orientações de manuais e tratados, e em consonância com normativas institucionalizadas em países com maior tradição neste campo, com especial atenção à normativa UNI-NORMAL italiana, elaborada pelo Ente Nazionale di Unificazione (UNI) sob supervisão do Ministero per i beni culturali, e que dá origem aos Eurocódigos, correntes em toda a União Europeia atualmente. Estas diretrizes estruturam um trabalho de levantamento arquitetônico em quatro frentes, a definirem-se da seguinte forma: Levantamento métrico (rilievo architettonico): Levantamento da estrutura arquitetônica/escultórica aparente do edifício, incluídas as cotas na medida com os valores que foram tomados, sem os valores das correções geométricas posteriores. Presta-se ao conhecimento de todos os elementos compositivos, arquitetônicos e artísticos do edifício, em sua relação proporcional, e a documentar as medidas (gerais) tomadas; uma espécie de “leitura” inicial, que também contém uma demonstração ao leitor, de como o técnico leu o edifício, em especial por meio das cotas levantadas.
7 | Verifica-se, no entanto, um esforço concentrado no IPHAN, muito através do programa Monumenta, em produzir documentação de apoio, em seus manuais e cadernos técnicos, cuja observação passa a ser requerida com respeito a obras tuteladas pelo Instituto. Esse processo, no entanto, esbarra em três empecilhos: Trata-se de documentação do IPHAN, e nem sempre encontra respaldo em outras instâncias administrativas brasileiras (Estado e Município); trata-se de formato “manual”, menos rígido que o formato “norma”, o que deixa de definir formalmente parâmetros importantes de uma documentação analítica; por fim, esbarra na formação de profissionais nacionais ligados ao restauro que já é deficitária, e pouco prepara seus quadros a práticas de análise de um objeto físico, de maneira integrada e coerente. Ver pranchas 1.01 a 1.13
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Ver pranchas 2.01 a 2.13
Levantamento estrutural (rilievo struttturale): Levantamento da estrutura arquitetônica/escultórica compositiva do edifício, para além do que se vê (composição dos muros, estruturas do telhado, etc). Presta-se ao conhecimento das técnicas construtivas de um edifício, elementos de acabamento e detalhes construtivos tal como foram executados, oferecendo elementos subsidiários para verificações de estrutura e estabilidade da construção, e admite a especulação de dimensionamentos e composições de estruturas.
Ver pranchas 3.01 a 3.08
Levantamento dos materiais (rilievo materico): Levantamento dos materiais que compõem o edifício estudado, assinalando um a um. Presta-se ao conhecimento dos materiais de acabamento que compõem a finalização do edifício.
À medida que meus trabalhos de restituição gráfica sobre a matéria de meu objeto de estudo avançavam, deparei-me com uma delicada questão, que requereu um acurado exame metodológico, já que o desenho da estrutura arquitetônica (muros, alturas principais, estruturas, etc.) de que dispunha, estava documentado com boa segurança, mas o correto desenho da ornamentação, não.
Ver pranchas 4.01 a 4.05
Mapeamento de danos (rilievo delle patologie edilizie): Levantamento das patologias que acometem a fábrica, interna e externamente (de acordo com sua necessidade). Presta-se ao conhecimento pormenorizado e individualizado do estado de conservação dos materiais que o compõem, ou mesmo dos intrínsecos problemas construtivos de um edifício, que levarão a intervenções pontuais a fim de garantir uma salubridade global (Exemplo: fungos e musgos podem denotar infiltrações em coberturas e paredes; trincas e fissuras, a movimentações da estrutura, de maior ou menor risco consoante ao aspecto destas alterações; etc.).
Isso decorre, no caso, do fato de os trabalhos de levantamento, feitos em 1988, terem sido executados à mão, o que dificultava o controle de um correto e proporcionado desenho de todos os elementos figurados em uma prancha. Isso significa, inclusive, que uma correta leitura deste tipo de trabalho não se faz imediatamente pela geometria efetivamente desenhada, mas pelas cotas e medidas que descrevem a geometria medida. Além disso, detalhes construtivos e ornamentos viriam figurados em separado, ampliados e, como não dispunha dos trabalhos integrais de levantamento, não tive acesso a estes por-menores.
Todos estes componentes do Levantamento Cadastral se prestam a uma compreensão global do edifício, desde seu estado de conservação, que norteará de maneira bastante objetiva as sucessivas intervenções estruturais, até a compreensão de sua gênese artística, como se verá na apresentação do levantamento de Cantarias, feito para este Trabalho Final de Graduação. Enunciei estes trabalhos juntamente a seus títulos correspondentes em italiano, para evidenciar que meu processo analítico se faz de maneira análoga aos trabalhos já desenvolvidos com grande maturidade naquela cultura conservacionista. Dessa forma, havendo algum leitor deste trabalho o interesse em aprofundar-se melhor em exemplos mais concretos e complexos, poderá situar-se de maneira mais eficaz na consulta de trabalhos italianos, podendo comparar a minha proposta
Dessa forma, me coube indagar sobre uma questão fundamental: Fazer levantamento não significa desenhar efetivamente tudo o que compõe um elaborado físico, pois esta tarefa é impossível. Caberá, portanto, ao técnico, escolher os elementos cuja figuração é importante.
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metodológica com outras, encontrando congruências e divergências entre elas. Ajustes e correções: uma nova proposta de levantamento para a ornamentação em cantaria na Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo
Diversas leituras feitas, com especial atenção à historiografia recente que se tem dedicado ao tema da arquitetura colonial mineira 8, têm demonstrado a importância da ornamentação na gênese de nossos edifícios coloniais. A princípio, de fato, tal não parece surpreendente: estas obras são produtos da mesma cultura construtiva europeia cuja gramática, retórica e eloquente, manifesta-se desde sempre
8 | A esse respeito ver o excelente trabalho do professor Rodrigo Bastos, que propõe novas leituras para a arquitetura setecentista religiosa de Ouro Preto: BASTOS, Rodrigo de Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. 360p.
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por meio da ornamentação.
intensidade da qualidade isolada [...].
Com a profusão de tratados de arquitetura desde o séc. XV, os preceitos originários clássicos e, particularmente, os vi-truvianos, começam a ser compendiados em textos que têm por objetivo emular os lugares comuns da arquitetura greco-romana e, para tanto, constituem uma verdadeira gramática para a ornamentação (as ordens arquitetônicas), por meio de um léxico específico (as modenaturas). É importante ter em mente que ornamento não é adorno, e implica em um discurso retórico específico; sua leitura desempenha papel fundamental na compreensão cultural deste tipo de edifício, como pretendo demonstrar no correr deste trabalho. Disso decorre, portanto, a decisão de fazer um levantamento mais acurado deste aspecto concernente ao Carmo de Mariana.
Resulta, portanto, profundamente errada a opinião comum que identifica a operação de medição com um simples ato técnico, tendente a traduzir as quantidades em números. Na verdade, ao originar esta operação existe uma escolha crítica efetuada sobre o objeto, para restituir sua discretização, que estabelece aquilo que deve ser medido. Um profissional que se propõe a medir uma obra arquitetônica não pode evidentemente levantar os infinitos pontos que a compõem, mas deve operar escolhas e discretizar o contínuo da matéria, reduzindo-a a um número limitado de pontos. Estes últimos deverão ter, além disso, um valor estratégico: ocorre, em outras palavras, que sejam significativos, com a finalidade de evidenciar os valores que a obra contém. Resulta que a operação de medir é ao mesmo tempo análise e seleção de certas qualidades: para tal é necessário que o operador esteja preparado culturalmente e tecnicamente a efetuar estas escolhas. Deverá, de fato, separar o supérfluo do essencial, de modo que os pontos selecionados, uma vez levantados e traduzidos em representação gráfica, constituam um modelo que represente as reais qualidades do objeto levantado.
Esbarrava, no entanto, em um problema, que é o de não ter acesso físico a todos os ornamentos, posto que muitos localizavam-se entre 12 e 15 metros de altura. Além disso, com respeito à ornamentação mais “orgânica” e escultórica, feita em rocalhas e elementos antropomórficos e fitomórficos, é difícil chegar a uma representação fidedigna por meio da representação bidimensional, e técnicas diretas de medição, a priori. Tive de recorrer novamente a princípios metodológicos sobre como se produz, efetivamente, um trabalho de medição, para definir como deveria proceder: Através do instrumento de medição, tido em modo convencional, é possível transformar os objetos em números, operação que é produto do intelecto humano, posta em prática para melhor compreender e representar a natureza. A medição prestase a quantificar a natureza do objeto examinado, isolando-a de outras: se trata, em outras palavras, de reconhecer no objeto uma qualidade e de identificar uma entidade através de uma quantificação numérica. A operação de medição pode, portanto, subdividir-se em duas fases: a) individuação e discretização de uma qualidade do complexo de outras presentes no objeto; b) tradução em número da
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Bastará confrontar certos desenhos de arquitetura com o modelo real para dar-se conta de como alguns destes, malgrado a exatidão das medidas, não reproduzem o caráter e o espírito do edifício real. A posterior confirmação, pode-se dizer que um complexo entablamento barroco, constituído de muitas silhuetas, pode, a uma certa escala de redução, ser sintetizado com três ou quatro linhas: o problema é compreender quais, dentre as linhas que o constituem, possam ser eliminadas e quais devem ser mantidas 9. 9 | DOCCI, Mario, MAESTRI, Diego. Op. introdução ao capítulo “Elementos de metrologia”, Cit., P. 25.
Esta de nosso conhecido Manual italiano, é bastante elucidativa. Encaro, a partir dela, com respeito as escolhas de grafismo feitas pelos trabalhos de 1988, e recobro forças, bem como arcabouço metodológico, para ir além daquele trabalho. É, também, necessário observar, que a “omissão” proposital de alguns elementos compositivos se dá mais no universo da escala em que é feito um desenho, quando feito à mão. É justamente aí que teve início o meu problema, pois eu tinha como fonte
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Frontispício do Carmo (Mariana), com atenção ao seu pórtico principal. (Foto do autor)
Desenho de observação, preparatório ao levantamento do Pórtico, elaborado pelo autor.
ao lado: Levantamento do Pórtico, com sua restituição gráfica final. (Elaboração do autor)
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Levantamento de uma residência em Ficarra (ME - Itália), através de medição direta. Note-se as cotas altimétricas medidas a partir de um nível “zero” horizontal pré-estabelecido. Elaboração: Benjamim Saviani, Fabrizia Giannoti, Francesca Guazzi, Giulia Guerrazzi. (Arquivo pessoal do autor)
Levantamento instrumental da igreja de Sta. Maria in Via (Roma ). Elaboração: A. Rossi, S. Rossi, A. Ruggieri. (Fonte: DOCCI, M., MAESTRI, D. Op. Cit, p. 268)
Levantamento indireto mediante escaneamento 3D a laser, da igreja de Sant’Andrea (Mântua ) elaborado pela equipe do Centro Studi Leon Battista Alberti di Mantova. (Fonte: ______. Leon Battista Alberti e L’architettura. Mântua: Silvana Editoriale, 2007. P. 201.)
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10 | Idem, P. 68.
Ver prancha 1.13
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pranchas advindas de um trabalho de desenho à mão, em escala 1:50, cujos detalhes viriam figurados somente em outras pranchas, em 1:10, 1:20, etc. (mas destas eu não dispunha); no entanto, ao trabalhar no AutoCAD se desenha em escala 1:1 e não se pode omitir nenhum elemento compositivo evidente, se por questões de escala.
ção da arquitetura estudada neste universo cultural. Além disso, este método vem entendido como um processo especulativo que sempre tem lugar (mas específico) em um trabalho de levantamento: sendo este um trabalho de documentação, deve vir discriminado nas corretas pranchas tudo aquilo que foi medido, e tudo aquilo que está sendo especulado pelo técnico.
Segundo o dito Manual, três são os métodos de tomada de medidas 10: a) levantamento direto – medições com métodos tradicionais; b) levantamento instrumental – medições com o auxílio de equipamentos topográficos; c) levantamento indireto – técnicas computacionais como fotogrametria e escaneamento laser 3D. Deve o técnico, portanto, valer-se de um projeto que contemple a combinação de técnicas mais adequada para cada trabalho.
A este ponto, é necessário aclarar que os métodos ideais para um acurado levantamento de um edifício com tal profusão ornamental, seriam o levantamento direto de todos os elementos ornamentais, ou um escaneamento laser 3D, que oferece ao operador uma nuvem de pontos tridimensional, com alto grau de precisão e detalhes. No entanto, como dito anteriormente, não tenho à disposição todos os métodos de levantamento possíveis, e devo lançar mão de condições de contorno que garantam, regulados por uma metodologia segura, um trabalho adequado ao meu escopo e à correta e fiel representação desta “essência cultural e física” do edifício estudado; isto sem contar que o levantamento direto é sempre um método confiável e que serve como “regulador” dos demais. Suas limitações, no entanto, residem no fato de a medição ser relativa sempre às duas dimensões que que geralmente compõem uma secção levantada (planta ou corte), e a um número comumente mais limitado de pontos levantados.
Neste caso, executei o levantamento direto dos embasamentos aos quais tinha acesso, ou seja, da Portada e do Arco Cruzeiro, catalogando e medindo as modenaturas que os compõem; para a ornamentação do alto (capitéis, entablamentos, vergas de janelas e cimalhas), utilizei-me de levantamento instrumental (medidas gerais feitas com uma trena laser), e fotogrametria ou mesmo fotos tiradas de ângulos com pouca distorção. Estes dados são desenhados digitalmente e, posteriormente, submetidos ao confronto com alguns tratados de arquitetura e construção, a fim de identificar semelhanças gramaticais e de geometria que podem, em casos muito específicos, embasar alguns ajustes proporcionais mínimos. É importante ressaltar que estes ajustes são “mínimos e específicos”, pois seria absurdo considerar que uma estampa em um tratado é, de fato, o que foi construído no Carmo. O uso das estampas se dirige a compreender a geometria simples que compõe as modenaturas, se feitas por uma fração de circunferência, quais os raios das circunferências, etc. A diferença entre uma e outra é verificável a olho, inclusive entre variações da mesma (a exemplo da escócia vignolesca, em comparação com outras escócias). Este é o único caso em que admito a leitura de tratados para solucionar dúvidas efetivas de geometria, admitindo a inser-
Este levantamento compõe as primeiras quarenta pranchas contidas em anexo a este caderno, onde se poderá ver efetivamente as questões que aqui coloco.
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Comparar as pranchas da série 1 com a série 2, sobretudo, prancha 2.13
Ver pranchas 1.01 a 4.05
3 A capitania, a cidade e a capela [narratio]
Origem das povoações e edifícios religiosos na região das minas Antes de falar do edifício estudado, em si, é apropriado fazer uma breve recapitulação sobre as origens do povoamento da região onde se localiza, provendo ao leitor subsídios para maior compreensão de nosso objeto de estudo, como produto artístico e religioso, simultaneamente. Isto porque os projetos coloniais para a região mudam de maneira substancial com o início de seu povoamento, configurando situações peculiares do ponto de vista institucional, e até cultural, que influenciam na configuração de seus edifícios, sobretudo os edifícios religiosos. Entender minimamente como funcionava a sociedade colonial na região das Minas de Ouro é, portanto, o passo inicial para entender nosso objeto de estudo. O povoamento na região das minas de ouro brasileiras durante o período colonial provocou consideráveis mudanças na administração e nos projetos portugueses para a colônia americana. Da diversificação das principais atividades econômicas aos deslocamentos populacionais, a descoberta de fabulosas quantidades de ouro a ser extraído, que compunham uma proposta real de enriquecimento e ascensão social dos colonos, provocou uma reorganização da estrutura política dando maior ênfase à atual região sudeste e povoando, com certa carga de pioneirismo, novos territórios interioranos na América Portuguesa. Tal povoamento se deu de maneira peculiar e veloz, porque em função de uma febre mineradora, o que permitiu a formação de povoações com estrutura
Carmo de Mariana. Fotografia de Eric Hess, s/d. (Fonte: Arquivo Central do IPHAN)
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fundiária diversa daquela de monocultura colonial, em que os modos de vida essencialmente urbanos têm importante papel social, inclusive no fomento de elaborados gêneros artísticos e arquitetônicos. A região aurífera do atual Estado de Minas Gerais começa a ser povoada ainda em fins do século XVII, a partir de incursões feitas pelos paulistas (ou “vicentinos”, porque advindos da Capitania de São Vicente). Rapidamente teve intensificada a povoação na região, também por muitos luso-nordestinos, que àquela altura deixavam as regiões litorâneas em função da decadência das monoculturas açucareiras, uma vez correntes os relatos da presença do ouro naquelas localidades.
1 | A esse respeito, ver a periodização proposta por Sylvio de Vasconcellos: VASCONCELLOS, S. Arquitetura Religiosa. In: ______. Arquitetura dois estudos. 2 ed. Goiânia, MEC/ SESU/PIMEG-ARQ/ UCG, 1983. P. 45 – 61.
As povoações lá edificadas concentram uma estrutura fundiária peculiar, por assentar-se em um terreno quase sempre montanhoso e difícil, e concentrar núcleos urbanos pulverizados mas relativamente próximos uns aos outros, auxiliados pelas circunstâncias geofísicas que “amarravam” as povoações em torno das minas. Verifica-se, portanto, a evolução dos aglomerados urbanos em torno de arraiais que reuniam os diversos moradores em festividades (religiosas) e eventos coletivos 1 ; não há, inicialmente, uma prerrogativa institucionalizada de “fundar cidades”, entendendo-se como um estabelecimento do Poder Metropolitano na região. Muito pelo contrário. O que move estes primeiros impulsos é a atividade mineradora, de iniciativa “aventureira”, ainda pouco controlada pelo Estado português, além de pouco estruturada: de início, lá pouco se plantava, e muito do comércio de carnes era controlado por espécies de “cartéis” de açougueiros, além de outros insumos serem comumente importados chegando a preços muito elevados. Esses problemas decorrem de uma ocupação sem a intenção, em um primeiro momento, de se fazer perene no local (diferentemente de uma colonização agrária, por exemplo), levando mesmo a fomes e êxodos, como em Ouro Preto, nos idos do Setecentos. Por outro lado, sendo a principal atividade econômica a mineração e não a agricultura, por exemplo, a povoação da região não se fez com a prerrogativa de grandes distâncias físicas entre famílias e outros núcleos. Trata-se de um povoamento feito a partir do princípio do grupamento urbano, e não do latifúndio, e daí a organização da vida social
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com maior importância dos arraiais. O rápido e intenso crescimento demográfico, aliado à dificuldade de administrar a região, ainda pertencente a uma grande capitania sediada no Rio de Janeiro, em breve levou seus habitantes a conflitos armados, no caso, estimulados pela escassez e preço dos insumos, como também em função da exigência de primazia na exploração do ouro, por parte de seus primeiros descobridores paulistas. Essa condição é reforçada pela concorrência de reinóis e luso-brasileiros das costas nordeste da colônia, intensificada pela insípida presença da Coroa, culminando em conflitos dentre os quais se situa a Guerra dos Emboabas (1707-1709). Este episódio levou a governo português à reorganização administrativa de algumas Capitanias brasileiras. Logo após o fim do conflito, em 1709, a Capitania de São Vicente é dividida em Capitania de São Paulo e Minas de Ouro e em Capitania do Rio de Janeiro, o que ligava ambas as regiões à Coroa de maneira mais direta; também para esse fim se iniciam outras medidas administrativas na região das Minas, como a outorga do título de Vila a alguns arraiais e a proibição de religiosos de Ordens Primeiras e Segundas (comentaremos este fato mais adiante). Não diferentemente, Mariana nasce como arraial a partir das incursões de bandeirantes naquela região em busca de pontos de mineração aurífera, às margens do Ribeirão do Carmo, ainda no fim do século XVII. Aliás, um de seus atuais distritos, Santa Rita Durão, é um dos primeiros locais que começam a explorar o ouro no século XVIII, além de ser um dos mais abundantes neste metal. A criação da nova Capitania, governada por Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, marca o início de uma série de medidas concretas do Estado português para promover e controlar o povoamento da região. Uma das primeiras medidas foi a concessão do título de Vila a algumas povoações, o que pressupunha a instauração de representações oficiais como Casa de Câmara e Cadeia. Neste contexto compreendese a eleição de vereadores, deliberações sobre a criação e regulamentação de arruamentos urbanos, obras públicas, a ereção de templos 2, etc.
2 | Tais responsabilidades do Estado português com o patrimônio religioso residem na relação estabelecida por meio do Padroado real com as instituições religiosas em territórios portugueses. Estas questões são cuidadosamente examinadas no trabalho de Caio César Boschi, e serão oportunamente comentadas no correr de meu trabalho. Ver: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder (Irmandades leigas e política Colonizadora em minas Gerais). São Paulo: Editora Ática, 1986.
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Nas primeiras décadas do século XVIII vários arraiais foram proclamados vilas: Mariana (Vila do Carmo) e Ouro Preto (Vila Rica) em 1711; Vila de São João del Rei em 1713; Serro (Vila do Príncipe) e Caeté (Vila Nova da rainha do Caeté do mato Dentro) em 1714; e Pitangui (Vila Nova do Infante) em 1715. Não poderia precisar com segurança o porquê de Mariana ter sido a primeira daquelas povoações a tornar-se, oficialmente, Vila, já que a tipologia e importância de todas era muito semelhante. Fato é que em 1711 o então governador da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, eleva o arraial, que se chamava Arraial do Ribeirão do Carmo à categoria de Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo, decisão confirmada em carta régia de 14 de abril de 1712, quando se instituiu a Vila Real de Nossa Senhora. Será elevada à categoria de cidade em 1745, com o nome de Cidade Mariana, em homenagem à esposa do Rei D. João V, Da. Maria Ana de Áustria.
3 | ARQUIDIOCESE de Mariana. Histórico. Disponível em: <http://www.arqmariana.com.br/?page_ id=12>. Acesso em 24 de nov. 2013. 4 | COELHO, José J. T., apud BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder (Irmandades leigas e política Colonizadora em minas Gerais). São Paulo: Editora Ática, 1986. P. 82.
A outorga do título de Cidade a Mariana é singular dentre suas vizinhas, conferindo-lhe importância administrativa. A isto soma-se a instituição de uma arquidiocese desmembrada do Rio de Janeiro, a sexta no Brasil, a partir de 1748 3, vindo como uma resposta à região, por conta das restrições à presença de religiosos. Tais restrições se configuraram em diversas Ordens Régias ao longo do século XVIII, evoluindo no sentido de especificar a expulsão dos “Clérigos desnecessários, e [consentindo-se] só aqueles que fossem, precisos para o Serviço das Igrejas” 4. Isto porque, de acordo com a política do Padroado Real, estabelecida entre Roma e as coroas ibéricas para a catequização dos territórios ultramarinos (e, mais especificamente no Setecentos, dentro da estrutura do Estado absolutista português), o Rei, como representante de Deus na Terra, tinha poderes outorgados de Roma para orientar e “legislar” sobre o clero em seus domínios, o que provocava desavenças entre ambas as partes. Este modelo administrativo punha em conflito o clero e o Estado, já que o primeiro segmento queixava-se, ainda que de maneira velada, de não fazer mais do que representar as Ordens Reais na colônia, o que prejudicava a atividade pastoral; o segundo, por sua vez, argumentava serem os religiosos insubordinados de diversas formas. Estes conflitos levaram a concomitantes ordens de governo à recém-criada Capitania de São Paulo e Minas no
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sentido de não permitir os religiosos “ociosos”, isto é, aqueles que não praticavam os ofícios sacros, até porque a região das Minas estava criando uma delicada estrutura fiscal, por conta dos afluxos de ouro, e o serviço religioso também funcionava como um “emprego”, em que o religioso cobrava por serviços à população (missas, velórios, etc.) e, por vezes, burlava o fisco; isto, sem contar o fato de muitos religiosos atuarem como verdadeiros espiões a serviço de outras nações, já que eram “pessoas internacionais” (um francês poderia facilmente ser enviado ao Brasil por sua Ordem Religiosa, vindo não como francês, mas como franciscano, por exemplo). Tais fatos, portanto, explicam a criação de uma diocese em Mariana também como um braço do Estado português nas questões religiosas e fiscais. Ainda que as restrições se dirigissem às Ordens Primeiras e Segundas, verificam-se outros atritos também coma as Ordens Terceiras, como relata Boschi: Em favor dos bispos, no entanto, deve-se ressaltar que sua jurisdição sobre as ordens religiosas sempre foi questionada por estas. Os regulares, assim como as ordens terceiras, insistiram em não se submeter às autoridades locais, dizendo-se subordinados diretamente aos Gerais do Carmo (em Roma) e de São Francisco (em Castela). Assim procedendo, evocavam sua tutela a autoridades estrangeiras, num comportamento inadmissível para os interesses e a autoridade do Estado absolutista português. Portanto, se a repressão foi maior e mais incisivamente voltada para os frades é que eles, conquanto também vivendo sob o padroado, invocavam a subordinação direta a autoridades que, se bem legítimas, não poderiam ser reconhecidas como substitutas das autoridades régias e eclesiásticas de Portugal. Afora isso, embora a Coroa insistisse em ratificar a
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“Plãta da cidade de Mariana” (séc XVIII), (Fonte: BASTOS, Rodrigo de A. “Regularidade e ordem nas povoações mineiras do século XVIII”. In: Revista do IEB. N. 44, fev. 2007. Pp. 27-54.)
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5 | Ibidem.
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disposição legal que su-bordinava os regulares aos bispos diocesanos, estes nunca se submeteram integralmente a outras autoridades que não as de sua própria ordem 5.
Não obstante a isso, a estrutura social nas Minas organizouse de maneira enfática em torno das Ordens Terceiras, isto é, irmandades leigas. Estas assumem papel fundamental na estrutura social do Estado católico português, e adquirem proeminência ainda maior na região das minas, como instituições coletivas quase hegemônicas, capazes de prover assistência médica e solo sagrado para um enterro decente, a seus irmãos. Eram como instituições em torno das quais a sociedade se organizava e permitia que seus indivíduos se identificassem como pertencentes a um grupo, ao mesmo tempo em que distinto dos demais grupos. 6 | A dita capela, no entanto, hoje não pertence mais à irmandade do Carmo de Mariana, pois esta se dissolveu durante meados do séc. XX. O edifício foi, então, incorporado à Diocese local que, hoje, se refere ao edifício como Santuário de Nossa Senhora do Carmo. Imagino que haja um número específico de relíquias católicas sob a guarda deste edifício, para conferir-lhe tal designação, e reconheço a propriedade do termo com relação ao uso contemporâneo do edifício (diferentemente de chama-lo de “igreja”); insisto, porém, em me referir a ele como capela, por fazer um estudo que, sobremaneira, analisa o edifício em sua gênese.
A comunidade, entendida como a congregação das irmandades, por sua vez, se faz na Igreja Matriz de cada vila. A Matriz é, de fato, uma igreja, e uma igreja de caráter comunitário, de cujo edifício o Estado tinha deveres de manutenção. Em sua origem, a matriz abriga, ao redor do orago da comunidade, os altares dedicados ao culto de outros santos que, sucessivamente, são estruturados em irmandades. As irmandades começam a se formar tendo como espaço de culto um dos altares da matriz. Dessa forma, ao se visitar uma matriz, se poderia ter a situação de uma missa ser rezada por uma irmandade, em um dos altares colaterais, dedicado ao santo específico da irmandade, ao mesmo tempo em que outra missa, ou ladainha, ou outro ofício, fosse executado por outra irmandade, em seu respectivo altar, na mesma nave. Com o tempo, e a irmandade havendo uma receita financeira mais estável, pedia-se permissão à Câmara para ocupar terras e construir a sua própria capela fora da matriz, sem, no entanto, se deixar representar pelo altar de culto originário, dentro da mesma. Por esta razão, todos os templos edificados em uma vila ou arraial ou cidade na região das minas, à exceção da matriz, são chamados de capela, independentemente de sua escala física, pois se tratam do local de culto de uma irmandade leiga. Portanto, é pela mesma razão que, buscando uma aproximação mais coeva a conceitos vigentes na cultura que elaborou os
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artefatos que estamos estudando, refiro-me ao templo dedicado à Nossa Senhora do Carmo como Capela, Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo ou Monte Carmelo, etc 6. O culto a Nossa Senhora do Carmo e a sua Capela O culto a Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, talvez seja o mais antigo naquela localidade que, aliás, recebe seu nome em homenagem à dita Senhora, e se localiza às margens do Ribeirão do Carmo. Segundo Salomão de Vasconcellos, uma capela dedicada a Nossa Senhora do Carmo foi a primeira das capelas erigidas naquela localidade, pelo bandeirante Salvador Fernandes Furtado, feita em barro e cobertura de palha, em local hoje desconhecido; esta capela, posteriormente, dá origem a outras mais, que constituem-se como freguesias, sendo que uma delas seria eleita em 1709 para sediar a Matriz, posteriormente Catedral de Mariana. Note-se que o culto a N. S. do Carmo não se trata da congregação leiga especificamente; a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, por sua vez, é formada em Mariana somente em 1754, reunindo-se inicialmente em uma capela dedicada a São Gonçalo (edifício hoje inexistente), e depois construindo uma “capela provisória” dedicada ao Menino Deus, localizada ao lado da atual e definitiva capela, que começa a ser erigida em 1784 7. Da capela dedicada ao Menino Deus ainda se conservam apenas algumas fotos, pois fora demolida no século XX, dando lugar a um jardim ao lado do atual edifício. Para a construção da atual Capela, foi contratado o mestre de obras português Domigos Moreira de Oliveira, que da obra se encarregou até o ano de sua morte, em 1794. Sabe-se que até esta data a fachada do Carmo já havia sido concluída, inclusive com a colocação da portada e dos anjos esculpidos por Sebastião Gonçalves Soares. Além disso, sabe-se que o risco do retábulo da capela-mor fora fornecido pelo padre Félix Antônio Lisboa, meio irmão do Aleijadinho, em 1797, tendo sido concluído apenas em 1826. O douramento do dito retábulo, bem como a pintura do forro da Nave foram executados por Francisco Xavier Carneiro 8.
7 | Salomão de Vasconcellos data o início da construção do edifício em 1784, ao passo que Myriam A. Ribeiro de Oliveira o data em 1783. Essa divergência provavelmente se dá pelo fato de a Mesa da Ordem ter deliberado pela construção do novo edifício em 1783, mas tê-la iniciado no ano seguinte. Ver: VASCONCELLOS, Salomão. Marianna e seus templos. Belo Horizonte: Graphica Queiroz Breyner Ltda. 193?. Cf. OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 145. 8 | OLIVEIRA, M. A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 145.
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A dar conta de descrever o histórico de construção do edifício de maneira sucinta, julgo apropriado transcrever um documento, produzido pelo então chefe do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, o prof. Altino Barbosa Caldeira, para um artigo publicado nos Cadernos de Arquitetura e Urba9 | CALDEIRA, Alti- nismo da PUC-Minas 9, sobre o edifício que, à época, passava no B. Igreja de Nossa por obras de restauro (obras estas que, em 1999, ironicamente Senhora do Carmo de culminaram em um incêndio): Mariana. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 2 , p. Cronologia da Igreja de Nossa Senhora do Carmo - Mariana 11-33, ago. 1994. 15.05.1751: Fundação da Ordem Terceira dos Carmelitas
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arrematando em 1801 o resto das obras. 1818: Iniciam-se as obras da Capela do Noviciado. Contratado Francisco Machado da Luz, a quem abe também executar o corredor que servirá de sacristia. 1819: Manoel Dias executa obras no retábulo. 1823: Providenciados os sinos. Resolve-se nesta data desmanchar a capela velha, erigindo-se neste local novo frontispício. Francisco Xavier Carneiro executa o douramento do altar-mor. A sacristia e o corredor do lado são executados por Joaquim José de Souza.
1759: Aquisição do terreno. Ereção da Capela do Menino Deus.
1827: Execução dos altares laterais e pintura do teto e do corpo da igreja.
1762: José Pereira Arouca (construtor da Casa de Câmara e Cadeia) iniciou as obras na Capela alterando a localização do coro.
1835: Conclusão das obras. 1840: A igreja recebeu auxílio para obras de conservação.
1764 e 1765: Antônio Coelho Lamas efetuaou pinturas na Capela. 1768: Foi pintada a Capela-Mor. Manoel da Costa Athaide recebe por serviços não especializados.
1881: A Ordem recebeu do governo estadual recursos para limpeza externa da igreja. 1916: Procedeu-se à caiação da fachada.
1783: A mesa da ordem resolveu construir a igreja 1930: O seu telhado foi restaurado. 1784: É contratado Domingos Moreira de oliveira que pelos próximos dez anos, executa as obras preliminares da igreja. 1793: Romão de Abreu, carpinteiro, é chamado a colaborar, prometendo dar pronta “na presente seca” da Capela-Mor para ser coberta de telhas. A José Meirelles Pinto cabe a execução da obra de talha da porta principal. 1794: Contratado Custódio de Freitas Guimarães para tomar conta da obra. Sebastião Gonçalves Soares recebe pelo feitio de dois anjos de pedra para o frontispício. 1797: O irmão di Aleijadinho, padre Félix Antônio Lisboa, executa o risco da talha do altar-mor. 1799: José Bernardes de Oliveira é chamado para dirigir as obras. Francisco Machado da Luz executa obras de carpinteiro no corpo da igreja,
1939: A Capela foi inscrita pelo instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no livro de Tombo das Belas Artes. 1953/54: Foram feitas nova revisão do telhado, substituição do assoalho e remoção da pintura a óleo do cancelo, colocação de para-raios e pintura geral interna e externa. 1987: Iniciada a recuperação completa da cobertura pelo SPHAN/Prómemória, sendo contratada a construtora Walter Coscarelli. Foram substituídos o madeiramento e entelhamento da Capela-Mor, Capela lateral 10 | As pranchas deste e Sacristia, tendo sido realizado o levantamento cadastral completo do trabalho datam de 1988, e é a esta data que me monumento 10. referirei ao falar sobre estes trabalhos, no de1988: Foram adquiridos pelo Escritório Técnico da SPHAN de Mariana correr de meu texto. parte do paterial necessário à restauração da estrutura do altar-mor, da
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cúpula de estuque da Capela e peças de fiação para a nova instalação elétrica.
11 | Idem, p. 18 – 19.
1992: Executado o projeto arquitetônico de restauro e conservação completa da igreja, na 13ª Coordenação Regional do IBPC, pelo Arquiteto Altino Barbosa Caldeira 11.
A capitania, a cidade e a capela | 3 Hipótese sobre as etapas de construção do edifício, baseada na cronologia elaborada pelo prof. Caldeira, e nos inventários do IPHAN 12:
Alvenarias: 1784 - 1793: Capela-Mor. ? - c. 1801: Corpo da edificação 1823 - ? : Frontispício. Sacristia. Corredor Lateral
A completar esta cronologia, cabe dizer que a Ordem Terceira do Carmo em Mariana dissolveu-se ao longo do séc. XX, tendo a administração de seu Templo sido confiada à Diocese. Outros eventos que se abateram sobre nosso objeto de estudo vêm reportados a seguir, com atenção especial no espaço de um capítulo inteiro.
Elementos lígneos: 1797 - 1826: Altar-Mor c. 1818: Balaustrada da Nave 1824 - 1827: Altares Laterais 1824 - ? : Tapa-Vento
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12 | MINISTÉRIO DA CULTURA. SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA. INVENTÁRIO NACIONAL DE BENS MÓVEIS E INTEGRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Região de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janeiro, set. 1988.
4 História recente: incêndio e intervenções [narratio]
Devido à intensidade dos acontecimentos mais recentes relativos à Capela da ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, decidi reportar em um capítulo à parte o que apurei em extratos de periódicos, manifestos, informativos técnicos e de propaganda, quase todos conservados no Arquivo Eclesiástico da Diocese de Mariana.
Carmo de Mariana. Altar do Lado da Epístola, antes do incêndio. (Fonte: Biblioteca da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais)
O incêndio Os últimos trabalhos mais incisivos no Carmo iniciaram-se em 1988 com o levantamento conduzido pelo prof. Altino Barbosa Caldeira, onde se pôde averiguar alguns problemas estruturais, o que resultou no fechamento do edifício ao público por alguns anos. Em 1995 foram obtidos recursos junto à Fundação Vale do Rio Doce, BNDES, e benefícios da Lei Rouanet 1 para a restauração, que se concentrou na consolidação estrutural de alguns elementos específicos. Averiguando os arquivos do Escritório Técnico do IPHAN em Mariana, e da Superintendência Regional do IPHAN em Belo Horizonte, pude encontrar alguns destes trabalhos, cujas informações cruzei com outras encontradas em publicações feitas ao longo daqueles anos. Interveio-se, sobretudo, nas ossaturas do forro de madeira da Capela Mor, em formato de abóbada de arestas, duplicando-se e substituindo-se as cambotas e nervuras diagonais avariadas por cupins. Também encontrei relatórios fotográficos que mostram a consolidação do arco cruzeiro, feita com injeção de calda de cimento na chave do arco, e na alvenaria acima dele, sendo o revestimento também, aparentemente, feito com material cimentício.
1 | ALMEIDA, Luciano Mendes de. Mariana revive. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, A2, 03 fev. 2001.
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Todo este trabalho é tido como “adequado” e “exemplar” por alguns veículos de informação 2. Os trabalhos prosseguiam, em fase final de execução, com o templo já aberto aos fiéis; em 20 de fevereiro de 1999, dois operários subiram ao forro da Nave para aspergir querosene na superfície exterior das madeiras, à época produto de uso corrente na descupinização de elementos lígneos. Segundo o prof. Altino 3, se aspergia o produto enquanto se iluminava o ambiente com uma lâmpada incandescente e, em algum momento, um jato de Carmo de Mariana querosene atingiu a lâmpada, provocando quase que instantadurante o incêndio. neamente o incêndio. Como agravante, Mariana não possuía (Fonte: http://www. uma brigada do corpo de bombeiros, tendo sido necessário vitruvius.com.br/ acioná-los de Ouro Preto, localizada a 11km de distância, mas revistas/read/arquitexdepois de estradas estreitas e tortuosas, o que dificultou a astos/03.027/759) sistência imediata ao sinistro. Jamais encontrei qualquer infor2 | ______. Carmo de mação sobre mortos ou feridos neste incidente. Mariana: o renascimento de uma história. In: Biph – Boletim Informativo do Patrimônio Histórico. 13ª SR/IPHAN-MG. Outubro de 1999, 4 pp.
3 | CALDEIRA, Altino B. A igreja do Carmo de Mariana. Vitruvius, Arquitextos, 027.3, ano 3, ago. 2002. Disponível em: <http:// www.vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/03.027/759>. Acesso em: 10 fev. 2014.
Os danos O fogo consumiu o forro e a estrutura do telhado da Nave, que àquela época ainda era toda em madeira, provocando o desabamento do conjunto sobre o espaço da Nave e Coro. Como consequência, seja do fogo ou do desabamento, perdeu-se os guarda-corpos dos púlpitos; os altares laterais juntamente com sua imaginária; o pavimento e guarda-corpo do Coro; o assoalho e guarda-corpos da Nave; o paravento que dividia o Nártex e a Nave; e a cimalha acima do Coro. Além disso, possivelmente pelo calor do fogo, ou pelo choque térmico provocado pelo uso da água para apagar o incêndio, vários elementos em cantaria explodiram, como as ombreiras das portas da Nave (praticamente todas), e algumas partes do arco
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cruzeiro. Os danos às cantarias das aberturas parecem se justificar por essas razões, já que as vergas das janelas altas, como se pode ver nas fotos imediatamente pós-sinistro, não sofreram danos. Acredito que, por localizarem-se dentro da projeção da cimalha interna, os escombros flamejantes não as tenham atingido diretamente. Nunca encontrei informações precisas sobre os púlpitos, mas certa diferença de coloração entre eles me levanta a suspeita de que um deles (lado da Epístola) tenha sido reconstruído, ou sofrido reintegrações bastante grandes; fato é que se pode ver reintegrações menores, possivelmente em argamassa cimentícia, nas ombreiras dos púlpitos. Além disso, as portas que compartimentavam a Nave também sofreram avarias de graus variáveis. Surpreendentemente, a Capela Mor não foi atingida diretamente pelo fogo, em parte por sua cobertura localizar-se em altura inferior à da Nave, o que manteve íntegro aquele espaço, apesar de, como observa o prof. Altino,
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Danos na Nave, logo após o incêndio. (Fonte: http://www. vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/03.027/759)
o calor das chamas, no entanto, provocou o deslocamento da superfície da pintura do altar-mór, tornando-as vulneráveis [sic] e pondo em risco a segurança da estrutura em barrete de clérigo [abóbada em aresta] 4. 4 | Idem, ibidem.
O processo de restauração. Um incidente desta natureza, como era de se esperar, movimentou a opinião pública local e regional. Pode-se ter alguma ideia da pressão gerada sobre os responsáveis do canteiro de obras, Arquidiocese e IPHAN, através da variedade de material gráfico produzido, sobretudo procurando explicar à co-
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munidade como estavam sendo levadas a cabo as obras pós-sinistro.
Ações imediatas de consolidação estrutural: escoramento dos vãos. (Fonte: Arquivo Eclesiástico da Diocese de Mariana)
5 | ______. Biph – Boletim Informativo do Patrimônio Histórico. 13ª SR/ IPHAN-MG. Outubro de 1999, 4 pp.
Segundo o Boletim Informativo do Patrimônio Histórico 5, para nortear as diretrizes das novas intervenções, foi feito o fórum “Reflexões sobre o Carmo de Mariana”, organizado pela 13ª Superintendência Regional do IPHAN (13ª SR/IPHAN), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), Centro de Conservação e Restauração (CECOR/UFMG) e Arquidiocese de Mariana, convidando as seguintes personalidades: Faiga Ostrower (artista plástica), Myriam Ribeiro de Oliveira (historiadora), Moacyr Laterza (filósofo), Silva Telles, Odete Dourado e Rodrigo Meniconi (arquitetos), Antônio Carlos Brandão (EA/UFMG), Beatriz Coelho (CECOR/UFMG), e representantes da comunidade. Além disso, a Arquidiocese de Mariana organizou uma “Comissão de Acompanhamento da Intervenção na Igreja do Carmo de Mariana”, também com representantes do IPHAN, IEPHA, CECOR/UFMG e Arquidiocese, que escolheu o arquiteto Rodrigo Meniconi como o de melhor perfil técnico para apresentar o futuro projeto de intervenção. O que se pode apreender, portanto, é que o Fórum promoveu a troca de ideias entre profissionais de diferentes áreas e membros da comunidade, a fim de definir diretrizes de intervenção, e a Comissão de Acompanhamento, organizada pela parte comitente da obra (isto é, a Arquidiocese de Mariana), elegeu o futuro autor do projeto, procurando assegurar que seguisse
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as indicações do relatório final do dito fórum. É digno de nota que as diretrizes divulgadas aparentam ser bem adequadas a reconhecidos preceitos do Restauro Arquitetônico, ratificados por documentos como a Carta de Veneza (1964): A diretriz que norteará o trabalho, segundo preceitos e normas consagradas de restauração, é de não se ferir a autenticidade da obra. Assim, o que se buscará é a reconstituição dos elementos destruídos pelo incêndio, mediante o uso de materiais contemporâneos e compatíveis. Os novos elementos incorporados, tais como a cobertura e altares laterais, serão diferenciados dos originais, de forma a possibilitar a sua clara identificação, resguardando a fidelidade aos aspectos documentais do monumento.
Intervenção estrutural: Telhado refeito em estrutura metálica e novas cambotas da abóbada. (Fonte: Biblioteca da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais)
O que se pretende no trabalho é restaurar o conjunto, a ambiência, devolvendo a funcionalidade do monumento como local de culto religioso, sem contudo criar um “falso”, ou seja, induzir à ilusão de que todos os elementos são originais. 6 6 | Idem, p. 3.
Os trabalhos, então, foram levados a cabo a partir das intervenções de caráter eminentemente técnico: Como ações de consolidação estrutural emergencial, logo após o incêndio, fez-se uma cobertura plástica provisória sobre leves tesouras metálicas por cima da Nave, a fim de proteger seu interior, e todos os vãos foram tamponados com tijolos, com exceção da entrada, que foi escorada em pontaletes de madeira, a fim de diminuir os esforços sobre as vergas.
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7 | Toda esta documentação encontra-se no Arquivo Histórico da Casa Setecentista (Mariana), vinculado à 13ª SR/IPHAN, em duas pastas intituladas “Igreja N. Sra. Do Carmo”.
Os memoriais da empresa Cerne Engenharia 7 mostram estudos de estabilidade das portas em arco, e do comportamento estático da fachada (já que possui dois óculos de geometria intrincada), e propõem maneiras de consolidar os danos nas alvenarias: Fissuras (injeção de cimento pozolânico); fissuras secundárias (aplicação de tela elástica); trincas (colocação de grampos); juntas de cimalhas (injeção manual de argamassa de areia e cal, 1:3).
O telhado acima da Nave (também detalhado pela Cerne Engenharia) foi refeito em tesouras de desenho semelhante às originais, porém em estrutura metálica, com contraventamentos de tirantes nas duas extremidades transversais do espaço, e ripado metálico diretamente sobre as tesouras; por cima, telhas capa-e-canal industrializadas. Toda a estrutura é assentada sobre uma espécie de “frechal” em concreto armado, ancorado acima da estrutura dos muros.
Para os ambientes não diretamente afetados, também se descreve ações: revisão dos telhados da Capela do Santíssimo, Corredor Lateral e Sacristia; substituição das telhas de cobertura da Capela Mor, com colocação sobre o forro em placas de fibra de vidro e resina; restauração das fachadas, compreendendo as cantarias em pedra e pintura a cal nas paredes (e cor ocre nas modenaturas em alvenaria), com aplicação de protetor (?); instalação de Sistema de Proteção de Descargas Atmosféricas (SPDA); recuperação das portas e esquadrias de madeira e gradis em ferro.
O forro, em formato de abóbada de berço, foi refeito segundo a geometria anterior, também em madeira, porém unicamente com o fundo branco, e sem repinturas das cenas outrora figuradas, como a entrega do Manto Carmelita por N. Sra. do Carmo a São Simão Stock, circundado por rocalhas e o conjunto emoldurado por pinturas de balaústres. Para preencher esta lacuna pictórica, foi previsto um sistema de iluminação capaz de projetar no forro as pinturas que antigamente existiam. Essa proposta, só encontrei mencionada por escrito; nunca encontrei nenhum detalhamento de projeto, seja do local de posicionamento e tipo de projetores, ou da anamorfose a ser
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Aspectos da nova intervenção (da esq. para a dir.): 1. Coro e Tapavento; 2. Altares laterais e balaustrada da Nave; 3. balaustrada do Coro; 4. danos à cantaria no Arco Cruzeiro. (Fotos do autor)
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feita para compensar as distorções ópticas provocadas pela projeção em uma superfície curva. Tenho-a como uma boa proposta, mas que requer fôlego para enfrentar estas questões de natureza óptica, que talvez não tenham sido muito levadas em conta, fazendo-me crer que a proposta fora lançada um pouco “a esmo”, não sendo levada adiante. A cimalha acima do Coro (nunca pude precisar se era feita em pedra ou madeira policromada) ruiu com o desabamento, e fora reconstruída em blocos de concreto celular, segundo especificações de projeto de Rodrigo Meniconi; hoje, o acabamento final das cimalhas uniformizou quaisquer diferenças de cor ou textura entre estes materiais, sendo impossível diferenciá-los. O pavimento do Coro fora reconstruído volumetricamente, isto é, com a simplificação de seu desenho e das modenaturas que compunham seu forro, deixando claro (ao menos para um olho minimamente familiarizado com o repertório) não se tratar do artefato original. Foi estruturado em dois engradamentos metálicos que sustentam os barrotes de um assoalho. Para o forro desta estrutura (acima do Nártex), algumas ripas de madeira compõem “pseudo-modenaturas” que não seguem nem o perfil nem a composição em losangos original; são meras invenções, tal como os balaústres do guarda-corpo do coro (e também os da Nave), cujo desenho e coloração do verniz não têm alguma conexão com o que existia antigamente (talvez, justamente, pela intenção de não “fazer falsos”). Estranhamente os arcos que emolduravam o Nártex, sustentando o Coro e a cimalha acima do Coro, não foram reconstruídos de nenhuma forma. Tratavam-se de elementos lígneos pintados de azul, que promoviam um suave emolduramento dividindo o espaço da Nave. Além disso o arco superior, graciosamente trilobado, sustentava gramaticalmente a cimalha acima dele que, hoje, fica “flutuando” solta acima do Coro, o que resulta em uma composição bastante desconexa. Logo abaixo se vê a primeira reconstrução de um artefato importante que se perdeu: o paravento (ou “tapavento”). Os critérios para tal são os mesmos usados para os outros dois artefatos importantes, os altares laterais. Em ambos os três,
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se optou por uma reconstituição volumétrica que, segundo os autores do projeto, iria proporcionar uma ambiência e memória dos elementos que antigamente existiam, mas sem induzir o expectador ao “erro”, ao pretender realizar uma cópia, ou seja, um falso histórico. As imagens religiosas que hoje se encontram no edifício ocupam lugares distintos de antes do incêndio, já que algumas originais se perderam, e o conjunto foi redistribuído. Por fim, basta dizer que algumas das portas que se localizavam na Nave foram reconstruídas tal como as originais, e outras, menos deterioradas pelo fogo, foram recuperadas e reinstaladas; os elementos em cantaria danificados durante o sinistro, foram quase que em sua totalidade assim mantidos, para rememorar este trauma recente.
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5 Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários [refutatio]
Todo o processo e resultados das intervenções subsequentes ao fogo de 1999 são muito interessantes e surpreendentes. A primeira coisa que me chama a atenção é a opção, aparentemente imediata, por critérios de intervenção que se pautassem em princípios arqueológicos e repudiassem os falsos históricos. No entanto, essa decisão parece ter sido tomada a priori, talvez até sem discussões tão extensas como se devesse. O resultado disso parece ser uma polarização entre profissionais partidários da “reconstrução como era” e partidários de operações compreendidas dentro das doutrinas do restauro crítico, claramente identificável em diferentes declarações. Para o caso, além da ênfase dada a “não fazer um ‘falso’ histórico” vista no Boletim Informativo do Patrimônio Histórico, temos a contrapartida da profa. Myriam Oliveira quando escreveu, mais recentemente sobre o templo, em uma das publicações da série Roteiros do Patrimônio (IPHAN): Infelizmente, ao contrário do que seria lógico esperar, os retábulos da nave e demais elementos perdidos no incêndio não foram reconstituídos no modelo original, amplamente documentado em fotografias do Arquivo do Iphan e sim em formato simplificado. Esses retábulos, apesar de sua pintura branca, têm peso visual excessivo no conjunto da decoração, contrastando negativamente com a leveza da talha rococó da capela-mor.
Museu Marino Marini (Ex-convento de San Pancrazio, Florença). Intervenção de Bruno Sacchi. (Foto do autor)
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1 | OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 147.
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Recomenda-se, portanto, passar diretamente à capela-mor [...]
Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5 1
É interessante notar que esta polarização entre diferentes princípios de restauração também ganha ênfase depois de concluídos os trabalhos no Carmo, em função da pouca aceitação do público geral ao resultado final da intervenção. Meu objetivo é demonstrar que essa polarização. durante a elaboração dos trabalhos, não foi profícua, e que por consequência dela própria, ambos os partidos insistiram em incoerências teóricas e práticas, o que pode ter causado equívocos conceituais, 2 | É difícil precisar ou simplesmente resultados aquém do esperado, neste caso2. o grau de aceitação às intervenções feitas no Carmo. Apesar de imprecisa, é notório registrar a impressão que tive em inúmeras conversas com diferentes profissionais envolvidos com o caso e com a área do Restauro: dentre representantes daquela paróquia, do IPHAN e diversos colegas arquitetos, historiadores e restauradores, nenhum deles até hoje se expressou satisfeito com as intervenções, com relação a seu resultado final. Calculo que meu espaço amostral se limite a aproximadamente quinze pessoas, o que não oferece indício claro de algo. No entanto, trata-se do registro de uma unanimidade, que não poderia ao menos deixar de lembrar, nesta nota de rodapé.
O Carmo começa, então, a se revelar como um estudo de caso exemplar sobre doutrinas e princípios de restauro que ainda tanto dividem o debate teórico neste campo do conhecimento, sobretudo pelo fato de os princípios tidos como mais “contemporâneos” terem sido efetivamente aplicados, porém sem o efeito desejado. Lembrando que tais princípios puderam sedimentar-se a partir do segundo pós-guerra europeu, em oposição à ideia de restauro oitocentista, e em função da ampla destruição de bens artísticos e arquitetônicos como consequência daqueles eventos traumáticos. Nesse sentido, poder-se-ia categorizar o restauro crítico como uma doutrina de “vanguarda”, mesmo que originário de meados do séc. XX, pois até hoje não se consolidou como prática corrente e aceita em muitas escolas de restauro, e seu princípio dialético (antes da efetiva “cara” das intervenções) ainda segue válido se comparado às teorias sobre reconstruções em estilo, que partem do princípio de que um elaborado artístico é fisicamente “imitável”, abrindo margem a uma suposta “ambiência” de tempos passados. Esta ideia de “ambiência”, vale lembrar, encontra forte apelo dentre os que se poderia chamar de “passadistas”, pois veem na reconstrução de artefatos físicos um ensejo de “volta ao passado”, de maneira ideológica, o que considero um grave equívoco historiográfico, e que se apoia sob parâmetros físicos muito vagos (o ato de reconstruir, em si). Em resumo, tratam-se de anacronismos pois não se pode “voltar no tempo”, já que o tempo é um parâmetro linear (e não cíclico), como crê a Física e, sobretudo, nossa Filosofia e Historiografia contemporâneas.
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Passemos à análise do embasamento teórico dos discursos debatidos em torno deste caso, contraposta a questões operacionais que envolveriam a sua realização. Dentre os partidários deste conceito da reconstrução como réplica, a maioria dos que conheço são historiadores, dentre os quais alguns alegam não haver problemas, além de ser viável a reconstrução dos altares laterais e paravento tal como os que se perderam, insistindo que o Carmo, mais que um “museu”, é um local de culto e que, portanto, a musealização e historicização de seus elementos compositivos não é o cerne do programa daquele tipo de edifício. Portanto, não seria lícito “historicizar” uma questão religiosa e que, para o público alvo mais caro àquele edifício, isto é, o fiel e o local, se revelava muito traumática, na perda de elementos sacros e históricos que sempre fizeram parte de sua memória 3 | De fato, o Carmo coletiva e seu sentimento de pertencimento ao lugar 3. Além disso, a região possui meios pelos quais tornar esse tipo de tarefa factível, pois ainda abriga uma série de artesãos que trabalham os materiais de maneira quase idêntica aos tradicionais setecentistas; a orientar seu trabalho, uma série de fotos arquivadas nos órgãos patrimoniais estaria à sua disposição. Os partidários das reconstituições filológicas partem do princípio de que uma reconstrução ou réplica induz o espectador ao erro, constituindo-se, portanto, naquilo que é chamado de “falso histórico”. Um artifício, uma fantasia, mais ou menos próximo da (antiga) realidade conforme o forem a quantidade de informações sobre o antigo, e a perícia dos artífices, mas que não se torna lícita. Para o caso, foi defendida a reconstrução volumétrica dos elementos lígneos, de formas simplificadas em relação aos ornamentos. Começo a pensar no tema, pela via da réplica. A primeira ideia que me vem à mente é a distância entre o conceito e sua concretização. Fazer uma réplica, sobretudo em escala arquitetônica, e de algo que desapareceu, é uma tarefa que considero categoricamente impossível.
é hoje um dos templos mais importantes de Mariana, inclusive por ser uma capela de Ordem Terceira elevada à condição de Igreja, portanto, atualmente mais pública.
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Reconstrução em estilo e reconstrução crítica: comentários | 5
Muralhas de Carcassone (intervenção nas coberturas por E. Viollet-le-Duc). O caso demonstra que a intervenção de restauro também se historiciza. (Fonte: http://upload. wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a4/ Carcassonne_castle’s_ semi-circular_barbican. jpg)
Impossível porque, mesmo com artesãos trabalhando de maneira similar à antiga, e com as fotos que se diz ter, de imediato dou-me conta de que não temos informações suficientes sequer para tentar algo que não seja demasiado especulativo.
Ainda assim, mesmo se houvessem dados o suficiente. Talvez a especificidade de nossos estudos faça esquecermo-nos das reflexões feitas por nossos colegas, que já dominam há anos alguns temas.
Isto porque nunca foi feito no Carmo algum levantamento métrico dos elementos lígneos integrados à arquitetura. Ao menos dentre as informações remanescentes, não encontrei qualquer medida anotada sobre os detalhes dos altares laterais e paravento. As fotos são todas de qualidade razoável e seu rigor técnico destina-se ao registro inventariado, não servindo a restituições fotogramétricas que possam dar uma ideia segura do correto dimensionamento dos artefatos representados. Isto porque foram tiradas sem o auxílio de tripés ou outros instrumentos de nivelamento. Seus enquadramentos são, portanto, “tortos” e “soltos” no espaço, e impossibilitam a realização de uma fotogrametria séria (até porque não se tem ao menos as medidas gerais destes elementos, e sem isto não há fotogrametria).
O que quero dizer com isso é que a historiografia da arte insiste, e como corolário fundamental, que uma obra de arte é irreprodutível. Seja feita por um artista ou por um artífice, qualquer trabalho manual traz inflexões físicas únicas, somente obtidas uma vez e no momento da feitura da obra, impossíveis de serem reproduzidas, pois são incontáveis e não mapeáveis. Um entalhador mineiro pode saber fazer rocalhas à maneira das rocalhas setecentistas, mas jamais conseguirá fazer rocalhas idênticas às já feitas por qualquer um, seja um artífice setecentista ou mesmo um colega seu de ateliê. É possível imitar o estilo de algum artista, mas não copiar uma obra que alguém já fez.
Sem levantamento, sem medidas, sem dados proporcionais, sem desenhos de qualidade, e com fotos tiradas de maneira pouco profissional para um trabalho de levantamento, quais dados temos, afinal, para tentar reconstruir elementos nesta escala? A verdade é que não temos dado algum.
Mesmo os autores que escrevem sobre a prática do levantamento nos podem aportar subsídios à rechaça das assim ditas “reconstruções em estilo”: como já citado anteriormente, o trabalho de levantamento parte do princípio de que não é possível medir nem representar todos os pontos e relevos que compõem um objeto físico, sendo o levantamento uma “tradução” daquilo que se vê em dados analíticos objetivos (em geral em desenho) que, antes de mais nada, pressupõem
73 Frauenkirche (Dresda), reconstruída a partir de escombros, em 2006. O tema suscita inúmeras discussões, mas quero atentar ao aspecto “fantasioso” adquirido em seu interior já que, por mais tecnológicos q sejam os subsídios às intervenções, jamais se consegue reproduzir a pátina, fator de difícil quantificação mas fácil apreensão. Note-se o aspecto demasiado fantasioso, até meio “cassino de Las Vegas” conferido pela paleta de cores e iluminação. (Fonte: http://nomadicbrands.files.wordpress.com/2012/07/075frauenkirche-dresdenemail.jpg)
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um preparo cultural do executante, pois sempre lhe caberá escolher quais elementos compositivos serão representados, e com qual ênfase. O levantamento, portanto, não pode servir como “pretexto” para se pretender reconstruir um elaborado artístico, e sim como uma catalogação do mesmo que, a limite, apenas atesta o seu estado de conservação. Isso sem contar as qualidades sinestésicas de qualquer material, tema que muito me preocupa e poucas vezes é debatido, em função da dificuldade de se parametrizar esta questão; reconheço esta dificuldade, mas não a tenho como empecilho para o debate: Reconhecer qualidades sensoriais que vão além da visão implica em reconhecer certa temperatura que os materiais nos “emanam”, ou seja, que nosso corpo percebe, seja por condições físicas, ou mesmo pela memória sensorial deles (como um piso de ardósia, que me remete à casa em que vivi na infância, bastante fresca no verão); em reconhecer o cheiro que emana de um artefato submetido a séculos de luzes de velas, poeira e umidade, que talvez não seja o cheiro que se sentisse há cem anos atrás, mas é o cheiro que se estratificou naquele objeto, através do tempo. É uma forma mais ampla de entender aquela estratificação do tempo a que chamamos de pátina, algo essencial ao reconhecimento de um artefato como artefato histórico e que, para mim, se concretiza de maneira muito mais complexa do que perceptível a olho. A verdade é que o cedro que o Aleijadinho usava talvez não se encontre mais; além disso, mesmo se estivesse disponível, aquela figura trabalhada pelo escultor, naquele cedro setecentista, passou por décadas e mais de século dentro de uma capela, em condições de iluminação e ambiência específicas, que hoje lhe conferem características “misteriosas” de obra não-recente. Aberti, em De re ædificatoria nos prescreve o período do ano e a lua certa, ou seja, o tempo certo para a obtenção de todos os materiais de maneira durável para a construção de um edifício, de forma que a madeira, a pedra ou o barro não fossem usados úmidos ou secos demais. Trata-se de uma percep-
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ção de tempo em que o correr das horas não se sobrepõe ao desejo de se construir uma fábrica que se destina à eternidade, capaz de glorificar por séculos o engenho de quem a concebeu e a nobreza de quem a pagou. Trata-se, portanto, de uma percepção de tempo inimaginável em nossa sociedade industrial, incapaz de obter da natureza os “mesmos” materiais que se obtinha, e mesmo de lavorá-los como se os lavorou em uma cultura que não existe mais. Uma réplica, portanto, não leva em conta quaisquer desses dados, pois só é capaz de querer replicar qualidades visuais das mais simples. Uma réplica, portanto, sempre ignora a condição de obra de arte e objeto histórico daquilo que pretende replicar. Trata-se de um fetiche que, além de tudo, pretende contornar a mais simples razão de existência física, que é a de perecer. Ora, um artefato físico é perene se comparado à vida dos homens, mas não é eterno; a réplica (e por isso também se chama “falso”) dos dá a impressão equivocada de que determinado objeto está presente, quando na verdade não está (e em alguns casos nunca esteve!), e atesta nossa incapacidade de lidar com a perda. Entendo que a perda arquitetônica seja muito traumática para qualquer sociedade em nossa cultura ocidental, e que a própria perda interfira profundamente na maneira pela qual uma sociedade possa se agregar e se identificar coletivamente. Entendo que, estando em jogo a existência cultural de toda uma sociedade, “amenizar” o sentimento de perda física seja necessário, por meio de algum tipo de reconstrução física. Mas a perda arquitetônica existe, e é preciso deixar de acreditar que seja possível reconstruir um objeto desta natureza, pois – e nisto eu insisto veementemente – trata-se de algo fisicamente impossível. Talvez o que se valha como critério seja mesmo o respeito à Memória Coletiva (na verdade, uma intervenção de Restauro resume-se a isto), e entender que tal respeito se dá por variadas formas, e variados graus de “reconstrução”. Para o caso do Carmo, inclusive, é fundamental que se distinga obra ar-
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quitetônica de objeto artístico, conceitos que se imbricam no caso de elementos lígneos integrados à arquitetura; sua distinção, no entanto, implica em procedimentos de reconstrução distintos, pois refazer um muro não é o mesmo que refazer a talha ornamentada de um altar, e isso é fundamental; não obstante, não se trata de dizer por “capricho”, que “qualquer reconstrução em estilo é condenável” de maneira sumária, e sim, de salientar a diferença entre refazimento, manutenção extraordinária e reconstrução; bem como, salientar a diferença de extrato interessado, se aparelho murário ou objeto artístico; ou seja, conferir bom senso a questões já preconizadas na Carta de Veneza de 1964 (em especial art. 15º). Igualmente, a observância destas nuances pode nos dizer que serão distintas e variadas as formas de se “reconstituir” um objeto perdido caso se tenha em mente que um objeto artístico é a manifestação de um conceito e que, para se reconstruir este conceito, as alternativas serão muitas e muito mais interessantes que a caricatura traduzida em “reconstrução em estilo” (o que talvez justifique diferenciar “reconstrução” de “reconstituição” de maneira enfática). O caso do Carmo fala, evidentemente, de reconstruções de objetos artísticos (aliás, nem objetos arquitetônicos, mas objetos lígneos, da natureza de mobiliário, sendo bens móveis integrados à arquitetura). 4 | Estes detalhes podem ser conferidos atualmente através das fichas catalográficas dos inventários produzidos pelo IPHAN nos anos 80. Ver: MINISTÉRIO DA CULTURA. SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. INVENTÁRIO NACIONAL DE BENS MÓVEIS E INTEGRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Região de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janeiro, set. 1988.
Por fim, não se pode deixar de observar que o fato de o Carmo ser um templo, antes de um espaço histórico, também não justifica qualquer reconstrução em estilo; aliás, o contrário. Isso porque, para os ofícios religiosos, um altar não precisa ser necessariamente um altar antigo ou específico. Basta que contenha os elementos que o caracterizam como altar (Mesa, Retábulo, Sacrário e Imagens). Os ofícios religiosos, perante a Igreja, não são atos históricos, e sim atemporais, não dando conta de relacionar “rezar” com “o altar original” (não estamos falando de relíquias de fé, e sim de altares, sendo que aqueles perdidos nem sacrário tinham, e sim apenas um falsosacrário1); além disso, como em alguns casos célebres já se verificou, o fato histórico da destruição também pode aportar elementos retórico-religiosos dentro da teologia cristã. Falo, por exemplo, da catedral de Coventry, bombardeada na Se-
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gunda Guerra. Lá decidiu-se deixar os escombros como local memorial (tendo sido agregado um altar e recolocada sua cruz original, então carbonizada), e construir-se um templo totalmente novo e contemporâneo a seu lado, por onde se entra a partir das ruínas, sendo ele mesmo uma metáfora da ressurreição. Como se vê, aquilo que preconiza as decisões de restauro não está (e não deveria mesmo estar) desvinculado das questões religiosas, em casos desta natureza. Passo agora a pensar na via da reconstituição crítica, tal como concebida para o Carmo. Não vejo por que fazer uma defesa ardorosa do restauro crítico a esta altura (pois creio que qualquer carta patrimonial o faça melhor do que eu). Ao invés disso, concentro-me na ideia de restauro crítico que foi levada a cabo no caso do Carmo de Mariana, a fim de querer demonstrar que talvez tenha sido “pouco crítica” e um tanto “imediatista” com respeito a alguns conceitos, o que ocasionou uma intervenção com resultados aquém do esperado. É uma questão muito interessante, na verdade: talvez seja o único caso que conheço de intervenção de restauro que, dentro do binômio brandiano, prima por critérios históricos
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Catedral de Coventry (Intervenção de Basil Spence). O grau de destruição justifica o novo edifício, que se insere em um contexto memorial histórico mas também religioso, fato que assume e se apropria da ideia de “perda”. (Fonte: http://i.telegraph. co.uk/multimedia/ archive/02232/coventry_cathedral_2232454b. jpg)
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de maneira bem discriminada inclusive, mas mostra-se pouco a t e n to à instância estética, tanto para o espaço no qual se insere, quanto nas soluções formais da intervenção.
Carmo de Mariana. Altar do Lado da Epístola, antes do incêndio. (Fonte: Biblioteca da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais)
Isso porque as intervenções no Carmo concentram-se na reposição dos elementos lígneos consumidos pelo fogo em 1999 através de reconstruções volumétricas da talha ornamentada. Em teoria, trata-se de um procedimento correto, pois reconstrói a ideia daquilo que havia antes apenas sugerindo o desenho de outrora, mas deixando claro ao espectador, pela ausência de ornamentos e diferença no tipo de acabamento, que os elementos atuais não se tratam dos originais. O resultado é algo que, neste caso específico, definitivamente não agrada o olho, pois esbarra em inúmeros equívocos conceituais relativos ao tipo de arquitetura/arte/conceito que se pretende reconstruir. Uso propositalmente a expressão “agradar ao olho” pois é justamente um dos propósitos aos quais este tipo de arte se presta, sendo obtido por inúmeras sutilezas, nenhuma delas gratuita. Não me aterei aqui à dissecação de tantos conceitos seminais às formas de representação pré-iluministas, pois creio que rendam um capítulo à parte, neste trabalho, que virá mais à frente.
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Limito-me, por hora, a comentar que, segundo a tópica albertiana, são fundamentais a grande profusão ornamental, dentro de uma ideia de concinnitas, ou seja, uma definição de “beleza” manifestada em um objeto onde nenhum elemento deva ser acrescentado ou removido, sem que hajam perdas de sua própria beleza. Isto porque ornamento não é mero adorno, e sim eloquência retórica, que nos emana um discurso. Além disso (e por esta razão todos os tratados de arquitetura clássica versam sobre o ornamento e seu correto desenho), cada ornato tem um desenho preciso que lhe é próprio, além de função individual, articulando-se de maneira conjunta a tantos outros em uma composição. As intervenções de 2000 reduzem um capitel compósito apenas ao seu cesto e ábaco, eliminando as folhas de acanto e volutas; simplificam a êntase das colunas, retificando seu imoscapo e somoscapo em dois segmentos de cones; eliminam as caneluras das colunas, e simplificam sua base ática em mero paralelepípedo. Enfim, reduzem algo extremamente delicado e refinado a um mero conjunto de sólidos. Isto passa por cima de toda a gênese cultural deste tipo de arte, simplificando e reduzindo elementos gramaticais fundamentais a ela. Significriaa considerar que uma coluna clássica é apenas um cilindro, e não um conjunto intrincado de formas que se articulam de maneira específica. Mas uma coluna clássica está muito longe de ser um cilindro. Esta intervenção ignora estes fatos, adotando um partido arquitetônico que simplesmente não funciona: não é possível
Carmo de Mariana. Altar do Lado do Evangelho. Intervenção após o incêndio, por Rodrigo Meniconi. (Foto do autor)
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81 O templo setecentista fora bombardeado na Segunda Guerra, tendo sido parcialmente destruído. As primeiras intervenções dos anos 50 limitam-se a fazer o consolidamento estrutural em tijolos. A última intervenção
Oratorio de S. Filippo Neri, em Bolonha (Pierluigi Cervellati e Giorgio Volpe). Intervenção extremamente cuidadosa, que soluciona de forma interessante problemas semelhantes aos enfrentados no Carmo.
reconstruir volumetricamente (ao menos não da forma que foi proposto) elementos baseados na eloquência e gramática de ornamentos.
Como agravante, o próprio partido arquitetônico esbarra em incoerências a seus próprios princípios internos, ao lançar-se por vezes à figuração, quando coloca a divisa5 carmelita no topo dos novos altares. Ora, se a intervenção se pauta pela supressão da ornamentação e figuração, uma divisa, por sua representação alegórica complexa é o primeiro elemento a ser suprimido do conjunto. Além disso, é patente a falta de deta5 | Divisa é aquilo que lhamento de projeto, o que sempre abre margem a problemas hoje se identifica visu- de última hora, e imprevisão do resultado de uma proposta. almente pelo nome de “brasão”. Trata-se de um gênero de figuração retórica específico, destinado a construir alegorias, que será descrito em capítulo apropriado.
(1999) mantém essa extratificação e reconstitui volumetrias e elementos integrados à arquitetura por meio da madeira. As volumetrias são mimetizadas, oras mais, oras menos em relação ao original; a diferenciação é muito precisa, pois está “camuflada” no conjunto, mas sempre ocorre de forma clara a uma segunda vista, devido ao tratamento de acabamento do material.
Portanto, o que identifico aí, e tento explicar como insucesso das ditas intervenções, é o equívoco de se tentar reconstruir uma forma artística muito delicada (em uma escala difícil de se trabalhar, inclusive), ignorando princípios de sua própria gênese artística. Algo até compreensível, na verdade: Nós, que somos “modernos”, realmente pouco entendemos o que é
um ornamento, ou como lidar com sua composição. Mas o ornamento se destina a algo muito sutil, específico e eficaz, que é a composição da beleza, um propósito declarado neste tipo de arte, e que ainda somos capazes de fruir e identificar, de certa forma. A beleza, neste contexto, não é um juízo de valor do espectador, e sim um dado objetivo e proposital; uma ideia de beleza bem definida e eficiente dentro de seu universo.
O caso dos elementos integrados é um pouco mais “afortunado” se comparado ao do Carmo, já que a perda ocorreu com uma das metades simétricas do conjunto; assim, quando da reconstituição dos elementos compositivos tinha-se, ao menos de um lado, o original como fonte mais precisa de medidas e desenho. (Fotos do autor)
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É isto que faz o tema das intervenções no Carmo muito complexo, pois se concentra, a meu ver, nessa questão do ornamento e da eloquência retórica. Se o restauro se baseia na reconstrução de uma ideia, estas ideias são extremamente complexas, e requerem uma acurada análise, antes de se fazer qualquer proposta.
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6 Por uma arqueologia das formas de representação [divisio]
Estudar a Capela do Carmo, antes de tudo, implica adentrar em um complexo universo historiográfico em torno de nosso patrimônio artístico colonial, que é foco de amplos debates sobretudo com a criação do SPHAN nos anos 30. A historiografia da arte e, especificamente, nossa historiografia da arte nacional ainda carregam alguns vícios de uma disciplina que se constituiu no século XIX, sob padrões e metodologias de análise neokantianos, hegelianos, ou mesmo positivistas (sobretudo no caso brasileiro), já que partem de uma noção de tempo e história baseados em um princípio de “progresso”, ou seja, sucessão evolucionista de acontecimentos; para o caso da História da Arte, o estudo da disciplina é subordinado ao estudo da forma, organizado quase que isoladamente em “estilos”. Recentemente se tem reconhecido que tais padrões analíticos são, eles mesmos, frutos de um ideário que já não pertence à sociedade contemporânea, e que merecem uma revisão metodológica a fim de aportar maior compreensão a períodos históricos anteriores ao Oitocentos, por exemplo. Afinal, a ideia de “progresso” é oitocentista, e não existia em uma sociedade em nosso caso colonial, Contrarreformista.
Santissima Trinità dei Monti, em Roma. (Foto do autor)
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O que se tem levantado, portanto, é a necessidade de um distanciamento crítico que trabalhe com categorias de raciocínio mais coevas aos períodos históricos estudados, já que os procedimentos unicamente oitocentistas não dão conta unicamente de compreender outros universos culturais, onde outras concepções de mundo, teologia, política e ética, vigoravam.
1 | HANSEN, João Adolfo. Ler & ver: pressupostos da representação colonial. Desígnio: revista de história da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Annablume, 2009. P. 103.
Tal debate tem se acirrado na historiografia da arte nacional de maneira muito profícua, trazendo novas luzes para uma melhor compreensão cultural de alguns temas. É o que o professor João Adolfo Hansen chama de “arqueologia da representação” 1, quando se refere aos métodos para reconstituir um universo cultural presente, por exemplo, no Brasil colonial, universo este já muito distante do nosso. A partir das proposições de Hansen também é ressaltada a necessidade de uma leitura articulada entre diferentes gêneros artísticos (Música, Artes Plásticas, Arquitetura, Belas Letras, etc.), através do exame conjunto de textos e imagens específicos, produzidos contemporaneamente aos períodos estudados, ainda que reconhecidos como apenas meros remanescentes de um contexto muito amplo (por isso a analogia com uma forma de “arqueologia” dos gêneros artísticos); sem dúvidas um trabalho difícil de ser feito.
Seria impossível falar de nosso objeto de estudo sem nos atermos a este universo cultural pois, do contrário, estaríamos desprovidos de quaisquer subsídios para entendê-lo em seu âmbito cultural. Inclusive, acredito que esta seja uma questão que levou ao problema dos equívocos conceituais manifesta2 | O caso do Carmo dos nas últimas intervenções de restauro no Carmo, como carrega o problema de observado anteriormente. a documentação relativa ao período de edificação da Capela, dentre a Ordem Terceira dos carmelitas, não estar mais disponível, o que limita consideravelmente o número de fontes contemporâneas diretas às quais recorrer.
Desta forma, ao olhar para o Carmo, devemos nos distanciar criticamente de conceitos como “genialidade”, “autoria”, “progresso”, “estilo” ou “partido arquitetônico”, procurando reconstituir outros como “engenhosidade”, “decoro”, “maravilha” e “decência” que, por vezes, se mostram mais precisos para descrever aquele universo cultural vigente. Para tal, é necessário recorrer à leitura de documentação contemporânea ao período estudado 2, bem como a fontes interdisciplinares,
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como tratados e manuais que discorrem sobre formas de representação artísticas e de conceitos morais, além da consulta a dicionários e léxicos igualmente contemporâneos, para tentar reconstituir estas ideias e, no caso, o significado de uma obra de arte dentro deste universo. A seguir, procurarei aportar algumas formas de representação recorrentes e comentar sobre procedimentos de composição retórica, arquitetônica e artística hoje identificáveis. O objetivo é esclarecer o leitor sobre “mecanismos” de produção (sejam eles conceituais ou efetivos) de formas e gêneros artísticos que se solidificaram com a Contrarreforma e as sociedades de corte, a exemplo desta portuguesa (ou luso-brasileira). O objetivo é aproximar este universo cultural de um leitor pouco afeito a ele. Convém, aliás, esclarecer que “aquela sociedade” que edificou o Carmo de Mariana é uma sociedade de matriz europeia, católica e contrarreformista, baseada em uma visão moralizante e teológica de mundo, o que implica em uma visão histórica pouco linear e, sobretudo, continuísta. Nesse contexto, nossa Capela erigida entre fins do Setecentos e princípios do Oitocentos pode, por vezes, situar-se mais próxima à cultura de corte seiscentista que a preceitos da cultura iluminista; em outros casos, porém, não negando também a influência das ideias iluministas na sociedade “luso-brasileira”, admitese que os sistemas de produção artística sobre os quais comentarei podem já não ser verificáveis de maneira plenamente consciente naquele contexto histórico, mas sim, como resquícios de coisas que outrora eram conceitos e agora passam a operar mais sob formas do que pelo conteúdo expresso por elas, em origem. Trata-se então, de se constatar uma forma mentis daquela sociedade, que operava muito pelo costume, tendo-se sempre o cuidado e a prudência de não pretender que determinados conceitos vigorassem na sociedade colonial tardia tal como compendiados na Europa quinhentista, mas sim, que circulassem de alguma forma, mais ou menos consciente de acordo com o caso e seus protagonistas.
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Partido arquitetônico O primeiro ponto a se colocar é a desconstrução da ideia de “partido arquitetônico” entendida como atitude de projeto. A própria atividade de projeto pode ser questionada com relação ao que se entende hoje.
Risco para retábulo, de D. Joaquim L. C. F. de Acunha, com anotações do arquiteto Manuel Caetano de Souza. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo) O movimento na composição se dá enquanto alçado, mas não enquanto volume. Note-se a separação entre planta e alçado.
É sabido que os edifícios coloniais, inclusive os das Minas Gerais, onde o projeto político colonial foi bastante específico, eram desenhados antes de serem construídos. Porém raramente se desenhava o edifício de maneira integral já que, em função da contabilidade dos comitentes, cada parte do edifício era contratada de maneira separada, ao longo do tempo (o que podia resultar no trabalho ser sucedido por diferentes oficinas). A esta contratação dava-se o nome de arrematação, e ao desenho arquitetônico, fosse da planta, da fachada, ou de um elemento isolado, dava-se o nome de risco. Desta forma, não considero possível falar em “partido arquitetônico”, já que os edifícios raramente eram concebidos em sua integridade, mas sim, aos poucos, e em muitos casos, por pessoas distintas; prefiro identificar este processo por termos mais amplos como, por exemplo, “composição”. Além disso (e isso muitos riscos, já desde Michelangelo, bem o atestam), é provável que estes homens houvessem organizado seu pensamento arquitetônico decompondo o espaço tridimensional em “pares” de dimensões, desenhando a planta separa-
damente da elevação, e não da forma “corbusierana” como se entende hoje, a partir de volumes. Isto eu afirmo não simplesmente por ver os riscos decompostos em “planta” e “fachada”, mas sim, pelo entendimento da discussão de proporções tal como colocada. Após Vitruvio, o bom dimensionamento de um espaço passa a ser obtido por uma razão harmônica, geralmente descrita pela relação simultânea entre dois parâmetros (e não três), baseada em proporções musicais gregas como diapason, diatessaron, diapente, etc 3, correspondentes aos intervalos hoje conhecidos como oitava, quarta, quinta, etc. Com esta reflexão, não quero afirmar que não se pensasse em volumes ao compor arquitetonicamente (do contrário, uma cúpula ou abóbada, as maquetes de Brunelleschi, ou os sistemas da perspectiva seriam inviáveis), mas que a ideia de arquitetura não se manifestasse formalmente de modo tridimensional, e sim, de maneira bidimensional, decompondo as três dimensões aos pares, buscando a boa proporção e o decoro de uma planta, e o mesmo válido para uma fachada ou corte, inclusive se articulados com o entorno.
Risco do fronsispício da Capela do Carmo de São João d’El Rey. Atrib a Antônio F. Lisboa. (Acervo do Museu da Inconfidência/IBRAM/ MinC, Ouro Preto)
3 | A esse respeito, ver o interessante estudo sobre proporções e geometrias entre as composições arquitetônicas dentre os séculos XVI a XVIII: HERSEY, George L. Architecture and Geometry in the Age of the Baroque. University of Chicago Press, 2000.
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A ideia de proporção, aliás, pode ser útil tanto para o bom desenho de cada par de dimensões, quanto para relacionar ambos os pares, planta e elevação, afinal, afirmar que o raciocínio arquitetônico seja decomposto em pares de dimensões não significa, de forma alguma, sugerir que não houvesse relação ou simultaneidade na composição de planta e elevação, e muito menos, que o raciocínio não passasse pela compreensão tridimensional do espaço, sobretudo quando a formação arquitetônica está intimamente ligada ao canteiro e à construção: desde sempre o ofício da cantaria, por exemplo, se dedica a produzir artes de grande complexidade tridimensional, como bem o atesta a cultura da estereotomia, já atingindo alto grau de complexidade nos canteiros góticos, e consolidando-se em complexos tratados. Ora, se estou afirmando que o pensamento espacial-tridimensional sempre existe, o que muda, afinal, da maneira como era concebido até o Novecentos para a maneira como o concebemos hoje? Talvez o que tenha mudado seja justamente a definição de espaço, e as maneiras de representa-lo, ou apreendê-lo.
4 | WITTKOWER, Rudolf (1962). Principî architettonici dell’età dell’Umanesimo. Trento: Einaudi, 2010. 5 | BASTOS, Rodrigo de Almeida. Introdução. In: A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. Pp. 19-26.
Há também outra questão relativa a “princípios de composição [ou risco]” que perpassa a atividade arquitetônica desta tradição, e pode reforçar essa reflexão que faço: existe uma declarada questão moral relativa ao decoro das plantas de edifícios sagrados no que se refere à sua simbologia, como observado por Wittkower 4 ao reportar as discussões renascentistas sobre templos em tipologia de planta central (cruz grega ou desenho circular/elíptico) e planta alongada (cruz latina ou igreja-salão, mais à frente). Além dele, Bastos 5 observa que a simbologia das plantas de templos dá continuidade a uma tópica antiquíssima quando apropriada pela Contrarreforma, pois se concentra na associação do corpo da edificação como alegoria do corpo de Cristo. Também, é necessário aqui uma ressalva: não se trata de pretender que as discussões quinhentistas sobre as metáforas proporcionais de uma planta fossem cultivadas de maneira vívida por nossos construtores, e sim, de usar estes episódios para se entender a necessidade de dimensionar um edifício a partir de um par de dimensões (no caso, planta). Seria muito arriscado “precisar” o quanto essa discussão estivesse presente na Colônia, mas é certo que o formato e proporcionalidade de uma planta fossem objeto de
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reflexões e juízos, ao menos em casos de templos concebidos de maneira especial, como igrejas matrizes, de caráter mais comunitário; do contrário, não se veria uma profusão considerável de templos elípticos, muito bem construídos, do Rio de Janeiro à região das Minas. Bastos, a esse propósito, observa que a Matriz de N. S. do Pilar, de Ouro preto, por conta de sua iconografia e também pela configuração interna de formato elíptico, possa se constituir como alegoria contrarreformista 6 | Idem, cap. 2. traduzida no conceito da Caravela Eucarística 6. Engenho e agudeza O conceito contemporâneo de “autoria”, onde o sujeito é criador de um produto cultural, inclusive possuindo obrigações e direitos legais sobre este produto, de maneira que o façam ser apropriadamente reconhecido como autor, é muito recente. Entender uma cultura que lida de maneira distinta com estes conceitos perpassa pela própria constituição social e psicológica da individualidade humana, outro conceito questionável como categoria universal e atemporal, já que a constituição do “eu” possui periodização histórica. Coloco esta questão para pontuar um pilar de nossa historiografia da arte nacional, que gira em torno do Mito do Herói (no caso, do Gênio), particularmente ligado à figura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Talvez seja o maior vício desta historiografia: dentre nosso acervo, quando há dúvidas ou falta de dados documentais para a atribuição de autoria a alguma obra, frequentemente lançase mão de métodos de identificação iconográfica baseados no “estilo pessoal” de algum suposto artista. Desconfio que, em muitos destes casos, simplesmente o que é considerado “de qualidade” é quase que sumariamente atribuído ao Aleijadinho, como já o pude observar em alguns textos que tratavam do tema 7. A impressão que se tem de textos tão elogiosos é que o Aleijadinho é, antes de uma figura histórica, um personagem quase literário construído dentro de uma narrativa romântica que oscila entre fantasia e realidade (embora quase
7 | Ver: MARIANNO FILHO, José. Antônio Francisco Lisboa. Rio de Janeiro, 1945.
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8 | Tal assunto é abordado pela estudiosa Guiomar de Grammont, ao analisar a narrativa de Bretas à luz de gêneros retóricos e literários românticos e pré-românticos em um brilhante estudo, mostrando que aquilo que a historiografia toma por biografia de “registro histórico” pode bem ser uma narrativa ficcional (ainda que baseada na realidade) onde, antes de tudo, a figura histórica é transformada em personagem fictício quase romântico, oscilando entre um homem colérico e a emulação de um deformado Quasímodo. Ver: GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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sempre tomada integralmente por realidade), cunhada na célebre obra de Rodrigo F. Bretas, “Traços Biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho” 8. É um tanto preocupante o peso dado a esta obra, e a influência que exerce em nossa historiografia. Para o caso do Carmo, por exemplo, a talha do altar mor foi feita por seu meio-irmão, o Padre Félix Antônio Lisboa que, por não ser de fato o Gênio, é de imediato considerado “menos talentoso” 9 que o Aleijadinho. Curiosamente, este lugar-comum está no texto de Bretas. “Menos talentoso” por quê? E, em quais circunstâncias é admissível falar do Aleijadinho, usando-o como parâmetro qualitativo para falar do Padre Félix? Afinal, para se falar de Lúcio Costa não se usa Niemeyer como parâmetro qualitativo. É de se perguntar se o peso dado a um artífice, sem dúvida de qualidade, mas da maneira exacerbada como o tem sido, não possa eclipsar, ao invés de trazer à tona, também outros artífices e oficinas atuantes nas Minas no mesmo período. Fato é que a ideia de “gênio”, baseada num espírito criador que dá vazão aos rebeldes impulsos do âmago de sua persona, simplesmente não pode vigorar de maneira clara antes do Oitocentos. Ao invés disso, convém observar que, especialmente no Seiscentos, registram-se tratados importantes que discorrem sobre a questão dos espíritos criadores de produtos da cultura humana, tais como Baltazar Gracián (Agudeza y arte de ingenio, 1648) ou Emanuele Tesauro (Il cannocchiale aristotélico, o sia, Idea dell’arguta et ingeniosa elocutione [...], 1654).
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mesmo obtida não pela criação de conceitos ex novo, mas pela forma como os conceitos já existentes são engenhosamente articulados. Ter isso em conta muda completamente nossa percepção de “ineditismo” e, propriamente, de procedimentos de criação cultural, sobretudo artística, pois tal conceito se coloca como um “regulador” da ideia de “novidade”. A novidade, portanto, não se dá pela introdução de algo completamente novo, mas em maior medida pela variação e combinação de ideias que já existem, coisa que não é plenamente reconhecida dentro do ideário romântico em torno do “genial”. Esta combinação, vale lembrar, possui variabilidade infinita, e graus de dificuldade de leitura (também atributos de engenho do público) muito amplos. Resta-nos, pois, buscar as referências que serão variadas, combinadas e recombinadas em uma obra de arte, para tentar lê-la o mínimo possível. Voltando ao argumento inicial, é possível que o Aleijadinho não entendesse a pecha de “gênio” que hoje lhe é atribuída, pois esta categoria ainda não se configurava de maneira clara em seu universo cultural (não se pode nem mesmo afirmar que um artífice se constitua, enquanto tal, como entidade psicológica). Nos serve, para tanto, aquela famosa anedota de algum vereador de Mariana que já elogiou o Aleijadinho comparando-o a “um novo Praxíteles”: não se trata aí de referência a uma figura genial, e sim a um personagem habilidoso e engenhoso. Pensando desta forma, a visão acerca do tema muda substancialmente.
A leitura destes tratados nos pode prover que, em lugar do artista, “gênio” romântico, criador de obras inéditas, é preciso pensar no artífice “engenhoso”, ou seja, no espírito engenhoso que, por meio da “agudeza” é capaz de articular ideias e lugares-comuns consagrados (ou seja, conceitos que já existem perante a humanidade), em novos produtos. Além disso, dentro de uma visão teológica de mundo, a agudeza de engenho é iluminada por Deus no espírito do artífice.
Lugar-comum e emulação
Isso significa que o produto cultural de um artífice não é “genial”, e sim “engenhoso”, sendo a relevância e novidade do
A dificuldade em se falar de “autoria de ideias” ou mesmo “plágio” (conceito completamente anacrônico ao período)
Quero agora falar de outro fundamento desta cultura, que coloca-se como ponto de partida para qualquer discurso (ou seja, organização de ideias) proferido ao longo de toda a cultura europeia. É, ao mesmo tempo, causa e consequência das circunstâncias de “autoria” e “criação articulada pela agudeza”, de que acima tratei.
9 | “Recomenda-se, portanto, passar diretamente à capela-mor para ver o retábulo do Padre Félix, cujos anjinhos têm certo ar de família com os do Aleijadinho, tomados como modelo pelo irmão menos talentoso”. In: OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de, CAMPOS, Adalgisa A. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta, 2010. v. 2, p. 147.
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origina-se, portanto, do fato de os conceitos colocados nos discursos não serem propriamente “novos”, e sim, articulações de ideias pré-existentes. Mais que isso, é importante frisar a seguinte sutileza: as ideias tratadas não são somente “pré-existentes”, mas sim ideias “autorizadas”, uma vez que admitidas como corretas pela História. Este é o conceito de lugar-comum, tópica, ou ars inveniendi. Seu uso, além de “autorizado” pelo costume ou pelas próprias autoridades culturais (em nosso caso, do mundo católico), será regulado pelas noções de decoro, ou seja, daquilo 10 | Não comentarei que é apropriado à representação 10. demaneira pormenorizada os conceitos de decoro nas artes, devido a sua amplitude. Ao invés disso, prefiro citá-los e comentá-los à medida que forem ganhando foco em meu estudo de caso, que vem mais adiante. Por hora, recomendo a leitura de um completo e instrutivo trabalho sobre o tema, com especial atenção a seu capítulo primeiro (“O decoro”). Ver: BASTOS, Rodrigo. Op. Cit.
A arte europeia é sempre regulada por corolários admitidos como “verdades”, que podem pertencer a diferentes assuntos, e serem comprovadas como verdades por variadas maneiras, conforme os preceitos das artes retóricas, muito fundados na retórica aristotélica. Neste universo o silogismo lógico é um pilar muito importante do discurso, fazendo comprovar a Verdade de maneira dedutiva. Como, além de aristotélico, o universo é teológico e neoescolástico, outra maneira de se assegurar as “verdades” que fundamentam o discurso é a evocação da autoridade, que se manifesta como “verdade” por via do costume, ou por ser a Palavra de Deus. Desta forma, aquilo que disseram os grandes Filósofos, especialmente Platão e Aristóteles é tomado por Verdade, da mesma forma como aquilo que está na Bíblia. Certas ideias, portanto, sejam mais ou menos difundidas, configuram-se como lugares-comuns de autoridade lógica, ou também moral, que são usados como argumentação para o discurso, reforçando a ideia que se pretende construir para o ouvinte. Nossa indagação com respeito à ideia de “autoria” vem à tona quando nos deparamos com textos que fazem citação com referência de seu autor, e tantas citações que não referenciam as fontes dos lugares-comuns usados. Nosso espanto diante disso nada mais é do que falta de familiaridade do leitor contemporâneo com os temas tratados. Acredito que a referência à autoria vem para evidenciar a autoridade do lugar-comum, e a não-referência venha para evidenciar certa erudição do
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interlocutor que, sendo julgado como conhecedor dos lugares comuns citados, dispensa-se apresentar-lhe a “fonte”. Algo como um “assunto interno”, em que um grupo seleto de pessoas comunica-se por metáforas que só eles são capazes de entender. Não seria absurdo pensar desta forma já que, sabe-se, o discurso era construído por meio de metáforas (daí a necessidade da agudeza para prepará-las de maneira engenhosa), e era realizado com graus de dificuldade de entendimento de acordo com o público ao qual destinava-se, justamente para fazer uma distinção entre a audiência vulgar e a discreta, ou seja, entre o público comum, e o público polido e culto. Ter isso em conta será decisivo para debruçarmo-nos mais tarde sobre temas de conteúdo alegórico-religioso figurados no Carmo: O uso de metáforas teológicas é o fundamento das formas de representação artística que figuram a ornamentação de um templo, e oscilam entre a facilidade de entendimento, que visa a educar moralmente o público comum, ou dificuldade de interpretação, visando a destacar de maneira erudita uma Ordem Religiosa sobre as demais, por exemplo (no caso de ampla competição social entre as Ordens Terceiras que se estabeleceram nas Minas Gerais). A questão das citações fica clara quando se lê Alberti em De re ædificatoria, e nota-se que quase todo fato ou conceito introduzido vem seguido da citação de autor. Alberti, como bem se sabe, está no centro das discussões da época sobre a erudição do arquiteto e é, de fato, reconhecido como um dos artífices renascentistas mais eruditos. Aliás, este procedimento, por si só, parece virar um lugar-comum para os tratados de arquitetura, sendo verificado sobremaneira em outros textos, com especial atenção àquele de Mattheus do Couto, de 1631 que, além de citar de maneira precisa a autoria dos conceitos sobre os quais discorre (Vitruvio, Serlio, Paladio, Alberti, etc.), faz uma importante homenagem à figura do próprio Alberti, em especial 11. Além disso, categorizando os procedimentos retóricos em diferentes gêneros, pode-se associar este procedimento a um gênero humilde, em realidade um subgênero do gênero baixo, pensado para instruir, mais do que comover ou deleitar
11 | “[...] & dos mais valentes homens, como forão Balthazar de Sciencia, Bramante, Sangalo, Urbino, Vinhola, Serlio, Paladio, Philisbert &outros famosos q’ não só seguirão os textos de Vitro [Vitruvio]. Mas ainda os defenderão, como foy o grande Leo Bapta Alberto [Alberti], a quem com razão podemos chamar cabeça de todos elles [...]”. In: COUTO, Mateus do. “Capo. 4º. Em q’ se declara que couza he edificar, e que couza seja edifício”. In: Tractado de Arquitectura que leo o Mestre, e Architecto Mattheus do Couto o velho. No anno de 1631. Microfilme de manuscrito, 1631. P. 4
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Com relação à citação sem autoria enunciada, creio ser um bom parâmetro o meio musical, onde isto é muito recorrente devido ao discurso, nesse gênero artístico, não ser fundamentalmente verbal e sim harmônico (mesmo nos casos em que a música seja acompanhada de texto). Nestes termos, a nomeação de autoria com o uso da citação é dificultada ou, pelo menos, ocorre de maneira distinta. Tomemos como exemplo o caso dos corais de Bach, que harmonizam e desenvolvem singelos corais protestantes recolhidos ou compostos por Lutero, e costumam fazer-se presentes em obras mais amplas, como cantatas, oratórios, ou nas Paixões. É exemplar o caso da cantata Chist lag in todes banden (BWV4), que é inteiramente baseada no coral homônimo composto por Lutero no século XVI. Faço esta espécie de “digressão”, um pouco fora do universo arquitetônico ao qual meu texto deveria se ater, pois acredito ser mais didática para explicar a questão de citações aparentemente “sem a menção de autoria”. Neste caso é evidente que os corais de Lutero, amplamente usados nos ofícios religiosos protestantes, eram conhecidos pelo público comum e, portanto, não haveria a necessidade de fazer identificar uma autoria que já é diretamente identificável. Além disso, o coral protestante é, em si, uma tópica autorizada pelo próprio Lutero, ele mesmo músico e responsável por fundamentar de maneira especial aquelas novas liturgias que se constituíam no Quinhentos. A questão do “plágio” é completamente inadequada para categorizar estes procedimentos; ao invés disso, é útil pensar que a imitação e a (não-)citação de autoria são uma forma de homenagem a autores e obras consagradas, o que introduz o conceito de emulação, fundamentalmente uma “imitação melhorada”, ou “imitação agregada de elementos” em relação aos originais. O autor que emula outro não pretende superálo, mas sim homenageá-lo, citando-o em sua obra; dentro de uma visão teológica de mundo, inclusive, a questão da “autoria” pode ser relegada a um plano inferior, já que o “eu” ainda não se configura da maneira hoje reconhecidamente
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freudiana. A persona do autor é superada pela ideia de que todos estes artífices estão, na verdade, cultivando e produzindo maravilhas do engenho humano. A maravilha, por sua vez, é um conceito preciso e próprio, bastante seiscentista que traduz a iluminação divina na Terra, fazendo manifestar nos homens e na natureza a presença de Deus. Isso pode explicar, também, a dificuldade de se atribuir autoria a muitas obras artísticas, já que se entendia que eram realizadas por artífices, e não por “artistas” do modo como se entende hoje, problema recorrente ainda em nosso contexto colonial. A emulação, portanto, não pode ser entendida como intento de superação de um autor por outro, e sim pela via da glorificação das obras de Deus na terra, iluminando os homens para aprimorarem coisas já maravilhosamente criadas por outros. Ironicamente Bach, aquele ícone da “genialidade musical” para nossa contemporaneidade, talvez não admitisse esta caracterização em sua visão de mundo teológica e particularmente regada pela austeridade luterana. Homologia entre discursos Fiz, anteriormente, referência a um exemplo relativo ao âmbito da Música para exemplificar um procedimento discursivo. Esta menção, além de acreditar ser mais didática do que outras, naquele caso, foi também proposital para chamar a atenção para outro aspecto fundamental das artes de matriz 12 | A esse respeito, europeia: a homologia entre discursos 12. Considerar este fator significa entender que esta arte é uma arte essencialmente retórica, e que os gêneros artísticos são, na verdade, diferentes gêneros de discursos (organização de ideias), emulações do gênero discursivo oral. Isto significa entender que um sermão falado por um orador é um discurso retórico da mesma maneira que um texto escrito em prosa ou em verso; da mesma maneira que uma pintura mural ou em tela; que uma gravura impressa; que uma escultura; que uma obra arquitetônica; que uma peça musical ou teatral. Tal conceito é o desdobramento de uma famosa tópica horaciana, enunciada na máxima ut pictura poesis, que consta em sua
ver também os trabalhos publicados por HANSEN, João Adolfo. “Artes seiscentistas e teologia política”. In: TIRAPELLI, Percival (Org.). Arte sacra colonial: barroco memória viva. Editora UNESP/ Imprensa Oficial, e “Ler e Ver: pressupostos da Representação Colonial” (Op. Cit.).
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Ars poetica. Traduz-se literalmente por “assim como a pintura, a poesia”, estabelecendo uma relação entre ambos os gêneros artísticos. Àquele tempo, Horácio pretendia que a linguagem poética fosse entendida de maneira reflexiva e metafórica, da mesma forma que o era a pintura, segundo a interpretação renascentista.
ao discurso pela recombinação de ideias, provocando a mara- 13 | Segundo Aristóteles, o discurso delivilha no espectador, e assim, a sua persuasão.
Esta tópica torna-se uma verdadeira doutrina artística, sobretudo durante a Contrarreforma, quando a retórica torna-se uma ferramenta política de persuasão, reabilitando-se a dita doutrina como forma de autorizar a homologia entre discursos de diferentes gêneros artísticos, ou seja, fazendo-se comparações entre variados gêneros por semelhança de estruturação, uso de conceitos, figuras de linguagem, etc.
Em música, as transposições são variadíssimas, e apresentam uma homologia muito específica com o princípio do discurso oral, que ocorre na relação com o tempo, ou seja: um orador que fala ocupa um tempo específico para realizar, de maneira ordenada, todas as operações retóricas previstas na dispositio 13 . A música, da mesma forma, é uma arte que possui igual relação com o tempo, e pode fazer analogias semelhantes. Por isso, dentre os vários subgêneros musicais (sonata, cantata, concerto, etc.), os mesmos princípios discursivos foram ordenados de maneira harmônica ou melódica; além disso, a organização harmônica ou melódica da linguagem musical transpõe verdadeiras figuras de linguagem discursiva oral para figuras de linguagem musical, em operações verdadeiramente engenhosas. O resultado é a criação de figuras próprias do gênero musical, mas diretamente oriundas de figuras de linguagem discursiva.
A tradição retórica ocidental, de matriz aristotélica e platônica, mas também horaciana, ciceroniana e quintiliana, visa a estruturação de um discurso por meio da organização de conceitos que possuem momento e local preciso para sua apresentação. A arte da retórica tem como objetivo a persuasão do espectador, sendo um dos meios para tal a sua comoção (moção de seus afetos), e é por isso que começa a ser estrategicamente adotada pelas políticas contrarreformistas desde o século XVI, resultando em produtos artísticos nomeadamente maravilhosos. Isso não significa afirmar que as artes como gêneros retóricos surgem no Quinhentos, mas sim, que a partir desse momento elas são sistematicamente usadas, patrocinadas com destino a um grande público, em muitos casos, compendiadas ou recompendiadas em tratados que discorrem sobre sua constituição. Entender, portanto, que todos os gêneros artísticos são, na verdade, discursos que visam a persuadir o espectador da ideia defendida é o ponto de partida para o real entendimento do universo cultural que vigora entre os períodos hoje categorizados como “renascença” e “barroco”. E mais: partindose do pressuposto de homologia entre discursos de variados gêneros, entendemos que existe enorme interlocução entre as artes, o que pode oferecer novas chaves de leitura para diferentes casos. Estas condições também podem ser admitidas como operações de agudeza de engenho, que trazem a novidade
Os exemplos destas operações analíticas são inúmeros. Citarei alguns, propositalmente pertencentes a diferentes gêneros artísticos:
É o caso, por exemplo, de uma figura relativa ao lamento, um afeto lúgubre descrito no famoso tratado de Christoph Bernhard 14 como passus duriusculus, correspondente à figura retórico-musical da pathopoeia (moção de afetos). Em resumo, trata-se da realização de uma linha melódica (em geral descendente) compreendida no intervalo de uma quarta, de maneira cromática. Trata-se de uma figura retórica que inspira um afeto específico, associado ao pranto, e amplamente utilizada em árias de óperas, cantatas, ou mesmo concertos instrumentais; uma de suas utilizações mais célebres é, talvez, na Missa em Si menor de Bach (BWV232), no coral Crucifixus etiam pro nobis. O nome passus duriusculus é em si metafórico, pois quer dizer “passos duros” ou “passagem dura”. Quando Bach o utiliza como baixo para o Cruxifixus realiza uma espécie de metáfora musical dos próprios passos da Paixão de Cristo, que carrega sua cruz a duras penas, de uma maneira incrivelmente comovente e dramática.
berativo é, a partir do costume, teorizado em cinco partes: Invenção [inuentio] (onde se escolhe os argumentos e a evocação de autoridade dos lugares-comuns); disposição [dispositio] (é realizada no transcorrer de tempo em que se profere o discurso, e subdivide-se em quatro: Exortação [exordium] – atrai a atenção do ouvinte; narração [narratio] – apresenta as ideias; argumentação [argumentatio] – discrimina os juízos sobre as ideias narradas; conclusão [conclusio]); elocução [elocutio] (a linguagem mais decorosa para melhor persuadir o ouvinte); memória (relativa à memorização do discurso em si, porque oral, mas também à lembrança de outros dispositivos persuasivos, lugares-comuns, etc., que podem ser usados para reforçar a deliberação original, mas que não estariam previstos originalmente); ação [actio] (persuasão cenográfica, para o momento da deliberação, onde estão previstos gestos e entonações de voz adequados). 14 | BERNHARD, Christoph. Tractatus compositionis augmentatus. C. 1657.
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Não só Bach utiliza-se de metáforas sonoras (melódicas ou harmônicas) para construir um discurso persuasivo. Claudio Monteverdi (1567-1643) é um dos compositores que iniciam esse processo, e obtém resultados de grande repercussão popular imediata. Mesmo que eu fique tentado a fazê-lo, não conviria analisar de maneira detalhada muitas figuras monteverdianas eficazes. Limito-me a lembrar que Monteverdi valese muito de recursos miméticos que geram efeitos sonoros muito literais, por exemplo quando representa o cavalgar de um cavalo em batalha (Madrigal Gira il nemico insidioso amore ou madrigal representativo Combattimento di Tancredi e Clorinda), ou um duelo de espadas (Madrigal Altri canti d’amor). Estas figuras de linguagem aparecem em um novo gênero musical criado pelo próprio compositor, em uma verdadeira operação de agudeza retórica. Monteverdi, ao compor seu VIII livro de 15 | MONTEVERDI, madrigais 15, os divide entre dois afetos, o afeto amoroso e o Claudio. Madrigali guar- afeto guerreiro, este último reinventado por ele, como argurieri, et amorosi [...]. Vene- menta em seu prólogo: za: Alessandro Vincenti, 1638. Os madrigais monteverdianos citados acima pertencem a este livro.
16 | A tradução do termo original, concitato, oscila entre “vívido”, “incitado” ou “excitado”. Por isso sua associação com o “espírito guerreiro”, uma dedução monteverdiana da ideia de Ira.
Havendo eu considerado as nossas paixões, ou afetações da alma, serem três as principais, isto é, Ira, Temperança e Humildade ou Súplica, como bem os melhores Filósofos afirmam, e mesmo a própria natureza de nossa voz ao caracterizar-se em aguda, grave e mediana, e como a arte da Música o notifica claramente nestes três termos de concitato 16, mole e temperado, e não sendo dentre todas as composições dos passados compositores possível encontrar exemplo do gênero concitato, mas sim dos gêneros mole e temperado, mas descrito em Platão no terceiro [livro] da Retórica [...], por isso me pus com não pouco estudo e fadiga a reencontrá-lo [...] 17.
Esta passagem contém uma série de metáforas e analogias que vão se sucedendo. Monteverdi “inventa” uma disposição 17 | Idem. Claudio de afeto já prescrita por outros autores, mas até então não Monteverde a’ chi legge. realizada em música. O que se vê aí é o mesmo processo de Tradução minha. invenção descrito até agora: o lugar-comum torna-se engenhoso, porque é retirado de um gênero discursivo até então alheio à música; a “novidade” não está na criação ex novo de um subgênero artístico, mas sim, na recombinação de conceitos já existentes (o estilo Concitato e o gênero musical), coroada por uma novidade interpretativa específica (o afeto
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da Ira é traduzido no Espírito Guerreiro por interpretação monteverdiana desse afeto); esta novidade é uma maravilha do engenho humano, e a agudeza que a concretiza usa da homologia entre discursos, partindo do que foi prescrito pelos Filósofos e chegando até o discurso musical através de estruturas e metáforas análogas. Além de tudo a homologia é tal que, seja aqui como em toda a sua obra, Monteverdi deixa claro que Música é Poesia. Com estes exemplos espero descrever com clareza a matriz retórica das diversas artes produzidas especialmente na Contrarreforma, e a condição de homologia entre os discursos proferidos em suas obras. Para o caso da Arquitetura, e especialmente da arquitetura religiosa, conviria dizer que a profusão de sua ornamentação (seja pictórica ou escultórica) visa figurar ideias, conceitos e estruturas discursivas de conteúdo moralizante ao figurar vícios e virtudes, ou instruindo o espectador sobre os exemplos de Fé Católica, que residem na figura de santos, papas, evangelistas, doutores da Igreja, etc. Aí, a homologia entre discursos retóricos vem como um fator que permite a interlocução entre variados gêneros artísticos. A este ponto, significa ponderar que a arquitetura não se manifesta apenas pela organização do espaço, mas como um corpus que ostenta e abarca outros gêneros artísticos, adornada de pinturas e esculturas; ao mesmo tempo, um corpus que ostenta e abarca ideias, de maneira ampla. Afinal, em que momento a pintura mural deixa de ser arquitetura e se torna pintura? Em que momento a cantaria deixa de ser arquitetura e se torna escultura? Da mesma forma, em que momento a arquitetura deixou de ser ela própria pintura, escultura, ou qualquer forma de discurso? A homologia é tal, que permite claramente a transposição de temas, lugares-comuns e discursos, entre todas elas. É o caso dos frontispícios de igrejas que funcionam, retoricamente, como estruturas de emblemas (sobre estes discorrerei a seguir) ou, de maneira recíproca, aos próprios frontispícios de livros, compostos por gravuras, mas que funcionam como verdadeiras arquitetu-
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ras e emblemas, quando ostentam a imagem de estruturas arquitetônicas, como bem observado por Zuvillaga:
18 | ZUVILLAGA, Javier Navarro de. Portadas, alegorías, emblemas. In: Imágenes de la perspectiva. Madri: Siruela, 1996. P. 23. Tradução minha.
Procede iniciar o estudo dos tratados de perspectiva analisando seus frontispícios, pois, além de ser a porta que convida o leitor a entrar em um livro, são também sua fachada, e ao mostrar o que este contém em seu interior possuem um caráter representativo. Estes frontispícios, que são as primeiras pranchas e em alguns casos são inclusive mais interessantes que outras do mesmo livro, costumam ter um marcado caráter arquitetônico e com frequência estão animadas com figuras alegóricas, corpos geométricos, instrumentos de desenho, etc. Algumas vezes levam lemas ou motes que fazem delas autênticos emblemas, pois a linguagem visual emblemática se desenvolveu a partir do Renascimento e alcançou seu esplendor durante o Barroco e, portanto, sua evolução coincide no tempo com a da perspectiva. 18
O excerto trata mais especificamente dos frontispícios de tratados de perspectiva, mas a ideia continua válida para a maioria dos frontispícios de livros, em virtude de seu conteúdo comumente emblemático. O que melhor se depreende desta analogia é que a ideia de um gênero artístico perpassa mais sobre aquilo que nele está representado, de maneira conceitual, do que sobre sua materialidade em si. É claro que cada gênero possui particularidades que o representam (no caso da Arquitetura, talvez todas elas estejam ligadas a seu princípio de materialidade espacial), mas note-se também que uma arquitetura não é somente algo construído, mas a representação de uma ideia de arquitetura, que se concretiza por conceitos, espaços, e também por imagens (fato que poderia explicar muito bem os desenhos “imaginários” de Leonardo e as representações cidades ideais de Filarete e tantos outros, na virada do Quatrocentos para o Quinhentos). Mas a imagem não se concretiza por si própria, e sim quando é a definição ilustrada de um conceito: Não é que a imagem de uma voluta seja arquitetura por si só, mas quando é figurada de modo a representar a ideia de um elemento arquitetônico, como um capitel articulado gramaticalmente em sua própria Ordem arquitetônica, esta figura de capitel torna-se uma definição ilustrada da ideia de arquitetura e, por extensão, ela própria torna-se arquitetura,
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103 “Il terzo libro di Sebastian Serlio Bolognese [...]”. (Veneza, Giacomo de’ Franceschi, 1619). Frontispício. Todos os elementos, sejam arquitetônicos, fitomórficos ou antropomórficos, constroem uma mensagem de maneira alegórica sobre o tema tratado na obra, através da fórmula do emblema. Essa alegoria, pode-se dizer, já atua como exórdio visual do discurso que se desenvolverá dentro do livro.
“I dieci libri dell’architettura di M. Vitruvio [...]” (Veneza, Francesco Marcolini, 1556). Frontispício. Aqui o frontispício como representação (ou alegoria) da própria arquitetura se mostra evidente, ao passo que ele próprio é um Arco do Triunfo.
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mesmo sendo imagem e não, fisicamente, capitel. Talvez isso seja possível em um mundo onde todo arquiteto é um construtor. O “crítico de arquitetura”, “arquiteto que não constrói”, ainda está por surgir na sociedade setecentista. E, se ele não existe (ou se os “críticos” de arquitetura não são arquitetos de ofício, mas nobres interessados pelo assunto), talvez não haja plena separação entre o conceito de arquitetura, expresso pelo desenho, e a arquitetura física.
Andrea Pozzo. “Gloria de Santo Inácio”, em Sant’Ignazio de Roma (1691-94). (Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/d/de/ Church_of_SantIgnazio_ (448552660).jpg) Pozzo escreve um tratado sobre anamorfose e pintura ilusionista, conhecido também no universo luso-brasileiro.
Donato Bramante. Anamorfose em Santa Maria presso San Satiro, de Milão. (Foto do autor)
Daí vem nossa dificuldade de se categorizar o tema da perspectiva como pertencente a algum dos tantos gêneros visuais. Talvez o desejo de especificá-lo seja mesmo um equívoco analítico nosso, próprio de uma ética cientificista que tem como ponto de partida metodológico a categorização; mas a categorização não fornece respostas a tudo, podendo levar a subcategorias intermináveis, especialmente quando os resultados analisados começam a ser considerados híbridos. Quando se fala em perspectiva visual, há que se ter em conta todo um costume perspéctico em que, quando se pinta arquiteturas “ilusórias”, sejam elas anamorfoses que alteram a percepção espacial, também se está fazendo arquitetura. Afinal, a preensão espacial é física e visual em igual importância, e ambas atuam de maneira integrada. Talvez a melhor prova disso seja o que faz Bramante em Santa Maria presso San Satiro, criando um templo em cruz grega somente ao pintar uma anamorfose em perspectiva, na abside do altar-mor. Trata-se de pintura mural ou de arquitetura? Trata-se de ambos, um a serviço do outro. Por fim, resta ainda outra possível analogia a se fazer entre o componente espacial da arquitetura e o fator tempo, que reside nos momentos da dispositio retórica: se os elementos da dispositio são subordinados ao fator tempo (ao intervalo de tempo no qual o retor profere seu discurso), a apreensão arquitetônica talvez também o possa ser, à medida que o espectador vai deambulando pelo edifício. Desta forma, pelo menos em casos em que a concepção do edifício todo se dê de maneira mais homogênea, uma fachada de igreja pode ser lida analogamente a um Exordium, que convida o fiel a adentrar o templo; sua nave pode ser comparada tanto a um discurso que se reinicia (ou seja, que contém em si toda a dispositio novamente), mas
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especialmente aos momentos da Narratio e Argumentatio, em que os temas da fé, com seus exemplos moralizantes, são expostos e comprovados ao fiel; e, finalmente, o local da Eucaristia, onde a fé em Cristo se renova e se confirma, pode ser comparada à Conclusio de todo este discurso visual. Símbolo e alegoria Venho, para encerrar este capítulo, comentar sobre alguns elementos estruturadores das formas de discurso visual que se constituem a partir do Quinhentos. Trata-se de um tema muito amplo e complexo, do qual me limitarei a expor alguns pontos de seu funcionamento, juntamente com a explicação de algumas estruturas específicas. 19 | Recomendo a leitura de seu livro: HANSEN, João Adolfo. Alegoria - construção e interpretação da metáfora. Campinas: Hedra, 2006.
A alegoria, como observa Hansen 19, é uma forma de metáfora, ou seja, de um artifício de linguagem que constrói uma relação de equivalência entre dois valores semânticos distintos, para usar um no lugar do outro, de maneira indireta. Fundamentalmente diz “B” para significar “A”. O valor destes significados é cultural, solidificado ao longo dos tempos ou construído através do discurso. Nas culturas que cultivavam as artes retóricas a alegoria manifesta-se como um princípio formal das “retóricas das artes”, tanto por ser considerado elemento ornamentativo dos gêneros discursivos orais, desde os retores romanos, quanto por produzir formas de linguagem indiretas, que serviam a diferentes propósitos: promover associações ditas “engenhosas” entre tópicas de naturezas distintas; comover o receptor do discurso, por via da eloquência de alegorias consideradas “eficazes”; ocultar discursos, por meio de alegorias de interpretação mais difícil, capaz de ser entendida por seletos grupos sociais. Nesse universo que, como vemos, é bastante amplo, as alegorias classificam-se em graus de dificuldade interpretativa, que varia entre alegorias brandas e alegorias totais, o que exige atenção e prudência de quem as estude, além de uma aproximação bastante íntima de seu universo de produção, até porque muitas alegorias que, para nós, hoje são de difícil interpretação, poderiam não o ser para o público contemporâneo à sua produção, em função do universo cultural que vigorava em
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sua contemporaneidade. E, se assim o for, todo o contexto de produção de uma obra muda substancialmente. Se bem que presente durante toda a História da Arte europeia, o contexto de produção de alegorias visuais sofre profundas alterações na virada do Quatrocentos para o Quinhentos, com a progressiva constituição de culturas cortesãs, que manifestavam grande interesse por doutrinas ocultistas ou “orientalizantes” que estavam chegando à Europa naqueles tempos, através de documentos em parte alheios àquela cultura, como livros de hieróglifos egípcios, até então indecifrados. Trata-se de um contexto pluralíssimo, que olha para hieróglifos egípcios, astrologia, filosofia platônica, a cabala judaica, e tantas outras fontes, construindo interpretações de mundo místicas e proféticas como, entre outras, nas doutrinas neoplatônicas de Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano. A febre pelas “simbologias”, em pouco tempo, atrai a atenção das novas cortes italianas, permitindo a construção de discursos retóricos laudatórios a seus feitos militares, ou seus valores e nobreza. A apreensão cortesã deste universo se trata de uma apreensão culta e até “capciosa” dos sistemas de simbologias: dentre as novas cortes italianas, muitas eram compostas por mercenários ou hábeis militares, déspotas de origem não-nobre segundo a ordem política medieval, e que estavam assumindo o comando de territórios importantes, especialmente na Península Italiana. Os discursos neoplatônicos atraem sua atenção pois permitem a construção de uma nova ordem de natureza “mística” que habilitava sua nobiliarquia, inexistente na ordem unicamente cristã estabelecida desde a Idade Média. É o caso, por exemplo, de Sigismondo Malatesta, senhor de Rimini, para quem Alberti trabalha construindo o Tempio Malatestiano, destinado a glorificar aquela figura como se fosse um general romano através da emulação das ruínas romanas daquele local; de Federico de Montefeltro, senhor de Urbino, que constitui uma das cortes mais cultas do Quatrocentos, por onde passaram nomes como Piero della Francesca, Bramante e mais tarde Raffaello Sanzio, sendo notório o discurso sobre a Harmonia, que estabelece engenhosa relação entre a harmo-
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nia musical e celeste como alegoria da harmonia política do bom governo, celebrado por Montefeltro em seu studiolo; da família Medici, uma família de banqueiros, que chega ao poder dentro da antiga estrutura republicana florentina, e assume o controle político da cidade, constituindo uma corte notoriamente culta, sobretudo na época de Lorenzo o Magnífico, grande mecenas dos filósofos neoplatônicos quatrocentistas. Todos eles promovem nas artes discursos que alegorizam virtudes como o Bom Governo, a Justiça, e interpretações místicas de seu próprio poder temporal. Este contexto tão amplo leva à produção de tratados que visam “regular” o discurso visual em sistemas representativos de alegorias por meio de imagens, tornando-se eles próprios artis inveniendi. Tais compêndios regularizam de maneira formal a produção de alegorias, permitindo uma legibilidade mais segura, ao passo que a metáfora vem organizada em gêneros representativos como o emblema, a empresa/divisa ou as alegorias da Iconologia. Este processo é uma espécie de “institucionalização” dos símbolos em sistemas alegóricos, o que desperta a necessidade, aqui, de se aclarar a diferenciação entre símbolo e alegoria: ao passo que o símbolo contém significação metafórica fechada e direta em si próprio, a alegoria se trata de uma construção que articula diferentes símbolos gerando múltiplos significados, a fim de construir uma “metáfora composta”, com possibilidades de interpretação mais amplas. Devido à dificuldade de interpretação das alegorias propostas (isto é, devido à possível variedade de interpretação das metáforas expostas), os elementos compositivos alegóricos começaram a ser, concomitantemente, divididos em gêneros/sistemas representativos, que autorizam ou desautorizam, geralmente pelo costume, certos lugares-comuns interpretativos. Porém, note-se que, de acordo com o sistema representativo em que se insere, o elemento simbólico também pode sofrer alteração de significado na leitura final da alegoria, como observa Hansen quando reporta as instruções de um dos tratadistas sobre o tema:
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Rengifo diz que, na composição de emblemas, as figuras são extraídas dos próprios efeitos que se pretende figurar: a imagem da Tocha incendiada, que fica mais acesa quando é inclinada, significa “humildade”, dando a entender que a virtude mais se fortalece quanto mais se humilha. Invertida, faz a cera apagar o fogo, significando “leviandade”. De modo análogo, a imagem da “mosca”, em emblemas e na pintura do século XVII significa apenas “mosca” pousada numa [sic] fruto de um bodegón ou “natureza morta”; pintada como elemento de uma composição do gênero vanitas, significa “decomposição” e “morte”; e, usada sozinha, por exemplo numa divisa, num emblema ou numa inscrição irônica que se envia para alguém, 20 | HANSEN, João significa “falta de vergonha”. 20 Adolfo. “Alguns preComo se vê, o elemento “tocha” possui diferentes significa- ceitos da invenção e elocução metafóricas ções de acordo com a posição/contexto em que é represen- de emblemas e empretado e, da mesma forma, o elemento “mosca”, o que denota sas”. Revista chilena de estas engenhosas articulações entre símbolos, que produzem literatura. N. 85, nov. 2013. Pp. 43-73. Dissignificações compostas e distintas. ponível em: <http:// É interessante observar, também, que o contexto de www.revistaliteratura. uchile.cl/index.php/ surgimento e difusão desta cultura quinhentista é o das cul- RCL/article/viewArturas cortesãs, intimamente ligado a doutrinas políticas ma- ticle/30184/31945>. quiavélicas, rechaçadas pelos princípios da Razão de Estado Acesso em: 09 mar. Católica, da qual pertenciam as grandes monarquias europe- 2013.
ias, dentre as quais a portuguesa. No entanto, as culturas cortesãs italianas, como bem se sabe, serão admitidas nas grandes cortes europeias como padrões sociais e de representação nobiliárquica, especialmente no Seiscentos. Auxiliado por esta condição, os novos sistemas de representação artística passam também a ser aceitos nas grandes monarquias, e também são incluídos nos projetos contrarreformistas do Vaticano, já que muitos desses sistemas representativos visam a figurar vícios e virtudes de maneira eficaz e conveniente 21. A sutileza é que aquilo que se antes destinava a edificar o perfeito GentilHomem passa também a edificar, de maneira específica, o fiel católico e as virtudes dos dogmas religiosos. Vale lembrar, também, que esta análise que aqui faço diz respeito exclusivamente ao desenvolvimento formal das alegorias, dentro de sistemas de representação. Ou seja, nesse contexto, seu
21 | E, até porque, muitos papas durante o Quinhentos e Seiscentos eram justamente oriundos das novas famílias importantes italianas, como o caso dos Medici (Florença) ou ainda dos Pamphili (Roma)
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surgimento e difusão está ligado antes às pequenas cortes italianas, do que às políticas católicas e grandes monarquias; o uso de metáforas em discursos retóricos, no entanto, é um dado comum à cultura europeia desde sempre, como já dito. Aliás, poder-se-ia dizer que a metáfora é também um dos pilares das religiões semitas e, sobretudo, do cristianismo, a demonstrar-se pelas interpretações alegóricas de temas bíblicos e pelo modo como os ensinamentos de Cristo são propagados nos Evangelhos. A limite, o próprio ato fundamental da liturgia cristã, a eucaristia, tem sua razão de ser baseada na metáfora. Sem me ater a uma minuciosa análise de tantos gêneros de representação alegórica, limito-me a comentar dois deles, muito úteis às análises que farei sobre meu objeto de estudo, no capítulo seguinte. O primeiro trata-se do emblema, que começa a aparecer em 1531 na coletânea intitulada Emblemata, feita por Andrea Alciato. Inicialmente trata-se de pequenos poemas sobre vícios e virtudes que, em edições posteriores, têm a adição de gravuras, segundo proposta do editor. Esta nova configuração consagra-se como uma estrutura para o emblema, que passa a ser identificado como composto de Mote, Corpo e Alma, ou seja: título, figura e texto/epigrama. Esse sistema destina-se a proferir sentenças moralizantes e didascálicas, onde imagem e texto são interdependentes e igualmente válidas: Como a figura é uma definição ilustrada da mesma coisa que o texto diz, e o mote é o que as nomeia, é possível compor um emblema inteligível com apenas um ou dois destes termos. A leitura da mensagem, ainda assim, é sempre feita de maneira conjunta entre mais de um deles. Esta estrutura pode ser usada analogamente em outros gêneros artísticos, e exemplo da pintura: a inscrição de um provérbio em um quadro pode ser lida como o Mote do emblema (quadro), como no caso do tríptico O jardim das delícias terre22 | “Ele o disse, e tudo nas de Hieronymus Bosch que, quando fechado, figura Deus foi feito; Ele o mandou apontando a mão para a esfera terrena, acompanhado da inse tudo foi criado” (Gê- crição ipse dixit et facta s(ou)nt / ipse mandauit et creata s(ou)nt 22. nesis, 1:1). As imagens isoladamente abrem margem a diversas hipóteses,
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Andrea Alciato. “Omnia Andræ Alciati V. C. emblemata” (Antuérpia, Christophori Platini, 1577). Emblema CLX. A estrutura do emblema deve ser lida da seguinte forma: [mote:] Mútuo Auxílio [imagem] [epigrama:] “O coxo é carregado sobre os ombros do cego; E, como troca por esta aliança, tem os olhos deste. Quando falta algo a um dos dois, então a concórdia socorre a ambos: Um empresta seus olhos, o outro empresta seus pés.” (Trad: Luiz Armando Bagolim) Note-se, no exemplo, a possibilidade de leitura com apenas alguns dos termos que compõem o emblema, bem como o conteúdo moralizante, que alegoriza uma virtude edificante (no caso, o mútuo auxílio).
Albrecht Dührer. “Melancolia”, 1514. (Fonte: http://www.princeton.edu/~his291/Jpegs/Durer_Melancolia.JPG) A composição alegoriza os espíritos criadores, de artífices, cientistas, matemáticos, etc. Tais espíritos eram vistos pela astrologia como influenciados por Saturno (daí, espíritos saturninos), e também, como consequência disso, tomados pelo afeto da Melancolia. O gesto da figura, que descansa seu rosto apoiado no braço e tem o olhar perdido no horizonte, vira ele próprio um lugar-comum visual que representa o afeto da Melancolia, a partir do Quinhentos. A gravura pode ser considerada um emblema, pois o mote “Melancolia” vem inscrito nela, permitindo que a imagem seja lida como definição ilustrada daquilo que o mote diz; não obstante, uma leitura da imagem independentemente do texto também seria possível.
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O tríptico de Bosh, quando fechado.
mas a adição do Mote remete este emblema pintado à criação do mundo, e introduz os discursos sobre vícios e virtudes que irão se desenvolver no tríptico quando aberto. Outro bom exemplo de emblema está na gravura Melancolia de Dührer, uma alegoria dos artífices, espíritos saturninos inclinados ao engenho e à produção artística; ou na arquitetura, onde a indicação do orago de uma capela no frontispício do edifício também funciona como o Mote para o discurso retórico que se desenvolve em seu interior. Outro desses gêneros seria a divisa/empresa, o que hoje se costuma associar de maneira simplória ao “brasão” ou “heráldica”, por vir figurado em um campo que, em origem, já foi um escudo. O gênero se conforma durante o séc. XVI, sendo comumente chamado divisa, passando a ser reconhecido como empresa durante o séc. XVII. Divisa vem do verbo “divisar”, que remete à disposição de elementos dividindo o campo de representação (bandeira ou escudo) na arte heráldica. O gênero também lida com as definições alegóricas de “corpo” e “alma”, através da relação entre imagem e sentença (provérbio), porém de maneira mais específica que no emblema: a operação mental que o leitor deve fazer para interpretar esta alegoria se dá de maneira conjunta entre seus elementos, já que quase todos são metafóricos por si só. Novamente, Hansen:
23 | HANSEN, João Adolfo. Alegoria - construção e interpretação da metáfora. Campinas: Hedra, 2006. P. 195.
Observa-se, deste modo, que a imagem é pensada como discurso e vice-versa. O leitor/espectador de divisas vê-se, assim, às voltas com duas metáforas – uma visual, e outra verbal – cuja relação, que tem de efetuar para interpretar o que lê/vê, é alegórica: o visual tem tradução discursiva e o verbal, tradução visual. 23
Quando se diz que a divisa/empresa se constitui a partir do Quinhentos, se refere ao fato de sua estrutura começar a ser melhor definida desde então. No entanto, as operações alegóricas e os resultados formais deste gênero são antiquíssimos, como se observa pela própria arte heráldica. A divisa do Carmo pode se inserir neste contexto, inclusive por oferecer uma alegoria mais “branda” daquilo que designa. Ainda que sofra variações quanto ao desenho de elementos representativos, fundamentalmente o seu campo é dividido em dois por
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um elemento ascendente que remete ao Monte Carmelo; no topo dele, uma cruz; acima do Monte e aos lados da cruz, duas estrelas; no campo inferior do dito Monte, outra estrela. A tradição carmelita aponta o surgimento desta divisa em 1499, figurada em um livro dedicado à vida de Santo Alberto; não encontrei qualquer edição desta obra e, portanto, não pude verificar se desde então já vinha sendo figurado algum mote em seu filactério 24. Ainda assim, e tomando-se por referência 24 | Nome dado, no a divisa figurada em nossa capela de Mariana, é possível iden- caso, à faixa onde se instificar que estes elementos celebram o Monte Carmelo, local creve o Mote da divisa. onde desde o séc. XII reúnem-se os Carmelitas no culto a Nossa Senhora (cruz no topo do Monte). A estrela que está no campo do Carmelo denota a própria Virgem, enquanto que as estrelas que estão no campo superior, os profetas Elias e Eliseu, que mais antigamente protagonizam o Carmelo como local sagrado, nos textos bíblicos, e profetizaram a vinda de Maria. Além destas observações pontuais, convém notar outros preceitos reguladores das divisas, igualmente úteis a nossos estudos. Paolo Giovio, em seu Dialogo delle imprese militari et amorose [...] (1557), observa cinco condições para se fazer uma boa empresa: (1) que tenha justa proporção entre Alma e Corpo; (2) que não seja obscura demais, nem muito facilmente inteligível; (3) que tenha bela forma, e que se faça muito alegre, figurando-se “estrelas, Sóis, Luas, fogo, água, árvores verdejantes, instrumentos mecânicos, animais bizarros & pássaros fantásticos” 25; (4) que não requeira forma humana; (5) que o Mote seja a Alma do Corpo, e que quem o escreva fale preferencialmente idioma diverso de quem compôs o Corpo, porque assim se garante certo grau de obscuridade; ainda, que o Mote seja breve, e que sua junção com o corpo seja constante e essencial para o gênero. Esta prescrição oferece uma boa ideia do que se poderia entender visualmente por empresa/divisa no séc. XVI. Ressalto a necessidade de se construir uma alegoria moderada, ou seja, de interpretação nem branda e nem hermética (item 2), além da necessidade explícita de se representar símbolos de maneira
25 | GIOVIO, Paolo. Dialogo delle imprese militari et amorose (1557) di monsignor Giovio Vescovo di Nocera; con un Ragionamento di Messer Ludouico Domenichi, del medesimo soggetto. Con la tavola. In Lione, appresso Guglielmo Roviglio, 1559. Con Priuilegio del Rè. P. 9.
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figurativa (item 3).
26 | Convém notar que este universo cultural era realmente difundido. Em um “dicionário” editado em Portugal no início do Setecentos, vemos um extenso verbete para o termo divisa, que cita todos os pontos sobre os quais a tratadística discorre, enriquecendo-os com exemplos de divisas famosas feitas em Portugal e na Europa; cita também o tratado sobre as agudezas de Emanuele Tesauro (“Manoel Thesauro”), e os mesmos cinco pontos enunciados por Giovio, além de evocar autoridades como Platão e Cícero. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguêz, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, [...]. Coimbra: 1712-13. V. 3, pp. 264-266 (DIV).
Por sua vez, o item 4 é colocado de forma capciosa: “que não se requeira forma humana”. Giovio não proíbe a representação humana e sim, como se verifica em muitas empresas, autoriza a representação humana por via da sinédoque, ou seja, a representação do todo pela parte. Nas empresas jamais veremos uma representação total da figura humana, e sim de partes dela: uma perna, um braço, olho, etc. É o caso, curiosamente, das empresas franciscanas, que figuram quase que obrigatoriamente os frontispícios das capelas mineiras das irmandades leigas de São Francisco de Assis. Em Mariana é possível ver esta empresa na vizinha Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e na Capela da Arquiconfraria do cordão de S. Francisco de Assis. Esta empresa associa as chagas de Cristo aos estigmas de São Francisco de variadas formas, inclusive utilizando o braço nu como denotativo de Cristo, junto ao braço vestido por um manto, denotativo do santo (ambos com chagas em suas palmas). Na capela da Arquiconfraria ambos os braços aparecem lado a lado, obliquamente, à frente de uma cruz; na capela vizinha ao Carmo, são dispostos de maneira complexa e engenhosa: Acima de tudo, uma cruz; logo abaixo, os mesmos braços; abaixo deles, porém, a empresa já configura-se em divisa, com o campo de um escudo dividido em dois, e delimitado por uma corda que se enlaça: à esquerda, as cinco chagas de Cristo, que milagrosamente reaparecem em São Francisco e, à direita, as armas de Portugal 26. A associação entre esta Ordem e o Reino se dá de maneira engenhosíssima e extremamente eloquente: o lado esquerdo representa as chagas de Cristo, que reaparecem para São Francisco na forma de cinco estigmas; o lado direito mostra as armas de Portugal, cujo centro é justamente cinco escudetes azuis besantados com cinco pontos prateados, elemento que, por si só, alegoriza a tradição oral da Batalha de Ourique, na qual Cristo teria aparecido a D. Afonso Henriques prometendo-lhe vitória caso adotasse por armas as suas Chagas. A disposição dos elementos simbólicos nos permite algumas leituras (bem como a hipótese de que pertenceriam a determinado gênero representativo ou visual, como a divisa). Obs-
ervo, por fim, uma clara relação de correspondência entre os estigmas franciscanos e a divisa de Portugal (escudetes azuis), neste caso. Esta relação não é “forçosa”, mas sim, conveniente, ao se dispor lado a lado simbologias que autonomamente já possuem significação ligada aos 5 estigmas de Cristo. Ou seja: aquilo que é figurado em um lado espelha moralmente aquilo que é figurado de outro; a novidade é que ambos são
Pórtico de São Francisco em Mariana. A Divisa franciscana também atua como emblema para o Frontispício como um todo. (Foto do autor)
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enlaçados pela corda, a figurar uma ideia de harmonia entre os terceiros franciscanos e o Reino, manifestação vitoriosa de Cristo para a irmandade e para o império português, enlaçados em perfeita comunhão. Esta alegoria é o Mote para a leitura do restante do edifício. Espero ter demonstrado de maneira eficiente (ainda que um tanto cansativa) como são variadas as formas de construção e representação de ideias artísticas no universo cultural ao qual pertence nosso objeto de estudo. Em meio a tantos formalismos equivocados, conceitos historiográficos anacrônicos, e ao próprio esquecimento desta tradição representativa, fica difícil entender a gênese destas artes, e quase impossível a sua leitura. É certo que o trabalho de reconstituição cultural destes preceitos tange apenas uma fração de um vasto universo que se solidificou por séculos, e o que eu há pouco eu trouxe é muito menos que isso. Trata-se apenas de algumas notas, tanto objetivas quanto possível, para familiarizar o leitor com o tema. Porém, afora todo o conteúdo objetivo de que tratei, a maior reflexão que quero passar com este capítulo é que o cultivo da História e das fontes historiográficas tem, sim, objetivos claros e amplos, indo desde o situar de nossa contemporaneidade, perante o passado, fornecendo ferramentas para que possamos lidar, de maneira mais consciente e até objetiva, com nossa memória social e coletiva. Acredito que o restauro, em essência, se realize em qualquer operação cultural que permita situarmo-nos na História, por meio de nossa memória coletiva. Identificamos este tipo de operação dentre os meios físicos, nos procedimentos para o restauro de edificações ou de objetos mas, na verdade, tudo isso são consequências materiais, ou seja, tentativas de se materializar uma ideia, sendo que esta ideia, mais do que a manifestação dela em qualquer formalismo, é o princípio e a finalidade do restauro. E por ser, em essência, restauro, precisa ela mesma sempre ser revisitada, reconstruída e questionada.
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Anexos:
J. S. Bach (BWV 232). Crucifixus etiam pro nobis (1714).
Note-se a figura do passus duriusculus na linha do baixo, que se repete a cada quatro compassos. Os saltos abruptos nas linhas melódicas das flautas e cordas, de maneira pausada, e fora de acento dentro dos compassos (2os e 3os tempos), também alegorizam suspiros (figura do suspiratio). (Leipzig: Julius Rietz, 1856. Fac-símile em domínio público).
C. Monteverdi. Prólogo do VIII livro de madrigais (1638).
R. Bluteau. “Vocabulário Portuguêz, e Latino [...]”. Verbete “Divisa” (1712-13)
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7 Flos Carmeli [confirmatio]
A Capela da Ordem Terceira de N. S. do Monte Carmelo constitui-se em marco paisagístico singular em Mariana, e mesmo dentro do repertório arquitetônico colonial brasileiro. É o último monumento a ser implantado durante os tempos da colônia na praça que hoje se chama Praça Minas Gerais, em uma situação bastante interessante, pois concorre ao mesmo tempo em que orna com seus vizinhos: de um lado está a Capela da Ordem terceira de S. Francisco de Assis que, na região, concorre socialmente com o Carmo como irmandade tradicional e prestigiada; de outro, está a Casa de Câmara e Cadeia, sede do poder colonial que, de certa forma, legitima e autoriza ambos os edifícios religiosos. Os três edifícios assentam-se em sítios bastante convenientes e decorosos: sua “concorrência” se dá de maneira sutil, de acordo com a ornamentação conveniente a cada edifício, mas todos estão implantados em cotas semelhantes; nenhum muito mais elevado que os demais. A cota da praça, aliás, confere grande visibilidade ao conjunto, pois é uma espécie de “cota mediana” da cidade, permitindo a vista dos três edifícios tanto do alto (São Pedro dos Clérigos) quanto de baixo (Ribeirão do Carmo). Nesta relação entre alturas e visuais, a tríade de edifícios disposta em formato de U conforma uma espécie de “palco” que se dirige especialmente para as cotas inferiores da cidade, sendo cada edifício visto de baixo como se fosse ainda maior do que realmente é. Convém ressaltar, no entanto, que esses artifícios visuais se dão em condição de paridade entre os três edifícios. Três são
Carmo de Mariana. Detalhe do Altar Mor. (Foto do autor)
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doglio romano. A Praça Minas Gerais é um dos locais mais importantes da cidade e, certamente, o de maior visibilidade. Àqueles tempos ocupar um sítio desta magnitude não significava ofuscar seus vizinhos, e sim, observar o decoro e a conveniência da cidade, permitindo-se concorrer com seus “rivais” sempre de maneira decorosa, ao mesmo tempo que respeitando seus superiores, sem excessos inapropriados. O decoro do discurso religioso desenvolvido por cada uma das capelas é resguardado pela engenhosidade de seus frontispícios, que manifesta as virtudes próprias de cada orago; é neste campo do discurso visual, que para nós soa hoje como “disciplinado”, que se dá sua concorrência.
Mariana, vista a partir de S. Pedro dos Clérigos, com destaque às capelas da Praça Minas Gerais. (Foto do autor)
1 | BASTOS, Rodrigo de A. “Regularidade e ordem nas povoações mineiras do século XVIII”. In: Revista do IEB. N. 44, fev. 2007. Pp. 27-54.
os acessos à praça e, de cada um dos três, sempre dois deles ou todos os edifícios são igualmente notados. Afirmei anteriormente que grande parte das composições visuais, arquitetônicas ou não, pudessem manifestar-se como formas discursivas que figurassem alegorias de variados tipos. Atendo-me a isso, percebo que o entendimento daqueles homens sobre como dispor, no espaço urbano, diferentes edifícios, pudesse ser tão alegórico quanto a concepção de suas fachadas. Bastos 1 observa muitos preceitos, entre o decoro e a conveniência, como reguladores de um urbanismo conveniente que metaforizasse o governo português em cidades harmoniosas que, por sua vez, metaforizassem o corpo místico do rei, que se estende pelos territórios de seu império. O decoro a se resguardar nesta tópica seria o da proporção e o da hierarquia: Da mesma forma que a cabeça (caput; capital) comanda os membros, existe uma justa e devida proporção entre todos os membros que compõem o corpo. Pode-se imaginar, desta forma, o quão importante são as representações alegóricas de cada um destes edifícios neste espaço público que é uma espécie de emulação do Campi-
A capela dos terceiros franciscanos mostra-se sóbria e regrada, evocando lugares-comuns que remetem à Paixão de Cristo, confirmada pelas virtudes da Fé nos estigmas franciscanos. Já a capela dos terceiros carmelitas mostra-se benevolente e afável, como o são as virtudes de Nossa Senhora, cujos lugares-comuns remetem à figura de uma Mãe amável e piedosa, como veremos adiante. A arquitetura, de maneira específica, tem seu discurso regulado por uma gramática, que é a gramática das Ordens Arquitetônicas. Tal aspecto também é observado no decoro, isto é, na representação mais apropriada e conveniente para cada templo: São Francisco nos fala por meio da Ordem Toscana, mais dura e simples, ao passo que o Carmo nos fala por meio da Ordem Compósita, feminina e graciosa, obedecendo a uma tópica diversas vezes citada e emulada na tratadística, desde Vitruvio:
2 | MAGALHÃES E ANDRADE, José Calheiros de. “Das ordens em particular”. In: Regras das sinco ordens de architectura segundo os princípios de Vinhola, [...]. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787. P. 61.
A primeira ordem chamada Toscana he a mais robusta, e mais simples porisso p ropria para os edifícios deste caracter: as outras vaõ sendo successivamente mais delicadas porisso se empregaõ, ou sobre as mais robustas isto he, sobre a Toscana e a Dorica, ou para ornar aquella parte do edifício onde forem mais próprias. 2
3 | BASTOS, Rodrigo de Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na Arquitetura Religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (17111822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. 360p.
Novamente Bastos 3, em sua tese de doutorado, identifica uma série de lugares-comuns caros a cada Irmandade examinada
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nas Minas Gerais, reconstituindo de maneira plausível conceitos úteis ao entendimento destes edifícios, e analisando especificamente os de Ouro Preto. Fundamentalmente se observam elementos similares aos que comentei há pouco sobre os frontispícios de Mariana, como o gosto dos terceiros franciscanos pela representação do Fervor Religioso e Penitência (cap. 4) e a observação dos carmelitas pela formosura (cap. 2).
Frontispício do Carmo de Mariana. Note-se a cimalha arqueada para acomodar o óculo, e a fachada que se projeta para frente. (Foto do autor)
Ao dirigirmos, enfim, nosso olhar para o Carmo marianense de maneira específica, a primeira coisa que cabe notar é sua planta, que observa vários temas já ensaiados em outros edifícios da região, e bastante específicos da arquitetura de origem lusitana do Setecentos. Trata-se, fundamentalmente, de um risco cujas torres sineiras vêm “embutidas” no corpo do edifício (isto é, na nave-salão principal). No Carmo, as torres já não ladeiam totalmente a nave-salão (como se vê na vizinha São Francisco, por exemplo), mas ressaltam-se suavemente pelas laterais, justamente como na São Francisco de Ouro Preto. Outro recurso empregado, de certa forma uma consequência deste princípio, é a projeção do frontispício para frente, avançado em relação ao plano das torres sineiras (novamente, como na São Francisco de Ouro Preto), se bem que de maneira mais “estática” que o frontispício análogo franciscano, pois o frontispício carmelita se ressalta sob ângulos retos, deixando-se de lançar à graciosidade e formosura buscadas pelos ressaltos encurvados ouro-pretanos (os recursos que conferem os caráteres de formosura às plantas, buscados por muros em curva, podem ser verificados sobretudo na São Francisco, mas também, no Carmo de Ouro Preto, de maneira mais discreta). Portanto, ainda que de maneira menos eloquente do que seus paradigmas ouro-pretanos, é possível afirmar que o Carmo de Mariana lança-se a recursos semelhantes da composição de planta e frontispícios presentes em nosso repertório colonial
de fins do séc. XVIII. Cabe dizer que este tipo de recurso compositivo, especialmente no campo arquitetônico, opera ora em esferas culturais mais amplas (mais até do que se costuma afirmar), e ora em peculiaridades mais próprias, que possam talvez ser chamadas de “costume local”, ao se usar determinadas tópicas (coisa que talvez seja confundida por nossa historiografia com “gosto brasileiro” ou mesmo “estilo” colonial). Com relação ao primeiro gênero, também por vezes considerado “invenção nacional”, manifestado na projeção dos frontispícios e na rotação de elementos gramaticais, como colunas e entablamentos, é necessário dizer que, apesar da grande incidência no repertório colonial brasileiro (torres de N. S. da Conceição da Praia em Salvador; colunas de São Francisco em Ouro Preto, etc.), é provavelmente invenção seiscentista italiana, celebremente manifestada em recursos compositivos já berninianos e borrominianos: Se São Francisco em Ouro Preto possui suas colunas rotacionadas 45º em relação ao plano do frontispício, Bernini já o propôs, inclusive no mesmo Jônico, em S. Andrea al Quirinale; se o Carmo de Ouro Preto
Frontispício de S. Francisco em Ouro Preto e contrafachada de S. Pedro em Bolonha. Note-se os mesmos recursos de inclinação de volutas e colunas arquitravadas, para obter o efeito de apliação monumental. (Fotos do autor)
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contém ondulações e concavidades em seu frontispício, Borromini também já o houvera feito em S. Carlo alle Quattro Fontane, ou no frontão e entablamento do Oratorio dei Filippini, em Roma. Outros exemplos destes recursos visuais, ainda que menos célebres, também são encontráveis em Portugal e em outros cantos da Europa, sendo digno de nota a contrafachada da catedral de S. Pedro em Bolonha, desenhada na década de 1740 por Alfonso Torreggiani, que contém os mesmíssimos elementos do frontispício do Aleijadinho na São Francisco de Ouro Preto, como a rotação de colunas e volutas, projetando a composição toda para fora, dando uma impressão de grandiosidade. Estampa 70 do tratado de Magalhães e Andrade. Na Figura 1a, um exemplo de entablamento Ático. (Fonte: Cópia de microfilme da Biblioteca da FAUUSP)
4 | A hipótese de que as cimalhas encurvadas e interrompidas seja uma peculiaridade daquela região brasileira é sugerida por Sylvio de Vasconcellos em um ensaio curioso, de certa pluralidade temática. Ver: VASCONCELLOS, S. Mineiridade. Ensaio de caracterização. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1968.
Ainda assim nota-se, como dito há pouco, a incidência de “costumes arquitetônicos” muito peculiares, especialmente na região das Minas de Ouro do Brasil setecentista, dificilmente identificados em outras localidades. Trata-se do emprego das cimalhas nas fachadas ou interiores das Naves, que comumente se interrompem, se arqueiam e se ressaltam, dando lugar a óculos e elevando frontões acima delas 4. Seu emprego, da forma que é feito, parece “fora de gramática” a princípio, já que uma cimalha nada mais é do que um entablamento, e a função do entablamento é, justamente, a de ser reto e horizontal para acomodar o frontão (“telhado”). De fato, as mais famosas fachadas seiscentistas italianas não promovem qualquer “ondulação” vertical nos entablamentos, sendo verificadas, ao máximo, algumas interrupções. Seria difícil, aliás, propormo-nos a buscar razões de natureza “gramatical” que supostamente justifiquem essas cimalhas tão peculiares e aparentemente “rebeldes”. No entanto, uma ressalva ao tema dos entablamentos e cimalhas ainda é cabível: mais do que desobediência à gramática, e mais do que “invenção nacional”, é possível que as cimalhas encontradas no Brasil possam valer-se de uma tópica esquecida por algum tempo na tratadística arquitetônica, que é o da Ordem Ática. Esta ordem arquitetônica aparece descrita nos autores
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antigos, e é comentada no tratado de Cesare Cesariano, mas desaparece quando as regras das cinco ordens são sistematizadas por Serlio e Vignola. É interessante notar que em documentos que circularam em Portugal no fim do Setecentos essa tópica reaparece, e sua descrição apresenta certa similaridade formal com o que identificamos por “cimalhas” na arquitetura luso-brasileira: no caso da edição portuguesa do tratado de Vignola feita em 1787 por Magalhães e Andrade, vemos que o autor incrementa o texto vignolesco com uma seção sobre a Ordem Ática, completando-o com uma estampa cuja composição de modenaturas se assemelha muito à das cimalhas coloniais, mais do que com qualquer entablamento de alguma Ordem específica, afinal,
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Cimalha do Carmo de Mariana. Note-se a semelhança compositiva entre estas modenaturas e o exemplo de Magalhães e Andrade. (Elaboração do autor)
...assim se chama huma ordem baixa feita de pilastras, que serve para os remates dos edifícios posta sobre algumas das outras ordens: ordinariamente aplicasse a ordem Attica quando se quer elevar o meio do edifício assima do intablamento principal que o cerca em roda, e a cornija desta ordem he o que fas o Timpano com que a obra se remata. Naõ se póde estabelecer huma regra fixa que determine as medidas desta ordem, porque isto depende da altura do edifício, e das ordens de Architectura, que lhe ficaõ inferiores [...] 5. 5 | MAGALHÃES E ANDRADE, José Caé muito curioso. Por si só renderia uma discussão à lheiros de. Op. Cit. Pp. 152-153.
O fato parte, que não é o objetivo deste trabalho, limitando-me apenas a comentá-lo brevemente: a sua observação nos ajuda a situar a cimalha colonial setecentista, como algo que contém fundamentação gramatical, sendo autorizada pela tópica como algo de uso menos “rigoroso” em matéria de proporções. Os propósitos aos quais a Ordem Ática se serve, pela prescrição da tratadística, são também verificáveis no emprego efetivo das cimalhas coloniais: um coroamento de edifício que se assenta sobre pilastras e permite o ressalto e articulação de outros elementos gramaticais. Aparentemente a Ordem Ática, de acordo com o referido tratado, não possui capitel próprio, valendo-se, assim, dos demais.
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Não se trata de pretender, com isso, que nossos mestres de obras fossem especificamente afeitos a determinada tratadística, mas de observar que também outras tópicas tidas como “menos difundidas” na tratadística italiana, pudessem ser cultivadas na literatura lusitana. Quero agora me concentrar nas tópicas identificadas por Bastos (op.cit.) quando analisa o Carmo de Ouro Preto, e comenta o Carmo de São João del Rei: Em ambos os casos, encontra-se (em Ouro Preto, na sacristia, e em S. J. del Rei no frontispício) os dizeres Gloria Libani e Decor Carmeli. Tratase de uma citação Bíblica (Isaías 35:2) que faz referência ao Monte Carmelo. O culto a Nossa Senhora do Carmo tem origem nos primeiros séculos da cristandade, quando um grupo de religiosos edifica um mosteiro naquele local em louvor a Nossa Senhora, e de lá origina-se a ordem religiosa dos carmelitas, bem como a tradição de associar Nossa Senhora ao Carmo. O Carmo, ou Monte Carmelo, localiza-se na Palestina, e é desde sempre considerado um lugar sagrado; seu nome em hebraico (karmel) designa um pomar/jardim/lugar florido. Segundo o Velho Testamento, o profeta Elias teria lá protagonizado episódios importantes de sua vida; sua doutrina é seguida pelo profeta Eliseu, ambos caros à iconografia carmelita, juntamente com outros santos medievais como São Simão Stock, Santo Alberto, e Santa Tereza d’Ávila, reformadores da ordem religiosa. É lugar-comum dessa iconografia retratar seus santos em momentos cruciais de sua história; assim sendo, é recorrente a visão do arrebatamento de Elias, e da outorga de virtudes feita por N. Senhora a seus santos: entrega da Regra dos carmelitas a S. Alberto; do escapulário e do manto carmelita a S. Simão Stock; do Sagrado Coração a S. Tereza. O Carmelo também é citado no Livro dos Reis como local onde o profeta Elias prova o verdadeiro Deus de Israel diante do povo, e manda matar os profetas de Baal (1Rs, 18:16-45), ao passo que a citação feita anteriormente, mais precisamente, consta no capítulo intitulado A alegria dos redimidos, que fala sobre o fim de um tempo de privações.
É sabido que a cultura católica, desde a idade média, Carmo de Ouro Preto. desenvolve uma leitura bíblica que relaciona o Velho e o Novo Note-se as curvas e Testamento de forma profética. Trata-se daquilo que Hansen contracurvas do frontispício e os elementos chama de alegoria dos teólogos 6, onde o que é profetizado no da divisa carmelita Velho Testamento se cumpre no Novo Testamento. Desta figurados de maneira forma, o capítulo em que Isaías profetiza o Carmo como lo- alegórica no frontão cal de onde viria a redenção aos tempos de agrura provocados Crucifixo e três estrelas. pela seca no deserto é, de maneira autorizada pelas doutri- (Foto do autor) nas católicas, visto também como uma profecia da existência da Virgem Maria, que traz ao mundo o Salvador, tornando 6 | HANSEN, João o próprio Carmo uma alegoria da salvação e redenção dos Adolfo. Alegoria. Op. aflitos, ou seja, ele mesmo, uma alegoria de Nossa Senhora e Cit. da Salvação. Assim diz o capítulo 35 de Isaías: O deserto e a terra árida regozijar-se-ão. A estepe vai alegrar-se e florir Como o lírio ela florirá, exultará de júbilo e gritará de alegria. A glória do Líbano lhe será dada, o esplendor do Carmelo e de Saron; Será vista a glória do senhor e a magnificência de nosso Deus.
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Vemos, portanto, como o Velho Testamento fornece lugares-comuns para os templos carmelitas, através da citação de Isaías; esta metáfora do local (Monte Carmelo) é verificada na sacristia do Carmo de Ouro Preto (pinturas do forro e lavatório); na portada do Carmo de S. J. del Rei, todos sempre abundantes de representações florais, na pintura do forro ou na cantaria, respectivamente; e novamente, no frontispício do Carmo de Ouro Preto e de Sabará que, como observa Bastos, alegoriza o local por meio da representação visual do Carmo e da divisa dos carmelitas: o frontispício torna-se ele próprio o Monte Carmelo, ao ser encimado com uma cruz, ladeado por duas estrelas suspensas acima do frontão, e outra em um minúsculo óculo-cego abaixo do frontão, provavelmente construído apenas para abrigar este elemento. Pórtico do Carmo de Mariana: Acima, a Divisa carmelita; ao redor, rocalhas e flores guarnecendo a entrada. (Foto do autor)
Para o Carmo de Mariana, dirijo meu olhar tendo em conta estes lugares-comuns, mas também tendo em conta que alguns de seus elementos são realizados algumas décadas depois que os citados acima, o que acarreta em mudanças na unidade e eloquência do discurso retórico como um todo. De seus ornatos, o primeiro que se apresenta ao espectador como exordio do discurso arquitetônico é o pórtico. Compõese de uma porta guarnecida por elementos em cantaria sem ordem arquitetônica específica, ainda que chame a atenção as amplas escócias que entremeiam o “fuste” e as ombreiras e, como próprio do costume na arquitetura lusitana setecentista, anunciam a verga que finaliza a estrutura do pórtico. A estrutura é encimada por ombreiras em forma de volutas, recobertas por flores e rocalhas, que deixam cair por sobre as laterais das ombreiras algumas flores em botão. Encimando o centro do conjunto, a divisa do Carmo anunciando ao expectador o
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orago dedicado pelo edifício. A divisa se compõe emoldurada também por rocalhas e, como de costume, tem seu campo dividido por uma figura ascendente identificada como o Monte Carmelo, encimado por uma cruz; no campo do Monte, uma estrela de seis pontas, e no campo celeste, duas estrelas de seis pontas. A composição é guarnecida por dois anjos (muito grandes e de feições bem “adultas”, por sinal) que, com uma das mãos sustentam uma coroa que está acima da divisa, enquanto que empunham a outra mão (a mão exterior à composição). Esta mão, examinada de perto, é representada fechada, mas possui um orifício que parece servir como suporte para o encaixe de algum tipo de mastro por entre os dedos em punho, se bem que a estrutura em pedra-sabão (esteatite ou esteatito) pareça muito frágil para tal 7. Por fim, cabe mencionar que no centro da verga vemos duas figuras: um sol, que mira para “fora”, no próprio plano do frontispício, e uma lua, que mira para baixo, acima de quem passa pelo pórtico. Difícil interpretar estas metáforas de maneira articulada, especialmente as últimas dos corpos celestes, possivelmente até de natureza hieroglífica. É sabido que Sol e Lua tratam-se de símbolos marianos reconhecíveis, tanto pela associação de Maria à Estrela da Manhã (Stella Matutina, como se verá adiante), quanto por associações proféticas como o caso do capítulo 12 do livro do Apocalipse (Ap 12:1): “Apareceu do céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça”. Ao entrar no templo, o espectador originalmente se deparava com o tapa-vento, que hoje não existe mais devido ao sinistro de 1999. Este elemento preparava a entrada do fiel, configurando uma espécie de Nártex e protegendo a Nave da exposição direta ao exterior. Tratava-se de um elemento totalmente lígneo composto de um pórtico ladeado por colunas jônicas, cujas folhas das portas sustentavam pequenos painéis retangulares com pinturas que figuravam paisagens campestres (muitos ciprestes) entremeadas por figuras humanas com objetos como um alaúde (mulher), uma espingarda (homem) ou um livro (mulher), ou uma jarra acima da cabeça (mulher); encimando o conjunto do tapa-vento, uma espécie de “frontão” com símbolos carmelitas, especialmente as três
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7 | Não convém atermo-nos a o que ou mesmo se havia, de fato, a intenção de colocar algo nas mãos destes anjos; apenas observo que o acréscimo de outros materiais na escultura em pedra (sobretudo aquela destinada a espaços externos), tais como pormenores mais delicados, é corrente na tradição construtiva de matriz europeia, como se vê em muitos exemplos; para o caso carmelita, cuja iconografia é cara à figura do Escapulário, seria mesmo conveniente fazê-lo em metal, sendo este um objeto delicado para ser feito em pedra. Cito-o por encontrar exemplos deste gênero no interior do edifício (como veremos adiante), e também em outros espaços públicos configurados pelos carmelitas.
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estrelas dispostas de maneira triangular.
8 | MINISTÉRIO DA CULTURA. SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA. INVENTÁRIO NACIONAL DE BENS MÓVEIS E INTEGRADOS: Minas gerais. Módulo 2 – Região de Mariana. V. 6 – Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Rio de Janeiro, set. 1988.
Devido à dificuldade de se descrever um elemento deste tipo, hoje inexistente, recorro a fotografias e à leitura das fichas catalográficas de bens móveis, promovidas pelo MinC no fim dos anos 80 8 que, além de fornecerem informações técnicas sobre os bens integrados, oferecem descrições dos mesmos. Estas fichas catalogam as pinturas do tapa-vento como “ingênuas” (naïve). Ao adentrar, propriamente, a Nave, o espectador deparava-se com um espaço relativamente “limpo” de elementos, composto de apenas dois púlpitos idênticos e dois altares ladeando de maneira oblíqua o arco-cruzeiro. Acima havia um forro emoldurado por pinturas que figuravam balaustradas em pretensas anamorfoses, como de amplo costume naquela localidade durante o período colonial, sem, no entanto, figurar qualquer figura humana “habitando” as balaustradas, como em complemento àquele costume. Ao centro, um medalhão emoldurado por rocalhas, figurando Nossa Senhora coroada, com o Menino Jesus nu, também coroado, em seu colo; ambos sobre nuvens, entregando o hábito carmelita a São Simão Stock que, curiosamente, já está vestido. A santa também está vestida com hábito carmelita (marrom), e é circundada de figuras celestes tais como anjos. Acima da composição, novamente a divisa carmelita e, abaixo dela, uma cartela com a seguinte inscrição: A/C ORDO, ELIAS DUM VIXCRIT ORBE/ VIGEBTI ORDIS CUN/ SVERI FINIS ET EJUS ERIT GLORIA CARMELO/ SI SANTA À MATRE RESURGO/ ORDINIS EM NOSTRI/ GLORIA QUALIS/ ERIT. A dificuldade em traduzir estes dizeres me impedirá de comentar esta iconografia; resta a dúvida se o que está escrito realmente possui intuito didascálico, atuando como o epigrama de um emblema cuja definição ilustrada fosse a imagem. Nesse caso, não irei tão a fundo nesta questão, justamente pela dificuldade de leitura. A pintura do forro é atribuída a Francisco Xavier Carneiro, provavelmente do 2º quartel do séc. XIX.
Em sequência, os altares laterais. Não farei uma descrição pormenorizada de todos os seus elementos compositivos, preferindo, para poupar o leitor, ater-me apenas aos elementos principais de seu discurso visual: limito-me a dizer que compõem-se, nas extremidades, de colunas caneladas, com o terço inferior torso e, voltadas para seu interior, de pilastras misuladas, ou quartelões, ambos encabeçados por ordem compósita. O conjunto é encimado por uma divisa (não pude identificar qual fosse, mas provavelmente seria a carmelita), e emoldurado por uma sanefa, sendo todos os elementos arquitetônicos aqui descritos recobertos por ornamentação fitomorfa. No que concerne a este grau de descrição, mais “estrutural”, pode-se dizer que ambos os altares são idênticos; o esquema compositivo se repete a partir do Altar Mor, sendo feitos os devidos ajustes para sua correta escala e hierarquia. No Altar Mor, porém, posso observar que a divisa que o arremata é seguramente aquela carmelita, sustentada por dois anjos no mesmo esquema compositivo que o do pórtico, e sustentando à mão que não segura a coroa, um escapulário; isso abre margem à especulação de que também fosse previsto um escapu-
Pórtico do Carmo de Mariana. Note-se os orifícios nas mãos dos anjos, e as figuras de Sol e Lua na verga da porta. (Foto do autor)
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lário para as mãos dos anjos do pórtico, mas não há maiores indícios desta hipótese. Cabe, ainda, observar que o camarim do altar-mor é pintado com motivos de rosas, em padrões que se repetem de maneira “modular”; o sacrário, por sua vez, é decorado com aves que remetem a pelicanos. Embora não se pareçam fisicamente com pelicanos, estas aves remetem a um lugar-comum muito apreciado nas Minas Gerais (curioso é que sua representação é mais comum no começo do Setecentos, e não no fim), que reside na figura do pelicano. Autorizado pela tradição oral medieval, cria-se que o pelicano, diante da escassez, bicava seu próprio corpo para dar-se de alimento para seus filhotes. O pelicano é, portanto, metáfora de Cristo e alegoria da Eucaristia. Neste caso, como disse, as aves não se parecem de fato a pelicanos, mas é evidente que uma delas, a maior, se “prostra” diante das menores, que encostam os bicos em seu peito, aludindo a este lugar-comum. Esta hipótese é reforçada pela representação efetivar-se de maneira muito conveniente, pois está no sacrário daquele templo, local onde são guardados os Largo de S. Martim em paramentos da Eucaristia, fisicamente entendido como local Bolonha. A delicadeza da representação, por extensão, do próprio Cristo. Além disso, do elemento que figura segundo os cânones representativos autorizados pela doutrina o escapulário justifica ut pictura poesis, uma figura não precisa se parecer visualmente sua feitura em metal, àquilo que quer representar bastando, para tal, que represente promovendo uma composição engenhosa a ideia daquilo que será figurado. Desta forma, as ditas aves e muito conveniente não precisam, deliberadamente, parecer-se a pelicanos, pois para a estatuária de o modo em que estão dispostas as torna definições ilustraespaços externos. (Foto das dessa “ideia” de pelicanos, que é muito específica. A isso do autor) somam-se os conceitos de vera fictio e falsa fictio, ou seja, ficção baseada na realidade, e ficção baseada na fantasia, respectivamente. Tais conceitos dizem respeito à proporcionalidade da representação ao paradigma representado (eicasia e fantasia), confirmando que a verossimilhança da representação visual 9 | Cf. HANSEN, J. A. de um conceito possui paradigmas deliberadamente variáveis9. “Ut pictura poesis e verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII colonial”. Revista de crítica literária latinoamericana. 1997.
O altar-mor, atribuído ao Pe. Félix Antônio Lisboa, é datado de fins do séc. XVIII (seu risco seria datado de 1797), ao passo que os altares laterais são situados na segunda década do séc. XIX, conforme as referidas fichas catalográficas do IPHAN. A correspondência entre a ornamentação de ambos
é muito forte, fazendo crer que um serviu como referência aos demais. Tudo o que descrevi há pouco visa chamar a atenção do leitor ao que considero os dois alicerces da representação alegórica deste edifício: O caráter feminino e a profusão de elementos fitomórficos. O caráter feminino, que resguarda o decoro da Senhora, é expresso pelo rigor gramatical na escolha das ordens arquitetônicas: Em todo o edifício constata-se a escolha pela Ordem Compósita, sendo sua única exceção a Ordem Jônica do tapa-vento, à qual também é atribuído o caráter feminino. A Compósita deste edifício é bastante inventiva, e varia de desenho conforme a cantaria exterior, interior, e a talha. Tais variações, ao contrário do que talvez se pudesse pensar de início, podem se tratar justamente da acurada observação de uma tópica autorizada por Vignola: Encontrando-se entre as antiguidades de Roma quase infinitas variedades de capitéis, os quais não têm nomes próprios, mas se pode todos juntos com esse vocábulo geral denomi-
Carmo de Mariana. Sacrário figurando pelicanos e protuberância da ornamentação fitomórfica, especialmente em locais de maior liberdade compositiva, como o quartelão. (Fotos do autor)
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10 | VIGNOLA, Giacomo Barrozio della. REGOLA delli cinque ORDINI d’Architettura (c. 1736) di M. JAC. BAROZZIO da VIGNOLA In Bologna nella Stamperia di Lellio dalla Volpe Con licenza de Supr. P. 63. Tradução minha.
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nar compósitos, e também seguem as medidas principais dos outros compósitos derivados, somente do Jônico e Coríntio; bem é verdade, que em alguns se verão animais em lugar dos caulículos, em outros cornucópias, e em outros outras coisas, talvez segundo o que a seus propósitos ocorria, [...] 10
A este ponto é necessário aclarar o seguinte: é fato que a predileção pela Compósita não seja exclusividade carmelita, mas sim costume bastante vigente na região, especialmente na ornamentação dos Arcos Cruzeiros. Ao olharmos para outros templos, como São Francisco de Mariana, de Ouro Preto, ou o Carmo de Ouro Preto, vemos também a Compósita em seus Arcos Cruzeiros. O aspecto que reforço, no entanto, é que nos demais casos a Compósita é reservada para o Arco Cruzeiro, e nos casos carmelitas, especialmente neste marianense, é também empregada em outros lugares do edifício, seja por meio da cantaria, ou da talha. E isto se dá porque, além de autorizada, a tópica da Compósita é muito conveniente, pois representa com dignidade o caráter feminino do edifício, e ainda permite a eloquência da invenção que, aqui, se dá pela profusão dos elementos fitomorfos, que saem como cestos de flores e frutos, dos cestos do capitel Compósito, e inundam os fustes dos quartelões; que coroam as sanefas como se fossem guirlandas; que reaparecem por detrás de frontões, ou mesmo na cantaria das vergas das portas e janelas mais importantes. Nada disto está fora da gramática arquitetônica, sendo inclusive muito respeitoso aos elementos mais sóbrios (estruturais) como os entablamentos e fustes, abundando somente onde é apropriado (quartelões e tímpanos), conferindo um aspecto aprazível e benevolente ao edifício. Esta leitura é reforçada com a constatação de que as virtudes observadas neste edifício não são escolhas particulares dos carmelitas marianenses. Além de outros edifícios mineiros, como citado acima, a tópica carmelita em torno do Monte Carmelo, de Maria metaforizada nas flores, partindo-se dos textos do Velho Testamento, é facilmente verificável em vários edifícios ligados à Ordem também na Europa, sendo traduzida de forma semelhante em sua arquitetura.
Vale à pena citar a capela de N. S. do Carmo na igreja de San Martino em Bolonha, completada por Torreggiani em 1773 e ornada de acordo com a estrutura do emblema, contendo inscrições em cártulas marmóreas que auxiliam a leitura da imaginária e pintura lá colocada (é curioso que, neste caso, a citação da passagem bíblica também é indicada). Dessa forma tem-se, acima da imagem do altar: “DECOR CARMELI/ ISAJAE. XXXV. II.”; à esquerda, acima de uma tela: “JUSTITIA IN CARMEL SEDEBIT/JSAIAE XXXII. XVI.”; à direita, acima de sua respectiva tela: “MANUS DOMINI IN MONTE ISTO/JSAIAE. XXV. X.”. Também é digna de nota outra capela lateral carmelita, em igreja homônima milanesa. A igreja é medieval, mas sua capela lateral, dedicada à Virgem do Carmelo, foi decorada sob risco de Gerolamo Quadrio, em fins do Seiscentos, sofrendo ainda outros trabalhos no início do século seguinte. De lá destaca-se a profusão da ornamentação floral, como as guirlandas nos capitéis (que se alternam de Ordem mas, sobretudo, nos Jônicos), ou nos grandes florões que ornam os caixotões dos arcos. Inscrita no entablamento do altar principal, a frase: “VIRGO FLOS CARMELI”.
Capela do Carmo em S. Martino (Bolonha), e Capela do Carmo na Chiesa del Carmine de Milão. Note-se a inscrição da tópica no primeiro exemplo, e a importância dos florões, no segundo. (Fotos do autor)
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Flos Carmeli é uma forte tópica carmelita, originária das obras de São Simão Stock, talvez um dos principais reformadores da Ordem. Flos Carmeli era a oração rezada pelo santo inglês, que se solidifica na tradição carmelita através de um hino cantado no dia de sua festa e, mais tarde, também na festa de N. S. do Carmo: Flos Carmeli, vitis florigera, splendor caeli, virgo puerpera singularis. 11 | Flor do Carmelo, Vinha florida, esplendor Mater mitis sed viri nescia Carmelitis esto propitia stella maris. do céu, virgem fecunda, Radix Iesse germinans flosculum nos ad esse tecum in saeculum patiaris. Inter spinas quae crescis lilium serva puras mentes fragilium tutelaris. és singular. Doce e bendita, ó Mãe Armatura fortis pugnantium furunt bella tende praesidium scapularis. puríssima, aos carmePer incerta prudens consilium per adversa iuge solatium largiaris. litas, sê tu propícia, Mater dulcis Carmeli domina, plebem tuam reple laetitia qua bearis. estrela do mar. Raíz de Jessé, de brotos Paradisi clavis et ianua, fac nos duci quo, Mater, gloria coronaris. Amen.11. floridos, queiras, feliz, ao céu pelos séculos nos elevar. Entre os abrolhos, viçoso lírio, guarda os escolhos, o frágil ânimo, Mãe tutelar. Forte armadura, frnete o adversário, na guerra dura, o escapulário vem nos guardar. Nas incertezas, conselho sábio; nas asperezas, consolo sólido queira nos dar. Mãe de doçura do Carmo régio sê a ventura que o povo, em júbilo, faz exultar. Do paraíso és chave, és pórtico; prudente guia, a nós, de glória, vem coroar. Amém. Tradução disponível em: <http://www.sendarium.com/2013/07/ oracao-flos-carmeli. html>. Acesso em:
18 abr 2014.
Mais do que carmelita, a tópica das flores como metáforas de Maria é antiquíssima e fortíssima na tradição católica como um todo. Basta pensar em lugares-comuns simples como Rosário ou rosácea. Não indo muito longe, o Padre Vieira, aliás, relembra estas associações ao editar trinta de seus sermões dedicados a Maria e ao Rosário, sob o título de Maria Rosa Mística. Portanto, julgo bastante plausível ler este edifício (não o único dentre os mineiros) como uma grande alegoria daquele lugar florido, o Monte Carmelo que, por sua vez, metaforiza ele mesmo a própria Mãe de Deus, plena de virtudes afáveis, autorizadas por tantas tópicas católicas. Tal alegoria se traduz na retórica do edifício através de sua iconografia juntamente com os elementos compositivos arquitetônicos e escultóricos, por meio da cantaria e talha. Por fim, reforço estas hipóteses ao reproduzir também uma ladainha rezada pela tradição carmelita, que não poderia ser mais rica em metáforas e tópicas que exaltam as virtudes marianas, muitas delas claramente originadas do hino de S. Simão Stock e tão celebradas neste edifício. Dela se extraem metáforas instrutivas e diretas, por vezes advindas de outros lugares-comuns bíblicos, e reforçam sobremaneira os lugares-
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comuns que aqui identifico, ainda que de forma ampla. Me parece que, para os terceiros carmelitas, não havia nada mais digno a Nossa Senhora do Carmo do que erigir em seu louvor um edifício que é ele mesmo uma ladainha capaz de glorificar aquela que é considerada a Flor do Carmelo. Flos Carmeli,/ Vitis florigera/ Splendor Caeli/ Virgo puerpera/ Singularis!/ Mater mitis,/ Sed vir nescia./ Carmelitas da privilegia,/ Stella Maris”. Kyrie, eleison. Christe, eleison. Kyrie, eleison. Christe, audi nos. Christe, exaudi nos. Pater de caelis Deus, miserere nobis Fili, Redemptor mundi, Deus, miserere nobis Spiritus Sancte Deus, miserere nobis Sancta Trinitas, unus Deus, miserere nobis Sancta Maria, ora pro nobis Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis Sancta Virgo virginum, ora pro nobis Mater Christi, ora pro nobis Mater divinae gratiae, ora pro nobis Mater purissima, ora pro nobis Mater castissima, ora pro nobis Mater inviolata, ora pro nobis Mater intemerata, ora pro nobis Mater amabilis, ora pro nobis Mater admirabilis, ora pro nobis Mater boni consilii, ora pro nobis Mater Creatoris, ora pro nobis Mater Salvatoris, ora pro nobis Virgo prudentissima, ora pro nobis Virgo veneranda, ora pro nobis Virgo praedicanda, ora pro nobis Virgo potens, ora pro nobis Virgo Clemens, ora pro nobis Virgo fidelis, ora pro nobis Speculum justitiae, ora pro nobis Sedes sapientiae, ora pro nobis
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Causa nostrae laetitiae, ora pro nobis Vas spirituale, ora pro nobis Vas honorabile, ora pro nobis Vas insigne devotionis, ora pro nobis Rosa mystica, ora pro nobis Turris Davidica, ora pro nobis Turris eburnea, ora pro nobis Domus aurea, ora pro nobis Foederis arca, ora pro nobis Janua caeli, ora pro nobis Stella matutina, ora pro nobis Salus infirmorum, ora pro nobis Refugium peccatorum, ora pro nobis Consolatrix afflictorum, ora pro nobis Auxilium christianorum, ora pro nobis Regina angeloru, ora pro nobis Regina patriarcharum, ora pro nobis Regina prophetarum, ora pro nobis Regina apostolorum, ora pro nobis Regina martyrum, ora pro nobis Regina confessorum, ora pro nobis Regina virginum, ora pro nobis Regina sanctorum omnium, ora pro nobis Regina sine labe originali concepta, ora pro nobis Regina in caelum assumpta, ora pro nobis Regina sacratissimi Rosarii, ora pro nobis Regina pacis, ora pro nobis Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, parce nobis, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, exáudi nos, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, miserére nobis. V. Ora pro nobis, sancta Dei Génitrix. R. Ut digni efficiámur promissiónibus Christi. Orémus. Concéde nos fámulos tuos, quæsumus, Dómine Deus, perpétua mentis et córporis sanitáte gaudére: et gloriósa beátæ Maríæ semper Vírginis intercessióne, a præsénti liberári tristítia, et ætérna pérfrui lætítia. Per Christum Dóminum nostrum. Amen
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8 Da reflexão ao projeto [peroratio]
Meu trabalho consistiu, até aqui, de duas frentes de análise: a primeira diz respeito à materialidade do edifício estudado, através do levantamento reorganizado; a segunda, diz respeito à representação cultural e social do edifício, através do levantamento de sua história e da formulação de algumas hipóteses de leitura de seu conteúdo retórico. Cada uma destas frentes se subdivide em outras tantas, de modo a reportar coisas factuais e pontuais ligadas ao edifício, de maneira contraposta a comentários e investigações de caráter mais amplo, subsidiário às análises aplicadas. Sendo assim, a primeira frente de análise se subdivide entre o levantamento feito para o Carmo, e entre tantas considerações sobre a prática do levantamento arquitetônico, critérios metodológicos, etc. A segunda frente, por sua vez, é subdividida entre um relato da história do edifício, com especial atenção à sua história recente, pontuado por considerações sobre as reconstruções arquitetônicas, à luz das teorias da restauração, além de um ensaio sobre a gênese artística do edifício, apoiado por considerações sobre distintas fórmulas de construção e representação artística em vigor nas sociedades pré-iluministas. Por esta razão, faço questão de salientar que este Trabalho Final de Graduação não se trata de um projeto de restauro, mas de diversas reflexões sobre o restauro e matérias subsidiárias a ele, que visam a construir e orientar uma ideia de restauro que vai além da intervenção física, propriamente. Como já afirmei antes, acredito que o restauro tem como fundamento operações em torno de nossa memória coletiva, e que essas operações possam ocorrer de variadas maneiras. É isso que quero demonstrar com este trabalho, a partir da escolha de um objeto de estudo tão peculiar, que representa um passado local
Desenho prepartório para o frontispício deste trabalho. (Elaboração do autor)
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muito celebrado mas pouco conhecido efetivamente, e uma história recente bastante representativa sobre como questões memoriais coletivas, como a tutela e a perda de objetos materiais, são encaradas no campo nacional do restauro. O projeto, portanto, não é o escopo de meu trabalho, mas é certamente uma de suas finalidades dialéticas, pois demonstra a aplicabilidade de tantas reflexões. Neste último capítulo, então, definirei minha proposta. A definição do escopo de meu projeto parte de uma análise objetiva de suas demandas materiais e culturais. Para o caso, julguei apropriado fazer algumas considerações sobre o estado de conservação do edifício, mas focar o projeto, isto é, o desenho, na resolução de novas intervenções para o espaço interno do edifício, afetado pelo incêndio de 1999. Considerações gerais: Patologias e estado de conservação O levantamento aqui apresentado mostra que o estado de conservação geral do edifício é bom: não foram constatados problemas de estanqueidade nas coberturas, nem problemas graves de estabilidade dos muros; a manutenção geral aparenta ser constante, pois o edifício está em uso, e as instalações elétricas foram refeitas desde o incêndio. Os problemas que a materialidade do edifício apresenta talvez sejam inerentes à sua concepção, e se concentram no escoamento das águas pluviais e conservação das argamassas. Isso porque, como edifício colonial, seu telhado não apresenta calhas, e as águas escoam diretamente pelos beirais. Como sua planta é relativamente grande, também grandes são as águas dos telhados, neste caso, e o volume de água pluvial acumulada por cada água de telhado é considerável. A água, então, escoa das projeções maiores do telhado (Nave e Capela Mor) diretamente para o solo ou sobre os telhados do Corredor Lateral, Capela do SS., e Sacristia, atingindo-os sempre com força e em grande quantidade. Por esta razão os telhados mais baixos possuem uma dupla camada de telhas-canal cimentadas sobre as fiadas comuns, para auxiliar o escoamento. Ai-
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nda assim, seja caindo sobre um telhado inferior, ou sobre o solo, a água sempre respinga para as laterais com certa força, o que propicia problemas de conservação das argamassas tais como crostas e manchas de umidade que, como se vê, são localizadas nesses pontos de maior afluxo de água; ao chegar ao solo, esta água escorre pelas calçadas ou, atrás da Sacristia, por uma boca-de-lobo de aspecto recente. Apesar de seu desenho, o dimensionamento não parece dar conta do problema do respingo de água, sendo estes alguns dos pontos de maior profusão de manchas no revestimento. Além disso, esta intervenção lança mão de um artifício que me soa um tanto errôneo, pois cria um revestimento cimentício por cima do muro histórico que, além de tudo, não parece proteger o edifício da umidade. Este tipo de problema, a meu ver, não tem solução em projeto, a não ser uma manutenção constante que preveja periódicas trocas de argamassa. Talvez para o caso da boca-de-lobo, seja cabível um novo desenho, com sistema de escoamento melhor dimensionado e proteção do muro histórico melhor desenhada, talvez com uma parede azulejada assentada sobre argamassa de cal, ou mesmo com um anteparo independente, em vidro ou similar. Também inerentes são as patologias decorrentes do desenho do frontispício e do revestimento das torres sineiras: no primeiro caso, os arremates do frontão e da cimalha não dão conta de proteger a fachada do escorrimento das águas, e no segundo caso, mais grave, a argamassa é colocada como arremate das torres, recebendo água diretamente e acumulando umidade e vegetação infestante, pesando sobre isso o mais difícil acesso físico. Mais uma vez, a solução proposta é a manutenção periódica, com a lavagem da cantaria e o refazimento do reboco, não sendo possível a eliminação do problema; felizmente a cantaria externa não se mostrou danificada fisicamente pela ação das águas pluviais, o que limita as ações de conservação à limpeza, sem outras intervenções diretas na
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Corredor Lateral e Capela Mor. Manchas por umidade, e preparo do telhado para a recepção de grandes volumes d’água, através da colocação de uma “sobrecamada” de telhas-canal, cimentada sobre o telhado. (Foto do autor)
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pedra. Com relação à estabilidade dos muros, uma observação: afirmei que considero sua estabilidade sob controle, mas reconheço que falta monitoramento para um parecer mais conclusivo. Com relação aos muros principais (do volume da Nave, Torres e Capela Mor), não constatei anomalias, mas com relação ao Corredor Lateral são verificadas algumas trincas, porém sempre de aparência superficial e sempre em torno das peças de cantaria da porta e janelas. Estas trincas podem ser apenas da argamassa (faltam testes de percussão para concluílo). Com relação às instalações, observo que o edifício é provido de sistema de proteção de descargas atmosféricas (SPDA); também, sua fiação foi refeita, provocando dois resultados: um deles é positivo, pois instala conduítes seguros quando o sistema elétrico passa pela talha (Altar Mor), sem danificar a estrutura histórica; o outro eu considero inadequado e incoerente, pois quando a fiação vai para os demais lugares do edifício, foi simplesmente embutida nos muros históricos rasgando sua alvenaria como em uma obra comum. Este procedimento é muito invasivo, além de completamente evitável, caso a questão do projeto elétrico fosse também encarada como projeto de restauro, e não mera instalação técnica. Considero este equívoco, tão comum em nossos canteiros, muito grave. Coro Passo agora às intervenções de caráter menos técnico. Para tal, decidi começar intervindo no Coro, e a primeira coisa que faço é propor a volta do antigo emolduramento que o arrematava. Não consigo entender por que as intervenções de 2000 não o recompuseram, posto que não era tarefa difícil. Este elemento conforma de maneira ímpar aquela elevação interna da Nave, e tem a função estrutural de apoiar o pavimento do Coro, além de função gramatical de sustentar o trecho de Cimalha acima do mesmo. A gramática clássica, bem apoiada na teoria albertiana, sustenta que qualquer cimalha apoia-se sobre elementos de caráter estrutural, ditos “ósseos” (pilas-
tras ou colunas), ou sobre alguma porção de muro. A intervenção de 2000 reconstrói aquele trecho de cimalha em bloco cimentício, mas a deixa livre no espaço, sem a porção de alvenaria que se tinha abaixo dela, e sem o arco de madeira. São estas, justamente, as duas funções que decido retomar. Meu pórtico será feito em estrutura metálica (duplo perfil I), de modo a sustentar parte do vigamento do Coro que também refarei em estrutura metálica, sendo o pórtico arqueado no topo com desenho semelhante ao original, isto é, trilobado. Esta intervenção encosta no muro original, mas não se apoia nele, sendo alicerçada apenas no solo, conservando íntegra a alvenaria histórica; outro dado importante originalmente era a cor escura (entre cinza e azul), que reforçava o emolduramento visual daquele espaço e também aparecerá em minha intervenção, através da coloração escura (preto ou grafite) do novo emolduramento metálico.
Corredor Lateral. Rachaduras próximas aos elementos de cantaria, de aparência superficial. Frontispício. Manchas de umidade na cantaria do frontão e na argamassa dos campanários. (Fotos do autor)
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tanto, o engastamento é pontual. Nessa composição, o novo engradamento metálico, agora exposto, mantém a ideia de forro em dois caixotões, como sempre existiu. Além dessa estrutura, é acrescentado um forro entre os barrotes e o engradamento, feito em compensado de madeira (20mm), com acabamento cru, isto é, apenas lixado e selado, sem verniz com adição de cor. Este forro é paginado com as nervuras da madeira de forma diagonal, formando uma composição romboide que alude aos antigos “florões” existentes nos primeiros caixotões, perdidos com o incêndio.
Croqui de estudo: Os dois balaústres do Coro, e sua assimilação para o desenho do balaústretipo. (Elaboração do autor)
Para os elementos seguintes, me pus a discriminar seus componentes construtivos e gramaticais avaliando sua importância, articulação geral, e de que modo é possível reconstruí-los, caso seja lícito, ou quando não, como possível reconstituí-los sem lançar mão da reconstrução em estilo, posto que não é o partido adotado por mim. Na sequência, o pavimento do Coro, em si. Observando as fotos do original bem como a intervenção feita, elegi os seguintes elementos como passíveis de reconstituição, devido à sua importância na composição: Assoalho que extravasa lateralmente e frontalmente o espaço delimitado pelas torres; forro em caixotões; viga transversal de apoio do Coro (originalmente era disfarçada de “arco abatido”), afixada no arco de emolduramento como se fosse um pórtico. Decidi, então, que reaproveitaria a estrutura atual do assoalho do Coro, que é composta por barrotes, fazendo-os apoiarse sobre um novo engradamento metálico (perfis I), este engastado no pórtico e abaixo das janelas do frontispício. Por-
Acima do assoalho, o novo guarda-corpo. Julguei a balaustrada original não passível de reconstrução, elegendo apenas seus elementos principais: acentuada linearidade do corrimão, verticalidade e hierarquia entre as peças das balaustradas, que se compunham de dois tipos. Nenhum deles foi reconstruído, sendo apenas mantida a ideia de hierarquia entre as peças mais grossas, que sustentavam o corrimão; os balaústres mais leves, apenas de preenchimento, decidi que não apareceriam em minha intervenção. O desenho destas peças, portanto, perdese com o tempo não sendo mais cabível a sua reconstrução; ao invés disso, atendo-se ao fato de que o Coro tem uma função objetiva, que é a de sustentar e conter os músicos de igreja, julguei apropriado limpar o guarda-corpo de elementos que comprometessem o contato visual entre Coro e Altar Mor, eliminando tudo aquilo que não fosse essencial à estruturação do anteparo e à segurança, procurando não propor horizontalidades desnecessárias em seu desenho, já que os resultados originais eram justamente de verticalidade, com os elementos dos balaústres. O novo guarda-corpo, portanto, se resume a um anteparo horizontal que acompanha a projeção do assoalho do Coro, e é sustentado por elementos verticais que mimetizam os balaústres mais grossos, porque são os balaústres estruturantes. Esse desenho de guarda-corpo, por ser mais “neutro”, julguei-o apropriado que se repetisse na balaustrada da Nave, ainda que os balaústres de lá fossem originalmente de desenho distinto daqueles do Coro.
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Tapa-vento O elemento em sequência se mostrou um dos mais difíceis de ser resolvido. Para buscar uma proposta, tive de refletir sobre o que é um “tapa-vento”, e qual sua efetiva função. Quando em visitas turísticas guiadas por instrutores locais, diz-se, comumente, que o tapa-vento é um elemento que servia como atenuante dos ventos vindos do exterior da edificação, que podiam apagar as velas acesas dentro do templo durante os ofícios, quando suas portas estivessem abertas para a circulação de fiéis. Mais do que a citada função aparentemente “técnica” de “não deixar apagar as velas”, creio que esta máxima seja uma tradução bastante “inocente” do conceito de atenuar a interação interior-exterior, não por conta de perturbações à iluminação por velas, mas por conta de um resguardo de um espaço considerado sagrado, que se presta aos trabalhos de oração e ritos sacros. Os tapa-ventos coloniais são unanimidades naquelas capelas, conformando um espaço de transição entre exterior (profano) e interior (sacro), convidando o expectador à oração, ao mesmo tempo que prepara seu espírito para que fale mais baixo e se porte de maneira decorosa ao templo, por exemplo, uma tópica que remonta também aos templos clássicos, a limite. É interessante como o espaço do Nártex é eficaz em realizar a transição entre o ambiente exterior (profano), e o interior (sagrado), que vai preparando o fiel para a sobriedade do espaço da Nave. Arrisco a dizer que, retoricamente, o Nártex atua como uma figura de captatio benevolentiæ, analogamente exemplificado na abertura de ópera ou concerto: tal subgênero musical foi inventado quando os eventos musicais de aspecto cortesão passam também a atingir maior público nos teatros seiscentistas, ou mesmo nas grandes cortes. Sabe-se que estas as plateias eram muito falastronas e desatentas ao espetáculo em si; para enunciar, de maneira enfática, que o espetáculo da noite começava, foi inventada a abertura, que musicalmente tem como ponto de partida tempos pontuados, conferindo um tom solene à entrada da peça; por sua vez, esta seção lenta (porém firme) é seguida por uma seção rápida, aonde desenvolvem-se outros temas da abertura. Uma abertura não é a peça musical em si, mas o enunciado dela.
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Considero os tapa-ventos como resquícios da ideia de Nártex, originalmente um elemento “alpendrado” exterior, conformando-o, assim, no interior da estrutura arquitetônica, o que se vê de maneira mais clara em capelas específicas, dependendo da configuração do Coro, que se ajusta acima dele. Dois templos na região me sugerem esse “Nártex ideal”: São Francisco em Mariana, e o Carmo de Ouro Preto; é interessante compará-los, também, a templos com Nártex verdadeiro, como o caso das duas igrejas borromínicas locais: Rosário dos Pretos – Ouro Preto –, e São Pedro dos Clérigos – Mariana. O tapa-vento, portanto conforma um espaço ainda não totalmente interior, dentro da capela, por meio de um anteparo capaz de se abrir para cortejos mais solenes. Para mim, mesmo pesando-se a ornamentação que constituía seu antigo tapa-vento, hoje inexistente, tal elemento ainda não é a Nave da capela, em si; em essência, o tapa-vento não é a antiga composição em duas jônicas com um protuberante frontão. O tapa-vento apenas é um anteparo capaz de se abrir; nada mais que isso. Assim sendo, e porque julguei impossível a reconstrução volumétrica deste elemento, a partir de ensaios com croquis, considerei este um elemento passível de maior ousadia projetual, pois não cri que precisava compactuar de maneira fechada com o programa ornamentativo do interior do Carmo. Procedi, então, da seguinte forma: Duas folhas de portas emolduradas em bronze, subdivididas em almofadas menores; as almofadas, quando voltadas para o exterior, são acabadas em uma fina folha também em bronze, material tão caro às grandes portas de entrada de tantos importantes templos católicos, como as portas de Ghiberti no Batistério e Florença; ou as portas de Rodin, de onde nasceu a escultura d’O Pensador; ou mesmo como as belíssimas portas que faz Manzù na S. Pedro de Roma. Essa escolha, aliás, não interfere no alvor da ambiência “rococó”, quase oitocentista, do interior do Carmo, até porque, voltadas para a Nave, as mesmas almofadas devem ser preenchidas com laminados de madeira, com o acabamento “padrão” das intervenções que aqui proponho: selador ou verniz claro, deixando a madeira com aspecto quase cru, em sua cor natural; esta escolha bifacial enfatiza
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Croquis de estudo: O tapa-vento original, e a análise da ornamentação. Em sequência, vários estudos de simplificação volumétrica que, curiosamente, levam de maneira “automática” à proposta realizada em 2000. Isso demonstra que a simplificação volumétrica não é um caminho neste caso. (Elaboração do autor)
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meu entendimento do tapa-vento como um elemento que articula exterior e interior. O centro do novo tapa-vento terá um motivo especial, pois será adornado de maneira dialética, memorial. O Carmo de Mariana tem a sorte de conservar o topo do frontão do antigo tapa-vento, hoje carbonizado, exposto de maneira musealizada, mas com pouca visibilidade, pois consta em seu Corredor Lateral. Trata-se, talvez, do maior testemunho do incêndio de 1999 (junto com a cantaria interior, hoje explodida e danificada), que pretendo ser melhor valorizado: Será, portanto, colocado no centro no novo tapa-vento como pretensa anastilose, mas não uma anastilose verdadeira, pois a peça, que antes se localizava no topo do antigo tapa-vento, agora iria para o centro da composição, mais próxima ao olho do expectador, de forma a lembrar, já na entrada do edifício, seu evento mais traumático. Seu posicionamento pretende conferir nova musealização à peça, construindo uma alegoria: o artefato original ainda é a única coisa que ornamenta o novo tapa-vento, e agora representa o renascimento do próprio edifício, especialmente quando o sol exterior adentrar a Nave por meio do óculo/abertura onde será apoiado o objeto (o que alude, também, à ideia precedente de “semi-transparência” conferida pelos vidros das portas do antigo artefato). Por fim, convém dizer que as folhas das portas serão apoiadas
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em duas hastes, ou “colunetas” metálicas, que articularão suas dobradiças. Estas hastes apoiam-se, em cima, na estrutura do novo Coro, e embaixo, em furos nas lastras de pedra, proporcionando o contato mínimo da intervenção com o edifício, já que em apenas dois pontos do pavimento. Altares laterais Para o caso, comecei os procedimentos de projeto pensando sobre quais eram os elementos fundamentais de um altar: Mesa, Sacrário, e Nichos para o posicionamento da(s) imagem(ns). O retábulo, por sua vez, não me parece um item essencial do altar, mas sim, um elemento que unifica os demais, conferindo-lhes unidade o que, de certa maneira, não deixa de ser um “plano de fundo”. Poderia, assim, desenhar uma intervenção a mais sutil possível, realizando apenas os elementos fundamentais, deixando aparecer mais as imagens religiosas que qualquer pretenso retábulo. Porém, uma condição física do templo não o permitia: as paredes da Nave atrás dos altares laterais são compostas de nichos para, originalmente, encaixarem os altares laterais, posto que eram posicionados de maneira oblíqua (os nichos davam conta de abarcar os camarins dos Altares). A existência destes nichos, portanto, me constringe a compor um novo
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Croqui de estudo: Análise da ornamentação nos antigos Altares Laterais. (Elaboração do autor)
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retábulo, pois é necessário um anteparo que oculte os nichos da alvenaria, por serem mal acabados e, sobretudo, provocarem uma ideia oposta, visualmente, da disposição oblíqua: Os nichos fariam a composição pesar para as laterais da Nave e, devido à sua profundidade, poderiam abarcar quase que totalmente os elementos básicos, provocando certa sensação de “engolimento” das imagens e mesa de altar, por parte da alvenaria. Este resultado seria incoerente com a composição geral do templo, posto que os altares laterais, dispostos de maneira oblíqua, conferem um ar monumental ao mobiliário religioso como um todo, pois dão a sensação de abrirem-se para a Nave. Essa sensação de abertura, além de monumental, dirige o olhar para o Altar Mor, desenvolvendo uma relação de unidade entre os três altares. A unidade é evidente ao decompormos a ornamentação, e repararmos que os elementos que compõem ambos os gêneros de altar são os mesmos, porém, com as devidas correções numéricas e escalares cabíveis à hierarquia de cada um, mesmo sabendo-se que os altares foram desenhados e arrematados por artífices em tempos diferentes (fato que, para mim, só corrobora a ideia de decoro da ornamentação interna nos templos mineiros, mesmo até o começo do séc. XIX). Constatar essa condição de unidade compositiva entre Altares Laterais e Altar Mor, me levou à seguinte reflexão: havendo unidade compositiva entre as diferentes hierarquias de altares, não poderia fazer um retábulo que não respeitasse os mesmos princípios. Ao mesmo tempo, se a unidade compositiva
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se dá, além de organização geral da composição, pela repetição de elementos isolados entre todos os altares, tal constatação afasta completamente a necessidade de se reconstruir algum elemento compositivo isolado, posto que aquilo que se perdeu nos antigos Altares Laterais se mantém intacto no Altar Mor. Essa constatação flexibiliza a ideia de “perda” assumida a partir do incêndio, entendendo que a perda de elementos isolados não significa, por outro lado, a perda da gramática ornamentativa do edifício como um todo. A intervenção passa, dessa maneira, a entender que o restauro tem como foco o conjunto compositivo do Carmo, e não apenas os Altares Laterais, ou outro elemento isolado. Com isso em mente, procedi à análise, propriamente dita, dos elementos compositivos dos Altares Laterais, sempre em confronto com o Altar Mor, identificando as Ordens Arquitetônicas, gêneros das colunas (colunas torsas) e quartelões, entablamentos, sanefas, etc., sobretudo em croquis analíticos. Pude, desta maneira, elencar alguns recursos composicionais importantes: a ideia de amplitude dentro do Altar, que reproduz a ideia de amplitude realizada pelo conjunto, com a disposição de elementos de maneira oblíqua, guarnecendo o foco do retábulo (nicho central, ou camarim). Esse recurso é obtido pela colocação de elementos oblíquos ao plano do retábulo (capiteis de colunas), bem como à concavidade, em planta, do dito plano; marcações horizontais obtidas, pela Mesa de Altar; o campo do Falso Sacrário (um console onde se apoiam outros elementos litúrgicos, como crucifixos), que
Croqui de estudo: Assimilação dos elementos e organização planimétrica principais. (Elaboração do autor)
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se delimita pelas mísulas dos elementos verticais; o campo dos nichos: camarim e nichos laterais; o amplo entablamento, interrompido apenas pelo arco do camarim; por fim, as sanefas que, na verdade, se arqueiam de maneira particular. Também, os elementos verticais: quartelões e colunas torsas, com caneluras, encimadas por capitel compósito, todos projetados para além do plano do retábulo, através das mísulas nos quais estão apoiados. Feito isto, pude enfim valer-me dos mesmos elementos para compor os novos altares, observando sempre que cada elemento é reconstituído, e não reconstruído. Dessa forma, as ideias retomadas pela intervenção não são literais, e sim metafóricas (como se verá adiante) e visuais. Os novos Altares Laterais, portanto, partem do pressuposto de serem idênticos. Desenvolvem-se a partir de uma Mesa feita em chapa metálica, adjunta ao retábulo, este feito em argamassa armada em cimento branco; o material me parece adequado por ser visivelmente contemporâneo e, à distância, apresentar semelhança com o alvor dos antigos Altares, que permaneceram acabados com a camada preparatória em estuque. O campo do Falso Sacrário é feito em madeira, sempre em compensado com acabamento cru em selador ou verniz incolor ou amarelado. O camarim é acabado com o mesmo material, assim como o fundo dos nichos laterais; a ideia de amplitude, realizada por elementos oblíquos, é dada pela disposição igualmente oblíqua dos nichos laterais. Todo o conjunto é emoldurado por uma armação metálica aparente, a ser pintada da mesma cor do novo pórtico do Coro, evidenciando unidade entre as intervenções contemporâneas. A gramática destes altares ainda se realiza pela ideia albertiana de ossa e complementa, sendo os elementos estruturais marcados em metal, e os elementos de “vedação”, em concreto branco, apresentando planos claramente estabelecidos. A intervenção tem por princípio não recompor ou mesmo reconstituir qualquer coluna, pois considera uma coluna clássica o resultado de um sutil e intrincado desenho proporcional,
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que raramente permite uma versão “contemporânea” sua, posto que os princípios de composição contemporâneos, pelo marcado caráter industrial e objetivo (forma-função), têm como pressuposto a simplificação de linhas, e isso é antagônico à gênese de elementos clássicos complexos, como colunas e capiteis. Ainda assim, esta intervenção entende certas liberdades compositivas de outros elementos clássicos, como os quartelões, que nada mais são do que pilastras com formato autorizadamente “fantasioso”, e pretende valer-se deles, entendendo que um altar não deva ser apenas um conjunto de elementos, dispostos de maneira “clara” ou “eficiente”. Creio que intervir em um templo-edifício histórico significa dar atenção especialíssima ao componente estético de uma intervenção, a fim de legitimar as disposições litúrgicas e culturais de um espaço de culto. Sendo assim, decidi fazer aflorar um elemento histórico da gênese deste edifício, de maneira artística, focando-me na questão das alegorias religiosas carmelitas. Valendo-se do fato de os quartelões serem composições com liberdade mais “autorizada”, conforme a gramática clássica,
Perspectiva frontal do Altar Lateral-tipo. (Elaboração do autor)
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bem como ao fato de os elementos florais e fitomórficos constituírem-se como importantes alegorias de N. S. do Carmo, faço estes elementos aflorarem em minha própria intervenção: guarnecendo o camarim, será feita uma moldura com ondulações que remetem à marcação dos quartelões originais, sendo todo o conjunto erigido em madeira maciça (cedro ou abeto), e esculpido com motivos florais, por escultores da região. Dessa forma, os novos Altares Laterais logram reconstruir ideias, e não formas, ao recompor o programa ornamentativo do Carmo de Mariana, em uma intervenção que visa prezar, por via de grande reflexão, pelas instâncias estética e histórica do binômio brandiano do restauro. Intervenções pontuais: Luzes, som e forro Feitas as considerações acima, parto para a etapa final de projetos, uma vez decidido o escopo de minhas intervenções. A última coisa que decidi fazer é reduzir a poluição visual causada pelas luminárias e caixas de som afixadas à Nave e Capela Mor. Para solucionar o problema, decidi esconder as caixas de som embutindo-as discretamente nos guarda-corpos dos púlpitos, posto que tratam-se de reconstruções; mesmo não concordando com os danos ao aparelho murário, provocados pelo projeto luminotécnico, entendo que o dano já foi feito, e decidi não eliminar os atuais pontos elétricos, mas sempre que passar novas fiações, decidi que sejam feitas por conduítes externos, muito discretos, afixados pontualmente ao revestimento do muro; as luminárias atuais são eliminadas, sendo propostas novas luminárias em material que ofereça certa relação de unidade com as demais intervenções por mim propostas. Seu desenho é pautado pela maior simplicidade e discrição possíveis, sendo compostas de anteparo para ocultamento da lâmpada, e anteparos para reflexão da luz, direcionando-a para o alto e para baixo, de maneira específica. Por tal razão, são apresentados dois tipos de luminárias: um para serem embutidas no pórtico que emoldura o Coro (2 uns.), e outro para as paredes da Nave e Capela Mor (8 uns.).
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Por fim, convém mencionar, mas não especificar, o último ponto a se intervir: O forro que existia na Nave foi recomposto volumetricamente após o incêndio, mas nunca se fez nada para se reconstituir a pintura que lá existia. Este é o ponto em que o arquiteto, como tal, já não deve intervir, mas apenas refletir e prescrever uma solução. Para o caso, não creio que se deva pretender reconstituir a figuração ou tema preexistentes; a proposta lançada em 2000, de se projetar opticamente a antiga pintura no forro soa interessante, mas é pouco factível, seja pela dificuldade em se posicionar projetores de baixo ao alto, seja pela grande quantidade de luz que adentra a Nave, e seja pelas poucas fotos de qualidade, do original. Creio ser mais interessante delegar a tarefa de uma pintura ex novo, sobre o mesmo tema da entrega do Manto Carmelita feito por Nossa Senhora a São Simão Stock, a um artista contemporâneo. Convidaria alguém do porte de Sergio Ferro, cujo trabalho com figuração, paleta de cores e desconstrução da própria composição parece adequado ao Carmo.
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Corte perspectivado, mostrando as novas relações proporcionais das interverções propostas para o Nártex e Coro: Tapa-vento, pórtico metálico, e balaustrada do Coro. (Elaboração do autor)
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Corte perspectivado, mostrando as novas relações proporcionais das interverções propostas para a Nave: Balaustrada da Nave e Altares Laterais. (Elaboração do autor)
9 Conclusão [conclusio]
O trabalho aqui apresentado procurou, através da discussão metodológica fomentada, promover a conciliação entre diferentes campos do conhecimento. O campo do restauro, durante a graduação em Arquitetura, costuma despertar interesse de múltiplos perfis de estudantes, por diferentes razões. Isso se explica, em parte, por ser o próprio campo do restauro arquitetônico algo obrigatoriamente interdisciplinar. Se, por um lado, é necessária a pesquisa histórica para embasar nossa visão acerca do edifício a se intervir, por outro, a intervenção não se faz sem o levantamento arquitetônico e estrutural, que dão conta de embasar alguma visão sobre a materialidade do objeto de estudo. Na verdade, ambos os procedimentos analíticos dizem respeito a uma compreensão cultural do edifício, obtida em igual peso pelos subsídios conceituais e materiais. Esta necessidade, uma razão de ser da disciplina do Restauro, é uma via que oferece certa “segurança” para a tutela dos variados bens materiais, mas que também promove dificuldade de aproximação por parte de um estudante médio, por conflitar com a ética formativa vigente em nossa contemporaneidade, fundada na especificidade da formação profissional. A limite, tal ética mercadológica, é uma contradição ao próprio campo arquitetônico como um todo, mas certamente se escancara de maneira gritante no restauro arquitetônico. Com este trabalho, recorri a um estudo de caso que evidencia problemas de aproximação metodológica nestes dois fundamentos da cognição cultural necessária para o restauro, repor-
Ouro Preto. Capela de São Francisco de Assis. (Desenho do autor)
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tando-os e refletindo sobre eles de maneira a apresentar novas soluções. O que, seguramente, se pôde afirmar e, espero, de maneira pedagógica para meus colegas interessados nesta área, é que tanto o levantamento arquitetônico quanto a pesquisa histórica não são apenas medições e levantamento de documentação, respectivamente. Se a abordagem possui rigor metodológico, não significa afirmar que a mesma seja um trabalho meramente técnico, e sim, algo que parte de um preparo cultural e crítico do restaurador, mas ao mesmo tempo aprimora a sua própria percepção com a finalidade da salvaguarda aos bens materiais, devendo estas análises serem mais ou menos extensas de acordo com as demandas de cada bem material. Certamente isto não implica em afirmar que o arquiteto, ou qualquer outro tipo de “restaurador” deva ser capaz de, sozinho, dar conta de todas as instâncias analíticas preliminares ao restauro. Pelo contrário, todo procedimento de tutela deve ser feito após a formação de grupos de trabalhos com profissionais interdisciplinares (mesmo para este TFG, que pressupõe um trabalho individual, não foram poucas as interlocuções com profissionais de diferentes áreas). Mas não só: além de se formar uma equipe com arquitetos, engenheiros, historiadores, químicos, mestres pedreiros e canteiros, é também necessário que cada um deles possa dialogar com as demais áreas, em algum nível. A mim muito surpreende o quanto o arquiteto médio está despreparado para a pesquisa histórica, sabendo muito pouco sobre levantamento de dados, e menos ainda sobre como interpretá-los; da mesma forma, é assombroso como o historiador médio não sabe ir além das fontes escritas, deixando de lado o levantamento de iconografia ou, pior, não sabendo ler iconografias de épocas passadas, recorrendo a anacronismos atrozes para supostamente interpretá-las. Tais equívocos são consequência de formações profissionais estreitas, em alguns casos decorrentes de pouco preparo cul-
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tural em todos os sentidos: pouca leitura, poucas aulas, poucas visitas a museus, salas de espetáculo, poucos dados... Em outros casos, os vícios decorrem de certa “displicência” de um perfil profissional que já se julga culturalmente preparado para intervir e opinar em assuntos sobre os quais se considera bom conhecedor a priori. É o caso do arquiteto bon vivant, que manifesta-se como insolente connaisseur de qualquer coisa, mas pouco pisa no canteiro de obras e jamais fará um levantamento arquitetônico ele mesmo, abaixo de sol e com a trena nas mãos. A figura que pinto não é um exagero. O arquiteto não-técnico, ou melhor, o arquiteto avesso aos conhecimentos técnicos, existe aos milhares e talvez seja o pior vício das escolas de arquitetura brasileiras, quase todas, de perfil elitista como este. Diante de tanta soberbia, mesmo com todo um aparato cultural à disposição, o connaisseur não se digna a render seu gênio a quase qualquer método cognitivo e de estudo. Como resultado esse arquiteto, quiçá o arquiteto médio brasileiro, é aquele profissional que ainda não sabe fazer levantamento arquitetônico; mas também, ainda não conhece as Ordens Arquitetônicas nem as Modenaturas clássicas; ainda não conhece os materiais mais usados na construção civil; ainda não sabe conduzir um canteiro de obras com alguma autonomia... Meu trabalho lança olhares sobre esta situação, de certa maneira, procurando demonstrar como o método (ou a busca do método adequado para cada situação) é instrumento cognitivo essencial para o projeto, especialmente no campo do patrimônio material e cultural. No caso deste trabalho, o levantamento feito ofereceu condições para representar graficamente o edifício, ao passo que abriu meus olhos para componentes de sua gênese cultural, através da ornamentação, que dificilmente seriam notados em uma simples campanha fotográfica, por exemplo. Estes vestígios culturais, por sua vez, puderam ser interpretados pela pesquisa documental e historiográfica feita, o que permitiu a formulação de uma série de hipóteses para embasar as intervenções, reformulando conceitos eminentemente sociológicos, mais que conceitos meramente formais.
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Neste sentido, é muito satisfatório constatar que tantos estudos aparentemente “complementares” à formação do projetista, durante a graduação, são na verdade subsidiários à formação do arquiteto, de maneira ampla, indo desde a aproximação técnica, o desenho, e até mesmo aos preceitos culturais da História da Arte e História da Arquitetura. Se, de alguma forma, as reflexões contidas neste trabalho constituem-se como algum tipo de percurso cognitivo válido, ao menos no recorte feito, vemos que o restauro e o projeto também se valem efetivamente de importantes capítulos teóricos da arquitetura e de nossa própria sociedade, conseguindo traduzi-los e interpretá-los inclusive para o projeto de linguagem contemporânea. Este é o raciocínio que me leva à última reflexão deste cansativo trabalho, e é somente com ela que posso enfim concluí-lo: Para o restauro arquitetônico, se, além do método cognitivo, os subsídios teóricos da arquitetura e diferentes artes são pressupostos essenciais, então é mesmo plausível que fazer uma intervenção de restauro não seja a reabilitação uma imagem específica, e sim, a materialização de ideias e operações mentais no campo da história e memória coletivas, o que implica no resultado formal não ser único, podendo falar por linguagem contemporânea a partir de conceitos clássicos e universais. Trata-se, então, de uma questão dialética: Uma vez resguardada a integridade física de um bem material, dá-se que o escopo de uma intervenção de restauro passa a não ser o restauro de formas, e sim, de conceitos.
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