Boa Vista, capital da Primeira Infância, enfrenta Covid-19 e preconceito Boa Vista enfrenta o desafio da pobreza, falta de recursos e um fluxo recente de refugiados. A cidade estabeleceu grande foco em serviços para bebês, crianças pequenas e cuidadores. A Covid-19 aumentou a pressão, mas reforçou a necessidade de se concentrar nas crianças pequenas.
Teresa Surita Prefeita de Boa Vista, no Brasil
A pandemia de Covid-19 colocou o mundo em pausa. O vírus SARS-CoV-2 se espalhou por todas as regiões, obrigando-nos a mudar nossas rotinas diárias, interromper grandes projetos e direcionar todas as nossas energias para esta emergência trágica e histórica. Ele nos obriga a olhar o presente e o futuro com uma nova perspectiva. Nesse momento, nós estamos pedindo para que todas as crianças, adultos, jovens e idosos sigam os protocolos de saúde para prevenir a transmissão rápida do vírus e o colapso dos sistemas de saúde. Dos líderes exigimos disponibilidade, sensibilidade, objetividade e competência para tratar os enfermos, buscar a cura e a vacina, e apoiar as pessoas: abraçando suas angústias, fornecendo incentivos e orientações para que possamos seguir em frente em busca de um novo amanhã. No meu país, o Brasil, a doença se espalhou de forma acelerada e alarmante. Aqui, o vírus encontrou uma população com sofrimento generalizado: 52,5 milhões de pessoas (25,3%) vivem na pobreza e outras 13,5 milhões (6,5%) na extrema pobreza1. Entre a população ativa, 11,6 milhões estão desempregados (11%) e 38,4 milhões (41%) trabalham na economia informal (Moreira e Gaier, 2020; Garcia, 2020). A maioria dessas famílias depende do esforço de hoje para garantir a refeição de amanhã. Por conta da pandemia, agora eles se juntaram aos outros milhões que perderam seus empregos ou tiveram o salário reduzido em função da necessidade de ter que ficar em casa para diminuir o risco de infecção nas ruas.
1 De acordo com os critérios de linha de pobreza do Banco Mundial, pessoas que vivem com menos de US $ 5,50 por dia vivem na pobreza, e aquelas que vivem com até US $ 1,90 por dia são consideradas como vivendo em extrema pobreza (Nery, 2019). 2 É muito provável que esse número seja maior se considerados os casos subnotificados.
O Brasil tem 18 milhões de crianças de 6 anos ou menos. Não apenas 29% deles vivem na pobreza, 23% vivem em habitações precárias. Para essas crianças, ficar em casa não oferece necessariamente a proteção de que necessitam, embora tenha sido a única medida viável para enfrentar a pandemia. Para 41% desses meninos e meninas, a falta de saneamento básico sempre foi uma ameaça permanente. Agora o risco é multiplicado pelo avanço de um vírus que, em menos de dois meses2, matou mais de 12 mil mães, pais, avós e irmãos. A resposta do governo federal a este enorme desafio tem, infelizmente, sido caracterizada pela negação e resistência à implementação de medidas cruciais e urgentes. Não é preciso citar aqui exemplos dessa irresponsabilidade, pois boa
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parte dela já foi veiculada pela mídia de todo o mundo para constrangimento dos brasileiros. No entanto, é importante notar um efeito direto dessa falta de liderança: onde deveria haver coordenação e comunicação entre as esferas federal, estadual e municipal da administração pública, nós testemunhamos o contrário, orientações contraditórias e, pior, o completo desencorajamento de qualquer tipo de política de distanciamento social. A tarefa de restringir as atividades econômicas e manter as pessoas em casa que já é desafiadora por si mesma, torna-se muito mais difícil quando a autoridade central sabota continuamente estes esforços.
Cenário desafiador “Além dos desafios existentes, Boa Vista sofreu ainda mais do que o resto do Brasil com a crise humanitária que emergiu na vizinha Venezuela em 2015.”
No meu estado Roraima, que fica no extremo norte do Brasil, este cenário de carência e dificuldades é ainda mais sombrio, especialmente em minha cidade, Boa Vista. Como capital de Roraima, Boa Vista abriga 65% da população de todo o estado, e os outros 35% restantes também têm uma ligação com a capital por utilizarem serviços mais especializados. Para os 600 mil habitantes de Roraima, existem apenas 30 leitos de terapia intensiva no único hospital público oferecido pelo governo estadual. Há mais pessoas abaixo da linha da pobreza (32,6%) e na economia informal (47,1%) em Roraima do que a média nacional (G1-RR, 2019; Garcia, 2020). A comprometida capacidade de gestão do estado, que enfrenta uma crise há um longo período, aumenta ainda mais pressão sobre a administração dos municípios. Além de todos esses desafios existentes, Boa Vista sofreu ainda mais do que o resto do Brasil com a crise humanitária que surgiu na vizinha Venezuela em 2015. Boa Vista tornou-se o lar de 40% dos venezuelanos que se refugiaram no Brasil. Em apenas três anos, a cidade ganhou 60 mil novos habitantes e o número da população aumentou para 340 mil habitantes. Estes novos moradores - cerca de 15% da população - foram integralmente recebidos como cidadãos de Boa Vista. Recebemos as crianças com uma atenção especial. Desde 2013, Boa Vista vem elaborando e implementando políticas integradas com o foco na primeira infância, que são fundamentadas na ideia de que investir em larga escala no desenvolvimento infantil é uma das melhores maneiras de superar problemas sociais históricos. Atualmente, o programa ‘Família Que Acolhe’ atende 1.746 gestantes e mães de crianças de até 2 anos, das quais 777 são mulheres venezuelanas. Nas escolas públicas municipais, 6.101 (13,8%) dos 44.025 alunos são de famílias venezuelanas. Antes mesmo da chegada da pandemia, Boa Vista já havia se tornado palco de um desafio único no Brasil. A cidade possui o menor orçamento dentre todas as
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capitais brasileiras - inferior a US$ 120 milhões - e teve que sustentar serviços públicos sobrecarregados, em especial o sistema de saúde público. No Hospital da Criança, administrado pelo município, entre 2015 e 2019 o número de pacientes venezuelanos aumentou 16 vezes, passando de 1.719 para 28.196. Os dois primeiros casos de Covid-19 em Boa Vista foram notificados em 21 de março de 2020. Aproximadamente 50 dias depois, o número de infectados ultrapassou 1.400, com 31 mortes. Seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde, nos primeiros dias interrompemos atividades não essenciais e adotamos medidas de isolamento social. Logo percebemos que, como suspeitávamos, algumas pessoas se recusavam a seguir as recomendações do governo, e sentiam-se apoiadas por meio das mensagens divisionistas que vinham do governo federal, em Brasília. A pandemia também incitou o sentimento de xenofobia contra os venezuelanos, que eram acusados de ‘transportar o vírus’ para a cidade depois que um bebê em um abrigo para refugiados teve o diagnóstico positivo.
Programa Família Que Acolhe atende gestantes e mães de crianças pequenas
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2020 Early Childhood Matters Foto: Fernando Teixeira
Crianças, uma reflexão sobre o futuro da humanidade Assim como em todos os lugares do mundo, lidar com a Covid-19 em Boa Vista é uma batalha contínua. Não sabemos quando a vida voltará ao normal, mas temos uma luz de esperança que aumenta nossa confiança nestes tempos de incerteza. Aprendi que refletir sobre as crianças é uma maneira natural de pensar sobre a humanidade e que priorizá-las traz benefícios a um número enorme de pessoas. Quando decidimos tornar a nossa cidade a Capital da Primeira Infância, melhoramos sua eficiência. Apesar de sentirmos uma pressão crescente, o município conseguiu manter o equilíbrio das despesas e continuar a oferecer seus serviços (Prefeitura Boa Vista, 2020). O Hospital da Criança aumentou o número de leitos de terapia intensiva e conta com uma equipe treinada para receber crianças e adolescentes de até 16 anos. Existe uma enfermaria específica para indígenas, onde são respeitados os hábitos tradicionais de cada etnia. Desde que os primeiros casos de Covid-19 foram registrados em Boa Vista, o hospital atendeu 13 crianças, quatro delas indígenas e cinco de famílias venezuelanas. Outros 237 profissionais foram recrutados para trabalhar em outras unidades de saúde.
Prefeita Teresa Surita, em um dos espaços públicos de Boa Vista, incentivando a interação lúdica entre crianças e cuidadores
Foto: Leadership Diego Dantas
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Elemento central da política integrada da primeira infância, o Programa Família Que Acolhe, continua dando apoio para uma gestação saudável e o cuidado das crianças. As reuniões presenciais com as mães foram suspensas por hora para evitar a transmissão do Covid-19, mas as equipes de saúde seguem acompanhando 4.500 famílias por meio de visitas domiciliares para entregar alimentos básicos, leite em pó, e produtos de higiene e limpeza. A lógica é simples: nós cuidamos do cuidador e consequentemente o cuidador cuida bem de seus filhos. Os setores de assistência social, educação e saúde também estão utilizando estas visitas domiciliares para oferecer apoio e proteção. Call centers foram treinados para fazer monitoramentos e direcionar as vulnerabilidades. Com o fechamento das escolas, foi criado um programa online - @Aprendendo em CasaBV (‘Aprendendo em Casa Boa Vista’) - para realizar via Instagram atividades pedagógicas a distância. Professores municipais desenvolveram conteúdos específicos para o programa de educação infantil, ensino fundamental, educação especial e educação indígena. Em casa, as crianças realizam tarefas simples com foco no aprendizado e na interação social com a família. O programa instrui pais e responsáveis sobre atividades educacionais, como criar jogos e brincar com objetos domésticos. Antes da pandemia, estávamos dialogando constantemente com a sociedade por meio de reuniões de bairro e das redes sociais. Tivemos que cancelar os encontros presenciais, mas intensificamos a comunicação nas plataformas online, priorizando orientações e informações de saúde. Essa interação também está sendo importante para acolher os sentimentos das pessoas durante esse momento difícil. Incertezas e medos muitas vezes geram stress e a necessidade de encontrar "inimigos" para colocar a culpa. Tento compartilhar com as pessoas a visão de que as diferenças nos enriquecem e nos impulsionam para frente. Recordo-lhes da coragem e da força dos profissionais de saúde, bem como das equipes responsáveis por entregar as caixas de alimentos e de outros mantimentos às famílias vulneráveis, trabalhando para todos com o mesmo compromisso e dedicação. Lembro-lhes da coragem e da determinação de todos os profissionais da linha de frente, que prestam serviços essenciais com o intuito de encorajar outras pessoas a cuidarem melhor de si e dos outros, em particular dos nossos filhos - e todas as crianças - para que amem o planeta onde vivem. Encontre este artigo online em earlychildhoodmatters.online/2020-5
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REFERÊNCIAS G1-RR. (2019, online). Mais de 30% da população de Roraima está abaixo da linha da pobreza, aponta IBGE, 6 novembro 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/ noticia/2019/11/06/mais-de-30percent-dapopulacao-de-roraima-esta-abaixo-da-linhada-pobreza-aponta-ibge.ghtml (acesso em Junho 2020). Garcia, D. (2020, online). Informalidade supera 50% em 11 estados do país, diz IBGE. Folha de S. Paulo, 14 fevereiro 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ mercado/2020/02/informalidade-atingerecorde-em-19-estados-e-no-df-diz-ibge.shtml (acesso em Junho 2020).
Moreira, C. and Gaier, R.V. (2020, online). Taxa de desemprego no Brasil sobe a 12,2% no 1º tri e mostra sinais de impacto do coronavírus. Economia, 30 Abril. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/ reuters/2020/04/30/taxa-de-desemprego-nobrasil-sobe-a-122-no-1-tri-e-mostra-sinaisde-impacto-do-coronavirus.htm (acesso em Junho 2020). Nery, C. (2019, online). Extrema pobreza atinge 13,5 milhões de pessoas e chega ao maior nível em 7 anos. Agência IBGE Notîcias, 16 Novembro. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivelem-7-anos (acesso em Junho 2020).
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Prefeitura Boa Vista. (2020, online). Boa Vista é a capital que mais faz investimentos em todas as áreas, aponta estudo, 21 fevereiro. Disponível em: https://www.boavista.rr.gov.br/ noticias/2020/02/boa-vista-e-a-capital-quemais-faz-investimentos-em-todas-as-areasaponta-estudo (acesso em Junho 2020).
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Devolvendo a cidade às crianças O prefeito Erion Veliaj, quando eleito em 2015, constatou que a Tirana não era acolhedora para crianças Novas áreas recreativas, jardins de infância melhorados e rodízio de carros transformaram a cidade. Com a Covid-19, aumentou-se investimento em mais espaços para caminhada e ciclismo.
Erion Veliaj Prefeito de Tirana, Albânia
Neste ano Tirana completou 100 anos como capital da Albânia. É uma cidade conhecida por suas cores, contrastes, diversidade e intersecção cultural, e com uma rica história que reúne influências otomanas, italianas e soviéticas. Logo após a queda do regime comunista mais severo da Europa Oriental, Tirana parecia a capital da Coreia do Norte. Era uma cidade de 170 mil habitantes com 170 carros, dos quais apenas as elites e os membros do partido tinham acesso. O resto da população deslocava-se a pé ou de bicicleta, não por opção, mas por causa da pobreza. A queda do comunismo teve um impacto radical na infraestrutura e na vida social da cidade, afetando profundamente sua mentalidade e estilo de vida. Tirana viveu um doloroso processo de transição com uma transformação urbana caótica. De repente, pessoas de todos os cantos do país começaram a correr para a capital em busca de novas oportunidades e uma vida melhor. Em 30 anos, desde a queda do comunismo, Tirana tornou-se uma cidade de um milhão de pessoas e 170 mil carros. Há cinco anos, quando nós assumimos o governo, herdamos uma cidade lotada de carros, trânsito desordenado, poluição, instalações públicas ocupadas ilegalmente e, além de tudo isso, nenhum espaço de recreação para as crianças. Nos 25 anos de democracia, as crianças foram esquecidas e deixadas de fora de qualquer planejamento urbano e agenda política. Em uma cidade passando por uma experiência de rápida expansão urbana e crescimento populacional sob rígidas restrições orçamentárias, advogar por uma infraestrutura amigável à criança, parecia loucura. Era necessário pensamento inovador e criativo para levar adiante uma questão tão importante.
1 Para saber mais sobre acupuntura urbana, consulte www.arup.com/ perspectives/urban-acupuncture
Nessas circunstâncias, as opções que tínhamos disponíveis para criar uma infraestrutura urbana amigável às crianças eram limitadas. Em função disso, iniciamos o nosso trabalho por meio da ‘acupuntura urbana’1, que são intervenções pontuais que nos permitem desencadear pequenas mudanças que podem catalisar impactos sociais colossais. Criar um senso de apropriação da cidade entre os cidadãos foi fundamental para neutralizar o comportamento apático - que era comum entre os moradores de Tirana - durante o processo de transformação do lugar.
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Desde o primeiro dia de trabalho, sabíamos que a infraestrutura para as crianças era ruim, mas só fomos capazes de avaliar a situação real quando nós mesmos experienciamos os jardins de infância da cidade. Foi terrível. Pareciam celas de prisão: não admira que tenhamos tanta violência, grosseria e lixo nas ruas. Descobrimos que, involuntariamente, vivíamos em uma cidade sem nenhum cuidado ou amor pelas crianças
De ‘adotar um jardim de infância’ a ‘dias sem carros’ Logo após essa revelação, organizamos em nossa cidade a grande campanha ‘adote um jardim de infância’. Entramos em contato com empresas, designers, profissionais, estudantes e todos aqueles que tinham energia e boa vontade para ajudar. Em tempo recorde, conseguimos transformar nossos jardins de infância em espaços abertos, repleto de cores, decorações alegres e todas as facilidades obrigatórias. A resposta foi fantástica. Então decidimos ir mais longe, desocupando todos os espaços que estavam sendo usados como estacionamento dentro dos jardins de infância e escolas. Tendo em mente que o crescimento e o desenvolvimento cognitivo e comportamental das crianças estão diretamente ligados ao que acontece O prefeito de Tirana, Erion Veliaj, em um dos muitos novos playgrounds da cidade
Foto: cortesia da prefeitura de Tirana
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fora dos espaços fechados, decidimos focar nos ambientes ao ar livre, como playgrounds e parques, e na mobilidade para chegar a estes lugares. Esta foi uma oportunidade de melhorar o bem-estar das crianças, permitindo-lhes vivenciar a cidade e criar uma conexão com o mundo ao seu redor. Nós conseguimos construir um playground de última geração para as crianças no Lago Tirana, mesmo tendo encontrado inesperadamente uma grande resistência para arquitetá-lo "dentro" do parque por parte dos cidadãos e de políticos. No dia em que o playground foi inaugurado, o lugar parecia um festival, não com adultos, mas com crianças brincando. O sucesso do projeto nos motivou a criar mais parques infantis pela cidade em todos os espaços que eram anteriormente ocupados por automóveis. Construímos 60 novos parques infantis e hoje quase todos os bairros da cidade têm uma área dedicada às crianças. O mais interessante é que atualmente estes parques infantis estão sendo frequentados não apenas por crianças, mas também por idosos e pais jovens. Os idosos os utilizam como espaços de recreação. Os pais jovens aproveitam a oportunidade de estar num espaço ao ar livre em que se sentem tranquilos e seguros, enquanto usam o tempo para compromissos profissionais.
“Durante a pandemia do Covid-19, as pessoas constataram que sem os carros a cidade é muito mais silenciosa e segura, e o ar muito mais limpo.”
Ansiosos para ver mais mudanças, fomos além: introduzimos as iniciativas “dias sem carros” e “vamos limpar Tirana em um dia”. Os adultos enfureceram novamente, reclamando e criando resistência, a diferença é que desta vez sabíamos como agir. Voltamos a buscar o apoio dos nossos melhores aliados: as crianças. Elas não nos decepcionaram. Como sempre, participaram ativamente da iniciativa de aproveitar o espaço urbano sem terem que se preocupar com carros circulando nas ruas e nos ajudaram a limpar a cidade. Com uma força fascinante para a mudança, as crianças se tornaram nossos principais defensores da transformação de Tirana para se tornar uma cidade amiga da criança. Hoje, Tirana tem muito mais a oferecer às crianças. Transformamos a Praça Skanderbeg em uma praça exclusivamente para pedestres. O que costumava ser 40.000 m2 de rotatória, dedicada exclusivamente aos carros, é atualmente o maior parque infantil de Tirana, onde as crianças podem desfrutar de “um dia sem carro” em qualquer dia com um ar muito mais limpo. Também estamos trabalhando para deixá-la mais bonita criando um cinturão verde de dois milhões de árvores, que será fundamental para lidar com as responsabilidades ambientais da cidade.
Um legado para uma cidade resiliente Há quatro anos, nos unimos ao Quadro de Cidades Verdes e, juntamente com o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, desenvolvemos o Plano de Ação de Cidade Verde para Tirana. Com base em nossas mensurações, os
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carros de Tirana faziam 800 mil viagens por dia, das quais 400 mil eram dentro de uma distância de 500 metros. Estes números espantosos aumentaram nossa determinação de vencer o domínio dos automóveis na cidade e usar o espaço público para construir mais playgrounds, pocket parks, calçadas mais largas, ciclovias e dias sem circulação de carros.
“Em 2050, as crianças nascidas hoje estarão com 30 anos de idade - prontas para governar nossas cidades. A maneira como nós criamos e educamos nossas crianças irá ter impacto na resiliência de Tirana nos próximos 100 anos.”
Este plano de ação trouxe a base necessária para melhorar a qualidade do ambiente urbano, da saúde e do bem-estar de nossas crianças e famílias. Durante a crise pela pandemia do Covid-19, as pessoas constataram que sem os carros a cidade é muito mais silenciosa e segura, e o ar muito mais limpo. Elas compreenderam que em uma cidade onde não há indústrias pesadas, os maiores poluentes são os automóveis, inimigos reais não apenas para elas, mas também para seus filhos. Também perceberam que de fato é possível e é muito mais saudável caminhar ou pedalar com seus filhos para chegar aos destinos que estão no perímetro de 1 quilômetro de distância. As pessoas aprenderam outra lição vital com o corona vírus. O que torna as cidades resilientes durante uma crise não é a riqueza e o poder, mas o conhecimento, as calçadas e as ciclovias. Junto com nossos cidadãos, a cidade de Tirana já havia embarcado em uma jornada extraordinária para transformar, não apenas a infraestrutura educacional das crianças, mas também a mentalidade da população. O que começou como intervenções de acupuntura se transformou em um plano de ação para o futuro da cidade. De repente, nossa missão de devolver a cidade às pessoas passou a ser de devolve-la às crianças. Embora a pandemia ainda não tenha acabado e as ruas estejam vazias de carros, estamos trabalhando intensamente para aproveitar este momento e realocar mais espaço para calçadas e ciclovias. Tirana também está desenvolvendo nove novas áreas policêntricas para reequilibrar a densidade da cidade e suprir cada espaço com novas escolas, jardins de infância, parques e playgrounds. O objetivo é agrupar os serviços essenciais dentro do perímetro de um quilômetro de distância a pé. A melhor parte é que todos os projetos urbanos em Tirana estão incorporando os conceitos Urban95 e ‘8 a 80’2 para projetar infraestruturas na perspectiva de uma criança.
2 Para mais detalhes, consulte: www.880cities.org/
Uma infraestrutura amigável às crianças não teria valor se elas não pudessem viajar com segurança a pé ou de bicicleta para seus lugares favoritos. Portanto, estamos trabalhando com a Iniciativa Global de Designing de Cidades da Associação Nacional de Funcionários do Transporte Municipal dos Estados Unidos (NACTO), por meio do programa Streets for Kids (Ruas para Crianças), para projetar e construir ruas adequadas para crianças. Em cooperação com a Fundação de Desenvolvimento Albanês-Americana, a Pirâmide de Tirana - um símbolo do comunismo - está sendo transformada em uma "catedral educacional", um dos mais recentes espaços do Centro TUMO para Tecnologias Criativas.
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Este novo centro proporcionará ainda mais espaço público para as crianças se socializarem e receberem educação de qualidade por meio de uma série de programas que irão incluir o ensino de codificação e noções básicas de TI. Neste mundo agitado em que vivemos, é essencial que os pais permaneçam focados em suas prioridades, equilibrando suas responsabilidades e identificando as reais necessidades de seus filhos pequenos - também estamos trabalhando nisso. Já criamos iniciativas emocionantes, transformando os pais em ‘colegas de classe’ que ajudam seus filhos a completar os seus deveres de casa. O município também está desenvolvendo um guia de conduta parental para ajudar os pais jovens a educar e criar seus filhos pequenos de maneira responsável. Em 2050, as crianças nascidas hoje estarão com 30 anos de idade e prontas para governar nossas cidades. A maneira como nós criamos e educamos nossas crianças irá ter impacto na resiliência de Tirana dos próximos 100 anos. Projetar e construir nossa cidade para as crianças é como esboçar o projeto do nosso futuro. Costumo dizer que o projeto de infraestrutura mais importante a ser construído em uma cidade não é um bulevar ou um grande edifício, nós sabemos como fazer isso. São os 10 cm que temos entre nossas orelhas - nossa mentalidade e pensamento - que é a infraestrutura mais difícil de transformar. O futuro pertence às crianças. Encontre este artigo online em earlychildhoodmatters.online/2020-4
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Depressão perinatal, no Chile: avanços e desafios O Chile fez progressos na triagem e tratamento da depressão pós-parto. Barreiras como crenças negativas, medo e vergonha impedem mulheres de ter acesso aos serviços. O Chile deve agir para enfrentar essas barreiras, melhorar processos e expandir pesquisa.
Matías Irarrázaval Diretor de Saúde Mental no Ministério da Saúde em Santiago, Chile
A depressão perinatal é definida como uma depressão que ocorre entre o início da gravidez e o período de pós-parto. É um problema de saúde pública significativo que afeta mães, filhos e todos os membros da família, mas tende a passar despercebido em termos de diagnóstico e tratamento (Committee on Obstetric Practice, 2015; O’Connor et al., 2019). Estudos chilenos mostram que cerca de 10% das mulheres grávidas sofrem de depressão durante a gravidez, comparado a 13% das mulheres em pesquisas internacionais. No entanto, este número pode aumentar para uma em cada três mulheres se os sintomas de ansiedade também forem considerados (Jadresic, 2010). A depressão perinatal é um distúrbio comum e incapacitante que ocorre durante ou após a gravidez. A depressão pós-parto (DPP) é a forma mais conhecida de depressão perinatal. Estudos no Chile relataram uma incidência entre 8,8% e 9,2%, sendo que em 20,5% das mulheres a doença prevalecem ao longo da vida toda - isso significa que cerca de uma em cada cinco mães terá DPP após dar à luz. Existe uma relação inversa com ambientes socioeconômicos: mulheres com uma renda menor têm cerca de três vezes mais risco de sofrer PDD (Mendoza Bermúdez e Saldivia, 2015). A depressão perinatal pode oferecer consequências duradouras e até permanente para a saúde física e mental na relação mãe-filho. Tais consequências podem contribuir para uma disfunção familiar, aumentar as chances de negligência e abuso da criança, atrasar o desenvolvimento infantil, causar complicações obstétricas, dificultar a amamentação e trazer ainda mais despesas com a saúde. A DPP pode interferir na interação e no vínculo entre uma mãe e seu filho. No longo prazo, a criança pode apresentar problemas de desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social (Earls et al., 2010). A depressão pós parto também pode afetar o relacionamento do casal e desencadear fatores de risco para a depressão paterna (Misri, 2018). É crucial diagnosticar a depressão perinatal em um tempo hábil, pois é uma doença que responde bem aos tratamentos e isso pode ajudar a evitar consequências mais graves (Jin, 2019).
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Diagnóstico e tratamento da DPP no Chile Desde 2000, o Chile conta com um Programa Nacional de Detecção, Diagnóstico e Tratamento Integral da Depressão (Ministério da Saúde, 2009). Em 2006, a lei chilena passou a incluir episódios depressivos na lista de serviços nos quais o atendimento rápido de saúde é garantido pela GES (Garantías Explícitas en Salud), sistema que disponibiliza assistência pública a todos os que não possuam um seguro privado de saúde (Escobar e Bitrán , 2014). Isso significa que, com o diagnóstico confirmado, todos os beneficiários de 15 anos de idade ou mais terão acesso ao tratamento de um especialista em 30 dias com coparticipação de no máximo de 20% (cerca de U$ 75 por ano) (Superintendência de Salud, conectados).
“Os fatores que estimulam as mães a solicitarem ajuda incluem: já ter sofrido anteriormente um quadro depressivo e ter se submetido a um tratamento, acreditar que deve cuidar da sua saúde para proporcionar bem-estar ao seu filho e ter a consciência da sensação do sofrimento psíquico.”
Em 2009 foi institucionalizado o programa ‘Chile Crece Contigo’ (‘Chile Cresce com Você’, CCC), com o objetivo de criar políticas públicas intersetoriais para promover o desenvolvimento integral da criança. O programa envolve tanto o atendimento universal quanto o atendimento especializado nos casos de maior vulnerabilidade na gravidez, no parto e na infância até os 9 anos de idade. O CCC atende por meio do sistema público de saúde e as crianças são cadastradas no sistema desde o primeiro exame de pré-natal. Por meio do CCC, centros especializados na atenção primária realizam avaliações psicossociais em mulheres grávidas e puérperas usando uma escala que mede nove fatores de risco, incluindo sintomas de depressão (Cordero e López, 2010). As equipes de saúde utilizam um manual desenvolvido pelo Ministério da Saúde (MINSAL) para acompanhar as mulheres durante os exames de gravidez, na hora do parto e cuidados com os recém-nascidos (Ministério da Saúde, 2008). O manual inclui um fluxograma para o diagnóstico e tratamento da DPP e utiliza a Escala de Depressão Pós-natal de Edimburgo para avaliar as mães durante seus exames de rotina no segundo e no sexto mês após o nascimento do bebê, (Ministério da Saúde, 2009; Alvarado et al., 2015). Gestantes que apresentam um quadro de depressão confirmado recebem uma chamada domiciliar que busca avaliar possíveis riscos de suicídio, estimular o tratamento psicológico e/ou farmacológico e orientá-las sobre a psicologia da depressão pós-parto e as opções de tratamento da doença (Ministério da Saúde, 2009). A triagem para DPP possui alta cobertura e boa aceitação. No entanto, estudos mostram que isso não pode ser traduzido, necessariamente, em um fator que influencie na iniciação do tratamento, uma vez que as mulheres enfrentam múltiplas barreiras para buscar ajuda e ter acesso aos serviços (Rojas et al., 2015). Dificuldade em aceitar problemas psicológicos como uma doença, falta de uma rede de apoio e o medo de ser vista como “louca" são alguns exemplos de barreiras enfrentadas pelas mães.
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Muitas vezes as barreiras estão associadas a crenças negativas sobre depressão, maternidade e atendimento psicológico - por exemplo: a crença de que a depressão pode ser superada com força de vontade; problemas de saúde mental e violência intrafamiliar; medo de serem rejeitadas por suas famílias ou que o bebê seja tirado delas; vergonha em aceitar sentimento de rejeição em relação a seu filho. Fatores contextuais socioculturais também podem contribuir para criar este estigma. Por outro lado, os fatores que estimulam as mães a solicitarem ajuda incluem: já ter sofrido anteriormente um quadro depressivo e ter se submetido a um tratamento, acreditar que devem cuidar da sua saúde para proporcionar bemestar ao seu filho e a consciência de da sensação de sofrimento psíquico. Alguns fatores são específicos para a prática médica. Por exemplo, é mais provável que buscar ajuda se sentirem confiança nos funcionários do centro de saúde e tiverem uma experiência positiva sobre os cuidados que receberam lá; se o horário de funcionamento do centro de saúde for conveniente; e se sentirem apoiadas ao receber o diagnóstico de DPP. Outros fatores estão relacionados às redes de apoio da mulher: o apoio de entes queridos, feedback de outras pessoas sobre seu humor e um incentivo de uma pessoa próxima da família (como uma mãe ou irmã) para que elas busquem ajuda.
Desafios da DPP para o Chile Apesar dos avanços nos últimos anos, o Chile enfrenta três desafios principais para melhorar o diagnóstico e o tratamento da depressão perinatal.
A equipe de saúde educa mães e faz a triagem da depressão pós-parto no Hospital Iquique, Chile
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do hospital 2020 Chile. EarlyCortesia Childhood Matters de Iquique,
Em primeiro lugar, é importante desenvolver estratégias para prevenir e diminuir as barreiras de acesso ao tratamento. Isso pode incluir: • Promover e ampliar estratégias para intervenção precoce em crianças com mães que sofrem de DPP • Melhorar a conexão entre a triagem positiva das mães com DPP, encaminhamento para confirmação diagnóstica e acompanhamento • Aperfeiçoar a proposta do programa de depressão da GES, enfatizando o tratamento psicoterapêutico baseado em evidências • Melhorar a educação psicológica das mães e de suas famílias, a fim de combater o estigma social existente e informá-las sobre diferentes tratamentos • Promover estratégias intersetoriais que envolvam grupos de mães que já retornaram ao mercado de trabalho para ajudar a estimular práticas de trabalho favoráveis à maternidade e também incentivar exames oportunos de DPP. Em segundo lugar, é necessário melhorar o diagnóstico dos sintomas, incluindo a educação as pessoas sobre a DPP e a necessidade de diagnosticar a doença cedo para um tratamento mais eficaz, além de um treinamento contínuo das equipes de saúde. Finalmente, as pesquisas domésticas sobre DPP precisam de mais investimentos para poderem trazer mais conhecimento e informação. As áreas de pesquisa mais específicas incluem tópicos para a investigação, cuidado e acompanhamento de mães adolescentes, incluindo a validação de instrumentos para detectar a doença nessa faixa etária; melhorias no uso de sistemas de registro para criar ações mais responsivas de acordo com cada situação. O Chile é líder regional em diagnóstico e acesso universal ao tratamento da depressão perinatal, e suas conquistas merecem ser destacadas. No entanto, são necessárias melhorias nos processos e acesso ao tratamento de mulheres com DPP, a fim de melhorar sua recuperação e qualidade de vida, em benefício das mães e da próxima geração. Encontre este artigo online em earlychildhoodmatters.online/2020-7
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Primeira infância nas cidades: lições que aprendemos com Urban95 em quatro estudos de caso Urban95 pode ajudar as cidades a superar desafios no avanço dos serviços da primeira infância. Pesquisadores de Princeton elaboraram estudo do programa Urban95 em Tel Aviv, Tirana, Boa Vista e Recife. Fator que contribui para o sucesso é o apoio para conhecer na prática iniciativas em outros lugares.
Jennifer Widner Professora de Política e Relações Internacionais da Princeton University, em Princeton NJ, EUA Savvas Verdis Pesquisador Sênior da LSE Cities, London School of Economics and Political Science, em Londres, Reino Unido
Avançar com iniciativas de desenvolvimento na primeira infância é desafiador: os custos normalmente são altos; nem sempre investir na primeira infância está no topo da lista de prioridades; as comunidades mais sensíveis podem sentir desconfiança e desconforto o que dificulta a aceitação das iniciativas; os programas podem não atingir os grupos ou bairros almejados; não há funcionários suficientes com as necessárias habilidades e aptidões; e a racionalização em diferentes setores pode acabar sendo difícil. O programa Inovações para Sociedades de Sucesso (ISS) da Universidade de Princeton desenvolveu estudos de caso, revisados pela LSE Cities, que analisam como quatro cidades parceiras e participantes da iniciativa Urban95 da Fundação Bernard van Leer - Tel Aviv (Israel), Tirana (Albânia), Boa Vista (Brasil) e Recife (Brasil) - abordaram os desafios de coordenar projetos e entregar resultados.1 O Urban95 busca integrar serviços para a primeira infância para facilitar e tornar mais seguro para cuidadores com bebês e crianças pequenas chegarem nos postos de serviços, com lugares adequados para brincar ao longo do caminho. Dessa forma, as cidades podem ter mais acesso aos programas de desenvolvimento da primeira infância; colaborar com organizações públicas, privadas, sem fins lucrativos para reduzir custos e aumentar seu alcance; capacitar famílias com bebês e crianças pequenas a usarem a oportunidade de aprender dentro do meio em que vivem. De forma mais ampla, o Urban95 dá “voz" às crianças, o que contribui para acelerar a mudança dos meios urbanos no longo prazo, desde a qualidade do ar até a apropriação do espaço público.
1 Para ler estudos de caso sobre as parcerias da Fundação que exploram maneiras de oferecer melhores serviços para bebês, crianças pequenas e cuidadores, visite: https://bernardvanleer. org/publications-reports/scalingpartnerships-case-studies/
O esforço para integrar prestação de serviços com o tipo de planejamento urbano necessário para a construção de espaços públicos requer a competência de promover uma colaboração que deve ser sustentada em diversos níveis e entre diferentes setores. O Urban95 busca desenvolver liderança, pensamento estratégico e outras habilidades essenciais para identificar e ampliar iniciativas focadas na primeira infância. Trata-se de garantir autorização para fazer as mudanças necessários
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nos serviços e espaços públicos, estabelecer metas de forma colaborativa, defender a ampliação dos benefícios sociais e ambientais associados ao investimento na primeira infância, desenvolver compreensão e engajamento entre os funcionários municipais, trabalhar próximo às comunidades, acompanhar e coletar informações necessárias para criar uma política de ação baseada em evidências.
Ideias valiosas Os estudos de caso da Princeton ISS destacam algumas das lições positivas aprendidas durante os últimos dois anos de programa, bem como algumas áreas em que o progresso se mostrou um pouco mais difícil, mas que revelam que boas ideias podem ser essenciais para fazer a diferença.
“Funcionários de obras públicas normalmente encontram dificuldade em entender as razões para colaborar com ONGs ou funcionários da saúde e educação nos projetos que atendem crianças menores de 3 anos, por isso ver um exemplo prático dá vida à ideias abstratas.”
Em todas as quatro cidades, o prefeito desempenhou um papel chave para apoiar e, às vezes, persuadir chefes de setores ou membros do conselho que possuem uma atitude mais cética a colaborar. Em Boa Vista e Tirana, os prefeitos lideraram a adoção do programa e se tornaram sua imagem pública. Já Tel Aviv teve uma mudança mais ascendente. Os representantes municipais focaram em mostrar ao prefeito o potencial da iniciativa e, assim, fortalecer seu compromisso. Para isso criaram uma organização de apoio entre os setores e se mobilizaram para obter os resultados iniciais dos projetos. As teorias de mudança e motivações podem variar de prefeito para prefeito, mas, em todos os casos, o suporte do governo foi crucial. Tirana criou novas estruturas para financiar e conduzir o programa, enquanto Tel Aviv, Boa Vista e Recife usaram a experiência de programas anteriores e fundos ou fundações já existentes como veículos para receber ajuda financeira externa, reunir parceiros, manter os olhos nos resultados e aumentar a probabilidade de manter a política desenvolvida mesmo durante as mudanças administrativas. Os quatro estudos de caso fornecem ideias valiosas sobre como incorporar provisões sobre a primeira infância em uma estrutura de governança integrada, contribuindo para trazê-la para as estruturas dos setores da cidade. A colaboração efetiva e dois tipos diferentes de integração de governança são fatores fundamentais para expandir as iniciativas e serviços dedicados à primeira infância: primeiro, integração horizontal entre setores; em segundo lugar, mas em menor grau, integração vertical através de nível municipal e nacional. Os governos municipais geralmente coordenam o Urban95 por meio de uma pequena equipe responsável por monitorar a implementação, pela resolução de problemas e pelo planejamento. Em Recife, o prefeito elegeu um líder que reunisse os responsáveis por diferentes setores e juntos monitorassem de perto as intervenções que visam aperfeiçoar continuamente o programa. Tel Aviv atribuiu responsabilidade semelhante a membros da equipe que operavam de fora do gabinete do prefeito.
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A confiança mútua e um networking forte entre os setores foram essenciais para fortalecer a integração horizontal na cidade com “pessoas-chave” atuando como mediadores entre os diversos departamento. Recife e Boa Vista são exemplos de como os projetos Urban95 podem ser desenvolvidos de forma mais eficaz quando as políticas nacionais já apoiam o investimento na primeira infância. Assim como foi feito em Boa Vista, vincular o programa Urban95 às políticas nacionais brasileiras existentes pode contar acelerar a mudança. Por outro lado, em Tel Aviv a ausência de uma política nacional inicialmente retardou os resultados da cidade. No entanto, a divisão das autoridades entre o nível local e nacional posteriormente contribuiu para moldar o programa que surgiu. Em geral, as autoridades municipais apontam para o impacto positivo das viagens de estudo e workshops de educação executiva para ajudar a superar o ceticismo entre os principais membros de sua equipe. Funcionários de setores públicos normalmente encontram dificuldade em entender as razões para colaborar com ONGs e funcionários da saúde pública e educação em projetos
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Foto: Shani Halevy/Bernard Leer Foundation 2020 Early Childhoodvan Matters
que atendem crianças menores de 3 anos. Por essa razão, ver um exemplo prático dá vida às ideias abstratas. Workshops ajudam a desenvolver ideias e gerar entusiasmo. Em alguns casos, encontros ocasionais com funcionários de outras cidades podem contribuir para manter estímulo de trabalho. Em todos os casos, os líderes iniciaram projetos pilotos ou um conjunto inicial de investimentos para ajudar a construir o apoio público. Como primeiro investimento, Tirana e Tel Aviv implementaram playgrounds em partes centrais da cidade e deram visibilidade às intervenções na primeira infância.
“Em todas as quatro cidades, o prefeito desempenhou um papel chave para apoiar e, às vezes, persuadir chefes de setores ou membros do conselho que são céticos a cooperar.”
Em bairros em que os moradores são mais vulneráveis ou desconfiados, as autoridades municipais perceberam que era proveitoso trabalhar junto às organizações sem fins lucrativos já existentes e que haviam construído uma relação de conhecimento e confiança com os cidadãos. Em Recife, por exemplo, uma rede de agentes de paz comunitários provou ser imprescindível para auxiliar na compreensão e na condução de cuidadores e crianças a um centro de serviço, localizado dentro de suas próprias instalações. Estimular um senso de responsabilidade cívica pela manutenção dos espaços e respeito pela moderação do tráfego inicialmente desafiou algumas cidades: logo que um ‘pocket park’ foi criado, os equipamentos foram danificados por vândalos. Aos poucos, os municípios afetados começaram a se adaptar, buscando promover o espírito cívico, adquirir equipamentos menos frágeis ou uma combinação das duas coisas.
Pontos de reflexão Os estudos de caso revelam algumas dificuldades e tentativas de solução que são compartilhadas pelas cidades. As cidades priorizaram a ação em detrimento da avaliação, o que é compreensível. No entanto, sem haver um esforço inicial para pensar sobre como avaliar o desempenho do projeto no futuro, a maioria das cidades carecia de uma linha de base e tinha poucas evidências do estágio inicial ou do impacto da fase intermediária para compartilhar com os eleitores e ajudar na tomada de decisão. Quando finalmente as equipes da cidade definiram os indicadores que seriam utilizados, o próximo desafio foi conduzir os provedores da linha de frente em ONGs ou escritórios do governo para coletar e compartilhar as informações necessárias. Muitos deles acabaram ficando sobrecarregados e, na maioria dos casos, não houve um acompanhamento por parte da equipe de inovação. No entanto, houve algumas exceções: Tel Aviv obteve a ajuda para administrar pesquisas aos pais que usavam os serviços do programa e surgiu com maneiras criativas para coletar dados: checagem no local para contabilizar o número de pessoas que estavam usando playground e o parque. Estas experiências apontam para a importância de futuramente incorporar processos de avaliação do design do programa antes que os investimentos sejam concluídos.
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Algumas das cidades envolveram universidades parceiras com conhecimento de causa e estudantes voluntários para auxiliar na coleta de dados, mas perceberam que estas colaborações não funcionaram tão bem quanto previsto. Embora os alunos tenham se mostrado úteis para conduzir as operações de mapeamento de maneira cuidadosa por um ou dois dias, outras formas de administrar a participação dos alunos eram mais difíceis, pois seus professores também demandavam tempo e atenção. Tarefas mais curtas, intensivas e bem definidas que apresentem um potencial resultado para as pesquisas - ou trabalhos pagos para desempenhar funções específicas - podem ser mais promissoras. A coleta de evidências poderia ter ajudado a amenizar outro problema: gerenciar o risco de politização e melhorar a sustentabilidade. Embora os prefeitos quisessem mostrar realizações concretas e convincentes, eles também se preocupavam em diminuir o risco de ter o projeto muito associado ao seu próprio partido político e, futuramente, não ter continuidade caso outro partido assumisse o seu lugar no governo. Em alguns casos, atribuir a responsabilidade de alguns aspectos do programa a uma fundação da cidade ou parceiros tenha ajudado melhorar a sustentabilidade, contribuindo para dar continuidade da equipe e fornecer um fórum neutro para avaliar os resultados.
“Equilibrar o apoio do público com a necessidade de estender os serviços a bairros carentes é um dos julgamentos mais difíceis que os líderes do Urban95 têm de fazer.”
Em alguns lugares, estatutos nacionais criados para minimizar a politização baniram novos investimentos ou recebimento de fundos externos durante os meses que antecedem as eleições. Isso acabou criando um desafio de planejamento. Para evitar atrasos nas transferências de fundos ou na execução do projeto, as equipes tiveram que se preparar cuidadosamente e garantir que todas as operações que estivessem programadas para ocorrer durante a disputa eleitoral tivessem início antes deste período.
Dimensionando problemas futuros Aqui na Princeton ISS, consideramos uma ideia inovadora usar o planejamento urbano e a coordenação de serviços para ajudar no desenvolvimento de serviços para famílias carentes com crianças pequenas. Se irá funcionar ou não, isso não depende apenas da coordenação municipal - na qual nossos estudos são focados - mas também do tempo, da criatividade e do alinhamento às necessidades do programa. Portanto, seis tópicos devem ser considerados: 1. Mudanças na infraestrutura da cidade Não é fácil e nem barato modificar os espaços públicos, como calçadas ou estradas. As oportunidades podem surgir durante a expansão ou restauração do lugar, portanto, o sucesso dessa ação pode depender do momento e local coincidirem com as prioridades do programa. Dito isso, soluções criativas também são possíveis: por exemplo, enquanto Tirana empreendia grandes reformas no espaço público, Tel Aviv experimentava criar pop-up parques,
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investia na moderação do tráfego das ruas em que pais e mães costumavam passar e em converter pequenos quiosques em galpões de brinquedos educacionais, que exigiam muito menos investimento e possuem uma infraestrutura durável. 2. Localização dos investimentos na cidade A localização desses investimentos, sejam estabelecimentos de infraestrutura permanentes ou pop-up parques, desperta outros desafios. Tirana e Tel Aviv investiram inicialmente nos locais públicos mais notáveis ou centrais da cidade. Alguém pode se referir a essa estratégia como "urbanismo de campanha", em que os investimentos são feitos para atrair a atenção do público e da mídia.
“A abordagem de co-benefícios é uma maneira cada vez mais popular para introduzir novos empreendimentos sociais e ambientais que também possam melhor os resultados de outros setores da cidade.”
Essa estratégia pode ser eficaz para construir um estímulo inicial no programa, como no caso de Tel Aviv, mas pode apresentar o risco de resistência pública, como aconteceu em Tirana. Embora investimentos que despertam muita visibilidade em locais conhecidos da cidade possam ampliar o apoio do público, eles também estão vulneráveis às críticas de que negligenciam as famílias mais necessitadas. Equilibrar o apoio do público com a necessidade de estender os serviços a bairros carentes é um dos julgamentos mais difíceis que os líderes do Urban95 têm de fazer. 3. Recursos humanos Os estudos de caso não consideraram os custos com pessoal nem a qualidade da prestação de serviços, que poderiam se tornar obstáculos bastante significativos na avaliação, além das condições do mercado de trabalho e das taxas de contratação dos serviços. Em Tel Aviv, a solução foi integrar o programa a outros projetos e planos que já estavam sendo desenvolvidos pelos setores, o que permitiu o uso mais eficiente dos recursos. Por exemplo, os líderes do projeto perceberam que parte dos estímulos intelectuais necessários para o desenvolvimento da primeira infância poderiam ocorrer sem assistência profissional em ambientes como parques e playgrounds da cidade, onde investimentos já estavam sendo feitos por eles. O programa também incentivou os novos pais a instalarem um aplicativo para smartphone, o Digitaf, que cria uma rede de contato e conecta os cuidadores entre si e também a uma variedade de programas. Dessa forma, pode ser mais fácil reduzir a necessidade de outros funcionários e incentivando comunicação e assistência entre as pessoas. Essa opção pode ser útil em outros países onde o acesso à tecnologia é amplamente compartilhado. 4. Otimizando a prestação de serviços Apenas em alguns casos, as cidades experimentaram de forma abrangente agrupar vários serviços em "zonas prioritárias" ou modular os horários de construção e as rotas de transporte público. A co-localização de serviços e o
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uso de instalações, por exemplo escolas, como pontos de atendimento têm potencial para ampliar o acesso e diminuir os custos operacionais a longo prazo. No entanto, existem custos iniciais. As cidades que traçamos o perfil possuíam estas opções apenas em uma escala limitada, provavelmente por conta das informações iniciais que são necessárias para planejar e coordenar. 5. Alcançando outros setores Identificar co-benefícios pode futuramente contribuir para aumentar iniciativas de desenvolvimento da primeira infância. Por exemplo, adotar lentes infantis ajuda a alcançar melhorias, como caminhar pelo ambiente urbano e avaliar qualidade do ar, enquanto focar nas questões mencionadas anteriormente irá beneficiar a vida das crianças. Ampliar os objetivos que os programas Urban95 atendem, expande a coalizão de apoio e aumenta a probabilidade de investimento dos líderes das cidades. A abordagem de co-benefícios é uma maneira cada vez mais popular para introduzir novos empreendimentos sociais e ambientais que também possam melhor os resultados de outros setores da cidade. Ele incentiva a colaboração em vez da competição entre setores da cidade e, especificamente, em torno dos recursos financeiros compartilhados entre esses departamentos. 6. Sustentabilidade: De mudança institucional à mudança comportamental Finalmente, a avaliação dependerá de quão bem as cidades podem incorporar o programa nos processos e serviços municipais. Uma abordagem pode ser feita por meio da lei: Recife, por exemplo, aprovou uma lei autorizando a cidade a gastar recursos para apoiar o desenvolvimento da primeira infância e suas atividades, incluindo investimento no espaço público para comemorar o 500º aniversário da cidade. No entanto, a sustentabilidade irá solicitar mais do que uma lei governamental. Ela exigirá uma mudança na cultura que promova um amplo entendimento público de como o programa cria valor para as comunidades em que vivem. O sucesso ou o fracasso em cada um desses seis desafios e oportunidades depende da capacidade de colaboração entre os setores governamentais e a avaliação precisa de custos e benefícios, por meio de evidências. Na próxima fase de trabalho, as cidades analisadas nos estudos ajudarão a inspirar outras. Encontre este artigo online em earlychildhoodmatters.online/2020-9
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Questões sobre Identidade: é preciso aprender a lidar com a injustiça social desde a infância Crianças refugiadas internalizam o sentimento de ‘não pertencer’ desde pequenos A Refugee Trauma Initiative trabalha para ajudar crianças a sentirem-se valorizadas e respeitadas Sentimento de auto valoração por ajudar as crianças na recuperação de experiências traumáticas
Zarlasht Halaimzai Diretora e co-fundadora da Refugee Trauma Initiative em Tessalonica, Grécia
Evidências mostram que questões sobre identidade social e racial possuem grande influência em resultados essenciais da vida, dos quais saúde física, mental e financeira fazem parte (Pachter and Coll, 2009, tradução livre). Em todo o mundo, pessoas que pertencem a comunidades negras e de minorias étnicas estão sofrendo com o aumento da desigualdade. Começa com a maneira como crianças pequenas experienciam a diferença: crianças de apenas três anos já demonstram internalizar um sentimento de “não pertencimento” baseado em sua identidade (Connolly, 2009, tradução livre). Os primeiros anos de formação da criança podem construir uma base sólida de autovalorização e resiliência ou moldá-la para uma vida em que deve estar em constante batalha contra o preconceito e a discriminação. Em nenhum outro lugar isto é mais evidente do que nas experiências vivenciadas por crianças refugiadas. Elas passam a infância no exílio, deslocadas das comunidades em que viviam. Frequentemente enfrentam preconceito racial e discriminação, difamação por parte de políticos e comportamento agressivo da polícia e agentes responsáveis pelo patrulhamento da fronteira. Na mídia, quase todas as imagens de um refugiado são ameaçadoras ou retratam uma vítima sem ação. Os refugiados são despojados de todas as outras facetas de sua identidade. Crianças refugiadas internalizam o sentimento de “não pertencimento” desde muito cedo. Lembro-me vividamente das inúmeras vezes em que proprietários se recusaram a alugar uma casa à minha família porque éramos refugiados. Por dias a tristeza tomava conta de nós. Fico pensando se na cabeça do meu filho há algo que poderíamos fazer para diminuir a dor de ter que viver nessas circunstâncias. Desmantelar experiências tão traumáticas na idade adulta requer um profundo trabalho emocional e constante apoio psicossocial, que raramente encontra-se disponível às pessoas. Crianças refugiadas geralmente crescem em lugares onde sua história, língua e tradições não são compreendidas ou até mesmo propositalmente ignoradas. As suas famílias vivem em condições árduas e desumanas, às vezes por anos,
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sem segurança, alimentação de qualidade, educação e saúde. As mulheres que fazem parte dos grupos dirigidos por mim e meus colegas sempre mencionam a sensação de claustrofobia causada pela situação em que vivem. Quando a frase "Eu não consigo respirar" - as palavras finais de George Floyd - se tornou uma convocação para protestos contra a injustiça racial em 2020, eu refleti que há muito tempo escutava sentimentos semelhantes sendo expressos, metaforicamente, sobre a experiência de ser um refugiado.
Criando espaços que respeitem a identidade Na Refugee Trauma Initiative (RTI), organização que fundei e dirijo, nos preocupamos em criar espaços para que as identidades das famílias e das crianças sejam reconhecidas, respeitadas e celebradas. Compreender e respeitar a origem de cada criança é o fundamento de todo nosso trabalho. ‘Baytna’, nossa intervenção na primeira infância, é baseada nestes valores (baytna significa ‘nossa casa’ em árabe). Nosso treinamento é focado em capacitar facilitadores a incorporarem e disseminarem os valores da intervenção dentro da vida das famílias refugiadas. Ao treinar novos facilitadores, nosso primeiro objetivo é criar um ambiente em que eles se sintam suficientemente seguros para reconhecer e desfazer o preconceito
Crianças deixam suas próprias impressões nos espaços Baytna
Foto: Bagher Maghsudi
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inconsciente que todos nós temos e compreender as formas pelas quais isso poderia impactar o nosso trabalho com crianças refugiadas. As sessões costumam ser profundamente emocionais e perturbadoras, e exigem um treinador experiente para manter o ambiente protegido e guiar os novos facilitadores, conduzindo-os pelas dificuldades até um espaço de conscientização e comunidade. Em uma destas sessões, uma facilitadora, triste, compartilhou seus sentimentos de ressentimento e julgamento em relação às famílias das crianças que participam de suas sessões. Para ela, foi difícil revelar seus sentimentos, mas esta confissão trouxe a oportunidade de discutir este assunto com os outros colegas. Ela foi amparada por todos naquele momento e o grupo a ajudou a pensar em estratégias para administrar os sentimentos de julgamento quando eles surgissem.
Construindo um senso de auto valorização e atuação A jornada da minha família de Cabul a Londres levou quatro anos. Enfrentamos incontáveis casos de racismo e discriminação, às vezes intencionais, mas muitas vezes decorrentes da falta de compreensão do que tínhamos sofrido em nosso país e da violência das raízes coloniais na história do Afeganistão. Ser um refugiado significa lutar contra forças poderosas e sombrias pelo bem e segurança de sua comunidade.
A prática de Identidade-informada ajuda as famílias a reconciliar a cultura e tradições de seu país de origem com seu país de asilo
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Ao desenvolver minha própria maneira de trabalhar com crianças e famílias que vivenciaram jornadas semelhantes, reconheci como minha identidade era importante para minha resiliência. Entrar em contato com a história e a tradição de contar estórias do Afeganistão e compreender a coragem e tenacidade de meus próprios pais, que criaram cinco filhos em circunstâncias de extrema dificuldade, curou feridas profundas e alimentou o sentimento de orgulho de minhas raízes. O trabalho da RTI busca ajudar as crianças a se sentirem valorizadas e respeitadas, para que possam desenvolver uma educação emocional, um senso de autoestima e atuação, que por sua vez proporciona uma rede de apoio para experiências traumáticas. Reconhecer a identidade e a história de crianças que tiveram um começo de vida difícil, e possivelmente continuarão a enfrentar discriminação, pode ser um alicerce importante para ajudar a curar traumas e criar resiliência para os anos que virão. Encontre este artigo online em earlychildhoodmatters.online/2020-11
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