PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL Centro de Análises Econômicas e Sociais (CAES-PUCRS)
Relatório Síntese
INFÂNCIA E VIOLÊNCIA: Cotidiano de crianças pequenas em favelas do Rio de Janeiro Morro da Formiga, Morro dos Macacos, Parque Maré, Vila Cruzeiro, Minha Deusa e Mangueirinha (Duque de Caxias)
COORDENAÇÃO Prof. Dr. Hermílio Santos
Financiado por Fundação Bernard van Leer Parceria com Núcleo de Estudos e Projetos da Cidade (Central/PUC-Rio)
Outubro de 2013
Equipe de Pesquisa Coordenação: Prof. Dr. Hermílio Santos (CAES-PUCRS)
Pesquisadores: Prof. Dr. Adelar Fochezatto (CAES-PUCRS) Prof. Dr. Paulo Jacinto (CAES-PUCRS) Dra. Patrícia Oliveira (CAES-PUCRS) M.Sc. Celina Barroso (CAES-PUCRS) M.A. Marcos Quadros (CAES-PUCRS) Psic. Priscila Susin (CAES-PUCRS) M.A. Péricles Dias (CAES-PUCRS) Assistentes de Pesquisa: CAES-PUCRS Luana Barbosa Anne Briscke Anna Veiga
Central/PUC-Rio Francicleo Castro Ramos (Coordenação de Campo) Laura Braga Rossi Tatiana dos Santos Araújo Mariana Lopes Heleno Yara Henriques de Azevedo Pereira Fernanda Antunes Lopes Tadeu Nascimento Pedro Gabriel Holliver Souza Costa Leonardo dos Santos Marinho Rhayane Rodrigues
Consultoras Externas Profa. Dra. Gabriele Rosenthal (Universität Göttingen) Profa. Dra. Bettina Völter (Alice-Salomon Hochschule Berlin) Profa. Dra. Michaela Köttig (Fachhochschule Frankfurt am Main) M.A. Rosa-Maria Brandhorst (Universität Göttingen)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 5 2. APRESENTAÇÃO DAS COMUNIDADES ................................................................................. 9 3. A OPINIÃO DAS LIDERANÇAS LOCAIS ............................................................................. 22 4. A VISÃO DOS PRESTADORES DE SERVIÇOS NAS COMUNIDADES (STAKEHOLDERS) ............................................................................................................................ 24 5. INFÂNCIA NA PERSPECTIVA DOS PAIS E RESPONSÁVEIS ...................................... 25 5.1. Violência testemunhada por adultos na comunidade ........................................................ 25 5.2. Violência testemunhada em casa pela criança (na percepção dos adultos) ...................... 29 5.2. Violência praticada pelos adultos contra as crianças ........................................................ 30 5.3. Chance de crianças serem vítimas de violência ................................................................ 44 5.3.1. Violência física: bater ................................................................................................ 47 5.3.2. Violência psicológica: colocar de castigo ................................................................ 54 5.3.3. Violência psicológica: gritar ..................................................................................... 58 6. AS CRIANÇAS POR ELAS MESMAS ..................................................................................... 62 6.1. Violência testemunhada na comunidade pela criança ................................................... 62 6.2. Violência na escola ....................................................................................................... 64 6.2.1. Violência sofrida pela criança (na escola) .............................................................. 65 6.2.2. Violência testemunhada pela criança (na escola) ................................................... 66 6.3. Violência em casa ............................................................................................................ 68 6.3.1. Violência sofrida pela criança (em casa) ................................................................ 68 6.3.2. Violência testemunhada pela criança (em casa) ..................................................... 71 6.4. Discussão com crianças ................................................................................................ 73
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7. ADOLESCENTES E INFÂNCIA ............................................................................................... 85 8. EXPERIÊNCIAS DE VIOLÊNCIA EM BIOGRAFIAS FAMILIARES .......................... 91 8.1. Reconstrução biográfica: Maria e Eduarda, mãe e filha em experiências extremas de violência (Morro da Azaléia) .................................................................................................. 95 8.1.1. Maria, mãe de Eduarda .............................................................................................. 95 8.1.2. Eduarda, filha de Maria .......................................................................................... 130 8.2. Reconstrução biográfica: Célia e Jason, mãe e filho em contexto de negligência e busca de integração familiar (Ítaca) ................................................................................................ 156 8.2.1. Célia, mãe de Jason ................................................................................................. 156 8.2.2. Jason, filho de Célia ................................................................................................ 183 8.3. Reconstrução biográfica: Luiza e Clara, mãe e filha em uma trajetória de abandonos e construção de novas trajetórias biográficas (Comunidade dos Cravos) ............................... 196 8.3.1. Luiza, mãe de Clara ................................................................................................. 196 8.3.2. Clara, filha de Luiza ................................................................................................ 215 Síntese da reconstrução biográfica de Clara ...................................................................... 230 9. CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 233 10. REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 242
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1. Introdução O relatório a seguir apresenta os resultados da pesquisa que analisou o cotidiano de crianças pequenas (0 a 8 anos de idade) em cinco favelas da cidade do Rio de Janeiro e de uma comunidade em Duque de Caxias, com ênfase sobre a experiência de violência. A pesquisa, conduzida por uma equipe multidisciplinar das áreas de sociologia, economia, psicologia, ciência política e urbanismo, do Centro de Análises Econômicas e Sociais da PUCRS (CAES-PUCRS), contou com o financiamento da Fundação Bernard van Leer, sediada em Haia (Holanda), que se dedica a apoiar iniciativas capazes de reduzir a violência contra crianças pequenas como estratégia de permitir que o desenvolvimento na infância se dê sem os constrangimentos e impactos da violência em suas mais diversas manifestações. Para a coleta dos dados nas favelas do Rio de Janeiro, o CAES-PUCRS contou com a colaboração de alunos vinculados à Central/PUC-Rio (Núcleo de Estudos e Pesquisas da Cidade da PUC-Rio). A pesquisa foi realizada em cinco favelas do Rio de Janeiro (Morro da Formiga, Morro dos Macacos, Parque Maré, Vila Cruzeiro e Minha Deusa) e em uma favela de Duque de Caxias (Mangueirinha). Os dados foram coletados de setembro de 2012 a fevereiro de 2013. Buscou-se realizar um diagnóstico detalhado sobre a vida das crianças de 0 a 8 anos de idade nas comunidades pesquisadas, explorando em especial suas experiências de violência em casa, nas ruas da comunidade e na escola, partindo da percepção de diversos atores, como lideranças da comunidade, representantes de organismos que prestam serviços na comunidade, adolescentes, pais e responsáveis de crianças pequenas, além das próprias crianças. Para que fosse possível dar conta do objetivo principal da pesquisa, foram utilizados diversos instrumentos, qualitativos e quantitativos, levantando as seguintes questões: ⇒ O perfil socioeconômico da comunidade, considerando o número de habitantes por domicílio, tipo de domicílio, estrutura etária, emprego, renda e nível educacional, entre outros.
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⇒ A estrutura urbana da comunidade, considerando a caracterização das ruas, quadras, provisão de serviços de água, transporte, iluminação e saneamento. ⇒ A estrutura de serviços públicos ou privados de cuidados para crianças. ⇒ A estrutura dos serviços públicos de segurança, educação, saúde e assistência. ⇒ Comportamento familiar de apoio às crianças (por exemplo, percentual de família que praticam reorientação disciplinar de comportamentos indesejáveis sem o uso de punição física ou psicológica). ⇒ O uso de redes sociais e infraestrutura de saúde, educação e lazer. ⇒ O tipo de organização civil na comunidade. ⇒ A frequência, tipo e autores de abuso contra crianças. ⇒ Os tipos de violência que são aceitos e rejeitados na comunidade, especialmente entre os pais de crianças pequenas. ⇒ Os modelos de papéis sociais entre meninas e meninos adolescentes que vivem na comunidade.
Tendo em vista que a pesquisa já dispõe de um relatório detalhado de cada uma das comunidades pesquisadas, contabilizando mais de 1.300 páginas, constando quase que exclusivamente a análise de dados primários, coletados pelos pesquisadores envolvidos nesta pesquisa, no presente relatório constará uma síntese sobretudo com aspectos comuns a todas elas. Com os relatórios das comunidades, buscou-se oferecer informações detalhadas sobre a situação da infância em cada uma delas, com o objetivo de subsidiar a tomada de decisão no planejamento de ações nessas regiões. O objetivo do presente relatório, ao contrário, é sintetizar os aspectos comuns identificados em todas elas relativamente à situação da infância a partir da percepção de diversos grupos, como lideranças locais, adolescentes, pais de crianças pequenas e as próprias crianças. No Capítulo 2 serão apresentadas brevemente as comunidades analisadas, destacando sua localização na cidade do Rio de Janeiro e Duque de Caxias e características socioeconômicas. No Capítulo 3 é apresentado o problema da infância e violência na perspectiva das lideranças locais; já o Capítulo 4 explora a mesma questão na visão daqueles que atuam nas comunidades pesquisadas provendo algum tipo de serviço,
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público ou privado. No Capítulo seguinte são apresentados os aspectos comuns sobre infância e violência na perspectiva dos pais de crianças pequenas, aos quais foram aplicados um questionário, cujos dados foram submetidos a análises de correlação e de regressão, além de cruzamentos, com o objetivo de realizar um diagnóstico sobre a violência praticada por pais de crianças pequenas e estimar a chance dessa violência ocorrer ou reduzir. No Capítulo 6, busca-se obter um diagnóstico do cotidiano de crianças a partir da visão delas próprias. Essa análise está baseada, por um lado, em um questionário aplicado a 30 a 42 crianças de 6 a 8 anos de idade em cada uma das comunidades e, por outro lado, a uma discussão em grupos de cerca de quatro crianças em cada uma das favelas pesquisadas, cujo foco foi a família e o local onde residem. No Capítulo seguinte são sintetizados os aspectos comuns identificados nos grupos de discussão com adolescentes, cuja ênfase foi a vida desses jovens nas comunidades pesquisadas, assim como o período em que eles próprios eram crianças. Por último, e antes da conclusão geral, apresentamos um resumo da reconstrução de seis biografias, sendo duas biografias de cada família com duas gerações diferentes, em que fica explícito três tipos distintos de trajetórias familiares em relação à experiência com a violência em casa e na comunidade. Por derradeiro, cabe fazer um agradecimento a todas as instituições e pessoas que viabilizaram a realização deste empreendimento investigativo, que busca, a partir de agora, oferecer elementos sobre o cotidiano de crianças em favelas do Rio de Janeiro. Cabe fazer referência especial à Fundação Bernard van Leer, que financiou a pesquisa e que tem feito os melhores esforços para subsidiar a tomada de decisão de gestores públicos e de organizações não-governamentais com o objetivo de garantir às crianças uma vida cotidiana sem a presença de qualquer tipo de violência. Na Fundação Bernand van Leer, um agradecimento especial a Leonardo Yanez, pela confiança e permanente diálogo. Um agradecimento também a Alessandra Schneider, que tornou este diálogo possível. Cabe igualmente um agradecimento aos Professores do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, em especial à Professora Dra. Maria Alice Resende de Carvalho, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos
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da Cidade (Central/PUC-Rio) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio e Dra. Maria Sarah da Silva Telles, Coordenadora do Curso de Ciências Sociais, pela parceria na realização deste estudo, assim como aos estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio que participaram da coleta dos dados, cujas atividades de campo estiveram sob a coordenação de Francicleo Castro Ramos. Por fim, cabe um especial agradecimento aos moradores das comunidades onde foram coletados os dados, que nos cederam seu tempo, opiniões e relatos de vida para compor a análise da presente pesquisa, cuja síntese será apresentada nas páginas a seguir. Da mesma forma, agradecemos às diversas organizações e pessoas que facilitaram o acesso dos pesquisadores às comunidades, um apoio inestimável.
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2. Apresentação das comunidades Neste capítulo serão apresentados dados socioeconômicos sobre cada uma das favelas pesquisadas, além de características sobre o processo de ocupação urbana. No Quadro 1, abaixo, estão informados a quantidade da população, o número de domicílios, assim como a quantidade de crianças pequenas (0 a 8 anos) em cada uma das comunidades. Dentre elas, destacam-se o Morro dos Macacos e Minha Deusa como aquelas com o maior percentual de crianças.
Quadro 1: Número de habitantes e crianças nas comunidades pesquisadas
Comunidade
Habitantes
Domicílios
Crianças (0 a 8 anos)
Morro da Formiga
4.312
1.279
646 (15%)
Morro dos Macacos
5.069
1.383
848 (16,9%)
Parque Maré Vila Cruzeiro Minha Deusa Mangueirinha* (Duque de Caxias)
12.197 9.020 511 7.339
3.942 2.427 146 2.155
1.846 (15%) 1.239 (13%) 132 (26%) 963 (13%)
Fonte: IBGE, Censo 2010. Nota: No banco de dados do IBGE 2010 para “aglomerados subnormais” não há referência à Mangueirinha ou Morro da Mangueirinha ou ainda ao Complexo da Mangueirinha. Os dados mencionados aqui refere-se à comunidade “Sapo”, que, quando confrontado com o mapa de Duque de Caxias coincide, com pouca discrepância, ao que é reconhecido como sendo o Morro da Mangueirinha, local em que foram levantados os dados analisados nesta pesquisa.
A Figura 1 identifica a localização, na cidade do Rio de Janeiro, dos bairros onde estão situadas as favelas pesquisadas, da seguinte maneira: 33 (Tijuca: Morro da Formiga), 36 (Vila Isabel: Morro dos Macacos), 43 (Penha: Vila Cruzeiro), 139 (Realengo: Minha Deusa) e 157 (Maré: Parque Maré). Mangueirinha está situada no município de Duque de Caxias, localizado nas vizinhanças dos bairros Parada de Lucas (47) e Vigário Geral (48), na região nordeste do município do Rio de Janeiro.
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Figura 1: Localização das comunidades no Rio de Janeiro Fonte: Instituto Pereira Passos, Prefeitura do Rio de Janeiro
Como afirmado anteriormente, foram utilizados diversos instrumentos para a produção dos dados que foram analisados. O Quadro 2 a seguir apresenta a quantidade de participantes ouvidos nas favelas pesquisadas em cada um dos instrumentos adotados. A pesquisa ouviu 1.222 pessoas, já que apenas uma moradora do Morro da Formiga foi ouvida em mais de um instrumento. Quadro 2: Participantes por instrumento de pesquisa Comunidade
Morro da Formiga Morro dos Macacos Parque Maré Mangueirinha Vila Cruzeiro Minha Deusa Total
Entrevista Moradores
Entrevista Stakeholders
Questionários adultos
Questionário Crianças
Grupo de discussão
Dinâmica com crianças
Narrativa biográfica
8
7
135
30
12
4
7
203
9
9
158
32
9
4
13
234
7 10 6 5 44
7 6 6 6 42
160 120 152 80 805
40 42 33 30 207
11 13 12 9 66
5 4 4 4 25
14 34
244 195 213 134 1.223
10
Total
A seguir serão apresentadas algumas características de cada uma das favelas. Ao final destacaremos alguns elementos importantes tanto a distingui-las como que as tornam semelhantes de alguma maneira.
Morro da Formiga O Morro da Formiga está localizado no bairro da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro. Não há consenso sobre as raízes da comunidade que formou o Morro da Formiga. De acordo com levantamento realizado pelo ICOS, imigrantes alemães e portugueses teriam iniciado construções na região no ano de 1911. Anos depois, em 1934, o surgimento de um loteamento nas imediações teria suscitado um número considerável de novas edificações no morro. Por fim, a ocupação teria se expandido com base na presença de um grande número de operários que chegaram à região motivados pelo eventual emprego de sua mão-de-obra na construção das novas moradias. Ademais, visualizando no morro vastas porções de terra ainda despovoadas, tais operários teriam optado pela instalação de suas próprias famílias no local. Nobre (2009) assegura que os núcleos habitacionais do Morro da Formiga cresceram de fato somente a partir da década de 1940, período que teria assistido à inauguração de uma fábrica na região conhecida como Muda, situada nas proximidades do Morro. O empreendimento teria ofertado a abertura de grandes quantidades de postos de trabalho, fator que então contribuiu para a atração de migrantes oriundos do estado de Minas Gerais. Em decorrência do acúmulo de lixo e dos esgotos a céu aberto, os moradores da Formiga convivem com a incidência de doenças como leptospirose e dengue. A fim de minimizar os riscos de contágio, órgãos governamentais, em parceria com entidades que atuam na comunidade, vem desenvolvendo ações/mutirões de limpeza (conhecidos como “Formiga Limpa”), que objetivam sobretudo racionalizar o descarte de lixo e combater os focos de água parada nos quais se prolifera o mosquito transmissor da dengue. A comunidade do Morro da Formiga possui apenas um posto de saúde: o Centro Municipal de Saúde Júlio Barbosa (localizado no centro do Morro: rua Castelo Novo, n. 150). Segundo informações disponibilizadas pela própria instituição, boa parte das estratégias estão alicerçadas na visita domiciliar às famílias, seguindo o princípio da
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medicina preventiva e do PSF (Programa Saúde da Família). A unidade dispõe de “grupos educativos”, que promovem encontros semanais a fim de abordar as seguintes temáticas: planejamento familiar, combate ao tabagismo e orientação às gestantes. A exemplo das instituições de saúde, a comunidade da Formiga dispõe de apenas uma unidade escolar: a Escola Municipal Jornalista Brito Broca, que foi concluída no ano de 2005. A escola obteve nota de 4,7 no IDEB (2010), patamar inferior à meta fixada para a instituição: 5,3 pontos. Contudo, a pontuação ficou acima da média apresentada pela totalidade das escolas do Rio de Janeiro: 3,6 (a nota mais alta chegou a 8,1 pontos, ao passo que a mais baixa atingiu a casa dos 2,8). Cinco creches estão sediadas na Formiga: Abelhinha, Casa da Criança, Esperança, Tia Bela e Tia Maria. A comunidade possui em torno de 650 crianças na faixa dos 0 aos 8 anos (conforme os dados do IBGE de 2010). Embora parte considerável dos pais e responsáveis por crianças entre 0 e 8 anos que responderam ao questionário (Capítulo 5 deste Relatório) tenham declarado estar satisfeitos com as creches existentes, alguns dos entrevistados reclamaram da carência de locais destinados ao cuidado/educação das crianças durante o período em que os pais ficam ausentes. Instalada em 2010, o Morro da Formiga foi a nona comunidade carioca a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Com isso, a comunidade assistiu ao fim da presença de grupos ostensivamente armados em seu território. Ainda que seja possível que o tráfico não tenha desaparecido, os moradores deixaram de testemunhar a presença de pessoas – que não a polícia – armadas nas ruas da comunidade. A comunidade possui uma gama considerável de ONG ́s e instituições comunitárias. Além da Associação de Moradores (fundada em junho de 1964), a Formiga se destaca pelo grande número de entidades ligadas à música e à cultura. A Associação de Moradores, situada na área central da comunidade, presta diversos serviços em parceria com outras instituições; é também nesta área que está localizada a única quadra de esportes da comunidade. Trata-se do único espaço de lazer existente no Morro da Formiga, ocupado quase que somente por crianças e adolescentes masculinos. Com isso, é praticamente inexistente espaços públicos de lazer utilizados por meninas.
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Morro dos Macacos A favela do Morro dos Macacos está localizada na região norte da cidade do Rio de Janeiro, fazendo parte do famoso bairro de Vila Isabel. A localidade está assentada em uma fração muito visada da cidade, uma vez que o estádio do Maracanã, importante símbolo brasileiro, fica próximo aos limites do bairro. Em torno de 49% das famílias no Morro dos Macacos possuem mais de três membros, e os indicadores de renda são claramente insatisfatórios: 33% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 150) e 47% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 300). Conforme relatos dos moradores mais antigos, a comunidade teve origem quando alguns guardas do antigo parque jardim zoológico que havia nas proximidades decidiram construir casas de zinco no morro, a fim de impedir sua ocupação irregular. Com o tempo, porém, estes funcionários passaram eles próprios a fixar residência com suas famílias no morro, inaugurando a ocupação irregular que a priori deveriam combater. Por conta do citado parque zoológico, o morro ficou conhecido inicialmente como Parque Vila Isabel, passando a chamar-se Morro dos Macacos devido ao grande número de primatas que viviam no local. Assim, ainda que o “Complexo dos Macacos” abrigue duas outras favelas, foi a localidade pesquisada que recebeu o batismo de Morro dos Macacos. A comunidade dispõe de apenas um posto de saúde, o Posto de Saúde Parque Vila Isabel, o que parece insuficiente para uma população que supera o número de cinco mil pessoas. Tal situação é parcialmente amenizada pelo Programa de Saúde da Família (PSF), no qual equipes de profissionais de saúde visitam regularmente os domicílios da favela. A comunidade do Morro dos Macacos dispõe de três unidades escolares: a Escola Municipal Jornalista Assis Chateaubriand, o CIEP Salvador Allende e a Escola Municipal Mário de Andrade, embora apenas as duas primeiras escolas citadas fiquem localizadas de fato no interior da comunidade (ambas têm sede na rua Armando de Albuquerque).
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Já para a educação extraescolar das crianças, o Morro possui entidades como creches e o Centro Cultural da Criança (CEACA). Dentre as creches, merece destaque a Patinho Feliz, que atende 170 crianças de até quatro anos de idade em horário integral, oferecendo cinco refeições. O Centro Cultural da Criança, por sua vez, destina-se sobretudo ao desenvolvimento de atividades lúdicas e de interação para crianças entre 4 e 10 anos. O Centro possui espaços como biblioteca e brinquedoteca, e seus profissionais ministram vários cursos para as crianças contempladas (inglês, expressão corporal, música, etc.). A comunidade conta com uma unidade UPP desde novembro de 2010, contando hoje com um efetivo de 222 policiais.
Parque Maré A favela do Parque Maré está localizada no Complexo da Maré, um conjunto de comunidades da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O Complexo como um todo possui nada menos que oitocentos mil metros quadrados, que abrigam cerca de 130 mil habitantes (divididos em dezesseis comunidades). Os indicadores de renda dão conta da precariedade da situação econômica do Parque Maré: 29% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 155) e 39% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 3103). Ainda no que diz respeito a esse indicador, apenas 10% das famílias da comunidade recebem dois ou mais salários mínimos per capita (se considerarmos a totalidade da cidade do Rio de Janeiro, o que inclui outras favelas, esse índice chega a 38%). Os padrões de renda são bastante similares ao restante do Complexo da Maré. O terreno que costeia a Baía de Guanabara era extremamente pantanoso, com predominância de áreas de manguezal. Em virtude das características geográficas da região e do influxo do ciclo das águas da Baía que “invadia” a comunidade nascente com violentas marés, a favela foi batizada como Maré. A área das moradias foi sendo pouco a pouco aterrada, de forma que a favela perdeu a característica de manguezal. Essa “melhoria” de infraestrutura atraiu um número crescente de pessoas, que ocuparam fatias cada vez maiores da região. Finalmente, o poder público, ciente dessa expansão,
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reconhece a zona como bairro e oficializa o Bairro Maré em janeiro de 1994, quando o Complexo era dividido em quatorze comunidades (em 1996 foi fundada a comunidade de Nova Maré e em 2000 surge a Salsa e Merengue, formando a atual composição de dezesseis comunidades). O Complexo da Maré dispõe de oito postos de saúde e de uma Unidade de ProntoAtendimento (UPA), dotada de ferramentas mais sofisticadas para o atendimento da população. Por fim, o Hospital Federal de Bonsucesso também está localizado nas adjacências do Complexo. Quando focalizamos exclusivamente o espaço correspondente à comunidade Parque Maré, há apenas um local de atendimento, o Centro Municipal de Saúde Samora Machel. O local conta com trinta e nove funcionários, um programa continuado de Agentes Comunitários de Saúde, além de atendimentos médicos em algumas especialidades. A exemplo do que ocorre na área da saúde, o Complexo da Maré dispõe de uma rede de educação pública relativamente bem estruturada no interior ou nas adjacências de seu território. A rede é composta por pelo menos seis escolas municipais (Tenente-General Napion, Professor Josué de Castro, Escritor Bartolomeu Campos de Queirós, Armando Salles de Oliveira, Bahia e Nova Holanda) e cinco CIEP ́s (Gustavo Capanema, Operário Vicente Mariano, Hélio Smidt, Leonel Brizola e Elis Regina). O Complexo também possui ao menos quatro creches municipais (Monteiro Lobato, Nova Holanda, Espaço de Desenvolvimento Infantil Professora Kelita Faria de Paula e Espaço de Desenvolvimento Infantil Professor Moacyr de Góes), duas creches municipais (Creche Comunitária Nova Holanda e Creche Comunitária Cléia Santos Oliveira) um Centro de Artes (o Centro de Artes da Maré), uma biblioteca comunitária (a Biblioteca Popular Lima Barreto), a Escola de Fotógrafos Populares da Maré (patrocinada pelo UNICEF) e uma escola especial para crianças com dificuldades de aprendizagem (o Projeto Urerê). As crianças da Maré contam com um espaço privilegiado localizado bem ao lado da favela, a Vila Olímpica da Maré, criada em 1999 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. A Vila possui uma área de cerca de 80.000 m2, oferendo equipamentos para a prática de quinze modalidades esportivas.
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A despeito dos elevados índices de violência e da preocupação dos moradores, a Maré ainda não dispõe de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Instalada em trinta e três comunidades cariocas até o momento, a UPP da Maré está prevista para ser instalada nos primeiros meses de 2014, gerando, ao mesmo tempo, certa intranquilidade na população, pois temem o confronto entre policiais e membros do tráfico de drogas que atuam na comunidade.
Vila Cruzeiro A favela da Vila Cruzeiro se localiza no Bairro da Penha, na zona norte do município do Rio de Janeiro. O bairro, que congrega cerca de oitenta mil pessoas, leva esse nome em decorrência da igreja de Nossa Senhora da Penha, construída no alto do morro Cariri no século XVIII. A igreja ainda hoje é considerada um ponto turístico importante da cidade, sendo referência para situar a favela. Também cabe frisar que o Complexo do Alemão, imensa área dominada por favelas, fica muito próximo ao local. Os indicadores de renda da comunidade estão longe do ideal: 27% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 155) e 39% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 310). Ainda no que diz respeito a esse indicador, somente 11% das famílias da comunidade recebem dois ou mais salários mínimos per capita (se considerarmos a totalidade da cidade do Rio de Janeiro, o que inclui outras favelas, esse índice chega a 38%). Conta-se que os primeiros moradores do terreno que atualmente abriga a favela eram escravos fugidos que encontraram acolhida no entorno da Igreja da Penha, então administrada por um padre simpático ao abolicionismo. Crescendo em número, os exescravos formaram um quilombo, que após a abolição se tornou uma comunidade formalmente livre. Em decorrência de sua origem fortemente influenciada pela cultura africana, a localidade não raro é apontada como um dos focos de difusão do candomblé e da capoeira no Rio de Janeiro. Ademais, a comunidade teria contribuído decisivamente para o desenvolvimento do samba e do carnaval, gestionados nas manifestações artísticas que acompanhavam a Festa da Penha.
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A Vila Cruzeiro dispõe, desde 2010, de uma Clínica de Saúde (Clínica da Família Felipe Cardoso) localizada na Av. Nossa Sra. da Penha, n° 42, próxima à Estrada da Penha, que dá acesso à comunidade. Seguindo a metodologia do Programa de Saúde da Família, a unidade oferece visitas domiciliares, consultas diversas, vacinação, orientações acerca de planejamento familiar, exames de pré-natal, serviços de saúde bucal, teste do pezinho, exames laboratoriais, curativos e acompanhamento de pacientes portadores de doenças como hipertensão e diabetes. Além disso, os moradores podem recorrer ao Posto de Saúde da Família Esperança (Rua Itajuá, 258 – Olaria), ao Posto de Assistência Médica de Del Catilho (Rua Leopoldina Rêgo, 730 – Penha) e ao Posto José Paranhos Fontenelle (Rua Leopoldina Rêgo, 160 – Penha). Embora um pouco mais distantes, essas unidades podem ser acessadas pelos moradores com alguma facilidade. Por fim, o Hospital Estadual Getúlio Vargas (Rua Lobo Júnior, 2293 - próximo ao Parque Ari Barroso) é uma referência para todo o bairro da Penha e está disponível também aos moradores da Vila Cruzeiro. O Hospital atende ao público geral por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), suprindo uma grande demanda suscitada pelas populações carentes da região. A comunidade conta com um CIEP, o Gregório Bezerra (Rua Plínio de Oliveira, s/n). Fundado em 1992, a unidade dispõe de estruturas como refeitório, quadra de esportes e laboratório de informática, embora seja carente de biblioteca e laboratório de ciências. Atende Educação infantil (creche e pré-escola), Ensino Fundamental (até o 5o ano), Educação de jovens e Adultos (EJA) e educação especial para crianças portadoras de deficiência. No total, o CIEP atende 801 alunos, muitos dos quais moradores de outras comunidades da região. Também estão próximos à comunidade a Escola Municipal Leonor Pereira (Avenida Nossa Senhora da Penha, 599), a Escola Municipal Monsenhor Rocha Penha (Avenida Nossa Senhora da Penha, 589) e a Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos (Praça Rosália, 100). A comunidade da Vila Cruzeiro dispõe de 512 vagas para crianças em idade de creche, divididas em cinco unidades da Prefeitura. Diante dos elevados índices de violência na comunidade e da presença de grupos armados em seu território, o governo estadual implantou em 2012 uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na região, formada por um efetivo de cerca de trezentos
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policiais, que são responsáveis também pelas áreas que abrangem a comunidade de Cariri e Mira.
Minha Deusa A comunidade de Minha Deusa está localizada entre os bairros de Realengo e Jardim Sulacap, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Inserida em uma região bastante antiga da cidade, a comunidade só surgiu efetivamente com esse nome na segunda metade da década de 1980. Seu batismo foi inspirado na personagem “Jocasta”, interpretada pela atriz Vera Fischer na novela "Mandala", exibida pela Rede Globo de Televisão em 1987. Os indicadores de renda são muito insatisfatórios, mesmo se considerarmos outras comunidades cariocas como parâmetro de comparação: 68% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 155) e 15% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 311). Ainda no que diz respeito a esse indicador, apenas 10% das famílias recebem dois ou mais salários mínimos per capita (se considerarmos a totalidade da cidade do Rio de Janeiro, o que inclui outras favelas, esse índice chega a 38%). Os moradores são socorridos pelo Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS), que dispõe de uma equipe de Saúde da Família que percorre a favela de Minha Deusa, entre outras. Os moradores da Minha Deusa podem ter acesso à Unidade de
Pronto-Atendimento
(UPA)
Magalhães
Bastos.
Relativamente
próxima
à
comunidade, a UPA é sem dúvida a melhor estrutura de saúde da região: conta com 1,5 mil metros quadrados, que abrigam “uma sala de reanimação e emergência, com 4 leitos, salas de observação com 13 leitos – nove para adultos e 4 pediátricos –, laboratório de análises clínicas, salas de procedimentos e de higienização, farmácia, central de esterilização, e coleta de sangue. Dentre as escolas públicas, há, por exemplo, a Escola Estadual Dalva de Oliveira, a Escola Municipal Castelo Branco e a Escola Municipal José Pancetti, localizadas nas proximidades da comunidade de Minha Deusa. Os resultados educacionais das duas
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primeiras escolas acima citadas são idênticos, e estão abaixo dos índices alcançados pelo restante da cidade. Para o ensino de 1° a 4° série – período que abrange o ciclo de estudos das crianças pequenas –, ambas as entidades mereceram nota 4,7 nas verificações do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) 2011, ao passo que a média das escolas do município do Rio de Janeiro ficou em 5,4. Já a escola José Pancetti apresentou índices superiores. Atendendo cerca de 600 alunos e dispondo de estruturas como laboratório de informática, biblioteca e refeitório, a instituição subiu da nota 4,9 (IDEB 2009) para 5,9 em 2011, o que supera a média da cidade. A escola também apresentou resultados razoáveis na Prova Brasil, superando a média da cidade no ano de 2011: 233,6 pontos em Matemática (a média do município ficou em 227,5) e 205,8 pontos em português (contra 202, 3 do Rio de Janeiro). A fim de minimizar os efeitos de tal problema e de investir para que as futuras gerações adquiram um padrão de educação formal superior, o poder público efetivou um projeto importante para os moradores de Minha Deusa e das comunidades próximas. Trata-se do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Géssica Guedes Pereira, localizado no interior da favela. A instituição é voltada para o atendimento de crianças pequenas, tendo capacidade para atender em torno de 175 delas (150 vagas para creche e 25 vagas para a Pré-Escola).
Mangueirinha O Complexo da Mangueirinha é um conjunto de sete favelas localizado no município de Duque de Caxias, na Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, na região conhecida como Baixada Fluminense, distando cerca de cinquenta quilômetros da cidade do Rio de Janeiro. Uma das sete favelas que compõem o Complexo é também conhecida como Morro da Mangueirinha. Uma vez que está localizada para além dos limites da capital carioca, a comunidade fica virtualmente invisível para boa parte dos brasileiros, que costumam valorizar sobretudo as favelas mais conhecidas, localizadas no território que compreende a cidade do Rio de Janeiro. Assim, pode-se supor que a Mangueirinha tende a receber menor afluxo de recursos governamentais e privados, uma vez que a implantação de eventuais projetos sociais na região não gera a mesma visibilidade e os
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mesmos dividendos políticos ofertados por ações efetivadas em favelas como a Rocinha, a Mangueira e o Complexo do Alemão. De acordo com relatos esparsos coletados junto aos moradores mais antigos, a comunidade se originou já na década de 1920, quando o bairro Centenário começou a se expandir. A expansão decorria da criação de um loteamento na área do Sítio Jaqueira, ampla zona rural desabitada que pouco a pouco se transformou em uma vila com caracteres mais urbanizados. Em seguida, três fábricas se instalaram na região, atraindo operários que gradativamente passaram a se assentar também nas margens do loteamento. Com o tempo, o crescimento da área ocupada fez com que algumas famílias recorressem a terrenos mais afastados, o que inclui os morros. Despovoada e aparentemente sem proprietários declarados, a região que atualmente abriga a Mangueirinha mostrou-se convidativa para trabalhadores desprovidos de recursos, que ocuparam irregularmente pequenas porções de terra e fundaram a favela. Os níveis de renda das famílias são os seguintes: 36,06% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 150) e 37,73% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 300). Ainda no que diz respeito a esse indicador, apenas 2,46% das famílias da comunidade recebem dois ou mais salários mínimos per capita. Mangueirinha dispõe de apenas um posto de saúde, o PSF Centenário, localizado na base do Morro da Telefônica. O posto enfrenta déficit de funcionários, não dispondo de profissionais de saúde em diversas especialidades para o atendimento dos moradores do bairro. A comunidade enfrenta problemas sociais e estruturais que impactam diretamente nas condições de saúde de seus moradores, incluindo as crianças. Na esteira desta afirmação, merece destaque o crack, droga altamente corrosiva que é largamente comercializada e consumida na Mangueirinha e nos seus arredores. Segundo a pesquisa “Esgotamento Sanitário Inadequado e Impactos na Saúde da População”, realizada pelo Instituto Trata Brasil, em 2010 o município de Duque de Caxias coletava somente 42,6% do esgoto produzido, sendo que apenas 4,3% desse esgoto era efetivamente tratado. Ademais, o consumo de água inapropriada leva o município a ser aquele que possuir a
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maior taxa de crianças (77%) entre as pessoas internadas em decorrência da diarreia no Brasil. Desde 1982 a comunidade possui uma escola, a Escola Municipal Helena Aguiar de Medeiros. De acordo com informações oferecidas pela própria instituição, a escola atua em quatro turnos e atende cerca de oitocentos alunos, compreendendo a instrução do 1o ao 9o ano, além da Educação Especial e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O desempenho dos alunos está aquém do esperado, uma vez que somente 38% dos discentes do quinto ano apresentaram “aprendizado adequado” em língua portuguesa e 27% atingiram o índice em matemática.
Balanço Pode-se perceber que todas as comunidades analisadas possuem, em comum, a precariedade da renda da maioria dos seus moradores e uma ocupação fruto da expansão de atividades econômicas nas vizinhanças da favela ou a ausência de planejamento urbano para assentar camadas empobrecidas da população. Além disso, possuem em comum o fato dos indicadores sociais, em especial de educação, estarem abaixo da média da cidade. Contudo, o que as informações ainda não revelam são diferenças existentes tanto no interior dessas comunidades, quanto quando se compara uma comunidade com outra. Os relatórios específicos de cada comunidade dão conta das especificidades de cada uma delas. O interesse deste volume, ao contrário, é sobretudo chamar a atenção para aspectos comuns entre todas as comunidades.
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3. A opinião das lideranças locais Os pesquisadores buscaram conhecer a visão de lideranças que residem em cada uma das comunidades pesquisadas sobre as características das favelas, os principais problemas enfrentados pelos moradores, assim como sobre os problemas enfrentados pelas crianças, em especial sobre a violência testemunhada e sofrida pelas crianças – em casa e na comunidade – que moram na região. Destacamos a seguir os aspectos comuns identificados nas manifestações das lideranças, obtidas por intermédio de entrevistas semiestruturadas: ⇒
Em todas as comunidades as lideranças chamam a atenção para as deficiências na infraestrutura urbana e de serviços, como iluminação pública, coleta de lixo, condições de acessibilidade e saneamento básico. Contudo, nem todas as comunidades se mobilizam ou se veem no direito de reivindicar das autoridades públicas melhorias nos principais serviços. Outras comunidades, ao contrário, têm se mobilizado para fazer tais reivindicações, como também tomado iniciativas para resolver parte desses problemas.
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A despeito de reconhecerem deficiências nos serviços e infraestrutura de suas respectivas comunidades, é recorrente que lideranças comunitárias destaquem aspectos positivos da vida nos locais em que residem, boa parte deles já em segunda ou terceira geração vivendo na mesma localidade.
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De uma maneira geral, as lideranças locais apontam inquietações quanto à presença do controle armado por parte dos grupos envolvidos no tráfico de drogas. Embora esta inquietação tenha sido pronunciada em todas as comunidades, esta é mais recorrente naquelas favelas ocupadas por policiais de UPP, ou seja, a presença permanente do policiamento parece encorajar as lideranças a manifestar descontentamento em relação à situação vivida pela comunidade anteriormente à ocupação da comunidade pela polícia.
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O julgamento dessas lideranças em relação à atividade policial se dividiria entre aquelas comunidades com a presença de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e aquelas que não contam com tal serviço. Nas comunidades sem a presença de UPP, as lideranças tendem a ser mais críticas em relação à
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atuação policial, tanto por sua arbitrariedade, quanto pela instabilidade na vida da comunidade durante as incursões, sobretudo por estarem vulneráveis e correrem o risco de serem atingidos por armas de fogo em conflitos entre policiais e pessoas envolvidas com o tráfico. ⇒
Ainda que com intensidades distintas, as lideranças ouvidas parecem naturalizar a presença da violência na comunidade, também em relação à violência contra crianças pequenas. Diversas lideranças tendem a minimizar o problema da violência contra crianças, considerando até como um problema isolado ou inexistente, ou ainda justificando atos considerados como violentos contra crianças como sendo parte do processo educativo.
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Lideranças de algumas comunidades chamam a atenção para o problema da gravidez entre adolescentes.
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Outras lideranças, ao contrário, identificam na violência contra a criança um problema de suas respectivas comunidades, e que mereceriam ações mais concretas para reduzir a violência sofrida pelas crianças. Ao mesmo tempo, apontam para outros tipos de problemas vividos pelas crianças em suas comunidades, como o abandono afetivo e o descaso com a alimentação. Chamam a atenção, ademais, para a carência de espaços destinados ao cuidado das crianças no período em que os pais estão trabalhando, assim como a falta de espaços de lazer para crianças.
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4. A visão dos prestadores de serviços nas comunidades (stakeholders) Com vistas a ampliar o conhecimento sobre a vida nas favelas pesquisadas, foram ouvidos representantes de órgãos ou instituições que prestam serviço nas comunidades, como serviços de saúde, educação, segurança, além daquelas que desenvolvem atividades sociais e religiosas. Destacamos a seguir posições recorrentes nas manifestações desses profissionais, que, assim como as lideranças locais, foram obtidas em entrevistas semiestruturadas: ⇒ Assim como as lideranças comunitárias, os prestadores de serviços também identificam os problemas de infraestrutura como um problema grave enfrentado pelos moradores das favelas pesquisadas. Essas condições provocam não apenas problemas de saúde como também atingem a autoestima dos moradores, sobretudo dos mais jovens. ⇒ Diferentemente das lideranças locais, os profissionais que trabalham nas comunidades pesquisadas tendem a ser mais explícitos na caracterização do cotidiano das crianças como permeado por uma intensa violência, seja testemunhada nas ruas da comunidade, seja entre as famílias. Em algumas comunidades, esses profissionais apontam que “bater” ou “dar uns tapas” nas crianças é uma prática aceitável. Destacam alguns fatores que estariam contribuindo para agravar a situação da infância, como a presença de famílias com apenas um dos pais (geralmente a mãe), mães muito jovens, alimentação precária e exposição ao uso e tráfico de drogas. ⇒ Ao lado da violência sofrida pelas crianças, os profissionais ouvidos destacam a violência contra a mulher como bastante frequente no cotidiano das comunidades pesquisadas. ⇒ Nas comunidades com a presença de UPP, a percepção é de que houve uma redução da criminalidade e da exposição dos moradores ao tráfico e consumo de drogas. ⇒ Uma das carências identificadas é a de espaços para o cuidado das crianças na ausência dos pais.
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5. Infância na perspectiva dos pais e responsáveis Com o objetivo de aprofundar o conhecimento acerca do cotidiano de crianças pequenas, foi aplicado um questionário contendo 60 perguntas a pais ou responsáveis por crianças nas comunidades pesquisadas, tendo sido respondido por um total de 805 pais ou responsáveis por crianças pequenas. Além das características dos pais e do grau de satisfação em relação a vários serviços prestados diretamente na comunidade, buscou-se obter informações sobre a dimensão da violência testemunhada e sofrida pelas crianças na perspectiva de seus pais e responsáveis. A seguir são destacados alguns resultados.
5.1. Violência testemunhada por adultos na comunidade Alguns tipos de violência foram investigados quanto à frequência com que são testemunhados pelos adultos pais ou responsáveis por crianças pequenas, nas ruas da comunidade (Figura 2), a saber: Ø Ouve tiros de armas de fogo; Ø Policial apontando uma arma de fogo; Ø Outras pessoas apontando uma arma de fogo. Ø Gente vendendo drogas nas ruas da comunidade.
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Figura 2: Tipos de violência testemunhada pelo adulto na comunidade
Ouvir tiros de armas de fogo “Ouvir tiros de armas de fogo” é o tipo de violência mais testemunhado pelo adulto na comunidade. A grande maioria (75%) dos adultos entrevistados nas 6 (seis) comunidades envolvidas na pesquisa do Rio de Janeiro, já ouviram tiros de armas de fogo. Portanto, apenas 25% nunca ouviu tiros (Figura 2). Policial apontando uma arma de fogo “Policial apontando uma arma de fogo” é o segundo tipo de violência mais testemunhada pelo adulto nas ruas das comunidades. A grande maioria dos adultos entrevistados (71%), considerando as 6 (seis) comunidades do Rio de Janeiro envolvidas nesta pesquisa, já viram policial apontando arma de fogo nas ruas da comunidade (Figura 2). Ou seja, somente 29% dos adultos entrevistados nunca viram. Os resultados revelam uma correlação positiva (spearmam, c= 0,89, sig=0,46) entre a frequência com que as mães veem policial apontando uma arma de fogo com a frequência com que batem na criança, indicando que mães que veem policial apontando arma de fogo batem mais frequentemente na criança. Os dados mostram que a parcela de mães que batem “sempre” e “quase sempre” é maior entre as mães que veem “sempre” e “quase sempre” policiais apontando uma arma de fogo.
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Outras pessoas apontando uma arma de fogo A maioria dos adultos entrevistados (62%) nunca viu outras pessoas, que não sejam policiais, apontando uma arma de fogo (Figura 2). Ainda assim, a parcela que já viu é significativa. Mais de um terço (38%) já viu outras pessoas apontando uma arma de fogo. Gente vendendo drogas Em relação à venda de drogas nas ruas da comunidade, mais da metade dos adultos entrevistados (51%) já testemunharam gente vendendo (Figura 2). Portanto, pouco menos da metade (49%) nunca viram. Abuso sexual contra crianças A pesquisa buscou saber se os moradores das seis comunidades já ficaram sabendo de abuso sexual contra crianças nas comunidades onde residem. Quando perguntados se já ficaram sabendo de abuso sexual contra crianças na comunidade, um terço dos respondentes (33%), considerando as 6 (seis) comunidades do Rio de Janeiro envolvidas na pesquisa, já ficou sabendo (Figura 3).
Figura 3: Violência sexual contra crianças na comunidade
Violência testemunhada pelo adulto, nas ruas da comunidade (excluindo Morro da Formiga) Investigou-se a frequência com que outros tipos de violência são testemunhados pelos adultos, nas ruas da comunidade (Figura 4), a saber:
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Figura 4: Frequência com alguns tipos de violência é testemunhada pelo adulto, na comunidade, excluindo o Morro da Formiga. Nota: Algumas questões foram incluídas no questionário após ter sido aplicado no Morro da Formiga, por esse motivo a informação para esta favela não pode ser considerada aqui.
Alguém sendo preso pela polícia A grande maioria dos adultos entrevistados (65%) já viram “pessoas sendo levadas pela polícia” nas ruas da comunidade, ou seja, apenas 35% nunca viram (Figura 4). Alguém sendo ferido por soco Quase a metade dos adultos entrevistados (47%) já viram pessoas sendo feridas por soco nas ruas da comunidade. Pouco mais da metade (53%) nunca viu (Figura 4). Alguém sendo ferido por tiro Pouco mais de um terço dos adultos entrevistados já viram pessoas sendo feridas por tiro nas ruas da comunidade (35%). Portanto, a maioria (65%) nunca viu (Figura 4). Alguém sendo ferido por facada Uma minoria dos adultos entrevistados (15%) já viu alguém sendo ferido por facada nas ruas da comunidade. Portanto, a grande maioria (85%) nunca viu (Figura 4).
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5.2. Violência testemunhada em casa pela criança (na percepção dos adultos) Perguntou-se aos adultos a frequência com que a criança testemunha, em casa, determinados tipos de violência. Excetuando o Morro da Formiga, na qual não foram aplicadas essas perguntas, alguns adultos admitiram que, em casa, alguns tipos de violência acontece entre eles, na frente da criança (Figura 5), como: Ø Adulto gritando com adulto; Ø Adulto batendo em adulto; Ø Homem batendo em mulher; Ø Arma de fogo na frente da criança.
Figura 5: Tipos de violência testemunhada pela criança em casa (excluindo Morro da Formiga)
Adulto gritando com adulto Mais da metade dos adultos (57%) admitiram que, em casa, “adultos gritam com adultos” na frente da criança. Apenas 43% disseram que esse tipo de atitude entre adultos “nunca” aconteceu (Figura 5).
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Adulto batendo em adulto Uma pequena parcela de adultos (11%) revelou que, em casa, a criança testemunha “adulto batendo em adulto” (Figura 5). Homem bate em mulher Apenas 4% dos adultos entrevistados admitiram que, em casa, homem bate em mulher na frente da criança. No entanto, 62% dos entrevistados não responderam à pergunta sobre a ocorrência em casa de homem batendo em mulher. Portanto, apenas 34% disseram que NÃO, homem não bate em mulher. O elevado índice de adultos que se recusaram a responder à questão pode indicar um índice maior de violência física entre homem e mulher dentro de casa (Figura 5). Arma de fogo na frente da criança Apenas 2% dos adultos disseram que armas de fogo ficam expostas em casa na frente da criança. A grande maioria, 98%, disse que, em casa, armas de fogo “nunca” ficaram expostas na rente da criança (Figura 5).
5.2. Violência praticada pelos adultos contra as crianças
Entre os três tipos de violência praticados por adulto dentro de casa contra a criança de até 8 anos de idade, a saber: gritar, colocar de castigo e bater, todas elas são praticadas pela maioria dos adultos, sendo que gritar é a mais praticada, seguida de colocar de castigo e bater. A grande maioria dos adultos (75%) gritam com a criança mais velha (de até 8 anos de idade), sendo que um terço (31%) grita “sempre”. Quanto à prática de colocar de castigo, 64% dos adultos colocam a criança de castigo, sendo que 29% colocam a criança de castigo “sempre”. Por fim, em relação à prática de bater na criança, 60% dos adultos batem na criança, sendo que apenas 13% o fazem raramente, 36% o fazem “às vezes” e 7% e 5% o fazem “sempre” e “quase sempre”, respectivamente (Figura 6).
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Figura 6: Frequência com os tipos de violência (física e psicológica) são praticados em casa
Grupos de adultos Os resultados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos quanto à frequência com que batem na criança (K-W, chi² = 63,164, sig = 0,000). A mãe se destaca dos demais (pai e avó) quanto à frequência com que bate na criança. Enquanto a grande maioria (71%) das mães bate na criança (apenas 29% nunca bateu), a maioria de pais (58%) e avós (59%) nunca bateu (Figura 7).
Figura 7: Frequência com que cada grupo (mãe, pai e avó) bate na criança
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Portanto, a mãe se destaca do pai e da avó quanto à frequência com que bate na criança. Enquanto a maioria dos pais e avós nunca bateram na criança, a grande maioria das mães já bateram, sendo que 14% delas bate “sempre” e “quase sempre” e pouco menos da metade (43%) bate “às vezes” (Figura 7). Renda mensal da mãe Os resultados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a renda mensal da mãe e a frequência com que ela bate na criança (K-W, chi² = 10,187, sig = 0,006). As mães que menos batem são aquelas que não têm renda, embora a maioria delas bata na criança (62%) e as mães que mais batem são aquelas que recebem menos que o salário mínimo, seguida das que recebem entre 1 e 2 salários mínimos. O índice de mães que batem “sempre/quase sempre” é maior entre as mães que recebem menos que o mínimo (12% e 7%). No entanto, somando os índices daquelas que batem sempre/quase sempre/às vezes e raramente, as mães que recebem entre 1 e 2 mínimos batem mais. De qualquer forma, as mães que recebem menos ou mais que o mínimo batem mais do que as mães que não têm renda (Figura 8).
Figura 8: Renda mensal das mães e a frequência com que bate na criança
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Idade da criança e frequência com que a mãe grita Os dados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a idade das crianças e a frequência com que a mãe grita (K-W, chi²=38,425, sig=0,000). A criança de 2 anos se destaca como aquela cuja mãe mais grita e a idade de 0 a 11 meses como a criança cuja mãe menos grita. Apenas 2% das mães cuja criança mais velha tem 2 anos “nunca” gritou com a criança, ou seja, 98% das mães de criança de 2 anos gritam com a criança, sendo que a maioria grita “sempre” (60%). Mesmo entre as mães de crianças de até 11 meses, que são as que menos gritam com a criança, 42% gritam, sendo que 16% grita “sempre”. Mesmo com o destaque para a criança de 2 anos, em todas as outras idades, de 1 a 8 anos, a maioria das mães grita com a criança em graus elevados de frequência. Entre as mães de crianças de 5 anos, por exemplo, apenas 7% nunca gritou com a criança, sendo que 44% grita sempre. Entre as mães de crianças de 6 e 4 anos, apenas 11% e 14%, respectivamente, nunca gritaram, sendo que 43% e 45% gritam sempre (Figura 9).
Figura 9: Frequência com que a mãe grita por idade da criança
Portanto, embora as mães de crianças de 2 anos de idade se destaquem como as que mais gritam, é elevado o índice de mães que gritam com a criança, sendo que, em todas as
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idades, de 1 a 8 anos, a maioria das mães gritam com a criança. Até entre as mães de crianças de até 11 meses de idade é grande a ocorrência. Embora não seja maioria, próximo da metade das mães de crianças de até 11 meses de idade gritam com a criança. Idade da criança e frequência com que a mãe coloca de castigo Os dados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a idade das crianças e a frequência com que a mãe a coloca de castigo (K-W, chi²=73,355, sig=0,000). A criança de 5 anos se destaca como a criança cuja mãe mais coloca de castigo e a idade de 0 a 11 meses como a criança que a mãe menos coloca de castigo. Quase a metade (47%) das mães de crianças de 5 anos as colocam de castigo “sempre” e apenas 15% das mães cujas crianças mais velhas têm 5 anos, nunca a colocaram de castigo. Quanto às mães de crianças de até 11 meses, apenas 3% coloca de castigo sempre, 97% nunca colocaram a criança de castigo. Com exceção das mães cujas crianças têm até 11 meses e 1 ano de idade, a maioria de todas as outras mães coloca a criança de castigo, sendo que parcelas significativas (de 30% a 47%) colocam a criança de castigo “sempre” (Figura 10).
Figura 10: Frequência com que a mãe coloca a criança de castigo, por idade da criança
Portanto, a maioria das mães cujas crianças mais velhas têm de 2 a 8 anos coloca a criança de castigo. No entanto, as mães de crianças de 5 anos se destacam como as que mais colocam a criança de castigo, sendo que mais da metade coloca de castigo “sempre/quase sempre”, seguida das mães de crianças de 4, 6 e 7 anos. As mães de
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criança de até 1 ano de idade são as que menos colocam de castigo, a maioria nunca colocou. Idade da criança e frequência com que a mãe bate Os dados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a idade das crianças e a frequência com que a mãe bate nela (K-W, chi²=62,063, sig=0,000). A criança de 2 anos se destaca como aquela cuja mãe mais bate e a criança de 0 a 11 meses se destaca como aquela cuja mãe menos bate. Apenas 9% das mães cuja criança mais velha tem 2 anos “nunca” bateu na criança, ou seja, 91% das mães de criança de 2 anos de idade batem na criança, sendo que 26% bate “sempre/quase sempre”. Por outro lado, a grande maioria das mães de crianças de até 11 meses (93%) “nunca” bateu com a criança (Figura 11). No entanto, mesmo com o destaque para as crianças de 2 anos como as que mais apanham das mães, em todas as outras idades, ou seja, entre crianças de 1 a 8 anos, a maioria das mães bate na criança. Entre as mães cujas crianças mais velhas têm 4, 5 e 3 anos, apenas 21%, 20% e 24% nunca bateram na criança, respectivamente, sendo que 15%, 19% e 14% bate “sempre/quase sempre” e próximo de 50% batem “às vezes” (Figura 11). Até as mães de crianças de 1 ano, em sua maioria, batem na criança (62%), apenas 38% nunca bateram (Figura 11).
Figura 11: Frequência com que a mãe bate, por idade da criança
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Portanto, a maioria das mães cujas crianças mais velhas têm de 1 a 8 anos bate na criança. No entanto, as mães de crianças de 2 anos se destacam como as que mais batem, sendo que praticamente um quarto das mães batem “sempre”, seguida das mães de crianças de 4, 5 e 3 anos. As mães de criança de até 11 meses de idade são as que menos batem, apenas 7%, mas entre as mães de crianças de 1 ano, 62% batem na criança.
Sexo da criança e frequência com que a mãe grita, bate e coloca de castigo Os resultados revelam diferença estatisticamente significativa entre o sexo da criança e a frequência com que a mãe grita (K-W, chi²=3,453, sig=0,063) e coloca de castigo (K-W, chi²=4,957, sig=0,026), indicando que mães cujas crianças são meninos praticam mais esses dois tipos de violência do que as mães cujas crianças mais velhas são meninas. Embora a diferença quanto à frequência com que a mãe bate não tenha sido confirmada entre meninos e meninas, os dados mostram a mesma tendência, de meninos apanhando mais do que as meninas. A diferença maior é quanto ao castigo, quase 100% das mães de meninos os colocam de castigo, enquanto 66% das mães de meninas as colocam de castigo. Em relação à prática de gritar, 87% das mães de meninos gritam com a criança e, com um índice um pouco menor, 79% das mães de meninas gritam com a criança. Entre as mães que batem, embora a diferença não tenha sido confirmada estatisticamente, 75% das mães de meninos batem na criança, enquanto 67% das mães de meninas batem na criança (Figura 12).
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Figura 12: Frequência com que a mãe grita, coloca de castigo e bate, por sexo da criança
Portanto, mães cujas crianças mais velhas são meninos praticam mais os três tipos de violência (gritar, colocar de castigo e bater) do que mães cujas crianças mais velhas são meninas.
Quantidade da criança em casa e frequência com que bate nela Na maioria das moradias (57%) mora apenas uma criança de até 8 anos. Casas com duas crianças representam 29% das moradias e casas com três crianças ou mais representam 14%. Os resultados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a frequência com que a mãe bate e a quantidade de crianças na casa. A incidência da violência física praticada pela mãe contra a criança é menor em casas com uma criança e maior em casas com duas crianças, embora a maioria das mães, tanto em casa com 1 criança, quanto em casas com duas ou mais crianças, bata na criança. No entanto, enquanto em casas com uma criança 63% das mães batem na criança, em casas com duas crianças, 85% das mães batem na criança e em casas com 3 crianças 71% das mães batem na criança (Figura 13).
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Figura 13: Frequência com que a mãe bate, por quantidade de crianças na casa
Quantidade de dormitórios em casa e frequência com que a mãe bate A grande maioria das moradias (85%) se dividem entre aquelas com 1 e 2 cômodos para dormitórios, 40% e 45% dos respondentes, respectivamente. Domicílios com 3 cômodos para dormitório representam 12% dos respondentes e mais do que 3 dormitórios são representados por 3%. Os resultados não revelam diferença estatisticamente significativa entre a quantidade de dormitórios na casa e a frequência com que a mãe bate na criança. Os dados mostram, por uma pequena diferença, que mães cujas moradias tem 3 dormitórios são as que mais batem, embora a maioria das mães cujas moradias tem 1 e 2 dormitórios também batam na criança. As mães cujas moradias têm dois dormitórios são as que menos batem, embora seja maioria, uma vez que 70% dessas mães batem na criança (Figura 14).
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Figura 14: Frequência com que a mãe bate, por quantidade de dormitórios na casa
Existência de iluminação na rua e frequência com que a mãe bate Na maioria das ruas onde estão localizadas as moradias dos adultos respondentes têm iluminação, apenas 23% moram em ruas sem iluminação. Embora os resultados não confirmem estatisticamente uma diferença entre a existência de iluminação na rua onde mora a mãe com a frequência com que ela bate na criança, os dados mostram uma pequena diferença indicando que as mães cujas ruas tem iluminação batem menos na criança do que as mães cujas ruas não têm iluminação. Em ambos os casos, a maioria das mães bate na criança. Porém, enquanto 69% das mães cujas ruas têm iluminação batem na criança, um pouco mais (75%) das mães cujas ruas não têm iluminação batem na criança. A soma das parcelas daquelas que batem “sempre”/“quase sempre” não varia, 14% nos dois casos, com ou sem iluminação nas ruas. A diferença pode ser percebida entre as mães que batem “às vezes” e “raramente” (Figura 15).
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Figura 15: Existência de iluminação na rua com a frequência com que a mãe bate
Grau de satisfação com a iluminação na rua e frequência com que a mãe bate Menos da metade dos respondentes (44%) estão satisfeitos com a iluminação da rua onde moram e 33% acham que a iluminação é ruim. Embora os resultados não confirmem diferença entre o graus de satisfação com a iluminação da rua e a frequência com que a mãe bate na criança, os dados mostram que as mães satisfeitas com a iluminação batem menos na criança do que as mães insatisfeitas com a iluminação. Em ambos os casos a maioria das mães bate na criança, no entanto, enquanto 68% das mães satisfeitas com a iluminação da rua bate na criança, entre as mães insatisfeitas, essa parcela é um pouco maior (73%)(Figura 16).
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Figura 16: Grau de satisfação com a iluminação na rua com a frequência com que a mãe bate
Tipo da rua e frequência com que a mãe bate Embora os resultados não confirmem uma diferença estatisticamente significativa, há uma pequena diferença entre o tipo de rua e a frequência com que a mãe bate. Os dados mostram que mães que moram em ruas que passam carros batem menos na criança, embora ainda seja a maioria, enquanto mães que moram em escadarias e beco sem saída batem mais. Enquanto 22% e 23% das mães que moram em escadaria e becos sem saída nunca bateram na criança, 33% e 35% das mães que moram em ruas onde passam carros e vielas onde passam motos e pedestres, batem na criança (Figura 17).
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Figura 17: Tipo de rua com a frequência com que a mãe bate
Tipos e frequência do castigo praticado pelos adultos Mais da metade dos adultos respondentes se dividem entre dois tipos de castigos que praticam contra as crianças de até 8 anos, a saber: “deixar a criança sem o que ela gosta” (35% dos adultos) e “deixar a criança sentada num canto” (21%). O restante dos adultos se dividem entre a prática de alguns outros tipos de castigos, sendo cada um deles praticado por ao menos 3% dos respondentes. Alguns dos castigos, embora praticados por 1% ou menos dos adultos, se destacam pelo nível de violência, como por exemplo “colocar a criança com o rosto virado para a parede” (1% dos adultos), “trancar a criança no banheiro” (0,6%) ou na cozinha (0,1%), “colocar a criança ajoelhada no chão” (0,2%) ou “deixar a criança sem amamentar” (0,1%)(Figura 18).
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Figura 18: Tipos de castigos e frequência com que são aplicados
Tipos de castigo praticados pelos adultos e sexo da criança Tanto meninas quanto meninos são colocados de castigo pelos adultos. Alguns tipos de castigo são um pouco mais praticados contra meninos e outros são praticados mais contra meninas, sendo que alguns poucos são exclusivos de meninos ou meninas. Os dois tipos de castigo mais frequentes (“deixar a criança sem o que ela gosta” e “deixar sentada num canto”) são praticados tanto contra meninos quanto contra meninas. Pouco mais da metade dos adultos (53%) que deixam a criança sem o que ela gosta o fazem com meninos, enquanto o restante daqueles que aplicam esse tipo de castigo (47%) o fazem contra meninas. Da mesma forma, 52% dos adultos que colocam a criança sentada num canto o fazem com meninos, enquanto o restante daqueles que aplicam esse tipo de castigo (48%) o fazem com meninas. Entre os tipos de castigo mais violentos, as vítimas se dividem entre meninos e meninas. Trancar no banheiro foi aplicado somente aos meninos, enquanto trancar na cozinha e deixar sem amamentar foi aplicado somente às meninas. Entre os adultos que deixaram a criança com o rosto virado para a parede, a maioria o fez com os meninos (62%) e 38% daqueles que aplicam esse tipo de castigo o fizeram com as meninas. Entre os adultos que colocaram a criança ajoelhada no chão, 50% o fez com meninos e os outros 50% o fizeram com meninas (Figura 19).
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Figura 19: Tipos de castigos e frequência com que são aplicados a meninos e meninas
5.3. Chance de crianças serem vítimas de violência A análise que segue é realizada a partir do conjunto de informações obtidas das favelas Minha Deusa, Mangueirinha (Duque de Caxias), Morro da Formiga, Parque Maré, Vila Cruzeiro e Morro dos Macacos empregadas numa análise de regressão. O objetivo da análise é apresentar resultados e informações para todo o conjunto de favelas que foram analisadas em separado. Vale ressaltar que à semelhança da análise realizada separadamente para cada favela, a preocupação aqui também será descrever que variáveis poderiam estar associadas ao aumento ou redução da violência, seja ela física ou psicológica. O objetivo na maior parte das aplicações com microdados em análise de regressão visa investigar a relação entre uma variável dependente (Yi, em nosso caso: bater, gritar ou colocar de castigo) e um vetor de variáveis explicativas ( xi' , aqui: idade, escolaridade, etc.). Embora existam inúmeros modelos que podem ser utilizados nessa análise, a preferência pelo uso de um Modelo de Escolha Discreta se deve em grande parte às características observadas na amostra dos dados em que a opção por bater, gritar ou colocar de castigo pode ser entendida como sendo resultado da escolha feita pelos adultos (pai, mãe e avó) dentre outras alternativas, como a de não cometer violência
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física ou psicológica. O modelo procura identificar as principais características associadas aos indivíduos (adultos, ao domicílio e à comunidade) que estão diretamente e indiretamente envolvidas na possibilidade de exercer a violência. Em linhas gerais, o Modelo de Escolha Discreta pode ser visto como um modelo em que a variável dependente é binária e que a realização dessa variável pode ser interpretada como sendo o resultado de uma escolha individual entre duas alternativas: cometer ou não a violência. Os Modelos de Escolha Discreta têm sido desenvolvidos para gerar modelos de probabilidades discretas baseadas na maximização da utilidade. Aqui, utilidade pode ser entendida como uma satisfação obtida ao optar por uma escolha, gerando o maior nível de satisfação para o indivíduo que faz a escolha. Com o auxílio desse modelo é possível estimar parâmetros de uma função de utilidade observando escolhas feitas por diferentes indivíduos. No caso da escolha ser binária é comum a estimação de um modelo Probit ou um modelo Logit. A diferença desses modelos está no termo de distúrbio aleatório que pode assumir uma distribuição de probabilidade normal ou logística. No presente estudo a estimação será realizada considerando os modelos Logit. Considerando que o termo de distúrbio, εi, tem uma distribuição logística, então a função de probabilidade condicional do modelo Logit é dada por:
Pr( y i = 1 | xi' ) = G ( xi' ) =
exp( xi' β ) 1 + exp( xi' β )
(1)
Em que G( . ) é a função densidade acumulada de uma distribuição logística; yi assume valor de 1 se bater (no caso de violência física) e 0 caso contrário; xi' é um vector de variáveis explicativas relacionadas ao indivíduo, a demografia, o status socioeconômico e local de residência. Antes de apresentar os resultados gerados para o modelo de escolha discreta para a variável violência física (na sequência para a violência psicológica) é importante fazer algumas considerações acerca de como foi construída a variável dependente, Yi.
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Além disso, antes de apresentar os resultados para o modelo de escolha discreta para a variável violência física (na sequência para a violência psicológica) é importante fazer algumas considerações acerca de como foi construída a variável dependente, Yi. O Quadro 2 abaixo mostra que as informações sobre bater compreendem as cinco alternativas: “sempre”, “quase sempre”, “às vezes”, “raramente” e “nunca”. Como as quatro primeiras opções implicam em bater, mesmo que seja raramente, optou-se por construir a variável bater como sendo a soma das quatro primeiras opções: “sempre”, “quase sempre”, “às vezes”, “raramente”, ao passo que não bater seria a opção “nunca”. Proceder dessa forma nos permite tornar binária a variável bater. Assim, nossa variável dependente, Yi, assume o valor “um” (1) se a escolha observada corresponde a uma dessas alternativas (“sempre”, “quase sempre”, “às vezes”, “raramente”) e “zero” (0) caso contrário. O Quadro 3 faz uma descrição da variável dependente a ser utilizada na análise de regressão para o conjunto de informações das seis favelas.
Quadro 2: Frequência com que a mãe, pai e avó bate na criança
Opções Sempre Quase sempre Às vezes Raramente Nunca
Frequência 57 41 301 108 337
Percentual 6,75 4,86 35,66 12,80 39,93
Acumulado 6,75 11,61 47,27 60,07 100,00
Quadro 3: Frequência com que a mãe, pai e avó bate na criança
Opções Bater: Yi = 1 Não bater: Yi = 0
Frequência 507 337
Percentual 60,07 39,93
Acumulado 60,07 100.00
O mesmo procedimento foi empregado para realizar a análise da violência psicológica, ou seja, para “colocar de castigo” e para “gritar”. Os Quadros 4 e 5, a seguir, descrevem a variável dependente a ser utilizada na análise de regressão para violência psicológica.
Quadro 4: Frequência com que a mãe coloca de castigo
Opções Colocar de castigo: Yi = 1 Não Colocar de castigo: Yi = 0
Frequência 565 279
Percentual 66,94 33,06
Acumulado 66,94 100.00 46
Quadro 5: Frequência com que a mãe grita com a criança
Opções Gritar: Yi = 1 Não gritar: Yi = 0
Frequência 626 218
Percentual 74,17 25,83
Acumulado 74,17 100.00
Feitas as considerações acerca da variável dependente, é necessário mencionar qual o procedimento adotado na seleção das variáveis explicativas que compõem o modelo. O procedimento é padrão em análise de regressão. Faz-se o uso de teste de hipótese e análise da significância estatística, e critérios de informação. Serão apresentados os resultados a partir da razão de chance, definida aqui como sendo a probabilidade da ocorrência de um evento (bater) dividida pela probabilidade de não ocorrência do mesmo evento (não bater). A razão de chance é uma forma simples de interpretar os resultados gerados a partir do modelo de escolha discreta e útil para “explicar” o comportamento da violência física ou psicológica. Como as razões de chances são construídas a partir das probabilidades, o seu sinal será sempre positivo. Por isso, é importante olhar para o sinal da estatística Z que permite saber a direção da relação entre as variáveis. Outra forma de ver essa relação entre as variáveis é observando os valores da razão de chances. Valores acima de “um” (1) estão associados ao aumento da chance em ocorrer a violência física ou psicológica, enquanto os valores abaixo de um estão associados à redução na chance de ocorrência de violência.
5.3.1. Violência física: bater O Quadro 6 faz uma descrição das variáveis utilizadas na análise de regressão da violência física e também da psicológica. As variáveis foram agrupadas segundo o comportamento da criança, as características da mãe, as características do domicílio e da comunidade.
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Quadro 6: Descrição das variáveis utilizadas na análise de regressão para violência física e psicológica
Variável
Teimosia Comportamento “mexer em coisas” Criança agride os outros Dormir só
Mãe Ensino primário incompleto mãe Mãe ter idade 35 a 39 Mãe bebe na presença da criança Mãe trabalha Número de crianças Renda do pai sustenta lar Domicílio com três cômodos Adulto que grita com adulto na frente da criança Beneficiário de bolsa família Tomar café com os pais Almoçar com a criança
Ter energia elétrica em casa
Tempo com filho Iluminação na rua
Assaltos
Descrição da variável Comportamento da criança Binária: assume valor um se a criança se comporta mal sendo teimosa e zero caso contrário Binária: assume valor um se a criança se comporta mexendo em coisas e fazendo bagunça, e zero caso contrário. Binária: assume valor um se a criança se comporta mal “agredindo os outros” e zero caso contrário Binária: assume valor um se a criança dorme sozinha e zero caso contrário Características da mãe Binária: assume valor um se a pessoa é mãe e zero caso contrário Binária: assume valor um se a pessoa é mãe tem ensino médio incompleto e zero caso contrário Binária: assume valor um se a pessoa é mãe e tem idade de 35 a 39 anos e zero caso contrário Binária: assume valor um se a pessoa é mãe bebe na presença da criança e zero caso contrário Binária: assume valor um se a mãe trabalha e zero caso contrário Domicílio Número de crianças no domicílio Binária: assume valor um se a renda do pai sustenta o lar e zero caso contrário Binária: assume valor um se o domicílio possui três cômodos e zero caso contrário Binária: assume valor um se adulto grita com adulto na presença de criança e zero caso contrário Binária: assume valor um se o domicílio recebe o benefício de bolsa família e zero caso contrário Binária: assume valor um se a criança toma café com os pais e zero caso contrário Binária: assume valor um se os pais almoçam com a criança e zero caso contrário Binária: assume valor um se tem energia elétrica em casa com registro junto a Companhia de energia e zero caso contrário Binária: assume valor um se o responsável (mãe, pai ou responsável) fica no período da manhã, tarde e a noite todos os dias com a criança e zero caso contrário. Binária: assume valor um se há iluminação em frente ou próximo da casa e zero caso contrário Violência na Comunidade Ficar sabendo de pessoas que são assaltadas na comunidade – frequência
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O Quadro 7 apresenta os resultados encontrados na análise de regressão para o conjunto de favelas do Rio de Janeiro. A análise que segue toma como base o sinal do coeficiente estimado, a significância estatística (Estatística Z) e a razão de chances. Em virtude do tamanho da amostra utilizada na análise de regressão ser pequeno, o nível de significância considerado na análise será de 15%. No grupo relacionado ao comportamento da criança, a variável “Dormir só” é binária e assume valor um se a criança dorme sozinha e zero caso contrário. Pode ser observado que o coeficiente estimado para a variável “dormir só” apresenta uma relação positiva e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência física aumenta quando a criança dorme sozinha. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência física aumenta em 94% quando a criança dorme sozinha. A variável “Criança agride os outros” é binária e assume valor um se a criança se comporta mal agredindo os outros, e zero caso contrário. O resultado mostra que o coeficiente estimado apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência física aumenta se a criança agredir os outros. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência física é 2,19 vezes maior quando a criança se comportar mal agredindo os outros.
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Quadro 7: Razão de chances para variável dependente “bater”
Variável Dormir só Criança agride os outros Comportamento “mexer em coisas”
Razão e chance Estatística Z Comportamento da criança 1,94 3,890 2,19 3,130
Assaltos
0,000 0,002
2,34 Características da mãe 2,88 1,98
2,510
0,012
4,250 2,000
0,000 0,046
1,91 0,68 Domicílio 1,15 0,51 0,61
2,790 -1,560
0,005 0,119
1,410 -3,820 -2,080
0,157 0,000 0,038
2,92 1,49 3,21 Comunidade 1,23
6,270 2,090 3,260
0,000 0,037 0,001
2,010
0,045
Mãe Mãe ter idade 35 a 39 Mãe bebe na presença da criança Ensino primário incompleto mãe Número de crianças Renda do pai sustenta o lar Domicílio com três cômodos Adulto que grita com adulto na frente da criança Beneficiário de bolsa família Tomar café com os pais
P-value
A variável “Comportamento mexer em coisas” é binária e assume valor um se a criança se comportar mexendo em coisas e fazendo bagunça, e zero caso contrário. Pode ser observado que o coeficiente estimado apresenta uma relação positiva e é estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que a probabilidade da ocorrência de violência física aumenta quando a criança se comporta mexendo nas coisas ou fazendo bagunça. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência física é 2,34 vezes maior quando a criança se comporta mexendo em coisas e fazendo bagunça. No grupo com as características da mãe, a variável “Mãe” é binária e a categoria de base para fins de comparação é não ser mãe (podendo ser pai ou avó). O resultado mostra que o coeficiente estimado apresenta um sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), o que sugere que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência física é positiva. Pela razão de chance observa-se que a chance de uma
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criança sofrer violência física é 2,88 vezes maior quando comparado com o fato de ser pai ou avó. A variável “Mãe ter idade 35 a 39” é binária e assume valor um se a mãe se encontra no intervalo indicado e zero caso contrário. É importante observar que os coeficientes estimados para essa variável são comparados com uma categoria de base que é a de ter idade entre 17 a 19 anos. Verifica-se que o coeficiente da variável “Mãe ter idade 35 a 39” anos apresenta significância estatística. Observa-se que o sinal da estatística Z para o coeficiente é positivo, indicando que à medida que aumenta a idade a probabilidade de ocorrer a violência física aumenta em relação à categoria de base, ter idade 17 a 19. As razões de chance para ambas as variáveis sugerem que a chance de ocorrer a violência física aumenta em 98.0% na medida em que a mãe tem idade entre 35 a 39 anos. A variável “Mãe bebe na presença da criança” é binária e assume valor um se a mãe bebe na presença da criança e zero caso contrário. O resultado mostra que o coeficiente apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que à medida que a mãe beber na presença da criança aumenta a probabilidade de haver violência física. A razão de chance calculada mostra que a chance da criança sofrer violência física aumenta 91,0% se a mãe beber bebidas alcoólicas na presença de crianças. A variável “Ensino primário incompleto da mãe” é binária e assume valor um se a mãe possui a faixa de escolaridade indicada e zero caso contrário. O coeficiente estimado deve ser comparado com a categoria base que é ser analfabeta. O coeficiente estimado para a variável “ensino primário incompleto da mãe” possui sinal negativo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade da criança sofrer violência física é menor quando a mãe é mais escolarizada. A razão de chances mostra que a chance de uma criança sofrer violência física diminui em 68,0% se a mãe possui ensino médio. No grupo das características do domicílio, a variável “Número de crianças” apresenta um coeficiente positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência física é positiva. A
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razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência física aumenta em 15,0% se o número de criança aumentar no domicílio. A variável “Renda do pai sustenta o lar” é binária e assume valor um se a renda do pai sustenta o lar e zero caso contrário. O resultado mostra uma relação negativa e um coeficiente estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que os lares em que a renda do pai é a principal fonte de renda, a probabilidade de ocorrer violência física é menor. A razão de chances mostra que a chance de uma criança sofrer violência física é menor em 51,0% na medida em que o pai sustenta o lar. A variável “Domicílio com três cômodos” é binária e assume valor um se o domicílio apresenta três cômodos e zero caso contrário. A categoria de base para fins de comparação é ter apenas um cômodo. Observa-se uma relação negativa e o coeficiente estimado é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência física em domicílio com três cômodos é menor em relação a um domicílio com um cômodo. A razão de chances calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência física diminui em 61,0% quando o domicílio apresenta três cômodos em relação a domicílios com apenas um cômodo. A variável “Adulto grita com um adulto na presença de crianças” é binária e assume valor um se o adulto gritar e zero caso contrário. O resultado mostra que o coeficiente estimado é positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que a relação entre a criança sofrer violência em domicílios em que adulto grita com adulto é positiva. Observa-se que a chance da criança ser vítima de violência física é quase três vezes maior quando no domicílio há adulto que grita com adulto. A variável ser “Beneficiário de bolsa família” assume valor um se o domicílio possui esse benefício e zero caso contrário. Nota-se que o sinal do coeficiente estimado é positivo e estatisticamente significativo (estatística Z), mostrando que crianças em domicílios beneficiados com a bolsa família tem maior probabilidade de sofrer violência física. A chance de uma criança sofrer a violência nesse caso aumenta em 49,0% em relação a um domicílio que não recebe o benefício.
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A variável “Tomar café com os pais” é binária e assume valor um se os pais tomam café com a criança e zero caso contrário. O resultado indica que o coeficiente estimado apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que na medida em que aos pais passam a tomar café com os filhos aumenta a probabilidade das crianças sofrerem violência física. A razão de chance mostra que a chance de uma criança sofrer violência física é 3,21 vezes maior se a criança toma café com os pais. No grupo “características da comunidade” a variável “Assaltos” representa a frequência com que se fica sabendo que pessoas são assaltadas na comunidade. O resultado mostra que existe uma relação positiva e o coeficiente estimado é estatisticamente significativo (estatística Z). A razão de chances mostra que a chance de uma criança sofrer violência física aumenta 23,0% na medida em que aumenta a frequência com que as pessoas ficam sabendo que há assaltos na comunidade. Em geral, pela análise realizada constata-se que aumenta a chance de uma criança sofrer violência física quando: 1- Tomar café com os pais (3,21 vezes mais chance de sofrer violência física); 2- Adulto gritar com um adulto na presença de crianças (2,92 vezes mais chance de sofrer violência física); 3- Ser mãe (2,88 vezes mais chance de sofrer violência física); 4- Criança se comportar mal mexendo nas coisas e fazendo bagunça (2,34 vezes mais chance de sofrer violência física); 5- Criança se comportar mal, agredindo os outros (2,19 vezes mais chance de sofrer violência física); 6- Mãe ter idade entre 35 a 39 anos (98% mais chance de sofrer violência física); 7- Criança dormir sozinha (94% mais chance de sofrer violência física); 8- Mãe beber na presença da criança (91% mais de chance de sofrer violência física); 9- Ser beneficiário de bolsa família (49% mais de chance de sofrer violência física); 10- Assaltos na comunidade (23% mais de chance de sofrer violência física);
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11- Número de crianças aumentar no domicílio (15% mais de chance de sofrer violência física). Por sua vez, há uma redução na chance da criança sofrer violência física quando: 1- Domicílio com três cômodos (61% menos chance de sofrer violência física); 2- Renda do pai sustenta o lar (51% menos chance de sofrer violência física).
5.3.2. Violência psicológica: colocar de castigo
O Quadro 8 apresenta os resultados obtidos para a análise de regressão quando consideramos violência psicológica, particularmente a ação de colocar a criança de castigo. Em geral foi possível identificar alguns fatores associados à ocorrência da violência relacionados às características de comportamento da criança, às características da mãe e do domicílio. No grupo relacionado ao comportamento da criança, pode ser observado que o coeficiente estimado para a variável “Dormir só” apresenta uma relação positiva e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência psicológica “colocar de castigo” aumenta quando a criança dorme sozinha. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência psicológica “colocar de castigo” aumenta em 64% quando a criança dorme sozinha. O resultado para a variável “Criança agride os outros” mostra que o coeficiente estimado apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência psicológica aumenta se a criança agredir os outros. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência psicológica “colocar de castigo” é 2,45 vezes maior quando a criança se comportar mal agredindo os outros. A variável “Teimosia” assume valor 1 se a criança se comporta mal sendo teimosa e zero caso contrário. Nota-se que o coeficiente estimado para essa variável é
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estatisticamente significativo (estatística Z). A relação dessa variável com a probabilidade de castigo é positiva sugerindo que a ocorrência dessa violência psicológica colocar de castigo aumenta quando a criança é teimosa. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de ocorrer a violência psicológica “colocar de castigo” aumenta em 51,0% quando a criança é teimosa. No grupo com as características da mãe, o resultado para a variável “Mãe” mostra que o coeficiente estimado apresenta um sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), o que sugere que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência psicológica é positiva. Pela razão de chance observa-se que a chance de uma criança sofrer violência psicológica “castigo” é 2,03 vezes maior quando comparado com o fato de ser pai ou avó. O resultado para a variável “Ensino primário incompleto da mãe” mostra que o coeficiente estimado para a variável “ensino primário incompleto da mãe” possui sinal negativo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade da criança sofrer violência psicológica colocar de castigo é menor quando a mãe é mais escolarizada. A razão de chances mostra que a chance de uma criança ser colocada de castigo diminui em 67,0% se a mãe possui ensino médio comparado à categoria de base. Quadro 8: Razão de chances para variável dependente castigo Variável Dormir só Criança agride os outros Teimosia
Mãe Ensino primário incompleto da mãe Número de crianças Ter energia elétrica em casa Adulto que grita com adulto na frente da criança Beneficiário de bolsa família Almoçar com a criança Tempo com filho Iluminação na rua
Razão e chance Estatística Z Comportamento da criança 1,64 3,05 2,45 3,4 1,51 1,61 Características da mãe 2,03 0,67 Domicílio 1,31 0,45 1,82 1,39 2,84 0,66 1,53
P-value 0,002 0,001 0,108
3,66 -1,86
0 0,063
2,77 -1,850
0,006 0,064
3,67 1,76 2,71 -2,55 2,29
0,000 0,079 0,007 0,011 0,022
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No grupo das características do domicílio, a variável “Número de crianças” apresenta um coeficiente positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência psicológica “colocar de castigo” é positiva. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer essa violência psicológica colocar de castigo aumenta em 31,0% quando o número de crianças aumentar no domicílio. A variável “Ter energia elétrica em casa” assume valor um se tem energia elétrica em casa com registro e zero caso contrário. O resultado mostra que o coeficiente estimado é estatisticamente significativo (estatística Z). A relação entre essa variável e a probabilidade de violência psicológica colocar de castigo é negativa, sugerindo que as casas em que possuem energia elétrica com registro junto à companhia de energia a probabilidade de ocorrer violência psicológica é menor. A razão de chances mostra que a chance de uma criança sofrer violência psicológica colocar de castigo reduz em 45% se a casa tem energia elétrica com registro junto à companhia de energia. A variável “Adulto grita com um adulto na presença de crianças” é binária e assume valor um se o adulto gritar e zero caso contrário. O resultado mostra que o coeficiente estimado é positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que a relação entre a criança sofrer violência em domicílios em que adulto grita com adulto é positiva. Observa-se que a chance da criança ser vitima de violência psicológica colocar de castigo aumenta em 82,0% quando no domicílio há adulto que grita com adulto. Pelo resultado da variável ser “beneficiário de bolsa família” nota-se que o sinal do coeficiente estimado é positivo e estatisticamente significativo (estatística Z), mostrando que crianças em domicílios beneficiados com a bolsa família tem maior probabilidade de sofrer violência psicológica colocar de castigo. A chance de uma criança sofrer a violência nesse caso aumenta em 39,0% em relação a um domicílio que não recebe o benefício. A variável “Almoçar com as crianças” é binária e assume valor um se os pais almoçam com as crianças e zero caso contrário. O resultado indica que o coeficiente estimado apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que à
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medida em que os pais almoçam com as crianças, aumenta a probabilidade das crianças sofrerem violência psicológica. A razão de chance mostra que a chance de uma criança sofrer violência psicológica de colocar de castigo é 2,84 vezes maior quando os pais almoçam com as crianças. A variável “Tempo com filho” é binária e assume valor um se os pais (ou responsável) ficam no período da manhã, tarde e noite todos os dias com a criança e zero caso contrário. A categoria de base para fins de comparação é não ficar esses períodos com a criança. Observa-se que o coeficiente estimado é estatisticamente significativo e possui um sinal negativo (estatística Z), sugerindo que se os pais passam os três períodos com a criança diminui a probabilidade da criança sofrer violência psicológica colocar de castigo. A razão de chances calculada mostra que a chance de uma criança sofrer violência psicológica “colocar de castigo” diminui em 66,0% se os pais ficam com elas no período da manhã, tarde e noite todos os dias. A variável ter “Iluminação em frente ou próximo da casa” é binária e assume valor um se há iluminação e zero caso contrário, tendo como categoria de base para fins de comparação não ter iluminação. Observa-se que o coeficiente estimado é estatisticamente significativo e possui sinal positivo (estatística Z), sugerindo a existência de iluminação pública em frente ou próximo da casa aumenta a probabilidade de ocorrência de violência psicológica “colocar de castigo”. A razão de chance mostra que a chance de ocorrer violência psicológica colocar de castigo em relação à não ocorrência aumenta em 53% na medida em que aumenta a iluminação pública. Em geral, pela análise realizada constata-se que aumenta a chance de uma criança sofrer violência psicológica colocar de castigo quando: 1- Almoçar com as crianças (2,84 vezes mais chance de ser colocada de castigo); 2- Criança se comportar mal agredindo os outros (2,45 vezes mais chance de ser colocada de castigo); 3- Ser mãe (2,03 vezes mais chance de ser colocada de castigo);
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4- Adulto grita com adulto na frente da criança (82% mais de chance de ser colocada de castigo); 5- Criança dormir sozinha (64% mais chance de ser colocada de castigo); 6- Não ter iluminação na rua; 7- Criança se comportar mal: teimosia (51% mais chance de ser colocada de castigo); 8- Beneficiário de bolsa família (39% mais chance de ser colocada de castigo); 9- Número de crianças aumentar no domicílio (31% mais chance de ser colocada de castigo). Por sua vez, há uma redução na chance da criança sofrer violência psicológica quando: 1- Mãe ter ensino primário incompleto (67% menos chance da criança ser colocada de castigo, se comparado com a mãe não-alfabetizada); 2- Tempo com filho (66% menos chance da criança ser colocada de castigo se ficam com a criança no período da manhã, tarde e noite).
5.3.3. Violência psicológica: gritar
O Quadro 9 mostra os resultados obtidos para a análise de regressão quando consideramos violência psicológica, neste caso, “gritar” com a criança. No geral, foi possível identificar alguns fatores associados à ocorrência desse tipo de violência relacionados às características do comportamento da criança, as características da mãe e do domicílio. No grupo relacionado ao comportamento da criança, a variável “Criança agride os outros” mostra que o coeficiente estimado apresenta sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), sugerindo que a probabilidade de ocorrer violência psicológica gritar aumenta se a criança agredir os outros. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência psicológica “gritar” é 2,09 vezes maior quando a criança se comportar mal agredindo os outros.
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A variável “Comportamento mexer em coisas” mostra que o coeficiente estimado apresenta uma relação positiva e é estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que a probabilidade da ocorrência de violência psicológica gritar aumenta quando a criança se comportar mexendo nas coisas ou fazendo bagunça. A razão de chance calculada para essa variável indica que a chance de uma criança sofrer violência psicológica gritar é 2,27 vezes maior quando a criança se comportar mexendo em coisas e fazendo bagunça. No grupo com as características da mãe, o resultado para a variável “Mãe” mostra que o coeficiente estimado apresenta um sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), o que sugere que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência psicológica gritar com a criança é positiva. Pela razão de chance observa-se que a chance de ocorrer violência psicológica gritar com a criança é 2,88 vezes maior quando comparado com o fato de ser pai ou avó.
Quadro 9: Razão de chances para variável dependente gritar Variável Criança agride os outros Comportamento mexer em coisas Mãe Mãe ter idade 35 a 39 Mãe trabalha Renda do pai sustenta o lar Adulto que grita com adulto na frente da criança Beneficiário de bolsa família Tempo com filho
Razão e chance Estatística Z Comportamento da criança 2,09 2,17 2,27 1,82 Características da mãe 2,88 4,68 3,51 2,48 1,03 1,61 Domicílio 1,25 1,81 23,61 2,74 0,69
13,96 3,71 -1,67
P-value 0,030 0,069 0,000 0,013 0,107 0,071 0,000 0,000 0,094
A variável “Mãe ter idade 35 a 39” é binária e assume valor um se a mãe se encontra no intervalo indicado e zero caso contrário. É importante observar que os coeficientes estimados para essa variável são comparados com uma categoria de base que é a de ter idade entre 17 a 19 anos. Verifica-se que o coeficiente da variável “Mãe ter idade 35 a 39” anos apresenta significância estatística. Observa-se que o sinal da estatística Z para o coeficiente é positivo, indicando que à medida que aumenta a idade a probabilidade de
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ocorrer a violência psicológica gritar aumenta em relação à categoria de base, ter idade 17 a 19. A razão de chance sugere que a chance de ocorrer a violência psicológica gritar aumenta na medida em que a mãe tem idade entre 35 e 39 anos. A variável “Mãe trabalha” é binária e assume valor um se a mãe trabalha e zero caso contrário. A categoria de base é não trabalhar. O resultado mostra que o coeficiente estimado apresenta um sinal positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), o que também sugere que a relação entre essa variável e a probabilidade de ocorrer violência psicológica é positiva. Nota-se pela razão de chance que a chance de uma criança sofrer violência psicológica aumenta em 3,00% se a mãe trabalha fora. No grupo com as características do domicílio o resultado para a variável “Renda do pai sustenta o lar” mostra uma relação positiva e um coeficiente estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que os lares em que a renda do pai é a principal fonte de renda, a probabilidade de ocorrer essa violência psicológica é maior. A razão de chance mostra que a chance de ocorrer violência psicológica “gritar com a criança” aumenta em 25% na medida em que o pai sustenta o lar. O resultado para a variável “Adulto gritar com um adulto na presença de crianças” mostra que o coeficiente estimado é positivo e é estatisticamente significativo (estatística Z), indicando que a relação entre a criança sofrer violência em domicílios em que adulto grita com adulto é positiva. Observa-se que a chance da criança ser vítima de violência psicológica é 23,61 vezes maior quando no domicílio há adulto que grita com adulto. O resultado para a variável ser “Beneficiário de bolsa família” mostra que o sinal do coeficiente estimado é positivo e estatisticamente significativo (estatística Z), mostrando que crianças em domicílios beneficiados com a bolsa família tem maior probabilidade de sofrer violência psicológica gritar. A chance de uma criança sofrer a violência nesse caso é 2,74 vezes maior em relação a um domicílio que não recebe o benefício. Para a variável “Tempo com filho” observa-se que o coeficientes estimado é significativo estatisticamente e possui um sinal negativo (estatística Z), sugerindo que se os pais passam os três períodos com a criança diminui a probabilidade da criança sofre violência psicológica gritar. A razão de chances calculada mostra que a chance de uma
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criança sofrer violência psicológica gritar colocar de castigo diminui em 69,0% se os pais ficam com elas no período da manhã, tarde e noite todos os dias. Em geral, pela análise realizada constata-se que aumenta a chance de ocorrência da violência psicológica gritar com a criança quando: 1- Adulto gritar com adulto na frente da criança (23,61 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 2- Idade da mãe entre 35 a 39 anos (3,51 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 3- Ser mãe (2,88 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 4- Beneficiário de bolsa família (2,74 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 5- Criança se comportar mal mexendo nas coisas e fazendo bagunça (2,27 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 6- Criança de comportar mal agredindo os outros (2,09 vezes mais chance de sofrer violência “gritar”); 7- Renda do pai sustenta o lar (25% mais chance de sofrer violência “gritar”); 8- Mãe trabalhar fora (3% mais chance de sofrer violência “gritar”). Por sua vez, há uma redução na chance da criança sofrer essa violência psicológica gritar quando: 1- Tempo com o filho (69% menos chance de sofrer violência “gritar” quando os pais passam os três períodos do dia com a criança).
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6. As crianças por elas mesmas A pesquisa buscou obter a visão das próprias crianças sobre seu cotidiano, destacando-se sua interpretação sobre a família e o local em que mora, além de conhecer a experiência de violência das crianças em casa, na escola e nas ruas das comunidades onde moram. Com esse objetivo foram utilizados dois instrumentos: por um lado, foi aplicado um questionário de vinte perguntas a pelo menos 30 crianças de 6 a 8 anos de idade em cada comunidade; por outro lado, em cada comunidade pesquisada foi realizada uma dinâmica com desenho e discussão com crianças de 5 a 8 anos de idade, reunindo entre 3 a 5 crianças em cada uma das dinâmicas, onde se discutiu temas como família e a comunidade onde vivem. Será apresentado a seguir o resultado dos questionários aplicados às crianças e, posteriormente, serão apresentados um resumo sobre as discussões em grupo realizadas com crianças nas seis comunidades pesquisadas.
6.1.
Violência testemunhada na comunidade pela criança
Na comunidade, avaliou-se apenas a violência testemunhada pela criança (Figura 20). Foram indicados os cinco tipos de violência abaixo para que as crianças apontassem quais elas mais presenciam: Ø Adulto batendo em criança; Ø Adulto batendo em adulto; Ø Adulto dando tiro com arma de fogo; Ø Gente sendo levada pela polícia; Ø Gente vendendo drogas.
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Figura 20: Violência testemunhada pelas crianças na comunidade
Alguém sendo levado pela polícia Esse é o tipo violência mais testemunhado pela criança, considerando todas as comunidades envolvidas na pesquisa do Rio de Janeiro. Mais da metade das crianças entrevistadas (54%) já viu “alguém sendo levado pela polícia” nas ruas da comunidade. Para 16% das crianças essa cena já foi vista “muitas vezes”, 19% já testemunhou “algumas (poucas) vezes” e 18% já viu pelo menos “uma vez” (Figura 20). Portanto, menos da metade das crianças entrevistadas (46%) “nunca” viu “alguém sendo levado pela polícia”. Adulto batendo em crianças Esse é o segundo tipo de violência mais testemunhado pelas crianças na comunidade. Mais da metade das crianças entrevistadas (52%) já testemunhou “adulto batendo em crianças nas ruas da comunidade”, sendo que 21% delas já viu “muitas vezes”, 23% já viu “algumas (poucas) vezes” e 8% já viu pelo menos uma vez (Figura 20). Adulto batendo em adulto Esse é o terceiro tipo de violência mais testemunhado pela criança nas comunidades do Rio de Janeiro. Quase a metade das crianças entrevistadas (48%) já viu “adulto batendo em adulto” nas ruas da comunidade, sendo que 16% já viu “muitas vezes”, 21% já viu
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“algumas (poucas) vezes”, 11% já viu pelo menos “uma vez” (Figura 20). Portanto, pouco mais da metade (52%) das crianças “nunca” viu adulto batendo em adulto nas ruas da comunidade. Venda de drogas Essa é a quarta violência mais vista pelas crianças nas “ruas” da comunidade. Quase a metade das crianças entrevistadas (45%) já viu gente vendendo drogas na comunidade, sendo que um terço delas (32%) já viu “muitas vezes”, 10% já viu “algumas (poucas) vezes” e 3% já viu pelo menos uma vez (Figura 20). Portanto, pouco mais da metade (55%) nunca viu gente vendendo drogas nas ruas da comunidade. Adulto atirando com arma de fogo O tipo de violência menos testemunhado pela crianças nas comunidades do Rio de Janeiro é “adulto atirando com arma de fogo”. Ainda assim, mais de um terço das crianças entrevistadas (37%) já viu. Para 8% das crianças entrevistadas, essa é uma cena que já foi vista por elas “muitas vezes”, para 9% essa cena já foi vista “algumas (poucas) vezes” e para 10%, essa cena de adulto atirando com arma de fogo já foi vista pelo menos uma vez (Figura 20). Embora a maioria das crianças entrevistadas (63%) “nunca” tenha testemunhado “adulto atirando com arma de fogo” nas ruas da comunidade, um percentual bastante significativo (37%) já viu. Os resultados não revelam diferença estatisticamente significativa entre a idade da criança e a frequência com que ela vê adulto atirando com arma de fogo nas ruas da comunidade, assim como não há diferença entre menino e menina na frequência com que já viram. Ou seja, meninos e meninas com 6, 7 e 8 anos já viram na mesma frequência adulto atirando com arma de fogo.
6.2.
Violência na escola
Primeiramente, serão analisados tipos de violência sofrida pela criança na escola, a saber, o quanto o adulto: Ø coloca a criança de castigo;
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Ø grita com a criança; Ø bate na criança.
Posteriormente, serão analisados tipos de violência testemunhados pela criança na escola, a saber: Ø Criança batendo em criança; Ø Adulto batendo em criança; Ø Adulto gritando com criança.
6.2.1. Violência sofrida pela criança (na escola)
Foram sugeridos três tipos de violência na escola para que a criança de 6 a 8 anos indicasse o quanto são praticados contra ela pelo adulto, a saber: colocar de castigo, gritar e bater (Figura 21).
Figura 21: Frequência com que a criança sofre determinados tipos de violência NA ESCOLA
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Colocar de castigo A violência mais sofrida pela criança na escola é ser colocada de castigo. Mais da metade das crianças entrevistadas (51%) já ficou de castigo na escola, sendo que 13% já ficou de castigo “muitas vezes”, 20% já ficou de castigo “algumas (poucas) vezes” e 18% já ficou de castigo pelo menos “uma vez” (Figura 21). Gritar A maioria das crianças (61%) “nunca” foram vítimas dos gritos de adulto na escola. Para 14% das crianças entrevistadas, adultos já gritaram com elas “muitas vezes” e 16% das crianças revelaram que adultos já gritaram com elas “algumas (poucas) vezes”. Para 9% de crianças, adultos já gritaram com elas pelo menos “uma vez” na escola (Figura 21). Bater A grande maioria das crianças (90%) nunca sofreu violência física (bater) do adulto na escola. Algumas crianças (3%) revelaram que adultos já bateram nelas “muitas vezes”, outras (5%) disseram que adultos já bateram nelas “algumas (poucas) vezes” e 1% das crianças já sofreram essa violência física de adultos na escola pelo menos “uma vez” (Figura 21).
6.2.2. Violência testemunhada pela criança (na escola)
A pesquisa investigou também tipos de violência que é testemunhada pelas crianças na escola. Foram abordados três tipos de violência: adulto batendo em criança, adulto gritando com criança e criança batendo em criança. Os resultados revelam que as crianças testemunham mais as cenas de violência de “criança batendo em criança”, assim como “adulto gritando com criança” do que adultos batendo em crianças (Figura 22).
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Figura 22: Frequência com que a criança testemunha a violência na escola.
Criança batendo em criança Essa é a violência mais testemunhada pela criança na escola. A grande maioria das crianças entrevistadas (85%) já testemunhou crianças batendo em outras crianças na escola. A maioria (55%) já viu “muitas vezes”, um quarto delas (25%) já viu “algumas (poucas) vezes” e 5% já viu pelo menos uma vez (Figura 22). Ou seja, apenas 15% das crianças entrevistadas (de 6 a 8 anos de idade) “nunca” viu “criança batendo em criança” dentro da escola. Adulto gritando com criança A metade das crianças entrevistadas (50%) já testemunhou adulto gritando com criança na escola, sendo que 28% delas já viu “muitas vezes” esse tipo de violência com outras crianças e 16% já viram “algumas (poucas) vezes” (Figura 22). Apenas 5% viu pelo menos uma vez e 50% “nunca” viu adulto gritando com criança na escola. Adulto batendo em criança Adulto batendo em criança é a violência menos testemunhada pela criança na escola, a grande maioria (81%) nunca viu. Portanto, 19% das crianças entrevistadas já viram adulto batendo em criança dentro da escola, sendo que 11% já viu “muitas vezes” (o que
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significa 1 em cada 10 crianças), 4% já viu “algumas (poucas) vezes” e outros 4% já viram pelo menos uma vez (Figura 22).
6.3. Violência em casa
Primeiramente, serão analisados três tipos de violência sofrida pela criança em casa, aplicada pelo adulto, a saber: Ø Colocar de castigo; Ø Gritar; Ø Bater. Posteriormente, serão analisados tipos de violência testemunhada pela criança em casa: Ø Adulto gritando com outro adulto; Ø Adulto batendo em outro adulto; Ø Adulto batendo em criança; Ø Adulto gritando com criança.
6.3.1. Violência sofrida pela criança (em casa)
Os resultados revelam que colocar de castigo é a violência mais sofrida pela criança em casa, considerando os dados das 6 (seis) comunidades envolvidas nesta pesquisa (Morro da Formiga, Morro dos Macacos, Minha Deusa, Parque Maré, Vila Cruzeiro e Mangueirinha) (Figura 23). Em seguida, a violência mais sofrida pela criança é a violência física (adulto batendo) e a terceira violência mais sofrida é o “grito” (adulto gritando com elas).
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Figura 23: Tipos e frequência de violência sofrida pela criança em casa
Colocar de castigo A grande maioria das crianças entrevistadas (78%) já foi colocada de castigo pelos adultos em casa, sendo esse o tipo de violência mais sofrida pela criança em casa. Um quarto das crianças entrevistadas (25%) já foi colocada de castigo “muitas vezes” e um terço (33%) já foi colocada de castigo “algumas (poucas) vezes”. Uma minoria (22%) das crianças “nunca” foi colocada de castigo e 19% já foi colocada de castigo pelo menos 1 vez (Figura 23). As crianças de 8 anos são colocadas de castigo mais frequentemente do que as demais (de 6 e 7 anos), por uma diferença estatisticamente significativa (K-W, chi²=4,167, sig=0,124). As crianças de 6 anos são as que menos são colocadas de castigo (Figura 22). Embora a maioria das crianças de 6 anos (67%) tenha revelado que já foram colocadas de castigo pelos adultos em casa, entre as crianças de 8 anos esse índice é ainda maior (90%)(Figura 24).
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Figura 24: Frequência com que a criança é colocada de castigo, por idade
Bater Bater é a segunda violência mais sofrida pelas crianças em casas, considerando dados das 6 (seis) comunidades envolvidas na pesquisa. Para a maioria das crianças respondentes (71%), adultos já bateram nelas, sendo que para 29% delas adultos já bateram “muitas vezes”, para um terço (33%) adultos já bateram nelas “algumas (poucas) vezes”. Para 29% das crianças (de 6 a 8 anos) adultos nunca bateram nelas e para 9%, adultos já bateram nelas pelo menos 1 vez (Figura 23). As meninas (81%) são vítimas da violência física praticada pelos adultos em casa com mais frequência do que os meninos (71%), por uma diferença estatisticamente significativa (K-W, chi²=2,114, sig=0,146) (Figura 25). Quase a metade das meninas (44%) revelaram que os adultos batem nelas “muitas vezes”, enquanto 18% dos meninos disseram que adultos batem neles “muitas vezes”. Além disso, enquanto 18% das meninas nunca sofreu esse tipo de violência física, 29% dos meninos nunca sofreu.
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Figura 25: Frequência com que a criança sofre violência física em casa, por sexo
Gritar Gritar é a violência que as crianças menos sofrem em casa. Contudo, para a maioria das crianças (69%), adultos já gritaram com ela. Para um quarto das crianças (25%) de 6 a 8 anos, adultos batem nelas “muitas vezes”, para 32% das crianças adultos gritam com elas “algumas (poucas) vezes” e para 31% das crianças adultos “nunca” gritaram com elas (Figura 23).
6.3.2. Violência testemunhada pela criança (em casa)
Os resultados revelam que a violência que as crianças mais veem em casa é “adulto batendo em criança” (64%) (Figura 26).
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Figura 26: Frequência com que a criança testemunha atitudes violentas em casa
Adulto batendo em criança Adulto batendo em criança é a violência mais testemunhada pelas crianças nas comunidades envolvidas na pesquisa. A maioria (64%) das crianças (de 6 a 8 anos) já viu adulto batendo em criança dentro de casa, sendo que um terço (33%) das crianças entrevistadas já viu “muitas vezes” e 29% já viu “algumas (poucas) vezes”. Crianças que nunca viram representam menos da metade das crianças entrevistadas (36%)(Figura 26). Adulto gritando com criança Adulto gritando com criança é a segunda violência mais testemunhada pela criança em casa. Assim como as crianças que já viram adulto batendo em criança, a maioria (62%) já viu adulto gritando com criança, contudo, a parcela de criança que viu muitas vezes é um pouco menor, 25%, e 30% já viram “algumas (poucas) vezes” (Figura 26). Menos da metade das crianças entrevistadas “nunca” viu adulto gritando com criança dentro de casa.
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Adulto gritando com adulto A maioria das crianças entrevistadas (59%) “nunca” viu “adulto gritando com adulto” dentro de casa. Pouco menos da metade (40%) das crianças entrevistadas já presenciou essa cena dentro de casa, sendo que para 14% das crianças entrevistadas, adulto grita com adulto “muitas vezes” e para 21% das crianças, adulto grita com adulto “algumas vezes”. Somente 5% das crianças já viu essa cena apenas 1 vez (Figura 26). Adulto batendo em adulto Essa é a violência menos testemunhada pelas crianças em casa, a maioria delas (72%) “nunca” viu “adulto batendo em adulto” dentro de casa. Ainda assim, 28% das crianças entrevistadas já viu, sendo que 7% já viu “muitas vezes”, 13% já viu algumas (poucas) vezes e 3% já viu pelo menos uma vez (Figura 26).
6.4. Discussão com crianças
Para a condução da dinâmica com as crianças utilizou-se uma forma adaptada do método de entrevista episódica, tal como formulada por Uwe Flick. De acordo com Flick (2000), a entrevista episódica está baseada em diversos conceitos subjacentes, cujo ponto em comum reside na utilização de narrativas enquanto uma criação cognitiva que privilegia a realidade do que é experienciado pelos contadores do episódio, possibilitando o acesso às interpretações particulares do entrevistado em relação ao mundo (Jovchelovitch e Bauer, 2000). O método de entrevista episódica supõe um trabalho individual de obtenção de narrativas, portanto a questão de como funcionalizar este método para uma dinâmica em grupo com crianças foi colocada para os pesquisadores. Para tanto, os pesquisadores desenvolveram uma estratégia fundamentada nos princípios básicos da entrevista episódica, como apontados a seguir: a) combinar convites para os participantes narrarem acontecimentos concretos (relevantes ao interesse da pesquisa) com perguntas que buscam respostas mais amplas (definições, argumentações, etc.) de relevância pontual; b) mencionar situações concretas em que se pode pressupor que os entrevistados possuem determinadas experiências; c) formular perguntas suficientemente
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abertas para permitir que os participantes selecionem um episódio ou situação que queiram contar e a forma de apresentação, sendo respeitada a relevância subjetiva da situação para o entrevistado (Flick, 2000). Além disso, foi necessário encontrar um procedimento que respeitasse as formas de acesso ao conhecimento episódico próprios da criança, ou seja, que pudesse fornecer vias de acesso mental coerentes com o estado emocional, social e cognitivo típicos desta etapa do desenvolvimento. Tal como adaptado por Peter Kuhn (2003), o método de entrevista episódica para crianças foi precedido de uma atividade de desenhos temáticos, tomados como ponto de partida para a produção de narrativas e discussão em grupo. Os pesquisadores pediram que cada criança produzisse dois desenhos, um abordando “o lugar onde mora” e outro a “família/cuidadores”. À medida que o trabalho de campo foi se desenvolvendo, a equipe pode perceber que não havia a necessidade do pedido pela produção de duas imagens em separado. Além disso, era frequente a reclamação das crianças sobre estarem cansadas ou ficarem muito impacientes na produção da segunda representação, fazendo com que o tempo disponível para a finalização da dinâmica não fosse suficiente. Por isso, em algumas comunidades as temáticas foram apresentadas em conjunto e as crianças ficaram livres para produzir um ou dois desenhos, de acordo com sua própria necessidade. Após a realização das imagens as crianças foram convidadas a se expressarem livremente acerca do material produzido. O primeiro pedido feito pelos pesquisadores foi de que cada criança pudesse contar/descrever o que desenhou e, a partir de seus relatos/descrições, buscou-se gerar narrativas sobre episódios específicos, tendo em mente o princípio de abertura, o que significa fazer intervenções que partam somente do que é trazido por elas, respeitando o vocabulário utilizado, bem como as expressões emocionais adjacentes. Para a análise do material qualitativo utilizamos uma adaptação do método de análise reconstrutiva do discurso, como proposto por Völter e Rosenthal (2008). Este tipo de análise tem como princípios a abertura, a sequencialidade e a reconstrução, e através dele buscamos a reconstrução narrativa de experiências relevantes - positivas e negativas - das crianças, trazendo à tona formas de conhecimento, vivências e interpretações
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individuais e socialmente compartilhadas sobre a família, a moradia, a comunidade, situações de violência, etc. A adaptação dos passos analíticos seguiu as seguintes etapas: a) Seleção dos trechos para análise, seguindo critérios de tipo textual (ênfase em trechos narrativos e/ou diálogos densos), temas (relevantes para a pesquisa) e dados objetivos; b) Sequenciamento (diferenciação de passagens com categorias de tipo textual e mudança de falante) e análise do campo temático (levantamento de hipóteses para trechos fora do contexto do discurso de referência) de cada fragmento. Esta etapa da análise tem por objetivo reconstruir os padrões de argumentação e significação, bem como as narrativas e seu significado para o discurso em sua lógica interna e em seu enquadramento contextual e temático; identificar a quantidade, a forma e os temas de discursos possivelmente paralelos/intercruzados presentes no documento; e desvendar os meios retóricos e linguísticos (metáforas, formas de falar, composições e estrutura temática) do fragmento, a fim de compreender como vai se construindo o discurso. c) Descrição global dos trechos, onde os fragmentos são novamente contextualizados e é apresentado o produto final de análise do discurso e de seus processos sociais relevantes. Durante a discussão com crianças foram sugeridos os temas “família” e o “lugar onde mora”, portanto, temas que remetem imediatamente ao cotidiano das crianças. Ainda que o tema “violência” não tenha sido sugerido, em todas as comunidades o tema aparece de maneira recorrente e intensa, sobretudo referindo-se a tipos de violência sofridos por elas próprias ou que elas tenham presenciado em casa ou nas ruas da comunidade. Em algumas das comunidades a abordagem da polícia é interpretada como um tipo de invasão ou uma arbitrariedade na rotina da vida comunitária. Por outro lado, nas comunidades sem a presença de forças policiais de maneira permanente (UPP), as crianças tendem a se mostrar temerosas por viverem cotidianos com alto grau de incerteza quanto ao conflito armado entre a polícia e pessoas envolvidas no tráfico de drogas. As crianças, sobretudo naquelas comunidades onde não há a presença de UPP, parecem ter incorporado a prática de que agir e falar de forma ríspida e agressiva uns com os outros é uma maneira aceitável e naturalizada de como lidar com a diferença entre elas.
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Morro da Formiga Procurou-se abordar, com as crianças, o local onde moram e suas famílias. Ao retratarem esses temas, as crianças do Morro da Formiga praticamente não mencionaram situações de violência, negligência ou avaliações negativas de moradia e grupo de cuidadores. Ainda que algumas perguntas lançadas pelos pesquisadores pedissem narrativas mais voltadas a estes aspectos, este não foi um tema frequente no grupo. O ponto comum entre os desenhos, e entre grande parte do discurso ligado a eles, é o de retratarem cenas e descrições ideais, ou seja, como cada criança gostaria que fosse o lugar onde mora e a sua família. A ideia de que as crianças olham para o ambiente que as cerca e de que percebem a maneira como outras pessoas olham para estas instâncias, confirma-se aqui. Fica claro que elas respondem aos pesquisadores a partir do ponto de vista de intérpretes críticos, que descrevem sua situação e, em seguida, oferecem uma avaliação e uma descrição de como gostariam, ou de como acham que as coisas deveriam ser para serem melhores.
Figura 27: Lugar onde mora, por Kamilo
Figura 28: A família, por Kamilo
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Figura 29: Lugar onde mora, por Ticiane
Figura 30: A família, por Ticiane
Figura 31: Lugar onde mora, por Carlos
Figura 32: A família, por Carlos
Figura 33: Lugar onde mora, por Manuela
Figura 34: A família, por Manuela
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Morro dos Macacos Na discussão com as crianças, a abordagem da polícia é interpretada como uma espécie de invasão violenta no cotidiano da comunidade. Já a abordagem daqueles envolvidos com tráfico retrata algo que é também muito violento, porém mais naturalizado e integrado às práticas cotidianas. Tais regras de convivência estabelecidas pelo tráfico são, antes de tudo, integradas desde cedo ao dia-a-dia da comunidade e, portanto, suas intervenções parecem representar uma ameaça menor à tranquilidade das crianças. A abordagem policial, pelo contrário, não é uma prática integrada às práticas cotidianas, e parece representar uma ameaça ainda maior à estabilidade, pois vem de fora e não respeita ou apresenta regras que possam trazer segurança à população e, principalmente, às crianças.
Figura 35: Lugar onde mora, por Natan
Figura 36: A família, por Natan
Figura 37: Lugar onde mora, por Arthur
Figura 38: A família, por Arthur
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Figura 39: Lugar onde mora, por Cláudio
Figura 40: A família, por Cláudio
Figura 41: Lugar onde mora, por Bruno
Figura 42: A família, por Bruno
Parque Maré Na discussão com as crianças fica evidente a fragilidade da vida para as crianças, seja em razão da violência, seja pela ausência de figuras importantes pelo distanciamento ou pela morte. As crianças apresentam um cotidiano marcado pelo inesperado, o que causa nelas sensação de estarem à deriva e temerosas pelo que pode vir a ocorrer. Com isso, buscam incorporar os eventos violentos à rotina, “normalizando-os”, com o objetivo de minimizar as sensações de incerteza.
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Figura 43: Lugar onde mora e a família, por Ana Júlia
Figura 44: Lugar onde mora e a família, por Nathália
Figura 45: Lugar onde mora e a família, por Marcelo Figura 46: Lugar onde mora e a família, por Otávio
Vila Cruzeiro Na discussão com as crianças sobressai a ênfase dada por elas sobre suas responsabilidades nas atividades domésticas, reivindicando para si uma posição de neutralidade nos conflitos familiares apontados por elas. Ao mesmo tempo, as crianças acentuam o sentimento de insegurança na comunidade, dadas as diversas situações de violência que, de alguma maneira, parecem estar incorporadas à rotina dessas crianças.
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Figura 47: Lugar onde mora, por Aline
Figura 48: A família, por Aline
Figura 49: Lugar onde mora, por Pedro
Figura 50: A família, por Pedro
Figura 51: Lugar onde mora, por Bianca
Figura 52: A família, por Bianca
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Minha Deusa Na discussão com as crianças em Minha Deusa, é recorrente que a punição apareça como forma de lidar com limites e conflitos. Durante a realização da dinâmica as crianças apresentaram uma participação caótica, marcada ainda pela falta de espaço para o diálogo e expressão de sentimentos, além de um constante controle punitivo para diversos comportamentos entre os participantes. Parece haver aqui uma convergência entre o comportamento das crianças e os dados encontrados em outros instrumentos desta pesquisa, em que diversas formas de violência são admitidas por pais e crianças como fazendo parte do cotidiano.
Figura 53: Família e lugar onde mora, por Lara
Figura 54: Família e lugar onde mora, por Diego
Figura 55: A família e o lugar onde mora, por Marcos
Figura 56: Família e lugar onde mora, por Leonardo
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Mangueirinha (Duque de Caxias) Na discussão com as crianças fica evidenciado o contexto de extrema violência que marca o seu cotidiano, tanto aquelas praticadas pela polícia, quanto por homens envolvidos com atividades delituosas na comunidade, seja ainda de outras crianças ou mesmo na própria família. Essa situação se agrava quando as próprias crianças expõem a fragilidade da figura paterna na comunidade, permeada pela ausência ou pela dependência química e descontrole, tornando-o fonte de comportamentos violentos que tem como alvo eles próprios como também outros membros da família. Por outro lado, é visível o aprendizado social, já assimilado entre crianças entre 6 e 8 anos, de que a agressão física é uma forma aceitável ou pelo menos recorrente e naturalizada para a solução de conflitos e diferenças entre os moradores da comunidade, o que tende a ser reproduzido por eles, inclusive ao longo da discussão entre eles. Tudo isso se agrava, tendo em vista que a presença policial é claramente identificada com uma presença institucional arbitrária, já que não distinguiria, aos olhos das crianças, entre os que estariam envolvidos com atividades criminosas daqueles que não estão engajados nessas ações, ainda que mantenham vínculos familiares com os primeiros.
Figura 57: Lugar onde mora e a família, por Marina Figura 58: Lugar onde mora e a família, por Laura
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Figura 59: Lugar onde mora e a família, por João
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7. Adolescentes e infância Para compreender a perspectiva de jovens nas favelas pesquisadas, foram conduzidos grupos de discussão sobre os temas infância, violência e vivência na comunidade. A análise desse material qualitativo, para além de identificar os temas tratados e as diferentes posições dentro do grupo, busca compreender “os centros de experiência dos membros do grupo, espaços sociais de experiências conjuntivas” (Bohnsack, 2010, p. 105). Tal conhecimento experimental é vinculado por Bohnsack ao significado documentário que tais saberes locais têm em relação à prática cotidiana dos atores sociais, à maneira como eles se orientam em suas ações. Identificar esse segundo nível de conhecimento, que, em um grupo de discussão, perpassa a maneira como diversos temas são tratados, tornaria claro o enquadramento coletivo de orientação. Os passos da análise necessários para identificar esses diferentes níveis de conhecimento passam por pontos culminantes na dramaturgia do discurso, chamados de metáforas de enfoque, pelo processo do discurso, significando a organização de contribuições, concordâncias e discordâncias entre os participantes e, finalmente, por como os temas se sucedem uns aos outros, seja por desenvolvimentos realizados dentro das discussões entre os participantes ou por sugestão do pesquisador. Além da consideração desses aspectos, o nível de conhecimento experimental, aquele compartilhado préreflexivamente por participantes de um mesmo meio social, está encerrado nos tipos textuais narrações ou descrições. Ainda que a discussão tenha sido conduzida com um roteiro previamente definido, o mais importante foi permitir que os próprios participantes identificassem livremente os temas que mais mobilizavam sua atenção. Dada as particularidades de cada uma das comunidades, destacamos a seguir uma síntese de cada um desses grupos de discussão em cada comunidade:
Morro da Formiga As participantes do grupo de discussão demonstram um relacionamento intenso com suas mães ou avós, que seriam responsáveis pela divisão do trabalho doméstico e até
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atribuição de papéis para os diferentes integrantes do núcleo doméstico. A partir da adolescência, as meninas adquirem um papel chave na condução das tarefas diárias de cozinhar, limpar, especialmente, e também de lavar e passar. Dessa divisão de trabalho estariam praticamente isentos, segundo as participantes, os homens e crianças, que ocasionalmente seriam instigados a participar mas, no caso de não o fazerem, não sofreriam sanção. A transição da infância para a adolescência é uma fase bastante tensa, fortemente marcada por restrições impostas pelos pais, em especial quanto às práticas sexuais das adolescentes, que passam a ser alvo de maior controle. Ao mesmo tempo, é bastante evidente o interesse das adolescentes em não repetir o percurso das mães de maternidade precoce, dando-se preferência em enfocar o desenvolvimento educacional e profissional. Ainda que tenham exposto as restrições do ambiente familiar, as adolescentes apontam que em contraste com o ambiente doméstico, o ambiente da comunidade parece ser percebido constantemente como um ambiente de vulnerabilidade, algo que ainda não foi superado com o advento de novos controles e presença de forças policiais, já que essas teriam instaurado novos tipos de insegurança, até o presente momento. Na discussão com o grupo de adolescentes masculinos, diferentemente do que foi enfatizado pelas meninas, chama a atenção os sentimentos de opressão, abuso e medo em relação sobretudo a policiais, órgãos públicos e governo de uma maneira geral. Uma hipótese plausível para este sentimento generalizado é de que as iniciativas que partem de fora da comunidade – políticas de incentivo ao desenvolvimento cultural, esportivo, econômico e de moradia, políticas de segurança pública para a pacificação da comunidade, entre outras – não estão fundamentadas nas necessidades percebidas pelos jovens. Daí porque estas seriam consideradas inadequadas e até negligentes. Quando confrontados com as atitudes dos policiais da UPP, a violência que era cometida pelo tráfico aparece no discurso como mais tolerável, já que não se colocava acima dos moradores e fornecia uma diferenciação clara entre quem eram os “bons” e os “bandidos”. A relação da polícia com a comunidade dissolve estas diferenças e difunde uma violência menos tolerada, já que vem de fora, construindo uma relação de poder abusiva que diminui os moradores.
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Morro dos Macacos Dois campos destacam-se na discussão com os adolescentes: a violência na comunidade, praticada pela polícia e pelo tráfico, e a violência doméstica e conflitos familiares. Parece existir certa banalização das situações de violência tanto familiares quanto na comunidade como forma de racionalização dos sentimentos de fragilidade e impotência diante destes fatos. Para as adolescentes, a vida no Morro dos Macacos é igualmente marcada pela violência, tanto na comunidade quando em casa, em que figuras masculinas são constantemente associadas ao comportamento abusivo, sejam elas policiais, criminosos, homens da comunidade ou familiares. Essa configuração de gênero parece se dever a aspectos inerentes da vida comunitária bem como a uma experiência de aumento rápido e dramático nas vitimizações de moradores da comunidade por parte de agentes policiais. A figura paterna, por seu lado, se apresenta como distante ou ausente, como fica claro nas narrativas que expressam a frustração das adolescentes com seus pais. Por outro lado, as mães representam forte fonte de orientação para as participantes. Essa ligação convive com um senso de que suas mães, em grande parte devido a circunstâncias desfavoráveis, não podem sempre lhe oferecer o apoio desejado. As figuras femininas, por sua vez, parecem estar mais frequentemente associadas a situações de vitimização e carência.
Parque Maré Para as adolescentes, a vida no Parque Maré é marcado por tentativas de diferenciações de grupos no interior da comunidade, os quais são alvo de relações estigmatizantes. Por exemplo, as meninas identificam o que elas chamam de “crackudos” (usuários de crack) e moradores de algumas partes da comunidade que seriam identificados com as facções dominantes como grupos com os quais elas não pretendem se confundir. Outro aspecto bastante discutido no grupo de discussão com as adolescentes foi o fato da vida cotidiana no interior da comunidade ser desafiada permanentemente por dois tipos de violência: aquela perpetrada pela polícia e a violência vinculada aos conflitos internos do tráfico de drogas, considerada como sendo uma guerra entre facções rivais pelo
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controle da comunidade. Para os adolescentes do Parque Maré, é nítido o sentimento de impotência diante das forças polares: de um lado a polícia e de outro a facção armada que controla o tráfico de drogas na comunidade. Especialmente grave, para os adolescentes que participaram da discussão, é o fato da polícia não fazer distinção entre os moradores da comunidade e aqueles envolvidos em atividades ilícitas do tráfico. Com isso, ganha relevo a estigmatização e negligência sofrida por pessoas externas à comunidade. E, assim como ocorre com as meninas, os adolescentes procuram se distinguir daqueles identificados como sendo usuários de crack. Por outro lado, ainda que não estejam vinculados ao uso ou tráfico de drogas, sentem-se submetidos às regras do tráfico, sobretudo por limitar a circulação deles nas diferentes comunidades do Complexo da Maré.
Vila Cruzeiro Para as adolescentes na Vila Cruzeiro, diferente do que ocorreu nos grupos de discussão nas demais favelas pesquisadas, a discussão é marcada por referências externas à comunidade, como celebridades e padrões de vida da classe média. Com isso, a discussão deixa de estar centrada exclusivamente na relação com suas famílias. O tema da violência gerada pelo tráfico de drogas não é aprofundado e há, inclusive, um certo receio da parte das adolescentes em entrar em detalhes sobre a relação com aqueles envolvidos com o tráfico de drogas. Da mesma forma, a relação da polícia com os moradores é tratada igualmente com superficialidade. Por outro lado, as adolescentes explicitam casos de violência doméstica entre homens envolvidos com o tráfico e mulheres, enfatizando, desta maneira, a sensação de insegurança das adolescentes no cotidiano da Vila Cruzeiro. Uma hipótese plausível para o posicionamento verificado pelas adolescentes é de que a comunidade, que recentemente passou a conviver com a presença da UPP, ainda vive sob o comando do tráfico, mesmo que em menor intensidade se comparado com o período que antecedeu à ocupação da comunidade por forças militares e, posteriormente, por forças policiais, sem que a polícia esteja exercendo todo o controle da comunidade.
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Para os adolescentes da Vila Cruzeiro, em consonância com o que ocorreu com as adolescentes, procuraram se afastar tanto do tráfico quanto da polícia. Os adolescentes não expressam nem aversão, nem compreensão ou complacência com os moradores que optam por atividades criminosas. Da mesma forma que as adolescentes, os adolescentes não se posicionam entre os dois polos presentes ainda hoje na comunidade, ou seja, entre apoiar ou criticar as ações policiais, nem tampouco chegam a censurar ou defender as ações dos agentes do tráfico. Distantes deste dilema, os adolescentes parecem enfatizar o esforço com vistas ao desenvolvimento pessoal e familiar, recebendo da família o incentivo e o suporte para aproveitarem as oportunidades educacionais e profissionais existentes e ao alcance desses jovens. Ao mesmo tempo, também é apontado por esses jovens os constrangimentos domésticos promovidos pelos próprios familiares. Nesse sentido, a família é, a um só tempo, fonte de apoio e ambiente de conflito para os adolescentes.
Minha Deusa Durante a discussão, as adolescentes em Minha Deusa fazem uma apresentação bastante caricaturizada dos moradores da comunidade, como sendo “barraqueiros e favelados”. Contudo, essa pode parecer uma estratégia de ironizar a visão daqueles de fora da comunidade. Seja como for, essa é a maneira como se expressam sobre a comunidade onde residem, destacando de forma intensa e irônica os aspectos negativos da comunidade, em especial a violência, praticada tanto pelos traficantes quanto pela polícia. No caso da polícia, afirmam que a polícia falsificaria flagrantes para incriminar moradores da comunidade por tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, as adolescentes expressam a insatisfação com suas famílias, potencializada pelo conflito em torno à sexualidade de uma das participantes. De uma maneira geral, as adolescentes demonstraram pouca disposição de colaborar com as discussões, diferentemente dos grupos de discussão realizados em outras comunidades.
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Na discussão com os adolescentes da Minha Deusa, os participantes destacaram o envolvimento de familiares com o tráfico de drogas, a violência dentro das escolas e, ao mesmo tempo, apontam a importância de instituições e iniciativas que ofereçam atividades recreativas e culturais, como prática de esporte e formação musical, já que eles próprios são participantes dessas atividades. Mangueirinha (Duque de Caxias) Para as adolescentes, a vida na Mangueirinha é marcada pela violência, criminalidade, abuso policial e precariedade na infraestrutura. Fica evidenciado, na discussão com as adolescentes, que não haveria uma nítida separação entre trajetórias de vida vinculadas à criminalidade e violência daquelas que buscam se afastar deste contexto de atividades ilícitas ou violentas. Isso se dá, por um lado, pela forte familiaridade das adolescentes com um contexto familiar violento e, por outro, por uma forte atração que as jovens teriam por homens envolvidos no crime, inclusive porque elas próprias já apresentam vínculos familiares, pelos irmãos, primos ou mesmo os pais, com atividades vinculadas a atividades criminosas. Essa situação se combina com as condições precárias da comunidade, como a deficiência na infraestrutura, as limitações educacionais e profissionais dos próprios pais. Esta constelação acaba por minimizar a censura que as adolescentes poderiam expressar às restrições impostas por seus pais, seja porque tais restrições não sejam comuns, seja porque as condições sociais de violência e precariedade da comunidades são tão extremas que eventuais insatisfações com a família acabam por ficarem coibidas. Para os adolescentes da Mangueirinha, diferente do que apontado na discussão com as adolescentes, haveria uma recusa mais nítida das trajetórias de jovens envolvidos com criminalidade e violência, ainda que mantenham com estes vínculos de amizade e de parentesco muito próximos. Contudo, há uma repulsa expressa das condições de estigma vivido por esses jovens, cuja manifestação mais contundente viria da violência quase indiscriminada praticada pelas incursões policiais.
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8. Experiências de violência em biografias familiares
Com o objetivo de aprofundar ainda mais o conhecimento dos moradores das comunidades pesquisadas, foram realizadas entrevistas narrativas biográficas com duas gerações de uma mesma família, seguindo a abordagem de condução e análise proposta por Gabriele Rosenthal (1995 e 2008). Foram realizadas trinta e quatro entrevistas narrativas em três das comunidades pesquisadas. Com o objetivo de preservar a integridade e a intimidade dos entrevistados, optou-se por substituir tanto o nome dos entrevistados quanto o nome das comunidades onde residem. O objetivo foi conhecer a estrutura da vida vivida e a maneira como os membros dessas famílias apresentam suas próprias biografias. A análise se ateve a três dessas famílias com o intuito de apresentar três modalidades distintas de experiência de violência de famílias nas favelas pesquisadas. A abordagem de narrativas biográficas, desenvolvida incialmente por Fritz Schütze (1983) e incrementada por Gabriele Rosenthal (1995), permite a construção de tipologias de interpretações do mundo da vida, considerando, neste processo, como os indivíduos, cujas biografias estão marcadas pela experiência direta e indireta com a violência, manuseiam seu “estoque de conhecimento” e, sobretudo, como manuseiam o sistema de relevância e tipificação, elementos-chave no processo interpretativo cotidiano do sujeito (Schütz, 2003; Schutz e Luckmann, 1973), tendo em vista sua importância no processo de tomada de decisão no curso de ação na vida cotidiana. Adotou-se a abordagem da narrativa biográfica proposta por Gabriele Rosenthal 1 (Rosenthal, 1993; 1995; 2006), sobretudo por ser bastante coerente com a sociologia de Alfred Schutz, que permite explorar a perspectiva subjetiva dos indivíduos. Inicialmente, o pesquisador fornece informações gerais sobre o interesse da pesquisa, sem detalhar o problema a ser analisado, uma vez que isso iria contaminar demasiadamente a exposição inicial do entrevistado. Ainda que o interesse aqui seja analisar a experiência com a violência, a primeira questão formulada ao entrevistado é para que ele apresente a sua 1
A abordagem proposta por Rosenthal amplia o que foi proposto por Fritz Schütze, combinando-o com procedimentos analíticos de Aron Gurwitsch e da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann.
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própria vida, não sem antes dizer que o(a) entrevistado(a) conta com o tempo que quiser para fazer a sua exposição. Dessa maneira, o(a) entrevistado(a) poderá selecionar, do seu próprio sistema de relevância, o momento mais conveniente para o início do seu relato biográfico, as fases da vida que deverão merecer maior atenção, os episódios que receberão mais destaque e que serão mais detalhadamente narrados e aqueles sobre os quais serão apresentadas descrições, argumentações ou narrativas propriamente ditas2. Já aqui o indivíduo está fazendo escolhas que estão vinculadas de alguma maneira à ação e à sequência narrativa. E essas escolhas estão fundadas no sistema de relevância, que permite ao indivíduo selecionar os conhecimentos à disposição na medida em que são relevantes para a ação (Nasu, 2008, p. 91). Caso se colocasse ao entrevistado questões explícitas e bem direcionadas estar-se-ia emprestando ao entrevistado o sistema de relevância do pesquisador, tendo como consequência a “colonização” do sistema de relevância dos entrevistados. Seguindo os procedimentos propostos por Schütze (1983) e Rosenthal (2008), enquanto transcorre a entrevista, toda ela gravada em áudio para posterior transcrição, o pesquisador faz anotações detalhadas de todos os temas e eventos apresentados para orientar a formulação de novas questões a partir da própria exposição do entrevistado. Nessa primeira exposição o entrevistado não é interrompido, recebendo apenas, da parte do pesquisador, estímulos não verbais que funcionam como expressões de interesse e atenção para que o entrevistado mantenha sua narrativa a mais longa e detalhada possível. Na segunda fase da entrevista, as questões são formuladas sobre temas diretamente referidos na própria exposição do entrevistado, na ordem em que foram mencionados ou indicados na apresentação inicial e utilizando-se exclusivamente termos adotados pelos próprios entrevistados durante a exposição inicial, com o objetivo de provocar novas narrativas, evitando-se sempre perguntas do tipo “por quê?”, tendo em vista que dessa maneira obter-se-ia quase sempre argumentações ou justificativas e quase nunca narrativas. A manutenção da ordem temática em que os temas foram introduzidos na primeira exposição do entrevistado visa manter a coerência narrativa estabelecida pelo 2
Para uma distinção desses três tipos discursivos ver Rosenthal (2005).
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próprio narrador. Esse retorno às questões ou temas mencionados funciona ao mesmo tempo como estímulo à memória do entrevistado, a fim de se obter detalhes das experiências vividas. Apenas em um terceiro momento da entrevista são colocadas questões pontuais. Diferentemente de parte considerável dos procedimentos em outras abordagens qualitativas, aqui a análise tem início com a elaboração de um memorando logo após a realização da entrevista, cujo objetivo é destacar as circunstâncias envolvidas na realização da mesma. É este primeiro documento que serviu para definir quais entrevistas deveriam ser transcritas em sua totalidade. A transcrição das entrevistas se deu seguindo-se o protocolo de transcrição utilizado por Rosenthal (2005), dentre outros, em que são sinalizadas as entonações, pausas, hesitações e outras expressões não verbais do(a) entrevistado(a). Como o objetivo da pesquisa foi investigar as diferentes formas de experiência de violência, optou-se por analisar, em primeiro lugar, aquelas entrevistas que traziam em suas biografias a presença intensa de violência, reproduzida de uma geração a outra. Este tipo de experiência foi contrastada com um outro, em que a experiência de violência de um membro mais velho da família não é transmitida para a geração subsequente. E por último, optou-se por fazer outro tipo de contraste, em que a violência, embora testemunhada na comunidade, não faz parte do processo de socialização familiar. As entrevistas analisadas a seguir procuram dar conta precisamente desta variedade de possibilidades de se vivenciar a vida cotidiana nas favelas pesquisadas relativamente a sua experiência com a violência. Cada uma das entrevistas selecionadas para análise foram transcritas em sua totalidade e submetidas à análise reconstrutiva e seqüencial. A análise reconstrutiva significa que a entrevista não é abordada com categorias pré-definidas, nem submetida a teste de hipóteses formuladas a priori. O objetivo da reconstrução é decodificar tanto o significado da experiência biográfica vivida no passado quanto o significado da apresentação realizada no presente. Com isso, combina-se uma abordagem diacrônica com uma abordagem sincrônica.
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O primeiro passo proposto por Rosenthal concentra-se na análise sequencial dos dados biográficos. A ênfase na sequencialidade pode ser percebida não apenas na utilização em ordem cronológica dos eventos vividos (mencionados na entrevista), mas também no procedimento de buscar o desenvolvimento gradual de um possível modo de ação do(a) entrevisto(a). Segundo Rosenthal (1993, p. 65), essa etapa, no entanto, concentra-se apenas nos dados que podem ser vistos como razoavelmente independentes da interpretação do entrevistado sobre sua própria vida, excluindo assim relatos baseados em sentimentos e percepções do sujeito. Para complementar essa primeira aproximação à biografia em análise, dados do contexto histórico e social em questão são adicionados à cronologia de vida. A partir dos dados biográficos vividos pelo entrevistado, procedese à formulação de hipóteses sobre as possíveis implicações de cada um desses acontecimentos, além de traçar trajetórias plausíveis para os entrevistados. Importante, nesse passo de análise, é vislumbrar quais opções estariam à disposição dos entrevistados, considerando, evidentemente, os constrangimentos e configurações biográficas, além do contexto em que está inserido o/a entrevistado(a). Procedendo desta maneira, evidenciam-se as escolhas possíveis no horizonte do/a entrevistado/a e o percurso vivido ao longo da vida, descartando-se o pressuposto de que haveria algum tipo de determinismo na trajetória de vida. O segundo passo constitui-se da análise do campo temático e, simultaneamente, à identificação dos tipos textuais (argumentação, descrição, narrativas e suas variantes). Em cada entrevista é possível identificar pelo menos um campo temático na exposição inicial do entrevistado, em torno ao qual a biografia se constrói na perspectiva do entrevistado. Nessa fase da análise busca-se identificar o interesse de apresentação do entrevistado, ou seja, a vida narrada. Ao final, os pesquisadores procedem à reconstrução biográfica, distinguindo-se o interesse de apresentação do entrevistado (vida narrada) com o percurso da vida do entrevistado (vida vivida), em que se explicita outras opções que estariam disponíveis. Amplia-se, desta maneira, as possibilidades de compreensão de como a percepção social de eventos é constitutiva da interpretação individual da própria biografia. Foram realizadas 34 entrevistas narrativas biográficas em três das comunidades pesquisadas. Destaca-se a seguir a reconstrução biográfica de dois membros de gerações
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distintas de três famílias diferentes. Estas famílias vivem em três comunidades diferentes do Rio de Janeiro, denominadas por nós de Morro da Azaleia, Ítaca e Comunidade dos Cravos, para preservar a intimidade e segurança dos participantes, cujas entrevistas foram realizadas com consentimento livre de cada um dos participantes.
8.1. Reconstrução biográfica: Maria e Eduarda, mãe e filha em experiências extremas de violência (Morro da Azaléia)
8.1.1. Maria, mãe de Eduarda
1982 é o ano em que, em Belo Horizonte (Minas Gerais), nasce Maria, a segunda filha de Theodora e Francisco, cujas histórias conhecemos muito pouco. Maria, nossa personagem principal e única narradora, concede poucas informações acerca de sua família extensa e, por isso, vemo-nos obrigados e seguir pistas e levantar hipóteses ancoradas no panorama social e político da época, bem como no contexto geral da história que a biografada nos apresenta. Entretanto, muito será possível de se compreender a respeito do restante de sua história, cuja narrativa se torna densa e detalhada à medida que avança temporalmente em uma sincronia cronológica bastante afinada. Sabemos por meio de Maria que seus demais familiares moravam em Belo Horizonte, entretanto, não se sabe há quantas gerações ou se haviam migrado de outras regiões do Brasil ou de Minas Gerais. Não se sabe se os seus pais se conheceram em Belo Horizonte ou em outra cidade natal de ambos. No caso de terem migrado do campo para Belo Horizonte, é possível que vivessem em situação caracterizada por instabilidade financeira e/ou social no local de origem. Por outro lado, não se pode excluir a hipótese de que a família de origem de um dos dois tivesse uma situação econômica mais estável. Chama a atenção a quase ausência de menção de qualquer contato de Theodora e Francisco com seus familiares, o que nos leva a pensar sobre a possibilidade de um rompimento destes com a família extensa: Teria havido um rompimento devido à união
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dos dois não ser desejada? A família de Theodora teria desaprovado sua união com Francisco, fazendo com que ambos decidissem fugir juntos para Belo Horizonte e lá “tentar a vida”? Ou teria apenas acontecido o afastamento geográfico do casal em relação a sua família extensa? Todas estas perguntas partem de um mesmo indício, no qual permanecemos justamente por tornar-se forte à medida que existe uma lacuna na narrativa de Maria em relação à presença de avós, tias, tios ou primos. Outra hipótese é a de que Maria não mencione estes familiares devido ao seu próprio rompimento posterior com a família nuclear, como veremos mais adiante. A partir da reconstrução de sua história de vida, vemos a narração de Maria fazer um salto temporal no qual ela parte de sua lembrança, possivelmente, mais antiga. No ano de 1986, Maria tem quatro anos de idade, mas já há algum tempo – não sabemos quanto – fazia visitas, acompanhada de sua mãe, ao seu pai que estava aprisionado em Belo Horizonte ou na região metropolitana da capital mineira. Nesta época, a família era composta pelo casal e mais três filhos, e podemos imaginar que o aprisionamento do companheiro tenha causado grande estresse para Theodora, marcando um dos importantes momentos de transição da família. O primeiro momento de transição percebido é a própria união de Theodora e Francisco, cujas condições não conhecemos, mas que as hipóteses indicam para algum grau de afastamento de suas famílias extensas, bem como para dificuldades financeiras e o envolvimento de Francisco com a criminalidade. O segundo momento diz respeito ao aprisionamento de Francisco e, consequentemente, a necessidade de Theodora assumir o papel de chefe do lar e de única cuidadora e mantenedora de três filhos. O terceiro momento de transição é a fuga de Francisco do local onde estava preso e seu retorno ao núcleo familiar. De acordo com Coelho (2007), o ciclo de vida familiar é marcado por um constante processo de realinhamento do sistema de relacionamento para dar apoio à entrada, saída e desenvolvimento de seus membros, algo a ser negociado entre as gerações. Estes momentos são chamados por Bowen (apud Coelho, 2007) de momentos de transição, e podem aumentar a ansiedade familiar. Para Carter e McGoldrick (2001), o “fluxo de ansiedade” em um sistema familiar se dá em ambas as dimensões, verticais e horizontais. Mas o que significa dizer isto em relação à família de Maria? Significa dizer, dentre outas coisas, que quando Theodora escolhe se relacionar com Francisco
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mesmo contra a vontade de sua família de origem, se produzem tensões para ambos do casal, bem como a necessidade de que suas famílias de origem se adaptem à nova situação, seja como for. Aparentemente, a tensão causada pelo relacionamento do casal nos sistemas familiares foi tão grande que, apenas através do rompimento dos laços é que foi possível estabelecer a nova configuração. Em relação ao segundo momento de tensão aqui destacado, ou seja, o aprisionamento de Francisco, é possível que um grande tensionamento individual e sistêmico tenha ocorrido, sobrecarregando Theodora e exigindo mudanças nos padrões de interação entre ela e seus filhos, bem como entre ela e seu companheiro, e entre o companheiro e os filhos. O conhecimento sobre como foi o momento do aprisionamento de Francisco, como era o funcionamento familiar antes disso, se existia alguma rede de apoio para ajudar o sistema familiar a se reorganizar, entre outros, não está presente na entrevista cedida por Maria. Porém, algumas informações e hipóteses serão destacadas a este respeito mais adiante. Quando foge da prisão, em 1986, Francisco vai para o Rio de Janeiro, onde aguarda que Theodora chegue com os três filhos para, assim, reunir a família. Algumas hipóteses mostraram-se mais consistentes acerca da motivação de Francisco em ir para o Rio de Janeiro. A primeira delas é de que o pai de Maria possuía contatos na cidade, possivelmente envolvidos com o tráfico, que lhe dariam apoio após a sua saída da prisão. A segunda é de que o Rio de Janeiro representasse uma oportunidade de moradia mais barata e uma possível ascensão na criminalidade, por conta das favelas. A terceira hipótese mais consistente é de que o local representasse uma oportunidade de saída da criminalidade, a necessária fuga da polícia e chance de novas perspectivas de emprego para ele e para Theodora. Cabe lembrar que em 1982 acontece a eleição de Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro e com isso, entra em vigor sua política de despoliciamento das favelas na capital do Estado. Além disso, a candidatura de Brizola trazia um forte discurso em prol do desenvolvimento da educação e para o trabalhador. Era a promessa de um Estado com amplas oportunidades para jovens, para o desenvolvimento econômico de famílias com poucos recursos e a constante mudança urbana afim da inclusão dos recém-chegados. Assim, Maria, sua mãe e os irmãos migram para o Rio de Janeiro em uma situação possivelmente emaranhada: a
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dependência de Theodora em relação ao companheiro, bem como a possível tensão financeira e das relações da mãe com os filhos após a prisão de Francisco. Em sua narrativa, Maria apresenta o momento do retorno do pai como tendo sido vivenciado com grande alegria na época, mas que a expectativa logo se mostrou diferente da realidade. Sua interpretação sobre aquele período quando nos concede a entrevista é a de que seu pai já não estava mais acostumado ao convívio com os filhos e, portanto, não conseguia manter a calma diante de situações corriqueiras e cotidianas referentes à vida doméstica e paterna. Maria, de certa forma, justifica o comportamento agressivo do pai a partir das experiências deste na prisão – a privação do pai do convívio com a família e as experiências terríveis de tortura que vivenciou no presídio – que teriam feito com que ele se portasse de maneira ríspida e mesmo violenta no convívio familiar. O que fica evidente é que Maria vivenciou o retorno do pai com duas importantes mudanças: a ida para o Rio de Janeiro e a constante convivência e exposição das explosões de agressividade como forma de lidar com situações cotidianas dos filhos: só que como ele nunca teve convivência com gente ele achou igual assim né acho:::u a gente um diabo, que criança brinca que criança grita criança corre criança fala e ele num tava mais acos- nunca criou a gente ((mãos batendo)) então pra ele foi ruim, então meu pai qualquer coisa meu pai batia qualquer coisa meu pai batia ele num tinha paciência, minha mãe catou logo serviço de casa de família meu pai ficava fazendo portaria, //E1: hm// por isso que meu pai batia tanto na gente, porque ele não conviveu aquilo daí pra ele era novo, agora com trinta ano eu posso dizer isso, mas quando eu tinha seis ano eu achava que ele era um carrasco que ele um bicho É interessante perceber que a narrativa de Maria pouco oferece sobre a participação da mãe neste momento de transição. A única menção é a de que Theodora buscou trabalho rapidamente na nova cidade, e que enquanto cumpria sua jornada como doméstica e Francisco trabalhava como porteiro, os filhos possivelmente ficavam em uma área próxima ao prédio de trabalho do pai, que também era sua moradia. A partir desta informação, podemos concluir que os três irmãos ficavam sozinhos durante o dia, e cuidavam uns dos outros enquanto os pais trabalhavam. À medida que Maria narra sobre a situação de reenquadramento de seu pai na família, percebemos claramente a surpresa da entrevistada, na época, ao deparar-se com a
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agressividade deste, informação que nos vem pela comparação que ela faz sobre como este a tratava com carinho quando ela o visitava na cadeia e a brusca mudança quando voltam a ter convívio diário. Logo percebemos que estas descrições e relatos são um prelúdio para demarcar em profundidade um fato que seria uma espécie de turning point na narrativa e, talvez, o primeiro ponto de reinterpretação de Maria em relação a sua biografia: Maria tinha seis anos de idade quando Francisco a queima gravemente nas nádegas como punição por ela não ter ainda aprendido o alfabeto. Independentemente de como Maria tenha efetivamente vivenciado tal situação – o que não sabemos ao certo –, sua narrativa evolui de forma a mostrar que a partir daquele momento, ela se tornaria uma agente mais responsiva em relação ao seu meio, buscando formas diversas de, ao mesmo tempo fugir e reaproximar-se daqueles que lhe eram figuras confusas: seu pai e sua mãe. Após ser queimada pelo pai, a resposta de Maria à situação é uma tentativa de afastamento temporário da família. A primeira fuga de casa da entrevistada marca o peso que teve a ação do pai, bem como sustenta a hipótese de que Maria não encontrou suporte da mãe, ou outro parente, diante de seu sofrimento. Entretanto, a suspeita mais consistente não é a de que esta fuga fosse uma tentativa de rompimento definitivo, mas sim a forma encontrada por Maria para tentar despertar a preocupação e o cuidado dos pais para com ela, principalmente da mãe. Maria foge para ser encontrada, deixando um rastro de ausência na esperança de ser desejada, restaurando alguma espécie de melhoria na relação com os pais. O que sustenta esta hipótese de forma mais evidente é o fato de que ela vai para um local próximo de sua casa, onde é logo encontrada e levada de volta à família nuclear: Maria fica nas redondezas de Aurora3 e é encontrada pela filha de um delegado, que procuram seus pais e a levam de volta ao seu encontro. O que vem a seguir mostra que muitas tensões encontravam-se interpenetradas, o que nos ajuda a compreender a dificuldade de descolamento dos personagens de posturas rígidas e agressivas. Parece-nos, com isso, que não havia espaço para que aquela família enxergasse a saída de Maria como uma sinalização de necessidade de ajustes nos comportamentos da dupla parental, já que outras questões - como a tensão da fuga de 3
O nome do bairro foi modificado para evitar identificação da entrevistada.
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Francisco - eram mais imperiosas. No lugar da preocupação, a agressividade e a culpa tornam-se as moedas de comunicação, dando vazão a novas agressões: Maria passa uma noite inteira apanhando por ter fugido e causado uma situação de perigo eminente para o pai, que poderia voltar a ser preso pelo delegado que a traz de volta ao núcleo familiar. Aqui percebemos com mais clareza que o acontecimento marca dois processos muito relevantes nas atitudes conseguintes de Maria: a violência do pai é vista como estranha e inaugural – fortalecendo a hipótese de que anteriormente a dupla tinha pouco contato e, desta forma, as expressões de agressividade do pai eram limitadas -, e de que a hipótese de negligência da mãe aos cuidados e proteção da filha pode ser levantada, já que foi uma vizinha quem cuidou do machucado da menina. Maria deixa um espaço significativo em seu discurso para argumentar a respeito dos cuidados ou falta destes de sua mãe em relação à ferida causada pelo pai, a sua fuga e a posterior surra que leva por ter fugido. As hipóteses mais consistentes indicam que ao negar esta ajuda à filha, Theodora busca manter uma relação harmoniosa com seu companheiro. Se a causa disto seria o medo de ser agredida por Francisco, ou seria pelo medo de que ele a deixasse à deriva com a criação de três filhos, ou ainda por aspectos culturais de dever e obediência ao homem da família, o ponto indiscutível é que, morando no Rio de Janeiro, Theodora já não tinha uma rede familiar extensa a qual recorrer e, portanto, optou em buscar conformidade com o companheiro. Diante da primeira grande agressão do pai contra a filha - a queimadura nas nádegas - 4 muitas possibilidades de ação se estendiam diante da entrevistada. Uma das opções mais evidentes era de que Maria se sentisse acuada e permanecesse passiva diante do medo de novas agressões, entretanto, Maria foge e, de certa forma, nos faz lembrar tanto da hipótese da fuga da mãe de sua família de origem para manter o relacionamento com Francisco, quanto da fuga de Francisco da cadeia. Maria sabe que umas das opções disponíveis para afastar-se de algo que não se quer, é fugir, e é esta a escolha que ela faz. Com isto, não estamos querendo dizer que este raciocínio fez parte da deliberação de Maria, estamos antes falando do estoque de conhecimento disponível a ela por meio de 4
Demarcamos esta como a grande agressão não por sua extensão física ou por acharmos ser esta a agressão mais significativa sofrida pela entrevistada, mas sim porque Maria a marca como um ponto de mudança importante em relação ao seu posicionamento diante da família de origem, além de ser colocada como significativamente agressiva do ponto de vista emocional.
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suas experiências e das experiências das gerações anteriores em sua família, espaços onde esta ação – a fuga – é bastante plausível. Maria, não muito tempo após o retorno, e posterior agressão física como castigo, foge de casa novamente. Desta vez seu afastamento geográfico é mais significativo e outro ator aparece em cena quando ela fala sobre a experiência longe da família. Maria faz contato com garoto na rua - que não sabemos se já lhe era conhecido ou não - que a leva para sua casa no Morro da Azaléia. Na casa do menino, chamado João, Maria passa três meses que descreve como “três meses em que teve mãe”: eu fiquei uma noite inteira com- apanhando do meu irmão, dos meus irmãos, e do meu pai também, e o meu pai era muito ruim na época né, mais medo eu fiquei, com mais raiva eu fiquei e fugi de novo, //E?: hm// só que dessa vez eu fugi- querendo que nunca mais ninguém encontrasse, então na minha cabeça eu inventei que o meu pai e a minha mãe tinha morrido num incêndio, ôh, contei isso pra todo mundo, fugi e vim pra cá pro Morro da Azaléia, mas eu não sabia que tava vindo pra Azaleia, quem me trouxe pra cá foi o falecido João O desenrolar da segunda fuga mostra a diminuição em sua intenção de reatar os laços com a família nuclear, e ao mesmo tempo, sua necessidade de buscar proteção de uma figura ou grupo que lhe passasse segurança e afeto. Enquanto isso, a família de Maria havia se mudado para Pau Ferro por conta da necessidade de Francisco de manter-se escondido da polícia. Estas mudanças serão frequentes no decorrer da história familiar, onde a tensão e a necessidade de peregrinação serão constantes. Maria, após três meses vivendo com a família de João no Morro da Azaléia, aceita, sem fugir ou questionar, que a mãe de João procure por Theodora. Neste sentido, ainda que esta segunda fuga tenha nos mostrado que já havia maior dicotomia sobre o que Maria realmente intencionava ao se afastar dos pais, vemos que persistia latente o desejo de retorno e reconciliação com a família de origem. Entretanto, a tentativa termina de forma marcantemente devastadora para a entrevistada: sua família parece não ter interesse no retorno da filha. O que nos chama a atenção sobre a apresentação da entrevistada acerca deste momento é que, apesar de seu pai ter sido o causador da agressão física que fez com que ela se afastasse de casa, Maria apresenta apenas sua mãe como sendo a fonte de rechaço em relação a seu retorno. Assim, Theodora é figura principal de abandono na
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narrativa da biografada, o que será central para as argumentações futuras que Maria apresentará sobre o que significa ser uma boa mãe, bem como sua auto-apresentação como sendo uma figura materna melhor do que aquela que atribui a Theodora. Nossa entrevistada tem, nessa época, quase sete anos de idade e está há alguns meses afastada da família de origem; mora de favor na casa da família de um menino conhecido e já não tem expectativas de que seus pais, principalmente sua mãe, seja fonte de conforto ou receptividade. Pensamos que, dentre as alternativas disponíveis a ela, ou mesmo às pessoas com quem mantinha convivência, o retorno para a casa dos pais permanecia como uma forte possibilidade. Ainda que no discurso Theodora ou Francisco afirmassem que ela já não era mais bem-vinda, não há evidências que confirmem categoricamente que esta era uma circunstância definitiva. De qualquer forma, a família de João não ocasiona o reencontro de Maria com seus pais, bem como Maria também não busca este retorno. A marca do abandono, possivelmente, não permitia que ela vislumbrasse um retorno “apesar de tudo”, preferindo buscar outros núcleos de apoio. É neste contexto que a narradora vivencia outra profunda mudança e, mais uma vez, uma situação de abandono e negligência: ela é expulsa da família com quem morava no Morro da Azaléia, pois o companheiro da mãe de João já não aceitava sua presença ali. Esta sequência de fatos dá início ao primeiro período de sua experiência como moradora de rua. Dos sete aos oito anos de idade, Maria perambularia nas ruas do Rio de Janeiro, principalmente no entorno de uma praça próxima ao Morro da Azaléia, pedindo esmolas e prestando pequenos serviços para mulheres que faziam compras nas proximidades. Aqui, vemos uma Maria que desenvolve estratégias para sua sobrevivência e manutenção de sua segurança, já que, apesar de passar o período do dia nas ruas do bairro, segue dormindo em lajes no Morro da Azaléia, lugar que já conhecia e poderia ter maior mobilidade e abrigo caso fosse necessário. Assim, subia o Morro à noite, quando as luzes das casas já estavam se apagando e ela poderia escalar até lajes sem ser descoberta; com o raiar do dia, Maria descia para deslocar-se até a praça onde tinha um acordo com um casal de moradores de rua. A narrativa acerca deste casal é uma evidência importante de que Maria conhecia e temia possíveis perigos que a rua e a vida longe de quaisquer cuidadores poderia acarretar, já que entre eles havia a combinação de
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que dariam proteção a Maria enquanto ela pedisse dinheiro e comida no sinal. Em retorno, ela entregaria tal dinheiro ao casal, usuários de drogas e álcool, depois de recebê-lo. Este período, possivelmente, carrega muitas experiências as quais Maria se exime de falar durante sua narrativa. Como ela mesma anuncia logo no começo de sua apresentação, não conseguiria falar de todas as coisas que lhe acometeram, tendo que optar, portanto, por contar aquilo que julga mais relevante. Entretanto, podemos supor que a entrevistada viu, ouviu e sentiu diferentes situações que lhe marcariam para sempre as escolhas e seu posicionamento defensivo em relação ao mundo e, principalmente, às pessoas. Dentre estas diversas vivências as quais Maria não cede espaço em sua entrevista, uma experiência em especial será narrada como tendo grande importância negativa para este período nas ruas, bem como para toda a sua história de vida: Maria é estuprada por um homem aos nove anos de idade. Era noite, perto das 23 horas quando Maria sai do sinal onde pedia dinheiro em busca de um local de acesso a um ônibus que a levasse de volta para o Morro da Azaléia. Não sabemos ao certo porque Maria ainda estava lá neste horário, ou porque estava completamente sozinha, mas ela pede informações a um homem que, de imediato, se oferece para levá-la até o local do ônibus. Em um beco deserto, o homem a ameaça com um canivete para que ela não grite, rasgando suas roupas. Maria tenta reagir, mas é acertada com tapas, até que um soco em seu rosto a deixa desacordada. Maria acorda no dia seguinte, estirada ao chão, ensanguentada, com pessoas ao seu redor e uma ambulância que a leva para um hospital com ferimentos graves. Depois de passar por uma cirurgia, ainda permanece por quinze dias se recuperando no hospital, onde apenas a mulher que a havia encontrado na rua, após o estupro, a visita. Maria não é procurada pelos pais, e não sabemos se ela deu quaisquer informações que pudessem fazer com que a equipe hospitalar os encontrasse. Também não sabemos ao certo como foram vividos estes quinze dias de hospitalização, que espécie de rede de apoio foi mobilizada, ou mesmo se existia o interesse de Maria em encontrar algum conhecido.
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A partir de sua narrativa, a saída de Maria do hospital e posterior escolha em buscar conhecidos em Alameda5, parece-nos bastante solitária. A imagem que nos fica é a de uma menina levantando-se da cama hospitalar após receber alta, despedindo-se dos médicos e enfermeiros e seguindo pela porta de saída sem que fosse interceptada ou ajudada por ninguém. Evidentemente, esta cena nos faz questionar sobre o que realmente teria acontecido naquela época, e ao mesmo tempo, nos mostra que independente de quais eram as condições concretas de sua saída, Maria sentia-se e ainda interpreta aquele momento como de grande peso emocional, solidão e abandono. Em Alameda, Maria é levada a viver com a amiga de uma conhecida sua. Assim, enquanto a dona de casa trabalhava fora, Maria passava os dias cuidando de seu filho pequeno. Na casa, ficavam os dois e o marido da mulher, cujo trabalho era apenas no turno da noite. De acordo com nossa biografada, até aquele momento ela vinha considerando o marido de sua cuidadora como uma figura paterna, alguém que poderia representar, junto a sua mulher, uma referência de cuidado e zelo. O que acontece não está de acordo com as expectativas de Maria, e os sinais mostram que, mais uma vez, Maria sofreria um abuso. O homem, que passava os dias em casa, começa a cada vez mais se insinuar para Maria, até o dia em que a agarra a força e a abusa sexualmente: desta vez, aos 10 anos de idade, ela é estuprada pelo marido da mulher com quem morava a algum tempo, fugindo imediatamente para longe do local. Quando Maria fala sobre este segundo estupro, é perceptível sua tentativa em justificar o porquê de não ter feito nenhum tipo de denúncia, ainda que para algum vizinho, conhecido ou mesmo autoridade. Ela explica que naquela época as coisas eram muito veladas e que, provavelmente, e diferente dos tempos atuais, muitas mulheres e jovens sofreram caladas com diversos tipos de violência. Vale considerar neste contexto de apresentação que, de certa forma, Maria reproduz os comportamentos de fuga anteriormente adotados quando sofreu violência de seu pai, e que faz um contrato de silêncio com seus abusadores, em nome de algo que suspeitamos, pode estar relacionado com seu próprio sentimento de culpa. A fuga é narrada pela entrevistada com muitos
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Assim como todos os demais nomes de bairros ou comunidades que aparecem nas entrevistas, optou-se por substituir os nomes verdadeiros por outros para evitar e identificação da entrevistada.
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detalhes, o que demonstra a grande intensidade e necessidade dela livrar-se daquele contexto abusivo. Depois da fuga, Maria volta para o Morro da Azaléia, passando a viver novamente na rua e dormindo em lajes da comunidade após apagarem-se as luzes das casas. Não temos maiores informações sobre quais foram os fatos ocorridos durante este período, mas sabemos que ela não buscou retornar para sua família ou outra referência adulta, adaptando-se a grupos de crianças e adolescentes também moradores de rua. Maria descreve de forma superficial sua rotina dizendo que tomava banho em um chafariz da praça próxima ao Morro, onde outros moradores de rua também o faziam, e que ao apagar das luzes, subia nas lajes para dormir, buscando se aquecer com jornais ou papelão em dias de frio. Entretanto, destaca-se nesta etapa de sua fala, seu forte posicionamento para dizer que, provavelmente ao contrário de muitas pessoas que conheceu nesta situação, ela nunca havia se envolvido com a criminalidade, nem mesmo feito uso de drogas. Tal posicionamento reafirma a necessidade de Maria em diferenciarse e mostrar que, apesar de todas as situações de pobreza e vulnerabilidade que enfrentou, seu caso é um caso de resiliência em todos os sentidos possíveis. Vale comentar que este interesse de apresentação parece refletir significativamente uma questão que será apresentada mais adiante: o aprisionamento de Maria. Sua fala está profundamente arraigada em torno de uma necessidade de justificar-se e posicionar-se como vítima, o que faz em relação aos fatos de sua infância e adolescência, bem como de suas ações posteriores. Maria sabe que sua prisão é uma espécie de problema quando tenta apresentar-se como vítima e parece-nos que, mais uma vez, a culpa a faz prestar atenção naquilo que poderia condená-la de alguma forma – como a prisão – destacando sua possível crença de que o sofrimento anterior pelo qual passou não tivesse força suficiente para mostrar sua vulnerabilidade. A questão que levantamos neste momento é: Maria ainda mantem-se sobrecarregada de culpa pelo abandono dos pais, pelos estupros, pelas escolhas amorosas? Maria, nos dias atuais, ainda busca resolver internamente o rompimento com os pais e a relação difícil com a mãe, permanecendo em um estado de ambivalência entre um discurso e um estado mental em que reafirma constantemente que suas únicas opções diante das violências e negligência familiar eram sua fuga e afastamento? Neste sentido, Maria assume a responsabilidade e deliberação de suas
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escolhas desde pequena, mas ao mesmo tempo delega ao mundo externo a culpa por ela ter tomado tais decisões. Maria ainda segue por dois anos, dos dez aos doze anos, vivendo de pequenos favores, convivendo com outros moradores do Morro da Azaléia, crianças e jovens de rua, vendo e absorvendo as nuances da comunidade e as formas de sobrevivência possíveis. Neste meio tempo, já por volta dos doze anos, ela passa a frequentar a Casa da Acolhida, local onde ficava durante a manhã e a tarde, e fazia as refeições até o final do dia, quando voltava para o Morro para dormir nas lajes ao anoitecer. Mais uma vez temos poucas informações a respeito de quais teriam sido as intervenções feitas pela equipe da Casa da Acolhida em prol da reinserção de Maria no quadro familiar. Também não sabemos quais teriam sido as possibilidades permitidas por Maria para que alguma coisa fosse feita pela equipe a favor desta reaproximação. A entrevistada, interessada em nos apresentar outro momento que poderia ser visto como de grande transição em sua história, logo introduz uma longa narrativa sobre este período: um certo dia, ao sair da Casa da Acolhida no final da tarde e dirigir-se ao Morro da Azaléia, Maria coloca-se em uma situação de muito risco, fazendo um comentário em público sobre o tráfico - muito ativo no Morro na época - que poderia custar-lhe a vida: eu vinha da casa da acolhida e tinha no rio um tal de Luciano aqui na época, e tinha muita polícia né, daí eu falei dentro da Kombi assim pow pra que tanta polícia? morreu enterra, só mais uma vez, só mais um que=que morreu, ta que tinha um bandido dentro da Kombi eu não sabia, //E?: hm// ai falou ass-- falou pro dono do morro que eu tinha falado que todos os ( ) tinha que morrer, (1) ai foi pior pra mim, ai sim quando eles mandaram me chamar eu corri e fiquei correndo ((estalos de dedos)) até o dia que eu tava subindo da casa da acolhida eles me seguraram me deram um coça lá embaixo (1) antiga associação, e me levaram pra um tal de Bebeto, que (1) me levantou pelo pescoço, me levantou que eu era magrinha me levantou lá em cima, e me chamou de criança abusada que por ele me matava, me mostrou a arma (1) e falou que eu tava de castigo por tempo indeterminado Maria sofre ameaças e é colocada de castigo pelo tráfico, mas ainda assim, acaba circulando pela comunidade, desrespeitando as ordens e despertando a irritação dos traficantes. O discurso da entrevistada sobre este momento apresenta uma importante ambivalência, onde ao mesmo tempo em que se mostra vulnerável, coloca-se como alheia aos perigos que corria ao ignorar as ordens vindas do chefe de tráfico. Assim,
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certa vez escondida na laje de Roberto – um viúvo morador do Morro da Azaléia, cuja casa Maria frequentava escondida para obter alimentos -, ela é procurada e novamente ameaçada de morte pelo tráfico. Roberto, diante daquela situação, mesmo sem ter qualquer vínculo com a menina, decide protegê-la, e assume a responsabilidade de mantê-la em sua casa durante o tempo de castigo determinado por eles, afastando-a da rua até segunda ordem. Com a proteção de Roberto, os traficantes aceitam não levar adiante a execução da menina, desde que ele se comprometesse em mantê-la no castigo pelo tempo por eles determinado. Neste momento, Maria pauta sua apresentação no espanto que aquela atitude de um homem que não era parte de sua família, nem mesmo um conhecido de longa data, lhe despertara. Se na época em que aquilo aconteceu este era o sentimento de que a entrevistada dispunha por Roberto, nos parece menos importante do que destacar a intenção de sua apresentação no presente: Maria constrói todo o seu discurso acerca de Roberto preocupada em mantê-lo longe de suspeitas ou mesmo acusações de que sua história com Maria teria sido, desde o princípio, inadequada ou abusiva. Para Maria, parece ter um peso muito grande que qualquer pessoa coloque em dúvida a importância que Roberto teve e ainda tem em sua vida e na vida de seus filhos. Como veremos a seguir, esta necessidade de “defender a honra” dele vem, possivelmente, desde cedo, já que Roberto passa a fazer parte de momentos chave em sua biografia: é pai de sua primeira filha, assumiu a responsabilidade pelo cuidado de filhos que não eram seus, mas de Maria com outros homens, ajuda a entrevistada em momentos de vulnerabilidade durante e após sua prisão, bem como mantém uma presença constante e afetiva, na medida do possível, na vida de Maria e de seus filhos. Em relação ao período em que Maria passa a ter convivência com Roberto, durante os meses de castigo em que não pode sair de sua casa, pouco sabemos sobre como era sua relação, possíveis desacertos ou construção de intimidade. Maria só é liberta do castigo após cerca de oito meses, quando o Comando Vermelho invade o Morro da Azaléia, desestabilizando o comando da facção em operação na época. A entrevistada vive intensamente o período de “guerra” entre as facções e, mais uma vez, narra com certa visceralidade as sensações atribuídas à experiência de tremores nas paredes da casa devido aos tiroteios na rua, bem como uma conversa que teve com o chefe do Comando
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Vermelho. O período do castigo de Maria, portanto, termina de forma não oficial pela eminente saída da facção em vigência, encerrando também o acordo de Roberto com o tráfico. Roberto já não tinha para com ela nenhum compromisso formal ou obrigação em mantê-la sob sua tutela, o que significava que Maria precisaria buscar alternativas para sua sobrevivência, fosse ainda ao lado de seu protetor, ou em outra circunstância. Sua saída da condição de cárcere domiciliar inaugura, neste sentido, a retomada do temor de, mais uma vez, ficar sem moradia e sustento. Maria conta que, diante da possibilidade de ser expulsa da casa de Roberto, viu como única forma de permanecer residindo na casa, tentar lhe seduzir e induzi-lo a ter relações sexuais com ela. Em seu entendimento, isto lhe daria o direito de permanecer como sua “mulher”. Sua fala apresenta muitos argumentos sobre a falta de outras possibilidades diante do desespero de ter que retornar às ruas, onde afirma que, evidentemente, aos doze anos de idade, se tivesse outra escolha ou mesmo uma família a quem recorrer, jamais tentaria se tornar mulher de um homem de 54 anos, idade de Roberto nesta época. Assim, Maria conta que aproveita um dos momentos em que Roberto estava embriagado, insinuando-se para ele e insistindo que tivessem uma relação sexual, até que ele acaba cedendo. O homem, de acordo com ela, resiste nos primeiros momentos, mas devido a sua intensa embriaguez, e a persistência de Maria, tem relações sexuais com a menina. Temos poucas informações sobre o período após a primeira relação sexual de Maria com Roberto, sabemos apenas alguns poucos detalhes sobre a relação em si e uma consistente argumentação sobre esta ter sido contra a vontade de Roberto. Além disso, Maria preocupa-se em deixar evidenciado que, ao menos nos dias atuais, vê todo o seu relacionamento “conjugal” com ele apenas como um meio de sobrevivência, um instrumento para que ela pudesse garantir seu sustento, e não alguém por quem sentisse mais do que agradecimento e dependência. Maria segue vivendo como companheira de Roberto até que, aos 14 anos de idade, descobre que está grávida de sua primeira filha, a quem chamará de Eduarda. A forma como Maria narra sobre este período mostra que a Eduarda não era esperada e que, possivelmente, despertou sentimentos e reações diversos tanto em Maria, quanto em Roberto e nas pessoas ao seu redor. Maria era uma jovem possivelmente despreparada para ser mãe e, durante a gravidez, é provável que tenha necessitado de ajuda de
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vizinhos e do próprio Roberto para aprender certas questões sobre os cuidados com o bebê e sobre a maternidade em geral. A entrevistada conta em detalhes sobre quando descobriu que estava grávida, evidenciando seu possível despreparo e surpresa ao perceber que seu corpo estava gerando uma criança: Mf: é eu engravidei da Eduarda achei que era um caroço de manga, E1; E2: @1@ Mf: @1@ eu era- é porque eu engoli um caroço de manga carlotinha né, pequeninho o caroço engoli e cheguei em casa dizendo pro R. R. eu engoli um caroço de manga, ele como bebia era muito sacana ele virou pra mim e falou assim MF. vai nascer um pé de manga em você, eu ficava com medo de nascer um pé de manga mermo, E1: @1@Mf: ai foi passando os tempo a minha barriga começou a ficar muito dura, e eu ficava com muita dores né aí fui ao médico aqui no posto de saúde e a doutora constatou que eu tava grávida já de quatro meses, E1: olha, Mf: e eu achando que era um caroço de manga que tava desenvolvendo, quando a doutora me perguntou eu falei, ela falou assim ela falou que que você tem é Mf (?) ai eu falei pra ela assim poxa doutora meu marido falou que ta nascendo um pé de manga na minha barriga, eles riram a beça da minha cara, ai ela falou assim é o seu caroço de manga vai ter nome sobrenome- E1: @1@ Mf: vai ter- daqui a cinco meses tá aqui na terra, ai eu levei um susto fiquei com aquele pânico né, como é que eu ia botar uma criança no mundo com quatorze ano pra quinze Também vemos pela primeira vez com mais clareza o quanto Maria fazia, e ainda faz, uso de sua história de vida difícil para despertar o sentimento de compaixão nas pessoas. Não estamos com isso querendo dizer que Maria intenta manipular outras pessoas, ou mesmo que ela inventa situações que confirmem sua biografia como marcada pelo sofrimento, mas, ao contrário, que significa sua trajetória de forma a atribuir-lhe sentido na vida prática. Nossa percepção está baseada, neste ponto da narrativa, no momento em que Maria conta sobre a conversa que teve com a médica que lhe atendeu quando descobriu que estava grávida de Eduarda. Para que a médica lhe fosse menos impositiva na reprovação de seu relacionamento com Roberto, Maria não hesita em contar a idade que tinha seu companheiro e sua história de vida, ou seja, em como tinha acabado por se relacionar com alguém daquela idade e engravidado tão jovem, causando comoção em quer que estivesse no momento da consulta. Aqui se percebe que a entrevistada já não usa mais o termo “estupro” ou “abuso”, mas passa a posicionar-se, ao menos discursivamente, como parte deliberada do acontecimento da relação sexual com Roberto. Entretanto, oscila sua abordagem de deliberação com outros momentos em que
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narra situações onde sua fragilidade e imaturidade são ressaltadas. Assim como é parte de suas decisões, para ela, estas decisões eram sempre as únicas que poderia ter escolhido, e por isso, mais uma vez, ela era tão ativa nas ações quanto vítima das circunstâncias. Maria, pouco tempo depois do nascimento de Eduarda, separa-se de Roberto em uma situação bastante complexa: eles já não eram mais um casal, mas seguiam vivendo na casa de Roberto com a filha Eduarda, mesmo Maria estando grávida do segundo filho com outro homem. Aqui, algumas possibilidades parecem tornar-se mais evidentes. A primeira é a de que a relação de dependência de Maria em relação a Roberto se manteria ainda por muito tempo. A segunda era de que Maria, possivelmente entrava no período da adolescência e começava, de alguma forma, a buscar por experiências de relacionamentos com pessoas de idade mais próxima a sua, ou mesmo com pessoas que não tivessem ligação com a necessidade de Maria de um abrigo, mas sim com seus desejos e vontades sexuais e afetivas. A filiação de Eduarda com Roberto parece ter sustentado fortemente a situação de coabitação entre eles apesar da separação do casal. Além disso, podemos levantar a hipótese de que Roberto e Maria conseguiram manter uma boa relação apesar do fim da relação conjugal, e que o término em nada tivesse a ver com Maria ter relações com outros homens, ou mesmo com sua segunda gravidez. Não sabemos ao certo, portanto, se a separação dos dois tem relação com um comum acordo de que o relacionamento já não poderia seguir acontecendo – abrindo espaço para os mais variados motivos não necessariamente ligados a problemas concretos -, ou se o fim da relação está efetivamente conectado aos problemas oriundos dos comportamentos de Maria fora do “casamento”, ou ainda, se a gravidez do segundo filho foi justamente a situação que trouxe à tona as relações extraconjugais de Maria e, consequentemente, problemas que só encontraram solução na separação do casal. O que sabemos é que Maria seguiu vivendo com Roberto, Eduarda e, posteriormente, Edson. Os detalhes sobre o estado da relação entre os dois nos é desconhecida, mas presume-se que este foi um período minimamente conturbado. Edson, o segundo filho de Maria, nasce quando esta tinha dezesseis anos. Sua gravidez não era esperada, já que é fruto de uma relação possivelmente fortuita, que não teve duração suficiente para tornar-se formalizada entre os dois. Assim que Maria descobre
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que está grávida, anuncia ao pai da criança, e este aparentemente nega prontamente sua paternidade, bem como não assume o compromisso de registrar e ajudar, ainda que apenas financeiramente, com as despesas do filho. Maria vê-se diante de mais uma gravidez e, pensamos, experiência sentimentos de irritação diante do quadro que se desenhava. Suas opções eram virtualmente limitadas, porém algumas escolhas estendiam-se em seu horizonte: Maria poderia buscar por sua família de origem e tentar reatar a relação com estes, em busca de apoio emocional e financeiro; Maria poderia tentar um aborto – hipótese que, em sua narrativa, ela apresenta como uma alternativa nunca colocada em ação; ou mesmo abrir mão da criança, para adoção ou simplesmente abandoná-la. A entrevistada apresenta em seu discurso como mais uma vez sendo Roberto o grande suporte que encontra em tempos de necessidade. Apesar de Edson ser fruto de um relacionamento externo ao relacionamento dos dois, é Roberto quem ajuda em sua criação e suporte financeiro. Até este momento da reconstrução da biografia, temo falado bastante sobre o personagem de Roberto e a forma como ele passa a fazer parte da vida de Maria. Entretanto, devemos salientar que só conhecemos suas ações através do olhar da entrevistada e daquilo que, após intensiva análise, supomos ser a história enquanto vivenciada por ambos. Evidentemente, muitos questionamentos têm surgido a partir de nossas análises, em especial, sobre esta relação de ajuda que se estabelece e quais seriam as verdadeiras negociações em questão. A palavra “verdadeiras” não intenta ter a significação que o detetive atribui ao seguir as pistas até a “verdade das coisas”, mas sim, a quais seriam os significados latentes na relação que se forma entre eles, quais pontos de suas histórias de vida, atribuições de sentido e estoque de conhecimento convergem para que, em certo ponto de suas trajetórias, seus caminhos se cruzem a ponto de tornarem-se implícitos nas narrativas, ao menos nas de Maria. Ainda que não possamos dar respostas concretas a estas perguntas, perguntá-las, em si, encerra um processo de reflexão importante, do qual, possivelmente, muitas ideias apresentadas aqui, foram resultantes. Seguimos, portanto, com a história de Maria. Após o nascimento de Edson, Maria busca inserir-se no mercado de trabalho, apresentando em sua narrativa que esta era uma exigência de Roberto, como condição para que ele a ajudasse na época de sua segunda gravidez e após o nascimento do filho.
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Aqui reside a questão de se Maria teria buscado trabalho por uma iniciativa autêntica a partir da percepção de que seria necessário alcançar certa autonomia, ao menos financeira, ou se se parte do atendimento a uma exigência externa, a qual lhe parecia necessária na época para manter-se próxima de Roberto. Independente das concretas motivações da entrevistada, é durante esta inserção que Maria conhece um novo parceiro, e que será o pai de sua terceira filha, chamada Eliana. Busquemos, por um momento, trabalhar com a hipótese de que Maria buscava com a geração de renda uma forma de se tornar independente, em algum grau, de outras pessoas: porque, então, suas escolhas acabaram levando-a para uma situação de maior dependência? Grávida de outra criança, Maria vê-se em uma relação em que, de acordo com sua narrativa, parecia-lhe segura e condizente com as expectativas que tinha para um bom relacionamento amoroso. Entretanto, termina seu argumento falando sobre o quanto estava enganada, já que o novo companheiro acabou por mostrar-se dependente de álcool, e pouco interessado em manter-se empregado.
Percebemos na argumentação de Maria a
presença de uma latente necessidade de justificar sua escolha aos entrevistadores, o que significa que ela esforça-se em abster-se de culpa na escolha por este companheiro e pela gravidez não planejada. Enquanto observadores de seus argumentos, não deixamos escapar esta intenção e, buscando ir além, questionamos se à época da relação, havia realmente esta brutal dificuldade em Maria ver diante de si mais uma relação que, inevitavelmente lhe “abandonaria” em algum ponto de sua trajetória, ou a quem ela sentiria urgência em “abandonar”. Outro ponto fundamental diz respeito à própria intenção latente em sua nova gravidez: a recriação dos enlaces de dependência não nos é novidade no estabelecimento relacional de Maria. Porque ela escolhe, dentre as diversas possibilidades de busca por independência efetiva que se estendiam – e aqui não se afirma a possibilidade de concretização desta independência – por revalidar sua condição de dependência? Ainda que esta não nos pareça uma escolha intencional, é inevitável o embate destas hipóteses à luz da teoria sistêmica, já mencionada anteriormente, e a tendência a repetições nos ciclos de vida familiares. Em outras palavras, fazendo uso do conhecimento oriundo da história dos pais de Maria, percebemos que ela concretiza padrões que estão disponíveis em seu arcabouço de conhecimento – e em sua história familiar, permanecendo em uma
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cultura de gênero predominantemente patriarcal, vivenciada por seus pais e talvez, pelas gerações anteriores da família. Não há, contudo, juízo de valor nestas constatações, dito que são hipóteses fortes, mas não determinantes. Além disso, estamos a falar de uma vida situada no tempo e no espaço, e mais, em uma entrevista situada em uma interação específica. Isto implica em ordenar aquilo que é percebido, mas também em levantar hipóteses que façam um contraponto capaz de gerar alternativas interpretativas. Este contraponto extrapola os níveis latentes e parte para a captação de dados sobre as reais possibilidades de Maria buscar caminhos para a independência financeira, dado sua baixa escolarização, a quase ausência de apoio emocional, a ausência de uma rede familiar e suas experiências de abandono sucessivo e possíveis consequências para o desenvolvimento de uma autonomia legítima. Dado o panorama para a contraposição, devemos inserir a informação de que, mais uma vez, não houve a participação do companheiro no registro, criação ou mesmo suporte financeiro de Eliana. Maria conta que esperou fazer dezoito anos para registrar a filha apenas em seu nome, salientando uma intenção em sua apresentação que já foi por nós evidenciada anteriormente: no discurso, existe uma forte tendência de Maria buscar demonstrar sua autonomia, resiliência e, principalmente, sua qualidade enquanto mãe. Eliana nasce quando Maria está com dezessete anos. Os médicos constatam problemas sérios de saúde na menina, cujo pai fazia uso abusivo de drogas, o que possivelmente pode ter representado um efetivo abandono das tentativas de inserção de Maria no mercado de trabalho, bem como uma sobrecarga emocional e concreta com a qual a biografada não tinha condições de lidar naquele momento. Sendo assim, duas hipóteses mais relevantes parecem merecer destaque: em seu discurso, este momento desempenha para Maria a função de legitimar sua força enquanto mulher e mãe, tolerante e capaz de superar adversidades impostas e ininterruptas; para sua vida enquanto trajetória vivida, ele efetiva a sua necessidade de relativa dependência e legitima enlaces que lhe serviam como ponto de segurança – a título de nossa análise, a figura de Roberto desempenha este papel – fazendo alusão àquele pai e àquela mãe que abriram um espaço o qual nunca puderam concretamente preencher, mas que simbolicamente, Maria buscava e ainda busca significar.
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Aos dezoito anos, Maria recebe a notícia do falecimento de seu pai, assassinado por traficantes. A entrevistada anuncia que, naquele ponto de sua vida, saber que seu pai seguia envolvido com a criminalidade foi um choque, já que ela acreditava que ele trabalhava como pedreiro e já não possuía qualquer vínculo com atividades ilegais. Após mencionar a morte de Francisco na entrevista, a biografada segue sua narrativa justamente apontando para seu afastamento da família e, em especial, apresentando justificativas muito ativas sobre o porquê não lhe parecia uma opção retornar ao seio familiar depois de sua fuga definitiva. A morte de Francisco nos parece central no desenvolvimento de sua história em diversos pontos, pois se apresenta substancialmente como um núcleo de vasta reinterpretação acerca das razões pelas quais ela se afastara de casa, e pelas quais não tolerava os comportamentos do pai e da mãe. Mais que um evento concreto de desaparecimento da figura paterna biológica, retrata o ressurgimento deste enquanto figura simbólica confusa, que demanda reinterpretação a fim de orientar a narradora para o futuro e situar-lhe no presente. Em suma, Maria recoloca em foco as negociações simbólicas – interpretativas – em relação a figuras masculinas, paternidade, maternidade e família, tanto em relação a sua família de origem, quanto àquela que, aos dezoito anos de idade, ela já constituiu. Depois do falecimento de Francisco, muitas possibilidades parecem tornar-se evidentes, por exemplo, a suposição de que Maria poderia buscar reatar laços com a mãe, aproximando-se a partir do compartilhamento da perda e ressignificação dos episódios de agressividade do pai e negligência de ambos. Entretanto, temos a informação que mesmo antes da morte de Francisco, Theodora havia retornado para Minas Gerais, tornando mais complexa esta reaproximação com a filha. Não sabemos ao certo que tipo de contato elas mantiveram nesta ocasião, sabemos apenas que o falecimento de Francisco foi anunciada pelo irmão e que, atualmente, Maria não mantém contato frequente com a mãe. Em sua apresentação, é constante a argumentação em prol da afirmação de que ela conseguiu perdoar seu pai, já que ele pediu desculpas por seu comportamento no passado em uma ocasião em que Maria visitou a família após o nascimento de sua primeira filha. Entretanto, devemos situar a entrevista em um dado momento após a morte deste, o que em si carrega um peso importante quando
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ponderamos as razões de Maria tê-lo perdoado e as frequentes acusações em relação à mãe enquanto figura “imperdoável”. Após o nascimento de Eliana e todas as complicações que este acarretou, Maria estava novamente desempregada, necessitando de renda e mantendo-se através do suporte de outras pessoas. É neste contexto em que surge Valdemar, um traficante do Morro da Azaléia, recém-saído da prisão e significativamente mais velho que nossa entrevistada. Maria escuta falarem sobre ele na comunidade: as amigas comentam que ele possuía uma boa renda devido ao tráfico e, aparentemente, nossa biografada imediatamente vê ali uma oportunidade de conseguir o suporte de que necessitava. Mesmo em sua apresentação, Maria deixa evidente que a relação que viria a desenvolver com Valdemar era estritamente baseada em seu interesse pelo conforto e estabilidade que ele poderia lhe oferecer. Valdemar se mostra disposto a ajudá-la com os cuidados que Eliana, a filha mais nova com dificuldades de saúde, necessitava. Assim, Maria dá continuidade ao plano de tornar-se companheira dele, mas enfrenta sérios conflitos com Roberto, que se opõe fortemente às decisões que ela tomava. Nas palavras de Maria: foi quando eu conheci o pai da Elisa (3) ele tinha quarenta e quatro ano eu tava com vinte e três anos, conheci ele o::: mundo da gente é o mundo da ambição né você não tem dinheiro quem tem você quer ((estalos de mãos batendo)) //E?: hm// ter também né, ele era traficante aqui sim, como ele tinha dinheiro pra comprar o leite da Eliana, a Eliana era=era uma criança muito doente com histórico de médicos dela era muito internação que ela teve, e eu não tinha mais emprego por que ainda é difícil ainda mais com criança doente, patrão não quer ficar pagando (1) pra empregada pra poder ficar no hospital com seu filho, fiquei desempregada então conheci ele, ele começou a sustentar a Eliana e eu achei no direito de virar a mulher dele (1) quebrei a cara, fui morar com ele engravidei dele tem a filha chamada Elisa com ele Todo o discurso de Maria sobre este período se constrói de forma a argumentar sobre como esta era uma decisão plausível na época, já que, para ela, ter um emprego estava fora de questão devido aos cuidados que Eliana demandava. Eliana aparece ainda mais significativamente como um meio pelo qual Maria legitima sua necessidade de dependência. Desta forma, Maria escolhe Valdemar com o objetivo concreto de instrumentalizar sua conjugalidade em função de suas necessidades econômicas, e para isso, estava disposta a manter uma relação com um homem que não lhe despertava
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interesse. Quando vemos sua escolha desta forma, parece-nos ainda mais relevante destacar que Maria, ainda que tenha feito tal opção – e talvez a única que vislumbrasse naquele momento – possuía outras alternativas para a superação da condição de vulnerabilidade, mas que por seu estoque de conhecimento oriundo das experiências passadas e presentes, não lhe surgiam como possibilidades. Após quatro anos de relacionamento com Valdemar, Maria, que já havia gerado três filhos e conhecia os sinais que se mostravam no corpo em transformação, descobriu que estava grávida. A visita ao posto de saúde serviria apenas para confirmar aquilo que ela já desconfiava. A gravidez de Elisa, filha de nossa entrevistada com seu companheiro Valdemar, causa mudanças importantes no cotidiano de Maria, já que concretiza a relação que esta estabelecia com o traficante: agora haveria um vínculo vitalício que a ligaria tanto ao companheiro quanto ao tráfico. Assim, ao ser confirmada a gestação ainda inicial, Maria conta a Roberto, com quem ainda morava com os outros três filhos, e este imediatamente rechaça a notícia e ordena que Maria saia de sua casa. A partir da narrativa desta, vemos que não foi uma situação pacífica, já que Roberto teria jogado suas coisas para fora da casa, em oposição àquela relação a qual julgava um erro. Alguns trechos da entrevista de Maria explicitam mais claramente que a relação entre a biografada e Roberto, aos poucos, mostrava-se delicada. Nestes trechos, vemos no excompanheiro de Maria uma figura bastante tutelar e paterna, para quem Maria se comportava como um estereótipo de adolescente rebelde, cujas palavras do pai são sempre motivo de irritação. Maria, agora sem ter onde morar, exerce aquilo que achava ser seu direito enquanto futura mãe de um filho de Valdemar: junta os pertences jogados ao chão, levando-os para a casa do companheiro, a quem logo daria a notícia da gravidez. Ao chegar à casa, Valdemar depara-se com a mudança da companheira, e Maria logo anuncia que está grávida de um filho seu. A narrativa sobre este momento mostra diferentes interpretações atribuídas por Maria aos diferentes atores que, de alguma forma, participavam daquele contexto. Roberto, nas palavras de Maria, não aceitava que ela seguisse com aqueles comportamentos, os quais julgava equivocados, como estar desempregada e manter relação com Valdemar, um traficante que certamente traria problemas futuros a ela. A gravidez vem para complementar este quadro de
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desentendimento entre os dois, cuja relação estava já há algum tempo fragilizada. Valdemar, por outro lado, aparece no discurso da entrevistada como alguém que recebe a notícia da gravidez com ávida felicidade, já que era seu desejo ter um herdeiro. Neste ponto, Maria aproveita a narrativa para incluir argumentações que sustentem sua ausência de desejo por aquela gravidez, bem como para dizer aos entrevistadores o quanto estava ciente de que aquela não era a escolha mais acertada. Mais uma vez vemos uma Maria que se vitimiza, e que apresenta os acontecimentos de sua vida como se estes fossem oriundos de um meio externo para o qual ela não exerce controle: ai Roberto descobriu que eu tava jogou minhas coisas toda pela escada eu tive que catar tudo, ele tava dentro do mato, eu fui na casa dele botei as minhas coisas lá e saí fora ((mão batendo)), depois ele foi atrás de mim não você botou suas coisas lá por quê? eu falei porque o Roberto descobriu que eu tava indo na tua casa, e ele tem duas notícias ruim uma que eu tô sem casa pra morar e outra porque, eu tô grávida, ele ficou todo feliz já falou que era Elisa ah minha Elisa eu num tenho filho então, eu falei é mas filho de bandido é triste né sem pai pra criar ai vai ser mais um pra mim sustentar sozinha, ele disse que num ia que num e tá, no começo né eu pensei que ele ia se regenerar tava assinando a condicional, eu todo mês=de três em três meses ia lá cum ele assinava a condicional, mas tava traficando Em 2006 nasce Elisa, filha de Maria e Valdemar. A menina nasce prematura e com problemas de desnutrição, o que Maria justifica ao dizer que se aborreceu durante a gravidez. Não sabemos ao certo quais foram estes aborrecimentos, mas imaginamos que as questões que envolviam seu companheiro e o tráfico estavam sobrepostas ao seu cotidiano e, portanto, atingiam-lhe ao menos de forma indireta. Após o nascimento de Elisa, Maria decide começar o uso de um DIU, um contraceptivo interno, na expectativa de não ter mais filhos. A respeito disso, pensamos haver algumas hipóteses relevantes para sua vontade de interceptar potenciais gravidezes, das quais a mais relevante parecenos ser de que tinha internamente a crença de que com sua vida estabelecida com Valdemar, e legitimada pela filha Elisa, teria a garantia de garantia de sustento e que jamais precisaria se preocupar em ficar vulnerável novamente. Além disso, vale destacar que Maria apresenta posteriormente em sua fala um retrato cultural que parece vir do tráfico, e que coloca uma estabilidade de relacionamento prevista a partir do momento em que uma mulher se torna companheira de um traficante. Esta estabilidade, ou seja, incapacidade da mulher desvincular-se do companheiro uma vez que estabelecem laços,
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parece fortemente ligada a um sistema de ameaças não necessariamente explícitas, mas que operam em nome de uma necessária fidelidade. A despeito dos conflitos enfrentados com Roberto, Maria permanece ao lado de Valdemar e se integra de forma plena a este título que ela mesma utiliza para si, e para o qual existem regras e comportamentos esperados: Maria é “mulher de traficante”, ou ainda, “mulher de bandido”. No ano de 2006 a polícia invade a casa onde Maria, os quatro filhos e Valdemar viviam, e através de uma busca, encontram a mochila que seria o desencadeador da prisão de Maria: Valdemar já havia sido pego, provavelmente fora da casa; Maria estava em casa e em um dos banheiros, uma mochila com drogas. Maria é presa sob a justificativa policial de que ela estaria envolvida com o tráfico, mas antes é espancada pela polícia na frente de seus filhos, em uma cena de violência física que Maria apresenta detalhadamente, e que envolvia ameaças e tentativa de implantação de evidências que lhe fariam efetivamente ser levada como traficante: Mf: a polícia falou pra mim a polícia da der falou pra mim mulher de bandido mãe de bandido pai de bandido bandida é, e eu só num morri porque eu não segurei a pistola que a polícia queria que eu segurasse, E1: °como assim° Mf: por que eles me botaram na outra casa tinha um quarto nos fundos ele me botaram no fundo e a Eduarda tinha sete anos e o Edson tinha cinco °quanto ano° coisa assim, e eles dois pularam fora da casa, o Edison também ficou do lado de fora da casa então o Edson e as crianças quando foi o Edson num gritou mas a Eduarda gritava mandava me soltar, que eles tavam me batendo na frente das criança, ai tirou os dois lá dentro, mas gritavam, a Elisa num entendia de nada só ria, ainda era um bolão um bolão de criança, num entendia nada ( ), me enfiaram lá no canto da casa e queria por que queria que eu segurasse a pistola na mão, eu num segurava cada vez que eu botava a mão pra trás eles me davam com o cabo do fuzil nos meus peito, eles dizia que eu era muito grande que tinha que apanhar com- você ta grande você ta gorda você ta precisando de apanhar igual homem, sempre ignorância me dava tapa pra lá, tinha um que toda hora ele vinha por trás de mim e dava um telefone ((mão batendo)) , aquilo fazia zummm dentro do meu ouvido, toda hora quando o sangue começou a escorrer que eles pararam de bater, que ai eles ( ) que tinha prejudicado alguma coisa dentro de mim parou de me bater no ouvido, porque no resto do corpo eu fiquei toda marcada
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A narradora justifica a todo o momento que sua prisão seria fruto de uma injustiça, onde os atores envolvidos, cada um à sua maneira, lhe propiciara uma falsa culpa: Valdemar se ausenta de defendê-la quando estão na delegacia, e a polícia, por sua vez, a coloca como participante do tráfico a fim de justificar seu espancamento. Além disso, sua fala vem carregada da preocupação central com a filha Elisa, ainda muito pequena à época da prisão. Tal reafirmação constante em relação à preocupação com Elisa vem, aparentemente, de forma a reforçar sua intenção de apresentação como uma mãe preocupada, cuja vida girava e ainda gira em torno de manter sua família bem cuidada e reunida. Maria deixa claro que tanto o sofrimento em relação à prisão, como a urgência em sair de lá, eram causadas principalmente pelo medo que ela sentia em deixar seus filhos à deriva. Aqui não faremos constatações sobre quais seriam as reais preocupações de Maria por estar presa, já que a prisão em si é uma condição possivelmente assustadora, experiência a qual Maria não tinha passado até aquele momento, e que potencialmente trouxe-lhe insegurança e deixou-a ainda mais vulnerável. Além disso, Valdemar também estava preso e era inevitável que Maria se questionasse sobre como obteria sustento para ela e os quatro filhos, bem como moradia e suporte. Ela havia brigado com Roberto justamente por se envolver com um traficante e agora se via sozinha. Entretanto, seu suporte, como veremos, vem justamente da razão pela qual ela diz ter sido presa, e da pessoa a qual havia lhe alertado sobre os perigos de suas escolhas: do grupo de traficantes remanescentes no Morro da Azaléia e de Roberto. O período na prisão traz para Maria uma reviravolta que se traduz em rearranjos simbólicos e concretos significativos. Além do afastamento dos filhos e da privação de convívio com o mundo externo, Maria vê-se, talvez pela primeira vez, como protagonista daquilo que vinha fugindo tanto em sua apresentação quanto em sua vida vivida: o “ter dado errado”, ou ainda, não ter conseguido, apesar das dificuldades, manter-se longe de “coisas ruins”. Apesar de construir seu discurso em torno de argumentos que buscam lhe isentar desta culpa e mostrar que “o mundo” e as circunstâncias é que lhe fizeram este sabote tão determinante, pensamos que esta experiência marca significativamente seu processo de interpretação biográfica, alertando-lhe acerca de suas escolhas e, talvez, restituindo um respeito em relação ao papel de Roberto em sua vida. Contudo, para que sua saída da prisão seja concretizada,
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Maria aceita a ajuda de advogados enviados pelo tráfico para sua soltura e, após seis meses afastada da vida cotidiana na família e na comunidade, ela é liberada da prisão e volta ao Morro da Azaléia. A saída de Maria da prisão marca um momento de transição importante, onde a necessidade de readaptação lhe é fundamental. A retomada do convívio com o os filhos, da rotina, do planejamento sobre como e onde viveria dali por diante, entre outros. Em um primeiro momento, Maria volta a viver com Roberto, que havia cuidado de seus filhos durante o período em que permaneceu afastada. Seu retorno a esta convivência é marcado por algum grau de sofrimento em ver que as crianças já não lhe reconheciam enquanto mãe, já que eram pequenas quando ela se ausentou e haviam mantido distância por um tempo significativo. Enquanto discurso, Maria mostra sua insatisfação em relação à reação dos filhos, já que seu papel como mãe era o que lhe mantia afastada da culpa que poderia vir a sentir por ter feitos as escolhas que fez: escolheu o que escolheu porque não tinha outra forma de prover o melhor a seus filhos. Além disso, é importante que falemos sobre quais argumentos foram utilizados em nome de sua soltura: todo o discurso de Maria e, possivelmente do advogado que a representava, fazia alusão a suas responsabilidades enquanto mãe de quatro filhos, que necessitavam da presença materna e não poderiam arcar com a reclusão de sua única cuidadora. Maria não foi inocentada do “crime” de associação ao tráfico, mas lhe foi concedida a liberdade por meio de habeas corpus para que retornasse a sua tarefa materna. A recusa das crianças em mostrar imediatamente este reconhecimento causa frustração e acomete Maria ao doloroso processo de ter que acreditar que fez o melhor que podia apesar de tantas dificuldades sem o reconhecimento externo dos filhos. Roberto possivelmente mantinha seu discurso sobre tê-la alertado a respeito das possíveis consequências das decisões que tomou, e seus filhos não lhe deram a confirmação de que necessitava sobre estarem, de alguma forma, agradecidos por todo o sacrifício que fez em nome deles. Falamos, portanto, de mais um processo interno de ressignificação de suas ações e, antes de tudo, de um importante momento de transição familiar, onde Maria precisa revalidar-se enquanto mãe e descobrir novas formas de estar no mundo externo: E1: e você falou que quando é você saiu né da cadeia a Elisa te chamava de tia né? Mf: de tia por que a madrinha que tinha=o Roberto ficou cu
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quando eu fui presa naquele dia mesmo o Roberto ficou com os quatro, depois de uma sema- uma semana a Diana que é madrinha da Elisa né depois que eu saí da cadeia ela batizou ficou ca a Elisa //E1: hm// mas Roberto bebia as cachacinhas e ia lá perturbar a Diana que é xingava a Diana falava que a Diana num sabia cuidar dela num sei o que, a Diana entregou a Elisa pra=pro Roberto mas a Diana todo dia vê a Elisa então a Elisa chamava a Diana de mãe quando ia lá na delegacia chorava que quando me via ficava chorando com medo de mim, tinha pavor de mim, e o Roberto é de pai , //E1: hm// e aquilo ali me doeu muito quando eu saí cheguei em=é eles me saltaram lá da sete duas dez horas da noite então eu cheguei aqui meia noite, meia noite e pouca, que eu cheguei em casa ai eu falei assim vem cá, ai eu acordei tentei acordar todo mundo mas ninguém quis acordar acho que tava todo mundo desmaiado, só quem acordou foi a Eduarda que a Eduarda ficou radiante O plano de dependência de Valdemar havia fracassado, mas a saída de Maria da prisão, através de advogados pagos pelo tráfico, mostrava que uma condição seria parte de suas vivências dali por diante: o tráfico seguiria lhe dando suporte, devido à cultura de fidelidade tanto deste em relação à companheira de um colega de tráfico, quanto desta em relação aos traficantes e a seu companheiro. Isto significava que Maria teria que manter seu relacionamento, ainda que apenas por meio de visitas à prisão, bem como sua ligação, ainda que indireta, com o tráfico da comunidade e seus representantes. Por este motivo, Maria já não podia mais viver com Roberto, mesmo que eles já não mantivessem mais nenhuma relação conjugal. A narradora sabia que isto poderia ocasionar no abandono do suporte do tráfico, e mais do que isso, poderia lhe tirar a vida. Pouco tempo após a sua saída, Maria vai até o tráfico e pede que este lhe forneça alternativa que não a de viver de favor na casa de Roberto, e assim, lhe é concedida uma casa para que more com os quatro filhos e mantenha visitas ao seu companheiro enquanto este está na prisão. O período de mudança para esta casa marca um momento de muita vulnerabilidade financeira e mais um período onde Maria opta por manter-se dependente, desta vez de uma instância que tanto lhe provê, quanto lhe ameaça a vida e a segurança.
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No ano de 2007, após algum tempo vivendo na nova casa, Maria vê-se novamente sem teto para morar com os filhos, já que tem sua moradia tomada por um bandido recémsaído da cadeia, que reivindicava aquela casa como sendo sua. Isto faz com que Maria volte para a casa de Roberto, reafirmando o lado de insegurança que aquela dependência proporcionava junto à promessa de estabilidade: nada era realmente seu. Já na casa de Roberto, Maria decide não permitir que aquela situação siga e escreve um recado para o “dono do morro”, usando justamente da cultura de fidelidade, - o “ser mulher de bandido” e, portanto, não poder morar com o ex-marido - para reconquistar a casa que havia sido cedida a ela. Consideramos, a partir da fala de Maria, que ser “mulher de bandido”, lhe concedia certa autoridade, utilizada sempre que lhe era conveniente, e declinada sempre que buscava se colocar como frágil. Ambas as posturas coexistem em Maria, e parecem ser parte importante das estratégias adotadas por ela ao se colocar no mundo no decorrer de sua história de vida. Maria reconquista a casa com a ajuda do tráfico, que ordena que um “bandido” desocupe o local. Contudo, relata que a antiga dona da casa, que efetivamente detinha o direito sobre a propriedade, volta ao Morro da Azaléia algum tempo depois e tenta reaver o lugar. A biografada conta que mostrou o quanto precisava da casa e sua fragilidade como mãe de quatro filhos, mas que ainda assim a mulher queria reaver o que era seu. Há muitos anos aquela senhora havia ido embora para seguir seu marido que fugia de bandidos a quem havia causado incômodo no Morro; esta mulher apanhava constantemente do marido, mas não quis abandoná-lo e o seguiu durante sua fuga. Assim, a casa foi tomada pelo tráfico, que a utilizava para prostituição e festas envolvendo traficantes e mulheres que lhes serviam para a diversão. Mais uma vez, Maria não esconde em sua narrativa que foi “deixada em paz” devido à intervenção do tráfico - e desta autoridade que lhe era conferida enquanto mulher de traficante: a antiga dona da casa foi alertada de que Maria era companheira de Valdemar, o que acaba causando-lhe medo das consequências que poderia sofrer por conta de sua intervenção na vida de Maria, e faz com que ela não tentasse mais reaver a casa, nem mesmo pedir qualquer valor como aluguel da propriedade. Em meio a este quadro caótico de imprevisibilidade em relação à moradia, a saída recente de Maria da prisão, sua readaptação à convivência com os filhos e a constante
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dependência do tráfico, Edson, agora com oito anos de idade, decide passar a morar com Roberto. Mesmo não sendo seu pai biológico, Edson considera Roberto como uma figura paterna presente e importante, com quem pôde contar durante momentos de intensa instabilidade. Além disso, Roberto provavelmente representava ao menino uma saída eficaz do caos que potencialmente era sua vida com a mãe. Apesar do alcoolismo, Roberto era uma aposta mais segura que a inconstância a que ele estava exposto ao viver com Maria. Não sabemos exatamente quais as circunstâncias da saída do filho da casa de sua mãe, entretanto algumas suspeitas sobre uma possível briga entre ele e Maria, ou mesmo sobre Maria ter providenciado de alguma forma que o filho fosse viver com Roberto, podem ser levantadas a este ponto de nossa análise. Justificamos isto a partir daquilo que até o momento vem sendo constante na linha de ação da entrevistada: seria muito conveniente fazer certo uso do carinho que Roberto e Edson mantinham um pelo outro para manter-se ligada a Roberto e garantir, assim, algum tipo de ajuda dele. Outro ponto que poderia ocasionar nisso seria a necessidade de Maria de diminuir gastos e tempo dedicado aos filhos, delegando a outra pessoa a criação e o sustento de um deles. Evidentemente, em seu discurso, Maria apresenta este momento como um marco do quanto Roberto lhe é importante, bem como para seus filhos; e o quanto o filho, por vontade própria, queria cuidar de Roberto devido a sua idade avançada. Tais colocações são consideradas por nós como estando profundamente ligadas ao interesse de apresentação da entrevistada e, apesar de não sabermos ao certo como foi esta saída do filho de casa, podemos constatar que existiu a delegação da criação de Edson a outra pessoa. É importante que destaquemos esta análise porque, a título de contraste, ela corrobora a ideia de que, em seu discurso, Maria se apresenta como uma mãe que dá conta da criação dos filhos e em momento algum necessita de ajuda externa – a não ser quando é prejudicada pelos outros, injustamente, como no período de seu aprisionamento - mas que em sua história enquanto vida vivida, vemos que sempre houveram certas distribuições de responsabilidade no cuidado para com sua prole, bem como conflitos importantes entre Maria e os filhos. Entre os anos de 2008 e 2009, Maria parece tentar estabelecer-se através do trabalho, passando a ajudar uma vizinha como vendedora em um camelô. No mesmo período, Valdemar consegue a liberdade condicional da prisão e volta para casa. Entretanto, o
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retorno do companheiro logo traria os resultados previsíveis e Maria voltaria a ver-se em uma situação de medo e violência envolvendo o tráfico e a polícia. No ano de 2009, não sabemos exatamente em que período, Maria assiste a polícia invadir sua casa e destruir todos os seus pertences, levando-lhe alguns bens, como celular e dinheiro da Bolsa Família, ameaçando-a de prisão caso não fornecesse a eles uma alta quantia como recompensa por sua liberdade e a de seu companheiro. Maria, diante do eminente perigo de voltar a ser presa, diz à policia que iria buscar a quantia requerida, mas ao invés disso, foge e deixa que o companheiro seja levado, mais uma vez, sob a tutela policial. Vemos aqui uma Maria menos cautelosa em relação às ameaças policiais, menos vulnerável em relação ao mundo externo e intolerante com tentativas de agressões, fossem físicas ou psicológicas. Ao voltar para casa, Maria ainda sofre ameaças da polícia, mas permanece impassível diante dos subornos e acusações. Porém, perguntamo-nos, como ocorre esta passagem, seja vivida ou apenas narrativa, de uma Maria temerosa e vulnerável, para uma Maria que desdenha das ameaças e garantese com o controle relativo da situação? Aqui, é inevitável que situemos nossa personagem no quadro que desenhava à época: Maria tinha, de certa forma, incorporado o status de poder que “ser mulher de traficante” supostamente lhe concedia? Maria sentia-se segura por acreditar estar protegida pelo tráfico que permanecia no Morro? Maria já não acreditava que qualquer consequência a seus atos poderia ser inaugural, já que havia, tantas vezes, passado por situações dramáticas e dolorosas do ponto de vista físico e emocional? Independente do quanto uma ou outra hipótese aproxima-se da verdade, o dado que obtemos é de que o medo de Maria em relação a possíveis consequências oriundas de seus atos já não parecia suficiente para deter possíveis ações que ela poderia colocar em prática e isto, em si, carrega significados de reavaliação moral importantes por parte da entrevistada. Em 2009, diante de mudanças importantes no quadro das políticas públicas de segurança e desenvolvimento orientadas para as favelas cariocas, acontece a instalação da UPP na comunidade onde Maria ainda reside, o que tem influência importante em sua apresentação sobre este período. Sua fala sobre este acontecimento parece vir a serviço de confirmar sua inocência em relação ao envolvimento com o tráfico, bem como de salientar sua vulnerabilidade e resiliência diante de sua história de vida:
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E1: ai foi em dois mil e nove né , Mf: é , ai de- mas uma fui perseguida de novo por UPP ai pra mim dá um basta que quando eu senti que eles tavam querendo vim tirar minha vida eu mesma fui lá falei com a comandante //E1: hm// levei minha identidade meu xerox contei um pedacinho da história né da cadeia de onde pra cá, falei pra ela oh comandante eu fui absolvida então num tem necessidade de ficar me investigando, //E1: hm// eu visito lá mermo, ai mostrei pra ela ela pegou acho que ela investigou lá depois ela falou que a minha que eu tinha contado batia, //E1: hm// que gostou da minha atitude, E1: olha só , Mf: ai passou né, nunca mais me perturbou não, nunca mais ela entrou nos meus caminho, //E1: hm// muito pelo contrário ((bocejando)) eu acho ela muito guerreira, E1: é , Mf: ela sempre falou pra mim eu gosto de você, você é muito guerreira Maria, eu falei assim é cum todos os meus problemas, ela sempre fala comigo, tem um tempão que num vejo ela ai Neste mesmo ano, Maria está trabalhando na Associação Comunitária do Morro da Azaléia, o que não dura muito, mas um trabalho do qual Maria apresenta como causador de grande orgulho e prazer para ela. Ela fala sobre este momento também de forma a salientar que, apesar de não possuir escolaridade, ela foi capaz de superar suas dificuldades e mostrar aos contratantes que ela sabia ler e escrever e prestar um bom serviço como Agente Comunitária. Maria se sente valorizada ao apresentar este trabalho, e mostra que, também nesta situação, fez uso de sua história de vida difícil para conseguir a oportunidade de trabalhar no cargo, apesar da falta de qualificação exigida: Mf: a vida é assim (2) e fui agente, também tinha que ter o segundo grau, //E: hm// ai eu conversei com a assistente social que era a Mariana e conversei com ela falei um pouquinho da minha vida pra ela e falei pra ela Mariana qualquer coisa que botar na minha mão só me mostrar como é que eu tenho que fazer que eu vou executar, ai a Mariana pegou deu um voto de confiança, mandou eu fazer umas pesquisas e pra mim responder, //E1: hm// ela viu que eu respondi faltando uma ou duas letra até quem estuda também falta, que num era pra mim ( ) e ai eu fui um ano e um mês na (cedae), E1: nossa, Mf: quer dizer e fui capaz, que eu tinha que escrever todos os dias, se eu consegui escrever todos os dias então, E1: claro, Mf: entendeu, e reunião onde mandava eu ir chegavam não ela não é burra pra isso, sabe pegar um ônibus sabe saltar sabe ler sabe escrever, entendeu, ai eles me deram essa oportunidade
Não sabemos ao certo quais foram as razões para Maria ter deixado este emprego, nem mesmo o que se passou entre o ano de 2009 e 2011. Sabemos apenas que ela também teve um trabalho na Cedae neste período, mas não sabemos a função ou por quanto
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tempo durou. Pulemos, portanto, para o ano de 2012, mesmo ano da entrevista que Maria, sentada em sua sala - naquela mesma casa cedida pelo tráfico - nos fala que atualmente possui um emprego onde faz limpeza em um hospital. Ela trabalha um dia sim e outro não, o que possivelmente propicia mais convívio com os filhos. Maria fala muito da dificuldade em criar a prole, sobre o salário ser pouco e o trabalho, muitas vezes, humilhante, mas se coloca como alguém que, apesar disso, mantém a família unida e já não depende de outros para sobreviver. Haveria alguma veracidade nesta apresentação de Maria enquanto mulher independente? Haveria em sua vida o lugar central que em seu discurso ela cede para a maternidade? Estas são questões que pouco tem a ver com o objetivo desta reconstrução, mas que nos guiam dentre os descaminhos que surgem entre a vida como narrada e a vida como vivida. Com isso, queremos dizer que a importância das perguntas reside muito mais no próprio trabalho analítico do pesquisador em construí-las, do que necessariamente em respondê-las. O que podemos pensar, por certo, é que Maria nos concede a entrevista partindo de um sistema de relevância que almeja colocá-la neste tipo ideal de pessoa que sofreu muito, mas lutou, apesar de tantas adversidades, para ser o melhor que poderia e, no caso de Maria, melhor que seus pais e, especificamente, que sua mãe. Percebemos durante a análise que as escolhas da entrevistada, em muitos e variados pontos, convergem para uma repetição daquilo que foi vivenciado e escolhido por sua família de origem. É no discurso, apenas, que Maria busca argumentos que sustentem que, apesar das semelhanças, marcas profundas e significativas a diferenciam de seus pais, validando sua saída de casa como necessária para o estabelecimento de formas mais adaptadas de viver sua trajetória. Em suma, constatamos, no momento presente, uma Maria que ainda busca convencer-se através do convencimento de outros, que suas escolhas eram as únicas possíveis e que, apesar de todo o sofrimento oriundo destas, tudo pode e deve ser justificado por sua história de vida.
Síntese da reconstrução biográfica de Maria Maria nasce em 1982, em Belo Horizonte, em um contexto de crise econômica e crescente urbanização. É a segunda filha, e possui um irmão três anos mais velho. É
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sabido que demais familiares moravam em Belo Horizonte, mas não se sabe há quantas gerações ou se haviam migrado de outras regiões do Brasil ou de Minas Gerais. Não se sabe se os pais se conheceram em Belo Horizonte ou em outra cidade natal de ambos. No caso de terem migrado do campo para Belo Horizonte, é possível que vivessem em situação caracterizada por instabilidade financeira e/ou social. Por outro lado, no caso de migração, essa pode ser uma estratégia de mobilidade socioeconômica. Não se pode excluir a hipótese de que a família de origem de um dos dois pais tenha uma situação econômica mais estável. Não se sabe qual o tipo de contato os pais de Maria mantinham com seus respectivos familiares, e nem se houve alguma ruptura com estes, em decorrência da união dos dois. A saída do pai de Maria da prisão e retorno para casa marca uma postura violenta deste com os filhos, inclusive com Maria, e pela consequente negligência da mãe, que mantinha uma postura indiferente às situações de agressividade do marido em relação à filha. O primeiro grande marco de rompimento da entrevistada com a família aparece quando esta tinha 6 anos de idade e tem suas nádegas queimadas pelo pai. As duas primeiras fugas parecem se mostrar como tentativas da entrevistada em chamar a atenção dos pais, a fim de reconquistar seu amor e preocupação através de sua ausência. A ambivalência é evidente e fica traduzida na necessidade de Maria em afastar-se, mas de voltar para casa, de alguma forma com a esperança de que a relação pudesse ter se modificado. Este comportamento de desejo de retorno aos cuidados familiares aparecerá de forma latente em quase todas as ações da entrevistada, principalmente porque esta nunca consegue uma efetiva independência de outras pessoas. Todas as suas ações se traduzem na criação de dependência cada vez mais arraigada, como ter quatro filhos com pais que, em sua maioria, não lhe ajudam financeiramente ou afetivamente na criação das crianças. Além disso, vemos, finalmente, a dependência em relação ao tráfico como um marco importante de que Maria segue buscando uma grande figura que lhe provê segurança e conforto. As relações de Maria também apontam para uma linha de ação que mostra a crescente instrumentalização das relações pela entrevistada. Nenhuma destas tem longo prazo e parecem vir intercaladas com períodos de grande necessidade, onde Maria parece buscar pessoas que possam lhe fornecer acomodação e sustento. Entretanto, estas relações são
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logo substituídas por outras. Desta percepção também decorre a interpretação de que Maria busca não envolver-se afetivamente nas relações devido ao grande medo do abandono, tão marcante em sua infância. Se ela não se envolve verdadeiramente com ninguém, então o perigo das emoções oriundas da negligência por estas pessoas será diminuído, além de permitir que Maria abandone antes de ser abandonada. Atualmente a situação de Maria parece remontar à grande dualidade que marca sua vida como um todo: de um lado, existe um tensionamento em direção à busca por independência e amadurecimento emocional, por outro lado, Maria é uma mãe de quatro filhos que se mantém dependente de uma casa cedida pelo tráfico, ou seja, ainda busca a sensação de cuidado que não pode receber na infância. Em suma, os comportamentos e escolhas de Maria ao longo de sua vida parecem estar profundamente marcados pelas sucessivas experiências de violência, negligência e abandono sofridas, principalmente, durante a infância. Maria passa, aos poucos, a manter relações cada vez mais instrumentalizadas e sem envolvimento emocional. Além disso, pode-se identificar em diferentes momentos de seu curso de ação, uma tentativa não manifesta que visava o seu resgate da situação de abandono pelos pais, principalmente pela mãe. Em relação à situação de entrevista, Maria, logo no início de sua apresentação, faz um pequeno resumo, em formato telegráfico, sobre sua situação atual, dizendo o nome, que é mãe de quatro filhos, há quanto tempo mora no Morro da Azaléia e com que idade chegou ali. Em seguida, retorna em sua cronologia, iniciando uma narração que inclui momentos de intenso sofrimento em sua infância, apresentando de imediato sua primeira e segunda fugas de casa após sofrer violência física do pai. Assim, apresenta um panorama familiar difícil, dominado pelo medo que sentia e pela agressividade paterna, além da ausência da mãe. Em contrapartida, se coloca como protagonista da decisão de se afastar dos pais de forma definitiva, mostrando que reagiu de maneira autônoma e corajosa diante daquele sofrimento. Após contar sobre o afastamento definitivo de casa, Maria mantém-se em ordem cronológica e apresenta novos fatos de grande carga emocional, em que parece ter a intenção de mostrar todas as consequências que sofreu devido à negligência familiar, principalmente da mãe que a rejeitou quando Maria fez um movimento de retorno para
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casa. Vale destacar que Maria não assume, em nenhum momento o desejo de retornar aos cuidados dos pais, destacando a atitude da mulher com quem morava na época de sua segunda fuga em buscar contato com sua mãe. A entrevistada, portanto, permanece colocando-se no papel de vítima, impotente diante do descaso dos adultos e, ao mesmo tempo, muito corajosa em tomar decisões e sobreviver por conta própria. Enquanto apresenta sua infância e juventude, até o momento em que fala sobre o castigo recebido pelo tráfico – período em que permaneceu em cárcere na casa de Roberto, Maria utiliza narrações e relatos com a intenção de detalhar situações que, por si mesmas, mantenham sua apresentação como vítima de seu meio e das pessoas que dele faziam parte. Porém, à medida que avança sua apresentação, a partir da fala sobre ter seduzido Roberto, Maria passa a argumentar com cada vez mais frequência, o que nos faz pensar que se torna mais difícil manter sua apresentação como vítima apenas através de situações específicas, que falem por si mesmas. Desta forma, Maria chega aos dias atuais, onde define sua apresentação basicamente através de seu papel como mãe. Aqui nos parece que se desenha uma intenção latente de Maria diferenciar-se de sua própria mãe, já que ela se apresenta como uma mulher que não precisa do progenitor das crianças e que faz de tudo para “protegê-los do mundo”. A ligação entre seu abandono pela mãe não é diretamente mencionada nestas passagens, mas as sequências levam a crer que toda a sua construção de apresentação se estrutura neste eixo onde diz que hoje ela também é mãe e que, apesar de ter passado uma vida inteira de sofrimento, lutou e ainda luta sozinha para sobreviver, sem que para isso tenha sido necessário abandonar os filhos. Em suma, Maria se apresenta como uma pessoa vulnerável por ter sido vítima de sucessivos abandonos, negligência e violência, mas, ao mesmo tempo, destaca seu protagonismo ao reagir a estas situações, colocando-se como uma mulher forte e autônoma. Sua independência é destacada principalmente quando fala de si no papel de mãe, adotando uma apresentação do gênero feminino como detentor da responsabilidade de dar conta dos filhos afetivamente e economicamente. Percebe-se que Maria mantém continuamente o controle de sua apresentação, já que faz um pequeno prólogo antes de aprofundar algum acontecimento, além de dispor seu discurso em ordem cronológica.
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8.1.2. Eduarda, filha de Maria
Eduarda nasce, no ano de 1998, no Morro da Azaléia, Rio de Janeiro. Seu pai, Roberto, é pelo menos 40 anos mais velho que sua mãe, Maria. De acordo com dados de familiares, o relacionamento entre Maria e Roberto começou quando ela tinha 12 anos e buscava proteção de uma facção ligada ao tráfico de drogas depois de anos morando nas ruas. Quando do nascimento de Eduarda, Maria tinha aproximadamente 16 anos, e podese pensar que essa situação familiar de uma mãe ainda na adolescência e pai de idade avançada tenha tido fortes consequências para o desenvolvimento de Eduarda desde seus primeiros anos de vida. Não há muitas informações sobre o relacionamento entre Maria e Roberto nesse momento, mas pode-se pensar que o nascimento de Eduarda tenha reforçado tensões e conflitos possivelmente já existentes entre o casal. Com esse nascimento, no entanto, a dependência de Maria em relação a Roberto pode ter sido fortemente aumentada. A dedicação de Maria, aos 16 anos, à filha recém-nascida pode ter sido comprometida por sua inexperiência e história de maus tratos sofridos na família de origem, de onde Maria fugiu em sua infância. Uma possibilidade, nesse caso, seria que pessoas em seu entorno (amigos, vizinhos ou familiares) tenham arcado com parte considerável da responsabilidade por Eduarda quando bebê. Essa alternativa teria se fortalecido se, no momento de tornar-se mãe, Maria tivesse buscado distanciar-se de Roberto. É possível, no entanto, pensar que o nascimento de Eduarda tenha fortalecido o relacionamento de seus pais. Em ambos os casos, existe também a possibilidade de que Roberto tenha sido o cuidador principal de Eduarda quando bebê. Eduarda é a primeira filha de Maria. Além de Eduarda, seu pai tem outros dois filhos, segundo a entrevistada. A informação trazida por Eduarda é de que seu pai teria adotado formalmente os dois, pois seriam seus sobrinhos, cujos pais teriam morrido quando os meninos eram muito pequenos. Os dois, em torno de 20 a 25 anos mais velhos que Eduarda, já teriam constituído família e viveriam próximos de Roberto. As atividades econômicas dos membros da família são desconhecidas, mas, por morarem no Morro da Azaléia, é bastante provável que tenham passado por restrições econômicas, o que talvez tenha se acentuado com a chegada de Eduarda.
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Em sua entrevista, Eduarda não traz muitos detalhes sobre os seus primeiros anos de vida nem sobre as atividades econômicas exercidas pelos membros da família. Uma possibilidade seria que seu pai fosse, na época do nascimento ou pouco depois, já aposentado. A escassez dos recursos financeiros provavelmente provocava que vários familiares convivessem na mesma casa, como pode ser interpretado da fala de Eduarda sobre os irmãos mais velhos: é, é assim é de parte de pai //E2: hm// porque não é::: irmão de sa:ngue, ele na verdade ele são meus primos //E2: hm// mas eu acho que os, os pais deles morreram quando eles eram pequenos, ai meu pai registrou, criou //E2: hm// então é irmão //E2: hm// ai eu trato eu chamo de irmão, mas eles têm a família deles, um, por exemplo, um ele mora em cima da casa do meu pai, esse irmão mora lá, mora lá na casa branca, ai mesmo esse que mora em cima da casa do meu pai meu pai também cuida dele por mais que ele, acho que ele tem uns, vai fazer uns quarenta já mas meu pai, eu vejo lá quando eu vou lá na casa do meu pai, meu pai dá comida a ele, dá lanche a ele //E2: é (@1@)// sempre eu fico gente ele velho grandão e meu pai trata ele como se fosse eu e meu irmão, que meu pai ele é assim, ele chega aqui ele dá café assim na cama pra gente //E2: hm// ele num dá na cama pra meu irmão, né mas::: //E2: (@1@)// ele chama, ele fala ah, também quer café? e agora meu irmão também ta lá com uma família lá uma mulher e um filho lá, (8/26- 8/37. Destaca-se, desse trecho, como a convivência entre Roberto, seus filhos adotivos e Eduarda é provavelmente marcada por proximidade geográfica e, na apresentação dessa, afetiva. No entanto, essa proximidade e possível dedicação de Roberto aos filhos, voluntária ou movida pela necessidade, talvez tenha se intensificado após os primeiros anos de vida de Eduarda. Nesse sentido, pode-se pensar que Roberto em algum momento antes ou não muito depois do nascimento de Eduarda tenha passado a ter mais tempo para os filhos por ter atingido a condição de aposentado. Deve-se ressaltar aqui que, devido à perspectiva presente, em que Eduarda buscava se reconciliar com a figura paterna (como será explicitado nos eventos cronologicamente mais recentes de sua biografia), essa caracterização do cuidado paterno pode não ter sido tão fortemente assim percebida na experiência passada de Eduarda. A apresentação de Eduarda de sua infância, no entanto, concentra-se muito mais na figura da mãe, Maria. Eduarda não detalha nenhuma experiência de que se lembre em seus primeiros anos de vida, mas sabe-se que, logo após seu nascimento (ainda em 1998
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ou em 1999), Maria tenha rompido o relacionamento com Roberto. Apesar de não ser muito claro se esse rompimento se deu de forma amigável ou não, é possível pensar que Roberto não tenha deixado de desempenhar algumas responsabilidades em relação à Eduarda. Essa separação quando Eduarda era ainda um bebê provavelmente terá fortes consequências para o relacionamento dela com ambos os seus pais e para a concepção familiar de Eduarda. Uma possibilidade de explicação para o rompimento de Maria e Roberto seria que o nascimento de Eduarda tenha trazido tensões adicionais para o relacionamento, que já era marcado por grandes diferenças entre os dois. Por outro lado, Maria, muito mais nova, talvez tenha começado um novo relacionamento ao acercar-se da idade adulta, no provável caso que seu relacionamento com Roberto não fosse satisfatório para ela. Maria poderia, adicionalmente, ter encontrado em um novo relacionamento mais apoio financeiro para si mesma e para Eduarda. No caso de um novo relacionamento, é questionável se Maria tenha continuado a dedicar-se a Eduarda do mesmo modo que anteriormente. Não há informações suficientes para concluir se, nesse momento de sua vida, Maria buscava estabilizar-se em um relacionamento satisfatório e dedicar-se à família ou se, pelo contrário, a busca de realização profissional e pessoal em suas atividades de lazer lhes eram mais presentes do que a busca por estabilização familiar. Do mesmo modo como não há informações sobre possíveis atividades profissionais de Maria e sobre a fonte de seu sustento, é impossível precisar qual arranjo habitacional tenha se delineado depois da separação de Roberto. Uma possibilidade seria que ambos tenham continuado a viver juntos mesmo separados. Também a composição de novo núcleo familiar com outro parceiro, como mencionado, seria plausível. A possibilidade de Maria conseguir sustentar a si e a Eduarda em um núcleo doméstico próprio, se concretizável nesse primeiro momento da separação, parece bastante improvável em 1999. Nesse ano, 1999, Maria se torna mãe de Edson, que, segundo informações familiares, não é filho de Roberto mas, apesar disso, foi registrado por ele. Não há muitas informações sobre o pai biológico de Edson. A possibilidade de que Roberto arcava com boa parte das funções de cuidador de Eduarda e de seu irmão um ano mais novo, Edson,
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parece plausível diante dessa informação, bem como de que Maria e Roberto conviviam de maneira minimamente amigável e, talvez, ainda no mesmo domicílio. O impacto da gravidez e do nascimento de Edson para o novo relacionamento de Maria é, no entanto, desconhecido. Pode-se pensar que o novo parceiro tenha se afastado de Maria depois da gravidez ou, ainda, que o relacionamento tenha sido fortuito e nunca estável. Para Maria, aos 17 ou 18 anos, esse novo relacionamento provavelmente tenha tido algum aspecto de busca por independência e por controle sobre sua própria vida, o que, nesse caso, seria contraditório com o fato de que ela ainda contava com o apoio, voluntário ou não, de Roberto. Para Eduarda, o novo nascimento provavelmente significou perda de boa parte da atenção dos pais: materna, no caso em que sua mãe, Maria, ainda muito jovem só tenha conseguido cuidar suficientemente do bebê mais novo, ou paterna, no caso em que Roberto tenha se prontificado a assumir o cuidado de Edson, apesar dele não ser seu filho biológico. O fato de Roberto tê-lo adotado, além de necessariamente relacionado com o tipo de arranjo entre Roberto e Maria, pode estar ligado também a uma preferência de Roberto em se dedicar à criação de um menino. Esse momento dos primeiros anos de vida de Eduarda reúne um número de fatores que podem ter provocado um ambiente de instabilidade em sua vida familiar: Maria, recentemente separada de Roberto, tem um segundo filho, ainda muito jovem, com provável pequena participação e apoio do pai biológico. A situação de seus relacionamentos afetivos, nesse momento, pode ter sido uma fonte de tensão adicional ao encargo de ter dois filhos pequenos. Roberto, que provavelmente arcava com responsabilidades no cuidado de Eduarda, passa a cuidar, também ou exclusivamente, de Edson. Uma possibilidade, no entanto, seria que outras pessoas (familiares, amigos ou vizinhos) estivessem envolvidas no cuidado de Eduarda e Edson, desempenhando papel de referência para essas crianças pequenas. Essa ajuda pode também ter sido obtida na forma de apoio financeiro, já que é bastante improvável que Maria tenha conseguido prover o sustento a seus filhos nesse momento. A possibilidade de Eduarda e de Edson terem sido negligenciados em seus primeiros anos de vida é, em vista dos fatores acima, razoavelmente plausível. Esse quadro de
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cuidados talvez insuficientes devido a tensões dos relacionamentos dos pais, bem como da situação econômica e habitacional, torna-se ainda mais complexo. Entre 2000 e 2003, nasce mais uma filha, Eliana, de um novo parceiro de Maria. Esse parceiro não assume o cuidado da filha, aparentemente. Também nesse momento não há informações precisas sobre onde Maria residia com seus filhos, e sobre se estava acompanhada de todos eles. Seria possível pensar que Eduarda e Edson morassem com Roberto e que Maria, envolvida em um novo relacionamento, não fosse presença constante no cuidado das duas crianças, mesmo coabitando com Roberto, ininterruptamente ou por períodos de tempo. Há, portanto, elementos que apontam uma configuração familiar e doméstica complexa nesse momento em que Maria engravida de um novo relacionamento; também é questionável qual seria a fonte de recursos financeiros da família. Apesar de bastante provável que Roberto arcasse com algumas ou todas as despesas dos dois filhos que ele assumira, ajudas de terceiros ou mesmo dos parceiros de Maria poderiam ter existido nesse momento. A presença de amigos, familiares e vizinhos que tenham contribuído para o cuidado e sustento das crianças torna-se mais plausível. Isso se refere, sobretudo, à improbabilidade de que Maria, mãe de três filhos aos 20-22 anos, tenha conseguido, já nesse momento, superar sua trajetória de dificuldades educacionais e relacionais causadas pela violência sofrida na família de origem e nos anos vividos na rua. Mais uma vez, também é possível que as crianças tenham sofrido negligência, ou que Maria tenha se concentrado no cuidado de uma ou duas delas, por exemplo a mais nova, Eliana, negligenciando os outros filhos. Nesse momento em que Eduarda tem aproximadamente cinco ou seis anos, o arranjo doméstico entre Maria, seus filhos e Roberto parece ser fonte de grandes conflitos. Sobre essa situação, Eduarda relata uma das lembranças mais antigas mencionadas na entrevista: uma que eu me lembro que assim, acho que foi bem antes da minha mãe, acho que:: só tinha eu e meu irmão e essa e a Eliana, que meu pai bebeu, bebeu, bebeu ai meu pai chegou xingando a minha mãe e eles começaram a brigar e a minha mãe bateu com a cabeça dele na parede, ai eu comecei a gritar, ai depois meu irmão chegou, meu irmão mais velho chegou e tentou separar a briga e eu e meu irmão chorando, chorando
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chorando, chorando e meu pai e minha mãe não parava de brigar, depois quando o meu pai viu que ele tava sangrando é que eles pararam ((barulho de algo caindo no chão)) minha mãe ai ela num dormiu em casa, a gente ficamo lá com o meu pai (1) esse dia eu foi assim, que eu lembro lembro mesmo, minha mãe saiu voltou no dia seguinte (1) a minha mãe também vivia saindo de casa por causa disso mas ela sempre voltava, meu pai xingava ela de tudo quanto é nome, minha mãe ainda tentava debater com ele ai acabava saindo briga né (2) até que um dia a minha mãe tomou uma vergonha na cara e foi caçar uma casa pra ela morar (6/39- 7/6)6 Essa narração de Eduarda de um episódio dramático de sua infância é bastante significativa. O relativo detalhamento conferido à cena é algo raro nas menções de Eduarda sobre sua infância durante a entrevista e, apesar do tema em questão ser o alcoolismo de seu pai, Eduarda relembra de especial maneira essa briga entre Maria e Roberto. Ainda nesse trecho, o relato é completado com a menção a uma situação frequente de brigas entre eles e ausências maternas, argumentando ao final que essa foi motivação para sua mãe sair definitivamente da casa de Roberto. Três elementos destacam-se nesse trecho narrativo da entrevista com Eduarda: primeiramente, na sua infância, as ausências maternas aparentam ter sido frequentes, possivelmente relacionadas a envolvimentos amorosos de Maria, quando ainda morava, mesmo que parcialmente, com Roberto. Tal elemento vem a reforçar as hipóteses relacionadas aos possíveis conflitos de Maria que, ainda muito nova e provavelmente traumatizada devido a vivências da infância, torna-se rapidamente mãe. Seus interesses de atividades e relacionamentos podem ter colidido com o fato de, aos 20 anos ou pouco depois disso, Maria já era mãe de três crianças, de relacionamentos distintos. Não fica claro, no entanto, se Maria era a cuidadora principal dos filhos ou se essa tarefa era desempenhada por Roberto ou mesmo por vizinhos ou familiares. Em todos esses casos, é possível pensar que Eduarda, bem como seus irmãos, passam os primeiros anos de suas infâncias em contato com várias pessoas de referência, o que não necessariamente significa que recebiam insuficiente atenção. O segundo elemento que cabe destacar é o alcoolismo de Roberto. Esse comportamento parece provável mesmo que Roberto fosse, em grande parte, responsável pelo cuidado 6
Os números indicam que esta passagem se encontra entre a linha 39 da página 6 até a linha 6 da página 7 da transcrição da entrevista.
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de Eduarda e seus irmãos, principalmente quando Maria se ausentava. Roberto, com mais de 60 anos e convivendo com Maria, com quem teve relacionamento possivelmente atribulado, abusa do álcool em presença de Eduarda e seus irmãos. A figura paterna de Eduarda, então, parece ter sido marcada de contradições nessa fase: ao mesmo tempo em que Roberto se dispõe a abrigar e talvez sustentar Eduarda e os outros filhos de Maria, cujos pais parecem não os terem apoiado, Roberto bebe e se torna agressivo. Finalmente, as brigas entre Roberto e Maria merecem destaque em seu provável impacto na infância de Eduarda. No relato apresentado, Maria, muito mais jovem que Roberto, responderia a seus ataques verbais e, possivelmente, físicos com violência. Eduarda narra como ela e Edson, seu irmão um ano mais novo, teriam sido fortemente impactados por assistirem, indefesos, essa cena. Segundo ela, a briga só teria sido interrompida com a intervenção de seu irmão mais velho e ao constatarem que Roberto estava bastante ferido. Para Eduarda, tal nível de violência entre os pais pode ter causado danos psicológicos e prejudicado o relacionamento com ambos os pais. É possível pensar que ela tenha se sentido dividida entre a lealdade para com Maria e para com Roberto, além de incapaz de interromper essa situação que causava sofrimento a todos os envolvidos. Segundo Eduarda, a situação de violência entre os pais teria motivado Maria a procurar um modo de viver com seus filhos independentemente de Roberto. Pode-se pensar que os seus relacionamentos com os pais de Edson e Eliana tenham sido tentativas frustradas nesse sentido. A convivência com Roberto parece ter sido extremamente conflituosa, apesar de não se saber se isso era, principalmente, a causa ou o resultado das ausências periódicas de Maria. No ano seguinte, Maria começa, então, a se relacionar com Valdemar, gerente de tráfico local. Esse relacionamento possivelmente estava conectado com o intento de Maria de se tornar independente de Roberto. Eduarda, que, nesse período, teria cinco ou seis anos, provavelmente sentiu o impacto desse novo relacionamento em sua vida familiar. Apesar de não ter sido um tema mencionado na entrevista, pode-se pensar que, a partir dessa idade, Eduarda tenha passado a conviver com Valdemar. No entanto, a saída de Eduarda da casa de Roberto, juntamente com seus irmãos, pode ter sido gradual. Uma possibilidade nesse sentido
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seria que Maria teria em um primeiro momento levado a filha mais nova, Eliana, para morar no novo arranjo doméstico. Em todos os casos, essa mudança de parte da família de Eduarda, posteriormente a um período de ausências frequentes da mãe, pode ter trazido um sentimento de instabilidade e de fragilidade dos vínculos familiares. Adicionalmente, o envolvimento de Valdemar com o tráfico pode ter sido percebido por Eduarda como um fator de risco e insegurança, principalmente no caso de uma possível participação ou conivência de Maria com atividades ligadas ao tráfico. Em torno desse período, as possibilidades de ajuda econômica governamental para famílias de baixa renda são ampliadas através do programa Bolsa Família, lançado em 2003. Parece plausível que Maria, ainda bastante jovem e mãe de três filhos, estivesse enfrentando dificuldades ao tentar garantir o sustento de sua família. A ajuda dos pais dos filhos parece improvável, com a exceção de Roberto, com quem Maria tinha, no entanto, muitos conflitos. Pode-se pensar, adicionalmente, que a presença dos filhos fosse um obstáculo à obtenção de um emprego assalariado, bem como a pouca escolaridade de Maria. O relacionamento com Valdemar, portanto, se enquadra nesse panorama de recursos limitados, ao mesmo tempo em que, por parte de programas governamentais, novas ajudas tenham se tornado disponíveis. A possibilidade de manter sua família através de ajudas estatais, associadas a eventuais rendimentos por trabalho ou pensão alimentícia, parece, no entanto, ainda improvável para Maria. Pouco tempo depois, em 2004 ou 2005, Eduarda provavelmente ingressou no ensino fundamental. A possibilidade de que Roberto e, em especial, Maria, que não frequentou escola enquanto morava na rua, incentivassem a carreira escolar de Eduarda é reforçada por trechos como o seguinte: morava todo mundo junto minha mãe::, então a gente er- minha mãe cuidava super bem da gente não é que meu pai não cuidava, só que ele num sabia lidar com a gente, minha mãe que me arrumava pra ir pra escola penteava o meu cabelo tal (3/1- 3/3) Mesmo sem poder precisar se Eduarda dispunha de recursos materiais e acompanhamento de seu aprendizado por parte dos pais, é provável que Maria e Roberto tivessem expectativas de que Eduarda (e as demais crianças) pudessem alcançar melhores condições socioeconômicas através da educação. A escola que Eduarda
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frequenta, única localizada na comunidade do Morro da Azaléia, foi concluída no ano de 2005. Essa escola é considerada pelos moradores uma das instituições mais significativas do local. Em termos de qualidade de ensino, a escola obteve nota de 4,7 no IDEB (2010), patamar inferior à meta fixada para a instituição: 5,3 pontos. Contudo, a pontuação ficou acima da média apresentada pela totalidade das escolas do Rio de Janeiro: 3,6. Em outro trecho, o relacionamento com o pai e com a mãe nessa fase em que Eduarda já frequentava a escola é discutido, reforçando a ideia que Maria e também Roberto teriam interesse na educação de Eduarda. Esse trecho se inicia com uma argumentação de Eduarda sobre seu relacionamento com pai e mãe, bem como sua tomada de partido quando os dois brigavam: desde quando eu era pequena ele sempre me defendia eu gostava muito de sair com o meu pai, sempre defendia ele na briga quando ele brigava com a minha mãe, não sei por causa de que sei lá, e a minha mãe é porque acho que assim a minha brigava mais comigo quando eu era mais nova, né //E2: hm// brigava me batia e tal ((voz da mãe intervindo batia mesmo’)) eu via a minha mãe como um carrasco, sei lá sempre me batia @1@, mas eu sempre gostei dela também (1) aí assim, meu pai, ele, ele assim, um tempo atrás ele era muito maneiro ele sempre me deu conselho, conselho ai seja alguém de bom na vida é estuda //E2: hm// é pra você ser alguma coisa na vida, morar num aí eu sempre ficava com aquela coisa na cabeça ai o quê que eu vou ser? quero ser alguma coisa //E2: hm// antigamente ele falava ai seja da marinha eu ficava com aquilo na minha cabeça //E2: (@1@)// ai quero ser da marinha porque o meu pai quer que seu seja da marinha aí ficava::: ai hoje em dia não, hoje dia, eu quero ser engenheira às vezes eu quero ser psicóloga, aí você fica nessa dúvida //E2: hm// aí meu pai, ele sempre me incentivou a ser alguma coisa assim //E2: hm// não é que a minha mãe não incentivou, mas minha mãe ficava falando se você parar de estudar eu vou te matar não sei o quê (7/27- 7/40) Esse trecho sobre a infância no qual Eduarda argumenta sobre a influência de seu pai e sua mãe em sua dedicação à escola e planos para o futuro se intercala com considerações sobre lealdade e conflito de Eduarda com cada um dos dois. Em sua exposição, Eduarda vincula a maneira como a mãe a trataria, com rispidez e violência, à sua consequente preferência pelo pai. A maneira como Eduarda caracteriza sua mãe é tanto mais interessante devido à presença de Maria no recinto da entrevista, nesse dado momento. Pode-se pensar que, além do interesse de reminescer sobre suas experiências da infância,
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a fala de Eduarda nesse momento tem como função promover um diálogo indireto com sua mãe sobre a maneira dela tratá-la e suas possíveis consequências. Essa tensão entre Eduarda e Maria, que se sente na perspectiva presente da qual Eduarda concede a entrevista, parece refletir um relacionamento tenso já durante a infância da mesma. Isso parece se tornar mais claro ao considerarmos que, na idade de 8 anos, aproximadamente, Eduarda e seus irmãos passam a morar com a mãe em uma nova configuração doméstica, na casa de Valdemar, companheiro de Maria. A opinião de Eduarda sobre essa mudança é desconhecida, mas é possível supor que tal evento tenha causado insegurança ou mesmo revolta. O relacionamento de Eduarda e Maria pode ter sofrido algum impacto, tanto por motivos de maior proximidade, no caso em que Maria já residia com Valdemar e seus filhos ainda com Roberto, ou distanciamento, caso a mãe tenha passado a morar e se dedicar mais a Valdemar nesse momento. Também o possível distanciamento entre Roberto e Eduarda é uma possibilidade nesse momento. Não se sabe se, antes de ir morar em companhia de Valdemar e seus filhos, Maria teria conseguido uma moradia para sua família e rompido definitivamente os laços com Roberto, como parecia ser intenção em um momento anterior, como relatado por Eduarda em referências às brigas do casal. Além das consequências emocionais e para os relacionamentos, a nova fase do relacionamento entre Maria e Valdemar, cujas causas ainda não ficam claras nesse momento, foi decisiva em muitos sentidos. Um deles seria, adicionalmente, um possível envolvimento de Maria e, talvez, seus filhos com atividades ligadas ao tráfico, mesmo que involuntariamente. Mesmo que essa mudança não tenha significado um envolvimento de Eduarda com tais atividades, o novo arranjo familiar pode ter resultado no cuidado pelos irmãos mais novos recaindo parcialmente sobre Eduarda. Outra perspectiva possível seria, também, que essa mudança tenha tido consequências positivas para Eduarda, como um sentimento mais concreto de pertencer a uma família e maior acesso a bens de consumo. No mesmo ano, nasce Elisa, filha de Maria e Valdemar. Não fica claro, no entanto, se Maria e seus filhos passaram a viver na casa de Valdemar durante a gestação de Elisa ou mesmo antes dessa. Por outro lado, a mudança, cuja data é aproximada nas informações
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disponíveis, pode ter se dado após o nascimento da filha mais nova. O relacionamento entre Valdemar e Maria, provavelmente teria passado por grandes modificações com esse nascimento, sejam essas relativas à maior proximidade ou mesmo maiores conflitos entre o casal. Uma possibilidade bastante provável é que Maria tenha se tornado mais dependente economicamente de Valdemar. Essa intensificação, positiva ou negativa, do relacionamento conjugal, certamente foi sentida por Eduarda. É desconhecido se sua reação foi de integrar-se mais na divisão de tarefas do núcleo doméstico ou de sentir-se mais distante da mãe. Para Eduarda, até esse momento, parece ter havido uma tensão frequente a seu pertencimento familiar trazida por mudanças e instabilidades dos arranjos e configurações domésticas. Pode-se pensar que Roberto e outras pessoas significativas tenham desempenhado papel estabilizador no cuidado e no sentimento familiar de Eduarda. A dedicação de Maria à Eduarda é, nesse momento, questionável, devido a uma possível concentração na nova constelação parental em torno de Elisa. Quanto a isso, Eduarda relata sobre a época posterior ao nascimento da irmã mais nova, na qual sentia receber pouca atenção: por que::: ficava mais eu e minha irmã, por que meu irmão também sempre foi um ruerinhozinho, desde de pequenininho ele num parava em casa, ficava eu e minha irmã em casa sozinha eu e ela que às vezes também a madrinha dela também pegava ela ficava lá na casa dela, que a gente só viva de=com cabelo alto então tipo eles cuidavam mais das minhas duas irmã e eu era mais jogadinha né por que era a mais velha então ninguém ligava muito pra mim (1) (3/39-43) Nesse trecho, Eduarda caracteriza o cotidiano dos quatro filhos de Maria depois do nascimento da mais nova, Elisa. Segundo ela, Edson passaria mais tempo na rua, enquanto ela, Eliana e Elisa ficariam mais em casa. A figura da madrinha de Elisa, possivelmente uma amiga de Maria, aparece várias vezes na entrevista e parece desempenhar papel frequente no grupo doméstico. Para Eduarda, o fato de ser mais velha acarretava em menos cuidado por parte de “eles”, que se presume serem os pais, ou Maria mais seus companheiros. A presença ou ausência de Roberto também não fica clara nesse trecho, mas é provável que ele, nesse momento, tenha se distanciado de Maria e seus filhos em vista do estreitamento do relacionamento dela com Valdemar.
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O próximo evento relatado por Eduarda é o que maior destaque recebe em sua entrevista, sendo dos primeiros mencionados na narrativa inicial. Aproximadamente em 2007, quando Eduarda tinha 9 anos, Maria é presa, juntamente com Valdemar, por participação no tráfico de drogas. Eduarda narra com bastante dramaticidade o dia em que a polícia a levou em detenção e a reação que se deu em torno desse acontecimento, do qual Eduarda guarda vivas lembranças. Suas explicações sobre o tema também são bastante extensas e giram em torno da inocência da mãe, já que Valdemar seria o único responsável pelo armazenamento de drogas na casa onde moravam: ele trazia droga assim, deixava lá e quando as polícias chegaram lá, eles falaram que ia levar ela, porque também falaram que ela era bandida, ai tipo, num foi assim co- eles subiram foram na casa do meu pai, minha mãe levou lá por que sabia que, lá onde que meu pai mora num tem droga nem nada, minha mãe levou lá com medo de ser presa e levou na casa do meu pai e viu que num tinha nada dela lá, eles começaram a revistar, ai eu, eles queria até agredir meu pai falaram que num era pra ele se meter, ai vi quando eles levaram a minha mãe lá pro quarto, um policial lá bateu nela xingou ela, eu fiquei vendo, ai depois ele=eles ameaçaram ela, ai falou ah leva logo onde que é a casa, você não mora aqui ai até que a minha mãe foi lá levou, ai eu comecei entrar em desespero, comecei a chorar, comecei a gritar desci ai foi:, as moças, as colegas de minha mãe falou assim ah, vai lá embaixo, vai lá embaixo fique: num deixa ele bater na sua mãe, num sei o quê, vai lá ai eu desci, quando eu cheguei lá, eu queria falar com eles, pra eles num bater na minha mãe, eles num deixavam eu entrar (1) ai eles tavam lá foi quando::, no começo assim eu num sabia eu fiquei na meia na dúvida se a minha mãe tinha sido presa, se ela ia, se não, ai foi o, desci eles me levaram pra casa da madrinha da Elisa eu comecei a chorar, ai eles num queriam falar pra mim que a minha mãe tinha sido presa, ai meu pai pegou foi lá me buscar ai falou que era pra mim ter ido embora, ai foi nessa que eles pegaram lá cheio de droga lá, vi até no jornal, passou até na televisão, ai eu:::, eu fui pra escola nesse dia todo mundo já tava sabendo °ai ficaram lá me zoando° (1) ai quando eu, ai dep-, depois quando fui pra escola eu subi e fui pra casa do meu irmão subi ai ele tinha falado: ah seu pai falou que é pra você ficar aqui que ele foi na delegacia ai eu por que a minha mãe foi presa? ai ele foi! ai eu meu caramba tipo, fiquei sem acreditar no começo eu até achei que ele tava de brincadeira, mas depois que meu pai chegou ele falo que tinha sido presa (5/33- 6/10) Nesse trecho, Eduarda primeiramente argumenta sobre o não envolvimento da mãe e sobre sua estratégia para que a polícia a considerasse inocente: alegar que vivia na casa de Roberto. Esse trecho leva a crer que, ao menos parcialmente, os filhos de Maria
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residissem ali, já que do contrário essa alegação não seria minimamente crível. Mesmo assim, o fato de Maria não ter nenhum objeto de uso pessoal na casa de Roberto teria desacreditado essa tentativa, na apresentação de Eduarda. Maria é, então, espancada pelos policiais e os leva à casa que dividia com Valdemar e, possivelmente, alguns ou todos os filhos, onde estavam escondidas drogas. A participação de Maria em aceitar drogas escondidas em casa se encaixa em um padrão identificado para mulheres envolvidas com traficantes (Zaluar, 1999, p. 111). Destaca-se, nessa narrativa, que resulta na prisão da mãe, a participação de Eduarda em situações violentas e de alto risco. Outro aspecto presente nessa narrativa é a consequência da prisão de Maria na vida escolar de Eduarda, tema que merece destaque na entrevista. As consequências da prisão de Maria se estendem por diversas áreas da vida cotidiana de Eduarda, todas relatadas em detalhes, o que aponta para a intensidade como esse momento foi vivenciado. A situação de moradia após a prisão é um ponto central da entrevista: segundo Eduarda, Roberto teria se responsabilizado por cuidar dela, Edson e Eliana após a prisão, bem como da venda dos poucos móveis e eletrônicos não destruídos pela polícia. Esse dinheiro teria sido usado para comprar comida e outros artigos levados para Maria na prisão e para despesas das 4 crianças, sendo que Elisa, a mais nova, estava com sua madrinha. O cuidado recebido pelas crianças, tanto por Elisa, ainda bebê, quanto pelos outros na casa de Roberto teria sido, segundo Eduarda, insuficiente: tal meu pai ele também sabe fazer as coisas mas na hora dele me arrumar eu e, eu e as minhas irmãs andava tipo igual homem, que ele arrumava a gente como se fosse, se a gente fosse uns menininhos ((alguém rindo)) só=ele prendia o nosso cabelo ( ), então pra mim ele, mas era pequena assim, nem ligava muito, mas eu me achava (@1@) assim tipo que:: eu era um homem (@1@) //E1: uhum// ai quando a minha mãe num tava lá ele, é:: eu fi::cava é, igual um molequinho, andava só cum homem já tava virando um tremendo homem já //E1; E2: (@1@)// meus primos que moravam lá, perto da casa deles, ai a gente ficava ficava correndo lá, assim e pra mim assim o meu pai era bom morar com ele por que ele me deixava fazer tu::do //E1: uhum// deixava eu sai ai::: eu é:::, também é:::, e::m relação a minha irmã né a minha irmã pra mim foi muito ruim, por que eu só via ela às vezes também a madrinha também dela deixava a gente ver ela direito //E1: uhum// tipo, que eu me sentia tipo a minha irmã ((risos)) e eu num posso ver ela //E1: uhum// ai era ruim também quando eu via a minha irmã, via ela toda
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jogada lá toda su::ja //E1: uhum// tipo que num era cuidada direito, andava lá no barro lá na casa da madrinha dela (2) acho que só (2) (3/33/16) Deve-se ressaltar que, no que se refere à atenção recebida de Roberto nesse momento, provavelmente tenha sido prejudicada pelo alcoolismo do mesmo. Esse momento de crise para toda a família pode ter resultado na mobilização de apoios adicionais ou, alternativamente, sobrecarregado Roberto, já com mais de 60 anos ou quase 70. Tal quadro pode ter aumentado a dependência do álcool, fator de ainda mais instabilidade para Eduarda e seus irmãos, sem a presença da mãe. Independentemente do problema de alcoolismo ter piorado ou já ter atingido patamar crítico antes da prisão de Maria, Eduarda relata as consequências desse comportamento de forma bastante extrema: é uma vez quando ele foi lá, foi beber lá e chegou todo bêbado lá ele tinha falado pra mim tomar conta da minha irmã, ai chega lá todo bêbado, falando falando que era pra gente ir lá embaixo, brincar sei lá, ele vai brincar vai brincar que num sei o que, quero ninguém aqui não xingando e do nada e depois ele foi atrás da gente, a gente ficou brincando lá na casa do, do::: do sobrinho dele lá, ai a gente ficou brincando, depois ele foi lá e ele falou assim ah::: vai pra casa tipo aí começou a xingar a gente começô a xingar a minha mãe, falou da minha mãe, mas eu sabia que ele tava bêbado, mas era bem ruim, por que às vezes, a gente tinha que ir na tendinha buscar ele que num queria vir pra casa, ele caia da ribanceira ((criança rindo)) e a gente tinha que ir lá pegar ele, me sentia, às vezes, eu me sentia que só eu era a única normal ali, que tinha que cuidar de minhas irmãs, eu cuidava né, mas do meu jeitinho ((risos)), //E1: uhum// num era aquilo tudo, tinha que ajudar lá a arrumar a casa, tomar conta das crianças, nunca foi, foi santinha sempre fazia bagunça lá (3) (4/19- 4/30) A frase que Eduarda interrompe quando relata o que Roberto, em seu estado alcoolizado, teria dito sobre Maria provavelmente se referem à ligação dela com o tráfico de drogas, já que esse tema é central no interesse de apresentação de Eduarda. Em vários momentos da entrevista, se destaca o esforço em argumentar sobre a inocência da sua mãe, contrapondo tal afirmação com as acusações que Eduarda ouvia sobre sua mãe na escola, na comunidade, na mídia e, ao que parece, de Roberto. Percebe-se que, para a construção biográfica de Eduarda, a inocência da mãe desempenha papel importante, mesmo que fique claro, em suas narrativas, que Maria sabia onde se encontravam entorpecentes comercializados por Valdemar.
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Dois meses após a prisão de Maria, Eduarda conta ter visitado a mãe na prisão pela primeira vez, evento que relata com alto teor emocional. Em um dado momento da detenção da mesma, Maria é enviada para outra prisão, continuando a receber visitas da família. Pouco antes de ser solta, Roberto teria reunido os 4 filhos de Maria em sua casa, segundo Eduarda devido aos maus tratos recebidos por Elisa na casa da madrinha dessa. No entanto, Eduarda relata também que, depois da reunião dos irmãos, a situação de descuido das crianças teria piorado ainda mais, o que pode ter significado que Eduarda arcasse com boa parte do cuidado dos irmãos mais novos. Outro componente do momento de crise vivido por Eduarda foi a repercussão da prisão de sua mãe na escola que ela frequentava. Isso provavelmente teve consequências bastante negativas para a dedicação de Eduarda aos estudos e para seu desempenho escolar: no dia que a minha mãe foi presa //E1: uhum// eu cheguei na escola e já tava rolando o boato ai tipo uma garota falou assim ah::, a sua mãe é bandida você é filha de traficante que num sei o que’, ai todo mundo da sala começou a rir de mim, mas depois ai a professora, as professora e a diretora me chamaram ai conversaram comigo ai eu expliquei pra elas o que tinha acontecido, ai elas tinha chegado lá na sala falando pra ninguém fazer isso, isso não se faz, mas tipo pra mim foi humi- foi humilhante escutar aquilo, e a minha mãe se:: se acusada de uma coisa que num é aquilo me fez ficar muito triste, //E1: uhum// essa foi a primeira vez que eles falaram mas teve outras vezes mas depois eu fui me acostumando e acabei deixando pra lá, ai começou a zuação ah, eu vi a tua mãe no jornal, ela ta presa que num sei o que:: e também assim os diretores e os professores sempre falavam sempre apoiaram também num era só eu não o meu irmão também, os outros também ficava zuando lá, falando dele lá (2/11- 2/22) A intensidade do envolvimento de Eduarda com questões ligadas ao tráfico de drogas podem ter provocado diferentes reações relativas a essas atividades, desde um forte afastamento a uma gradual familiarização com essas atividades. Nesse último sentido, pode-se pensar que, mesmo durante a prisão da mãe, os contatos com os membros do tráfico não tenham cessado no grupo doméstico onde Eduarda se encontrava. O apoio de membros do tráfico para o sustento dos filhos de Maria e para a assistência legal recebida por ela é bastante plausível, o que pode ter significado para Eduarda uma imagem no mínimo ambígua dessas atividades.
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O relacionamento entre Maria e Eduarda, durante e após a prisão da mãe, provavelmente passou por modificações significativas. Apesar da probabilidade de dificuldades anteriores de relacionamento, devido, entre outros, às ausências de Maria, um afastamento maior pode ser dado posteriormente. Ao mesmo tempo, para Eduarda, os meses passados sem a mãe podem ter causado uma maior apreciação da presença materna. Depois de 6 meses, Maria deixa o presídio e vai morar com Roberto e seus filhos. Essa reunião na casa paterna, mesmo que inicialmente bem-vinda, pode ter causado mais conflitos entre Maria e Roberto, submetendo Eduarda e seus irmãos a um contexto doméstico de constante tensão. Pode-se pensar na possibilidade de que os recursos financeiros e de espaço físico tenham sido insuficientes para acomodar, na casa de Roberto, a família de Maria, agora com 4 filhos. Maria pode, no entanto, ter conseguido um trabalho ou fonte de renda rapidamente, mesmo que ligado ao tráfico de drogas. Essa possibilidade de envolvimento com o tráfico provavelmente significaria, para Eduarda, grande apreensão de que a mãe voltaria a ser detida ou agredida pela polícia. O retorno para a casa de Roberto, ademais, mostra que, apesar dos conflitos, o pai de Eduarda é uma das poucas fontes de apoio contínuo para Maria. Não há menções a apoio recebido da família de origem de Maria, com a qual não se sabe se ela mantinha contato. Para Eduarda, essa constelação provavelmente significava que sua concepção de família e de parentesco estivesse ancorada mais fortemente à família de Roberto, na qual se sabe da existência de irmãos, primos e sobrinhos de Maria. Pode-se pensar que, em certa medida, Maria tenha parecido desamparada para Eduarda, o que lhe levaria a crer que os filhos, únicos familiares, tivessem a incumbência de prover apoio à mãe. No que se refere ao apoio de Roberto recebido por Maria, Eduarda parece ter estado muito ciente de que esse era limitado e, muitas vezes, fornecido a contragosto. Assim, é possível que tenha se reforçado, para Eduarda, a ideia de desamparo materno e a necessidade de apoio por parte dos filhos. Possíveis formas de apoio que Eduarda pode ter desempenhado nesse momento seriam o cuidado com os irmãos mais novos e trabalhos remunerados para ajudar o sustento da família.
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Não se sabe exatamente quanto tempo Maria e seus filhos tenham permanecido na casa de Roberto; no relato de Eduarda, esse tempo foi marcado por conflitos entre os pais. No ano de 2008, Eduarda continuava, no entanto, frequentando a escola normalmente, tendo um grupo de amigas com quem dançava coreografias na escola em apresentações. Esse grupo teria começado informalmente nos recreios e, depois de receberem atenção de colegas, começara a ensaiar, com o apoio de Maria, segundo Eduarda. Posteriormente, roupas para as integrantes e apresentações na escola e na comunidade teriam marcado o período de maior destaque. Nesse relato, Eduarda alude à atenção recebida da mãe após a prisão; na apresentação de Eduarda, ademais, não é enfatizada a possível ausência de Maria durante a sua infância mas, pelo contrário, a rigidez da educação recebida de Maria. Pode-se pensar que, aqui, o interesse de apresentação de Eduarda está em contraste com a possível experiência passada de períodos sem a presença de Maria, durante seus envolvimentos afetivos. Um dos relatos referentes ao tempo em que Maria e seus filhos residiam com Roberto destaca-se, além das descrições das brigas entre os pais, uma situação comentada por Eduarda na qual seu pai se embebeda e se acidenta. Essa situação, semelhante a outra trazida anteriormente, é contada por Eduarda em tom humorístico, apesar da gravidade dos acidentes que Roberto sofreria por estar alcoolizado. Tal abordagem de Eduarda pode demonstrar uma tentativa de distanciamento do alto teor emocional desses episódios em que seu pai corre sérios riscos. A convivência próxima com esse comportamento no tempo em que moraram juntos, apesar de ter provavelmente impactado todas as crianças, provavelmente foi uma fonte de apreensão especialmente forte para Eduarda. Maria consegue, em algum momento de 2008, uma casa onde vai morar com Eduarda, Eliana e Elisa. Essa casa, pelo que indicam relatos da família, foi fornecida por integrantes do crime organizado aliados de Valdemar, que continuava preso. Esse contínuo envolvimento ou talvez apenas favorecimento que ligava Maria ao tráfico de drogas pode, nesse momento, ter causado preocupação para Eduarda. Também é possível pensar que a presença de ligações com o tráfico tenham se naturalizado para ela nesse momento. Não se sabe se Maria, então, continuava se relacionando com Valdemar ou se tinha começado novo relacionamento.
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O fato de Edson ter permanecido na casa de Roberto pode ter se devido à impossibilidade de Maria cuidar de todos os filhos. Edson pode ter sido escolhido para viver sem a mãe por, aos 9 anos, ter condições de ajudar Roberto em alguma atividade remunerada ou, talvez, por ser o preferido do pai de Eduarda. Também pode-se pensar que Maria e Roberto tenham concordado que uma das duas crianças mais velhas, menos dependentes, ficasse com Roberto. O fato de Eduarda ter permanecido com a mãe, nesse caso, pode ter se dado devido a uma preferência da menina ou porque a mãe a considerava mais útil para cuidar das crianças mais novas. Seja qual for o critério utilizado para definir qual filho ou filha não viveria com Maria e com os irmãos, essa nova situação de separação do grupo familiar provavelmente tenha causado impacto negativo para Eduarda. As separações e mudanças familiares que ela sucessivamente viveu ao longo da sua infância, com destaque para a dramática separação da mãe, podem ter tido consequências para o comportamento de Eduarda durante a infância e posteriormente. De maneira semelhante, a provável pouca atenção recebida por Eduarda em relação a seu desempenho escolar e outras áreas de seu desenvolvimento podem ter ocasionado o surgimento de diferentes mecanismos de compensação. Sabe-se que Maria, posteriormente à sua prisão, trabalhou por algum tempo em um restaurante, o que pode indicar um afastamento das atividades relativas ao tráfico. A curta duração dessa ocupação pode ter sido causada por questões trazidas pelo empregador em referência aos antecedentes criminais de Maria ou, talvez, por dificuldades de adaptação de Maria a trabalhos assalariados. Depois desse emprego, Maria trabalhou por algum tempo na comunidade do Morro da Azaléia, empregada tanto em um projeto da CEDAE quanto pela associação dos moradores. Esses empregos, mesmo que curtos, podem ter trazido melhores condições financeiras para o núcleo doméstico. É possível pensar que a convivência em ambiente de trabalho tenha sido benéfica para Maria e, consequentemente, para seus filhos. Por outro lado, o trabalho e o cuidado dos filhos pode ter sobrecarregado Maria, causando maus tratos ou negligência dos filhos. Uma continuada dependência de Roberto é, também, provável, o que pode ter aumentado a convivência de Eduarda com os problemas paternos.
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Em 2009, Valdemar sai da prisão e retoma seu relacionamento presencial com Maria, conforme relata Eduarda: depois de um tempão ele saiu, ai ele ficou acho que muito pouco, ele ficou dois meses na rua, ele num, tipo ele tinha que sair e voltar de noite //E1: hm// só que ele não voltô, ele continuou aqui, ai quando ele saiu pra ir foi super maneiro porque, a gente ia saí, saia ia andar no morro, ele gastava dinheiro com a gente //E1: hm// ele até levou a gente pra passear na Quinta, levava a gente, pra mim era bom, só que depois aí acho que, acho que, é::: denunciaram ele e, ele, aí a polícia ia direto vinha aqui, ficava rodando, rodando, mas ele fugia (4/36- 4/41) A maneira como Eduarda relata a época posterior à saída de Valdemar da prisão parece indicar naturalidade com a presença do padrasto e com sua ligação com o tráfico. No entanto, essa situação pode ter causado mais uma reconfiguração do núcleo doméstico, no caso de Maria ter passado a conviver com ele. Eduarda e seus irmãos podem ter voltado a conviver com Roberto ou mesmo acompanhado a mãe, todos ou alguns. É bastante provável que as constantes instabilidades da configuração doméstica tenham impactado o desenvolvimento psicossocial e escolar de Eduarda. Depois de dois meses, Valdemar é preso novamente, o que pode ter acirrado conflitos entre o tráfico e a polícia ou entre diferentes facções do tráfico. Como é desconhecido se Maria mantinha envolvimento com o tráfico além de seu relacionamento com Valdemar, a dimensão do impacto dessa prisão para suas atividades não pode ser precisada. Após esse acontecimento, Maria mais uma vez vive um confronto com a polícia, relatado por Eduarda como concomitante ou logo após a prisão de Valdemar. Nessa situação, a prisão de Valdemar é seguida por ameaças de que Maria seria presa também e extorsão de Maria para que Valdemar seja solto, de acordo com o relato de Eduarda: minha mãe tinha falado que era pra gente dormir lá no meu pai, a gente acordou tal ai a gente começou a ligar pra mim mãe toca, toca e ninguém atende, toca toca e ninguém atende e depois ai a L. chegou lá em casa, uma mulher lá e falou assim a::h, ta cheio e polícia lá na casa da tua mãe ai meu pai ai a P., também foi lá, uma colega da minha mãe ai falou assim a::h, vamo lá atrás, vamos atrás ver ai eu disfarcei, vim aqui atrás, não nisso a policia ficou me esperando ali embaixo, eu vim eu ia na casa da tia, da:: da vizinha aqui, ((voz de homem gritando chamando uma mulher dona N. )) só que também ela não tava em casa e quando eu vi tava cheio de polícia aqui embaixo, cheio de polícia aqui em cima, cheio lá fora, ai eles tavam cum um cabo de vassoura falando assim ((voz de
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homem gritando chamando uma mulher dona N.‘)) ((voz de mulher sussurrando alguma coisa)) falando assim é ah, essa daí deve ser filha dele, deve ser filha dele ta rodiando ta aqui ((voz da mãe a dona N. mora aqui não meu filho, a dona N. mora lá em cima)) ai eu desci ai pensei até que eles iam fazer alguma coisa comigo, eles perguntaram se eu conhecia ele eu fiquei com medo e falei ah, eu num conheço ninguém não e saí andando //E1: uhum// ai depois eu falei com essa P. e depois a gente ficcontinuou ligando ai até que eles roubaram lá roubaram dinheiro da Bolsa Família, roubaram celular, roubaram dvd aí a:: aí a gente desceu, quando a gente desceu, a gente ficou lá embaixo, eu fiquei sem saber o que fazer, por que eu num sabia o que fazer, eu num sabia onde minha tava, eu num sabia se a minha mãe tava aqui se a minha mãe tava lá, se tinha saído ai quando a gente demorou um tempo eu vi o meu padrasto descendo todo machucado, ai eles levaram ele, depois de um tempo ai eles desceram lá em baixo, ai eu vi a minha mãe, não eles não tinham descido eles tinham parado ali perto da padaria, ai a gente descendo lá pra baixo, ai foi quando eu vi a minha mãe, aí minha mãe falou que eles tinha pedido vinte mil, ai minha mãe tinha falado que:: era pra gente ir lá falar com eles que num tinha conseguido, né, quando a gente foi falar a polícia saiu fechando a porta (5/5- 5/27) Mais uma vez, Eduarda relata com alta dramaticidade eventos de violência e confronto com a polícia por parte de Maria no qual ela, como filha, teria se envolvido diretamente. De modo semelhante ao relato do dia em que Maria foi presa, Eduarda, que estava na casa de Roberto, conta ter ido em busca de sua mãe no local onde ela era mantida, e agredida, pela polícia. Essa apresentação de si como ativa na tentativa de resgate de Maria pode estar relacionada à perspectiva presente de Eduarda no momento da entrevista. Além dos esforços ativos de Eduarda de ajudar a mãe, o relato acima também traz outro elemento marcante: a presença de Roberto, mais uma vez, como apoio a que Maria recorre sem grandes constrangimentos para prover proteção a seus filhos. O papel ambíguo desempenhado por Roberto se torna mais claro, apesar de fragilizado e incapacitado por seu alcoolismo e propensão a desentendimentos com Maria, Roberto parece não se negar a acolher Eduarda e seus irmãos quando necessário. A dependência de Maria de Roberto, portanto, parece ter se mantido de alguma forma mesmo muitos anos após a separação dos dois. As implicações dessa nova e violenta confrontação da polícia com Maria foram, provavelmente, múltiplas. A extensão do envolvimento de seu envolvimento com o
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tráfico é desconhecida e pode, por um lado, estar limitada a seu relacionamento com Valdemar. Caso contrário, a convivência com a violência policial e entre as facções pode ter se mantido constante no cotidiano de Maria e seus filhos, comprometendo o bemestar de todos. No ano seguinte, uma Unidade de Polícia Pacificadora se instaura no Morro da Azaléia, transformando radicalmente tais dinâmicas do tráfico. No caso de Maria e seus filhos, essa ocasião pode ter sido de renovado conflito com a polícia ou, por outro lado, de maior proteção contra chantagens e intimidações sofridas, talvez injustamente, por Maria. O relacionamento entre Maria e Eduarda, em face desses acontecimentos, provavelmente tenha se modificado consideravelmente. Uma possibilidade seria que Eduarda tenha se afastado de Maria, como retaliação pelas tribulações sofridas. Eduarda, nesse momento com 12 anos, pode ter expressado tal decepção em comportamentos rebeldes ou queda do rendimento escolar. Por outro lado, após mais uma confrontação com a polícia, Maria pode ter se afastado definitivamente dos laços que mantinha com o tráfico ou traficantes, passando a se dedicar mais aos filhos e apoiando seu desenvolvimento pessoal e escolar. Em 2011, Eduarda relata ter ido morar com o seu pai por alguns meses, no início do ano letivo, contando de uma situação que estaria ligada a conflitos entre ela e Maria, como se pode ler a seguir: assim no começo do ano eu e minha mãe, num sei por causa de que cara, acho que prim-, acho que era alguma coisa, o ano passado foi a mesma coisa, primeiro dia de aula eu fui pra escola, quando eu voltei eu falei eu vou lá na casa do meu pai e vou dormir lá hoje ai minha mãe do nada ah você não vai morar na minha casa que às vezes eu acho que a minha mãe é meio louquinha, cara //E1: (@1@)// que, tipo, do nada cara, eu num fiz nada eu fui lá na casa do meu pai, a minha mãe eu não quero mais você aqui, vai morar com o seu pai e num sei o quê ai que, tipo, ela me botou pra fora, daí eu fiquei morando lá no meu pai, ai em maio eu voltei pra cá, (8/4- 8/10) Nessa argumentação, Eduarda se apresenta como vítima de desmandos de sua mãe sem algum motivo aparente. Deve-se ressaltar, no entanto, que no momento da entrevista Eduarda e Maria viviam uma fase de frequentes conflitos, por isso pode-se apreender um interesse de apresentação, por parte de Eduarda, no qual as desavenças com sua mãe não
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são proporcionais aos seus comportamentos, na perspectiva de Eduarda. O que se pode ressaltar, ademais, é a presença recorrente de Roberto como figura de apoio na narrativa de Eduarda. Nesse momento, não se sabe se Maria está envolvida em um novo relacionamento ou se está empenhada em algum trabalho assalariado. Em sua entrevista, Eduarda fala mais longamente sobre acontecimentos mais recentes, ocorridos no ano da entrevista, 2012. Um desses relatos se refere ao fato de estar namorando, apesar de Eduarda não se aprofundar no assunto. Perguntada, ela relata sobre o início do namoro, iniciado por um contato em rede social. Mais detalhes estão presentes nos relatos sobre o cotidiano escolar e sobre os desentendimentos dentro da família, que teriam continuado desde o ano anterior. De acordo com Eduarda, a mesma relocação na casa de Roberto teria ocorrido no início do ano letivo de 2012, fortalecendo um padrão apresentado por Eduarda no relacionamento dos pais com ela e com seu irmão Edson, que morava com Roberto: é ele mora lá tipo, lá do outro lado lá, lá do outro lado lá do morro //E2: hm// mora aqui mesmo mas é lá atrás, mora lá com meu irmão sempre foi isso, depois que a gente veio pra cá, ai meu irmão decidiu ficar lá com ele, e às vezes até que dá uma expulsadinha dele lá, que ele apronta lá e vem pra cá mais depois ele volta pra lá de novo //E2: hm// não adianta nada (1) (7/8- 7/11)
Nesse trecho, Eduarda apresenta o arranjo de moradia de seu irmão como igualmente inconstante e dividido entre a casa de Maria e Roberto. Pode-se pensar que, para os dois irmãos mais velhos, exista uma frequente alternância entre as casas de Maria e Roberto, não sem alguma participação desses adolescentes nas decisões sobre realocações temporárias. Também em 2012, Maria consegue emprego no serviço de limpeza de um hospital, o que pode mais uma vez ter significado uma reorganização das tarefas domésticas, com possível encargo maior para Eduarda. Esse emprego pode, também, ter melhorado as condições financeiras da família. A dedicação de Eduarda aos estudos é, nesse momento, incerta. Sabe-se, porém, que, além dos conflitos com os pais, Eduarda passa a se envolver em brigas na escola nesse ano:
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eu fiz °merda na escola° (5) ((voz de sua mãe ela bateu numa criança deficiente’)) num foi foi bater, eu::: ãm, tipo, acho que assim a garota num tem nada a ver com deficiente, a garota me xi-xingou, tipo, ai as pessoal ficou botando pilha ah bate nela Eduarda bate nela ai eu agredi sem querer né, mais pela pilha dos outros, depois quando eu vim pedir desculpas a garota, ai uma garota grávida veio e falou assim ah bate em mim bate em mim já veio me agredindo, ai eu revidei ai depois quan-, eu num sabia que ela tava grávida, ai a garota falou assim ah Eduarda ela ta grávida eu ué eu não posso fazer nada ela e::: depois eu me afastei fui bem pra longe dela, depois ela veio igual um touro pra cima de mim de novo, ai eu também::: ela me=me encostou revidei nela e depois a gente foi pra secretaria, e assim, ai eu tava conversando com a coordenadora ela falando, ela é::: eu acho que assim::: essa garota que tava grávida ela falou vocês três erraram a menina por ter te xingado a que diz ser deficiente você por ter agredido ela e a menina grávida por que ta grávida e vim pra cima de você e ela falou assim você ah::: e vai sempre cair pra cima de quem ta mais forte porque tipo você num ta saindo como uma doente e você não ta grávida va- vai cair tudo pra cima de você como se você tivesse agredido as duas e ter arrumado confusão com as duas e ai ela falo que agora::: eu falei, os ( ) falou eu num fazer nada com você, eu quero só, que é o diretor da escola::: //E2: hm// ele falou que era pra mim pedir desculpa, que se o responsável dela::: eu pedi desculpa na hora e pedi depois pelo face, ai tipo::: //E2: (@1@)// (@1@) a::: ai eles falar-, ele falou assim se os pais dela vierem aqui na escola você conversa eu falei tudo bem sô eu falei por mais que eu tenha errado essa tal grávida ai, ela num tinha nada que vim pra cima de mim porque:: e depois ainda me ameaçou falou ai quando você num sabe o que você é capaz, lá fora você vai ver eu falei você ta grávida e ainda ta querendo arrumar confusão comigo ((risos)) tipo, ai se eu, se ela viesse pra cima de mim lá fora de novo e eu fosse pra cima dela eu ia sair como vilã mais uma vez, tipo que bati nela lá dentro bati nela lá fora, sendo culpada por uma coisa que::: ((voz de criança pergunta algo à mãe da entrevistada)) que eu num fiz ((mãe responde não e nem quero saber pode procurar‘. Criança então eu vou de chinelo . Mãe num vai nada vai de sapato‘)) (9/28- 10/17) Destaca-se, primeiramente, a participação de Maria nesse momento da entrevista, já que a mesma sala onde se dava a entrevista era usada como quarto das irmãs menores, que estavam sendo arrumadas para ir para a escola. Dessa maneira, a menção do tema das brigas na escola por Eduarda parece estar relacionada à presença da mãe e à expectativa da mesma sobre uma certa abordagem desses temas. O episódio relatado, sobre um grave conflito com colegas na escola, pode ser visto, possivelmente, como uma reprodução por parte de Eduarda de comportamentos
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violentos de Maria ou de Roberto presenciados em casa. Em consequência desse conflito, pode-se pensar que Maria e Roberto tenham reagido com mais repreensão, ou, talvez, com mais atenção ao desenvolvimento e comportamento de Eduarda. Outro fator a se destacar nessa narração é a presença de professores e funcionários da escola por quem Eduarda se sente ouvida e levada em consideração, um aspecto que aparece em outros relatos dela sobre a escola onde estuda. O relacionamento atual de Eduarda com seus pais, tema amplamente abordado na entrevista, parece apontar para um endurecimento da atitude de Maria e Roberto para com Eduarda, como mostrado nos trechos sobre as restrições quanto a saídas noturnas e punições por brigas na escola. Isso certamente está conectado, como causa ou como consequência, aos comportamentos violentos de Eduarda. Em relação ao relacionamento com o pai, Eduarda apresenta um quadro de perda de proximidade e de apoio, que, segundo ela, existiam durante sua infância. Essa apresentação está em notável contraste com a reconstrução biográfica na qual o apoio logístico de Roberto, que, na data da entrevista, ainda era substantivo; para além desse tipo de apoio, é questionável a extensão passada do apoio emocional provido anteriormente por Roberto, em vista de seus comportamentos alcóolatras e violentos. Mesmo assim, Eduarda ressalta os laços mais fortes que teriam se perdido e que ela ocasionalmente tentaria recuperar: é, tipo quando ele briga comigo::: esses dias mesmo a gente tava brigado, né, que ele tinha brigado comigo, ai na hora eu fiquei com aquela raiva tipo ai nunca mais eu olho na cara dele, nunca mais eu quero falar com ele mas depois ai eu fu-, ai ele tava briga- brincando ai com as crianças, eu vim puxar saco dele lá falar com ele, que falei ´é mermo pai é mermo //E1; E2: (@1@)// ai a gente ficou se falando lá, ele::: ai tipo que a gente voltou a se falar e sempre assim: briga::: até a minha mãe, (8/42- 9/4) De maneira semelhante, Eduarda se apresenta em um momento de distanciamento em relação à Maria. Em um relato sobre desentendimento com sua mãe do qual Eduarda não se sentia culpada, mais uma vez a distância e desarmonia é destacada no relacionamento então atual entre mãe e filha: minha mãe nem olhar na minha cara ela num olhava, ela me tratava como se eu fosse ((risos)) uma pessoa estranha que, a minha mãe às vezes quando ela fica com raiva ela sai de baixo, ultimamente eu to
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aprontando né //E2: (@1@)// às vezes eu levo culpa de=assim, uma coisa eu fico gente caramba uma coisinha assim um problema que se estende, minha mãe é, pra minha mãe e meu pai eu sou a vilã, eu to fazendo tudo de errado, ta certo que, eu to °apronta::ndo° °umas coisas eles têm razão de (1) de brigar comigo° (2) °fazer o quê?° (8/14- 8/19) Deve-se notar, mais uma vez, que a situação presente marca a maneira como os relacionamentos com os pais são caracterizados no passado. Ademais disso, a intensificação dos conflitos e das vigilâncias por parte dos pais, justificadas ou não, certamente representa um sentimento de desamparo para Eduarda. Esse sentimento é eloquentemente expressado em uma fala na qual Eduarda argumenta sobre o distanciamento de seus pais e as mudanças na maneira de trata-la: ai foi tão engraçado, cara ultimamente eu tava comentando com as minhas amigas cara eu to sentindo saudade de apanhar! //E2: (@1@)// (@1@) sério, e sei lá acho que assim, eu chego aqui minha mãe fala que vai me bater, eu fico naquela expectativa e agora eu vou apanhar? ai minha mãe me xi::nga, mas nem me bateu //E2: (@1@)// (@1@) mas assim, é::: sei lá, faz parte (2) (7/41- 7/45) Nesse trecho, Eduarda apresenta a falta de castigos corporais ironicamente como um indício do afastamento de seus pais e algo de que sentiria falta. Além da naturalização da violência, patente nessa construção, pode-se pensar que essa fala está ligada a um sentimento de que seus pais a veriam como incorrigível. Tal colocação, no entanto, contrasta fortemente com as outras sobre o acréscimo da vigilância por parte de seus pais recentemente. Nota-se nessa apresentação um tom acusatório, com a possibilidade de que Eduarda se valha de tal colocação para apontar as atitudes contraditórias dos pais como responsáveis por seu próprio comportamento violento recente. Síntese da reconstrução biográfica de Eduarda Eduarda nasce em 1998, filha de Maria, de 16 anos e ex-moradora de rua e Roberto, idade entre 56 e 60 anos na época do seu nascimento. Eduarda vive no Morro da Azaléia desde que nasceu, onde seus pais permanecem após a separação e posterior nascimento de outros filhos de Maria. Eduarda, ao longo de sua infância e adolescência, reside durante períodos com seu pai, Roberto e, na maior parte do tempo, com Maria, sempre acompanhada de alguns de seus três irmãos, já que a família passa por sucessivas separações e reconfigurações. Acontecimentos graves na vida de Maria, como
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envolvimento com tráfico de drogas e prisão, têm fortes consequências para o desenvolvimento psicossocial de Eduarda. Nos anos anteriores à entrevista, feita quando Eduarda contava 15 anos de idade, a adolescente havia se envolvido em conflitos na escola. Eduarda cresce em meio à enorme instabilidade devido às constantes mudanças e sucessivos abandonos que sofre em sua infância, fazendo com que seu relacionamento com a mãe, Maria, seja, provavelmente, bastante tenso. Tais instabilidades tiveram origem, para Eduarda, no contexto em que nasceu, já que Maria, muito mais nova que Roberto, pode não ter tido clareza sobre sua disponibilidade de compor uma família naquele momento de sua adolescência. Desde seu nascimento, é possível que Eduarda tenha sido negligenciada ou que tenha sido cuidada por diversas pessoas sucessivamente. Maria, ao tornar-se mãe de Eduarda aos 16 anos, possivelmente viveu o momento de gravidez como bastante traumático. A partir de uma perspectiva adulta, muitos anos após a separação, Maria claramente se vale da disponibilidade, ainda que relutante, de Roberto arcar com responsabilidades relativas a seus filhos. O pai, Roberto, representa uma figura de apoio, mesmo que limitado, para Eduarda, já que ele oferece ajuda em momentos extremos, apesar de no cotidiano nunca ter assumido o cuidado de Eduarda. Outro elemento para esse sentimento de apoio restrito que Eduarda recebe de seu pai é o fato de que seu irmão, cujo pai biológico não lhe oferece apoio, vive com Roberto e Eduarda permanece a maior parte de tempo com sua mãe. As diferentes configurações de moradia e cuidado a que Eduarda e seus irmãos são submetidos parecem causar um grande sentimento de insegurança em Eduarda, o que se alia ao fato de sua família também temer a ameaça constante da violência relacionada ao tráfico de drogas. Diante desses fatores, Eduarda, em sua adolescência, parece optar por repetir alguns comportamentos de sua mãe, especialmente no que se refere ao emprego de violência. Nesse sentido se destacam os conflitos vivenciados por Eduarda na escola, nos quais ela emprega violência física. Por outro lado, é igualmente possível que Eduarda escolha o caminho oposto, a que tem acesso devido à sua frequência escolar relativamente constante, diferentemente de sua mãe Maria. Isso poderia estar relacionado ao fato de
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que Eduarda encontra na escola e em alguns professores pessoas de referência para seu futuro pessoal e profissional. Um último elemento do momento presente de Eduarda por ocasião da entrevista é que, diante de um afastamento e maior rigidez por parte dos pais, Eduarda se sente desamparada e alvo de controles excessivos ao adentrar a fase da adolescência, o que a faz idealizar a fase anterior em que o cuidado dos pais e o envolvimento mais intenso com sua educação se expressava, segundo ela, nos castigos físicos. Para Eduarda, esses castigos seriam preferíveis ao afastamento e desconfiança constante que ela julga ser a atitude atual dos pais para com ela.
8.2. Reconstrução biográfica: Célia e Jason, mãe e filho em contexto de negligência e busca de integração familiar (Ítaca) 8.2.1. Célia, mãe de Jason
Célia7 é a quarta filha de seus pais, nascida em 1980, provavelmente na cidade do Rio de Janeiro. Embora haja poucas informações sobre seus genitores, pode-se deduzir que cresceram durante o Regime Militar, iniciado em 1964. É possível imaginar que esse contexto político e social tenha influenciado de uma forma ou de outra a maneira como ambos seus pais foram educados, independentemente do envolvimento de suas famílias e deles próprios com atividades políticas (mais fortemente, no entanto, no caso de envolvimento). Não se sabe se a origem regional dos pais de Célia é circunscrita ao estado do Rio de Janeiro ou, como comumente era o caso de habitantes de baixa renda de Ítaca8 na década de 1970 e 1980, provenientes de outros estados brasileiros que migraram em busca de melhores condições de vida. Estima-se que os pais de Célia tiveram seus primeiros filhos na década de 1970, provavelmente passando por instabilidades em sua situação econômica devido ao número considerável de filhos, cinco. É desconhecido se os pais contavam com ajuda financeira ou suporte logístico e afetivo de seus familiares para a criação dos filhos. Pode-se pensar que o pai de Célia 7
“Célia” não é o nome verdadeiro da entrevista, o qual foi preservado para a pesquisa. “Ítaca” corresponde a outra anonimização, inspirada na famosa ilha grega. Todas as demais localidades presentes nesta biografia ganharão nomes fictícios.
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trabalhava fora (suas atividades econômicas posteriores a partir da década de 1990 estavam relacionadas ao comércio), enquanto a mãe pode ter se dedicado a trabalho fora de casa ou criação dos filhos. Quando do nascimento de Célia, não se sabe se sua mãe já possuía um diagnostico de câncer, o qual a leva à morte seis anos depois. Também não se sabe como era a relação entre seu pai e sua mãe, restando apenas as cogitações possíveis sobre o impacto de um quarto nascimento dentro de uma família de baixa renda. Nos primeiros anos de vida de Célia, provavelmente vividos em Ítaca e, possivelmente, na comunidade de Stravos, onde a família viria a se estabelecer, pode-se pensar que o contexto socioeconômico onde estava inserida era marcado pela precariedade. No início da década de 1980, um terço da população de Ítaca vivia em palafitas e estavam sujeitas a frequentes inundações durante as marés altas. Nesse mesmo período, Célia passava sua primeira infância em companhia dos pais e de três irmãos mais velhos, que provavelmente também eram crianças pequenas, mais uma irmã que viria a nascer em torno de 1983. É possível pensar que, diante dessas condições, a família de Célia tenha lidado com tensões e dificuldades que se refletiam no dia-a-dia familiar e no cuidado das crianças pequenas. Não se sabe se o relacionamento entre os pais era conflituoso, mas essa possibilidade deve ser considerada, em cujo caso tais conflitos teriam tido uma influência negativa no desenvolvimento psicossocial de Célia quando bebê e criança muito pequena. Ao mesmo tempo, possibilidades de melhoria em Ítaca foram trazidas pelo programa estatal Projeto Rio, que retirou muitos moradores da precariedade das palafitas e incluiu a construção de moradias para uma parte da população. Tendo começado aproximadamente do ano de nascimento de Célia, 1980, e continuado nos primeiros anos de vida dela, uma possibilidade seria que a família, então já numerosa, tenha se beneficiado desse programa e tido suas condições de vida melhoradas, passando a viver em uma casa de alvenaria ao invés de uma palafita. Isso traria consequências positivas para a família de Célia, que, então, poderia ter alcançado a possibilidade de prover melhor cuidado às crianças pequenas. No entanto, a participação nesse programa não necessariamente acarretaria melhoras no cotidiano das crianças, já que o relacionamento
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dos pais e a dedicação desses podem ter sido insatisfatórios mesmo no caso de recebimento de tal benefício. Outra possibilidade seria que a família de Célia não tenha se beneficiado diretamente das novas moradias em Ítaca. Nesse caso, pode, no entanto, ter existido um beneficiamento indireto, já que as atividades econômicas na comunidade provavelmente passaram por um período de dinamização. Possivelmente foram criados novos empregos e oportunidades tanto na construção civil quanto no comércio, das quais o pai de Célia pode ter se beneficiado. Porém, se não houve o beneficiamento direto nem mesmo suficientes oportunidades indiretas de se beneficiar desse programa, uma possibilidade teria sido de que a família de Célia tenha se percebido mais desfavorecida e excluída em comparação com os moradores contemplados pelo Projeto Rio. Célia, em sua entrevista, não menciona seus seis primeiros anos de vida, os quais aparentemente viveu com seus pais e irmãos. Não é possível saber se essa ausência se deve a uma tentativa de evitar lembranças dolorosas, ou se essa lacuna é uma forma de priorizar sua apresentação como órfão (ou, ainda, ambas as coisas). Ela também nada relata sobre sua falecida mãe, nem mesmo eventuais histórias que seus irmãos mais velhos possam ter recordado. Das poucas referências a sua mãe, duas estão relacionadas à experiência da maternidade/constituição de família: (...) assim, eu não tinha mãe, né, é, perdi a minha mãe com seis anos, então assim, não tinha aquela:: né, aquela experiência como mãe P. 2. L. 1. (...) então assim as filhas, né, porque::: perdeu a mãe cedo (1) e também assim, não teve aquela instrução de mãe, né, então todas casaram cedo P.11. L. 26. Como se vê, a entrevistada apresenta sua mãe como uma ausência em seu desenvolvimento pessoal, atribuindo a essa ausência certos desconhecimentos em assuntos tidos como femininos. Por volta de 1985-86, o pai de Célia inicia um relacionamento paralelo com uma possível moradora de Ítaca, a qual já possuía filhos. Não muito tempo depois, esta mulher fica grávida, em um período mais ou menos contemporâneo ao câncer da mãe de Célia. Mesmo considerando um gradual rompimento entre os pais da entrevistada, é
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razoável pensar que esses eventos sobrepostos tiveram um forte impacto para os filhos, os quais devem ter contemplado de maneira no mínimo ambígua o definhamento da mãe e a formação de uma nova família pelo pai. Mesmo que esse relacionamento tenha sido mantido oculto pelo pai, pouco depois a dureza da situação seria revelada aos filhos, que vivenciam de uma só vez a morte da mãe e uma separação física do pai, que vai morar com sua nova companheira. Os cinco irmãos, desamparados, vão para a casa de uma tia, iniciando uma estância de seis anos neste lugar. Uma vez acolhidos na casa de uma tia, não se sabe se paterna ou materna, pode-se pensar que os cinco irmãos tenham gradualmente compreendido a nova situação. Célia, com seis anos, juntamente com sua irmã mais nova, deve ter sido especialmente impressionada com a mudança. Embora seja provável que a situação doméstica anterior tenha sido econômica e afetivamente instável, o desaparecimento da mãe e a ruptura com a figura paterna deve ter gerado uma sensação de vulnerabilidade na entrevistada. Sabe-se que uma das irmãs de Célia possuía treze anos quando da morte da mãe, tendo provavelmente influenciado o ponto de vista dos irmãos menores sobre a situação. Curiosamente, nos relatos da entrevista, maior ênfase é dada à figura da madrasta, em detrimento do pai, como podemos ver a seguir: É, essa madrasta assim a gente passou mu::ito aperto com ela (1) porque, ela já conhecia o meu pai na época que a minha mãe tava doente, então logo assim quando a minha mãe faleceu ai apareceu ela grávida (P. 12, L. 23-25) A figura da madrasta é apresentada como um elemento intruso e desagregador, responsável em grande parte pela situação, enquanto que há certa economia no que se refere aos atos cometidos pelo pai, mesmo que eles tenham impactado fortemente nos filhos. Essa interpretação pessoal sobre o fatídico passado da entrevistada não pode ser desconectado do presente da entrevista, momento em que Célia vivencia uma forte reaproximação com seu pai. A separação abrupta da figura materna durante a infância (ou de uma figura substituta), segundo estudos da Psicologia Clínica, excedendo os problemas relacionados à perda em si, traz consigo uma série de questões referentes às consequências e acontecimentos que sucedem a perda do vínculo (Tinoco; Franco, 2011, p. 428). A necessidade de se ajustar
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a uma situação na qual o cuidador inicial está ausente, nesta perspectiva, envolveria um “processo de luto” que abarca a compreensão do ocorrido, as expressões de luto e a construção de novos significados (como vínculos com outras pessoas, por exemplo). No caso de Célia, pode-se perceber não apenas a perda de seu vínculo materno, mas também de seu vínculo paterno (que passa a ser mais esporádico), de sua casa original e possivelmente de todo o seu entorno, situação que requereria a elaboração de “múltiplos lutos” (Ibidem, p. 429). Não é possível saber se Célia e seus irmãos encontraram uma figura de referência na casa da tia, capaz de oferecer uma sensação de cuidado e proteção, ou se a irmã mais velha de Célia desempenhou uma função semelhante no período. Ou, ainda, se o pai de Célia prestou um apoio continuado aos filhos, mesmo vivendo em outro local. As breves observações da entrevistada sobre a atuação de seu pai e de outros familiares neste período de mudanças são marcadas ou pela ausência ou pelo descuido, com queixas sobre a falta de visitas paternas e o excesso de obrigações dadas pela tia: Eu lembro assim que foi assi::m, eu acho que era muito sofrimento pra=para umas crianças que tinham seis anos, porque assim, é::: ((voz ligeiramente embargada)) por exemplo, a gente saia da escola, a gente não tinha tempo de estudar, porque a gente tinha que ir direto pro mercado, faz- é:: ((voz muito embargada)) compra as coisas pra, no outro dia fazer quentinha [comida pronta para venda], então assim, a gente não tinha tempo de estudar, aquele tempo de ( ) assim, a gente não era aquela criança (1) excelente na escola P.3. L.27-34 No caso de que o tratamento na casa da tia não tenha sido exatamente como o relatado, sendo afetivamente e materialmente relevantes, pode-se pensar em uma dificuldade duradoura de adaptação à nova situação, em um “processo de luto” gerador de tensões entre Célia e seus parentes, responsável por más sensações e recordações. Ou, talvez, em uma transposição de frustrações com a figura paterna para a família da tia, que neste caso não estaria implicada em maus tratos. Independente da veracidade das histórias de sofrimento na casa acolhedora, é sugestivo que a entrevistada, por vezes, avalie como positivo esse tempo, classificando-o como “bom”, marcado por um “aprendizado”. Tais avaliações, talvez, relacionem-se com a atual visão neopentecostal de Célia, a qual envolve ideias como a de perdão, clemência e redenção.
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Com relação à vida escolar da entrevistada, nenhuma outra referência há além daquela transcrita acima, na qual se relaciona escolarização a “sofrimento”. É possível imaginar que Célia tenha começado o Ensino Fundamental já na casa da tia, em um momento delicado de sua vida, o que provavelmente teve um reflexo negativo em seu desempenho. Também é provável que ela tenha experimentado uma retração escolar durante seu período de luto, o qual pode ter se prolongado por meses ou anos. Além disso, se consideramos seu testemunho de trabalho infantil, pode-se delinear um quadro no qual a escola é meramente frequentada, sem um aproveitamento mínimo desejado. Todas essas situações podem ter gerado na entrevistada um sentimento de incapacidade, de culpa, não se esclarecendo se ele foi ou não tratado pela instituição de ensino e/ou pessoas responsáveis. Infelizmente, enfim, não é possível saber quantos anos Célia frequentou uma escola. Como pano de fundo nacional, testemunha-se na década de 1980 uma das maiores crises econômicas da história do Brasil, ficando a época conhecida como “a década perdida” (OMETTO; FURTUOSO; SILVA, 1995, p. 404). Tal crise, iniciada devido a problemas no endividamento externo do país, trouxe entre outros reflexos um aumento do desemprego e uma aceleração da incorporação de mulheres e filhos no mercado de trabalho (formal e informal) (Ibidem, p. 405). Para combater o impacto social da crise, houve por parte do Estado um importante investimento na área de alimentação e nutrição, além do lançamento de um plano econômico para congelar os preços, o Plano Cruzado (1986). A atuação estatal ajudou a recuperar uma série de indicadores sociais, mas, sem dúvida, não impediu a proliferação da crise entre a população mais pobre, como a de Ítaca. O testemunho de Célia corrobora as informações sobre a época e aponta para as estratégias da família no período: a incorporação de vários de seus membros ao mercado de trabalho e a informalização. Não se sabe se a família da tia obteve alguma ajuda estatal naquela época, nem mesmo se seu empreendimento com a venda de comida (“quentinhas”) teve êxito. Pode-se especular, entretanto, que ela possuía um certo número de recursos à mão, recursos que podem ter possibilitado uma gestão dos problemas econômicos ou até mesmo a plena manutenção do núcleo familiar.
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No inicio da década seguinte, vários conjuntos habitacionais foram construídos em Ítaca. O Pinheiro, por exemplo, foi inaugurado em 1990. O modelo foi repetido no Conjunto Nova Ítaca, em 1995, construído para assentar moradores removidos da área da via expressa Linha Vermelha. O Programa Favela-Bairro, iniciado em 1993, também beneficiou a região, possibilitando reformas e abertura de ruas. Não se sabe se o pai de Célia, sua tia, ou qualquer outro parente da entrevistada beneficiou-se diretamente com tais melhorias, mas é provável que o aumento da infraestrutura tenha beneficiado a todos. O que sim é relatado na entrevista é o retorno, à idade de doze anos (1992), de Célia para a casa de seu pai (dividindo a moradia com a madrasta e os filhos dela). Essa mudança pode ter sido o resultado de melhorias nas finanças e na moradia de seu pai, possivelmente contemplado com uma moradia popular. Estando este em algumas épocas relacionado à atividade de comerciante, é cabível supor um aumento das oportunidades de negócios e ganhos. Neste caso, é possível imaginar um cenário onde o arranjo de assistência familiar já não é mais necessário, e onde Célia passa a contar com um melhor suporte material. Entretanto, pode-se imaginar um outro cenário menos favorável, onde a situação financeira da família da tia piora e Célia é obrigada a retornar à guarda paterna, mesmo sem as condições materiais apropriadas. Neste caso, a situação afetiva entre a entrevistada e a família de seu pai pode ter declinado, já que antigas tensões podem ter sido despertadas e redimensionadas. Além disso, não se sabe se outros irmãos de Célia a acompanharam a casa paterna, como a irmã mais nova, o que pode ter sido um fator de desequilíbrio dentro desse núcleo familiar. Célia narra o retorno a casa paterna sem apresentar uma justificativa aparente, sempre caracterizando esse período vivido com o pai como transitório, entre a saída da casa da tia e o inicio do relacionamento com seu marido. Grande destaque é dado à presença da madrasta e de seus filhos, os quais, segundo a entrevistada, eram preferidos em várias situações: (...) também teve o lance da madrasta, né, que meu pai já tinha mulher, e essa mulher engravidou do meu pai, ai:: ela também tinha os filhos dela, ,ai foi outro sofrimento porque assim’, eu batia- os filhos dela com a gente, porque, ela queria tudo pros filhos também, ai ,foi outro
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problema’, ai eu conheci meu esposo, ai fui morar com meu esposo (...).P.4. L.4-10. No trecho acima, nota-se uma pequena referencia ao relacionamento entre a entrevistada e os filhos da madrasta. Como se sabe, essa mulher gerou um filho do pai de Célia quando ele ainda era casado, o que deve ter repercutido gravemente entre os membros do núcleo familiar originário. Uma vez juntos, tais lembranças podem ter facilitado desentendimentos e brigas, como a relatada acima. Nenhuma menção é feita à figura do pai, não se esclarecendo se ele tinha um comportamento amistoso e cuidadoso ou rude e ausente. Assim, é possível pensar em pelo menos duas hipóteses sobre a relação familiar naqueles anos: uma em que Célia se sente excluída por seu pai e sua madrasta e, por alguma razão, prefere enfatizar a exclusão desta; e outra em que, realmente, Célia é excluída por sua madrasta, aqui preocupada em garantir melhores oportunidades a seus filhos. Entretanto, se algum irmão ou irmã de Célia a acompanhou à casa do pai, outros quadros mais complexos podem ser pensados, como, por exemplo, uma polarização entre a antiga e a nova família ou uma franca tentativa de expulsão destes por parte da madrasta. Os anos vividos na casa do pai, entre 1992 e 1995, podem ter sofrido as consequências das instabilidades econômicas do período, como a aguda inflação e o forte desemprego. A possibilidade de que Célia tenha continuado a ajudar financeiramente o núcleo familiar não pode ser descartada. Segundo estudos econômicos sobre o período, a população brasileira, que havia criado mecanismos para se defender das altíssimas taxas de inflação, sofreu um novo revés após a saída de Fernando Collor da presidência, em 1992, quando se verificou um aumento da inflação e da desigualdade de renda (NERI, 2007, p. 57). Este quadro assiste uma progressiva mudança a partir da implantação do Plano Real, em 1993, quando há uma espécie de “boom econômico e social”, com um aumento de renda geral na ordem de 12% ao ano (entre 1993 e 1995) (Idem). A tão esperada estabilidade da moeda provavelmente trouxe benefícios visíveis à família de Célia, talvez mais disposta a poupar e investir. Se esse não foi o caso, pode-se pensar em um cenário pelo menos estável, no qual as apreensões com o futuro econômico vão dando lugar a uma maior confiança.
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Em 1994, a prefeitura do Rio de Janeiro reconhece oficialmente o bairro de Ítaca, como Complexo dividido em várias comunidades, dedicando-lhe uma Região Administrativa própria. Uma divisão administrativa mais localizada deve ter tornado, provavelmente, mais eficientes os serviços públicos oferecidos na região, aumentando assim a qualidade de vida dos moradores. É possível imaginar que as melhorias que foram sendo implementadas durante a década de 1990 trouxeram maior autonomia ao bairro, incentivando um mercado interno e fixando a população. Tendo em vista a relação do pai de Célia com o comércio, e também o então recente lançamento do Real, pode-se imaginar uma situação de maior estabilidade ou até de bonança econômica neste núcleo familiar. Aos quinze anos de idade, Célia inicia um relacionamento com um homem do bairro, um morador da mesma rua. Pode-se pensar que, se realmente a situação na casa paterna era de exclusão (econômica e/ou afetiva), Célia viu nele a oportunidade de uma melhoria em suas condições de vida, possivelmente almejando uma união. Ou, pelo menos, uma forma de afastamento de seus problemas mais urgentes, um apoio para lidar com o cotidiano na casa do pai. Não é possível saber se houve por parte do pai de Célia, bem como por parte da família do parceiro, qualquer reprovação ou aprovação ao relacionamento. Entretanto, tendo em conta a pouca idade da entrevistada, cabe supor que existiu algum tipo de preocupação entre as famílias, como a de uma gravidez indesejada. Como se tratava de uma espécie de vizinho, é provável que ambas as famílias se conhecessem, o que pode ter facilitado ou não a relação. Segundo a entrevista, Célia chega a morar na casa dos pais de seu companheiro por um curto período de tempo. Não é possível saber se essa estância na casa do companheiro significou uma ruptura/desentendimento com a casa paterna. É possível pensar, dada a proximidade entre as duas moradias, que Célia tenha mantido vários vínculos com sua família. O retorno à casa paterna, segundo ela, deveu-se a um desentendimento com a mãe dele, sua sogra, que teria se “intrometido” na relação. Não é possível saber se, realmente, houve uma dificuldade de convivência entre eles, ou se, por exemplo, houve um desentendimento entre a entrevistada e seu parceiro. Neste último caso, cabe supor que este homem tenha decepcionado Célia de alguma forma, como no tratamento ou nas expectativas de futuro. Após o desentendimento, a volta à casa do pai pode ter causado
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uma sensação de frustração e derrota, ou, ao menos, de expectativa. De qualquer forma, tal separação não se mantém por muito tempo e o casal volta a morar junto, mas agora permanentemente, em uma cidade da zona metropolitana do Rio de Janeiro. Como já foi dito, esse relacionamento é apresentado por Célia como uma continuação cronológica de sua estância na casa da tia, apenas precedida por um pequeno entreato na casa do pai. A importância desse relacionamento, que mais tarde se tornaria uma união estável, é matizada em diferentes passagens da entrevistada. Ao nível afetivo, Célia chega a considerar o companheiro como um “pai”, salientando o ganho de “experiências” e o início de uma “vida”: (...) quando eu engr- quando eu foi morar com o pai do Jason eu tinha quinze anos é ai eu engravidei com dezoito mas assim foi muita experiência pra mim, muita experiência, porque aprendi muita coisa com isso, foi bom (...). P.2. L. 4-9. (...) ai eu conheci meu esposo, ai fui morar com meu esposo, ai::, né, que eu comecei a viver, porque, né, ele=começou=a=me=dar=atenção de pai, que eu não tinh- não tinha atenção de pai (...). P. 4. L. 9-14. Poucos elementos estão disponíveis na entrevista para uma interpretação das passagens acima, como, por exemplo, possíveis características paternais relacionadas ao companheiro. Existe uma economia narrativa sobre essa figura que dificulta as interpretações. Se se restringe estas aos dados oferecidos por Célia, bem como ao contexto aparente que a cercava, corre-se o risco de uma simplificação na qual Célia apenas instrumentaliza a relação para deixar a casa do pai/madrasta. É preciso não perder de vista a possibilidade de que, mesmo com os possíveis problemas citados, Célia tenha contado com um apoio material por parte do pai (que, talvez, permitia-lhe continuar na escola), mantendo-se assim ligada a ele. Neste cenário, o relacionamento com o companheiro pode ter suprido uma função mais afetiva do que material. Por outro lado, este relacionamento pode ter alcançado outros significados, como uma reaproximação com o pai, na hipótese de que o companheiro fosse amigo/conhecido da família. A mudança de Célia com seu companheiro para uma cidade da região metropolitana pode ter sido fruto de uma boa oportunidade de trabalho na região, pois se sabe que à
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época seu companheiro encontrava-se empregado, trabalhando como mecânico em uma empresa de automóveis. Outra possibilidade é a de que o emprego tenha sido encontrado depois, sendo a mudança gerada por outros fatores. No caso de que a mudança tenha sido impulsionada por ele, pode-se imaginar que um interesse profissional tenha norteado a decisão, ou talvez um desejo de conviver novamente com Célia, mas sem a interferência da família (ou ambas as coisas). No caso de que Célia tenha impulsionado a mudança, pode-se imaginar um desejo de distanciamento de sua família, ou ao menos um distanciamento doméstico. Como se tratava de uma adolescente entre dezesseis e dezessete anos, fortalece-se a ideia de que ele tenha sido o idealizador da mudança, embora essa seja apenas uma linha de interpretação. Nesta mesma época da mudança de Célia, entre 1996 e 1997, sabe-se que a irmã mais velha da entrevistada, estudante de Nível Superior ou de Magistério (Célia diz que “estudava para professora”), foi operada várias vezes devido a nódulos nos seios. Esta irmã, que tinha entre vinte e três e vinte e quatro anos, aparentemente vivia fora de Ítaca, na casa de sua sogra. Este dado da doença da irmã, além de lançar um pouco de luz sobre as relações familiares de então, também nos ajuda a compreender um interesse de apresentação recorrente na entrevista de Célia, o de apresentar sua madrasta como uma manipuladora: (...) entendeu, porque assim, a gente já sofreu muito na mão dela [referese à madrasta], a gente já:: passamos assim, coisas de entiada com madrasta mesmo (...) ela assim que influencia::va, meu pai né, porque essa minha irmã mais velha ela::: (1) ela se formou, professora, então é:: é::, teve problemas é::, nódulos no peito, fez várias cirurgias, e meu pai nunca participou de nada disso (1) meu pai sempre foi ausente disso também, entendeu //E1: uhum// então tudo isso foi influência dela (...). P. 12-13. L. 30-05. O trecho acima é o primeiro em que Célia discorre sobre a doença da irmã. Entretanto, o assunto em questão neste momento da entrevista é a relação entre o pai e a madrasta de Célia, mais especificamente a influência que esta exerceria sobre aquele. Até este momento da entrevista, várias observações já haviam sido feitas relacionando a madrasta a atitudes manipuladoras, como o fato de ter “aparecido” grávida após a morte da mãe da entrevistada e de “querer tudo” para os próprios filhos, mas, neste trecho, passa-se a uma acusação direta. Juntamente com a apresentação de uma parceira manipuladora,
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apresenta-se
um
pai
facilmente
manipulável,
que
inadvertidamente
deixa
expostos/abandonados a seus filhos, como na história em questão. Ao que parece, Célia pouco a pouco vai desenredando a figura do pai, que progressivamente ganha importância na biografia. Um motivo possível para que Célia trate o assunto do câncer da irmã de forma tão emocional seria uma proximidade entre as duas, proximidade que pode ter significado um acompanhamento durante a crise. Neste caso, Célia pode ter se sentido sobrecarregada com tal cuidado, até mesmo desapoiada pelos demais membros da família. Outra possibilidade é a de estes também tenham se unido para apoiar a irmã, o que pode ter reaproximado a família, embora sem a presença do pai. Também não se pode descartar a ideia de que este tenha sido o primeiro contato significativo entre as irmãs, a partir do qual elas tiveram a oportunidade de criar laços de amizade mais profundos. Pouco se sabe sobre os anos iniciais de Célia nessa cidade metropolitana, como se tinha ou não contato com outros moradores, se estudava ou trabalhava. Pode-se supor que o afastamento de Ítaca tenha alterado a relação da entrevistada com a sua família, tanto pela frequência quanto pelo seu novo status, o de companheira estável de seu parceiro. Entretanto, é cabível supor que o relacionamento de Célia não tenha sido necessariamente estável naquele período, podendo ter sofrido conflitos e possibilidades de ruptura. Se realmente Célia havia buscado essa mudança como uma forma de distanciar-se de sua família, é provável que seu companheiro, de alguma forma, tenha se ressentido com a situação. Nesta mesma perspectiva, uma eventual dificuldade financeira pode ter desestabilizado ainda mais a nova união, embora não haja elementos para desenvolver essa hipótese. Considerando o provável vínculo empregatício do companheiro com uma oficina de uma empresa de automóveis, que data mais ou menos desta época, pode-se delinear um quadro no qual a estabilidade financeira tenha ajudado a fixar o casal na nova localidade. Internamente, a estabilidade financeira pode ter inspirado o casal a constituir uma família. Uma outra possibilidade correlata é a de que Célia tivesse maior interesse em um filho, o qual seria visto como uma forma de manter e/ou unir a relação.
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Seja como fora, aos dezoito anos, em 1998, Célia engravida de seu primeiro filho, Jason. A maternidade é um traço marcante da entrevista, constituindo-se o assunto primeiro da narrativa inicial: E1: Cida como eu falei, você pode falar é:: sobre a sua vida, sobre o que você quiser da sua vida, do ponto que você quiser até o dia de hoje (1) a gente não vai, não vai te interromper, não te vai fazer perguntas, a gente só vai te fazer perguntas no final, de acordo com aquilo que você tiver falado com a gente //C: tá bom// tá, pode começar C: É:: eu tenho dois filhos, é:: Jason catorze anos, que faz parte aqui do Vida Real, e::: tenho a Ju também, que tem sete anos, um casal (...) P.1. L. 3-9. Como se vê, mesmo conhecendo a natureza biográfica da entrevista, Célia prefere iniciar sua narração ressaltando sua condição de mãe e não contando sua própria vida. É provável que essa escolha tenha sido influenciada pelo local da entrevista, uma ONG juvenil, bem como pelo tema da pesquisa, “famílias com crianças”. Por outro lado, tendo em vista as demais passagens sobre sua maternidade, pode-se observar a importância desse fato para a estruturação de sua própria apresentação, conectando-o a sua experiência de orfandade e a seu desenvolvimento como pessoa adulta. Célia, em diversas passagens, ressente-se por não ter desfrutado de experiências que “mãe passa para mãe”, ou seja, de conselhos de mãe sobre a vivência de uma maternidade. Entretanto, também considera que a gravidez lhe proporcionou muitos “aprendizados”, “experiências”, o que remete a possíveis impactos positivos na sua vida adulta, até mesmo a um rompimento com a época da infância. Esta, segundo os interesses de apresentação da entrevistada, é marcada pela ausência da mãe e pela displicência/mautrato da tia/pai, o que se oporia ao período de convivência com o companheiro (tratado até como “pai”), quando ela inicia vários aprendizados, como o da maternidade. Independente dos interesses de apresentação da entrevistada, o nascimento de Jason pode ter tido relação com várias conjunturas e acontecimentos que vivenciava o casal naquele período. Uma possibilidade é a de que o provável emprego do companheiro tenha possibilitado o planejamento de um filho, o qual pode ter sido um desejo antigo deles ou, contrariamente, uma eventual tentativa de reaproximação do casal. No primeiro caso, pode-se imaginar um cenário onde a criança recebe um apoio e uma
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estrutura considerável, pois sua presença é esperada e almejada. A relação entre o casal não sofre grandes mudanças, havendo uma divisão de tarefas para garantir o conforto da criança. Talvez, Célia fixa-se no cuidado da casa enquanto o companheiro dedica-se ao trabalho externo, com alternâncias mais ou menos significativas deste arranjo. No segundo caso, pode-se pensar em uma estrutura menos confortável para receber a criança devido ao menor tempo de planejamento. A relação entre o casal possivelmente sofre mudanças, como uma reaproximação orbitada na presença da criança. O resultado dessa tentativa pode ser menos ou mais exitoso, sendo que ambos os resultados incidem sobre o tratamento que o recém-nascido recebe. Além da ideia de um filho planejado, pode-se pensar em uma gravidez casual, hipótese que muda sensivelmente os quadros esboçados acima. Se a gravidez de Célia chegou em um período de conflitos, a expectativa de um filho pode ter alterado mais ou menos a situação. Célia pode ter se amparado na figura de Jason, polarizando as relações domésticas. Ou, por outra lado, Jason pode ter provocado a resignificação da união, dando a ela um objetivo prático imediato. Também é possível pensar na gravidez como uma estratégia de Célia para continuar unida a seu companheiro, embora haja motivos para acreditar que a relação já era estável (uma duração de três anos, a coabitação). Pouco se sabe sobre o impacto desse nascimento nas famílias de Célia e do companheiro. As anteriores divergências mencionadas na entrevista talvez tenham sido minoradas, e talvez, enquanto núcleo familiar constituído, o casal tenha gozado de um novo tratamento. Ou, em uma perspectiva oposta, os cuidados com o recém-nascido podem ter ocupado o tempo deles e ocasionado um distanciamento com os familiares de Ítaca. De qualquer forma, é provável que, ao menos nos primeiros meses, Célia e o companheiro tenham atraído a atenção de seus familiares. No ano seguinte, em 1999, Célia presencia na casa de seu pai uma violenta briga entre este e sua companheira, briga que acaba gerando uma situação de emergência policial. Este acontecimento é extremamente relevante porque joga luz às relações familiares daquele momento e também porque explicita alguns interesses de apresentação já mencionados anteriormente. Segundo a entrevistada, esta se encontrava visitando seu pai quando sua avó, a mãe deste, apresentou-se pedindo algo de dinheiro para a compra de
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medicamentos. De acordo com Célia, esta senhora normalmente deixava a administração de sua aposentadoria nas mãos do filho, requerendo-lhe vez ou outra meios para suprir suas necessidades. Neste instante, a madrasta de Célia teria se apresentado para insultála e para negar o dinheiro, chamando-a de “piranha”. A reação do pai de Célia teria sido violenta, alcançando um alto grau de violência física (“encheu de porrada”). Momentos depois, um dos filhos da madrasta (não se sabe qual) teria se apresentado na casa portando uma arma e ameaçando o pai de Célia. Esta, atendendo a um clamor do pai, teria ido em busca de ajuda policial. Segundo a versão da entrevistada, todos teriam acabado em uma delegacia, embora a falta de queixas mútuas tenha permitido uma rápida liberação. Depois disso, pai e madrasta teriam se separado por doze anos, até 2011, quando supostamente houve uma reconciliação. Esse incidente é relatado quando uma das entrevistadoras pede a Célia que narre um dia em que ela tenha presenciado uma situação em que a madrasta teria influenciado o pai da entrevistada. Nota-se que a história narrada tem como objetivo principal criar um perfil da madrasta e, apenas em segundo plano, responder à pergunta da entrevistadora. Tal influência teria sido exercida na reconciliação, considerada um completo absurdo por Célia, quando ela teria feito com que seu antigo parceiro esquecesse a briga e suas consequências: (...) ai eles ficaram separados doze anos, doze anos, eles ficaram separados (3) ,ai o meu pai voltou pra ela’ (3) ai ficou todo mundo assim né, depois daquela situação toda, ‘a gente parou na delegacia, pai’ ‘o senhor vai voltar pra ela, pai?’, ‘que isso?’, ai ele voltou, ai eu falei pras minhas irmãs, a gente vai aceitar, sabe por que a gente vai aceitar, porque se o meu pai, a gente der as costas pra ele, ele vai esquecer as filhas, ele vai ficar pra ela, então a gente vai aceitar ela, a gente vai aceitar ela por ele (...) P. 13. L. 5-17. Atuando com extrema crueldade contra uma senhora que apenas buscava dinheiro para remédios (segundo Célia, seria um câncer na garganta, o que é uma coincidência, pois essa é a mesma doença que causou a morte da mãe da entrevistada), a madrasta que emerge da narração é covarde e economicamente interesseira (traço que já havia aparecido antes, quando ela teria buscado privilégios para seus filhos em detrimento dos filhos do companheiro). Dessa forma, desculpa-se a atuação violenta do pai, que apenas teria protegido a mãe enferma.
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Com relação à reaproximação em si (à “influência” questionada pela entrevistadora), que teria se produzido poucos meses antes da entrevista, nenhum detalhe é fornecido. Uma das referências mais importantes da entrevista às relações familiares de Célia (as mais atuais, pelo menos) está contida no trecho acima, quando ela se refere à necessidade de “aceitar” a escolha do pai, de não se “dar as costas” a ele. Como se vê, a entrevistada passa a se incluir em um círculo, o das “irmãs”, o qual teria uma carga semelhante de experiências com o pai. O temor ao “esquecimento”, experiência já vivenciada pelo círculo, seria um motivo convincente para que a reconciliação do pai com a antiga madrasta fosse aceita. Não se pode descartar a idéia de que essa união entre irmãs seja um artifício retórico empregado por Célia para não se referir a si mesma constantemente, homogeneizando opiniões diversas. Independente de como a entrevistada tenha narrado a situação acima, pode-se imaginar que, no momento da ocorrência, outras sensações tenham norteado Célia. Vivendo em uma cidade algo distante de Ítaca, mantendo uma relação no mínimo difícil com o pai (ou de reaproximação), é provável que ela tenha tido um posicionamento mais ambíguo com relação àquela experiência de violência. Mesmo considerando que o nascimento de Jason tenha reaproximado Célia de sua família, sobretudo do pai, é provável que os três anos de distanciamento não tenham solucionado divergências passadas mais profundas, o que aparentemente ocorreu somente vários anos depois. Infelizmente, há um salto temporal na entrevista entre 1999 e 2005, o que dificulta o acompanhamento dessa relação pai-filha. Algumas informações sobre esse período de lacuna na entrevista podem ser recuperadas pela entrevista concedida por Jason, neste mesmo ano (2012). Jason nasce em 1998, na referida cidade metropolitana, e assim descreve sua infância até os oito anos: E2: Você falou que seu pai tinha boas condições né, você se lembra um pouco mais dessa época, fala um pouco mais::: J: Trabalhava=meu pai é mecânico, mecânico automotivo, trabalhava na A., //E2: uhm// ai assim ele- não é que ele tinha dinheiro mais::: a gente vivia bem (1) só que depois ele veio a trabalhar como autônomo então, teve uma diferença nisso né. P.2. L.9-14.
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Para além de um interesse de apresentação preocupado em contrastar infância e adolescência, reputando aquela como um período estável e afetivamente relevante, Jason deixa algumas pistas de como era a situação familiar por aqueles anos. Ao que parece, Célia e família tinham alcançado uma estabilidade financeira que lhes proporcionava alguma autonomia. Tendo em vista este dado, pode-se supor que possíveis problemas familiares entre o casal e suas respectivas famílias foram gradativamente sendo solucionados ou amenizados. Arranjos de ajuda/solidariedade entre o núcleo familiar de Célia e seu pai, agora só, podem ter se materializado, ainda que dificultados pela distância. Se Célia não trabalhava externamente, é provável que ela tenha aumentado sua dependência com o companheiro, o que pode ter se refletido mais ou menos na criação de Jason. A partir da entrevista de Célia é possível delinear um período de grande atenção ao filho, criado com muitos “mimos”, o que talvez se relacione ao possível isolamento da entrevistada na nova cidade, ou ao próprio modo como os parceiros entendiam a criação deste. Em 2004 há a implementação do programa federal Bolsa Família, já no governo Lula, abrangendo vários programas sociais implantados no governo Fernando Henrique Cardoso (entre os quais, o Bolsa Escola, o Auxílio-Gás, além de programas sobre saúde e alimentação). Considerando o emprego do companheiro da entrevistada, pode-se pensar que a família não foi contemplada com essa ajuda, embora seja provável que o programa tenha impactado de diferentes formas no entorno de Célia. Além da existência de possíveis beneficiários entre sua família, a entrevistada pode ter visualizado uma maior segurança com relação a sua fonte de sustento, no caso de que faltasse a ajuda do companheiro. Na hipótese de que o núcleo familiar tenha recebido a ajuda, pode-se pensar em uma melhora geral das condições e uma maior independência de Célia, possível administradora do novo recurso. A ausência de relatos em um espaço de seis anos durante a entrevista pode sugerir várias linhas interpretativas, desde um silenciamento casual até um outro estratégico e meditado. Se, como vem se esboçando acima, o quadro da família era de estabilidade financeira/afetiva, resta contrastar esse período com o que vem em seguida, marcado por graves problemas familiares. Assim, se a não-matização desse período foi proposital, é
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possível pensar em um interesse de narração no qual predomina as passagens de dificuldades e privações, a busca por uma comiseração por parte do interlocutor. Em 2005, ocorre a perda do trabalho na Audi do companheiro, não se esclarecendo se o mesmo é substituído ou não por outro. Como alternativa mais provável, pode-se pensar no advento de vários problemas, tanto financeiros quanto familiares. Nesta perspectiva, a família é obrigada a se desfazer de bens e passa a contar com menos recursos, chegando talvez a depender de ajudas externas. Se, por exemplo, eles possuíam dívidas, é cabível imaginar um quadro ainda pior. Várias tensões podem ter se desenvolvido, alterando significativamente as relações familiares. É sabido pela entrevista de Jason que Célia começa a trabalhar como faxineira, o que de certa forma confirma a alternativa acima e aponta para um rearranjo familiar. Talvez as relações de Célia com Ítaca tenham sofrido uma mudança neste período, com uma possível reorientação das ajudas em direção ao núcleo com maior necessidade. Caso a entrevistada também tenha passado por problemas em sua relação, é cabível pensar uma revalorização dos vínculos familiares em Ítaca, possivelmente vistos como um apoio para o momento ou uma alternativa de recomeço. O nascimento de Helena, em 2005, ao que tudo indica, não contribuiu para a recuperação econômica da família (ou a aprofundou). Segundo a narração da entrevistada, tratou-se de uma gravidez planejada, decidida por motivo da perspectiva de uma operação de ligadura de trompas. Ao se referir à gravidez e à criação de Helena, Célia enfatiza a “benção” de ter tido uma menina, sexo desejado pelo pai, a docilidade da filha, descrita como “carinhosa”, bem como outros aspectos positivos da experiência. Entretanto, embora a entrevistada minimize as questões presentes no contexto de nascimento da filha, é patente uma diferença que ela mesma traça entre a criação de Jason e Helena: (...) porque assim, eu criei o Jason muito diferente da Helena, o Jason era uma criança que assim::, caia e eu ia logo pegar o Jason, então ele, tipo assim, foi criado com uns mimos que era pra ser de minina, não pra minino, né, e já a Helena não, a Helena eu criei, caiu, “levanta”, então ela é toda independente (...) P. 3. L. 5-8.
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Como se vê, o trecho acima sugere uma mudança de atitude entre o primeiro e o segundo filho, sendo este aparentemente criado com mais severidade e/ou impaciência. Pode-se supor que essa diferença se deva a certas pressões que ela sofria nesse momento, como a necessidade de trabalhar fora como faxineira e a menor segurança econômica do núcleo. Devido ao pequeno número de referências ao marido, torna-se difícil entender o impacto que o nascimento da filha pôde ter tido naqueles anos para o casal. Uma possibilidade é a de que ele realmente queria ter uma filha, alegrando-se então com a chegada de Helena. Isso pode ter gerado uma estabilização na convivência entre o casal, um objetivo prático pelo qual unir esforços (a busca por melhores condições de criação da recémnascida). Por outro lado, se o nascimento não foi de seu agrado, pode-se pensar em um estremecimento da relação e a cogitação de um rompimento. Neste cenário, é possível imaginar que Célia tenha buscado a gravidez para apaziguar a relação, obtendo mais ou menos resultado, ou mesmo que a filha tenha sido indesejada. Contemporânea a esse momento da família é a instituição da Lei Maria da Penha, de 2006, que visa coibir e prever a violência familiar e doméstica contra a mulher. Criando um aparato de apoio a mulheres em risco, a lei provavelmente teve um impacto notável à época, facilitando o rompimento de relações violentas e possibilitando o diálogo (público e privado) sobre o assunto. Como se evidencia com o relato da violência do pai de Célia, esta vivia em um contexto de possibilidades reais de agressão. Assim, é possível delinear vários possíveis reflexos desta lei sobre a vida da entrevistada, como uma atitude mais crítica com relação ao pai, uma revalorização de seu papel dentro do lar e/ou um reequacionamento de suas relações com o companheiro. Entretanto, como não há relatos claros de violência contra ela em toda a entrevista, as possibilidades acima ficam relegadas ao campo hipotético. Em 2008, Célia, o companheiro e os dois filhos mudam-se para Ítaca, para a casa do pai de Célia, com a intenção de dividir o aluguel de uma casa. Este dado torna duas linhas de pensamento descritas acima mais prováveis, a de que Célia vinha se reaproximando de sua família e a de que, realmente, a situação financeira do núcleo passava por dificuldades desde a perda do emprego na empresa de automóveis. Mesmo considerando
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que Célia sempre tenha mantido um relacionamento amistoso com o pai (ainda que algo distante), é cabível pensar que essa mudança não teria sido possível sem um prévio estreitamento entre ambos. Entre a saída aparentemente conturbada do lar paterno em 1996 e essa nova mudança haviam passado quase doze anos, tempo sobre o qual pouco se sabe sobre a relação pai-filha. No plano narrativo, entretanto, evidencia-se uma notável mudança de perspectiva com relação ao pai, que vai passando de abandonador, negligente, manipulável a (finalmente) “amoroso”. Essa mudança é explicitada em trechos como esse: (...) ai eu fui morar com o meu pai //E2: uhum//, ai nisso meu pai ficou doente né, ai::: (2) ela [a madrasta] (2) num veio vê o meu pai, aquela coisa toda, ai saiu de casa (1) ai ela achou que=que eu tirei ela de casa, pra ficar com meu pai (2) na cabeça dela né, ai aquele ciúmes de madrasta com filha né, ai nessa época, meu pai já, ti- já tava meio que (1) meio que escaldado, as filhas já estavam abrindo a mente dele, né, então ele já tava vendo, que a família dele era as filhas, né, ele tem=tem aquelas filhas dele, aquele carinho de filha, ai meu pai já começou já a mudar (...) P. 14. L. 17-24. É notável o esforço argumentativo que empreende a entrevistada para integrar o pai como um membro de seu círculo familiar (o das “filhas”, não se esclarecendo a ausência do irmão nesse círculo), tendo que para isso justificar suas ações violentas e negligentes em relação aos filhos e à segunda companheira, a madrasta de Célia. Neste ponto da entrevista, entretanto, já se entrevê um pai “mudado” pela boa influência da “família”, livre (“escaldado”) da má influência da madrasta. Essa caracterização continuará progredindo ao longo da entrevista, a qual vai apresentando uma “família” cada vez mais coesa e mutuamente solidária. A mudança para Ítaca deve ter causado impactos variados sobre a família, a maioria dos quais relacionados ao novo entorno e ao acréscimo da figura do pai. Se a mudança foi uma estratégia traçada pelo núcleo familiar (e não uma necessidade), é cabível pensar uma situação menos dramática. Entretanto, principalmente para o companheiro e para Jason, tal arranjo deve ter significado alterações importantes e provavelmente desfavoráveis. Segundo a entrevistada, de fato, a convivência entre genro e sogro não foi fácil:
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(...) foi muito difícil, porque também o meu pai=o meu pai é muito brigão, muito brigão, meu pai começou a brigar com meu marido (1) dentro de casa, e meu pai achou que eu devia separar de meu marido (3) o meu pai, tipo é::: o meu pai é ignorante, o meu marido com gênio forte, e aí, o meu pai falava mal do meu marido, o meu marido falava mal do meu pai e eu:: //E2: e você no meio:: ãham// lá (...) P. 16. L. 1-5. Aqui, ressurge a figura de um pai “brigão”, “ignorante”, caracterizações que na passagem são minoradas pelo tom jocoso da entrevistada, quem aparentemente se diverte com a lembrança, pois à época teria sido alvo de “ciúmes” do companheiro e do pai. Adicionalmente, o trecho acima joga um pouco de luz sobre a relação de Célia e de seu parceiro, descrito como dono de um “gênio forte”, perspectiva que é ampliada a partir deste ponto da entrevista. Para o filho Jason, a mudança para Ítaca foi aparentemente traumática, pois, segundo seus próprios relatos, significou a ruptura de seu tecido social e afetivo. Várias mudanças se sucederam para ele entre os anos de 2005 e 2008, como a necessidade de sair de um colégio particular, o nascimento de uma irmã e a separação dos amigos de infância. Uma vez na casa do avô, em um bairro mais desfavorecido do Rio de janeiro, ele provavelmente passou por dificuldades de integração e sociabilização. Já com dez anos, Jason deve ter tido de contribuir com o cuidado da irmã e com as tarefas domésticas, o que pode der diminuído ainda mais seu horizonte em Ítaca. Entre 2008 e 2012, momento da entrevista, percebe-se um independização com a família (pelo menos narrativo) e uma maior adaptação ao bairro, como se verá abaixo. Precisamente entre esses anos finais da narrativa de Célia, aproximadamente entre a volta a Ítaca e o presente da entrevista, concentram-se a maior parte dos relatos da entrevistada. De fato, trata-se de um período conturbado no qual se concentra várias experiências difíceis. A primeira delas é o repentino adoecimento do pai, que se enfraquece gravemente devido a uma diabetes. Uma vez que se encontravam morando em uma mesma casa, Célia provavelmente teve de tomar a responsabilidade do cuidado do mesmo. Não é possível saber se Célia e/ou seu companheiro trabalhavam neste momento, se tinham condições de tratar de um enfermo, ou se, por exemplo, precisaram recorrer a ajudas de familiares. Apenas há uma referência a uma coleta de dinheiro entre
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os irmãos para o pagamento de um plano de saúde para o pai, o que de alguma forma aponta para uma falta de autonomia nesse âmbito. Essa passagem da doença do pai, desde um ponto de vista narrativo, enfatiza a ideia de uma família unida, dedicada à ajuda mútua e francamente oposta a atitude da excompanheira, a madrasta, pouco preocupada em conhecer e auxiliar a recuperação do antigo companheiro: (...) ele hoje assim ele reconhece as fi- ele ve- tem carinho de pai com as filhas, até porque nessa situação que ele se encontrou ficou doente ele viu que quem apoiou ele foi as filhas, os genros, (...) mas assim quando ele ficou doente todo mundo deu apoio, todo mundo ficou do lado dele, fizemos assim:: o impossível pra ver ele bem (...) P. 10. L. 4-11. (...) ai meu pai ficou doente mas assim, ninguém apareceu, nem pra falar se precisa de alguma coisa, não, mas aí agora meu pai melhorou né, meu pai tá lá no estacionamento, grande o estacionamento, tá trabalhando, ai apareceu todo mundo, ai ela voltou (...) P. 14. L. 21-32. Novamente, Célia enfatiza o suposto oportunismo da madrasta e a união da família, agora fazendo referência aos genros (até o momento pouco matizados) e ampliando a ideia de um grupo solidário. Dessa forma, apresenta-se uma madrasta cada vez mais dissociada da vida da família, deixando de lado a existência de uma relação de pelo menos dez anos entre ela e seu pai, bem como o filho fruto dessa relação. Um ano depois do adoecimento do pai, em 2010, o irmão de Célia contrai tuberculose, sendo essa doença mais ou menos contemporânea ao descobrimento de uma insuficiência renal do marido. Essas duas enfermidades simultâneas, e especialmente o problema do marido (crônico), aparentemente causaram enormes modificações na rotina, configuração e perspectivas do núcleo familiar de Célia. Sendo o irmão da entrevistada separado e só, seu acompanhamento e cuidado deve ter exigido a dedicação e o auxílio financeiro de vários membros da família. Por outro lado, a necessidade de constantes hemodiálises e tratamentos por parte do companheiro deve ter requerido uma atenção exclusiva por longos períodos de tempo, o que pode ter resultado em uma rotina fraturada e de difícil organização: (...) porque eu ia lá, fazia a comida pro meu irmão, ia lá arrumava a casa dele, tudo isso, porque o tempo que meu marido tava fazendo
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clínica, ai eu ia lá no meu irmão, ia lá fazer comida pro meu pai (...) P. 16. L. 1-11. É, focada [“a minha vida”] nele [no marido], porque:: é::, é uma pessoa que assim, se vai ao mercado, não, se vai ao banco, eu tenho que ir com ele, ele=ele, né:: tipo assim, ele não gosta de sair só (...) P. 5. L. 15-20. Ao lado de uma lenta adaptação às necessidades do marido, pode-se pensar em uma maior ausência dos pais na criação dos filhos (em 2010, com doze e cinco anos), os quais podem ter ficado sob a vigilância do avô ou de outros familiares. Infelizmente não há nenhuma referência aos filhos nesse momento de mudanças, mas é fácil delinear um cenário no qual eles se encontram expostos a influências diversas. Com relação ao provimento financeiro, pode-se pensar que a família ou o núcleo de Célia tenha recebido ajudas externas, como do governo ou da comunidade, embora não haja referências a isso. Considerando um provável restabelecimento do pai de Célia, pode-se pensar que ele tenha assumido várias responsabilidades, talvez chegando a garantir a manutenção mínima da casa. Como sugere uma citação acima, este havia passado a trabalhar (ou era dono) de um grande estacionamento, alcançando uma boa condição financeira, o que pode ser uma explicação para o sustento da casa. Novamente, há referências às irmãs e às ajudas mútuas entre a família (não muito matizadas), que podem ter sido mais ou menos efetivas diante das necessidades daquele momento. Tendo em vista o papel destacado de Célia no cuidado de seu pai, é provável que ela tenha, em alguma medida, alcançado um status diferenciado dentro da família, talvez centralizando atenções e recursos. Assim, neste novo contexto de doenças, podese imaginar que ela tenha feito uso dessa rede de solidariedade e obtido consideráveis ajudas. Célia se apresenta como alguém que, mesmo diante de enormes problemas e sofrimentos, resiste bravamente à tentação de desistir das lutas diárias e “sumir”. Para isso, reforça durante várias vezes na entrevista um suposto papel de mulher, elemento forte dentro de uma família e responsável por manter o otimismo e harmonia em uma casa: (...) hoje eu tenho uma o::utra cabeça [sobre a retomada do relacionamento do pai], maturidade, de mulher né (...)P. 14. L. 24-30.
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(...) Ah:::, muitos:::, muitos dias que ele não quer, tem dia que ele quer beber água, tem dia que ele quer comer tudo, tem dia que ele não quer ir pra clínica, mas eu falo pra ele que ele tem que ir, ai eu vou contornando a situação, né, ai::: (1) que ele (1) vai ficando mais::: mas tudo assim é uma questão de conversar, de ter uma paciência (...) P. 5. L. 6-11. Essas supostas características femininas não estariam presentes na madrasta: (...) então tudo isso foi influência dela, porque assim, eu digo assim, se ela fosse uma mulher, ela com certeza iria dar força pra ele acompanhar a filha, com certeza (...) P. 12-13. L. 30-05
Logo após o início das sessões de hemodiálise do marido, Célia e este começam a frequentar uma igreja evangélica e convertem-se. A convivência com uma enfermidade crônica deve ter alterado substancialmente os planos do casal, o que permite a leitura dessa conversão como uma busca por uma nova forma de vida. Além disso, a entrada para a igreja também pode corresponder a uma busca por auxílios diversos (tangíveis ou intangíveis), próprios de uma comunidade religiosa. Outra possibilidade é de que essa conversão tenha sido uma influência de sua irmã mais velha, que também é evangélica, embora essa ligação não seja feita pela entrevistada (a informação é um dado externo). Estudos sociológicos sobre papéis assumidos por igrejas pentecostais em comunidades carentes têm evidenciado um alargamento de suas funções e alcances, como a articulação de redes de amparo, a constituição de pertencimento e a diminuição do isolamento institucional (MESQUITA, p. 3, s.d.). Assim, atuando em contextos de extrema exclusão e marginalização social, essas organizações garantiriam a seus membros conexões com instâncias da cidade (como o acesso ao poder público ou ao mercado de trabalho) e, além disso, trabalhariam em prol da atenuação de estigmas espaciais (idem). Célia orgulha-se dessa mudança dentro da família e explica que, mesmo com algumas limitações, ela e seu companheiro contribuem regularmente com as atividades da igreja. A importância que ela dá à conversão já aparece durante a narrativa inicial, quando relembra com ênfase o fato de estar a três anos na comunidade evangélica. Entretanto, lamenta o desinteresse de Jason pela mesma, explicando este fato como uma suposta peculiaridade da adolescência e como uma má influência dos professores da escola. De fato, Célia matiza por diversas vezes os problemas que a adolescência do filho estaria
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fomentando, como a pouca atenção aos conselhos dos pais, as brigas com a irmã menor e as más companhias em Ítaca. Ao que parece, a última mudança de Célia e de sua família (no início de 2011), agora para Atenas (bairro bem urbanizado próximo a Ítaca), foi possibilitada graças à ajuda de um membro da igreja. Os motivos dessa mudança não ficam completamente claros na entrevista. Segundo a entrevistada, ela se deveu às más condições de recuperação que Ítaca oferecia ao tratamento do marido. Entretanto, contemporânea à mudança foi o reatamento da relação de seu pai com sua madrasta, um retorno depois de doze anos de separação. Como já vem sendo discutido, Célia possui uma grande aversão a esta mulher, o que muito possivelmente pôde ter ocasionado a mudança. Se realmente ocorreu algo semelhante, pode-se entender as várias e pejorativas referências à madrasta durante a entrevista como uma exteriorização de um problema atual (pelo menos na época da entrevista) e ainda não totalmente solucionado. Não obstante, Célia, no plano narrativo, busca desconectar esses eventos, chegando a dizer que “entende” o retorno do pai, que o “respeita”, mesmo que ele tenha sido repudiado pelas “irmãs”. Como já foi transcrito acima: (...) ai ele voltou, ai eu falei pras minhas irmãs, a gente vai aceitar, sabe por que a gente vai aceitar, porque se o meu pai, a gente der as costas pra ele, ele vai esquecer as filhas, ele vai ficar pra ela, então a gente vai aceitar ela, a gente vai aceitar ela por ele, porque, né, ai:: (...) P. 13. L. 12-17. Tendo em vista o passado imediato à reconciliação entre o pai e a madrasta, ou seja, o compartilhamento de uma mesma casa entre Célia e seu pai, a ajuda desta quando ele estava doente (e a aproximação que isso pode ter causado), a ajuda deste por ocasião do tratamento do companheiro de Célia, a relação entre o avô e os netos, pode-se entender a insatisfação da entrevistada com o acontecimento. De qualquer maneira, é possível que a perspectiva religiosa atual informe de alguma maneira a forma como a entrevistada rememora a reconciliação, como, por exemplo, em sua ênfase à clemência e à reconciliação, procederes nobres que se conectam a um futuro de recompensas ao crente: talvez, neste caso, a redenção do pai.
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Poucas informações estão disponíveis sobre a situação da família em Atenas. Uma possibilidade a se considerar é a da rápida adaptação, tendo em vista as boas condições de vida do bairro e a relativa proximidade com Ítaca. Neste caso, tal mudança pode ter beneficiado mais a Jason, que pôde relacionar esse bairro com sua antiga morada da infância. Uma outra possibilidade diz respeito a eventuais problemas econômicos, pois se sabe que a família teve dificuldades para encontrar a casa. Neste outro caso, é provável que eles tenham aumentado a dependência com terceiros e/ou se endividado. Por outro lado, sabe-se que o marido de Célia conta no momento da entrevista com uma aposentadoria de invalidez, o que pode apontar para uma maior estabilidade ou, pelo menos, para uma circunstância de reestruturação financeira. Como se viu nesta reconstrução de caso, Célia possui uma trajetória de vida marcada por experiências de abandono e de fortes dificuldades financeiras (que talvez não tenham sido permanentes, mas que irromperam com força uma e outra vez). Tais questões tiveram um forte impacto em seus relacionamentos, sobretudo com seu companheiro e seu pai. Este, quem aparentemente esteve alheio ao desenvolvimento da filha, representa um foco de atenção na vida da entrevistada, uma espécie de causa pela qual lutar: uma pessoa que deve e está sendo reabilitada para (e pela) a família. O companheiro, aparentemente o primeiro e único de Célia, representa uma fonte de cuidados e também de sofrimentos, um “pai” e um marido de “gênio forte”. Estes dois homens, além do papel ativo que tiveram na biografia de Célia, também são relacionados a experiências de desentendimentos/brigas/violências, passagens que são minoradas pela entrevistada e que acabam diluídas nos interesses de apresentação da mesma. Síntese da reconstrução biográfica de Célia Célia nasce em 1980, no Rio de Janeiro, sendo a quarta e penúltima filha de seus pais. Possível moradora da comunidade de Ítaca, à época foco de vários problemas de infraestrutura, a entrevistada deve ter vivenciado uma primeira infância de consideráveis privações. A idade de seis anos, três acontecimentos viriam a influenciar fortemente sua trajetória de vida: a separação dos pais, a morte por câncer da mãe e o acolhimento dela e dos irmãos na casa de uma tia. Após a morte da mãe, seu pai assume outra relação e deixa os cinco filhos aos cuidados de um parente, em uma estância de seis anos. Neste
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tempo, a entrevistada recorda um cotidiano de ajudas domésticas, trabalho e pouca dedicação aos estudos, além de um contato bastante reduzido com o pai. Célia volta a morar com o pai aos doze anos, em 1992, o que pode ter sido uma tentativa de conseguir certa proteção ou auxílio paterno, mas encontra uma situação desfavorável na casa deste com sua nova família. Três anos depois, Célia passa a viver com um namorado, o que lhe garante certa estabilidade na década seguinte. Essa saída relativamente rápida da casa paterna sugere uma situação de desconforto neste lugar e uma busca por afeto e/ou ajuda econômica na figura de um companheiro. Depois, Célia muda-se para longe de sua família e alcança com seu companheiro uma relativa estabilidade econômica, o que lhes possibilita os recursos necessários para a criação de um casal de filhos. Após uma década de aparente estabilidade financeira e afetiva, seu companheiro perde o emprego e a família volta a morar na comunidade de Ítaca, agora em uma casa compartilhada com o pai de Célia – à época separado da segunda companheira. Não muito depois da mudança, vários casos de doenças na família (pai, irmão e o próprio marido) mudam consideravelmente a rotina e os planos da entrevistada, bem como sua situação financeira. Com o diagnóstico de insuficiência renal do marido, bem como a posterior aposentadoria deste, Célia passa a se dedicar exclusivamente ao cuidado da casa, ao auxílio do parceiro e à criação dos filhos. Paralelamente, começa a frequentar uma igreja evangélica, instituição na qual contribui e busca auxílios diversos. Por fim, um ano antes da entrevista, o núcleo da entrevistada muda-se para outro bairro do Rio de Janeiro, para uma casa de aluguel, movimento que pode ter sido ocasionado por uma desavença com o pai ou outro motivo não esclarecido. Célia apresenta-se como alguém que se centra nos aspectos positivos de sua vida e encara problemas como oportunidades de superação. Sua vida familiar é mostrada como harmoniosa, o que exige considerável esforço argumentativo de Célia, já que as circunstâncias mencionadas são potencialmente geradoras de conflitos: a doença e consequente dependência de seu marido, a relação com o pai e a fase da adolescência de seu filho Jason. Pouco é contado sobre sua infância ou sua família de origem, o que leva a supor que esses temas tragam consideráveis desafios à maneira como Célia tenta
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apresentar sua vida: de quem tem grandes dificuldades, mas sempre as supera e conta com apoio familiar e um lar predominantemente harmonioso e unido.
8.2.2. Jason, filho de Célia Jason nasce no ano de 1998, no município de Almirante9, Rio de Janeiro. Filho único, concebido em um relacionamento de três anos entre seus pais. Luiz e Célia se conheceram em 1995, quando iniciaram seu relacionamento. Com pouco tempo de namoro já dividiam o mesmo espaço dentro do núcleo familiar de Luiz, não se sabe ao certo o motivo pelo qual Célia preferiu sair da casa de seu pai para morar junto com Luiz e sua sogra. É possível que dentre as idas e vindas de Célia e a infância negligenciada pelo pai após a morte da mãe, a tenham motivado a buscar em outro núcleo familiar certo apoio afetivo e financeiro, ou possível fuga de acontecimentos marcantes de sua trajetória de vida até o presente momento. A estadia de Célia não se faz duradoura, sugerindo possível falta de adaptação em outro núcleo familiar. Porém, o rompimento no relacionamento de Célia e Luiz não durou muito tempo, e com o retorno do namoro ocorre à mudança para Almirante. Com a mudança para Almirante, os pais de Jason se instalaram no bairro Pedra Azul, que apresenta bom acesso e proporciona qualidade de vida para seus moradores. Luiz trabalha como mecânico automotivo e Célia não exerce nenhuma atividade remunerada. No ano em que Jason nasceu o país ainda passa por vestígios da implementação do Plano Real (1994), visando melhorias na economia do país. Tendo em vista a mudança de moradia e o emprego de Luiz, há possivelmente a chance dos pais de Jason terem se beneficiado a partir das mudanças financeiras do país. Os fatores que circundam o local de moradia, bem como o emprego de Luiz sem a necessidade de trabalho de Célia, podem apontar possíveis condições financeiras favoráveis para o casal e o contexto de nascimento para Jason. Não se sabe detalhes da infância de Jason em âmbito afetivo, porém há em determinados relatos a presença dos pais em momentos de lazer, o que não é confirmação da participação ativa de seus pais em seu desenvolvimento. Estes 9
O nome da cidade foi substituído para preserver a privacidade do entrevistado.
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poderiam dispor de determinados momentos, ou então suprindo certas necessidades afetivas com presentes e a satisfação de certas vontades do filho. Luiz mantém-se ocupado com o trabalho para garantir o sustento da família, podendo, inclusive, ter de utilizar horas extras para arcar com as despesas domésticas sem maiores dificuldades, podendo tornar-se ausente. Célia tem propensão a dispor de maior atenção para o desenvolvimento de Jason, o que pôde ter passado influências impactantes em sua primeira construção de vida. Por passar mais tempo ao lado do filho, Célia pôde suprir os anseios de Jason com atenção e carinho, criando um vínculo maior nesta relação, visando não excluir a imagem do pai, nem potencializando sua ausência. Tais fatores sugerem que Jason tenha passado por um contexto de nascimento e primeiros anos de vida de forma tranquila, tendo apego maior no relacionamento com a mãe e possivelmente certa admiração pelo pai. Em 2004 Jason começa sua vida escolar, ingressando em escola privada, o que possibilitará maior acesso à educação de qualidade e construção de seu ritmo estudantil. Não se sabe se Jason ingressou na instituição por conta de seus pais, ou por certo tipo de benefício concedido pela escola. Sabe-se que Jason é aluno empenhado, e esse fator possivelmente vem acompanhando seus dias desde que começou a construção de sua vida escolar, em seus primeiros anos de acesso a esta. Os anos em que Jason estudou em instituição privada podem ter lhe dado certa disciplina em sua postura enquanto aluno, auxiliando seu comportamento e empenho posterior. Estes pequenos indícios construídos em sua primeira fase escolar possivelmente criaram sentimento de orgulho para seus pais, fortalecendo determinados laços em sua relação. O bom rendimento escolar de Jason pôde ser fruto de certa exigência de seus pais enquanto exemplo de vida e conquistas futuras, incitando desde cedo em Jason a busca por espaços em seu “mundo social”. Esta possível referência aparece como certa preocupação de Luiz e Célia em relação ao futuro do filho, podendo ser fruto de suas respectivas construções sociais e possíveis dificuldades na infância. O possível encorajamento dos pais de Jason em relação à construção de sua educação formal pode, também, ser indício de traços de independência, os quais serão passados a Jason com o passar dos anos. Em 2006, dois anos após a mudança na rotina de Jason (com o ingresso na vida escolar), nasce Helena, sua irmã. Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida de Helena, porém
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ocorre com certa frequência relatos que apontam certo descontentamento de Jason com este evento. Descontentamento advindo de certas “perdas” de atenção e bens materiais que obtinha de seus pais enquanto filho único. O que poderia ter ocorrido, de fato, seria certa perda de recursos financeiros e com a chegada de Helena, maiores despesas domésticas. É sabido que neste determinado período, o núcleo familiar de Jason passa por bruscas mudanças em seu cotidiano. Luiz está desempregado e começa a trabalhar de modo autônomo, o que trouxe instabilidade financeira à família, como também há grande probabilidade de Luiz ter se ausentado ainda mais para suprir as necessidades financeiras da família ainda maiores com o nascimento de Helena. A partir da perda nas condições financeiras da família, Célia começa a fazer trabalhos periódicos, possivelmente para contribuir com as despesas domésticas. Esses elementos aparecem de forma significativa na narrativa de Jason, possivelmente sendo utilizados com determinado sentimento de perda que lhe ocorreu com a soma destes fatores. O nascimento de Helena foi importante marcador em tais acontecimentos na interpretação de Jason, como possível desencadeador destes, porém suas “perdas” podem, por outro lado, estar fortemente enlaçadas com as condições financeiras de sua família. No trecho abaixo, Jason faz referência ao seu mundo diante o contexto de nascimento de Helena. Tal trecho é carregado da interpretação de seus primeiros anos de vida até o nascimento de sua irmã, trazendo por alto o relacionamento dele com seus pais. Tá, ah::: o que me lembro quando eu era bem pequeno assim, eu fui uma criança bem:: com bastante atenção, assim, eu fui filho único até meus sete anos, //E1: uhm// sempre foi tranquilo, ai:: depois eu tive uma irmã, depois com sete //E1: uhm// ai com isso eu não me lembro mais::, acho que, meu pai tinha um bom emprego ai depois, ele ficou sendo autônomo ele saiu desse emprego também e:::, ai tive que assim sabe meio que me virar meio que sozinho tal, mas nunca foi assim um problema isso (Pg.: 1 / linhas: 5 à 11) Jason apresenta o nascimento de Helena como possível marcador, ligando isto ao desemprego do pai. Ao se manter “distante” deste período em sua apresentação, não aprofundando o assunto, há a demonstração de possíveis dificuldades remetidas por alto sobre aquele momento de sua vida, as quais estavam ligadas, provavelmente, ao seu início de independência. Esse indício pode demonstrar o reflexo do impacto da instabilidade nas condições financeiras da família e a ausência dos pais, decorrente do
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trabalho destes. Jason passa por um novo período, onde as atenções da família passam a não estar voltadas apenas para ele. Com a chegada de Helena é provável que Jason tenha passado a ter maiores responsabilidades cuidando de sua irmã, tendo assim certo desprendimento afetivo de seus pais, mas não por ter sido deixado de lado, e sim por ter iniciado um novo ciclo em sua vida, tendo o papel de irmão mais velho e a imagem que isto traz. Ao final do trecho indicado acima, Jason afirma que as suas novas condições não foram problemáticas, indicando possível maturidade sobre essa passagem de sua vida em seus dias atuais. Sendo assim, é provável que Jason tenha conseguido conduzir a sua situação e nova “posição” em seu núcleo familiar com êxito, mesmo podendo ter dificuldades de adaptação em um primeiro momento. No ano de 2008 ocorre mais uma mudança significativa na vida de Jason, sua família se muda para Ítaca, bairro na zona norte da cidade do Rio de Janeiro/RJ. Diferente do contexto de moradia em Almirante, Jason e sua família passam por nova adaptação em novo contexto social. Talvez não problemático para os pais de Jason, que outrora residiram em Ítaca. É sabido que além da mudança para Ítaca, a família foi morar com o avô de Jason, dividindo a casa e as despesas. Este fato pode estar ligado à instabilidade financeira da família após a perda de emprego de Luiz, buscando certo apoio financeiro com o pai de Célia. Há também a possibilidade do pai de Célia auxiliar nos cuidados com Jason e Julia, suprindo a ausência dos pais na criação dos filhos. A mudança da família para Ítaca pode estar ligada, também, a possíveis dificuldades com a saúde do pai de Célia, necessitando de maior atenção e cuidados. A mudança de local de moradia, para Jason, pôde não ter representado apenas um distanciamento regional de seu meio social, construído até então. Jason não apenas muda de residência, mas também de instituição de ensino. Uma transição possivelmente impactante em sua vida, pois sua nova escola é uma instituição pública, com métodos de ensino e público diferente do ambiente onde Jason concluiu seu ensino primário. Nesta transição possivelmente Jason tenha passado por problemas em sua adaptação, podendo ter dificuldade para se relacionar com os seus novos colegas de classe e fazer novas amizades. Tal movimento em sua vida pôde ter iniciado um pequeno processo de introspecção social, fazendo com que ele tenha apresentado descontentamento com sua nova rotina, tendo desejo de voltar a ter sua vida como era antes da perda de emprego de
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Luiz. Jason pôde ter passado por momentos de dificuldade, tendo uma carência maior de atenção de seus pais neste momento, não conseguindo lidar com tais dificuldades e não dispondo de maior tempo na companhia de Célia e Luiz. Porém, uma eventual falta de adaptação de Jason ao seu novo contexto de vida não refletiu em seu desempenho como aluno, pois este continuou a apresentar ótimos resultados em seus estudos. É sabido que Jason refinou seus laços, primeiramente, com os professores da instituição de ensino. Esse fato pode denotar a busca de atenção por figuras “semelhantes” a seus pais. Semelhante naquilo que remete à imagem de pessoas mais velhas que representam certa autoridade e cuidados em sua perspectiva. Essa mudança também não implicou aspectos negativos em sua vida em seu novo local de moradia, pelo contrário, lhe fez criar vínculos de amizade, e seu êxito em seu desempenho escolar possivelmente trouxe orgulho a seus pais, podendo ter se tornado mais um reforço nos vínculos familiares. A mudança de instituição de ensino é referida por Jason a seguir: J: Ah (2) o que aconteceu é que você fica meio alienado assim sabe, (será que o pessoal vai querer as mesmas coisas do) pessoal de lá, você não conhece ninguém, também, (muda) bastante, e eu era tímido pra caramba, muito::, eu era muito ruim pra fazer amizades tipo (30) ((conversa entre as entrevistadoras, inaudível)) A apresentação de Jason, neste trecho, demonstra como ele recorda essa mudança em sua vida. Possivelmente seus problemas de adaptação ao novo contexto escolar não estejam intimamente ligados à relação com sua família, sua timidez referida acima parece ser, neste momento, a principal motivação para certos entraves ligados a sua falta de adaptação. Porém, não se podem descartar possíveis mudanças ligadas à estrutura da instituição de ensino, como o interesse dos professores pelos alunos, e o funcionamento da dinâmica em aula. É possível que Jason não tenha conseguido, em um primeiro momento, captar a coesão de sua turma escolar, por ser um espaço diferente daquele onde esteve habituado até então. Tais fatores podem ter criado em Jason a sensação de que não fosse uma criança “normal”, tendo dificuldades para se enquadrar na dinâmica a sua volta. Essa possível introspecção de Jason, classificada atualmente por “timidez”, pôde ter refletido significantemente na construção de seu mundo socialmente ativo durante alguns anos. Somando os fatores referidos anteriormente, Jason possivelmente teve dificuldades em conseguir lidar com suas novas responsabilidades domésticas e
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com os cuidados de sua irmã, bem como certa independência imposta a ele em seu contexto familiar. Essa independência pôde ser reflexo das mudanças nas condições financeiras do núcleo familiar, conjuntamente com o fato de Célia e Luiz passarem menos tempo à disposição dos filhos. Com as mudanças nas condições dispostas pela família após o desemprego de Luiz, certas possibilidades se restringem a Jason, fazendo com que este busque, em determinados momentos, acessibilidade sem ajuda constante de Célia, o que possivelmente não acontecia enquanto esta dispunha de maior tempo para os cuidados do filho. A falta de adaptação de Jason e a mudança da família para Ítaca estão ilustradas, também, no trecho abaixo: J: É porque::: ã::: minha rea- meu mundo tava todo lá né, depois eu vim pra cá tipo:: mudou a escola mud- mudou (2) mudou a convivência com o pessoal que eu tinha assim né //E2: uhm// foi bem diferente (1) morar dez anos em um lugar e depois ter que sair de lá e se adaptar a outro lugar, foi, foi difícil pra=mim //E2:uhm// (Pg.: 4 / linhas: 26 à 29) O trecho referido acima demonstra a forma como Jason interpretou a mudança da família para Ítaca. Tal trecho mostra da parte Jason certa hesitação na transição na construção de vínculos no novo local de moradia. A questão da adaptação aparece novamente, e desta vez ilustrada em determinado grau de dificuldade. Além de novas pessoas em sua vida, Jason parece querer manter os laços com aqueles que circundavam seu meio social em Almirante, porém as mudanças na convivência, advindas de seu novo local de moradia, possivelmente dificultaram tal vontade. Os aspectos encontrados na passagem acima, podem mostrar como Jason possivelmente criou um “sentimento nostálgico” em relação a seu antigo contexto social (escola, amigos e local de moradia), podendo ser mais um fator, que além de sua timidez (relatada e exposta no trecho anterior), possivelmente contribuíram como espécie de entrave na construção de novos laços sociais. Em vista a esses fatores, e pelo longo tempo que Jason ficava em casa, Célia procurou a ONG Espaço Educar para que o filho pudesse exercer algumas atividades em seu período extraescolar, o que denota preocupação de Célia, procurando que o filho criasse vínculos com o ambiente a sua volta. Ao mesmo tempo, pode demonstrar possível
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preocupação de Célia com a segurança do filho, em relação à criação de vínculos futuros, pretendendo manter Jason em um local onde aprenderia valores, tendo assistência e uma boa formação social. O contato de Jason com a ONG pode definir determinadas mudanças em sua rotina. Contudo, é possível que Jason tenha tido, em um primeiro momento, certa resistência aos movimentos de sua mãe, para maior interação com pessoas de sua idade e moradores de Ítaca. Por Jason ter passado muito tempo em casa com sua irmã, existe a probabilidade de ter criado certos mecanismos de defesa em relação à construção de novos vínculos com pessoas a sua volta. Uma resistência possivelmente advinda da não aprovação da sua mudança e de sua família para Ítaca, conforme relato abaixo: J: A minha mãe falou- eu ficava muito tempo à toa em casa, tipo voltava da escola e ficava vendo TV a tarde toda, ai a minha mãe ficou sabendo, na verdade a gente morava aqui perto aqui do lado praticamente, ai ela ficou sabendo do Espaço Educar ai ela conversou com o Manoel, ai eu vim pra cá, na verdade ela que queria por mim assim, eu nem queria, eu cheguei aqui achei que foi que nem quando eu cheguei na escola nova, assim um outro mundo diferente que aí foi um contato com o pessoal de Ítaca assim //E1: ahum// é::: a principio eu não gostava nem um pouco nem um pouco de vir pra cá, ai fui me acostumando, fui vendo o que os cursos podiam::: fazer por mim assim, ai fui ficando mais velho com o tempo, gostando mais daqui, assim, passo todo o dia agora, quase sempre eu tô aqui ((batuque na superfície onde está o gravador)) No relato acima, Jason deixa explícito como se sentiu nesse novo local, e na aposta da mãe para possível melhoria em suas relações sociais. A interpretação de Jason sobre o seu primeiro momento na ONG, vem carregada dos mesmos elementos de estranhamento que demonstra nas passagens que referenciam a nova escola e a mudança para Ítaca. É possível que o estranhamento de Jason em relação à ONG possa ter acentuado ainda mais sua timidez, fazendo com que ele tenha passado por um período de bloqueio até a sua adaptação ao ambiente. Jason, na apresentação deste trecho, ainda ressalta certa dificuldade ligada ao “novo”, como se tivesse certo receio de criar novos vínculos e terminar de deixar para trás o que ainda pudesse manter a ligação com seu passado. Porém, ao final de seu relato, Jason fala sobre mudanças ocorridas na sua forma de se encaixar dentro da ONG, demonstrando sua interpretação de seus dias atuais, bem como a importância da instituição em seus dias.
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É sabido que nos dias atuais Jason exerce trabalhos remunerados, advindos de cursos e oficinas, as quais a ONG proporcionou a ele desde sua inserção. Além de oficinas e trabalhos com a ONG, ocorre nesse meio tempo possível amadurecimento de Jason em relação a sua convivência em seu meio social. Esse possível amadurecimento pode ter ocorrido em uma relação de confiança criada com o espaço de convivência, proporcionando a Jason certa perda de inibição, a partir do momento em que este pôde se reconhecer como um garoto “normal”, capaz de criar vínculos de amizade e ter suas ações valorizadas. É possível que os ensinamentos absorvidos no espaço Espaço Educar tenham “dinamizado” a vida de Jason, proporcionando a ele uma nova forma de ver o que acontecia a sua volta. A partir das oficinas e do crescente contato com jovens de sua idade, bem como pessoas de outras faixas etárias, Jason vai construindo diferentes perspectivas sobre a sua vida em Ítaca. Porém, isto não descarta possíveis impactos ocorridos na vida de Jason, desde sua mudança para Ítaca. Além das relações sociais de Jason terem passado por certo amadurecimento, é provável que a relação deste com sua família também tenha se modificado, não apenas por influência de valores acrescidos a seu dia-a-dia, pelo contado diário com a ONG, mas também de sua maturidade natural, biológica. No ano de 2009, Jason e sua família passam por complicações ligadas à saúde do avô. A diabetes abate o estado de saúde do pai de Célia, exigindo maior atenção desta e da família para seu auxílio. Como, ainda neste ano, Jason e sua família dividiam a casa com o avô, a carência de atenção pôde ser sanada de forma mais tranquila, o que não exclui maiores cuidados dos membros da família. Não se sabe se o pai de Célia recebeu cuidados periódicos ou não, dos seus outros filhos (irmãos de Célia e filhos de seu segundo casamento), porém, o mais provável é que seus maiores cuidados são provenientes de Célia e de seu núcleo familiar. É possível que Jason e Helena tenham perdido certo espaço em seu núcleo familiar, no que se refere à atenção da mãe, mas provavelmente a família se tornou mais coesa, em relação aos problemas de saúde do avô. Não se sabe ao certo quando Jason começou a trabalhar com o avô, mas possivelmente o início de seu trabalho tenha ocorrido neste período, sendo uma forma de auxílio de Jason aos seus problemas de saúde. Como também é provável que o núcleo familiar possa ter passado por pequenas “quedas” em sua condição econômica,
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explicando o fato do auxílio de Jason no trabalho do avô. Não se sabe se o trabalho de Jason com o avô era remunerado, nem se o dinheiro que ganhava com determinados trabalhos, feitos nas oficinas da ONG, foram destinados ao núcleo familiar. Em sua entrevista, Jason não menciona a doença do avô, nem seu trabalho com este. Seu interesse de apresentação não remete a nenhum membro da família fora de seu núcleo. Nos relatos referentes à mudança de Almirante para Ítaca, Jason nem sequer menciona a convivência com o avô sob a mesma residência. É possível que a falta da presença do avô em sua narrativa demonstre certa falta de vontade, naquele momento, de expor mais sobre sua história. Como também é provável que a falta da presença do avô em sua entrevista seja proveniente de possíveis conflitos entre Jason e o pai de Célia. Jason menciona frequente presença na ONG, e comprometimento com os estudos, o que pode sugerir que o trabalho exercido com o avô se trate de mero auxílio em determinadas funções. Existe, também, a possibilidade do trabalho de Jason com o avô ser impulsionado pelos pais, fazendo com que esse auxílio seja contra a sua vontade. Em 2010 é descoberta a insuficiência renal que traz complicações à saúde de Luiz, pai de Jason, mesma doença que anos antes levou seu pai a óbito. Com a descoberta da doença de Luiz, possivelmente a condição financeira da família tenha passado por certo declínio, ao menos em um primeiro momento. A insuficiência renal exigiu cuidados, o que suscita prováveis gastos, e Luiz que trabalhava até então como autônomo, não poderia ter garantias de contribuição como qualquer funcionário assalariado, como também não se sabe se Luiz contribuía como ente autônomo para o INSS, o que poderia trazer diferentes formas de acesso ao auxílio financeiro “garantido” pelo governo, bem como no desfecho da situação financeira da família. Porém, é sabido que Célia passou a se dedicar integralmente aos cuidados do marido com o início de seu tratamento de hemodiálise, que ocorreu em 2011. A disposição de Célia aos cuidados do marido suscita que este tenha obtido apoio financeiro do governo (via INSS), também pode ter ocorrido a possibilidade de Célia e Luiz terem conseguido apoio financeiro de seus familiares, mas não há informações suficientes para tal afirmação, porém não se descarta tal possibilidade.
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Não há relatos de Jason sobre a doença do pai, nem sobre a situação da família durante esse período, o que pode ser reflexo do impacto da descoberta da doença, como pode ser resultado de certa “independência” desgarrada, criada por ele durante as mudanças ocorridas em sua vida desde o nascimento de sua irmã.
Essa “independência”
desgarrada pode ter sido uma forma que Jason encontrou para se defender de possíveis frustrações, advindas de seu núcleo familiar. Não se sabe até qual ponto as experiências de Jason, vivenciadas após o nascimento de sua irmã e possível queda na condição financeira familiar, tenham abalado sua própria estrutura em formação. E mesmo com diferentes perspectivas atuais de sua vida, é possível que Jason tenha criado sua própria forma de encarar os problemas familiares. Neste mesmo ano de 2011, a família de Jason passa a ser adepta de uma religião evangélica, frequentando cultos e possivelmente modificando certos aspectos em seu estilo de vida. Jason não menciona tais mudanças na rotina familiar, porém, é sabido que este não frequenta os cultos com o restante da família. Essa informação é proveniente da entrevista de Célia, que denomina o comportamento do filho, ligado à falta de interesse pela religião, como “rebeldia”. Mas esta escolha de Jason pode ser mais um traço de “independência”, demonstrando a aptidão deste em poder tomar decisões mais concretas, mesmo sem a plena aprovação de seus pais. A conversão à religião evangélica pode suscitar possíveis necessidades na estrutura familiar, a partir da doença de Luiz. Há possibilidade da doença de Luiz ter impactado fortemente toda a família, e ao invés da ocorrência de coesão, a ocorrência de rupturas no seio familiar. Com os laços familiares sofrendo enfraquecimentos, possivelmente advindos de dificuldades financeiras, e a provável falta de motivação de Luiz para dar continuidade a seu tratamento, indicariam possíveis fatores a estimular a busca por suporte religioso. A busca por esse apoio provavelmente veio pela inciativa de Célia, como uma forma de reforçar os laços dos membros da família, e motivar Luiz a ter esperanças diante do seu tratamento. Jason menciona a relação atual com seus pais no trecho a seguir: J: Acho diferente, como se:: eu passasse de ser assim, filho e fosse mais que:::, fosse mais pra, por exemplo, assim, irmão entre aspas, dos meus pais sabe, porque você vai ter uma conversa mais madura (1) mais:::, é, agora eles me dão mais liberdade pra fazer certas coisas, tipo, eu posso sair pra muitos lugares porque e- porque eu esteja com alguém (4) assim,
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não tenho mais aquela tensão toda porque agora tem irmã e tal, mas assim, sinto falta, ( ), tive uma infância boa’ (13) O trecho acima traz o contraste na perspectiva de Jason, envolvendo seu interesse de apresentação neste momento, e a forma como apresenta em outros trechos de sua narrativa. A grande ausência do pai em sua entrevista, principalmente em ocorrências atuais, pode indicar o afastamento de Jason em relação a ele. É sabido que Luiz se faz ausente na criação de Jason desde sua infância, por trabalhar e garantir o sustento da família, e que Célia passou mais tempo presente ao lado do filho. Esses fatores não indicam que Jason tenha “desabilitado” o pai de alguma função em sua vida, porém este pode ter aprendido a admirar o pai de longe. O início do trecho marca a diferença observada por Jason na relação com os seus pais, indicando pontos distintos entre a sua infância e o início de sua adolescência. A forma como Jason compreende a relação com seus pais em seus dias atuais possivelmente seja fruto de seu amadurecimento, bem como a adesão de novas perspectivas de sua vida. A liberdade compreendida por Jason provavelmente lhe vem sendo dada aos poucos desde o início das mudanças em seu ritmo de vida. É provável que Célia e Luiz tenham aderido, quando da mudança para Ítaca, a uma forma de criação baseada na independência dos filhos, ensinando-lhes a como ultrapassar as etapas de suas vidas sem depender de sua ajuda sempre, o que talvez tenha levado certo tempo para Jason compreender, tendo em vista o diferente estilo de vida que tinha quando morava em Almirante. É possível que Helena já tenha sido concebida com a nova forma com a qual Célia e Luiz acharam melhor para criar seus filhos, trazendo elementos ainda mais impactantes ao cotidiano de Jason até a sua progressiva compreensão e amadurecimento. Ao final do trecho acima, Jason ainda menciona a falta que sente de sua infância, porém em sua entrevista atribui seus momentos infantis ao contexto de Almirante. Um contexto em que provavelmente toda a atenção de seus pais estava voltada para ele, em que Célia dedicava o tempo integral a Luiz e a Jason. Como Helena ainda não era nascida, Jason podia usufruir de toda a atenção, por não ser necessário dividir espaço com outra criança. As lembranças de parte de sua infância o levam novamente à linha de um segmento “nostálgico” em relação ao seu passado.
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Ainda no ano de 2011, ocorre a mudança de Jason e sua família para Medina, bairro no norte da cidade do Rio de Janeiro. A mudança da família para Medina pôde indicar certas melhorias nas condições financeiras do núcleo familiar, ou então a busca por um local mais acessível para moradia. Neste contexto de mudança, é sabido que o pai de Célia reatou seu relacionamento com a ex-mulher, voltando a morar com ela. Não se sabe se a mudança de Jason e sua família foi antes ou depois do avô reatar o relacionamento com a ex-mulher. Porém, se ocorreu em decorrência deste movimento, é possível que a mudança para Medina esteja ligada à manutenção de um lar com maior acessibilidade, tanto para as condições econômicas quanto para as necessidades ligadas ao tratamento de Luiz. A mudança para Medina não é mencionada por Jason em sua entrevista, o que possivelmente suscita certo descontentamento em relação à mudança, por se tratar de mais uma mudança de localização do domicílio. Ou então Jason pode não ter atribuído nenhum grau de importância a este acontecimento em sua vida, procurando manter o foco de sua apresentação em acontecimentos que obtiveram maior impacto em sua vida No decorrer desta reconstrução, foi mencionado o empenho de Jason aos estudos, e a grande importância dada por ele à construção de sua educação, fator fortemente apresentado ao longo de sua entrevista e retomado com ansiedade quando Jason menciona o término do ensino fundamental e preparo para o ensino médio. A influência de seus bons resultados enquanto aluno pode ter garantido a Jason o reconhecimento de seus pais, o que faz com que ele acabe por exaltar tal empenho em seu interesse de apresentação. O ano de 2013 apresentaria novos desafios a Jason. Além de iniciar o ensino médio, Jason também iniciaria o curso técnico em mecânica. A escolha de Jason pelo curso de mecânica pode ter ocorrido por influência do pai, podendo estar relacionada a sua criação e a figura do pai como mecânico automotivo. Jason não apresenta sua motivação para a escolha de seu curso, porém demonstra ansiedade em começar a nova fase de sua vida.
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Síntese da reconstrução biográfica de Jason Jason nasce no ano de 1998, filho único de um relacionamento que já havia iniciado há três anos. No período de seu nascimento, seus pais moravam em Almirante, Rio de Janeiro, mantendo residência no bairro Pedra Azul. Luiz, pai de Jason, trabalhava como mecânico automotivo, e Célia, sua mãe, dispunha de tempo livre para os cuidados de Jason, em seus primeiros anos de vida. Em 1994 foi implementado o Plano Real, o que pode ter beneficiado as condições econômicas de Luiz e Célia, e consequentemente influenciando uma boa estrutura financeira para o núcleo familiar. Sem maiores dificuldades financeiras no núcleo familiar, Célia pode se dedicar integralmente à Jason. A ausência de Luiz nos primeiros anos de vida de Jason pode não ter tido consequências negativas em sua criação, pois os motivos pela ausência do pai possivelmente foram sendo passados a Jason desde muito cedo. A forte presença da mãe em sua criação e dedicação do pai, mesmo que ausente, permitiram a construção de uma infância tranquila. Contudo, possíveis cuidados excessivos, podem ter levado Jason a desenvolver traços de forte dependência em relação a seus pais. Tal dependência poderá dificultar as futuras relações sociais de Jason, bem como com sua família, podendo estar acentuada em período de transição entre a última parte de sua infância e início da adolescência. Jason ingressa na escola em 2004, com cinco anos de idade. Em seus primeiros anos escolares Jason estudou em instituição privada, usufruindo de boa qualidade de ensino, desfrutando de uma vida própria de “classe média”. Jason construiu seus primeiros vínculos sociais dentro de tal instituição, criando amizades e sendo educado com atenção. No ano de 2006, Célia dá à luz a Helena. A família ainda reside na cidade de Almirante, porém determinados costumes tenderão a mudar. Com o nascimento de Helena, Jason não terá as atenções voltadas apenas para ele, tendo que aprender a lidar com a presença da irmã. Porém, no mesmo ano do nascimento de Helena, o pai deixa o emprego de mecânico, passando a trabalhar como autônomo. É possível que algumas dificuldades nas condições financeiras da família tenham surgido, pois é sabido que neste contexto Célia passou a realizar trabalhos periódicos, auxiliando nas despesas domésticas. Logo após o nascimento de Helena, a família se muda para Ítaca, no Rio de Janeiro, dividindo casa com o pai de Célia. O novo contexto do núcleo familiar pode não
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ter sido positivo aos olhos de Jason, que distingue sua vida entre antes e depois do nascimento de Helena, assim como entre antes e após as mudanças decorrentes da situação financeira de sua família. É possível que Jason tenha passado por maior dificuldade de adaptação por ser muito dependente de seus pais, principalmente de Célia, na primeira parte de sua infância. Tal possibilidade é que poderá, neste contexto, dar vazão à diferença de criação de Jason e Helena. Por Helena ter chegado em um momento onde a família estava se “estruturando” de uma nova forma, teve valores de aprendizado e construção da primeira infância distintos. Jason passa a estudar em escola pública quando a família se instala em Ítaca e, por ser um ambiente bastante diferente daquele que frequentava em Almirante, isso pode ter provocado dificuldades de adaptação na escola e na nova comunidade. Apesar de todas essas mudanças, que o desagradaram, Jason consegue um bom desempenho escolar e mantém um bom comportamento. Jason e sua família passaram por mais alguns percalços após a mudança para Ítaca: as complicações de saúde do pai de Célia decorrentes da diabetes (em 2009), e a insuficiência renal de Luiz (em 2010), fatos que não são mencionados por Jason em sua entrevista. Durante a entrevista, Jason apresenta-se satisfeito com sua participação na ONG Espaço Aprender pelas oportunidades de aprendizado que possibilita. Mostra-se comprometido com os estudos.
8.3. Reconstrução biográfica: Luiza e Clara, mãe e filha em uma trajetória de abandonos e construção de novas trajetórias biográficas (Comunidade dos Cravos) 8.3.1. Luiza, mãe de Clara10 Luiza, nascida em 1976, é a quarta e última filha de sua mãe Roberta, a segunda do terceiro relacionamento desta. Sabe-se que Roberta não chegou a coabitar com o pai de Luiza, que já era casado, da mesma forma que não coabitou com seus dois parceiros anteriores. Pode-se pensar que a ocupação de empregada doméstica (na maioria das vezes residente) da mãe de Luiza obstaculizou a estruturação de uma família, pois a grande sucessão de moradias/empregos pode ter dificultado a fixação e a sociabilização 10
“Luiza” e “Comunidade dos Cravos” correspondem a anonimizações. A maioria dos locais citados neste texto está anonimizada.
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da mesma. Além disso, sabe-se que Roberta veio do Ceará para o Rio de Janeiro com apenas quinze anos, com o intuito de trabalhar em “casas de família”, aparentemente desprovida de qualquer rede familiar na cidade do Rio. Esta circunstância pode ter impactado grandemente a criação de Luiza e seus irmãos, os quais devem ter contado com uma rede bastante reduzida/instável de apoio no Rio de Janeiro, tanto do lado materno quanto paterno. Sabe-se que o nascimento de Luiza sucedeu em pouco tempo o de outro filho, sendo esta proximidade uma possível causa de dificuldades econômicas e de assistência. As circunstâncias do nascimento de Luiza não podem ser totalmente esclarecidas através da entrevista, mas algumas hipóteses são cabíveis. Como se tratava de um quarto filho de um terceiro companheiro, pode-se pensar que as maternidades de Roberta não eram planejadas, embora também persista a possibilidade de buscas continuadas por arranjos familiares. Sabe-se que Roberta teve uma relação longa com o pai de Luiza, um motorista de ônibus casado e possuidor de outra família, o que pode sugerir uma intenção mútua de estabelecimento de uma relação estável. Talvez Luiza tenha sido gerada com essa intenção, a de unir o casal. A hipótese contrária seria a de uma gravidez casual, inesperada, o que pode ter acarretado um estreitamento ou estremecimento da relação. Em qualquer um dos casos, é cabível imaginar um cenário de aumento de gastos e preocupações, no qual Roberta amplia sua dependência financeira e/ou pessoal com terceiros (cuidado de filhos, apoio durante a maternidade e etc.). Luiza pouco comenta sobre sua primeira infância e sobre seu pai, preferindo assumir que nunca conheceu seu progenitor. Ao longo da entrevista, entretanto, algumas histórias que havia escutado de seus irmãos mais velhos são reproduzidas, como uma referente ao bom tratamento que eles recebiam deste homem. De qualquer forma, pouco depois de seu nascimento, sabe-se que sua mãe rompe com seu pai, vende a casa onde vivia e viaja para sua terra natal, no Ceará. Sucessivamente, Roberta deixa seus quatro filhos aos cuidados de parentes (mãe e irmãs) e volta ao trabalho no Rio de Janeiro. Nessas circunstâncias, Luiza, com pouco mais de um ano de idade, inicia uma estada de aproximadamente três anos no Nordeste, até 1980, data em que é recolhida por Roberta. Essa mudança rápida e seguida ao nascimento de Luiza
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talvez esteja relacionada a uma drástica situação econômica/pessoal da mãe, pois é sabido que ela possuía escassos contatos com sua família de origem. Sem possuir um apoio sólido no Rio de Janeiro, e agora sem a ajuda do companheiro, essa pode ter sido a única solução disponível para ela naquele momento (à época, possuía trinta e cinco anos). A época vivida no Ceará também não é recordada diretamente por Luiza, que se remete novamente a relatos de seus irmãos mais velhos. Histórias de privações e de abandono são elencadas em um quadro onde a mãe é a figura culpada: A dificuldade, minha vó tinha que dá comida pra ele, pra gente escondida, porque a minha tia não deixava, né, meus primo meu primo batia na minha irmã, e era assim [...] minha vó dava [comida] (na primeira vez nas) escondida, isso que a minha irmã fala, meu irmão uma época ficou muito revoltado, com a minha mãe, por a minha mãe deixar a gente dessa forma né, P.6. L.24-30
A questão dos abandonos da mãe já aparece na narrativa inicial da entrevistada (quando ela comenta sobre sua gravidez na adolescência e o pouco auxílio que teve), estando presente em praticamente toda a entrevista. Entretanto, independente do interesse de apresentação de Luiza, é possível supor que o tempo passado no Nordeste tenha sido realmente difícil. Mesmo que as quatro crianças tenham sido divididas entre os parentes locais, suas presenças devem ter significado um aumento considerável de despesas e cuidados. Não é possível saber se Luiza contou com uma pessoa de referência nesse período, capaz de dar segurança e apoio à criança, se frequentou uma creche, ou se esteve descuidada. Outras possibilidades também devem ser contempladas, como a de um cuidado superior àquele oferecido por Roberta e a de um bom apoio material. Divididas, talvez, as crianças podem ter recebido um tratamento mais cuidadoso e personalizado (o qual pode ter sido beneficiado por eventuais ajudas enviadas do Rio de Janeiro). Neste quadro, as referências a maus tratos e privações talvez façam parte de algum tipo de história familiar na qual se privilegiam essas ocorrências. Entretanto, tais possibilidades não encontram suporte textual na entrevista e, consequentemente, não podem ser desenvolvidas.
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De volta ao Rio de Janeiro, Luiza é imediatamente deixada aos cuidados de terceiros (como seus irmãos), em uma casa composta por pai, mãe e filho. A providência de buscar os filhos e dividi-los em casas de conhecidos aponta para uma situação financeira e familiar precária de Roberta. Ao que tudo indica, esta, não contando mais com a ajuda de seus familiares no Ceará, novamente se encontrava em um contexto no qual precisava conciliar o cuidado dos filhos e o trabalho, o que não era possível. Os meses passados na referida casa são vagamente recordados por Luiza, que não chega a fazer juízos de valor. A esta casa se sucede o encaminhamento a uma escola interna feminina, um “internato”, no qual a entrevistada vive por cinco anos (até 1985). O tempo passado no internato é bem recordado por Luiza, que o descreve com efusão e como uma espécie de parêntesis bom em sua infância: foi um período muito bom na minha vida […] Sem comparação, minha infância foi muito boa (1) o colégio era bom (2) era só de meninas (3) eu ia embora pra:: a visita era uma vez por mês ((entrevistadora tosse)), um domingo no mês e::: final de ano a gente ia pra casa, quando ia pra casa ia pra casa de alguém, não pra casa da minha mãe, sempre na casa de alguém, (só isso), mas a minha infância lá:: eu brinquei muito, tinha horário pra tudo [...] tudo tinha regrado assim eu gosta::va gostava de tudo de lá (3) P.5. L.24-32. Como se vê, a entrevistada, mesmo sem dar muitos detalhes e exemplos, considera aquele tempo como “bom”, “sem comparação”, embora faça uma ressalva sobre os períodos de fim de ano, os quais ela passava sob os cuidados da mãe. Neles, segundo a citação, era levada a casa de “alguém”, de terceiros, o que pode sugerir um entendimento de abandono em uma época em que normalmente há uma união dentro das famílias. Além dessas descrições gerais sobre o internato, Luiza observa que teve um desenvolvimento pessoal muito “fechado”, “inocente”, pois teria passado a maior parte do tempo com meninas e em um ambiente altamente regrado. Essas observações são apresentadas no momento em que as entrevistadoras lhe perguntam sobre a gravidez na adolescência, o que indica um encadeamento causal entre a infância no colégio e o filho precoce. Para além do interesse de apresentação de Luiza, os anos no internato podem ter significado uma experiência de grande impacto sobre a vida adulta da entrevistada.
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Embora tenha tido uma infância fraturada, a internação pode ter significado para ela o rompimento de laços afetivos com determinadas pessoas ou lugares. O cuidado e trabalho sobre essas perdas por parte da instituição de ensino podem ter sido mais ou menos efetivos, com reflexos igualmente variáveis sobre sua vida pessoal/escolar. Uma possibilidade é a de que Luiza tenha tido um bom Ensino Fundamental até a idade de nove anos, com um bom rendimento escolar. Outra é a de que sua situação pessoal tenha interferido sensivelmente em sua estância no internato e em sua vida escolar. A ausência de mais dados sobre a época impede uma melhor matização. É sabido que a saída de Luiza do internato ocorreu de forma compulsória, por determinação judicial, sob pena de adoção imediata. Esse dado por si só permite entrever o contexto familiar da entrevistada por aqueles anos, apontando para um risco real de adoção por abandono. Entretanto, não é possível afirmar se esse abandono virtual se deveu a uma impossibilidade de hospedagem/cuidados da mãe ou se a um desinteresse da mesma. Seja como fora, Luiza, ao sair do internato, foi matriculada em uma escola e recolhida na casa da mãe. Sobre esse tempo, a entrevistada volta ao assunto do abandono, relatando ficar “sozinha” com seu irmão mais velho em casa. Também é relatado o trabalho na casa de uma vizinha, de uma “madrinha”, para quem prestava auxílios domésticos. Luiza descreve de forma positiva essa experiência, sobretudo sua relação com a madrinha, comparando-a a uma “mãe”. Não se sabe se esse trabalho era uma imposição/coerção da mãe, preocupada com retornos materiais, ou se se tratava de uma relação mais pessoal, desenvolvida entre a criança de nove anos e uma pessoa adulta que aparentemente lhe auxiliava. De qualquer forma, esta pessoa passa a fazer parte da vida da entrevistada e se converte em uma amiga presente até a atualidade. Poucas informações estão disponíveis sobre o período que vai da saída do internato à primeira gravidez da entrevistada. Uma delas é a de que a irmã mais velha de Luiza, o segundo filho de Roberta, tem uma briga com o companheiro e recebe um tiro, ficando com os movimentos de uma das pernas comprometido gravemente. Esse acontecimento não é presenciado por Luiza, que o relata por depoimentos de terceiros, embora ela reconheça que estava inteirada das violências que sofria a irmã. A entrevistada começa a
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falar dos pesares sofridos pela irmã a partir de outro assunto, o das supostas displicências/irresponsabilidades de Roberta na criação dos filhos: ah, minha mãe é::: ,foi muito namoradeira’, minha mãe abortou demais, teve=era pra ter mais irmãos mas ela tirou ovários (12) não sei, acho que de repente é (sério) não sei de repente ela deixava a gente num hotel e queria a liberdade (...) ela chego a morar com pessoas depois saiu não sei depois conseguiu comprar uma casa, foram construindo, foi que ela conseguiu é:: mesmo assim é:: minha irmã casou nova, minha irmã (1) casou com, com quinze anos, foi com quinze ano ela foi morar com:: esse rapa- meu ex-cunhado, bateu nela a vida toda. P. 8. L. 24-32. Ao relacionar as desventuras da irmã com os abandonos infringidos pela mãe durante a infância (“de repente ela deixava a gente num hotel”), Luiza responsabiliza indiretamente esta pelo ocorrido. Entretanto, pode-se pensar que essa relação traçada também se estenda ao caso pessoal da entrevistada, quem, à semelhança da irmã, também inicia um relacionamento na adolescência. Luiza fica grávida aos catorze anos, ao que tudo indica de seu primeiro namorado, um adolescente poucos anos mais velho. Quando do nascimento do filho, Mario, a entrevistada vai morar na casa da mãe do namorado, uma senhora tetraplégica que os ajudava economicamente. A maternidade prematura é um dos temas principais da entrevista, aparecendo já na narrativa inicial: Então tenho tre=meu nome é Luiza, tenho trinta e seis anos, tenho três filhos (1) uma neta, casada (2) ,né’ tive filho cedo, com quinze anos, né, sem apoio de mãe dos pais de irmãos, e::: foi muito difícil, né, e::: quando eu engravidei, foi a primeira vez, né, e::: (2) me vi numa situação difícil porque:: minha mãe minha mãe não me ajudou na época né, então fui morar com a minha sogra, na época o pai do meu filho tinha dezessete ano (...) P. 1. L. 10-14. Acima, as palavras iniciais de Luiza na entrevista. Ao invés de começar por sua própria história, por sua infância ou juventude, a entrevistada passa diretamente à sua condição de mãe e à questão da gravidez precoce. Em seguida, trata sucintamente da desatenção de sua mãe e da mudança para a casa da sogra. Essa forma de apresentação da maternidade – focada em sua pouca idade, no pouco apoio recebido da mãe e na dependência de terceiros – também aparece nos relatos dos dois outros filhos, os quais são concebidos pouco tempo depois.
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A mudança para a casa da sogra deve ter representado uma ampla mudança na vida de Luiza. Deixando a escola, a casa da mãe e o convívio com os irmãos, ela deve ter passado um longo período de adaptação na nova moradia. Tal período pode ter sido ainda mais difícil na hipótese de que seu relacionamento fosse casual, recente, pois isso implicaria um menor conhecimento da família. Seja como fora, Luiza possivelmente teve de assumir novos papéis e ocupações ali, como o auxílio à sogra tetraplégica e o cuidado da casa. Segundo a entrevistada, esta mulher a apoiou e a ajudou no início da maternidade, ensinando-lhe diversas tarefas domésticas. Embora atribulada, a convivência na casa da sogra é descrita como boa, como um aprendizado no qual passa a conhecer uma “estrutura de família”, pois, segundo ela, “eu não tive família”. Após a morte da sogra, pouco tempo depois do nascimento da criança, o relacionamento do jovem casal rapidamente se acaba. O parceiro, ao que parece, desinteressa-se de Luiza e da criança e vai morar em outra casa. Sucessivamente, a casa onde Luiza mora é parcelada e vendida: de fato, o parceiro a abandona em uma pequena parte da casa, em uma “kitnet”, deixando a filha e a companheira desamparadas. Neste local, segundo os relatos da entrevistada, ela teria passado enormes privações e necessidades, permanecendo isolada até que Roberta a chamasse de volta à casa. O retorno a casa como o filho e o período subsequente são pouco matizados na entrevista, bem como as circunstâncias em que Roberta chama a filha de volta. Segundo a entrevistada: Aí minha mãe foi lá, aí falou ‘ah, porque você não falou, que não sei o que’, gente, assim, se ela me aban- ela me abandonou porque, ela não procurava saber como eu tava, que=que eu tava passando, depois que a que a minha sogra tinha morrido, como é que eu ia viver como é que=ela tinha que imaginar poxa, a sogra morreu então como é que ela tá sobrevivendo (...) P.12. L.20-27. Novamente, surge a questão do abandono, já referida por ocasião da estância no Ceará e da vivência no internato. De qualquer forma, o tempo passado na casa da mãe não é descrito explicitamente na entrevista, não se esclarecendo se houve ou não apoio de Roberta na criação/manutenção do filho. Se o arranjo foi desde o princípio provisório, pode-se imaginar um cenário no qual Luiza busca um novo companheiro e/ou uma instituição para internar/cuidar da criança (o que lhe permitiria trabalhar). Se o arranjo
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foi por tempo indeterminado, é provável que Roberta tivesse intenções de ajudar a filha e a neta. Algum tempo depois, Luiza conhece um jovem militar, seu futuro companheiro e pai de suas duas filhas. A entrevistada dá poucos detalhes sobre o início do relacionamento, saltando diretamente para o nascimento de Clara e Diana, nascidas entre 1994 e 1997. Entretanto, a maioria dos comentários sobre o companheiro está relacionada às ajudas materiais que ele proporcionava (“o dinheiro que ele ganhava ele dava”), o que sugere uma grande importância desse âmbito na relação. Por outro lado, é cabível cogitar que a mesma tenha começado em função da gravidez de Clara, de um filho não planejado, o que pode ter unido o casal em um objetivo comum. O impacto de mais um filho em uma situação de dificuldades econômicas e dependência com a mãe deve ter sido grande, principalmente se o filho não foi esperado. Se esse foi o caso, pode-se pensar em uma situação de grande angústia para a entrevistada, na qual possíveis desejos de independência tenham sido rapidamente dissipados. Além disso, o futuro incerto da relação após a gravidez deve ter exigido uma grande atenção de Luiza. No caso de que o filho foi esperado, há pelo menos duas linhas de hipóteses possíveis: uma em que o filho é uma estratégia de Luiza para sair da casa da mãe, e outra em que o filho é aguardado com igual entusiasmo pelos dois. Após o nascimento de Clara, o companheiro deixa o serviço militar e começa a trabalhar em dois turnos, como camelô e como entregador de jornais. Nesse tempo, ele também constrói uma casa para habitarem na parte superior da casa de Roberta, ao que parece em uma laje. Este período, localizado nos primeiros anos da década de 1990, é comumente associado aos graves problemas inflacionários que vivia o país, os quais se arrefecem somente a partir de 1994 (com o Plano Real). Mesmo considerando um bom rendimento com o ofício de camelô, é cabível imaginar a necessidade de um complemento capaz de cobrir eventuais perdas de vendas e compras de mercadorias, por exemplo. As observações da entrevistada sobre o período são bastante escassas, com grandes lacunas temporais, mas mesmo assim é possível apreender alguns de seus aspectos: Assim, ele ajudou, ele também era novo=ele tava no quartel, é novo, novo também, mas ai a gente foi é, se conheceu, fomo morar junto, né, eu
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me vi numa situação de uma ajuda (2) uma situação de ajuda mesmo (2) mas foi um, foi difi- foi que ele era muito, gara- brigava, eu brigava também (3) tudo era brigado, P.13. L.15-18. A questão da imaturidade, da pouca idade, é apontada como a raiz de vários desentendimentos entre ambos, ao que se somaria o gênio “soberbo” do companheiro, sua “ignorância” (“pessoa ignorante”). Essas características dele são apontadas já na narrativa inicial, como uma espécie de obstáculo à convivência, sugerindo certo descompasso na relação. Mais ou menos contemporânea a essa época é a entrada do casal em uma igreja pentecostal, não se esclarecendo se a mesma foi motivada por familiares (sabe-se que Roberta é evangélica) ou por vontade própria. Estudos sociológicos sobre papéis assumidos por igrejas pentecostais em comunidades carentes têm evidenciado um alargamento de suas funções e alcances, como a articulação de redes de amparo, a constituição de pertencimento e a diminuição do isolamento institucional. Assim, atuando em contextos de extrema exclusão e marginalização social, essas organizações garantiriam a seus membros conexões com instancias da cidade (como o acesso ao poder público ou ao mercado de trabalho) e ainda trabalhariam em prol da atenuação de estigmas territoriais. Algum tempo depois, Luiza fica grávida de sua segunda e última filha, Diana. Pouco depois do nascimento desta, o companheiro sofre uma perda de suas faculdades mentais e é internado esquizofrênico. Esses dois acontecimentos sobrepostos têm um impacto fortíssimo sobre Luiza, que mais uma vez se vê desamparada por um parceiro. A gravidez e nascimento de Diana podem ter complicado consideravelmente a situação financeira do jovem casal, ampliando a dependência com terceiros e dificultando o acesso a bens. No caso de que a gravidez tenha sido planejada, tais dificuldades podem ter sido previstas e minoradas, não comprometendo o funcionamento básico do núcleo familiar. Na hipótese contrária, graves dificuldades de manutenção podem ser pensadas, as quais podem ter sido ou não acompanhadas de desentendimentos pessoais (entre eles, familiares, amigos próximos). A internação do companheiro é apresentada como mais ou menos inesperada, como um golpe que lança a entrevistada em um dos piores momentos de sua vida. A internação
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forçosa pela polícia, o acompanhamento em diversos hospícios e o desamparo no qual é submetida são amplamente matizados na entrevista. Mesmo na narrativa inicial há um breve trecho sobre o assunto: (...) e foi quando ele realmente ele teve um::: surto de::: esquizofrenia né, teve surto, teve várias internações (2) quer dizer, eu não podia ficar atrás dele, ou eu tomava a:: a situação dos meus filho né, corria atrás pelo meus filho, ou:: eu ficava atrás dele, onde ele tava ele:: manicômios, vários lugares internados, internado, a:: e ai foi que eu fui trabalhar, né, trabalhei como camelô (...) P. 2 L. 4-8. Nota-se acima uma suposta cisão da entrevistada, dividida entre o apoio ao companheiro e o cuidado dos filhos, sua prioridade. A necessidade de manter em funcionamento o lar é sublinhada no final, quando ela imediatamente passa a tratar de seu trabalho como camelô. Essa busca pelo bem estar dos filhos é um elemento que muitas vezes se contrasta com o proceder da mãe Roberta, apresentada como mais preocupada com si mesma e pouco afeita ao cuidado dos filhos. Além dos aspectos materiais, pode-se pensar no grande impacto sentimental da doença em Luiza, que em termos pessoais sofre uma verdadeira perda: o fim do laço afetivo pode ter causado um longo e doloroso processo de adaptação, obstaculizando ainda mais a atuação dela no período. Aproximadamente em 1998, Luiza começa a trabalhar em uma empresa de Serviços Gerais, ocupação com a qual pode ter alcançado uma boa independência financeira. A possibilidade de contar com um recurso constante provavelmente ampliou a capacidade de planejamento da entrevistada, quem, talvez, pôde cogitar uma mudança da casa da mãe. Por outro lado, o trabalho fixo deve ter dificultado o acompanhamento e cuidado dos filhos, os quais podem ter ficado aos cuidados de terceiros ou desamparados: seja como fora, o cuidado dos filhos deve ter sido uma das principais pendências naquele momento. No plano familiar, enfim, a nova situação econômica/trabalhista de Luiza pode ter mudado sua relação com a mãe e com outros parentes próximos, como por exemplo atenuado antigas pendências financeiras. Talvez no mesmo ano de 1998, Luiza envia Clara a uma escola interna católica e Diana a casa de amigos. A alocação das filhas naquele contexto é amplamente justificada pela entrevistada, que sublinha o significado da decisão e o não-abandono das filhas:
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(...) foi asim é::: foi bom assim porque assim, eu sabia que ela estava num local seguro, tava sendo bem tratada, né=então, foi meio que um alívio assim pra mim pra que eu trabalhasse assim, cabeça sossegada, né (1) ai, assim eu sabia que elas estavam bem, né, porque não adianta elas fica comigo passando:: as dificuldade (...) P.17. L.6-13. (...) assim porque muitos ali [na escola], mãe abandonava os filho (2) tinha tinha crianças lá que os pais largaram, não pro- não visitavam, largavam mesmo, abandonavam os filho lá (...) P.17. L.28-30. Como se vê, a necessidade de tempo para trabalhar não teria se interposto ao cuidado das filhas, argumento que é repetido várias vezes na entrevista: a solução da separação das mesmas é descrita como provisória, como acidental. A situação das crianças nestes lugares não é esclarecida, não se delineando um quadro de privações ou de bem-estar. É cabível imaginar um cenário onde as filhas, ainda muito novas, sofram com o desligamento da presença materna, tendo uma adaptação mais ou menos difícil aos novos lares. De qualquer forma, um ano depois, por volta de 1999, Diana também é ingressada na escola interna, ficando aí apenas alguns meses. A saída do internato, em 2000, deveu-se a uma ordem judicial de reintegração familiar, em uma circunstância que não é totalmente esclarecida. Aqui, nota-se uma coincidência entre a trajetória das filhas e da mãe, pois esta também havia sido retirada de um internato de forma compulsória. Uma hipótese é a de que Clara e Diana haviam sido abandonados na instituição, causando a ação judicial. Outra é a de que o comportamento de Luiza não tenha tido relação direta com o ocorrido, sendo ele motivado por fatores internos à instituição (como, por exemplo, um entendimento de que Luiza tinha condições de criar as filhas). Seja como fora, Luiza, neste mesmo ano, estabelece um novo relacionamento com um companheiro de trabalho e vai morar com ele e com as duas filhas em uma casa alugada – o que pode ter sido uma adequação a uma ordem judicial sobre a guarda das filhas. Por motivos não esclarecidos, o filho fica na casa da avó. A reunião das irmãs em uma mesma casa, junto com o novo parceiro da mãe, pode ter sido mais ou menos trabalhosa, de acordo com os laços afetivos criados até então. Ingressadas muito novas em um internato, o contato continuado com a mãe pode ter provocado situações de indisposição ou rebeldia, com efeitos variáveis sobre o cotidiano
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do núcleo familiar. Na hipótese de que Luiza tenha acompanhado ambas em sua primeira infância, mesmo elas vivendo em outros lugares, pode-se pensar em uma situação menos trabalhosa ou até mesmo estável. No plano narrativo, Luiza associa a nova relação às necessidades do momento: Então, foi assim, eu não tinha outra saída (...) mas que=mas que empurrada assim a morar com ( ) com a pessoa por=devia a situação, não porque ‘ah, gostava assim’, não, a situação me levou a isso (1) né (3) ai vai levando, ( ) passa muito rápido, quando você pensa já foi (4) P.18. L.5-10. Segundo a entrevistada, a necessidade de trabalhar a teria constrangido (“empurrado”) ao relacionamento, o qual não estaria baseado em uma afeição específica. Esta espécie de sacrifício para manter a família unida, para não se separar dos filhos, já aparece na narrativa inicial da entrevistada, que também traz os problemas decorrentes dessa convivência inesperada: (...) fui morar com ele, mas também foi só briga, porque assim, com defendendo os meu filho, sempre defendi ele por::: brigava por tudo, tudo tudo, é:: pelo::: pelo chão que sujava com pão, e xingava meus filho, nisso foi sete anos (...) P.2. L. 30-33. Ressalta-se nesta passagem a defesa dos filhos diante de um companheiro supostamente afeito a brigas e desmandos: assim, diante de um parceiro problemático, amplia-se a ideia de uma mãe sofredora, disposta a fazer grandes concessões para manter unida a família. A permanência do filho na casa da avó, na qual também vivia a tia e os primos de Luiza, não possui um motivo aparente. Caso essa alocação tenha sido motivada por problemas financeiros, pode-se pensar que o novo núcleo familiar encontrava certas dificuldades para manter as cinco pessoas, pelo menos neste ano inicial de convivência. Caso a ida do filho mais velho tenha atendido a problemas pessoais, originados em questões de convivência, pode-se pensar em uma imposição/pedido do companheiro, em uma solicitação que Luiza aparentemente não pôde negar. Ou ainda em um desejo de Luiza de não apresentar o filho, desonerando assim o companheiro de mais uma responsabilidade.
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Sobre a estância deste filho na casa da avó pouco é relatado além de um grave acidente ocorrido no período no qual ele sofre uma queda de uma laje e quase perde a vida. Dadas as graves consequências deste acidente, é possível delinear vários impactos dentro da família de Luiza. Um deles diz respeito às prováveis responsabilizações legais e sanções do acidente da criança, o que pode ter gerado uma investigação pública sobre as condições de vida dos filhos. Outro diz respeito às relações entre Luiza e Roberta, com possíveis estremecimentos e indisposições. Por último, o provável retorno do filho à moradia materna, com todas as consequências financeiras e pessoais da mudança. De qualquer modo, a dependência à ajuda materna à época, de certa forma causadora do acidente, é novamente apontada como um mal necessário: (...) só que assim, largado, ele foi largado assim, ele ficava pela rua, ficava pelo caminho, eu tinha que trabalhar, não podia ficar olhando ele, ai chegou=a=cair=da=laje, quase morreu, com oito anos ele caiu da laje, ele quase morreu ((barulho de celular)), porque não tinha pessoa olhando ele (...) P.18. L.16-24. No trecho, a necessidade de trabalhar é um elemento que se interpõe a um cuidado ideal dos filhos, que o impede, tornando a situação de desamparo distinta daquela vivenciada com a mãe Roberta, por vezes descrita como voluntária. Após o acidente, pouco se sabe sobre a convivência entre Luiza, o companheiro e os três filhos, que segundo seu relato durou cinco anos. Sabe-se que a entrevistada deixa ou perde o trabalho um tempo depois, o que talvez se relacione com o acidente do filho. Este acontecimento pode ter acarretado várias consequências para o relacionamento, pois as despesas da casa e dos filhos provavelmente se acumularam sobre o parceiro. Este, por exemplo, pode ter se sentido pressionado e considerado a possibilidade de deixar o núcleo. Por outro lado, pode-se pensar em um acordo no qual Luiza tenha assumido as responsabilidades domésticas e ele o trabalho externo. De qualquer forma, a manutenção de cinco pessoas deve ter sido dificultada no momento e é provável que o núcleo tenha aumentado sua dependência com terceiros. De fato, um tempo depois Luiza pede uma casa emprestada para a irmã, alegando uma impossibilidade de continuar pagando aluguel. Este fato corrobora o cenário acima e também aponta para uma certa
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solidariedade entre a família. Infelizmente, não há uma indicação clara da localização dessa casa, se ela estava na Comunidade dos Cravos ou não, próxima ou não dos familiares da entrevistada. Entre 2000 e 2005, ano da separação do casal (aproximadamente), há uma lacuna na entrevista que dificilmente pode ser preenchida. A entrevistada, entretanto, faz referências a brigas e separações, seguidas por reconciliações e retornos. Considerando as dificuldades enfrentadas por Luiza desde o início da relação, pode-se pensar que ela tenha mantido uma convivência próxima com sua família, buscando apoio na mesma em períodos mais conflituosos com o companheiro. Além disso, sabe-se que ela, por um curto período de tempo, trabalhou com a irmã em um empreendimento de venda de alimentos, provavelmente um restaurante, o que denota uma grande proximidade entre elas. O próprio empréstimo da casa, aliás, já aponta para essa proximidade. Em 2004, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva implementa o Bolsa Família, o qual abrange programas sociais anteriores como o Bolsa Escola, o Auxílio-Gás e outros na área de saúde e alimentação, implementados pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Na hipótese de que o núcleo familiar tenha sido beneficiário, duas consequências imediatas podem ser consideradas: uma maior autonomia financeira de Luiza, provável administradora do novo recurso, e a permanência obrigatória dos filhos na escola. No primeiro caso, por exemplo, Luiza pode ter se sentido mais livre para pensar em cenários sem a presença do companheiro; no segundo, pode-se pensar em um aumento do nível de escolarização entre as gerações. A um nível mais amplo, o Bolsa Família pode ter melhorado os níveis de renda da região como um todo, incrementado o comércio e empreendimentos, o que pode ter tido impactos mais ou menos diretos sobre a família de Luiza. Em 2005, e com os filhos entre as idades de dez e quinze anos, aproximadamente, Luiza termina definitivamente o relacionamento com o terceiro companheiro. Os motivos apontados para esse término são a falta de apoio financeiro ao núcleo e sua ausência no lar: É ele:: ele trabalhou numa obra ele trabalhava com obra, o meu irmão chegou a trabalhar com ele, ele ganhou um valor de:: não sei se foi
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5.000,00 a obra, e ele queria me da::r, (...) queria me dar um dinheiro assim=me deu 50,00 reais (...) a gente chegou a se separar umas três vezes, depois voltava, pedia desculpas, né, mas da última eu falei ‘não, fica com seus amigos que eu vou viver a minha vida, não é o seus amigos que você quer, então você vai’, e ele foi (1) P.19-20. L.33-4. Nota-se no plano discursivo a indisposição da entrevistada de continuar convivendo com um companheiro que não contribuía o esperado para o núcleo, aparentemente pouco implicado na estruturação do mesmo (em um sentido amplo, afetivo e financeiro). Voltase, aqui, à argumentação da busca por estabilidade, coisa que nos dois primeiros relacionamentos havia sido impossível por motivos alheios à vontade de Luiza (no primeiro, ele aparentemente a abandona, no segundo, ele é apartado em um hospital psiquiátrico). Neste caso, encontrando-se com uma margem de escolhas, a entrevistada voluntariamente (ou pelo menos isso é afirmado) atua para buscar uma estabilidade familiar. Independente do interesse de apresentação da entrevistada, a falta da ajuda do companheiro, ainda que essa fosse pequena, deve ter impactado negativamente na situação financeira da família. Não se sabe se nesse momento Luiza estava desempregada. Neste caso, é provável que o acesso a bens tenha diminuído grandemente, bem como a autonomia geral do núcleo. Também é possível delinear possíveis impactos pessoais da ruptura, pois, presente ou não no cotidiano deles, tal companheiro conviveu cinco anos com Luiza e filhos: talvez, este tenha mantido uma relação amistosa/próxima com Luiza e/ou filhos, auxiliando na criação e cuidado dos menores. Aproximadamente um ano depois, em 2006, é sancionada a lei Maria da Penha, a qual visa coibir e prevenir violência familiar e doméstica contra a mulher. Não é possível saber se essa nova lei teve um impacto sensível no entorno da entrevistada, ou mesmo se seus termos foram conhecidos por ela. Em caso afirmativo, pode-se pensar em um cenário em que eventuais problemas de violência dentro da família vão sendo solucionados, crescendo a autonomia das mulheres nos arranjos familiares. Nesse sentido, o histórico de violências sofridas pela irmã de Luiza pode ter propiciado uma maior atenção à nova legislação, a qual pode ter sido interpretada como uma conquista. Adicionalmente, é possível que as filhas de Luiza tenham entrado na adolescência já
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conhecendo a lei, o que pode ter alterado sensivelmente o entendimento geracional sobre relações de gênero. Em 2007, cinco anos antes da entrevista, Luiza inicia o relacionamento com seu atual companheiro. Infelizmente, poucos detalhes estão disponíveis sobre o começo da relação, bem como sobre a situação do núcleo neste ano. A entrevistada somente faz referências à casa comprada na Comunidade dos Cravos, onde mora até hoje: (...) arranjei esse outro é:: atual agora que moro com ele já tem cinco anos, né, e agen- foi ele que me tirou de lá, de onde morava, compramos aqui, e tamo aí (...) P.3. L.6-8. Este trecho sucede outro em que a entrevistada relata as brigas que tinha com o anterior companheiro, os motivos que a levaram ao rompimento. Destaca-se a saída da casa de Roberta, onde aparentemente vivia, e a compra de uma casa própria. Este tema é retomado no fim da entrevista, quando as entrevistadoras pedem para que ela fale mais sobre o assunto: Eu fiquei feliz assim porque a gente ter você ter o que é seu né, dá um pouco mais de conforto pro seus filho, é:: né, porque:: a gente já morou tanto, eu já morei tanto assim, morei em casas de madeira, casa de (estuque), em casa de não sei o que, casa sem teto, e hoje tá aqui assim é (benção de deus) P.25. L.2-5. Novamente, há uma referência à busca do bem-estar dos filhos, a qual é recordada antes mesmo dos interesses pessoais da entrevistada. Ademais, a nova moradia é apresentada com uma espécie de culminação de uma trajetória de dificuldades, um lugar onde finalmente a família poderá se enraizar. Seja como fora, a mudança para a nova casa deve ter suposto uma nova dinâmica de convivências entre o casal e os filhos. Estes, já adolescentes, podem ter tido uma adaptação mais ou menos longa ao novo ambiente, com consequências variáveis sobre o cotidiano. Sabe-se, por exemplo, que Clara vai para a casa do pai (que sofre de esquizofrenia) por alguns dias, aparentemente sozinha, em circunstâncias não muito bem esclarecidas11: tratou-se, segundo Luiza, de uma vontade de “liberdade” da filha, de uma “rebeldia”, o que pode apontar para desentendimentos no novo arranjo familiar. Também é sugerido que o filho mais velho 11
Trata-se de um dado da entrevista da própria Clara. Nesta parte do relato, ela conta ter sido medicada indevidamente pelo pai e ter ficado inconsciente por mais de um dia.
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da entrevistada, Mário, havia passado uma temporada na casa da avó Roberta, sendo desconhecido o motivo dessa estância. Ao que parece, é durante essa temporada na casa da avó que ele engravida uma garota de catorze anos, não se esclarecendo se a mesma era ou não sua namorada. No momento da entrevista, Mário, a companheira e o bebê (uma menina) vivem na casa de Luiza, a qual também alberga Clara, Diana e o companheiro (sete pessoas no total). É notável a semelhança entre a história do nascimento do filho (Mário) e a história da primeira neta. A própria entrevistada traça essa relação: A [minha neta]? ((risos)) ela é uma benção de deus né ((risos)) não é o que eu queria né, o momento né que eu acho que ainda (1) por eu ter passado tudo o que eu passei, não gostaria né, que a gente dá conselho porque:: assim quando=a gente=dá=conselho é por que a gente passou algo, então eu não gostaria que fosse dessa forma, logo assim, né primeiro tinha que se estruturá, né, primeiro estudá, pra de::po::is né é arrumar família, não que::: pode até namorar, ficar, sei lá como fosse, mas que se estruturasse primeiro pra depois arrumar filho, porque filho é dificuldade né, as coisa anda muito caro né, as condição não tá assim, se você, é:: tivesse uma estrutura poderia dar algo melhor pro filho né, mais, ele arrumou ((risos)) //E1: uhum// ajudo a olhar mais::: se for pra ir pra escola, pra ela ir pra escola, que ela estuda, então eu olho até ela voltar da escola, só isso’ (2) P.3-4. L.29-4 O descontentamento de Luiza, nesta passagem, baseia-se na desatenção por parte do filho aos conselhos que ela teria dado sobre a paternidade, conselhos oriundos de uma experiência pretérita e indesejável. Ressaltam-se aqui algumas condições que ela entende como necessárias para tal experiência: uma escolarização, uma “estrutura” e uma “família”. A inexistência dessas condições traria mais dificuldades que as habituais (“porque filho é dificuldade né”), como aquelas que estariam vivendo Mário e a companheira. Entretanto, ao final da passagem, Luiza ressalta que ajuda a garota a continuar frequentando a escola (cuidando de seu neto no horário escolar), em uma indicação de um esforço para mudar o encaminhamento da história. Sabe-se que, no momento da entrevista Luiza está desempregada. Com o crescimento dos filhos, é possível supor um aumento dos gastos e uma nova distribuição dos recursos (embora também sejam esperadas ajudas econômicas dos filhos). Seja como for, pode-se imaginar uma concentração dos recursos no jovem casal, o qual se encontra reunindo
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recursos para a construção de uma casa própria. Essa concentração pode ocasionar desentendimentos entre os irmãos, como uma polarização entre as irmãs. Por outro lado, é possível pensar em um arranjo provisório no qual todos tomem parte e preservem a convivência. Como foi discutido nesta reconstrução biográfica, Luiza viveu uma infância extremamente fraturada, dividida entre o cuidado de familiares, de terceiros e uma estância em um internato. O pouco contato com a mãe até a adolescência foi interrompido pela gravidez precoce de Mário, aos catorze anos, quando ela passou a morar com a sogra. Esta mulher, segundo os relatos da entrevista, chegou a ser como uma “mãe” para ela. Sua morte em um período próximo, entretanto, acarretou o fim da relação de Luiza e o abandono do companheiro: desinteressado da família, ele teria deixado mãe e filho desamparados. Iniciou-se aí, ao que tudo indica, um longo período de dependência com sua mãe Roberta, o qual também perpassou seu seguinte relacionamento. Neste, desenvolvido com um jovem militar, Luiza gerou suas duas filhas, Clara e Diana, as quais foram criadas em uma ampliação da casa de Roberta (construída sobre a laje). O desenvolvimento de uma esquizofrenia no companheiro e sua subsequente internação, quando Diana ainda era muito pequena, fez com que Luiza mais uma vez se encontrasse dependente de terceiros. Após um período de dificuldades financeiras, no qual trabalhou como camelô, Luiza começou a trabalhar em uma empresa e possivelmente obteve melhorias econômicas. O cuidado dos filhos, não obstante, continuou acarretando dificuldades, motivo pelo qual a entrevistada disse ter dividido os mesmos (em um internato e em casa de amigos). Algum tempo depois, pressionada por um juiz, a entrevistada teve de reunir os filhos, mas agora com a ajuda de um novo companheiro. Este relacionamento, que durou aproximadamente cinco anos, teria sido marcado por divergências e pela falta de apoio do companheiro. Mais recentemente, desde 2007, Luiza tem vivido com seu atual parceiro, com o qual pode comprar uma casa própria, na Comunidade dos Cravos. A questão da violência aparece apenas tangencialmente na história de Luiza, nos abandonos causados pela mãe e nas discussões com os companheiros. Não é relatada qualquer violência física sofrida. Entretanto, destacam-se os maus-tratos recebidos pela
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irmã, advindos do marido, e o incidente do tiro, que provocou a perda definitiva dos movimentos de uma das pernas da irmã. Síntese da reconstrução biográfica de Luiza Luiza, nascida em 1976, é a quarta e última filha de sua mãe Roberta, a segunda do terceiro relacionamento desta. Sua infância foi extremamente fraturada, dividida entre o cuidado de familiares (no Ceará), de terceiros e uma estância em um internato. O pouco contato com a mãe até a adolescência foi interrompido pela gravidez precoce de Mário, aos catorze anos, quando ela passou a morar com a sogra. Esta mulher, segundo os relatos da entrevista, chegou a ser como uma “mãe” para ela. A morte desta em um período próximo, entretanto, acarretou o fim de sua relação e o abandono do companheiro: desinteressado da família, ele teria deixado mãe e filho desamparados. Iniciou-se aí, ao que tudo indica, um longo período de dependência com sua mãe Roberta, o qual também perpassou seu seguinte relacionamento. Neste, desenvolvido com um jovem militar, Luiza gerou suas duas filhas, Clara e Diana, as quais foram criadas em uma ampliação da casa de Roberta (construída sobre a laje). O desenvolvimento de uma esquizofrenia no companheiro e sua subsequente internação, quando Diana ainda era muito pequena, fez com que Luiza mais uma vez se encontrasse dependente de terceiros. Após um período de dificuldades financeiras, no qual trabalhou como camelô, Luiza começou a trabalhar em uma empresa e possivelmente obteve melhorias econômicas. O cuidado dos filhos, não obstante, continuou acarretando dificuldades, motivo pelo qual a entrevistada disse ter dividido os mesmos (em um internato e em casa de amigos). Algum tempo depois, pressionada por um juiz, a entrevistada teve de reunir os filhos, mas agora com a ajuda de um novo companheiro. Este relacionamento, que durou aproximadamente sete anos, teria sido marcado por divergências e pela falta de apoio do companheiro. Mais recentemente, desde 2007, Luiza tem vivido com seu atual parceiro, com o qual pôde comprar uma casa própria, na Comunidade dos Cravos. Recentemente, seu filho mais velho trouxe uma companheira e uma filha recém-nascida para a nova residência, que passou a comportar sete pessoas: a entrevistada, o companheiro, Clara, Diana, Mário, a nora e o neto.
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Luiza apresenta uma história de vida marcada por contínuos abandonos da mãe, problemas com seus parceiros e infortúnio. Em linhas gerais, ela busca se apresentar como alguém que constantemente evita que problemas pessoais repercutam sobre seus filhos, em uma tentativa de não repetir sua própria trajetória pessoal – em outras palavras, o cuidado que teria recebido de sua mãe. A necessidade de trabalhar para sustentar os filhos, com a consequente separação dos mesmos, por exemplo, constitui uma questão especialmente matizada em sua fala. Luiza menciona ter alocado as crianças com parentes e em uma instituições de ensino em momentos de extrema ocupação com a sobrevivência econômica, destacando sempre que esses recursos seriam soluções extremas que contrastariam com sua prioridade de ser uma boa mãe. No entanto, tais expedientes não se materializariam como soluções duradouras, exigindo de Luiza sempre novos arranjos que girariam em torno de estabelecer novos relacionamentos, buscar ajuda de familiares ou tentar apoios institucionais (como por exemplo para o marido quando esse apresenta distúrbios mentais). O campo temático subjacente à narrativa de Luiza ressalta seu papel de mãe, que é inquestionavelmente importante para sua apresentação de si, bem como a dificuldade de desempenhá-lo da maneira desejada em vista das condições oferecidas pela família de origem, pelos pais dos filhos e pela situação financeira.
8.3.2. Clara, filha de Luiza Clara, nascida em 1994, é a segunda filha de Luiza, a primeira do segundo relacionamento desta. Segundo dados extraídos da entrevista de Luiza, seu primeiro relacionamento foi marcado por uma gravidez indesejada na adolescência, quando ela tinha apenas catorze anos. Com o filho ainda pequeno (Mário), Luiza teria sido abandonada pelo companheiro e deixada aos cuidados da própria mãe, Roberta. No ano seguinte, ao que tudo indica, Luiza teria conhecido o pai de suas duas filhas (Clara e Diana), um jovem militar. Em um primeiro momento, o casal viveu na casa de Roberta, compartilhando a mesma moradia, mas depois foi construída uma ampliação sobre a laje.
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As poucas informações sobre o início do relacionamento dificultam uma reconstrução fiel do momento, mas pelo menos duas hipóteses podem ser desenvolvidas. No caso de que a coabitação tenha começado em função da gravidez de Clara, pode-se pensar em um cenário em que o jovem casal tenha que se mudar forçosamente para a casa de Roberta, fazendo uso das estruturas disponíveis para o recebimento da filha. No caso de que a gravidez tenha ocorrido depois, é cabível imaginar um desejo compartilhado de formação de família, sendo a mudança para a casa de Roberta um primeiro arranjo de moradia. Contemporâneo ao nascimento de Clara é o desligamento de seu pai das Forças Armadas, trabalho substituído pela ocupação de camelô e de vendedor de jornais. Como pano de fundo nacional, destacam-se os graves distúrbios na moeda brasileira que antecederam a implementação do Real, em 1994. Segundo estudos econômicos sobre o período, a população brasileira, que havia criado mecanismos para se defender das altíssimas taxas de inflação, sofreu um novo revés após a saída de Fernando Collor da presidência, em 1992, quando se verificou um aumento da inflação e da desigualdade de renda. Assim, pode-se supor que os trabalhos do companheiro de Luiza não garantiam uma estabilidade financeira para o núcleo, sendo necessárias ajudas de terceiros para a manutenção do mesmo. Morando em uma mesma edificação, talvez a mãe de Luiza tenha realizado a maioria dessas ajudas, embora não existam informações sobre essas questões práticas do momento. O nascimento de Clara quando Luiza tinha a idade de dezoito anos, e quando seu filho Mário tinha entre três e quatro anos, na casa de sua mãe na Comunidade dos Cravos, possivelmente trouxe várias alterações sobre o cotidiano dela e do companheiro. Dedicada ao cuidado de Mário e Clara, Luiza deve ter passado a conviver mais com a mãe, contribuindo para a organização e funcionamento da casa. Também deve ter aumentado sua inserção em redes de apoio locais, compostas por familiares e amigos, sendo auxiliada no cuidado dos filhos e demais necessidades. O companheiro, por outro lado, pode ter tido maiores dificuldades para se integrar naquele arranjo, convivendo intensamente com a família da nova companheira e tendo que se adaptar às novas formas de trabalho.
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É nesse período posterior ao nascimento de Clara que o casal começa a frequentar uma igreja pentecostal, a qual já era frequentada pela família de Luiza. Talvez o ingresso nesta comunidade tenha respondido às necessidades do momento, como um apoio na criação dos filhos e o suprimento material. Estudos sociológicos sobre papéis assumidos por igrejas pentecostais em comunidades carentes têm evidenciado um alargamento de suas funções e alcances, como a articulação de redes de amparo, a constituição de pertencimento e a diminuição do isolamento institucional. Assim, atuando em contextos de extrema exclusão e marginalização social, essas organizações garantiriam a seus membros conexões com instancias da cidade (como o acesso ao poder publico ou ao mercado de trabalho) e ainda trabalhariam em prol da atenuação de estigmas territoriais. Questionada durante a entrevista sobre sua participação na comunidade pentecostal, Clara aproxima-se das evidências acima: (...) lá, lá por ser evangélico, ai você trata como família mesmo, então você tem o teu grupo ( ) e a sua família, então as pessoas participam da sua vida, quando você tá precisando, tá todo o momento ali::: então:: //E1: uhum// são esses os meus amigos, que participam sempre da minha vida (...) P.5. L.11-18. Como se vê, a entrevistada descreve um apoio continuado dessa comunidade em sua vida, ressaltando as ajudas em momentos de necessidade. Além disso, aponta para a identificação com certas formas de sociabilidade (“ai você trata como família mesmo, então você tem o teu grupo”). De qualquer forma, a experiência pentecostal deve ter sido mais relevante a partir da adolescência de Clara, quando ela ganha maior autonomia e pode se apropriar de certos valores e práticas, como se verá abaixo. Entre os anos de 1995 e 1997, Luiza fica grávida de seu terceiro e último filho, Diana. Pouco depois do nascimento desta, o companheiro sofre uma perda de suas faculdades mentais e é internado aparentemente com diagnóstico de esquizofrenia. Esses dois acontecimentos sobrepostos têm um impacto fortíssimo sobre Luiza, que mais uma vez se vê desamparada por um parceiro. A gravidez e nascimento de Diana podem ter complicado consideravelmente a situação financeira do momento, ampliando a dependência com terceiros e dificultando o acesso a bens. No caso de que a gravidez tenha sido planejada, tais dificuldades podem ter sido previstas e minoradas, não comprometendo o funcionamento básico do núcleo familiar. Na hipótese contrária,
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graves dificuldades de manutenção podem ser pensadas, as quais podem ter sido ou não acompanhadas de desentendimentos pessoais (entre eles, familiares, amigos próximos). De qualquer forma, pode-se pensar que a doença do companheiro tenha consumido parte dos recursos do núcleo, gerando despesas com deslocamentos e medicações, complicando sensivelmente o recebimento da filha. Embora a rápida internação tenha suposto uma desoneração dos gastos, o próprio tempo despendido no apoio ao enfermo pode ter piorado a delicada situação material do momento. Do ponto de vista do cotidiano do núcleo, o nascimento de Diana deve ter alterado grandemente a dinâmica familiar. Agora com três filhos, Luiza deve ter priorizado a manutenção da renda, posto que as ajudas externas devem ter suprido cada vez menos suas necessidades. Assim, o cuidado/vigilância dos mesmos deve ter alcançado uma urgência inédita: possuindo entre um e sete anos, aproximadamente, os irmãos provavelmente estiveram aos cuidados de terceiros ou desamparados. Neste tempo, é possível imaginar um cenário de grandes privações materiais e afetivas (até mesmo de exposição a violências), com reflexos variáveis sobre o desenvolvimento das crianças. A questão da doença e internação do pai quando Clara tinha poucos anos de idade é apresentada em uma parte da entrevista em que a mãe, Luiza, faz várias e longas intromissões, nas quais relata e explica passagens difíceis de sua vida (é importante ressaltar que Luiza acompanhou toda a entrevista). Assim, mãe e filha se alternam para dar versões sobre o passado. Nas palavras de Clara: (...) então a primeira pessoa que a minha mãe conheceu ela engravidou, do meu irmão, primeiro, conviveu com ele (...) sofreu porque não era boa pessoa (...) Mãe ((sobrepondo)): não é que não era boa pessoa, é por causa da idade, eu tinha quinze, ele dezessete, essa idade você não tem maturidade assim de você cuidar de um filho, maturidade de você:: ele é jovem, ia calhar de algum dia ele me largar e::: eu ia estar sozinha do mesmo jeito, porque é assim::: você::: // C ((sobrepondo a mãe)): pego, a minha mãe conheceu o meu pai, casou com meu pai, e logo depois o meu pai teve a doença, da esquizofrenia, assim, a minha mãe ficou, minha mãe não teve muito apoio de ninguém (...) P. 12. L. 8-17. Nas linhas acima, Clara conecta fatos da vida de sua mãe e cria uma narrativa de sofrimentos e abandonos: encadeia os dois primeiros companheiros de Luiza e ressalta o duplo abandono que ela teria sofrido. Luiza, entretanto, faz um adendo e relembra a
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imaturidade do primeiro casal (“eu tinha quinze, ele dezessete”), explicando que sua desgraça era quase inevitável (“ia calhar de algum dia ele me largar e::: eu ia estar sozinha do mesmo jeito”). Como se vê, a entrevistada concentra-se nas consequências que aquele período trouxe para sua mãe, deixando explicitamente de comentar questões pessoais relacionadas à ausência paterna. Essa aparente aceitação do passado da mãe, bem como o implícito reconhecimento dos reflexos que ele pode ter tido sobre sua vida, não devem ser desconectados do contexto da entrevista, na qual, muito possivelmente, a presença da mãe causara constrangimentos e coerções. Dessa forma, a necessidade de apresentar uma história coerente com as observações da progenitora, de não imputar sobre ela graves responsabilidades, certamente amenizou discordâncias e conflitos. O contexto da entrevista também pode ter influenciado na recusa de Clara de narrar os períodos iniciais de sua vida (estes, em suas palavras, estariam “apagados da minha memória”). Assim, em um primeiro momento, ela concentra-se inteiramente nos acontecimentos de seu diaa-dia e nos anos procedentes. Essa relutância, além de indicar um desconforto com experiências pretéritas, pode estar associada à interação com as entrevistadoras, estudantes universitárias apenas alguns anos mais velhas que Clara, que a inspiram a dirigir sua fala a temas que seriam comuns entre todas. Ainda seria possível conectar essa relutância com a presença de familiares nas proximidades de onde a entrevista está sendo conduzida. Um ano depois, aproximadamente em 1998, Clara é matriculada pela mãe em uma instituição de ensino interna de caráter confessional. Com apenas quatro anos de idade, a entrevistada deve ter sofrido com a ruptura de laços afetivos criados até então, seja com pessoas ou com lugares: pode-se pensar em uma desaparição repentina de várias personagens de referência que atuavam na residência da avó. O cuidado por parte da instituição ao lidar com esse rompimento pode ter sido mais ou menos efetivo, com efeitos igualmente variáveis sobre Clara. Materialmente, entretanto, pode-se supor uma grande melhora na vida da entrevistada, beneficiada com boas condições de alimentação, instrução e entretenimento. Essas condições podem ter criado uma boa base sobre a qual desenvolver uma vida escolar, hipótese que se torna plausível diante do interesse demonstrado pela entrevistada pela instrução.
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A vivência em um internato já tinha precedentes na família da entrevistada. Sua mãe, com cinco anos, fora interna em um, permanecendo na instituição por quatro anos. Na entrevista de Luiza, essa passagem é caracterizada como um abandono de sua mãe Roberta. Assim, no plano discursivo, Clara esforça-se para não relacionar a atitude de sua mãe com aquela que teria tido sua avó, décadas antes: minha mãe criou eu, criou minha irmã e meu irmão, então assim, ela botou a gente num período, a minha irmã ficou com a amiga da minha mãe, e eu entrei pro colégio interno, que também não fui maltratada lá, de maneira nenhuma, eu lá também::: recebi muitos valores, porque lá não foi um lugar que eu ficava jogada, lá eu tinha padrinho, lá tinha um ensinamento com vivesse aqui fora, então nos finais de semana a minha mãe me buscava (lá) P.12. L.23-28.
Segundo a entrevistada, sua mãe não teria deixado de atender aos filhos (“minha mãe criou eu, criou minha irmã e meu irmão”), sendo ela posteriormente alocada (“porque lá não foi um lugar que eu ficava jogada”) em uma boa instituição (“tinha um ensinamento como vivesse aqui fora”). Por fim, ressalta as visitas semanais da mãe. Mais uma vez, deve-se contextualizar tais observações a partir da situação da entrevista, da presença e intervenção da mãe. Um ano depois, Diana, que estava na casa de uma amiga de Luiza, também é levada para o internato, ficando lá alguns meses. Não é possível saber se as duas crianças tiveram contato, se se apoiaram ou se uniram, por exemplo: seja como fora, por volta do ano 2000, uma determinação judicial de reintegração familiar obrigou Luiza a recolher suas filhas. Este acontecimento também já tinha um precedente, pois Roberta fora obrigada a recolher Luiza do citado internato. Novamente, Clara busca apresentar uma história diferente: Não foi ruim pra mim não, gostei bastante (2) não queria sair de lá:: ((risos)) minha mãe que (2) eu falei pra minha mãe, ‘ah, porque você me tirou de lá?’, e ela explicou a história depois né (...) P.17. L.23-27. Independente do interesse de apresentação de Clara, é cabível imaginar cenários que justifiquem a citada determinação judicial. Uma hipótese é a de que Clara e Diana haviam sido abandonadas na instituição, causando a ação judicial. Outra é a de que o
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comportamento de Luiza não tenha tido relação direta com o ocorrido, sendo ele motivado por fatores internos à instituição (como, por exemplo, um entendimento de que Luiza tinha condições de criar as filhas). Neste mesmo ano, a mãe de Clara estabelece um novo relacionamento com um companheiro de trabalho e vai morar com ele e com as duas filhas em uma casa alugada – o que pode ter sido uma adequação a uma ordem judicial sobre a guarda das filhas. Por motivos não esclarecidos, talvez econômicos, Mário continua a morar na casa da avó. A reunião das irmãs em uma mesma casa, junto com o novo parceiro da mãe, pode ter sido mais ou menos trabalhosa, de acordo com os laços afetivos criados até então. Ingressadas muito novas em um internato, o contato continuado com a mãe pode ter provocado situações de indisposição ou rebeldia, com efeitos variáveis sobre o cotidiano do núcleo familiar. Na hipótese de que Luiza tenha acompanhado ambas em sua primeira infância, pode-se pensar em uma situação menos trabalhosa ou até mesmo estável. Segundo os relatos de Clara, tratou-se de um tempo passado em um ambiente familiar. A gente era criança::: //E1: vocês gostavam né:::// eu gostava muito, o pessoal é muito família lá [família do companheiro da mãe], o pessoal é muito::: família, aí natal passava com::: (os parentes) do meu antigo padrasto ((cão atrapalha a gravação)), então assim, era muito mais família, entendeu (...) P.20. L.3-14. A referência a uma atitude própria de uma família (“pessoal é muito::: família”) permite pensar em uma experiência nova para a entrevistada, contrária àquelas vividas até então. Sabe-se que Luiza viveu cinco anos com esse companheiro, período que compreende as idades de seis a onze anos de Clara: nesses anos, muito pouco matizados na entrevista, a entrevistada pode ter criado fortes laços afetivos com o parceiro da mãe. Na hipótese contrária, a de uma má convivência, pode-se pensar em cenários nos quais as filhas se unam contrárias ao novo personagem, ou ainda outros em que as filhas e a mãe tenham dificuldades de relacionamento com este. Ao que tudo indica, a casa alugada estava na Ilha do Governador, em um entorno com razoáveis serviços e oportunidades. Contando com catorze bairros, a maioria residenciais, esta parte da cidade também dispõe de áreas industriais e comerciais; além
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disso, possui instituições de ensino de todos os níveis, o que pode ter propiciado a Clara boas condições de estudo. Entretanto, não muito tempo depois, talvez por problemas econômicos, o núcleo de Clara sai da casa alugada e muda-se para outra emprestada pela irmã de Luiza, cuja localização não é esclarecida na entrevista (a falta de dados cronológicos impede um cálculo confiável). Tendo em vista que a maior parte da família é proveniente da Comunidade dos Cravos, é provável que eles tenham ido para lá. Sabese que neste período Luiza está desempregada, e também que Mário volta a conviver com a família, ampliando para cinco os integrantes da mesma. Embora o fim do pagamento de aluguéis possa ter diminuído os gastos globais do núcleo, o desemprego de Luiza e o acréscimo de uma pessoa devem ter dificultado a vida financeira. Esta nova situação pode ter aumentado as responsabilidades do companheiro, que pode ter se sentido pressionado e considerado a possibilidade de deixar o núcleo. Por outro lado, pode-se pensar em um acordo no qual Luiza tenha assumido as responsabilidades domésticas e ele o trabalho externo. Alguns anos depois, em 2004, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva implementa o Bolsa Família, o qual abrange programas sociais anteriores como o Bolsa Escola, o Auxílio-Gás e outros na área de saúde e alimentação. Na hipótese de que o núcleo familiar tenha sido beneficiário, duas consequências imediatas podem ser consideradas: uma maior autonomia financeira de Luiza, provável administradora do novo recurso, e a permanência obrigatória de Mário, Clara e Diana na escola. No primeiro caso, por exemplo, Luiza pode ter se sentido mais livre para pensar em cenários sem a presença do companheiro; no segundo, pode-se pensar em um aumento do nível de escolarização entre as gerações: de fato, Clara foi a primeira integrante da família a terminar o Ensino Médio, como se verá mais adiante. Em 2005, a mãe de Clara termina o relacionamento com o terceiro companheiro. Os motivos apontados para esse término, segundo os depoimentos da própria mãe de Clara, foram a falta de apoio financeiro ao núcleo e a ausência no lar. Se realmente o término da relação foi gerado pela mãe de Clara, pode-se pensar em uma circunstância financeira estável, na qual a família já não dependia exclusivamente das ajudas do companheiro. Ou, ao contrário, em uma situação muito adversa em que a falta de ajuda deste causava grandes privações. Seja como fora, cabe destacar a importância do âmbito financeiro na
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relação, ainda que ampliada discursivamente. No plano afetivo, sabe-se que o companheiro acompanhou boa parte da infância da entrevistada, o que pode ter alimentado vínculos para além da relação da mãe, com uma posterior manutenção de contatos e apoio. Um ano depois, em 2006, é sancionada a lei Maria da Penha, a qual visa coibir e prevenir violência familiar e doméstica contra a mulher. Não é possível saber se essa nova lei teve um impacto sensível no entorno da entrevistada, ou mesmo se seus termos foram conhecidos por ela. Em caso afirmativo, pode-se pensar em um cenário em que eventuais problemas de violência dentro da família vão sendo solucionados, crescendo a autonomia das mulheres nos arranjos familiares. Adicionalmente, é possível que Clara tenha entrado na adolescência já conhecendo a lei, o que pode ter alterado sensivelmente o entendimento geracional sobre relações de gênero. Em 2007, quando Clara está com treze anos, sua mãe inicia seu quarto relacionamento, o atual, chegando a comprar uma casa junto com o companheiro, na Comunidade dos Cravos. A compra da casa e o fim da dependência em relação à irmã devem ter representado uma ampla independência do núcleo familiar. O novo arranjo familiar, entretanto, deve ter suposto uma nova dinâmica de convivências entre o casal e os filhos. Estes, já adolescentes, podem ter tido uma adaptação mais ou menos longa ao novo ambiente, com consequências variáveis sobre o cotidiano. Quando perguntada pelo padrasto, Clara não chega a tratar sobre sua relação com o mesmo: Casado com a minha mãe ((risos)), //E1: uhum//, minha mãe ama ele, ele ama a minha mãe, e estão casados ((risos)), é isso, ele é nosso padrasto //E1: você pode falar um pouco mais sobre ele?// ele trabalha, também em Copacabana, ele ajudou a comprar essa casa aqui, foi com a ajuda dele (...) P.19. L.12-27. Como se vê, a entrevistada se reserva a comentar uma suposta proximidade entre a mãe e ele, apenas acrescentando que “ele é nosso padrasto”. Quando incentivada a falar mais sobre ele, remete-se ao âmbito financeiro: “ele trabalha (...) ajudou a comprar essa casa aqui”. Dois acontecimentos posteriores podem apontar para uma dificuldade de convivência entre os irmãos e o atual companheiro de Luiza. O primeiro deles aparentemente aconteceu nos meses seguintes à mudança: Clara passa a conviver com
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seu pai biológico, esquizofrênico, morador de uma comunidade próxima. O motivo desse reatamento das relações com o pai não é completamente esclarecido na entrevista, podendo estar ligado tanto a um desejo íntimo e pessoal quanto a uma estratégia para se afastar da casa da mãe. O segundo acontecimento é uma saída de Mário do núcleo, por volta do ano de 2011, quando aparentemente retorna para a casa de sua avó Roberta. Poucos são os relatos sobre a convivência entre Clara e seu pai, estando a maioria deles revestidos por certa tensão e conflito. Com o retorno à Comunidade dos Cravos, a proximidade física pode ter propiciado um novo interesse pelo progenitor. Este, estando aparentemente muito alterado pela esquizofrenia, tem uma atuação percebida como ambígua, contraditória, causando a perplexidade em Clara. Em uma passagem em que dorme na casa do pai, ela narra um obscuro incidente no qual é indevidamente medicada e sofre uma grande debilitação. Tal medicação teria sido uma tentativa do pai de acalmála, de controlá-la em um momento de nervosismo: (...) tipo assim, eu queria dormir, ele queria me deixar acordada pra ficar conversando à noite, eu não queria=queria dormir, pra poder descansar no dia seguinte, aí ele gritava comigo, quando eu começava a chorar e ficar nervosa, ele chorava, ficava chorando, aí ele falava assim, falava assim ‘não, minha filha, você tá muito nervosa’, pegou, me deu remédio, que acho que fiquei quase três dias dormindo, né mãe //Mãe: não sei//, acho que foi, assim, não dormi direto, mas não tinha força pra ficar em pé, pra levantar, (...) o meu coração podia ter disparado, eu morrido, e assim, eu não sabia se eu poderia tratar ele da mesma formgritar com ele, ou não, pela forma dele, que eu não sabia se era parte dele ou se era parte da doença, então eu não sabia, que eu também sou nervosa (...) P. 13. L. 16-27. Embora não se possa esclarecer completamente os detalhes do ocorrido, a passagem sugere uma situação de abuso e sofrimento de Clara, que passa momentos de grande angústia na presença do pai. Nota-se uma grande confusão da entrevistada, que não consegue identificar a verdadeira personalidade do pai (“eu não sabia se era parte dele”) e mantém certo sentimento de culpa pela desestabilização do mesmo (“eu também sou nervosa”). Independente do ocorrido, tal situação permite a formulação de algumas hipóteses sobre o contexto no qual Clara estava inserido. Por um lado, pode-se pensar em um grande desacompanhamento da filha por parte de Luiza, comportamento que pode ter tido maior ou menor relação com questões domésticas do momento. Por outro,
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e consequentemente, nota-se certa busca de Clara por vínculos fora da família da mãe, alheios aos núcleos da mãe e da avó (em um comportamento diferente daquele do irmão). No ano de 2009, Clara entra no Ensino Médio, estudando em um bom colégio, na região do Grajaú. A entrada em uma escola algo afastada de sua moradia, mas bem conceituada, denota certa preocupação da entrevistada ou de sua família com uma boa instrução. Tendo em vista que Mário, mais ou menos nessa época, abandona o Ensino Médio, pode-se pensar que tal preocupação circunscreve-se à entrevistada (embora não haja maiores informações sobre a situação de Diana). O interesse da entrevistada por sua própria instrução talvez possa ser avaliado a partir de sua participação em cursos profissionalizantes, o primeiro dos quais teve início durante o Ensino Médio. Tratou-se de um curso de Informática Administrativa, cujo pagamento implicou que a entrevistada trabalhasse no período noturno, em uma lanchonete. Uma hipótese sobre esse esforço suplementar diz respeito a um anseio de independência financeira e familiar por parte de Clara, talvez já preocupada com uma rápida inserção no mercado de trabalho após o Ensino Médio. Outra diz respeito a eventuais aconselhamentos recebidos por familiares ou terceiros, preocupados com seu bem-estar e êxito profissional. Finalizado o Ensino Médio, em 2011, a entrevistada inicia imediatamente um curso técnico de Turismo, oferecido pela mesma escola onde havia estudado. Esses dois cursos em um curto período de tempo, para além das suas implicações profissionais ou instrutivas, também devem ter influenciado as formas de sociabilidade de Clara, modificando sensivelmente seus contatos e interesses. Assim, a manutenção de relações com pessoas igualmente preocupadas com uma qualificação profissional pode ter alterado significativamente seus projetos a médio e longo prazo, gerando impactos variados sobre seu cotidiano. É possível que essa nova sociabilidade tenha se interposto entre aquela da comunidade pentecostal e a familiar, gerando afastamentos e até conflitos. Também durante essa época do Ensino Médio, quando a entrevistada chega à adolescência, pode-se pensar em uma nova relação com sua comunidade pentecostal, agora mais consciente e crítica. Embora ela não trate de detalhes de sua participação
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nesta, tampouco se desvincula do grupo: “esses são os meus amigos, que participam sempre da minha vida” (ver P.5. L.11-18). Esse pertencimento pode ser útil na hora de contestar valores e práticas que ela aparentemente rejeita, como a maternidade precoce, fornecendo-lhe uma espécie de vocabulário que prioriza adiar relacionamentos e a estruturação familiar. Nesta contestação, ela possivelmente mantém uma posição diferente de sua mãe, que teve uma trajetória de vida marcada pela criação dos filhos e pela busca de uma estabilidade familiar. Essa questão da identificação ou não com a trajetória da mãe, para além de um compartilhamento de valores ou ideais, traz consigo a aceitação de escolhas passadas desta que impactaram diretamente sobre sua vida. Independentemente dos anteriores comentários vistos acima, em geral condescendentes com Luiza, percebe-se na entrevista certa tensão entre as duas filhas e a mãe. Em um dado momento, por exemplo, Diane e Luiza interrompem a fala de Clara e iniciam uma discussão sobre a maternidade precoce. Esta discussão tem origem em uma pergunta de Luiza sobre os motivos da entrevista nas comunidades do Rio de Janeiro, a qual é sucedida por uma reflexão própria sobre o tema: Mãe: comunidade é sacrifício né, é começar=cedo=trabalhar=cedo=cuidar=de=filho=cedo //Diana: eu não// Clara: não sei o que é difícil mãe, a vida é vida igual pra todo mundo// Diana: eu vou me casar com vinte e sete anos, se não for com trinta// Mãe: geralmente as comunidades começam assim, a maioria começa do nada, não é que não tem educação, Diana, não é=não é educação // Diana: claro que sim, porque tudo começa com os pais, se os pais não fizeram as escolhas certas, os filhos vão provavelmente vão vão, é::: sofrer com as consequências (...) P.10. L. 26-34. Embora quem fale seja a irmã mais nova, pode-se pensar que as ideias acima sejam compartilhadas por Clara, que aparentemente apoia a argumentação. Enquanto a mãe defende uma causalidade difícil de ser superada, relacionada ao próprio ambiente das comunidades (“comunidade é sacrifício”), Diana afirma que as escolhas individuais possuem um peso maior, sendo elas as verdadeiras responsáveis pelas desestruturações familiares (“claro que sim, porque tudo começa com os pais, se os pais não fizeram as escolhas certas”). Embora a filha utilize um tom impessoal, referindo-se a uma terceira pessoa genérica, nota-se a clara referência a Luiza, que em seguida começa uma ampla
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defesa de sua trajetória pessoal. Essa discussão sugere uma tensão latente entre mãe e filhas, a qual pode estar relacionada tanto a um entendimento mais crítico da história familiar quanto a uma exposição a papéis de gênero significativos no seu contexto. Por outro lado, Diana também pode ter feito referências à situação atual da residência familiar. Alguns meses antes da entrevista, Mário volta para casa acompanhado de uma companheira (de quinze anos) e de uma filha recém-nascida. Ao que tudo indica, Mário engravida essa adolescente no período em que passa na casa da avó, sendo posteriormente acolhido por Luiza. Assim, sete pessoas vivem atualmente na residência. Destas, quatro trabalham (o companheiro da mãe, o irmão, Clara e Diana). A chegada de mais três pessoas deve ter alterado significativamente a rotina e organização da casa. Estando a companheira do irmão frequentando a escola, pode-se imaginar a necessidade de uma alternância no cuidado do bebê e uma concentração de recursos para a criação do mesmo. Mesmo que o acolhimento de Mário seja provisório, enquanto este economiza para a aquisição de uma casa, é cabível imaginar uma ampla diminuição da privacidade individual, com consequências mais ou menos conflituosas para o convívio coletivo. Tal situação de Clara em sua residência pode ter modificado sensivelmente seus planos profissionais e pessoais. Se a busca por uma boa escolarização/profissionalização foi marcante no período do Ensino Médio, o anseio por uma maior independência pode ter ganhado força nos últimos meses. Seja como for, a chegada da família do irmão foi mais ou menos contemporânea a sua entrada no mercado de trabalho, a sua contratação no cargo de auxiliar administrativo por um hospital particular em Copacabana. O trabalho na área da Administração, a mesma de seu anterior curso de informática, pode apontar para uma grande coerência em suas escolhas profissionais. Neste caso, pode-se imaginar que Clara tenha buscado um gradual encaminhamento até o trabalho, buscando contatos e suportes que o materializassem. Por outro lado, é também possível imaginar que o trabalho represente um desvio em sua trajetória estudantil, uma necessária ocupação em um momento de dificuldades econômicas. Neste caso, um eventual plano de ingresso em uma universidade pode ter sido adiado, causando frustração na entrevistada. Embora não haja indícios para fortalecer esta última hipótese, cabe ressaltar seu manifesto desejo de iniciar um curso universitário (já na narrativa inicial): “(...) terminei o Ensino Médio, tô::: o ano que vem pra fazer o ENEM (2) e uma faculdade (...)” (P. 1. L. 13-14).
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No plano discursivo, ressalta-se o esforço pessoal para a obtenção da vaga, o qual teria exigido uma ampla adaptação ao mundo do trabalho: (...) eu entrei lá [sobre a contratação], tinha muitas pessoas com mais capacidade de tá lá do que eu, mas também não, num, eu queria entrar, então assim, eu sempre procurava:: procurei me destacar em alguma coisa pra::: entrar e tal, que eu li sobre ( ) eu li sobre ela, ai eu li, que às vezes as empresas não querem que=que=a=tendência=é eu tenho facilidade de aprender, eu- todas as empresas esperam de você, então, se você já passava a falar alguma coisa diferente quando você for ser contratada, tava lendo no site da empresa, mas buscando outros conhecimentos de- tava escrito isso, que:: toda empresa espera isso de você, que você tenha facilidade de aprender, então que eu faça algo diferente, ai eu peguei, ela me chamou [a responsável pelo RH] (...) P.6. L.14-35. Mais uma vez, a proximidade geracional entre entrevistada e entrevistadoras pode ter influenciado a argumentação, sobretudo a temática do contínuo aprendizado (afinal, tratava-se de universitárias). De qualquer forma, destaca-se a imagem de uma mulher que busca sua própria realização, que supera adversidades (“tinha muitas pessoas com mais capacidade”) e alcança objetivos. A independência financeira propiciada pelo primeiro emprego deve ter alterado suas relações com a família e demais círculos de amigos. Desonerando em alguma medida o núcleo, Clara pode ter se sentido mais livre para discordar de decisões maternas e condutas anteriores. Em seus grupos de amigos, é possível que ela tenha passado a privilegiar contatos com trajetórias semelhantes a sua, como colegas de trabalho ou indivíduos igualmente preocupados com uma profissionalização. Algum tempo depois do início do vínculo empregatício, Clara matricula-se em um curso técnico de Administração no SENAC, o qual, segundo ela, visaria uma contínua qualificação para o posto de trabalho atual. Além dessa explicação, é possível pensar em outros determinantes, como um anseio de galgar novos postos dentro da administração do hospital, ou até mesmo outros empregos melhor remunerados. Outra explicação seria a de que o curso é um esforço para se manter no emprego, uma tentativa de consolidação em uma situação trabalhista ainda incerta. Ou, ainda, o curso pode ser uma primeira possibilidade de contato com a área da Administração, a qual tem a possibilidade de um aprofundamento posterior em um curso universitário.
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A questão mais considerada sobre o novo curso no SENAC é a atuação de uma professora, a qual Clara diz admirar. A suposta posição rompedora desta, oposta a condições de trabalho oferecidas por muitas empresas, bem como sua visão política crítica, aparentemente têm cativado a entrevistada: (...) ela é uma boa profissional, ela consegue transformar a opinião das pessoas assim, que ela é uma pessoa bem revolucionária ((risos)) não concordo muito com o sistema, entendeu, o sistema político, então sempre levamos assuntos (1) nessa área, então, e fala sobre, sobre a indignação, é:: como tem muitos analfabetos, então ela começa a falar isso, ai abrange outras culturas, ela acaba sempre caindo, apesar que não tá no que ela tem que dá (...) e tenho o contato com ela fora do curso, então assim, ela sempre passa alguma coisa pra mim (...) P. 3 L. 12-19. O assunto do curso no SENAC já tinha aparecido na narrativa inicial da entrevistada, compondo com outros aspectos de seu cotidiano a imagem de uma pessoa dividida entre o trabalho e os estudos. Como já foi analisado, a presença de duas jovens universitárias pode ter influenciado as escolhas temáticas de Clara, talvez preocupada com uma apresentação inteligível e próxima às interlocutoras. Por outro lado, pode-se pensar que a citada professora represente um ideal de posicionamento crítico, um exemplo de pessoa contestadora de situações estabelecidas. Esta última característica se encaixaria com o atual momento de Clara, marcados por mudanças em suas relações familiares e por anseios profissionais. Como foi visto nesta reconstrução de caso, Clara teve uma primeira infância difícil, vivida na casa da avó e em um orfanato. A doença e o afastamento de seu pai em uma idade ainda muito pequena, bem como o desamparo no qual se encontrava sua mãe, provavelmente causaram grandes carências materiais e afetivas à entrevistada. A experiência em um internato de caráter confessional, de aproximadamente dois anos, pode ter minorado essas carências, talvez agregando um bom suporte escolar, mas também deve ter significado um rompimento de importantes laços afetivos. Após a saída do internato, a qual havia sido causada por uma determinação judicial, Clara passou a conviver em um novo arranjo familiar da mãe, em uma casa alugada na Ilha do Governador. A esta se sucede outra emprestada por uma tia, localizada provavelmente na Comunidade dos Cravos. Sabe-se que esse relacionamento da mãe durou cinco anos,
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acompanhando boa parte da infância da entrevistada, o que pode ter gerado uma ligação mais ou menos forte com o padrasto. Com a entrada na adolescência, várias mudanças ocorrem na vida de Clara, como um novo relacionamento da mãe (e a mudança para uma casa comprada a partir deste), o reatamento de seus contatos com o pai esquizofrênico e o início do Ensino Médio. A entrada nesta última etapa de sua vida estudantil foi acompanhada por um crescente interesse profissional, o qual deve ter influenciado seu ingresso em dois cursos profissionalizantes (Informática Administrativa e Turismo). Todas essas mudanças devem ter alterado sensivelmente suas relações familiares e com demais círculos de amizade (na Comunidade dos Cravos, na igreja pentecostal que frequenta, por exemplo). Mais recentemente, a mudança para o núcleo de seu irmão (acompanhado da companheira e de uma filha recém-nascida), que passou a contar com sete integrantes, bem como o início de seu primeiro trabalho (como auxiliar administrativo em um hospital particular em Copacabana), devem ter alterado grandemente suas perspectivas pessoais. O desejo de cursar uma universidade, bem como seu novo posicionamento dentro do núcleo familiar, por exemplo, podem sugerir um afastamento do mundo de sua mãe. Por fim, com o início de um novo curso profissionalizante, o de Administração, Clara pode ter encaminhado seus projetos pessoais para uma estabilização profissional, com consequências ainda desconhecidas para sua trajetória de vida. O tema da violência não é explicitamente tratado, embora seja possível considerar o incidente com a medicação do pai como tal. Os efeitos aparentemente graves do ocorrido, bem como sua pouca matização, apontam para um desejo de encobrimento, o qual pode estar relacionado com a presença da mãe durante a entrevista (e, talvez, a um desejo de não imputar responsabilidades). Além deste, possíveis situações de abandono ou descuido remetem a possibilidades de práticas de violência, como, por exemplo, situações de exposição a terceiros.
Síntese da reconstrução biográfica de Clara Clara, nascida em 1994, é a segunda e penúltima filha de Luiza. Clara teve uma primeira infância difícil, vivida na parte superior da casa da avó e em um orfanato. O diagnóstico
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de esquizofrenia e o subsequente afastamento de seu pai quando ela era ainda muito pequena, bem como o desamparo no qual se encontrava sua mãe, provavelmente causaram grandes carências materiais e afetivas à entrevistada. A experiência em um internato de caráter confessional, de aproximadamente dois anos, pode ter minorado essas carências, talvez agregando um bom suporte escolar, mas também deve ter significado um rompimento de importantes laços afetivos (com as pessoas que frequentavam a casa da avó, com o entorno). Após a saída do internato aos seis anos de idade, definida por uma determinação judicial de reintegração familiar, Clara passou a conviver em um novo arranjo familiar da mãe, em uma casa alugada em outra região da cidade do Rio. A esta se sucede outra emprestada por uma tia, localizada provavelmente na Comunidade dos Cravos. Sabe-se que esse relacionamento da mãe durou cinco anos, acompanhando boa parte da infância da entrevistada, o que pode ter gerado uma ligação mais ou menos forte com o padrasto. Com a entrada na adolescência, várias mudanças ocorrem na vida de Clara, como um novo relacionamento da mãe (e a mudança para uma casa comprada a partir deste), o reatamento de seus contatos com o pai esquizofrênico e o início do Ensino Médio. A entrada nesta última etapa de sua vida estudantil foi acompanhada por um crescente interesse profissional, o qual deve ter influenciado seu ingresso em dois cursos profissionalizantes (Informática Administrativa e Turismo). Todas essas mudanças devem ter alterado sensivelmente suas relações familiares e com demais círculos de amizade (na Comunidade dos Cravos, na igreja pentecostal que frequenta, por exemplo). Mais recentemente, a mudança para o núcleo de seu irmão (acompanhado da companheira e de uma filha recém-nascida), que passou a contar com sete integrantes, bem como o início de seu primeiro trabalho (como auxiliar administrativo em um hospital particular na zona sul do Rio), devem ter alterado grandemente suas perspectivas pessoais. O desejo de cursar uma universidade, bem como seu novo posicionamento dentro do núcleo familiar, por exemplo, podem sugerir um afastamento do mundo de sua mãe. Por fim, com o início de um novo curso profissionalizante, o de Administração, Clara pode ter encaminhado seus projetos pessoais para uma estabilização profissional, com consequências ainda desconhecidas para sua trajetória de vida.
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Embora tais conquistas também tenham sido possibilitadas por um novo contexto socioeconômico no qual está inserida – relacionado a uma maior disponibilização de serviços por parte do Estado, a incentivos à escolarização e a entrada das mulheres no mercado de trabalho –, contexto que a geração de sua mãe vivenciou apenas parcialmente, Clara enfatiza em sua apresentação sua determinação pessoal e dedicação na materialização das mesmas. Clara, em um primeiro momento da entrevista, é extremamente relutante em narrar sua história de vida, descrevendo e argumentando brevemente sobre sua rotina atual e sem mencionar eventos passados. Essa relutância pode ter sido fruto de uma negação em contar sobre seu passado, devido a experiências traumáticas que ela não estaria disposta a revistar, bem como da própria situação da entrevista (com a presença da mãe, da irmã e das entrevistadoras universitárias). Entretanto, a partir do momento em que mãe e irmã participam da entrevista falando sobre eventos passados, algo da relutância anterior da entrevistada é superada e esta narra eventos da infância como a enfermidade do pai, as realocações que ela e os irmãos estavam sujeitos e os relacionamentos sucessivos da mãe. De qualquer forma, seu foco no presente e no futuro, expresso na maior parte da entrevista, parece apontar para um entendimento de que suas experiências passadas constituem empecilhos para seu desenvolvimento pessoal. Dessa maneira, Clara parece construir uma apresentação em que a negação em falar sobre o passado funciona como uma denúncia implícita a familiares, principalmente a mãe, vistos como responsáveis por dificuldades ainda não superadas.
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9. Conclusão O presente volume apresentou uma síntese dos resultados da pesquisa “Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em favelas do Rio de Janeiro”, cujos dados foram obtidos em cinco favelas da cidade do Rio de Janeiro e uma favela em Duque de Caxias. Para cada uma das favelas onde se realizou o estudo foi produzido um volume específico, disponível na página de Internet do Centro de Análises Econômicas e Sociais da PUCRS (www.pucrs.br/caes), cujo foco principal foi analisar as especificidades de cada uma delas no tocante ao cotidiano de crianças pequenas vivendo nessas comunidades. Não se tratou de uma análise de cada uma das favelas pesquisadas. Antes, o interesse do estudo foi buscar elementos capazes de oferecer um diagnóstico o mais amplo e detalhado possível sobre o cotidiano de crianças pequenas (de 0 a 8 anos de idade), com ênfase sobre as experiências de violência dessas crianças. Para além do diagnóstico, a pesquisa buscou, na medida do possível, explorar alguns elementos explicativos para a violência testemunhada e sofrida por essas crianças. E, por outro lado, com a ajuda de metodologias qualitativas, buscou-se compreender a presença da violência – em suas mais variadas expressões – no cotidiano dessas crianças. Diferente dos volumes de cada uma das favelas ou comunidades pesquisadas, este Volume Síntese buscou apontar tanto os elementos comuns a todas elas e, ao mesmo tempo, destacar aspectos específicos do cotidiano de crianças em cada uma das favelas. A partir de entrevistas com lideranças em cada uma das favelas, pode-se verificar que o tema da violência no cotidiano de crianças pequenas não constitui um consenso. Por um lado, algumas lideranças a identificam como um problema recorrente e grave que exigiria uma maior atenção do que tem recebido das autoridades – e delas próprias – até o momento. Por outro lado, pode-se igualmente ouvir de algumas das lideranças que a violência contra a criança é um problema marginal em suas comunidades ou que as restrições e punições físicas e psicológicas são, na verdade, momentos necessários no processo educativo empreendido por pais e responsáveis. Para estes, os principais problemas das comunidades onde residem seriam de ordem urbanística, como a falta de saneamento, iluminação, acesso, áreas de lazer e regularização fundiária. Como se pode verificar em outros instrumentos adotados nesta pesquisa na produção de dados, se a
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precariedade da infraestrutura não chega a provocar violência, parece, pelo menos, agravar as situações de violência enfrentadas pelas crianças. Isso sugere que estratégias para redução da violência contra crianças devem incluir tanto aspectos mais diretamente relacionados à criação de filhos e às relações entre os membros de uma mesma família, quanto a melhoria da infraestrutura e da prestação de serviços nessas comunidades, em especial espaços de lazer para as crianças e condições de moradia. Assim como as lideranças nas comunidades, também os responsáveis pela prestação de serviços, como saúde, educação e segurança, apontam os problemas de infraestrutura como uma das principais mazelas das favelas pesquisadas. Contudo, estes tendem a ser mais explícitos na caracterização do cotidiano das crianças como permeado por uma intensa violência, sobretudo aquelas testemunhas nas ruas das comunidades. Os fatores que estariam contribuindo para agravar a situação, de acordo com os prestadores de serviços seriam a presença de famílias com apenas um dos pais (geralmente a mãe), mães muito jovens, alimentação precária e exposição ao uso e tráfico de drogas. Nas favelas que contam com a presença de UPP, a percepção é de que teria havido uma redução da criminalidade e da exposição dos moradores à venda de drogas. Se a presença constante da polícia, em postos de UPP, parece inibir determinados tipos de violência, como estas mencionadas acima e as incursões esporádicas da polícia nas comunidades – que provocam tiroteios entre agentes das forças policiais e membros de grupos armados – não é possível aferir o quanto esta presença provoca em redução de todos os demais tipos de violência contra a criança. Ao contrário, foi possível observar que em algumas favelas sem a presença de UPP, como Parque Maré, a violência admitida pelos pais e responsáveis, por exemplo, é menor que em favelas com UPP, como Morro dos Macacos. Por exemplo, no Morro dos Macacos, 61% dos adultos admitem bater nas crianças com alguma frequência, em comparação aos 43% dos adultos que admitem a mesma prática no Parque Maré. Na percepção das crianças, 84% delas afirmam que adultos batem nelas com alguma frequência dentro de casa no Morro dos Macacos, ao passo que sofrer este tipo de violência é admitido por 68% das crianças no Parque Maré, onde ainda não foi instalada uma UPP. Embora com índices elevados em ambos os cenários, ou seja, com e sem UPP, considerando apenas essas duas favelas o resultado é que na favela com UPP a violência doméstica contra a criança é maior que
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naquela sem UPP. Por um lado, isso pode ser explicado pelo temor dos adultos e crianças em admitir, no Parque Maré, a violência que praticam e sofrem. Por outro lado, esta situação nos remete a outros fatores, que não exclusivamente a presença permanente da polícia, que podem contribuir para a redução da violência contra a criança. Por exemplo, pode-se observar que a densidade de organizações civis em algumas comunidades é significativamente maior que em outras. A presença de organizações civis pode remeter a um maior grau de confiança e predisposição à cooperação entre os moradores de uma determinada favela, o que teria efeitos positivos na redução da violência sofrida pela criança. Nesse sentido, é provável que a combinação de presença de serviços públicos com forte inciativa civil compõe um cenário mais propenso à redução da violência contra a criança e não apenas a presença de forças policiais, ainda que esta seja responsável pela redução de testemunhos de alguns tipos de violência, em especial a de pessoas portando armas de fogo que não sejam policiais e o testemunho de tiros nas ruas da comunidade. Aplicou-se um questionário aos pais e responsáveis por crianças pequenas nas seis favelas e um outro questionário que foi respondido por crianças de 6 a 8 anos de idade. Os resultados apontam que agrupando os resultados de todas as seis favelas pesquisadas, nas ruas da comunidade 75% dos adultos ouvem tiros com armas de fogo, 71% presenciam policias apontando uma arma, 51% testemunham venda de drogas e 38% testemunham outras pessoas que não policiais apontando arma de fogo. Ao mesmo tempo, 33% dos adultos que responderam ao questionário já ficaram sabendo de abuso sexual contra criança em suas respectivas comunidades. Por outro lado, os tipos de violência testemunhados pelas crianças de 6 a 8 anos de idades, respondentes do questionário específico para elas, dão conta de que 53% delas já presenciaram alguém sendo preso pela polícia, 52% já testemunhou adulto batendo em criança nas ruas da comunidade, 48% já viram um adulto batendo em adulto, 45% já viu alguém vendendo drogas e 37% já presenciou adulto atirando com arma de fogo. Por outro lado, 71% das crianças já apanharam em casa, sendo que este índice aumenta para 81% se se considera apenas as meninas, e o índice permanece nos mesmos 71% quando os respondentes são meninos, apresentando uma diferença estatisticamente significativa. Da mesma forma, a grande maioria das crianças (78%) já foi colocada de castigo pelos adultos. Igualmente
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elevados são os tipos de violência testemunhados pelas crianças dentro de casa: 65% já viu adulto batendo em criança, 62% já viu adulto gritando com criança, 40% já presenciou adulto gritando com outro adulto em casa e 28% já viram, dentro de casa, adulto batendo em outro adulto. Se comparados os dados entre as favelas com UPP (Morro da Formiga, Morro dos Macacos e Vila Cruzeiro) e aquelas sem UPP (Parque Maré, Minha Deusa e Mangueirinha), temos os seguintes resultados na percepção de adultos e crianças (Quadro 10): Quadro 10: Tipos de violência em favelas com e sem UPP Favela/Tipo de Violência
Com UPP Morro da Formiga Morro dos Macacos Vila Cruzeiro Sem UPP Parque Maré Minha Deusa Mangueirinha
Ouvir tiros
Percepção de Adultos Fica Vê Bater sabendo venda em de de criança abuso drogas sexual contra crianças
Adulto atirando com arma
Percepção de Crianças Adulto Colocada de batendo castigo em criança na comunida de
Apanhar de adultos
22%
42%
38%
58%
30%
47%
73%
63%
69%
37%
22%
61%
16%
50%
78%
84%
81%
33%
39%
67%
28%
58%
76%
76%
94% 97% 95%
36% 7% 32%
77% 75% 69%
43% 76% 66%
45% 50% 44%
45% 50% 60%
82% 83% 73%
68% 70% 68%
Destaca-se do quadro acima que nas favelas sem UPP os adultos ouvem mais tiros na comunidade e mais venda de drogas. Contudo, isso não implica que os adultos batam mais nas crianças, ao contrário, tanto no Parque Maré quanto em Mangueirinha, onde os adultos presenciam mais tiros e venda de drogas, os adultos afirmam bater menos ou praticamente com o mesmo percentual que nas comunidades com UPP. Embora não tenhamos dados de antes da instalação da UPP nas três favelas mencionadas acima (Morro da Formiga, Morro dos Macacos e Vila Cruzeiro), essa comparação sugere que, a partir da percepção dos adultos, a presença da UPP parece não ter tido grande impacto na redução da violência sofrida pela criança. Essa hipótese parece ganhar mais consistência se se considera a percepção das crianças. Observa-se que o testemunho das crianças de pessoas atirando com armas de fogo na comunidade é consideravelmente menor nas favelas com UPP. Contudo, isso não faz com que as crianças apanhem ou fiquem de castigo em índices inferiores que aquelas que vivem em favelas ainda “não
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pacificadas”. Não é possível, com os dados acima, tirar qualquer conclusão sobre os efeitos da instalação de UPP para a criança. Apenas é possível verificar que uma menor presença do tráfico de drogas e tiros na comunidade não ocorre simultaneamente a baixos índices de violência contra a criança em casa ou na comunidade, como abuso sexual contra a criança, adulto batendo em criança na comunidade, a criança ser colocada de castigo e apanhar dos pais e responsáveis. Com isso, parece evidente que a redução da violência contra a criança exigiria ações mais específicas para este fim. Os resultados revelam uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos de respondentes quanto à frequência com que batem na criança (K-W, chi² = 63,164, sig = 0,000). A mãe se destaca dos demais (pai e avó) quanto à frequência com que bate na criança. Enquanto a grande maioria (71%) das mães bate na criança (apenas 29% nunca bateu), a maioria de pais (58%) e avós (59%) nunca bateu. Os dados também revelam uma diferença estatisticamente significativa entre a idade das crianças e a frequência com que a mãe bate nela (K-W, chi²=62,063, sig=0,000). A criança de 2 anos se destaca como aquela cuja mãe mais bate. Apenas 9% das mães cuja criança mais velha tem 2 anos “nunca” bateu na criança, ou seja, 91% das mães de criança de 2 anos de idade batem na criança, sendo que 26% bate “sempre”/“quase sempre”. O conjunto de informações obtidas dos questionários aplicados aos adultos permitiu a análise de regressão com o objetivo de identificar as variáveis que poderiam estar associadas ao aumento ou redução da violência contra a criança, seja física quanto psicológica. Com isso, é possível afirmar que nas seis favelas pesquisas duas variáveis provocam a redução da chance da criança sofrer violência física. Se o domicílio tiver 3 cômodos a criança possui 61% menos de chance de sofrer violência física e se a renda do pai sustenta o lar a criança passa a ter 51% menos de chance de sofrer violência física. Por outro lado, tomar café da manhã com os pais aumenta em 3,21 vezes a chance da criança sofrer violência física (isso não significa que a violência seja praticada necessariamente durante o café da manhã); adulto gritar com um adulto na presença da criança faz aumentar em 2,92 vezes a chance da criança sofrer violência; ser mãe aumenta esta chance em 2,88 vezes; a mãe ter entre 35 e 39 anos aumenta em 98% a chance da criança sofrer violência física, dentre outras variáveis. O mesmo
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procedimento foi adotado para se verificar as variáveis que aumentam ou diminuem as chances de colocarem a criança de castigo e gritarem com ela. Ao mesmo tempo, a pesquisa adotou procedimentos de análise qualitativa com o objetivo de compreender a perspectiva de crianças, adolescentes e membros de diferentes gerações de uma mesma família sobre a vida nas favelas pesquisadas. Desta maneira, foram realizadas em cada uma das seis favelas discussões com crianças sobre episódios relacionados ao “lugar onde moram” e “família”, temas de desenho para o qual foram convidados a realizar. Ainda que o tema “violência” não tenha sido sugerido, em todas as comunidades o tema aparece de maneira recorrente e intensa, sobretudo referindo-se a tipos de violência sofrida por elas próprias ou que elas tenham presenciado em casa ou nas ruas da comunidade. Em algumas das comunidades a abordagem da polícia é interpretada como um tipo de invasão ou uma arbitrariedade na rotina da vida comunitária. Por outro lado, nas comunidades sem a presença de forças policiais de maneira permanente (UPP), as crianças tendem a se mostrar temerosas por viverem cotidianos com alto grau de incerteza quanto ao conflito armado entre a polícia e pessoas envolvidas no tráfico de drogas. As crianças, sobretudo naquelas comunidades onde não há a presença de UPP, parecem ter incorporado a prática de que agir e falar de forma ríspida e agressiva uns com os outros é uma maneira aceitável e naturalizada de como lidar com a diferença entre elas. Com isso, uma das modificações do processo de pacificação das favelas parece ser a adoção, da parte das crianças, de um comportamento que propicia maior diálogo entre aqueles que compartilham o mesmo ambiente.
Já a discussão realizada com adolescentes sobre o que foi ser criança na favela em que vivem e o que é ser adolescente nos dias de hoje nessas comunidade, evidencia como a experiência de violência tem sido bastante intensa na vida desses jovens, em que relatam recentes momentos de “guerra” vividos nas comunidade, em especial naquelas que, posteriormente, foram instalados postos de UPP. Por outro lado, a presença constante da polícia na comunidade não se faz livre de tensões entre policiais e adolescentes, já que as restrições e controles impostos pela polícia choca com os anseios desses jovens. Ao mesmo tempo, relatam as restrições e desconfianças impostas pelos pais, tornando-se objeto de constantes insatisfações da parte dos jovens.
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Foram realizadas ainda entrevistas narrativas biográficas com duas gerações de uma mesma família em três das favelas pesquisadas que, com o objetivo de preservar a segurança e privacidade dos entrevistados, receberam outros nomes (Morro da Azaléia, Ítaca e Comunidade do Cravo). Embora tenham sido realizadas ao todo trinta e quatro entrevistas narrativas biográficas, com base na abordagem de condução e análise propostas por Gabriele Rosenthal (2008), foram analisadas apenas três famílias. Por um lado, a reconstrução biográfica de uma das famílias aponta como a violência em graus bastante extremos vai sendo reproduzida de uma geração a outra, quase que a indicar que a nova geração praticamente refaz os caminhos de violência das gerações anteriores. Porém, a perspectiva analítica adotada permite escapar das armadilhas de um determinismo, ao distinguir, nas entrevistas concedidas, o que é interesse de apresentação (vida narrada) do que é vida objetivamente vivida (vida vivida) e, com isso, estabelecer quais seriam as opções possíveis que os entrevistados tiveram ao longo da vida e com isso, identificar as escolhas realizadas. Em uma outra reconstrução biográfica identificou-se como foi possível que a experiência de negligência de um dos pais cedeu lugar, na geração seguinte, a uma tentativa de preservação dos laços familiares, a despeito das enormes restrições e de um contexto social marcado pela violência extrema, configurando-se assim um contraste máximo com o primeiro caso. Uma terceira reconstrução biográfica aponta para um contraste mínimo em relação ao primeiro caso apresentado, em que o histórico de abandono foi transmitido de uma geração a outra, a despeito das tentativas da entrevistada de não repetir com seus filhos o que ela própria experimentou em termos de abandono mesclado com acolhimentos pela mãe, cercados de precariedades. Apesar do histórico de constantes abandonos, a entrevistada da geração mais nova parece construir para si perspectivas melhores, não mais dependente do suporte financeiro de um parceiro, mas, ao contrário, criando e perseguindo possibilidades, tendo na educação uma plataforma capaz de configurar melhores condições de escolha. Com isso, os três casos apresentados deixa evidenciado pelo menos três trajetórias possíveis em contextos de grande vulnerabilidade, violência, negligência e todo o tipo de arbitrariedades.
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Uma conclusão adicional do presente estudo é de que empreender esforços para conhecer as especificidades do cotidiano das crianças de cada favela tem a vantagem de permitir desenvolver estratégias mais precisas e ajustadas à realidade com vistas a criar um cotidiano em que a violência esteja ausente no processo de desenvolvimento das crianças. O conhecimento das especificidades permite mais facilmente engajar atores sociais comprometidos com o tema e com a comunidade, como organizações nãogovernamentais e as próprias famílias, assim como instituições privadas e governamentais. Ao mesmo tempo, o conhecimento dos aspectos compartilhados por todas elas permite, por sua vez, desenhar políticas públicas que abordem os problemas que se repetem na vida das crianças, com relativa independência de qual a favela em que residam. É provável, contudo, que as ações terão mais eficácia se levarem em consideração ambos os aspectos, ou seja, tanto aqueles comuns a crianças vivendo em qualquer favela quanto as características de cada uma dessas favelas. Isso porque a presença da violência no cotidiano tanto pode estar vinculado às condições do(a) autor(a) da ação violenta (como renda, escolaridade, idade, gênero, etc.), quanto às características urbanas, ao histórico de ocupação do território, à presença de iniciativas civis ou ao contrário, à forte dependência de atores públicos, assim como ao seu oposto, ou seja, a um abandono das autoridades públicas em relação a serviços e condições de infraestrutura, quanto ainda às experiências biográficas dos indivíduos que vivem em favelas e tem sob sua responsabilidade e cuidado crianças de 0 a 8 anos de idade. Todos esses aspectos foram considerados na presente pesquisa, o que exigiu adotar distintos instrumentos para a produção de dados, assim como uma diversidade de personagens ouvidos, entre pais e responsáveis por crianças pequenas, as próprias crianças, adolescentes, lideranças da comunidade e representantes de instituições que prestam serviços diretamente nas favelas em que foi realizado o estudo. A manifestação de todos eles está presente de maneira sintetizada neste volume. Cabe, aqui, um alerta. A pesquisa não chegou à conclusão nem partiu do pressuposto de que a criança convive com mais violência nas favelas pesquisadas do que em bairros de classe média. A opção por limitar o estudo ao cotidiano de crianças vivendo em favelas dá-se tão somente pelo fato de que, objetivamente, as condições de precariedade e vulnerabilidade são visivelmente maiores nas localidades pesquisadas do que em bairros
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de classe média das cidades brasileiras, o que provavelmente não seja suficiente para concluir que nestes últimos a experiência de violência das crianças seja limitada ou virtualmente inexistente. Os resultados obtidos ganham contornos de urgência, pois, independente de ser maior ou menor que em outros lugares ou em outras épocas, dão conta de um cotidiano infantil marcado por diversos tipos de violência, tanto como testemunhas quanto vítimas diretas, na escola, nas ruas das favelas onde vivem, assim como em suas casas. Tudo isso reportado não por registros estatísticos de órgãos das administrações públicas, mas por todos os atores envolvidos, em especial as próprias crianças e seus pais e responsáveis. A leitura atenta do presente volume, e, na medida do possível, dos volumes de cada uma das favelas, deverá subsidiar aqueles responsáveis por organizações, públicas e da sociedade civil, na tomada de decisões e desenho de ações que busquem modificar a realidade documentada nesta pesquisa. Com isso, as instituições envolvidas na condução desta pesquisa, esperam ter cumprido um passo importante em todo esse processo, que é precisamente permitir que seja produzido conhecimento o mais acurado possível sobre os contornos do cotidiano de crianças vivendo em favelas, que é, como verificado, profundamente marcado por experiências de violência. Trata-se, cabe destacar, de uma iniciativa que nada custou aos cofres públicos dos diferentes níveis de governo.
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