Voltar aos passos que foram dados... (Fundação José Saramago)

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VOLTAR AOS PASSOS QUE FORAM DADOS JOSÉ SARAMAGO 1922—2022


SARAMAGO: A OBRA

Eu não separo a condição do escritor da do cidadão.

A obra de José Saramago é formada por um conjunto alargado de títulos, contemplando diversos géneros literários. No centro daquele conjunto encontra-se o romance. Cultivando-o, Saramago legou-nos, por exemplo, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira ou A Viagem do Elefante. E publicou também contos, peças de teatro, diário, poesia, crónicas, memórias e ensaio. A obra saramaguiana inclui grandes temas e personagens marcantes: entre outras, Blimunda e a Mulher do Médico, Ricardo Reis e Lídia, Maria de Magdala e o Senhor José de Todos os Nomes, vários cães e um elefante. Com elas, nos ensaios e em intervenções públicas, Saramago fala-nos da relação dos homens com Deus, do amor e da crueldade humana, da rebeldia contra os poderosos ou das injustiças da vida social.

JOSÉ SARAMAGO NO INÍCIO DOS ANOS 40.

«Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas ações não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia.» DISCURSO EM ESTOCOLMO (1998).

O PRIMEIRO ROMANCE (1947) E O ÚLTIMO, INACABADO (2014).

POEMA DE JUVENTUDE (INÉDITO).

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A FORMAÇÃO DO ESCRITOR

De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente.

CARTÃO DE ESTUDANTE DE JOSÉ SARAMAGO.

JOSÉ SARAMAGO COM 10 ANOS.

A formação de José Saramago foi condicionada por uma origem social que não permitiu o acesso à universidade. Nos anos 30, José de Sousa Saramago frequenta o ensino primário, passa pelo Liceu Gil Vicente e, em seguida, entra na Escola Industrial Afonso Domingues.

«Lembro-me de que um livro meu, o meu primeiro livro, devo tê-lo tido aos doze ou treze anos. (…) Quando isto aconteceu eu estava ainda no Liceu Gil Vicente, nos dois anos iniciais do curso que não acabei, claro está. Depois passei para a Escola Industrial Afonso Domingues, quando teria aí os meus treze anos; e depois entra todo esse período do ensino técnico, onde havia literatura (…). Aí comecei pelos livros de texto, onde ia aprendendo umas quantas coisas, sabendo que existiam uns senhores que eram escritores. Depois li muito na biblioteca das Galveias, à noite, até quando já estava a trabalhar nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa, como serralheiro-mecânico.» EM CARLOS REIS, DIÁLOGOS COM JOSÉ SARAMAGO.

A literatura aparece relativamente cedo na vida de Saramago. A sua iniciação literária faz-se, de forma autodidática, em leituras ocasionais, mas intensas. Começa aí o crescimento da uma árvore genealógica literária, cujos ramos são Fernando Pessoa e Kafka, Montaigne e Jorge Luis Borges, Raul Brandão, Garrett e o Padre António Vieira. Perto de cumprir 25 anos, Saramago publica Terra do Pecado (1947). Segue-se um silêncio literário de quase duas décadas.

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PALÁCIO GALVEIAS. FOTOGRAFIA DE A. PORTUGAL (1945).

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A FORMAÇÃO DO ESCRITOR

Tudo o que está nos romances pode ser encontrado nas crónicas.

JOSÉ SARAMAGO NO INÍCIO DOS ANOS 40.

JOSÉ SARAMAGO NA MANIFESTAÇÃO DO 1.º DE MAIO DE 1974.

Antes do seu primeiro romance com projeção (Levantado do Chão, de 1980), José Saramago viveu uma existência cultural discreta. Mas não deixou de publicar, em especial na imprensa; este que é então um escritor em construção vai deixando pelo caminho manuscritos inacabados e tentativas literárias abortadas. Por exemplo, o romance Claraboia editado só em 2011, já depois da morte do autor. Entretanto, José Saramago foi tradutor, funcionário numa editora, contista e cronista. Desta última atividade fica uma experiência que muito servirá ao romancista que está para vir. Este é também o tempo da poesia: Os Poemas Possíveis (1966), Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975), surgindo, neste último título, textos já em transição para a narrativa. Entretanto, chegara o tempo da liberdade e o escritor ganhara uma consciência aguda de si mesmo e do seu ofício. Manual de Pintura e Caligrafia (1976) testemunha, em tom autobiográfico, essa consciência.

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«Tendo eu começado a minha vida literária muito cedo, uma vez que aos vinte e cinco anos publiquei um romance que se não era bom tão-pouco era mau, só vinte anos depois voltei a publicar um livro, facto que, por certo, induziu algumas pessoas de boa vontade a perguntar-se se o autor decidiu ficar calado durante anos para ganhar experiências vitais que depois podia trasladar para a literatura. Obviamente respondo que não, que ninguém tem a certeza de viver mais vinte anos.» A ESTÁTUA E A PEDRA

CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO DO ROMANCE MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA E AO LADO NOTAS PARA UM ROMANCE NÃO ESCRITO (C. 1952).

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O TEMPO DA ESTÁTUA

A segunda metade dos anos 70 é decisiva para o aparecimento de temas que José Saramago aprofunda nos seus grandes romances dos anos 80. Assim, a responsabilidade do escritor ou a inscrição da História na ficção tornam-se centrais no trajeto literário de Saramago.

Quem retrata, a si mesmo se retrata.

«Esta escrita vai terminar. Durou o tempo que era necessário para se acabar um homem e começar outro. Importava que ficasse registado o rosto que ainda é, e se apontassem as primeiras feições do que nasce.» MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA

Em Manual de Pintura e Caligrafia (1976), representa-se a conquista da escrita como revelação da realidade; os contos de Objeto Quase (1978) podem ser lidos como embriões de romances que vêm depois; e em Levantado do Chão (1980), o relato com forte implicação social dá forma à epopeia de um coletivo que caminha para a libertação de 1974. A mesma libertação é teatralizada em A Noite (1979), imediatamente antes do aparecimento de Camões em Que Farei com Este Livro? (1980).

APRESENTAÇÃO DE LEVANTADO DO CHÃO, CASA DO ALENTEJO, 1980.

QUE FAREI COM ESTE LIVRO PELO GRUPO APOLLO (2010).

«Vai o milhano passando e contando, um milheiro, sem falar nos invisíveis, que é sina a cegueira dos homens vivos não darem a conta certa de quantos fizeram o feito, mil vivos e cem mil mortos, ou dois milhões de suspiros que se ergueram do chão, qualquer número servirá e todos serão pequenos se de longe somarmos (…).» LEVANTADO DO CHÃO

CARTAZ DE ESTREIA DE A NOITE.

CAPA DA 1.ª EDIÇÃO DE OBJECTO QUASE.

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O TEMPO DA ESTÁTUA

A História soterrou milhões de homens vivos.

EM CIMA, NOTAS PARA A REDAÇÃO DE MEMORIAL DO CONVENTO. À DIREITA, OS FAZEDORES DO CAPRICHO, POR JOSÉ SANTA-BÁRBARA.

O propósito, revelado por José Saramago, de «meter isto num romance» fez do Convento de Mafra elemento central de uma revisão ideológica da História. Nela, a ficção apresenta-nos personagens obscuras, outras insólitas (como Blimunda) e toda uma revisão de verdades históricas «oficiais». Obedecendo a um impulso semelhante, Saramago recupera, em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), o heterónimo pessoano. Regressado a Portugal, Ricardo Reis dialoga com Pessoa e lança um olhar discretamente crítico sobre o Portugal do salazarismo e a Europa em que emergem regimes totalitários. De certa forma, estamos perante romances centrados em Portugal. Noutro registo, foi uma revisitação da terra portuguesa que deu lugar, em 1981, a Viagem a Portugal.

«Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável (…).» MEMORIAL DO CONVENTO

«Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.» O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

CHICO DIAZ COMO RICARDO REIS, EM O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, REALIZADO POR JOÃO BOTELHO.

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O TEMPO DA ESTÁTUA

Fora da História não há nada.

A JANGADA DE PEDRA PELO TEATRO O BANDO.

O motivo da escrita, já presente em Manual de Pintura e Caligrafia, é aprofundado em História do Cerco de Lisboa (1989). Neste caso, configura-se uma verdade diferente da que era conhecida e que agora é problematizada: o revisor-escritor Raimundo Silva torna evidente, pela linguagem, uma espécie de fragilidade que atinge um episódio histórico estabilizado. De novo a ficção propõe o conhecimento subversivo e crítico da História.

«O romance A Jangada de Pedra é, todo ele, da primeira à última página, a consequência literária de um ressentimento histórico pessoalmente assumido. Embora os portugueses (…) tenham, juntamente com os espanhóis, levado, para o bem e para o mal, o nome e o espírito da Europa a outras partes do mundo, eles ficaram depois à margem da História.» ÚLTIMO CADERNO DE LANZAROTE

Com diferente propósito, mas ainda em função da História, Saramago constrói uma alegoria extremamente original: a da Península Ibérica que se separa da Europa. É em direção ao sul que A Jangada de Pedra (1986) navega, afastando-se da Europa, e ligando portugueses e espanhóis na busca de um destino comum. AGENDA DE JOSÉ SARAMAGO COM REGISTO DO LANÇAMENTO DA HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA.

«Agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente (…), alguém teria de vir contar a história nova (…).» HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA

CARTAZ DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA D’A JANGADA DE PEDRA POR GEORGE SLUIZER.

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O TEMPO DA ESTÁTUA

No final dos anos 80 e no início dos 90, Saramago publica três obras que representam a sua relação crítica com Deus e com o Cristianismo: duas peças de teatro (A Segunda Vida de S. Francisco de Assis, 1987; In Nomine Dei, 1993) e um romance: O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991). Nas primeiras, denuncia-se a degradação da mensagem cristã do franciscanismo, bem como a intolerância e o fanatismo (In Nomine Dei). Por sua vez, O Evangelho segundo Jesus Cristo constitui uma interpretação de Jesus como figura humana, na relação com os outros e com Deus. A imagem que deste fica é a de um ser autoritário e opressivo, atingindo mesmo Jesus, como sua criatura. Na sequência da polémica que O Evangelho segundo Jesus Cristo provocou, com intervenção repressiva pelo poder político de então, José Saramago foi viver para Lanzarote. Mas nunca se considerou um exilado político.

Sou um ateu produzido pelo Cristianismo.

«Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez.» O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, ENCENADO POR JOSÉ POSSI NETO.

«Sempre vivi muito em paz com o meu ateísmo (…). Mas há uma coisa que tenho muito clara: se é verdade que estou fora da Igreja, não estou fora do mundo cultural criado por ela.» ENTREVISTA A O GLOBO (1993).

JOSÉ SARAMAGO NA SUA CASA DE LANZAROTE E A CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO.

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O TEMPO DA PEDRA

A metáfora é sempre a melhor forma de explicar as coisas.

Os romances que se seguem a O Evangelho segundo Jesus Cristo são uma tentativa de entrar «no mais profundo de nós mesmos». Estamos agora no «tempo da pedra». Com ele, surge uma escrita concisa, ao mesmo tempo que a alegoria passa a ser um processo literário predominante, com feição metafórica. Supera-se, assim, o «tempo da pedra», quando se descrevia «o rosto, o gesto, as roupagens, a figura» (José Saramago). Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997) são romances do «tempo da pedra». No primeiro, uma epidemia devastadora representa, mais do que a cegueira física, a crise brutal da razão humana, fonte de crueldade, egoísmo e violência. No segundo, uma personagem trivial dedica-se à busca persistente de uma mulher desconhecida; sendo metáfora da procura do outro, a busca obriga a uma reflexão acerca da identidade, mesmo depois da morte desse outro. Entretanto, em 1995, José Saramago é galardoado com o Prémio Camões.

JOSÉ SARAMAGO NO FINAL DOS ANOS 90.

«No meu romance Ensaio sobre a Cegueira tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra.» CADERNOS DE LANZAROTE. DIÁRIO — IV

MANUSCRITO DE JOSÉ SARAMAGO ESCRITO A 8 DE AGOSTO DE 1995.

«O silêncio era quase absoluto, mal se conseguia notar o ruído dos poucos carros que ainda circulavam na cidade. O que se ouvia melhor era um som abafado, que subia e descia, como um fole distante, mas a ele estava habituado o Sr. José, era a Conservatória respirando.» CARTAZ DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA POR FERNANDO MEIRELES.

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TODOS OS NOMES

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O TEMPO DA PEDRA

Se somos assim, que cada um se pergunte por quê.

«Os índios de Chiapas não são os únicos humilhados e ofendidos deste mundo: em todas as partes e épocas, com independência de raça, de cor, de costumes, de cultura, de crença religiosa, o ser humano que nos gabamos de ser soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes.» JOSÉ SARAMAGO PRÉMIO NOBEL.

CADERNOS DE LANZAROTE. DIÁRIO — IV

A 8 de outubro de 1998, a Academia Sueca anuncia a concessão do Prémio Nobel da Literatura a Saramago. A 10 de dezembro, Saramago recebe, das mãos do rei da Suécia, a medalha e o diploma Nobel. Nos anos da viragem do século e do milénio, acentua-se a intervenção cívica e política de Saramago, em paralelo com a crescente preocupação ética que os seus romances evidenciam. Pela via da alegoria que remete para o mito platónico, A Caverna (2000) fala-nos da violência exercida sobre os fracos, num mundo cada vez mais globalizado e desumano. A questão do outro, já presente em Todos os Nomes, reaparece em O Homem Duplicado (2002), em conjugação com a questão da identidade e com sentidos correlatos: conhecimento solidário do outro, respeito pela diferença, superação da distância entre os homens.

EM CIMA, JOSÉ SARAMAGO EM CHIAPAS, EM 1999. EM BAIXO, JOSÉ SARAMAGO COM GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ.

«Tertuliano Máximo Afonso levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lho permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pelos do corpo, o que ali estava não era verdade, não podia ser verdade (…).» O HOMEM DUPLICADO

CARTAZ DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE O HOMEM DUPLICADO POR DENIS VILLENEUVE.

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O TEMPO DA PEDRA

Quando um político mente destrói a base da democracia.

Em Ensaio sobre a Lucidez (2004), observamos um efeito de continuidade, em personagens que vêm de Ensaio sobre a Cegueira. Ao mesmo tempo, José Saramago insiste no cruzamento da narrativa com o registo ensaístico. A epidemia do voto em branco faz deste relato um romance com forte carga política, questionando as contradições da democracia e lançando avisos a que podemos chamar proféticos. De novo num tom alegórico, em As Intermitências da Morte (2005) está em causa uma situação insólita: a suspensão da morte. Mais do que uma indagação sobre a imortalidade, o romance constitui uma digressão ficcional em tom sarcástico, acerca da condição humana, das suas fragilidades e das suas contradições. A par destes romances, Saramago volta ao teatro e desconstrói um mito literário, em Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005). O texto de Saramago é libreto da ópera Il Dissoluto Assolto, de Azio Corghi.

JOSÉ SARAMAGO EM 2003.

«A democracia não se pode limitar à simples substituição de um governo por outro. Temos uma democracia formal, precisamos de uma democracia substancial.» EL PAÍS (2004)

JOSÉ SARAMAGO E AZIO CORGHI.

«No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspetos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de alguma vez ter ocorrido um fenómeno semelhante (…).» AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

CAPA DA 1.ª EDIÇÃO DE DON GIOVANNI OU O DISSOLUTO ABSOLVIDO.

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EDIÇÃO ESPANHOLA D’AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE.

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O TEMPO DA PEDRA

No final da sua produção literária, José Saramago regressa a temas do «tempo da estátua». «Somos a nossa própria memória», declara, após publicar o relato com que evoca a infância, em busca da reinvenção de si mesmo (As Pequenas Memórias, 2006). Depois disso, José Saramago publica A Viagem do Elefante (2008) e Caim (2009). Nestes derradeiros títulos reaparecem a História e Deus, elementos fundamentais de uma parte importante da obra anterior. Sob o signo da primeira, reconstitui-se, em regime ficcional, o episódio do elefante que viajou desde Lisboa até à corte do arquiduque de Áustria, no tempo de D. João III; em Caim, a figura que o Antigo Testamento modelou com feições sinistras é refigurada como vítima do arbítrio de Deus, reivindicando uma liberdade mutilada pelo criador.

Sem Deus a minha obra ficaria incompleta.

«Por muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância das alcovas, sejam elas sacramentadas, laicas ou irregulares, no bom funcionamento das administrações públicas, o primeiro passo da extraordinária viagem de um elefante à Áustria que nos propusemos contar foi dado nos reais aposentos da corte portuguesa, mais ou menos à hora de ir para a cama.» A VIAGEM DO ELEFANTE

Quando José Saramago morre, a 18 de junho de 2010, deixa apenas iniciado Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas. Em 2011, publica-se Claraboia, romance que ficara inédito.

CAPA DO ÁLBUM DE BANDA DESENHADA COM A ADAPTAÇÃO D’A VIAGEM DO ELEFANTE POR JOAO AMARAL.

«Houve um grande silêncio. Depois Caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito.» CAIM

EM CIMA, CLARABOIA, PELA COMPANHIA TEATRAL A BARRACA. AO LADO, CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE CAIM.

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SARAMAGO, ESCRITOR UNIVERSAL

Nunca me preocupou muito ser outra coisa do que aquilo que sou.

Ao longo da sua vida literária, José Saramago foi abordando, em interação com a obra literária, questões sociais, éticas e políticas. A crescente relevância dessas questões, no trajeto do escritor, explica estas palavras: «Cada vez me interessa menos falar de literatura». Seguindo o exemplo do avô Jerónimo Melrinho, Saramago fez-se um «homem sábio». Deste modo, a sua obra ganhou uma dimensão de universalidade que transcende fronteiras e denuncia contradições que afetam as sociedades humanas, na passagem do séc. XX para o séc. XXI. O ser humano que está no centro das preocupações do escritor não é abstrato: ele concretiza-se em situações de opressão, de abandono e de desqualificação social, em diferentes lugares do mundo. Por fim, o empenhamento social e ético de Saramago manifesta-se no apelo a que se passe da reivindicação dos direitos à afirmação dos deveres humanos.

JOSÉ SARAMAGO A DISCURSAR NA CERIMÓNIA DE ENTREGA DO NOBEL.

«Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. (…) Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.» DISCURSO EM ESTOCOLMO (1998).

JORGE AMADO COM JOSÉ SARAMAGO.

TERRA, O LIVRO DE FOTOGRAFIAS DE SEBASTIÃO SALGADO, QUE RETRATA GRUPOS MARGINALIZADOS E DESTERRADOS NO BRASIL, TEM UM PREFÁCIO DE JOSÉ SARAMAGO.

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SARAMAGO, ESCRITOR UNIVERSAL

O ser humano é a matéria do meu trabalho.

JOSÉ SARAMAGO E PILAR DEL RÍO, EM JOSÉ E PILAR, DE MIGUEL GONÇALVES MENDES.

O legado de um escritor é constituído pelas obras que ele deixa à posteridade e pelo seu pensamento, sobretudo quando, como acontece com José Saramago, esse pensamento aponta para o futuro. A obra de Saramago está viva, antes de mais na leitura dos seus incontáveis leitores, em muitos idiomas, por todo o mundo. Para além disso, ela tem dado lugar a inúmeras manifestações artísticas que adaptam os textos saramaguianos ou que, noutras linguagens, enunciam os seus grandes sentidos.

«Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o mar, somos, os seres humanos, essa espuma branca brilhante, cintilante, que tem uma breve vida, que despede um breve fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo umas às outras transportadas pelo mar que é o tempo. (…) Por isso prefiro falar mais de vida do que de literatura, sem esquecer que a literatura está na vida e que sempre teremos perante nós a ambição de fazer da literatura vida.» A ESTÁTUA E A PEDRA

No cinema, no teatro, na televisão, na banda desenhada, na ópera ou no bailado, bem como em exposições várias, a mensagem saramaguiana permanece atual e atuante. E também nos lugares em que o escritor viveu e onde deixou o seu acervo: na Fundação José Saramago, em Lisboa e em Azinhaga, tal como em Lanzarote, na casa em que passou os seus últimos anos de vida. EXPOSIÇÃO OS PONTOS E A VISTA, POR MARCELLO DANTAS.

«Ser cidadão pleno, ou o melhor que se puder ser, assumir a sua própria responsabilidade, os seus deveres e os seus direitos… Isso dá muito trabalho.» EM JORGE HALPERÍN, CONVERSACIONES CON SARAMAGO.

«Que esta civilização — e não me refiro apenas à que, de um modo simplista, denominamos ocidental — está a chegar ao seu fim, parece ser uma questão indiscutível para o mundo inteiro.» FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO.

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ÚLTIMO CADERNO DE LANZAROTE

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VOLTAR AOS PASSOS QUE FORAM DADOS JOSÉ SARAMAGO 1922—2022

Exposição concebida no âmbito das comemorações do Centenário de José Saramago.

Comissário para o Centenário de José Saramago: Carlos Reis Seleção e composição de textos: Carlos Reis e Fernanda Costa Design: André Letria Revisão: Fernanda Costa As fotografias usadas nesta exposição integram o arquivo da Fundação José Saramago.

OBRA COMPLETA EM WWW.JOSESARAMAGO.ORG/BIBLIOGRAFIA-ATIVA/

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