O olhar dos corajosos - Brasília pelo olhar de uma família pioneira

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O olhar dos corajosos Elizabeth Cavalcante 1


"Que coragem!" "Você é louco!" "Lá não tem nada!"

O olhar dos corajosos Brasília pelo olhar de uma Família Pioneira

Elizabeth Cristina Tenreiro Cavalcante

Universidade de Brasília- UnB Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-FAU 2

Novembro-2015

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Professora orientadora: Arquiteta Doutora Maria Cecília Filgueiras Lima Gabrielle

Ensaio Teórico. Trabalho apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, para submissão à banca avaliadora , como procedimento da disciplina. 4

Figura: 01- Brasília- Fonte: Flicker

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Índice

1. 2. 3.

A Mudança da Capital O olhar de quem vinha e de quem ficou

A Mudança da Família

Um caso muito especial A família Raposo Tenreiro A vivência da Moradia Lazer e cultura O dia a dia do Trabalho A cidade como patrimônio

4. 6

Mudando o foco na capital 7


CLUBE NÁUTICO DE BARSÍLIA

Mapa do Plano Piloto Superquadra 204 sul Locais de lazer: Torre de TV, W3 Sul, Gilberto Salomão, Setores Comercial Norte e Sul Edifício Sede 1 do Banco do Brasil Locais de Turismo e Patrimônio

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SUBESTÇÃO

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Introdução

“ Lá é estranho, você não vai se habituar. Os encanamentos são todos aparentes!” Amigo da Família Raposo Tenreiro sobre a capital

Figura: 02- Inauguração de Brasília- Fonte: brasil.gov.br

A cidade de Brasília no início de sua construção, era colocada como loucura para uns e como sinal de esperança para outros. Por meio de discursos vibrantes e cativantes, a nova capital era colocada como o futuro moderno da nação, ao simbolizar em sua arquitetura um país em progresso e ascensão. Contudo, em meio a sua construção, a população mostrava-se dividida entre desacreditados e otimistas. 10

Na antiga capital, críticas duras eram distribuídas pelo jornais, que mostravam-se indignados com a transferência. Entre a população, boatos e ideias sobre a nova capital corriam soltos: “Lá só tem índio” , “Lá é tudo igual”, “É terra de ninguém, é o fim do mundo!”. Mas em meio ao Planalto central e nas mentes de muitas pessoas do país, Brasília era uma oportunidade de melhoria de vida e de crescimento profissional.

Desde o início, os pioneiros que chegaram para sua construção, e os pioneiros que vieram fazê-la funcionar, eram chamados de corajosos e por vezes de loucos por se aventurarem nesse cerrado. O ato de mudar-se sozinho ou com toda a família, para uma grande promessa de capital no interior do país, era difícil. Mas acabou por tornar-se a realidade de muitas pessoas no Brasil, que uniram expectativas, medos e entusiasmos à coragem para realizarem tamanha mudança. Brasília era conhecida como a concretização de um sonho, um símbolo nacional e representante do pensamento modernista brasileiro. Mas antes de tudo isso, Brasília era uma possibilidade para as pessoas. O seu valor e importância iam muito além de seu simbolismo e de seus arquitetos renomados,

a cidade era o novo palco de muitas vidas e lar de inúmeras famílias. A construção de suas memórias e histórias, agora seria através do concreto, ruas e pilotis, que ao longo dos anos, acumulariam sentimentos, risos, choros, conquistas e fracassos. E como toda cidade bem cuidada, Brasília manterá a memória viva, para sempre que a visitarem ou caminharem por suas calçadas, as lembranças retornem. Os olhos que viram, viveram e capturaram os momentos de novidade, estranhamento e felicidade nesta terra prometida, serão os guias deste ensaio. Em foco, o olhar dos pioneiros posteriores, aqueles que chegaram após a inauguração de Brasília, com expectativas e responsabilidades altas de fazer a nova capital funcionar. Esta atenção, tem como objetivo trazer um olhar diferente ao tratar-se sobre o pioneirismo, busca-se o olhar não usual, aquele que engloba uma outra fase de pioneiros, mas que possui tamanha importância quanto todos os outros. 11


Este trabalho, portanto irá se basear na construção e análise de uma coletânea de memórias da família Raposo Tenreiro, que vinda do Rio de Janeiro, iniciou sua jornada em Brasília em 1970. O desenvolvimento do trabalho obteve um resultado bastante diferente do planejado, pois sentidos e percepções novas surgiram ao longo do caminho, incitando assim, a reflexão para o valor da memória passada oralmente. Paralelamente ao relato das memórias, o trabalho apresentará fotografias pessoais da família e ao final, um olhar pessoal será introduzido, buscando analisar e contextualizar o desenvolvido. Como um forte meio de registro e disseminação de aspectos da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, a importância da fotografia como registro histórico, também viabilizou a percepção de transformações urbanas e sociais ocorridas nos contextos urbanos ao longo dos anos, enriquecendo estudos e opiniões populares. Como base norteadora para deste trabalho, a fotografia será utilizada com o intuito 12

de complementar a compreensão e percepção de significados e informações na relação da família com os espaços públicos e privados de Brasília. Diante das primeiras intenções do ensaio, não era possível vislumbrar a riqueza de informações que tais relatos incitariam, e muito menos a importância delas para a construção da memória social e preservação de seu patrimônio cultural. O pensamento primitivo baseava-se na suficiência da fotografia como transmissora de memória, mas ao longo do trabalho, percebeu-se a importância da complementação no entendimento dos fatos.

A partir disso, o trabalho caracterizou-se por ter alguns objetivos específicos: Entender as possi bilidades que Brasília oferecia aos seus habitantes e o uso de seus espaços público e privado Perceber as transformações físicas, de uso e de público ocorridas em certos espaços urbanos. Visualizar as relações pessoais e sentimentais construídas entre o espaço urbano e a população Identificar a importância da memória voluntária na construção da memória social e no cultivo do valor patrimonial na população. Perceber o papel da fotografia como complementação da memória.

Como principal justificativa para o desenvolvimento deste ensaio esta o caráter pessoal. Particularmente, gosto muito de ouvir histórias antigas, sobre a vida privada, sobre as aventuras e andanças dos mais velhos; e juntamente aos relatos, fotografias antigas também me cativam por serem parte de um dia a dia que já se foi mas que ficaram eternizadas nesses registros, repletos de histórias e curiosidades do cotidiano e realidades de outra época. Este interesse pessoal me levou a conhecer mais sobre o passado da minha família, Raposo Tenreiro, e como forma de entender mais à fundo a vinda deles para a “cidade nova” e todo o encanto em torno da concretização de Brasília, eles se tornaram os protagonistas deste trabalho. Além do aspecto pessoal, há a importância dos registros fotográficos em retratar as mudanças urbanas e estéticas da cidade e a sua importância como objeto de memória. Por meio das fotografias é possível construir um acervo de informações técnicas e sociológicas 13


que possibilitam o traçado de uma linha temporal do dinamismo urbano, de forma à contribuir com estudos e decisões de planejamento futuras. Além disso, possui uma grande importância como objeto de memória, tendo em vista o seu papel complementador visual dos relatos ouvidos, ao dar vida e estímulos às memórias. Em síntese, a intenção do trabalho é entender a vivência e uso dos espaços públicos e privados, e a construção das relações afetivas entre as pessoas e estes espaços, por meio de relatos da memória “lembrada”. E como resultado final, promover laços de identidade com outras pessoas ou famílias. Como metodologia, foram realizadas inicialmente entrevistas com os membros da família, onde eram explicadas o intuito do trabalho e o papel dos mesmo no desenvolvimento. Como forma de estimular a manifestação das memórias, perguntas sobre a vinda deles para Brasília eram colocadas no início. 14

Contudo, como falado anteriormente, a cada memória falada outras surgiam, e de forma natural, as conversas se encaminharam e desenrolaram por todos os âmbitos do trabalho. Em seguida, após as entrevistas ou mesmo durante, ocorreu a coleta de fotografias da família. Como ponto interessante a ser colocado, por muitas vezes não foi preciso pedir pelas fotos, como ato intuitivo a automático as pessoas pegavam suas fotos para mostrar os lugares, roupas e características presentes em suas falas. Exemplificando assim, o papel de complementação exercido pela fotografia. E diante da quantidade de fotografias e a importância de cada uma na construção visual das memórias, a quantidade de fotos entregues não foi delimitada. Após a coleta das entrevistas e fotografias, a próxima etapa baseou-se em contar as memórias ouvidas e expor informações técnicas e históricas como contextualização e complemento.

Por fim, como conclusão das observações realizadas, analisei os relatos e a presença das intenções de Lúcio Costa, expostas no Relatório do Plano Piloto (1956), na vivência da família. E desenvolvi fotografias próprias, com um olhar particular sobre os locais que tiveram maior destaque no estudo, seja pela continuidade de valorização na cidade, ou pela disparidade de público, e decorri sobre transformações que ocorreram ao longo dos anos até o contexto atual. A organização do trabalho ocorreu em torno de quatro capítulos. O primeiro, A mudança da capital, trata-se sobre o longo processo em torno da proposta de mudança da capital e a opinião pública quando este fato foi concretizado; o segundo, A Mudança das famílias, aborda-se a memória e a fotografia como objeto de memória; o terceiro, Um caso muito pessoal, é subdivido em quatro partes: Moradia, trabalho, lazer e cultura e patrimônio, onde são explanados os relatos coletados e por fim, o último capítulo, Mudando o foco da capital, encontra-se a análise no contexto atual

dos espaços urbanos mais comentados e fotografias pessoais dos mesmos. Por meio desta estrutura, procura-se orientar e embasar o leitor na construção do pensamento ao longo de todo o trabalho. Este que, em sua essência, busca trazer um olhar particular sobre a questão do pioneirismo, por meio da memória “lembrada” de uma família pioneira. Como forma de identificar as conexões construídas entre a cidade e as pessoas, os relatos são a essência para a assimilação do sentimento real por trás de toda a fantasia criada em torno da nova capital. Apesar de os protagonistas serem apenas uma família, esta torna-se capaz de representar sentimentos e memórias comuns à várias outras que vivenciaram momentos parecidos. A sua importância portanto, expressa-se nesta capacidade de criar identidade com o outro, que estimulada, possibilita o fortalecimento da memória social e da consciência de valorização do patrimônio cultural. 15


Árvore genealógica Família Raposo Tenreiro

1970

Primos Massena

José

Maria da Conceição ou Conchita

Filhas

Filhos

Raquel

Henrico

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Henrique

Maitê

Lêda

ou Zeca

Eduardo

Luana

Maria Eduarda

Paulo

Eu Elizabeth

Cristina

Mariana

Cláudia

Isabela

Lúcio

Bruna

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A mudança da capital

Há muito que planejava-se a mudança da capital para o centro do país. Ainda no século XVIII, a ideia surgiu em meio a Inconfidência Mineira que acreditavam na mudança da capital do Rio de Janeiro para São João del Rey, cidade interiorana de Minas gerais. A ideia então foi discutida e postergada por mais alguns anos, até ganhar espaço novamente durante o período colonial, quando Marquês de Pombal já previa a mudança da monarquia portuguesa para a futura metrópole brasileira e defendia a posição central da capital por questões de defesa e proteção da corte. Posteriormente, em 1892 durante o governo do presidente Marechal Floriano Peixoto, a questão foi retomada com a criação da Comissão

O olhar de quem vinha e de quem ficou Exploradora do Planalto Central. Coordenada pelo astrônomo belga Luiz Cruls e formada por uma vasta equipe de técnicos e cientistas, a chamada Missão Cruz desbravou o interior do Brasil.

18 Figura: 03- Pioneiros- Fonte: albertoferreira.art.br

Como resultado da pesquisa, em 1893 foi delimitado o Quadrilátero Cruls, local que de acordo com seus relatos, haveriam vales férteis e rios em abundância que favoreciam o desenvolvimento da área. Porém, por falta de recursos, a ideia foi novamente postergada e a comissão dissolvida. (Trevisan & Ficher, 2010) Após anos de postergação, o assunto é colocado em pauta mais uma vez pelo governo de Getúlio Vargas na década de 50. Repassados os ideais e significados políticos e econômicos relacionados à transferência, o projeto é então colocado em vigor. Um dos primeiros atos foi a criação da Comissão de Localização da nova Capital federal,

que realizou levantamentos fotográficos e aerofotogramétricos, seguidos de estudos e análises sobre sítio do Planalto Central que resultaram na definição do terreno oficial em 1955. (el-Dahdah, 2010) 19


Para o desenvolvimento de um plano diretor e princípios urbanos para esta área, foi criada a subcomissão de “Planejamento Urbanístico” composta por grandes nomes da arquitetura da época como Afonso Eduardo Reidy, Roberto Burle Marx, Raul Penna Firme e o francês Le Corbusier, que contribuiu e opinou sobre a ideia de maneira muito positiva principalmente por afirmar que sonhava com tal momento desde 1926. Para a realização do Projeto Urbano contudo, foi decidido a realização de um Concurso Nacional de projetos, restrito à apenas profissionais brasileiros de modo à manter o grandioso projeto em autorias nacionais. Durante o concurso sob o governo de Juscelino Kubistchek, 63 trabalhos foram inscritos, e dentro os 26 selecionados, em março de 1957, o Projeto de Lúcio Costa foi o escolhido. Como afirma o autor (el-Dahdah, 2010), a proposta de Lúcio Costa não foi a mais completa ou a mais especificada, porém ela foi capaz de captar a essência do significado dessa mudança, 20 Figura: 04- Fonte: lavidaenfotografia.wordpress

21 Figura: 05- Fonte: Museuvirtualbrasil.com.br


“Criou-se então um terrapleno triangular com arrimo de pedra à vista sobrelevando na campina circunvizinha a que se tenha acesso pela própria rampa da auto-estrada que conduz à residência e aeroporto.

Foram dispostos os Ministérios e autarquias. Em setor contíguo, ampla área destinada à Cidade Universitária com o respectivo Hospital das Clínicas, e onde também se prevê a instalação de um observatório.

Em cada ângulo dessa praça – Praça dos Três Poderes -localizou-se uma das casas, ficando as do Governo e do Supremo Tribunal na base, a do congresso na vértice, com frente igualmente para uma esplanada ampla disposta num segundo terrapleno de forma retangular em nível mais alto, de acordo com a topografia local, igualmente arrimado de pedras em todo o seu perímetro.

A catedral ficou igualmente disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, uma vez que a igreja é separada do Estado, como por questão de escala, tendo-se em vista valorizar o monumento e, ainda, principalmente, por outra razão de ordem arquitetônica.

A aplicação em termos atuais dessa técnica oriental, milenar dos terraplenos, garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista. Ao longo dessa esplanada, extenso gramado destinado a pedestre, a paradas e a desfiles. 22

A perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma, onde os dois eixos urbanísticos se cruzam.”-

Lúcio CostaReletório do Brasília, 1956

Plano

Piloto

de

da enorme representatividade desta nova cidade e as intenções que se delineavam para ela. Lúcio Costa apresentou a idealização de uma sonho que pela a sua simplicidade e singeleza, mostrava-se capaz de ser concretizado nos próximos três anos. Atrelada à construção da nova capital, fatores políticos e principalmente econômicos estavam presentes. Na época, a maioria da força do país, como instrumentos de produção e mão de obra qualificada se concentravam no sudeste do país, enquanto boas parte do país baseava-se em uma cultura econômica rural. Visando trazer novos pontos de desenvolvimento industrial, comercial e de produção intelectual, o interesse de povoar a área central do país, ligava-se à políticas desenvolvimentistas de imigração, construção de rodovias, ferrovias e hidrelétricas e à produção agrícola e agropecuária, de modo à conectar as regiões do Brasil e trazer a modernidade e crescimento para o país. (el-Dahdah, 2010)

A construção de Brasília, inserida no Plano de Metas do governo de JK tornou-se então o emblema e símbolo de seu governo. A chamada Era JK revitalizou a imagem da produção arquitetônica do país e Brasília criada por inúmeros grandes representantes modernistas brasileiros, tornava-se um feito incomparável. Juntamente à Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, seria o grande responsável pela maioria das obras de destaque da Capital como a Catedral, Palácio do Planalto, Congresso Nacional e vários outros projetos iniciados até antes mesmo da oficialização do projeto urbano, como o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada. Ao lado deles, grandes personalidades também estavam presentes como Burle Marx, Ary Garcia Roza, José Filgueiras Lima, Paulo Magalhães e vários outros igualmente essenciais como Bernardo Sayão e Joaquim Cardoso.(Trevisan & Ficher, 2010)

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Figura: 06- Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br

As grandes intenções e o discurso de uma capital de oportunidades e desenvolvimento atraiu inúmeros imigrantes de todos os cantos do Brasil que chegaram com a esperança e a coragem de conseguir na terra prometida, a realização de seus sonhos e desejos. Em caminhões e ônibus lotados, a todos os dias inúmeros pioneiros chegavam dispostos à trabalhar e da maneira que podiam, iam se fixando pelos pequenos centros urbanos ao redor da grande 24construção.

A concretização deste sonho deveu-se majoritariamente à este pioneiros, que entre dias e noites, trabalhavam nas construções espalhados pelos canteiros, submetidos à condições inseguras e inapropriadas. Estes foram os maiores eufóricos em sua conclusão, pois finalmente iam viver a cidade que construíram com suas próprias mãos. No entanto a verdade foi outra, e no fim pouco receberam, pouco foram valorizados e pouco foram citados pelo seu feito.

Mas esta é uma outra história do pioneirismo, diferente deste apresentado. Com a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, vários outros pioneiros chegaram, aqueles também oriundos de várias regiões do Brasil mas com um perfil diferente. Este que destaco são os transferidos de outros Estados cujas origens são trabalhistas como embaixadas, empresas privadas e principalmente órgãos estatais, que chegaram prontos para ocupar os vários prédios recém terminados da capital. Assim como anteriormente, mais uma leva de sonhos foi trazida para Brasília. Mais alguns “loucos” e corajosos se aventuraram em terras brasilienses com o objetivo agora de fazer o sonho funcionar e dar certo. Repletos de incertezas, dúvidas e medos de um lado, e esperança e entusiasmo do outro, estes traziam suas famílias, suas coisas, suas vidas para a nova capital. Como José, Lêda, Massena e Maria Aparecida, vários vieram do Rio de Janeiro, a antiga capital do Brasil que vivia entre rumores e ideias um tanto criativas sobre Brasília.

“"Determinada a transferência da capital federal pela Mensagem de Anápolis, de 18 de abril de 1956, a construção de Brasília, fixada no prazo de 3 anos e 10 meses, iria modificar tal situação. A fantástica cidade futurista, erguida no meio do cerrado goiano, seria a nova catalisadora das energias nacionais. A máquina administrativa estatal ao sair do Rio de Janeiro, onde se encontrava fazia dois séculos, deslocando-se para o centro do Brasil, produziu um enorme choque na região. Foi como se por lá caísse um meteorito de espetaculares proporções. Numa sentada, foram atraídos para suas proximidades milhares de trabalhadores (os candangos) e transferidos mais de 5 mil funcionários públicos. E, com eles empreendimentos agropecuários, comerciais, minerais, e financeiros de toda ordem."” (SCHILLING, 2002, p.03)

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A nova capital já nasce com uma grande responsabilidade: ser o novo símbolo nacional, e retirar o tradicional Rio de Janeiro dos imaginários populares após quase 200 anos como capital. Como afirma o estudioso Nunes, a sua concretização rompeu com qualquer previsibilidade, e representou a união nacional de todas as culturas e regiões pouco inter-relacionadas como São Paulo e Salvador por exemplo. A Brasilidade era algo que o Rio de Janeiro possuía, e ainda possui em sua cidade e sua população. Sua imagem como representante do Brasil ainda é muito forte, de modo que internacionalmente, a referência imediata ao país é a cidade maravilhosa e alguns de seus principais pontos turísticos. Oque tornou maior a responsabilidade da nova capital em se auto afirmar como algo bom e positivo tanto para a sua população como para fora. (Nunes) Na época da mudança da capital, o governo de Juscelino durante o seu processo de campanha para a mudança da capital, baseou sua justificativa em argumentos como resgatar

o “Brasil esquecido” e o crescimento da industrialização, com a modernização de infraestrutura nas áreas de transportes, geração de energia e indústria de bens. Conjuntamente à esses argumentos, campanhas foram realizadas para a então “aprovação” dessa empreitada pela população brasileira. Na mídia exaltavam Brasília como a cidade do futuro, da modernidade e das novas tecnologias. Defendiam a sua possibilidade de representar o povo brasileiro em sua pluralidade e potencialidade, de modo que a mudança da capital seria um salto para o mundo moderno. Uma das ferramentas utilizada pelo governo foi a criação da Revista Brasília que a partir de 1957, começou a ser distribuída para todo o país como publicação mensal da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil). Como principal objetivo, a revista veio para defender a criação da nova capital e seu plano arquitetônico e urbano.

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27 Figura: 07- Inauguração- Fonte: albertoferreira.art.br


Sua publicações divulgavam o dia-a-dia da construção de Brasília, com fotografias e relatos da vida nos canteiros de obra, detalhes de projetos arquitetônicos com croquis, fotos de suas maquetes e fotos das fases da construção; informações sobre novos contratos e planos da Novacap e depoimentos de estudiosos e arquitetos que defendiam a construção como Lúcio Costa, Israel Pinheiro, o presidente Juscelino Kubitschek entre outros. (Cappello, 2010) No âmbito internacional e nacional, estudiosos dividiam opiniões sobre o potencial de Brasília. Entre os que exprimiram seu positivismo está Mário pedrosa que afirmou que “Brasília é uma obra de arte que se constrói” e Stamo Papadaki, “...a construção afetará o resto do mundo: a arte de construir cidades não está perdida.” Entre as opiniões negativas Bruno Zevi apresentava indagações sobre a adaptação dos futuros habitantes à cidade que surgiria e as possibilidade de transformação atreladas ao tempo, pois para ele “não se pode pré-fabricar uma cidade e depois adaptar o povo à ela.” (Cappello, 2010)

Do ponto de vista da população, na região Goiana que receberia a nova capital, o entusiasmo era grande. Os sertanejos ou caipiras como eram chamados, até então vivam suas vidas simples e pacatas em meio ao sertão, com dificuldade e trabalho duro, desenvolviam suas atividades rurais com humildade e simplicidade. Mas a mudança da capital mudaria tudo. Em meio variadas culturas e numerosas pessoas que brotavam em seus terras, o sertanejo goiano via na construção de Brasília a esperança de desenvolvimento e progresso para a região. Acreditavam que enfim suas vidas iriam melhorar e que seu estado ganharia visibilidade no cenário nacional. (Neto) Já na região sudeste, em particular no Rio de Janeiro as dúvidas e questionamentos sobre toda essa mudança inundavam os pensamentos da população. Direcionadas à várias categorias, a população dividia-se quanto ao aceitamento da nova capital. Em sua maioria, aqueles que defendiam pontos positivos e demonstravam entusiasmo eram os que já tinham ido à Brasília e visto todo o

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Figura: 08- Jornais Correio da Manhã- Fonte:olx.com.br

discurso grandioso e desenvolvimentista de Juscelino concretizando-se no gigantesco canteiro de obras. Os mais corajosos de mente aberta e espírito de aventureiro, até defendiam que Brasília teria variadas oportunidades melhores e maiores que as existentes no Rio de Janeiro, e que era pra lá que iriam, em busca delas. O espírito de Brasília tomou vários cariocas, que juntos com seus sonhadores, idealizavam um local de infinitas possibilidades. Por outro lado, haviam os pessimistas que defensores da capital carioca até o fim, espalhavam boatos e críticas. As principais frases usadas eram: “Lá só tem mato e índio.”, “Brasília é terra de ninguém, daqui a pouco essa ideia maluca acaba.”, “Que loucura, mudar-se para o meio do nada!”, “Lá é tudo igual e não tem esquina!!”. Entre todas uma que destaca-se sobre a arquitetura modernista é: “ Você não vai se habituar, os encanamentos lá são todos aparentes!”. 29


A família Raposo Tenreiro relata em suas histórias, o espanto de uns e a alegria de outros ao darem a notícia de que estavam se mudando para Brasília. Os espantos eram maiores, pois era difícil de acreditar que alguém deixaria uma cidade já concretizada e rica de pessoas, cultura e beleza para ir pro meio do nada, onde não havia mar! Contudo, chamados de “loucos”, “insanos” e de “corajosos”, muitos foram as famílias que seguiram viagem rumo à nova capital. Ao adentrar outra atmosfera, dentro do governo a situação não era diferente das ruas, e numerosas discussões eram travadas entre opiniões duras e positivistas sobre qual seria o futuro do Rio ao deixar de ser distrito federal. Muitos eram contra e achavam Juscelino insano como o presidente do Banco do Brasil Desde a campanha eleitoral até a posse do presidente Juscelino, o anúncio da criação e transferência da nova capital foi duramente negada e criticada pelos principais jornais cariocas da época: Correio da Manhã, Diário Carioca e Tribuna da Imprensa. 30

. Debochas e sátiras começaram à fazer parte do dia a dia dos jornais que não acreditavam na realização de tal feito e posicionavam-se com forte oposição. (Areas, 2013) “Quanto ao Planalto Central para onde se imagina providenciar a mudança da sede do governo federal, assegura que “é um terreno semiárido, comparável às estepes da Rússia ou aos lhanos da Venezuela e da Colômbia, podendo ser incluído no Polígono da seca”.
A declaração é de goiano conhecedor do terreno. Por esse lado, consequentemente, a transferência seria desastrada.”trecho do jornal Correio da Manhã citada por (Areas, 2013) Envoltos à uma discussão política sobre a mudança, os jornais buscaram descaracterizar o Planalto Central e a figura do próprio presidente, em busca de mobilizar a população contra o projeto.

À Juscelino foi associada a imagem de um bandeirante que parecia não entender que o sonho era uma grande ideia descabida. Além disso, pontos sobre as necessidades e problemáticas da situação atual do país, como reformas tributária, educacional e administrativa, foram colocadas em destaque com o objetivo de mostrar que tal medida não era urgente diante da realidade. “Ao dinamismo, a sua capacidade propulsora some o presidente da República uma dose maior de realismo, adicione um senso mais profundo de objetividade, e promova, por exemplo, a reforma agrária, instrumento de civilização do imenso mundo rural brasileiro (...)” trecho do jornal Correio da Manhã citada por (Areas, 2013) À todo momento, os argumentos usados pelo governo para a transferência são rebatidos e seguidos por duras críticas, até o momento que denúncias e

e suposições relativas às obras no Planalto Central começaram à surgir, principalmente pelo alto custo monetário e a política inflacionária atrelada. “Para se mudar, o Ministério da Guerra pediu 100 milhões. Outros 100 milhões pediu agora o Catete, também para a mudança. Para aplicação das obras da rodovia Belém – Brasília, mais 600 milhões. E, provavelmente para o Acre – Brasília, mais 2 bilhões e 900 milhões. Meio bilhão pediu Câmara também para a mudança. O realismo desses números, que são, por enquanto, os únicos conhecidos, somados com o autofinanciamento que Brasília custou ao Tesouro Nacional, já permite uma ideia da esbórnia monetária. Disse ontem um deputado que aquela data é apenas simbólica. (...) Nunca vimos simbolismo tão caro, há de reconhecer que tudo isto implica realmente no grande símbolo deste governo itinerante e faustoso.” trecho do jornal Correio da Manhã citada por (Areas, 2013) 31


Figura: 09-Inauguração- Fonte: albertoferreira.art.br

Associada à essas denúncias, a transferência acarretou em alterações em toda a estrutura política, administrativa, judiciária e econômica do então distrito federal. A cidade teve então que se reorganizar completamente, oque acarretou na resolução de problemas antigos, mas também no surgimento de novos problemas. Denominado na época de Distrito Federal, este passava pelo grande questionamento: unir-se ou não com o Estado do Rio de Janeiro? O futuro da cidade era uma preocupação constante entre a população. Muitos acreditavam que a cidade iria se enfraquecer e esvaziar com a transferência de tantos órgãos e servidores. Outro medo era a baderna crescer e predominar as ruas do Rio, já que agora o poder e grande parte da população chamada “ estudada” estava indo embora. (A mudança da capital federal e o Estado de Guanabara) A contra proposta da união com o Estado do Rio seria a formação do Estado de Guanabara, 32

mas entre problemas financeiros e territoriais, tal ideia tornou-se inadequada, e a união então foi determinada. Entre tantas discussões, momentos de reflexão viu-se por fim que duas cidades nasceram de todo esses processo, Brasília e o novo Rio de Janeiro, que diante de tantos desafios teve que aprender a se reerguer, se reorganizar e reumanizar. A cidade com sua enorme importância cultural, representativa e territorial, sendo uma das grandes interligações marítimas do país, tornou-se uma das principais capitais do Brasil e Brasília cresceu, amadureceu e hoje aos seus 55 anos, entre erros e acertos demonstra a força do plano e JK.

Brasília, do papel ao concreto No principio era apenas um sonho. Apenas isso. Brasília há séculos sugerida como imprescindível para o desenvolvimento nacional. Um dia decidiu-se que seria construída à custa de qualquer sacrifício. É feito um plano-piloto, arrojado e prático. Poucos crêem. Poucos lutam.Vem depois a maqueta. Todo mundo vê. Todo mundo gosta.

Assenta-se o cruzeiro para ser dita a primeira missa. Dia 2 de maio de 1957. Mais de 15 mil pessoas estão presentes, a maioria para tirar a dúvida. É preciso ver para crer. O plano está indo mesmo. Começa-se a sedimentar no íntimo popular um sentimento de crença ou, pelo menos, de esperança. “Quem sabe se desta vez sai.” Reportagem da Folha de São Paulo no dia da Inauguração de Brasília em 21 de abril de 33 1960.


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“"É a linguagem que é o mecanismo de exercício da memória. Sem a memória não existiria a vida humana. Sem memória, toda atividade humana seria uma experiência a cada momento recomeçada [...]. A memória, porém, assegura que toda ação humana seja permeada pelas experiências anteriores. [...] Toda ação humana é uma ação com carga de memória e se não houvesse memória, a cultura não seria possível."” (Meneses U. , 1980, p. 10 citado por

A memória é consequência de um presente vivido que hoje, tornou-se passado. Ao regatá-la, é possível reviver sentimentos e percepções dos momentos anteriores, e ao mesmo tempo reavaliá-las, buscando melhorias e mudanças para a construção do pensamento atual e futuro. Ligada à memória encontra-se a história, que por muitas vezes é confundida ou interpretada por muitos, como a própria memória. Esta no caso, por definição da autora, consiste em recordações de momentos vividos ou imaginados por pessoas que afirmam ter os vivenciado, e possui forte relação com as emoções e sentimentos, podendo ser estimulada à manifestar-se por diversos fatores pessoais. (Gabriele, 2012)

A mudança das famílias Por meio da citação de Meneses (1980) citada por (Gabriele, 2012) é possível perceber a importância na transferência e na preservação da memória de uma povo, de uma cidade ou de uma família. 34

Já no caso da história, esta constitui-se por fragmentos descontínuos da realidade passada, que para tomarem sentido, são organizados e reconstruídos cronologicamente pelos historiadores. 35


No caso deste trabalho, como base norteadora encontra-se a Memória involuntária, que é definida pela estudiosa (Gabriele, 2012) como a memória que surge de modo espontâneo, alimentada pelo anos, pelos sentimentos, pelos pensamento da vida, modos de viver e até costumes vividos por uma pessoa ou um grupo. Esta “memória lembrada”, possuía importância ao mostrar a repercussão daquele local, pessoas ou sentimentos para a pessoa. Mostra entrelinhas, os verdadeiros fatos que para aquela pessoa, devem ser repassado e inseridos na história. Por meio de relatos da família pioneira sobre a sua experiência em Brasília, ao serem apresentadas, tais discursos irão refletir, por meio de pontos de vista individuais, um visão social como um todo, de modo a fomentar a memória social e desencadear reações de identificação pessoal.

“ "...o grupo retém e reforça as lembranças, mas o recordador ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique."” (Bosi, 1979)

A delicadeza da memória apresenta-se em especial, nesta capacidade de estimular dezenas de outras memórias em pessoas próximas ou distantes, de contextos sociais semelhantes ou completamente diferentes. De forma que, a partir da carga emocional ou de detalhes comentados, vínculos com outras memórias são formados e por um processo sucessivo e contínuo, um efeito de memória puxa memória.

"Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito."” – (Bosi, 1979) 36

Acredita-se, que por intermédio do resgate de memórias da população, a memória da comunidade é fortalecida, de modo, que paralelamente à memória voluntária, a transferência de relatos e ensinamentos ao longo das gerações, também possui um forte papel na conscientização histórica dos locais e na construção de novas ações para o futuro. De acordo com a autora Gabriele (2012), a memória registrada não torna-se menos vivaz, mas sim preservada e passível de novos olhares. Ao ser repassada, a cada nova geração um olhar novo será dado à ela, e da mesma forma uma nova interpretação, percepção ou conclusão será realizada. Dentro da sociedade, há a cultura de preservar as memórias por meio de objetos e documentos, de modo que esta mantenha-se viva e tenha um registro que comprove a sua veracidade. No caso, este vestígios constituem o Patrimônio Cultural de um povo, onde observa-se a necessidade de transferência do invisível para o visível.

Como parte desse Patrimônio, encontram-se a fotografia e a arquitetura, que classificadas como acervo da memória social, são expressões capazes de comunicar um conteúdo. No caso deste trabalho, a memória e a fotografia ao serem trabalhadas conjuntamente, terão como objetivo principal se complementarem para o engrandecimento de percepções da Arquitetura de Brasília. Ao concretizar momentos passados, a fotografia é embebida de significados e valores que por si só, não são completamente expostos e compreendidos. Como registro traz com si a temporalidade do espaço, mas inserida no contexto correto, amplifica-se para um vasto panorama de informações e significados, capazes de reconstruir a história local e/ou mundial e despertar sentimentos e lembranças nas pessoas. (Cidade, 2006) “A máquina fotográfica é um espelho dotado de memória, porém incapaz de pensar.

Arnold Newman (1918-2006 –

respeitável fotógrafo americano) 37


A linguagem da imagem fotográfica por ser universal, é capaz de se comunicar com qualquer pessoa, conhecedora ou não do assunto exposto. Mas para os possuidores de bagagem cultural, a profundidade de certa imagem vai além do apresentado. Ela expõe simbologias de relações sociais, econômicas, políticas e culturais da sociedade ou de um povo específico, impulsionando a relação entre sujeito e imagem, ao incitar reflexões de significação de sua realidade e de si próprio. (Martins, 2010) Portanto, ao trazer o trabalho da complementação, a riqueza de informações e reflexões se sobressaem e da mesma forma, fortalece-se o seu valor como objeto histórico para a população. Neste ponto, a autora Ecléa Bosi (1979), em seu texto comenta a falta de valorização da memória pela sociedade atual, principalmente o desleixo com os seus protagonistas. Os grandes contadores de histórias e detentores de memórias, os idosos, com o decorrer dos anos vem sendo deixados de lado pela forte opressão e cultura do mundo moderno.

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O antigo por muitas vezes, vem sendo ridicularizado, como se seu valor passado, tão vivido e contemplado, não houvesse significado. A supervalorização do novo, vem destruindo lembranças e histórias, e construindo o medo da velhice e do passado, ao invés de valorizá-los como fontes de conhecimento e ensinamentos para o tão futuro planejado. Diante de tudo isso, a frase citada também citada por Bosi (1979): “ Já não existe mais.”, carregada por tristeza e decepção, revela o ponto comum das palavras do cotidiano atual que preocupam. O olhar do hoje pelos protagonistas do passado, envolve-se no fato, de que muitos de seus “lugares de memória” não existem mais e várias de suas memórias não serão ouvidas ou contadas. O caminhar da atual cultura efêmera, representa o desrespeito pela memória e a falta de preocupação com o seu próprio amanhã, que talvez, também não exista mais. 39


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José nasceu em 1942 no Rio de Janeiro e casou-se com Lêda também carioca. José era primo de Maria Aparecida, nascida no Maranhão e casada com Massena, carioca. Os dois casais moravam no Rio de Janeiro. A família Raposo Tenreiro chegou à Brasília em 1970, deixando a até então capital do país, o Rio de Janeiro. A oportunidade de vir para Brasília surgiu dentro do Banco do Brasil, onde José Raposo e Massena Raposo eram funcionários. José Raposo aos 31 anos, casado com Lêda Tenreiro e Massena aos 35, casado com Maria Aparecida, estavam em início de carreira, e diante das grandes possibilidades da nova capital, decidiram aceitar o desafio.

A singularidade do desenho urbano e a grandiosidade do projeto os impressionou e como contam: “Ficamos loucos com Brasília!” Ao voltar pro Rio, elogios à cidade não faltaram. Entre conversas com amigos e familiares, a vontade de se mudar era cada vez mais clara para o casal. E José sendo um grande amigo de Massena, logo foi encantado pelas possibilidades e novidades da nova capital, que assim como seu pai, o meu bisavó Zé, enxergavam uma grande oportunidade de crescimento profissional. Durante o início da construção, muitos não acreditavam no que estava sendo feito.

Mas toda essa história começou um pouco antes, em 1969, quando Maria Aparecida e Massena vieram à primeira vez à Brasília, para o batizado de uma sobrinha. Ao chegar à cidade o encanto foi instantâneo.

Como era possível o Rio de Janeiro deixar de ser a capital do país? Vários reclamaram, questionaram e desacreditaram daquele sonho de Juscelino.

Um caso muito pessoal

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Os boatos sobre a capital corriam de boca em boca pelo Rio e muitos não eram encorajadores. Mas com a sua inauguração em 1960, o cenário mudou e a realidade de mudança tornou-se certa. Vários órgãos começaram a organizar a transferência gradativa de suas sedes, e consequentemente de vários de seus funcionários. Dentro do Banco do Brasil, os setores foram escalonados em diferentes períodos para a mudança, e cada qual selecionava aqueles interessados e dispostos a ir para a nova sede. Como forma de incentivo aos seus funcionários, o Banco oferecia excelentes taxas de financiamento para os apartamentos, melhores planos de carreira e vários outros benefícios que tornavam a proposta de vida nova bastante tentadora. Com relação à mudança, José conta que vários conhecidos não tiveram coragem de deixar família e a sua cidade natal, tinham medo de como seria a vida nesse lugar que tanto se desconhecia. Mas inúmeros foram os corajosos, que assim como José e Massena, decidiram arriscar.

A decisão de mudar-se tomou os familiares de preocupação, assim como conhecidos da rotina que ao saberem da notícia se espantavam e desenrolavam várias das lendas e histórias de Brasília. Mas logo, o otimismo chegou, e com ele o apoio de seus entes queridos. “Corajosos” eram chamados, por deixar a cidade maravilhosa, cidade feita e vivida, para ir para o meio do nada, onde não havia mar.

Em uma visita junto com seu pai e Massena, José veio pela primeria vez para conhecer a cidade onde criaria a sua família. Entre espanto e encanto, ele e seu pai gostaram e confiando em sua decisão, mudou-se definitivamente em 1970 para o recomeço de sua história.

43 Figura10- Praia de Copacabana- Fonte:wordpress


A vivência da Moradia 44

Com todas as malas organizadas e as gaiolas do canários devidamente acomodadas no banco de trás de um fusquinha verde, lá se foram em abril de 1970, José e Massena rumo ao oque seria a maior loucura e oportunidade de suas vidas. A viagem era longa, mas a ansiedade e a empolgação eram maiores. Naquele momento deixavam a sua cidade natal, a cidade em que cresceram, construíram suas amizades, amores e família, com destino ao futuro prometido. A entrada em Brasília ocorreu pelo eixo monumental, onde até então era um grande recorte asfaltado em meio ao cerrado e poucas edificações. Seguindo adiante a monumentalidade saltaram-lhes os olhos e empolgação os dominou. Definitivamente, Brasília era diferente de tudo oque já tinham visto. A rodoviária foi a primeira parada, onde avistaram um guarda para pedir informações, tendo em vista que estavam completamente perdidos. Assim que pararam o carro, o Guarda logo falou: “Vocês sabiam que estão na contramão?” e soltou a gargalhada.

Os dois nem imaginavam, pois o movimento de carros naquela época era muito baixo, e os poucos que andavam se perdiam na grandiosidade das vias. Mas “no panic” como diz meu avô José, tudo oque precisavam era pegar as instruções e dicas de como andar na cidade, e então seguir o caminho rumo à superquadra 204 sul. Contudo, enquanto Zéca e Massena se perdiam em Brasília, Maria Aparecida grávida de 7 meses, Lêda e suas filhas Cláudia de 5 anos e Cristina de 1 ano vinham de avião rumo ao aeroporto Juscelino Kubistchek, que até então era um grande barracão de madeira em meio à muito terra vermelha. Durante o desembarque, o turbilhão de emoções era tamanho, que descendo as escadas do avião com seu casaquinho de veludo vermelho, Cláudia não se aguentou e fez xixi nas calças inaugurando a chegada da família Raposo Tenreiro. Ao longo do caminho a surpresa e o medo tomaram conta de Lêda, Brasília era muito diferente de tudo oque já tinha visto.

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Avenidas muito grandes e vazias; prédios todos iguais, tudo era muito longe e vazio. E a sua futura casa, esta era em um endereço muito estranho, em uma rua sem nome e sem esquina. Conchita no entanto, transbordava de empolgação e entusiasmo pois estava à caminho do seu grande sonho: ter sua casa própria. Os novos apartamentos estavam localizados na Superquadra 204 sul, uma quadra destinada à funcionários do Banco do Brasil. Os imóveis estavam novinhos, possuíam quartos espaçosos, uma cozinha grande e eram bastante arejados. Conquista esta que muitas famílias sonhavam e que no Rio de Janeiro por exemplo, seria muito difícil de conquistar. Um fato interessante sobre a 204 sul é que a construtora responsável pela construção do blocos e pelo urbanismo da quadra, faliu antes de completar o cronograma. E quem concluiu vários dos prédios, asfaltou as vias e definiu o calçamento foi o Banco do Brasil, buscando dar a maior qualidade de vida aos seus funcionários que ali estavam e iriam estar. 46

A distribuição dos apartamentos era realizada de acordo com o tamanho de sua família, Lêda e José, por terem duas filhas, ficaram no bloco K, com apartamentos mais espaçosos e Massena e Maria Aparecida por ainda não terem filhos, ficaram no bloco I, com imóveis um pouco menores. A vizinhança era variada, pessoas de vários estados e culturas diferentes se misturavam entre os blocos e cobogós. Famílias, solteiros, casais, todos possuíam um ponto em comum: não conheciam quase ninguém. Haviam alguns conhecidos ou amigos do Banco, mas em sua maioria eram deslumbrados e temerosos que tinham vindo apenas com a coragem. Devido à este fato a família conta que as amizades se desenvolveram muito bem. Entre troca de favores como uma xícara de açúcar e uma carona para o trabalho, amizades reais se criaram e se concretizaram ao longo dos anos.

Como a Lêda conta: “ "Todas aquelas pessoas eram como nós, largaram tudo onde estavam e vieram sozinhos. Não conheciam muita gente. Por isso a amizade cresceu tão rápido."” 47


“"Éramos uma grande família, um ajudava ao outro quando precisava. Era tomando conta dos filhos para o casal sair, era levando para a escola ou ajudando financeiramente em alguma emergência." – Lêda Tenreiro 48

No mesmo andar de José e Lêda havia a Dona Elza, uma gaúcha super simpática que adorava fazer quitutes para as crianças e cuidar de animais perdidos. Todo dia se escutava ela cumprimentando os porteiros e à todos que passavam na rua. Com a sua simpatia, ela presenciou o crescimento de minha mãe, de minha tia, o meu e o de minha irmã. “Ela era uma figura! Super alegre e cheia de energia, andava para todo lugar com seu chimarrão na mão.” –Cristina Tenreiro

Havia também a vizinha do quinto andar, que foi a única pessoa com um telefone fixo no prédio por um bom tempo. Se não fosse pelo telefone dela, quem quisesse ligar tinha que subir até a W3 sul para ligar da central telefônica. Minha avó Lêda conta que quase todo dia ia algum vizinho até o apartamento dela fazer as suas ligações. Rio de janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul ou Ceará, os telefonemas iam para todos os lados do Brasil, levando novidades e diminuindo a saudade dos parentes distantes.

Quando alguma ligação recebida era para algum de seus vizinhos, ela gritava pelas janelas e até pelos shafts dos banheiros, chamando a pessoa para atender ao telefone. E no final do mês ela administrava a conta, distribuindo os valores para cada um. Já no bloco I, Conchita conta que durante um bom tempo, só havia eles e um outro apartamento ocupado no prédio todo. Mas logo que as pessoas se mudavam, a amizade se instaurava. No quinta andar, Massena conta que o Seu Fulano foi o primeiro a ter televisão colorida no prédio,

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, oque na época era um estouro de tamanha novidade. Os dois tornaram-se muito amigos, tanto que no ano da copa de 1974, o seu fulano iria viajar, mas decidiu deixar a televisão colorida com eles, de forma que todos pudessem aproveitar a copa pelas grande novidade. O espírito de comunidade era grande e crescia a cada ano que se passava. Entre momentos de tristeza e de alegrias compartilhados, a superquadra tornava-se uma grande família. Havia muita tranquilidade em se morar na superquadra. A violência era quase inexistente, o movimento dos carros nos eixos L, W e eixo rodoviário era bastante baixo e todos se conheciam oque ajudava na vigilância do local. De acordo com minha tia Cláudia, o maior triunfo das crianças naquela época era a liberdade. Liberdade de correr e brincar debaixo dos blocos de pique-esconde, ou polícia e ladrão. Elástico, queimada, pique-bandeira ou botão, a cada dia surgia uma ideia nova. Liberdade de pegar a bicicleta e sair andando por entre as superquadras, 50

subindo e descendo morros de terra vermelha que permaneciam das obras. Todos os porteiros já sabiam o nome de cada um, o dono da banca de revistas, o tio da padaria e até o tio do cachorro quente também. Cada um cuidava um pouquinho da criançada. Eram bandos de meninos e meninas de todas as idades que se misturavam entre brincadeiras e cuidados. Minha mãe conta que em finais de semana a diversão começava cedo, as oito horas da manhã alguma criança já batia na porta, ou interfonava com a clássica frase que perpetuou até a minha infância: “Vamos descer?”. E à partir desse chamado, cada qual pegava sua bola, elástico e bicicleta e sumia o dia todo. Voltar para casa? Apenas para necessidades básicas, como ir ao banheiro e pegar comida e água, mas isso também quando já não ocorria na casa de algum amigo. Em dias chuvosos, a reunião ocorria na casa de alguém ou nos corredores dos prédios. Em muitos edifícios modernistas de Lúcio Costa, o hall do elevador é enorme, com longos corredores de cobogós, como é o caso da 204 sul.

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O espaço era enorme e suficiente para andar de patinete, de patins, brincar de escolinha ou de pique cola. Os corredores eram continuação do piloti do prédio. A imaginação corria solta e as programações eram sempre contínuas. O barulho era alto e a bagunça também, mas a maioria dos vizinhos não reclamava. Por várias vezes, também entravam nas brincadeiras e assistiam à apresentações de teatro, dança ou imitação de Spice Girls, como no meu caso. A tranquilidade era constante, assim como o bom humor. Em uma realidade sem celular, a comunicação entre pais e filhos espalhados pela quadra se dava pelo grito. Vários eram os momentos em que se escutava : “ Fulanooo sobe pra casa!"” E lá ia o fulano correndo pra casa. Quando não era pelo grito, era por meio do interfone, encarregando o porteiro de distribuir os recados. De pés encardidos, vivíamos felizes. A infância dentro de uma superquadra era muito especial e bem diferente de uma vivida em uma cidade grande como o Rio de Janeiro.

Na década de 70, a maioria das mulheres não trabalhavam fora e eram donas de casa. Como não se tinha muito oque fazer na cidade nova e pacata, várias mulheres desciam para debaixo dos blocos conversar. O piloti também era utilizado pelos adultos. Enquanto as crianças brincavam, elas sentavam e conversavam da vida, trocando histórias de suas terras natais e relembrando fatos engraçados do dia-a-dia. Além disso, um momento especial que ocorria rotineiramente, era o momento em que os maridos chegavam do trabalho. As esposas, juntamente com as crianças, desciam e iam para frente dos prédios esperá-los chegar. Como o sol era forte e árvores quase não existiam na quadra, Massena conta que ele com mais alguns amigos decidiram plantar duas árvores para então quando crescessem produzissem sombra. E assim se fez. Elas cresceram e com elas a disputa para conseguir um lugarzinho debaixo delas. Atualmente, as duas ainda fazem parte da quadra com sua beleza e grandiosidade, carregadas de histórias e pessoas dos tempos da superquadra.

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Outro fato corriqueiro que Lêda e Conchita contam era a rotina de sair de casa naquele mar de terra vermelha. Por muitos anos, os canteiros e várias partes da cidade em geral ainda eram de terra batida, e por conta disso, os sapatos ficavam todos vermelhos e sujos. Para se adaptarem e seus sapatos sobreviverem, tinha-se o costume de sair de casa com um sapato no pé e outro na mão, para trocá-los em seu destino ou sair de casa com um pano molhado, para limpar os sapatos antes de entrar no médico por exemplo. O início da vida ali realmente não era fácil. Muitas mulheres trocavam reclamações e desejos para suas vidas e esperanças para aquela capital prometida. Várias não queriam ter vindo e deixado seus pais e familiares, mas a maioria repetia: “ Vim pelo bem dele no trabalho! É uma ótima oportunidade para melhorar nossa vida.” Lêda conta que no início foi muito difícil, que antes de conhecer outras pessoas vivia muito sozinha e que por várias vezes chorava de saudades do Rio de Janeiro.

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Ela fala que várias amigas também sofriam de saudades e que nas férias de final do ano, quando as crianças entravam de férias da escola, elas arrumavam as malas e pegavam o ônibus, que saíam aos montes, lotados de crianças e mulheres com destino às suas terras natais. Brasília ficava ainda mais vazia durante essa época, pois elas normalmente só voltavam quando o ano letivo iria começar. Seus maridos continuavam trabalhando até chegarem suas férias, que então repetiam o caminho de suas esposas e filhos, pegavam o ônibus e se encontravam com elas em sua cidade. Por um bom tempo, essa foi a rotina de vários anos, entre idas e vindas. Mas com o amadurecimento da cidade, novidades vieram, mais pessoas chegaram e a vida começou a ganhar dinamismo.

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Lazer e Cultura 56

Como comentado anteriormente, Brasília foi uma cidade pacata em seus primeiros anos. Não havia muito o que fazer na cidade. Peças de teatro, shows musicais, exposições artísticas, nada disso fazia parte da rotina dos habitantes da capital. A vida era baseada em locais pontuais ou em encontros casuais com os amigos. Os clubes, destacam-se como um dos destinos de lazer dos brasilienses da época, e que ainda hoje se mantém como lugar de encontro. Surgiram com a cidade, no setor de clubes, localizado em sua maioria na beira do lago. Inicialmente, cada lote desta área foi distribuído para os vários órgãos que estavam se transferindo para a capital. No caso de José e Massena, o Banco do Brasil inaugurou a AABB- Associação Atlética Banco do Brasil, que era o um dos grandes atrativos dos finais de semana. Naquele período, o clube era apenas para funcionários do Banco e sua família, que vinham em peso aproveitar as piscinas, quadras de esporte e espaços abertos do estabelecimento.

Lêda conta que no início era muito bom para a integração das pessoas. Aqueles que tinham vindo sozinhos logo conheciam seus companheiros de banco, aqueles que vinham de Estados diferentes, rapidamente se enturmavam e se misturavam e assim as amizades se concretizavam entre as famílias. A vida fora do trabalho baseava-se muito na AABB. Se não eram domingos de sol, piscina e almoços entre amigos, eram os bailes dançantes de sexta ou sábado a noite. Estes eram especiais para casais que quisessem apreciar um bom momento à sós, e para aqueles solteiros e solteiras em busca do amor e de uma boa música. Mas além dos clubes, outro local muito movimentado na cidade, em especial ao longo da semana e aos sábados era a W3. O comércio que se distribuía ao longo de sua extensão era muito variado e dinâmico. Várias lojas grandes e conhecidas de outros Estados vieram para se estabelecer ao lado das lojas pioneiras, o que atraía inúmeras pessoas para passear e olhar as novidades do momento. 57


A W3 SUL A avenida W3 sul foi implantada rapidamente após início da construção de Brasília em 1955. Inicialmente, o Relatório do Plano Piloto destinava esta via à construção de uma zona de serviço, definindo na faixa das quadras 500 locais como oficinas, garagens e

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Figura: 11: W3 sul- Fonte: blogspot

e depósitos para abastecerem o comércio das superquadras; e na faixa das quadras 700, floriculturas, hortas e pomares. No entanto esta ideia inicial não foi desenvolvida. Na faixa das 700 iniciou-se a construção de casas geminadas para a acomodação dos primeiros técnicos de Brasília.

E na faixa das 500, o perfil urbano modificou-se, transformando a área em zona comercial, apesar de em alguns pontos, a W2 continuar sendo utilizada com fins de serviços e apoio. Toda a sua extensão organiza-se em blocos geminados que obedecem ao gabarito de três pavimentos e à definição de apenas lojas no térreo e acesso independente para os pavimentos superiores. Como o início da construção de Brasília foi descontínuo, a W3 tornou-se por um período o centro da capital que se formava. Haviam bares, restaurantes, cinemas , lojas e boutiques de toda as maneiras ao longo do comércio. A calçada fervilhava de pessoas que conversavam e andavam apreciando as vitrines. Pelo seu alto movimento, mudanças de desenho urbano foram feitas, como por exemplo a instalação de estacionamentos ao longo do canteiro central e em áreas vazias. Mas com a inauguração de outros centros comerciais e principalmente dos shoppings center, na década de 80, a W3 iniciou o seu declínio.

Várias lojas mudaram-se, o número de veículo cresceu e assim seus tempos de glória foram ficando no passado. Modificações também pelo crescimento da cidade, como a implantação das quadras 900, e a definição de cruzamentos com semáforos, mudaram seu perfil e trouxeram mais problemas para o comércio local que até atualmente, vem deteriorando-se e limitando-se a atividades não essenciais. Todo o contexto mostra uma área bastante decadente que perdeu seu brilho e grita por medidas de revitalização e intervenção urbana. Sua localização, inserida dentro da zona residencial e sua representatividade no começo de Brasília, mostram que essa área tem potencial para crescer e tornar-se uma nova centralidade, mediante medidas que resolvam as dualidades e deficiências da área. (Brandão)

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A mistura de culturas, crenças e pensamentos expressava-se na grande variedade de produtos disponíveis e na crescente clientela ao longo dos anos. Na década de 70 e 80, a W3 era uma área nobre e muito movimentada tanto pelo seu comércio como pelas residências próximas nas quadras 700. Estas marcavam todo o linear da avenida com casas simples e graciosas. Baseadas em um conceito aberto, não tinham grades ou muros e se multiplicavam em suas semelhanças modernistas. Por entre os jardins, as crianças brincavam de bola, andavam de bicicleta e corriam, enquanto o comércio borbulhava do outro lado da avenida. Maria Aparecida conta: “A W3 era chique e cheia de pessoas! Tudo o que você quisesse comprar, era lá que você encontrava.” Ao se mudar para Brasília, ela conta que nos primeiros momentos passeando pela W3, ao olhar todo aquele movimento teve vontade era de morar lá. 60

Pois era onde a vida acontecia: movimento, barulhos, pessoas diferentes e de todos os lugares, novidades e carros de todos os modelos. A W3 sintetizava a Brasília do momento. Outro lugar da cidade que também trazia opções de comércio e lazer para a população era o Setor de Diversões Sul, que complementava as possibilidades de dinamismo e serviços da Plataforma Rodoviária. O conjunto de edifícios no setor começou sua construção em 1962, tendo o primeiro prédio concluído em 1966, o Cine Atlântida que tratava-se de um cinema com uma única sala de 1.160 lugares, algo inédito na época. Com a conclusão dos outros edifícios, instauraram-se vários outros cinemas e teatros na área central, como o Cine Conic, o Cine Karim, o restaurante Panorama e a Livraria Casa do Livro. No início da década de 70, Cláudia e Cristina frequentavam os cinemas, principalmente ao Cine Atlântida e Cine Conic para assistir clássicos como Tubarão e Star Wars- Episódio IV.

Mas os mais velhos contam que naquela época, a região já havia entrado em decadência, com um crescente número de estabelecimentos boêmios e voltados para o entretenimento noturno. Com isso, passear com a família em tal local, limitava-se a luz do dia, pois ao anoitecer o público já mudava. Conchita lembra:

“ "Aquela área costumava ser bastante chique, com várias boutiques e restaurantes bem frequentados. Andar pela Galeria dos Estados por exemplo era um programa bastante usual, até que um dia não dava mais."

Mas em 1971, outra novidade surgiu para os brasilienses: o Shopping Conjunto Nacional, o primeiro shopping da capital. Localizado no setor de Diversões Norte, completava o coração do Plano Piloto, conjuntamente com a Plataforma Rodoviária e o SD-S e trazia uma nova proposta para a região.

Construído em três partes, concluídas respectivamente nos anos de 1971, 1974 e 1977, (site do conjunto nacional alimentar gerenciador de bibliografia) sua inauguração trouxe para os candangos uma nova forma de comércio, até então pouco abrangente no mercado brasileiro, o shopping center. Em seus primeiros anos, o shopping não possuía muitas lojas, várias ainda estavam fechadas ou vazias. Como forte concorrente da W3, este demorou para ganhar clientela. Mas logo que os conquistou , definiu-se como um centro comercial importante, principalmente pela proximidade da rodoviária e da Esplanada dos Ministérios. Lá encontrava-se de tudo e um pouco mais. Além de todo um comércio variado com várias lojas do Rio de Janeiro, como Lojas Americanas, a casa José Silva, um enorme supermercado “Jumbo”, o atual Pão de Açúcar, e uma sede do Banco Econômico, haviam também locais disponíveis para escritórios e consultórios. Era muito comum para os habitantes comprar no comércio das superquadras e na W3.

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Figura: 12- Conic- Fonte:anualdesign.com.br

Setor de Diversões Sul A partir do início de suas atividades, entre os anos 1966 e 1970, o Setor de Diversões Sul era formado por um conjunto de prédios, organizados em galerias de lojas, galerias de serviço, mezanino e pilotis, que abrigavam variadas atividades ao longo de seu terreno. Localizado próximo ao Setor Hoteleiro e ao Setor Comercial Sul, este agia como conector destas duas regiões, que até então abrigavam os primeiros edifícios comerciais e o Hotel Nacional; um importante edifício 62 com várias atividades e funções impor ta-

-tes para a cidade, além de sua função primordial, hospedar turistas e variados representantes de embaixadas e órgãos administrativos. A ocupação de parte dos edifícios do Setor se deu por lojas, escritórios, empresas representativas e diversos órgãos governamentais e embaixadas, como a da Argentina e Canadá. Para atender a esta grande demanda de serviços pelo alto fluxo de pessoas, o comércio na região começou a instalar-se e a prosperar com atividades como cinemas, livrarias, cafés, restaurantes

e até boutiques. De modo que o local tornou-se requintado, oferecendo excelentes serviços aos seus usuários. Contudo, a partir do final da década de 70 a área começou a mudar. Os vários órgãos e embaixadas transferiram suas sedes para seus novos endereços oficiais, o comércio voltado para essa população, ao ver sua clientela mudando-se, mudou junto, e gradualmente a região esvaziou-se. Com a estabilização da W3 e a inauguração de outros centros comerciais como o Gilberto Salomão por exemplo, a concorrência cresceu bastante contribuindo assim para o início da decadência. Sucessivamente, estabelecimentos voltados para o entretenimento noturno começaram a instalaram-se como boates, prostíbulos e bares, transformando negativamente o local ao atrair públicos boêmios e marginalizados e catalisando o início da desvalorização imobiliária. No entanto, no ano de 1980, foi inaugurada a Faculdade de Artes e Teatro Dulcina de Moraes seguindo do Café Belas Artes, oque acarretou no aparecimento de um novo grupo social na região: estudantes e artistas. Somado a lojas e bares que surgiram voltadas para este público, o Conic começou a

ser palco de variadas performances e eventos artísticos por um longo período. Mas algum tempo depois, a marginalização da área cresceu novamente e várias eram o fatores que novamente o ligavam à drogas e prostitutas, de modo que começou a ser chamado de “Boca de Lixo”. Ao longo dos anos, após muitas idas e vindas de estabelecimentos, discussões sobre o esvaziamento e o declínio da área e as tipologias de ocupação do Conic, muitos projetos foram propostos para a recuperação da área e ações conjuntas entre o GDF e a Associação dos Lojistas foram postas em desenvolvimento, de forma que atualmente, não existem mais estabelecimentos transgressores e o índice de criminalidade caiu consideravelmente. Nos dias atuais, o local é ocupado por diferentes tribos de Brasília: skatistas, músicos, grafiteiros, dançarinos que representam e constroem a nova cara do Conic: a diversidade urbana. Mesmo não recebendo a devida atenção dos governo, aos poucos a região vem se reerguendo com um comércio diverso que busca a revalorização do setor e de sua imagem para a população brasiliense. (Rezende, 2014) 63


Figura: 13- Conjunto Nacional- Fonte: blogspot

A intenção, segundo Nauro Esteves era construir uma cidade coerente e harmônica, que respeitasse o Relatório do Plano Piloto. Durante o desenvolvimento do projeto, Nauro constantemente, sentava-se com Lúcio Costa para apresentar suas ideias e propostas, e de certa forma trocar conhecimentos e opiniões. Evidentemente, a última palavra sempre era de Lúcio, que rapidamente negava ideias que não condiziam com o Plano.

Setor de Diversões Norte O Conjunto Nacional foi inicialmente projetado ou projeto de pelo arquiteto Nauro Esteves, responsável por conduzir e supervisionar várias obras de Oscar Niemeyer na nova capital. A sua localização voltada para a Esplanada, contribui para o fortalecer o caráter

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articulador, simbólico e social da Plataforma da Rodoviária. Como responsabilidade do arquiteto, o projeto arquitetônico deveria seguir a ordem urbana e a linguagem modernista desenvolvida por Lúcio Costa para Brasília.

Atualmente, o shopping e a plataforma rodoviária, representam uma certa brasilidade, em um fervilhão de pessoas com variadas manifestações de condições sociais, culturais e econômicas. Entre paredes caindo, goteiras cantando e por vezes ou outra sinais de revitalização, eles continuam realizando o papel que lhes foi imposto: articular o dinamismo da crescente e mudada Brasília.

O autor (Rossetti, 2010), exemplifica um desses momentos ao explanar sobre a primeira proposta de Nauro para o Conjunto Nacional. Esta possuía grandes varandas voltadas para a Esplanada, mas não tinha letreiros e nem painéis de publicidade descritas no Relatório. Ao visualizar tal proposta, Lúcio Costa negou veemente, levando ao arquiteto à desenvolver outro projeto com as características descritas e hoje possíveis de se ver no atual edifício do Conjunto Nacional. 65


Outro local muito utilizado pelos brasilienses a partir de sua fundação em 1978, foi o Parque da Cidade Dona Sarah Kubistchek. O seu amplo espaço verde, projetado pelo arquiteto paisagista Burle Marx, oferecia aos novos habitantes circuitos variados para a prática de corrida, cooper entre vários outros esportes, um Pavilhão de Exposições que recebia e promovia eventos de todos os tipos, e havia também o parquinho Ana Lídia, um parque para crianças com brinquedos fixos de metal, que animavam e distraíam a criançada. Nos sábados Conchita levava Henrique e Eduardo para brincar lá. Era algodão doce, pipoca, piquenique, balanço, muita areia e muita diversão. Quando pequena, também frequentei muito o parque, que tinha como marco as bolas gigantes coloridas que eram vendidas comumente, as pipas de todos os modelos que ficavam voando pelo céu e o “foguete” que até hoje encanta as crianças pequenas com sua visão elevada de todo o parque. Ao lado deste parquinho havia também o “Nicolândia”, um parque de diversões 66

que animava os finais de tarde dos jovens. E por um breve momento houve uma piscina de ondas no Parque da Cidade que fazia bastante sucesso, mas logo fechou por falta de manutenção. Porém, além desses grandes espaços públicos, haviam locais menores que se destacaram nas memórias da família. Na entrequadra da 106 e 107 sul há o Cine Brasília, que na época possuía uma sala enorme com uma tela maior ainda oque era inédito e atraía muitas pessoas. “A tela deles era incrível para a época, assistimos vários filmes dessa forma diferente. Lá vivia lotado”- José Mas como, todo cinema de cidade de “interior”, os filmes demoravam à vir. Para os dias quentes, além dos clubes, a Água Mineral (1961), no Parque Nacional de Brasília, era o destino certo, pois propunha momentos tranquilos e refrescantes em meio a reserva florestal e suas piscinas, ótimo para passar o dia inteiro com a família.

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“ "O local era lindo e bem tranquilo. As meninas ficavam brincando nas piscinas enquanto eu e Lêda descansávamos na beira. Lá era tão tranquilo, que por muitas vezes, durante a semana, eu saía da 204 e ia até lá só para nadar e depois voltava."”- José No aspecto gastronômico, a família Tenreiro conta que havia um restaurante dentro de uma concessionária chamado Disbrave, que era bastante movimentado na época. O local recebia inúmeras famílias que vinham comer pizza e botar o papo em dia, enquanto as crianças se divertiam no playground. Outro clássico restaurante que até os dias de hoje está em funcionamento é o Xique-xique, com sua deliciosa comida nordestina. Além deste, estão ainda abertos o Beirute e a pizzaria Dom Bosco. No lago sul, o Centro Comercial Gilberto Salomão, inaugurado em 1967, foi igualmente destaque na vida brasiliense por muitos anos. Cláudia conta que lá existia o Roller Center, um incrível ringue 68

de patinação para patins de 4 rodas. Na época, patinação era algo que estava muito em alta e todos queriam dançar e piruetar como nos filmes americanos. O local então, era todo equipado com diferentes luzes que acompanhavam a melodia dos clássicos da época, enquanto as pessoas patinavam e se divertiam. Cristina e Cláudia durante sua infância e adolescência, por diversas vezes passaram a tarde toda lá, conversando com amigos e patinando incansavelmente. Por muitas vezes também iam patinar e desbravar as subidas e descidas das calçadas da Fonte Luminosa na Torre de TV. Patinadas estas que posteriormente, vinham acompanhadas de um pastel da torre antes de voltar para casa. O Gilberto, além do ringue, contava com o Cine Espacial, um cinema todo redondo que exibia seus filmes em quatro telas posicionadas centralmente, enquanto as pessoas se distribuíam ao redor delas, como num ringue de boxe. Era um sucesso na época, por ser tão único. Outro local que atraía muitos jovens para o Gilberto também era a Boate Zoom, que além de seu funcionamento

normal, tinha a festas matinês para os menores de idade, que aconteciam nos domingos de tarde e que Henrique e Eduardo eram frequentadores assíduos. Com relação à gastronomia, o centro comercial tinha o Gaff, um restaurante bem chique e movimentado e o Bier Fass, um tradicional restaurante de comida portuguesa que já reuniu várias pessoas importantes da cidade. Ao lado das discotecas mais badaladas do momento, eles animavam e diversificava as noites do lugar com opções para públicos variados. Atuante até os dias atuais, o Bier Fass representa a história do centro comercial Gilberto Salomão. Durante a universidade, Cláudia frequentava algumas festinhas da UnB, mas o point chique e top era a discoteca do Clube da Aeronáutica. Todos se preparavam para ir colocando suas meias altas coloridas, sandálias abertas e cabelos armados ao estilo da novela Dancing Days, que bombava na época. Com coreografias marcadas e estilos diferentes todos dançavam e se divertiam até o momento oficial da paquera começar: a música lenta. Que marcava 69 o nervosismo dos rapazes e garotas que


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que esperavam arduamente por isso. Contudo, apesar de todos esses lugares que a cidade dispunha, um local que tornou-se um grande ponto de interação social foram as próprias residências. A família Tenreiro conta que grande parte de seus momentos de lazer eram em casa, ou na casa de amigos. Com a falta de possibilidades na cidade, as superquadras com seus apartamentos e as casas tornaram-se palcos de muitos jantares, jogos de baralho e tabuleiro, festinhas de aniversário, festinhas ao som de LP`s como Legião Urbana, Jonh Travolta ou Plebe Rude, conversas longas pelas madrugadas e berço de muitas composições musicais. Lêda em vários momentos juntava-se com os vizinhos em algum apartamento para jantar e conversar, enquanto seus filhos menores brincavam pelos corredores e pelos quartos. Já Cristina e Cláudia contam que durante a sua adolescência, o programa de muitos finais de semana era se juntar na casa de algum amigo, principalmente de alguém do grupo jovem, para festinhas e rodinhas de violão, banhadas a muita conversa, paquera, pizza e Coca-Cola.

Um ponto muito interessante realçado por Cristina e Cláudia era a força dos grupos jovens em Brasília. Muitos eram os jovens e amigos com participação em algum grupo da Igreja Católica na época, no qual se evolviam em ações sociais, grupo de violeiros e coral da Igreja por exemplo. A criançada também fazia as suas festas, chamando amigos para passar o dia juntos, para organizar festinhas do pijama e para suas festas de aniversário. Estas em especial eram muito divertidas. Lêda e Cristina relatam vários fatores semelhantes de diferentes épocas neste quesito, como: eram pequenas mas cheias de temas e enfeites, as comidas eram normalmente caseiras e deliciosas e quando ocorridas em apartamentos, os corredores eram a expansão da festa. A diversão era garantida pelas próprias brincadeiras do cotidiano ou por algum mágico ou palhaço contratado para a animação. Eu me lembro bem de alguns aniversários nos quais as mesas eram todas coloridas pela quantidade de balas de côco embrulhadas, docinhos espalhados e sacolinhas de lembrancinhas 71 recheadas.


E o momento mais esperado da festa? Era com certeza o estouro do balão gigante com centenas de balas dentro. Entre empurrões e nervosismo, todos saiam felizes com seus chapeuzinhos de festa entupidos de besteira. Não havia computador, tablet e nem vídeo game direito, mas como nos divertíamos. Os vizinhos eram todos convidados, e assim a festa ia ao longo do dia com toda a sua animação e barulho sem problema algum. Barulho? Lêda fala que as pessoas não reclamavam quase nunca do barulho ou correria das crianças. Como era um hábito comum receber pessoas em casa e como a maioria dos vizinhos se conheciam, todos pareciam entender quando eventos assim aconteciam. Lógico que de vez em quando um ou outro exagerava, mas tudo era conversado e resolvido. O convívio era muito tranquilo e animado, realmente eram uma comunidade. Por várias vezes ocorriam eventos e encontros dos próprios condôminos, que se organizavam faziam acontecer. Certa vez, Massena conta decidiram fazer uma festa junina na garagem de seu bloco, 72para todos os vizinhos e convidados.

Já José lembra de suas tardes de sábado jogando futebol na quadra de esportes da 204, onde se juntavam vizinho e moradores de várias outras quadras pra jogar as clássicas “peladas”.

“As pessoas eram muito mais tolerantes e simpáticas antigamente. Todos se cumprimentavam, conversavam no piloti e dizia bom dia para o porteiro. Vivia-se muito bem!” – Lêda e Conchita Mas a realidade citada, infelizmente está realmente mudando. Vários vizinhos mal se conhecem, muitos mal se cumprimentam e barulho então é algo muito reclamado e intolerado. As justificativas são incontáveis e diversas, desde o stress, correria e cansaço do dia a dia, até preguiça e impaciência. A tristeza dessas repostas refletem a sociedade individualista e deprimida que existe hoje, que precisa urgentemente aprende a viver com solidariedade e leveza novamente.

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O dia-a-dia no trabalho

Durante as décadas de 60 e 70, Brasília recebeu muitas empresas, órgãos governamentais, embaixadas e variadas organizações em suas terras. Em sua maioria, estas vinham pela fato de ser a nova capital e a necessidade de estabelecer-se aqui. Já outros vieram com intenções de crescimento e com perspectivas novas diante de um mercado em crescimento. No Plano Nacional de desenvolvimento desenvolvido pelo BNDE conhecido como Plano de Metas, contava a mudança do Banco do Brasil para a nova capital como autoridade monetária, até a chegada do Banco Central, e com forte atuação estratégica no governo JK.

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“"Com o presidente do Banco do Brasil tendo assento no criado Conselho do Desenvolvimento, responsável pela coordenação e execução do plano de metas – e da construção de Brasília -, o Banco se viu ainda mais pressionado para cumprir a determinação presidencial de transferir sua sede para Brasília."”- (Lima, 2012) Figura: 14- Sede 1 do BB- Fonte: correirobraziliense

No caso de Massena e José, o Banco do Brasil é uma empresa Estatal com sedes e agências por todo o país. No Rio de Janeiro, os dois trabalhavam na diretoria geral, oque possibilitou a vinda dos dois para Brasília, pois a intenção do Banco era transferir todo esse setor para a nova capital e deixar no Rio de Janeiro apenas agências e localidades menores. Este fato por um momento, até tornou-se um “incentivo” aos funcionários, pois aqueles da diretoria, que não quisessem se mudar, teriam que sair deste setor e ir para estas pequenas agências, onde o crescimento de carreira era muito menor. Mas vamos voltar um pouco no tempo e entender como esses dois se conheceram e o porque do Banco do Brasil ter entrado em suas vidas. Tudo começou em 1954, quando José e Massena se conheceram durante o curso técnico de contabilidade, que na época era conhecido como científico. Ao concluí-lo, em 1960 os dois começaram a trabalhar juntos na Siderúrgica do Rio de Janeiro, onde permaneceram 75


Figura: 14- Fonte: blogspot

Figura: 15- Fonte: blogspot

por volta de 4 anos, até que em um certo dia, meu Bisavô Zé conversando com José, propôs à ele sair do atual emprego e tentar passar no concurso do Banco do Brasil e assim se fez. O banco naquela época era muito renomado, com planos de carreira e salários muito bons, de forma que ser um funcionário do Banco era sinal de muito prestígio e bastante orgulho entre as pessoas.Massena e José passaram vários meses estudando, lendo e relendo livros e treinando sua datilografia. 76

Figura: 16- Fonte: wordpress

Outros amigos como Kléber Berça também se juntaram na empreitada e além do cursinho, eles tinham aula com um funcionário do próprio Banco do Brasil Alceu João Batista, que muito preparado, se dispôs a dar aulas pros três de matemática, português e afins. Até que um dia, o objetivo de tanto esforço tornou-se realidade e eram oficialmente funcionários do Banco do Brasil. Em meio à isso tudo, um parênteses para o surgimento de um amor: Massena e Conhita.

Com a vivência, Massena era como um irmão para Zêca e sempre muito presente em sua casa, conheceu Conchita, prima dele que veio do Maranhão para morar com a família. Várias foram as idas e vindas, paqueras e desdenhos, noivados e desistências, até que um dia os dois se casaram e construíram esta história que lhes conto. Mas voltando ao Banco, o início de toda essa história sobre Brasília deveu-se à mais outras histórias baseadas em coincidências e até em certa sorte.

Figura: 17- Fonte: vitruvius

Após Conchita e Massena voltarem de Brasília em 1969, estes foram à um jantar dos diretores do Banco na época. Em meio à várias conversas, o assunto sobre a nova capital chegou e entre elogios e críticas, Conchita comentou com a mulher do diretor que tinha adorado a cidade, e que gostaria muito de morar lá. A mulher, por outro lado tinha odiado Brasília e afirmava veemente que nunca iria morar no meio do mato. Com certeza pensamentos de: Huuum, foi tudo armado vieram à cabeça. 77


Figura: 18- Fonte: latitude15.wordpress

O Edifício Sede1 do Banco do Brasil Até a pouco tempo, o Edifício Sede I do Banco do Brasil era o coração do Setor Comercial Sul. Em meio à barraquinhas de comerciantes, skatistas e muitos carros, centenas de pessoas andavam vinham e ia em frente a obra que se destacava pelos seus traços modernistas e pela vivacidade que trazia ao local. Projetado pelo arquiteto Ary Garcia Roza, 78 personagem muito importante na

arquitetura moderna brasileira porém pouco lembrado, este trabalhou ao lado de grandes arquitetos e amigos como Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e Burle Marx. Como coloca o autor Jayme Lima (2012), Roza é conhecido pela sua prática projetual tipicamente modernista presente na escolha das texturas, cores, materiais, corelação dos espaços internos e a própria tipologia dos espaços. Além disso, buscava

adequar a estética à funcionalidade, de modo

A arquitetura destacou-se na sua relação com

que ambos trabalhassem juntos para a melhor

o entorno urbano, na metodologia de projeto

adequação do programa e da obra ao meio

adotada e na importância história de represen-

urbano.

tatividade do ideal modernista em Brasília.

Uma de suas grandes obras é o Edifício Sede

O edifício define-se por uma torre que se con-

I, que representa o planejamento, a raciona-

strói sob pilotis. Os seus espaços internos se

lização e a industrialização de seus ideários.

definem entre jogos de pé direito, elementos

Com a construção iniciada em 1959, este foi

visuais como painéis de Burle Marx e jogos de

inaugurado em abril de 1960, juntamente com

luz que dão personalidade e dinamismo ao es-

Brasília, mas a conclusão de todos os pavimen-

paço. Pelo real interesse e contato do arquiteto

tos ocorreu apenas em 1962.

com o MTCo (Lima, 2012), o prédio incorpora

Conhecido como um “arquiteto de canteiro”,

fachadas livres em estrutura metálica de vidro

Ary viveu dentro do acampamento da obra da

modulada, variando-se em opacos coloridos e

sede, acompanhando de perto a construção.

translúcidos; sistema de teto removível e acústi-

E paralelamente, devido ao curto prazo para a

co e divisórias internas pré- fabricadas.Sua

sua inauguração, também continuou o desen-

base em pilotis proporcionava fluidez e visibili-

volvimento do projeto que foi progredindo

dade do espaço urbano para seus transeuntes,

ao longo da construção. Mas antes da própria

trazendo a indistinção entre espaços internos

concretização do projeto, inúmeras foram as

e externos. Toda coberta, esta área caracteriza-

dificuldades impostas. Ary Roza, inicialmente,

va-se tanto pelo encontros e interações sociais

havia ganho um concurso público para a con-

que promovia, como pelo papel de abrigo di-

strução da nova sede do Rio de Janeiro, mas

ante das intempéries da cidade.

por problemas legais e com o surgimento da

De todas essas combinações construiu-se um

nova capital, esse não foi adiante. Contudo,

monumento funcional que é parte da história

Brasília precisava de uma sede, e assim Ary

de Brasília e representante de seus ideais mod-

reivindicou sua construção. Entre opiniões do

ernistas. A sua preservação no entanto é caso

então presidente JK e do presidente do BCDE

Sebastião de Almeida e várias dificuldades, enfim sua obra seria construída.

de discussão atualmente, tendo em vista que o Banco do Brasil o desocupou, e transferiu-se para outras sedes recém construídas.

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. Mas Massena entre risos, conta que o diretor em questão era conhecido como uma pessoa que não fazia favores à ninguém, então ao saber da conversa de sua mulher nem criou esperanças e seguiu adiante com sua vida. Entretanto, em um certo instante da semana, Massena foi chamado na sala deste mesmo diretor, e este comentou: “ Ouvi que você tem muita vontade de se mudar para Brasília. É verdade?” Massena em meio a pensamentos confusos e interrogações afirmou positivo com a cabeça. “Pois bem, então você será transferido, ok?.” E assim, em meio a espanto e alegria Brasília tornou-se seu futuro. Massena seria transferido para a mesma área na nova sede, esta que o diretor e sua mulher não queriam de jeito nenhum conhecer. Mas e José em meio a isso tudo? Assim que acreditou na ideia de Brasília, falou com seu diretor e conseguiu a transferência. A transferência ocorreu de modo gradativo. Nos primeiros anos, veio o gabinete da Presidência, com alguns funcionários do posto avançado, posteriormente no 80 início da década de 70,

começaram a vir os vários setores, que mudavam-se integralmente. Este processo durou em torno de 6 anos, até sua conclusão em 1976. Os deslocamentos de funcionários em sua maioria, foram de áreas da diretoria e gerência, a qual na época era dividida em regiões: sul, norte, sudeste e assim por diante. Curiosamente, cada região se instaurou em um prédio da superquadra 204, de modo que o prédio “D” por exemplo só tinha gaúchos. Como forma de incentivo e atrativo para seus funcionários, o Banco oferecia apartamentos funcionais e a facilidade de financiamento dos mesmos à excelentes taxas. A mudança também era toda paga e entregue antes dos moradores chegarem. Além disso, com a necessidade de pessoas treinadas e qualificadas para iniciar as atividades na nova capital, os planos de carreira eram muito melhores, com grandes possibilidades de ascensão rápida. Portanto, ir para Brasília, apesar de ser uma mudança real e drástica em seu modo de vida, trazia muitos benefícios ao novos moradores bancários. Contudo, apesar de todos esses atrativos e facilidades na nova cidade, caso

a pessoa não se adaptasse de maneira alguma, o Banco oferecia até um ano depois, a sua volta completa para seu Estado de origem para seu posto efetivo, sem precisar pagar os gastos de mudança, passagem anteriores. Após a chegada na nova capital, o início de seus trabalhos deu-se no recém inaugurado Edifício Sede I do Banco do Brasil localizado no Setor Comercial Sul. A sua construção não foi fácil, o próprio arquiteto Ary Garcia Roza conta a enorme oposição dentro do Banco do Brasil contra as propostas de nova capital do presidente Juscelino. Pessoas de dentro do próprio governo eram contra e trabalhavam contra.

“"Não, faz, faz, que Brasília que nada! Aquilo é bom fazer uma agência com um pavimento, uma coisa pequena..."”- palavras do presidente do BB da época Sebastião de Almeida. (Lima, 2012)

Mas apesar de tudo, a nova sede foi construída e respirava os conceitos modernistas trazendo aos seus usuários, novas percepções de espaço, tecnologias e relações urbanas. José conta que o primeiro dia de trabalho foi uma novidade geral, além da própria arquitetura, os funcionários fora bem instalados, com salas espaçosas, um layout interessante e mobiliários novinhos. Tudo funcionava muito bem, haviam serviços como restaurante, garagem privativa e assistência médica no prédio, além da oferecida em clínicas na 716 sul. No setor de José, a maioria de seus colegas tinham se mudado também, então a adaptação não foi tão difícil. As pessoas que via sempre no Rio de Janeiro, também via em Brasília, tanto no trabalho como na superquadra. A convivência ia além do Banco, ela era diária em vários aspectos do cotidiano como pequenos momentos como o futebol, que na sua grandiosidade, estreitavam os lações profissionais. Na superquadra ou na AABB, as pessoas se conheciam muito bem e mantinham fortes laços de 81 amizade.


“Para mim não foi difícil me acostumar com a vida nova, pois muito da velha também veio. Além do Banco, eu via corriqueiramente meus colegas e amigos, vários deles por exemplo jogavam bola comigo três vezes por semana no início ou no final do expediente lá na quadra.”José Na época, poucas eram as superquadras construídas, e várias eram majoritariamente, de funcionários do Banco do Brasil ou do Banco Central por exemplo, as quadras 114 e 308 eram do BB e a 314 do Banco Central, de modo que cada qual era uma grande comunidade dentro de uma só, chamada Banco do Brasil. Diferente de outros grandes centros urbanos, onde comumente, as relações sociais restringem-se ao ambiente de trabalho e algumas confraternizações. Mas com relação à adaptação, José e Massena falam que a maioria de seus amigos e conhecidos conseguiu se adaptar bem e vivenciar o melhor de Brasília. 82

. A aceitação foi bem geral, de modo que a notícia chegou no Rio de Janeiro e gerou uma reviravolta. Aqueles que tinham vindo antes, passavam uma imagem tão positiva que o número de interessados à se mudar aumentou substancialmente, ao ponto de tornar-se mais difícil conseguir uma transferência. Como eles, vários aprenderam a gostar da cidade, em meio às suas estranhezas e encantos. Porém, houveram aqueles que não conseguiram seguir adiante, por questões psicológicas, saudades ou fatores do trabalho, de modo que voltaram para sua cidade natal. E por conta destes fatos dentro do Banco Massena e José falam que a capital começou a ficar conhecida como a Cidade dos três D`s. Brasília era conhecida como a cidade dos três D`s: o primeiro “D” era o deslumbramento. A pessoa quando chegava ficava deslumbrada com a monumentalidade da cidade, com o quão diferente ela era de tudo oque já tinham visto e com as possibilidades que ela carregava e trazia. Depois, com o passar do tempo, era o segundo “D”: a decepção.

As pessoas começavam a ficar tristes e decepcionadas, com saudades da terra natal e de uma cidade normal com esquinas, bares nas ruas e movimento de pessoas para cima e pra baixo. E por fim o terceiro “D” era a demência, quando as pessoas não aguentavam mais e tinham que ir embora, senão ficariam malucos de vez.”- José e Massena

Como dito anteriormente, o Banco era um órgão de muito respeito e nobre na época. Lêda conta que quando ia ao prédio buscar o José, ou entrar para falar com ele, ela ia toda arrumada, pois “ O banco era chique”. Como parte influente da história de Brasília, o Banco teve seu prestígio e importância política e econômica no país. Os elogios dados pela população eram algo que mostrava a solidez e qualidade da empresa na prestação de seus serviços e valorização de seus funcionários. E a mudança para Brasília mostrou isso, através de cuidados e propostas para/com seus funcionários, a transferência e adaptação dos mesmos foi bem sucedida, acarretando em um bom desenvolvimento e solidificação da empresa na nova capital.

Figura: 19- Fonte: latitude15.wordpress

Figura: 20- Fonte: photobucket

Figura 21- Fonte: vitruvius

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A cidade como patrimômnio

Para os novos moradores da época, Brasília simbolizava inovação, desenvolvimento e o crescimento do país. Contudo, acredito que não entendiam ainda o valor histórico arquitetônico e simbólico por trás desse grande plano de Juscelino. Brasília já foi parte de um sonho e uma utopia esperada e refletida por muito tempo. A sua concretização foi a soma de todas essas tentativas e esforços que lutaram e trabalharam para o sonho existir. Representante de um pensamento, de uma proposta de construir o espaço urbano e sua arquitetura, a nova capital é um símbolo cujo valor histórico é imensurável. Constituída por um leque de grandes obras do período, como Palácio da Alvorada, Congresso Nacional, Palácio do Itamaraty e a Sede I do Banco do Brasil, a cidade constitui-se de um vasto acervo arquitetônico de grandes nomes do modernismo brasileiro. Na época de sua construção, sua campanha buscou consolidar na mente da população as perspectivas otimistas de tal feito, contudo, 55 anos passados, não imaginava-se

84 Figura 22- Fonte: frombrazil.blogfolha.uol.br

a responsabilidade adquirida ao buscar preservar e manter a originalidade e essência deste símbolo brasileiro. Ao conversar com a família Tenreiro, percebe-se que em seus primeiros anos, a cidade era vista como um feito inédito, mas com presunções mais políticas e econômicas do que propriamente arquitetônicas. Na época, a real preocupação era apenas fazê-la funcionar após tantas promessas, brigas e sacrifícios. Conforme o grande volume de funcionários públicos começava a chegar e as empresas começavam a se reestabelecer em solo novo, a apreensão entre os recém chegados ia se dissipando, e a fama de Brasília ia mudando. Como falado anteriormente, a visão da nova capital, em especial pelos cariocas, era de forma geral bastante negativa. O fato do Rio de Janeiro deixar de ser capital era um absurdo na época e muitas foram as revoltas, críticas e fatos extremos, tais como funcionários largando seus empregos públicos para não serem transferidos. Contudo, na década de 70, quando ocorreu este grande movimento migratório, os novos habitantes, 85


surpreendidos, disseminaram vastas qualidades e belezas da nova capital, o que fomentou a curiosidade de vários brasileiros. Durante o primeiro ano em que a família Raposo Tenreiro morou em Brasília, várias foram as perguntas de familiares e amigos sobre a nova capital, e, a cada resposta dada, o espanto e a curiosidade só aumentavam. Eles mesmos, quando chegaram, se espantaram com suas formas únicas, homogêneas e tão diferentes de tudo. Após viver a vida inteiro no Rio, uma cidade tão aberta e homogênea como Brasília era algo para se estranhar e se perder diariamente. Até se acostumar e entender a lógica da cidade, Lêda conta que decorava as cores dos prédios e as lojas das comerciais para saber em que quadra estava.

Vir para o interior do país era difícil à época. Além de ser caro viajar de avião, o aeroporto da capital ainda estava em construção, apresentando-se apenas como uma edificação temporária em madeira, o que tornava baixo o número de vôos para a região. Com isso, as únicas possiblidades de se viajar na época eram de ônibus ou de carro. No caso dos meus bisavós, Elizabeth e Francisco, pais de Lêda, e Zara e José, pais de Zeca, foi na rodoviária que eles pisaram pela primeira vez em Brasília, exceto José que havia vindo à Brasília com Massena e Zeca anos antes. Na época, ao desembarcar, todos ficaram espantados com o tamanho da cidade. Nunca haviam visto nada igual. Por ter sido construída em tão pouco tempo, a sua organização era de se espantar.

Mas após se estabilizarem e conhecerem um pouco mais a cidade, a partir de 1971, os primeiros turistas da família começaram a chegar e logo vieram também os amigos, colegas e conhecidos que queriam conhecer a tão famosa Brasília.

Conchita e Lêda contam que todos adoraram a superquadra e os lindos apartamentos em que moravam, pois estes realmente significavam um grande triunfo. O fato de todos os prédios parecerem iguais foi estranhado no começo, mas logo começaram a entender suas diferenças e a ver a beleza por trás disso.87

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Para passear pela cidade, Lêda era a guia turística oficial. E o roteiro turístico era completo começando pela Esplanada, onde pararam pra ver a Catedral e seus anjos pendurados; o congresso Nacional, onde visitaram o Senado, a Câmara e o Palácio do Itamaraty, que surpreendia pela beleza de sua escada, de seus painéis de Athos Bulcão e seus amplos espaços internos. Seguindo pelo Eixo Monumental, a Torre de Tv era parada obrigatória, onde, para o encanto de todos, era possível ter uma vista incrível de Brasília. A partir daí, o passeio seguia-se pela Igreja Dom Bosco, com o luxo de seus vitrais azuis e seu lustre escandaloso e ia até o Catetinho, onde todos queriam ver a casa onde Juscelino Kubistchek e vários dos construtores de Brasília moraram durante a sua construção. Ao longo dos dias, os passeios seguiam pelos locais do dia-a-dia das famílias, passando pela movimentada Avenida comercial W3 sul, pelo Gilberto Salomão e pelas pontes do lago, que sempre 88

eram complementados por almoços, jantares, conversas e momentos em casa. E assim, ao fim das visitas, todos voltavam para suas casas definitivamente surpreendidos pelo fato de concluírem que a capital era mesmo tudo aquilo que tanto Juscelino, Oscar, Lúcio e tantos outros falavam: um símbolo da modernidade. Símbolo este que com o passar dos anos ganhou notoriedade pela sua população e por estudiosos, que passaram a compreender o valor histórico arquitetônico compreendido em suas construções e em seu desenho urbano, ao ponto que, em 1987, Brasília foi classificada como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela UNESCO, tornando-se a única cidade construída no século 20 à receber tal honraria. (Seu history, 2015)

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Após tantos relatos e histórias, ouvidas e contadas pela família Raposo Tenreiro, é latente as diversas mudanças que ocorreram na cidade, principalmente para aqueles que vivem aqui há algum tempo. Ao observar o cenário atual, parece que vivemos em outra Brasília, pela diversidade de espaços e relações que mudaram e se transformaram ao longo dos anos. Claro, nem que todas as mudanças foram negativas, muitas trouxeram avanço, melhorias e qualidade para seus habitantes atuais. Mas várias mostram o reflexo da sociedade atual e seu valores crescentes. A mudança é algo inevitável. Uma cidade é um organismo vivo que adapta-se e modifica-se ao longo dos anos de acordo com as necessidades impostas por seus usuários.

No caso de Brasília, em especial o Plano Piloto é possível perceber essa distinção, tanto pela drasticidade apresentada, como pelas sutilezas até então não notadas. Por um bom tempo, acredito que Brasília seguia o caminho da pessoalidade humana e da apropriação criativa e consciente dos espaços urbanos. Mas pelo dinamismo da sociedade atual, pela cultura crescente da impessoalidade, do materialismo e do temporariedade, Brasília vem perdendo um pouco de sua essência e sua personalidade. No caso das superquadras, percebe-se que em sua primeiras décadas a vida ali cresceu como Lúcio planejou. Em sua unicidade, esta criou comunidades que compartilhavam e construíam relações de amizade e intimidade e proporcionou aos

Mudando o foco da capital

90 Figura 23- Fonte: wikipedia

Valores são revistos, costumes são mudados e culturas se transformam ao ponto que torna-se necessária a variação e readaptação do contexto urbano. Contudo, várias dessas transformações não são sempre positivas.

seus habitantes uma qualidade de vida excelente em comparação aos vários outros centros urbanos do país. Entre tantas qualidades presentes, havia uma especial que definia a vida ali: a liber91 dade.


Nas décadas de 70, 80 e em parte da 90, essa sensação foi um dos maiores triunfos da infância e crescimento de várias crianças e famílias na superquadra. Estes privilegiados, como os defino, puderam aproveitar ao máximo os espaços abertos existentes, desde seus grandes montes de terra vermelha até seus vastos verdes gramados, desde suas quadras de esportes que sediavam mais jogos que muitos estádios por ai, até os pilotis, que foram o palco de muitas vidas, muitos amores, amizades, muitas brincadeiras e muitas festas. Em especial, este traço modernista que tinha como intenção a fluidez da paisagem e o vai e vem de pessoas, completou muito bem seu papel e traduziu a vida social dessa época. O pilotis foi o palco da superquadra, palco da infância de inúmeras crianças, como Cristina, Cláudia, Henrique, Eduardo, Mariana e minha, onde construímos nossas histórias, nossas fantasias, nossos amores e nossos sonhos. Foi palco também da vida de mães, pais, tios e tias que lamentavam ou comemoravam suas novas trajetórias, 92

sua conquistas e seus fracassos ou até mesmo suas novas receitas e novidades do dia-a-dia. O pilotis refletia a essência da superquadra que se construía em suas relações e motivações, em suas brigas e reflexões. No entanto, esta superquadra parece não ser mais realidade. A violência aumentou, o volume de trânsito também e a cidade explodiu em população, deixando a vida mais corrida e estressada. A tranquilidade que existia não se encontra mais como antes. Atrelada ao enorme boom da tecnologia e suas

facilidades, hoje não se vê mais tantas crianças correndo pela quadra, jogando bola, bet ou pique-bandeira. A famosa frase “Vou descer” parece que não faz mais parte do vocabulário infantil da quadra. Os vizinhos mal se cumprimentam e vários evitam elevadores ocupados para não interagirem com outras pessoas. Reclamações sobre barulho e correria são corriqueiras e música alta então nem precisa comentar. Sentar no pilotis pra conversar parece que se tornou um crime em alguns prédios e a criançada então, correr e brincar nem 93 pensar.


A vida antes agitada, tornou-se monótona. O espírito de comunidade antes existente, tornou-se individualista. Com certeza a qualidade de vida no Plano Piloto ainda é elevada, mas a vida mudou bastante nesses anos. Entre problemas sociais, a arquitetura também está sendo desvalorizada. Muitos edifícios das superquadras estão sendo descaracterizados de seus aspectos originais. Cobogós e brises estão sendo retirados, revestimentos sendo colocados de maneira imprudente e pilotis estão sendo fechados. A arquitetura como influente direto na vida das pessoas deve se adaptar às novas necessidades e mudanças impostas, contudo deve ser respeitada em seus traços históricos que lhe dão identidade e contam a história da cidade. No caso dos espaços públicos, vários deles passaram por fortes momentos de deterioração e abandono, como o Cine Brasília e o Conic por exemplo. E outros ainda permanecem neste estado, como é o caso da W3 sul. O cine Brasília hoje está lindo e bem preservado. Rotineiramente, exibe filmes e promove eventos 94 culturais no local.

Após anos em estado lamentável, a sua restauração o inseriu de volta a vida social da cidade. Já o Conic encontra-se no meio do caminho em sua recuperação. Várias lutas foram travadas para a renovação e revalorização de seu espaço pela população, e hoje cresce na variedade de seus serviços e em sua participação na cultura urbana da cidade, sendo palco de variadas manifestações de dança, teatro, música e manobras de skate. O caso da w3 é um ponto complicado. Há algum tempo, tinha o papel de centro comercial da cidade, palco de diversidade e novidades, mas hoje está em completo estado de abandono. Sua variada coletânea de lojas não existe mais, sua vivacidade morreu e seus prédios estão caindo aos pedaços. A situação é deprimente, pois seu potencial é enorme assim como sua importância na história de Brasília. Porém, há também aqueles lugares que cresceram e ainda são fortes influentes no cotidiano da cidade como o Gilberto Salomão, o Conjunto Nacional e o próprio setor de clubes. Figura: 01- Rodviária do Plano Piloto

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O Gilberto Salomão, ao longo dos anos tornou-se palco de badaladas festas e boates noturnas da cidade. Por vezes, o complexo já aglomerou quatro boates simultaneamente, oque tornava suas noites vivazes e dinâmicas. Pelo período do dia, oferece um comércio bom e variado com lojas e restaurantes à dispor da população e constantemente, promove feiras populares em seu espaço. Já o Roller center e o Cine Espacial não existem mais. No Setor Comercial Norte, o Conjunto cresceu e tornou-se figura principal nessa área ao atender rotineiramente, o Setor Comercial Norte e Sul, a Esplanada dos Ministérios e os Setores Hoteleiros Norte e Sul. A força dos shopping centers invadiu Brasília, que ao longo das décadas recebeu o Park Shopping, Brasília Shopping, Pátio Brasil shopping, Liberty Mall, Iguatemi Shopping entre outros. Este novos centros comerciais tonaram-se o destino de lazer dos brasilienses, de forma que vários cinemas de rua fecharam, a variedade de lojas nas comerciais diminuiu e a própria W3 por exemplo enfraqueceu. 96

Entre vai e vem de pessoas, este espaço urbano representa hoje oque Lúcio Costa falou: “Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente.” (Costa, 1987) A Plataforma rodoviária juntamente com o Conjunto e o Conic mostram a brasilidade da cidade, agregando pessoas de várias locais do entorno e do próprio Plano Piloto. Suas características são marcantes, pois é caminhando por ali que você se depara com ambulantes vendendo roupas, capinhas de celulares e comidas, alguns gritando os preços outros com a música no último volume. Com certeza a área é vivaz, pois mesmo após vários problemas apresentados, ela ainda é um grande atrativo e agregador da população. No caso do setor de clubes, estes ainda são fortes destinos da população brasiliense. Vários dos clubes que antes eram somente para funcionários e família, como a AABB e o ASBAC, hoje não são mais e recebem um público bastante variado em busca de aproveitar suas piscinas, churrasqueiras, quadras de esporte, shows e o próprio lago.

Figura 24- Fonte: photoshelter.com

No âmbito cultural, muitas das festas tradicionais dos clubes como os bailes dançantes e os famosos bailes de carnaval quase não existem mais, e hoje seus espaços são utilizados para shows, eventos e festas atuais. Mas o lago em especial, tem ganhado destaque e se tornado um dos principais pontos de destino da cidade.

Ao trazer possibilidades de lazer como stand-up, Jet skies, pesca e passeios de lanchas, ao lado da prática de esportes como remo, vela e natação, este mostra-se cada vez mais inserido no cotidiano da população. Por fim, outro local que continua sendo muito utilizado é o Parque da Cidade, que oferece espaços bem conservados para a prática de esportes, a promoção de eventos bastante

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variados e locais para as crianças se divertirem como o parque eletrônico Nicolândia e o tradicional parquinho Ana Lídia que vem fazendo parte da infância de muita gente. De maneira geral, ao analisar o Plano Piloto acredito que este ainda vive o momento que Lúcio Costa aponta em sua visita à cidade em 1987:

“"Vendo Brasília atualmente, o que surpreende, mais que as alterações, é exatamente a semelhança entre o que existe e a concepção original. É exatamente na concomitância destas duas contingências que reside a peculiaridade do momento crucial que Brasília hoje atravessa: de um lado, como crescer assegurando a permanência do testemunho da pro- posta original; de outro, como preservá-la sem cortar o impulso vital inerente a uma cidade tão jovem".”

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Diante de todos esses anos de histórias e relatos sobre como era viver a Brasília de outras décadas, observo como esta, apesar de nova, vem mudando rapidamente. A relação da cidade com as pessoas está em constante transformação, e hoje mostra-se de uma forma muito diversificada com relação à anteriormente. Os brasilienses tem descoberto novas forma de explorar e utilizar os espaços, como feiras ao ar livre, shows, manifestações artísticas e gastronômicas.

outras que virão e crescerão, pois entre estes concretos e tijolos, estão presentes detalhes de sonhos, superações e dificuldades que Brasília e toda a sua população viveram e viverão..

“A cidade, que primeiro viveu dentro da minha cabeça, se soltou, já não me pretence, pretence ao Brasil.”- Lúcio Costa-1987

No entanto, em questões arquitetônicas, várias características originais permanecem mas muitas outras estão sendo perdidas ou estão em situação alarmante. Diante de um governo pouco preocupado com a preservação histórica da cidade, esta vem sendo modificada aos olhos dos interesses econômicos e políticos, em desconsideração com sua valorização histórica. Portanto, como cidadãos brasilienses nascidos ou de coração, é nosso dever lutar pela preservação de nossas memórias, de nossas histórias e do palco de muitas 99


Brasília realmente representava algo diferente e moderno para o futuro. Para aqueles pioneiros que trabalharam em sua construção, ela representava um sonho de mudança de vida, um Brasil melhor para sua família e pessoas amadas. Para os “caipiras” da região do Planalto Central, ela representava o progresso, a visibilidade e o desenvolvimento de uma terra até então bastante esquecida pelo litoral. E para os novos habitantes, aqueles que chegaram para impulsioná-la, ela era uma possibilidade carregada de incertezas e esperanças. Para todos, a cidade ia além de sua arquitetura modernista, de sua representatividade no cenário internacional e nacional ou de sua importância pelos grandes nomes que a construíram.

o seu crescimento como pessoa, como pai\mãe, como avô\avó e principalmente como brasiliense, de modo que ao final, estava repleta de momentos pessoais marcados em suas construções, carregados de sentimentos e memórias. Ao coletar as histórias da família Raposo Tenreiro, foi possível ver claramente essa relação estreita do espaço vivido com as pessoas. Durante as conversas, sentimentos e percepções da cidade se expunham verdadeiramente através das memórias e fotografias, de forma que eram visíveis as reais conexões existentes e construídas ao longo de suas experiências com os lugares. A frase “memória puxa memória” a cada representa bem o vivido, tendo em vista que novo fato contado, mais outros três eram

Diante de todo o trabalho, a fotografia mostrou-se essencial como objeto de representação visual e análise. A sua presença trouxe diferentes percepções e interpretações dos contextos urbanos contatos e paralelamente, o relato das memórias trouxe outras percepções das fotos. Esta via de duas mãos enalteceu os vários momentos e mudaram pontos de vistas sobre o papel da fotografia como objeto de memória. A afirmação “uma foto vale mais que mil palavras”, não define-se mais após este trabalho, pois a riqueza gerada pelo trabalho conjunto das palavras e das fotografias, vale por muito mais que mil palavras.

vivo e sensível, capaz de engradecer as relações humanas. Em suas primeiras décadas, Brasília seguia o caminho para a vivacidade intencionada. A relação das pessoas em seus diferentes âmbitos era um sinal disso. Mas no quadro atual, apesar da intensidade de fluxo de pessoas nos setores centrais, da intensidade de troca e prestações de serviços, no crescimento apresentado em sua zona central e periférica, acredito que as relações pessoais dentro da cidade vem se perdendo. E a riqueza por trás da vivencia dos espaços urbanos vêm sendo deixada de viver.Na conjuntura atual de desvalorização da memória e do patrimônio cultural, observa-se a falta de consciência por parte da população e do entendimento por trás de toda essa preocupação.

Considerações Finais Para eles ela era a sua futura morada, o seu futuro lar que se tornaria palco de suas histórias e coadjuvante em suas vidas. Entre risos, choros, nervosismo e medos, a cidade acompanhou todos os seus sentimentos, 100

lembrados, e dessa forma seguia-se em

um círculo sem fim. Com o apoio da fotografia então, as conversasse engrande-

ciam e acabavam em lágrimas e sorrisos espontâneos.

Todos esses pontos expostos, levam a acreditar que o objetivo de Lúcio Costa relatado em seu Relatório do Plano Piloto (1956) estava se concretizando, cuja intenção era de criar uma cidade que além de organizada e eficiente, fosse um local

Cabe portanto, aqueles que não perderam a esperança, em tentar recriar laços identitários entre a população e seu meio, entre netos e avós, entre o presente e o passado.

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Referências

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