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CARTA DE SÃOP ULO V

REVISTA DA ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE SÃO PAULO

ANO 25 | NO 1 MARÇO 2018




SUMÁRIO

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EDITORIAL Sandra Arruda Grostein e Carmen Silvia Cervelatti

PAI-VERSÕES 12

Abertura das VII Jornadas Angelina Harari

18

O pai, um impossível de suportar Pierre Naveau

SERVIR-SE DO PAI 24

“Prescindir do Pai com a condição de servir-se dele” Luiz Fernando Carrijo da Cunha

36

Pai: exemplo de transgressão Renato Andrade

44

Revisitando o conceito de perversão Gustavo Oliveira Menezes

PAI: DO UNIVERSAL AO SINGULAR 52

Pluralização Luis Tudanca

62

Duas versões do gozo Eduardo Suárez

68

Os nomes do pai e as identifi cações do sujeito Maria Cecília Galletti Ferretti

74

O pai do Homem dos Lobos Carmen Silvia Cervelatti


DO DECLÍNIO DO PAI 84

“Vestígios da evaporação do pai” Patrícia Badari

90

A droga do toxicômano Jésus Santiago

96

A segregação em tempos de hiperconexão e de declínio do pai Antonio Alberto Peixoto de Almeida

102 Père-version: a função paterna na era do Outro algorítmico Julio César Lemes de Castro PAI IMAGINÁRIO, SIMBÓLICO E REAL 112

O pai imaginário Daniela de Camargo Barros Affonso

120 O pai simbólico Sílvia Sato 128 O pai real Maria Helena Barbosa ENSINO DO PASSE 132 Quando se estraga a função paterna Maria Josefina Sota Fuentes 138 Comentário do passe de Maria Josefina Sota Fuentes Elisa Alvarenga 142 1, 2, 3 e... (em andamento molto vivace) Sérgio Laia 148 Comentário do passe de Sérgio Laia Elisa Alvarenga DO AMOR E DO SEXO 152 O homem que queria ser normal Christiane Alberti


SERVIR-SE DO PAI

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REVISITANDO O CONCEITO DE PERVERSÃO Gustavo Oliveira Menezes

Associado ao CLIN-a

RESUMO O autor retoma o conceito de perversão desde a elaboração freudiana, passando pelas primeiras formulações de Lacan sobre o tema até seu último ensino, momento que aparece o termo pai-versão. De uma posição subjetiva ao lado da neurose e da psicose, a perversão destacará o modo particular de gozo enlaçado à função do Pai e à lei do amor, suplência da não-relação sexual. PALAVRAS-CHAVE perversão; modo de gozo; não-relação sexual; pai-versão.

REVISITING THE CONCEPT OF PERVERSION Gustavo Oliveira Menezes

ABSTRACT The author re-exames the perversion concept since Freud’s work, leading us to Lacan’s early formulations on the subject, until his last teaching, when he comes with the term père-version. From a subjective position besides neurosis and psychosis, perversion emphasizes the particular way of jouissance entwined to the paternal function and the law of love, substitution of the non-existent sexual relation. KEYWORDS perversion; way of jouissance; non-existent sexual relation; père-version.

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Se Lacan propõe a père-version (pai-versão) a partir de sua homofonia com perversion, é precisamente porque há algo na perversão que se deve levar em conta: “toda sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o que diz Freud (...), e é justamente nesse aspecto que interrogo a fecundidade da psicanálise” 1. Pela perversão o homem é confrontado com sua própria divisão. Ela reflete a abertura do desejo humano, desejo apreendido do Outro. A experiência freudiana nos ensina que esse desejo do qual tratamos numa análise é um conceito proveniente das relações paradoxais por si mesmas. Freud parte, assim, do desejo perverso. É a partir daí que se abre toda questão do corpo e do encontro com a linguagem. Muito além de uma posição subjetiva, a perversão, para a psicanálise, é uma condição de gozo, é um desvio do gozo a partir do encontro contingente de lalíngua com o corpo2. Retorno a Freud Pai e perversão aparecem juntos já no início da obra freudiana3. O pai perverso, sedutor e traumático seria condição, sobretudo na histeria. Em seguida, Freud faz um giro e é o plano da fantasia que aparece. De maneira geral, podemos dividir a reflexão feita por Freud ao menos em três momentos distintos e complementares: (1) em 19054, quando ao lado da pulsão perverso-polimorfa há a ideia da perversão como negativo da neurose. É nesse momento que Freud diz que “a onipotência do amor talvez nunca se mostre com maior intensidade do que nessas aberrações”5 (voltaremos a esse ponto); (2) após 19196, colocando um olhar sobre o núcleo do Complexo de Édipo, nas fantasias sádicas e masoquistas7; (3) e, finalmente, a partir de 19278, quando aparecem os conceitos de Verleugnung e de divisão do Eu9, em que através do objeto-fetiche se discute a castração e a impossibilidade de reconhecer a falta na mulher.

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Sendo seu mecanismo o desmentido da castração, concebendo ao mesmo tempo que rejeitando a diferença sexual, o perverso coloca em dúvida as teorias sexuais de universalização do falo. Para Freud10 é um impasse: o sujeito não faz outra coisa senão deslocar o valor do corpo feminino e não modifica sua percepção corporal. O fetichista, porém, detém-se a certo ponto da investigação do que é uma mulher. Com Lacan Num primeiro momento, Lacan, assim como Freud, coloca a questão da perversão ligada ao complexo de Édipo e ao momento pré-edipiano. O objeto fetiche aparece como paradigma, assim como a função metonímica da perversão. Lacan11 afirma que o fetichismo pode aparecer como uma solução imaginária, caso o simbólico venha a falhar. O fetiche, a partir da função do véu, articula a relação que será essencial para a criação da mãe fálica no plano simbólico. A mulher não possui o falo simbólico, mas ela o tem na falta. Desmentindo, abrindo e fechando a cortina, a mulher pode ou não perdê-lo. Mais tarde, nos anos 1960, a partir da fantasia perversa, vemos que o sujeito possui um meio de gozar, um gozo localizado e um saber-fazer com esse gozo12, o que aparece nas montagens perversas. Sade visa a angústia do Outro, mas não vê que ali se esconde a busca pelo gozo do Outro, e através da fantasia, fragmenta o corpo do parceiro: em seus romances, terminamos sempre em fragmentações. Não podemos gozar senão de uma parte do corpo do Outro13. Perversão: uma questão sobre os modos de gozo É a partir da fantasia que podemos dizer que o sujeito perverso se oferece lealmente ao gozo do Outro14, em se fazendo objeto ao 9


identificar-se ele mesmo com o objeto pulsional. O perverso crê no Outro livre da castração15 e ao se fazer objeto tenta restituir o gozo ao corpo, ponto de disjunção do campo do Outro ao qual tenta escapar. Sua suposição é a de que este gozo alcançaria uma intensidade da qual ele é radicalmente separado. Se o corpo está implicado na perversão, é a partir do louche refus que a especifica. Entre corpo e gozo, lá estará o perverso16. Mas, como alerta Lacan, “é o Outro que goza” 17, este não fica indiferente. Gozar do corpo do Outro só seria possível ao reduzi-lo ao Um. É o sonho do perverso, que os dois corpos façam um, que ele e seu parceiro façam uma só carne, provando que um corpo pode se enrolar em torno de um outro. O gozo do Outro não pode ser afirmado ou encontrado, exceto no imaginário e nas crenças que o perverso desdobra incessantemente. Assim, esse gozo do Outro, da relação sexual, sadiano e objetivo, é apenas elucubração: o que vem em seu lugar é o gozo fálico, não há outra significação senão a fálica. A perversão é, portanto, uma questão dos modos de gozo: o sujeito goza de algo, mas este algo goza? “Se colocar a questão do gozo feminino, é abrir a porta de todos os atos perversos.” 18 A questão é como um homem pode gozar do corpo de uma mulher como encarnação do Outro sexo. Tenta-se assim fazer existir A mulher, fazê-la toda, liberada da função fálica, garantindo a conjunção do corpo e do gozo, sem perda. Portanto, o perverso não persegue o não-todo do gozo feminino, pelo contrário, ele é, através de seu fantasma, preso em uma lógica do todo. Desmentindo o não-todo, afirma que há o Outro e que seu gozo é todo apreensível. Ele visa o gozo d’A mulher – que não é o gozo suplementar da mulher que não existe. A experiência perversa ressalta isso, ponto do qual ele não pode digerir: o feminino como não-todo. Resta então um fracasso, um impossível: do ponto de vista objetivo, a não-relação se mantém. Por isso posteriormente Lacan 10


afirmará que “quando o homem quer A mulher, ele só a alcança ao encalhar no campo da perversão” 19. O erro do perverso é crer que o Outro é incompleto e abrir imaginariamente o inventário dos modos para completá-lo; seu fracasso demonstra, no entanto, que o Outro na verdade é inconsistente, o que articula o discurso ao Real. Ⱥ Mulher é um dos nomes disso. Ele falha, o gozo permanece interditado e, como consequência, aparece a angústia no parceiro. O protótipo da pai-versão É no último ensino de Lacan que perversão e pai ganham novo enlace: perversão quer dizer “versão em direção ao pai”20. Lacan o faz a partir de Joyce: “Na medida em que há relação de filho com pai, surge essa ideia tresloucada do redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho”21. Na perversão, o desejo é o próprio suporte da lei, o que faz com que a vontade de gozo no perverso fracasse22. Como demonstra a tradição cristã, o sacrifício é em prol do Pai e é por isso que Lacan cita Sade, para dizer que, para ele, a relação com Deus, o Ser-supremo-em-maldade, como diz em seus livros, é sempre para realizar o gozo de Deus. A perversão tem sempre alguma relação – e isto temos que ter no horizonte – com a castração. É no Outro que se deposita um suposto-gozar e é nisso que “o perverso é um defensor da fé, um auxiliar de Deus, um crente a serviço do sujeito suposto saber absoluto: o Outro não barrado”23. É o que Lacan sublinha em Freud: a castração como o falo transmitido de pai para filho; mas, por ser uma transmissão simbólica, algo se perde. Assim, pai-versamente orientado, o pai é aquele que transmite a causa de desejo em sua particularidade. Ele “faz de uma mulher objeto a que causa seu desejo”24. Ele o faz a partir de sua perversão particular25. É uma fundação do pai a partir da mulher, e não da mãe. Em certo sentido, essa ideia está presente em Freud 11


ao tratar do fetichismo. Ele destaca o importante papel do pai, ao qual a criança atribui a castração da mulher, mantendo assim as duas posições até então inconciliáveis: “a mulher conservou seu pênis e o pai castrou a mulher”26. Do amor ao pai à Lei do amor Se a pai-versão foge à universalização, ao mesmo tempo “é a sanção do fato de que Freud faz tudo se ater à função do pai”, “o amor e, ainda por cima, o amor que podemos qualificar de eterno, se endereça ao pai, em nome disso, de ele ser o portador da castração”27. Conserva-se assim algo da metáfora paterna e, ao mesmo tempo de uma inscrição singular de gozo. A lei freudiana, edipiana, do amor ao pai, Lacan substitui pela pai-versão. Chega a essa formulação logo após citar o cair como uma casca, de Joyce. Há em Freud outra referência a esse deixar cair no caso da jovem homossexual, que Lacan retoma. O deixar cair resume-se na palavra niederkommt: “Esta palavra indica metonimicamente o termo último, o termo de suicídio, onde se exprime na homossexual o que está em questão, e que é o único motor de toda a sua perversão, a saber (...), um amor estável e particularmente reforçado pelo pai”28. Lacan dirá que a jovem queria demonstrar ao pai o que é um verdadeiro amor, a possibilidade de amar alguém por aquilo que não se tem, o falo simbólico, aquele que a dama jamais poderia lhe dar. “Este amor estando em conexão com o nada, podemos dizer que Lacan aproxima do fetichismo”29. Por ser um pai simbólico, ele é correlato ao desejo. Lacan diz que Freud reconhece no niederkommen a identificação do sujeito com o falo materno. O suicídio é o “supremo esforço”30 da jovem para dá-lo ao pai. Ele especifica que é uma identificação com o objeto a no mesmo momento que se consuma “a conjunção do desejo com a lei”31. Trata-se, efetivamente, da lei como desejo

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do pai. Sua perversão consiste no fato de ela colocar o significante no lugar do que falta no Outro. Em que medida não poderíamos pensar ali algo pai-versamente orientado? “A Lei da qual se trata, (...) é simplesmente a lei do amor, isto é, a pai-versão”32. Por meio da pai-versão enoda-se gozo e linguagem33. Essa lei do amor é o que faz função de suplência à não-relação sexual, indicando e recobrindo um furo impossível. Retomar o conceito de perversão desde Freud, visando o que Lacan constrói em seu último ensino, é poder servir-se do que a psicanálise tem de mais luminoso. Por fim, como ponto sem conclusão, fica o exemplo de Freud. Aquele brilho no nariz34 é ligado ao desejo por uma mulher, para aquele que, quando criança, olhara a castração feminina.

NOTAS 1

Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.149.

2

Miller, J.-A. “O real no século XXI”. In: Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p.30.

3

Freud, S. “Carta a Fliess 112 [52]. 6 de dezembro de 1896”. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2016.

4

Freud, S. “Três ensaios sobre a teoria sexual” (1905). In: Obras completas, v.7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

5

Idem, p. 152.

6

Freud, S. “Bate-se numa criança” (1919). In: Neurose, psicose, perversão, cit.

7

Freud, S. “O problema econômico do masoquismo” (1924). In: Neurose, psicose, perversão, cit.

8

Freud, S. “Fetichismo” (1927). In: Neurose, psicose, perversão, cit.

9

Freud, S. “A cisão do eu no processo de defesa” (1938). In: Compêndio de Psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

10

Idem.

11

Lacan, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

12

Castanet, H. La perversion. Paris: Anthropos-Economica, 1999.

13

Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

14

Lacan, J. O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

13


15

Idem.

16

Castanet, H. La perversion, cit.

17

Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973), cit.

18

Lacan, J. Le Séminaire, livre XIV, La logique du fantasme (1966-1967, inédito).

19

Lacan, J. “Televisão” (1974). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.535.

20

Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976), cit., p.20.

21

Idem, p.82.

22

Lacan, J. O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963), cit., p.166.

23

Castanet, H. “L´Un et l´Autre ou surprise e perversion”. In: Latterina – Archives, n.1. Rouen/ECF/Paris, 1993, p.51.

24

Lacan, J. Le Séminaire, livre XXII, RSI. Lição de 21 de janeiro de 1975. (Inédito)

25

Laurent, E. “Um novo amor pelo pai”. In: Opção Lacaniana n. 46. São Paulo: Eolia, 2006. p. 23.

26

Freud, S. “Fetichismo” (1927), cit., p.322.

27

Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976), cit., p.146.

28

Lacan, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-1957), cit., p.150.

29

Miller, J.-A. “La relation d’objet, troisième lecture: cours du 16 mars 1994”, in Filum/Bulletin Psychanalytique de Dijon, nº2. Dijon: ECF, 1994c, p.17.

30

Lacan, J. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p.498.

31

Lacan, J. O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963), cit., p.124.

32

Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976), cit., p.147.

33

Gayard, S. “Pai-versões”. In: Scilicet: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p.241.

34

Freud, S. “Fetichismo” (1927), cit.

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