Boletim do Museu Paraense EmĂlio Goeldi CiĂŞncias Humanas
v. 11, n. 3 setembro-dezembro 2016
BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (ISSN 2178-2547) Imagem da capa Visão da Feira do Açaí a partir do Forte do Presépio, em Belém. Foto: Rodrigo Peixoto
O Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia foi criado por Emílio Goeldi e o primeiro fascículo surgiu em 1894. O atual Boletim é sucedâneo daquele. The Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia was created by Emilio Goeldi, and the first number was issued in 1894. The present one is the successor to this publication.
EditorA CientíficA Jimena Felipe Beltrão Editores Associados Alegria Benchimol - Museu Paraense Emílio Goeldi - Museologia Candida Barros - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Claudia López - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Cristiana Barreto - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - Arqueologia Flávia de Castro Alves - Universidade de Brasília - Linguística Hein van der Voort - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Jorge Eremites de Oliveira - Universidade Federal de Pelotas - Antropologia Martijn van den Bel - Universiteit Leiden - Arqueologia Mily Crevels - Universiteit Leiden - Linguística Priscila Faulhaber Barbosa - Museu de Astronomia e Ciências Afins - Antropologia Richard Pace - Middle Tennessee State University - Antropologia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Ângela Domingues - Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - Portugal Bruna Franchetto - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Eduardo Brondizio - Indiana University - Bloomington - USA Eduardo Góes Neves - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Gustavo Politis - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires - Tandil - Argentina Janet Marion Chernela - University of Maryland - Maryland - USA Klaus Zimmermann - Universidade de Bremen - Bremen - Alemanha Marcos Chor Maio - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil Maria Filomena Spatti Sândalo - Universidade Estadual de Campinas - Campinas - Brasil Michael J. Heckenberger - University of Florida - Gainesville - USA Michael Kraus - Universidade de Bonn - Bonn - Alemanha Neil Safier - The John Carter Brown Library - Providence - USA Nora C. England - University of Texas at Austin - Austin - USA Rui Sérgio S. Murrieta - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Tânia Andrade Lima - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Walter Neves - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil William Balée - Tulane University - Louisiana - USA
NÚCLEO EDITORIAL Normatização - Arlene Lopes, Daniele Alencar, Rafaele Lima e Taise da Cruz Silva Revisão ortográfica - Antonio Carlos Fausto da Silva Júnior e Rafaele Lima Editoração, versão eletrônica e capa deste número - Talita do Vale
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Museu Paraense Emílio Goeldi
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas
ISSN 2178-2547 Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi
Cienc. Hum.
Belém
v. 11
n. 3
p. 563-809 setembro-dezembro 2016
Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Núcleo Editorial - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral, 1901 Terra Firme – CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2016. – Belém: MPEG, 2016. v. 11, n. 3., v. il. Semestral: 1984-2002 Interrompida: 2003-2004 Quadrimestral a partir do v. 1, 2005. Títulos Anteriores: Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia 1894-98; Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (Museu Goeldi) 1902; Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia 1906-1914; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi de História Natural e Etnografia 1933; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 1949-2002; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, em 2005. A partir de 2006, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. ISSN 2178-2547 1. Antropologia. 2. Arqueologia. 3. Linguística. 4. História. 5. Etnoecologia. 6. Comunicação. I. Museu Paraense Emílio Goeldi.
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CARTA DA EDITORA
Belém, na condição de quatrocentona neste 2016, tem lugar de destaque dentre os trabalhos publicados nesta edição. O número trata de hábitos e estratégias de sobrevivências inerentes a seres humanos, sejam alimentares, mercadológicos ou religiosos, da ordem do simbólico. Assim, costumes correntes e ancestrais se entrecruzam nesta edição do Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas que encerra o ano de 2016, tempo de comemoração do Sesquicentenário da Casa. As investigações se debruçam sobre formas de cultivo agrícola entre populações tradicionais, sobre práticas de caça e sobre hábitos alimentares em ambiente rural e urbano. O trajeto de leitura proposto nesta edição inicia por Belém (PA), locus de dois artigos que estudam as redes estabelecidas no mercado urbano, tendo por foco o Ver-oPeso: “Pedra do Peixe: redes sociais na circulação do pescado do Ver-o-Peso para a cidade de Belém do Pará”, de Luiz de Jesus Dias da Silva e Carmem Izabel Rodrigues, e “Segregação Racial na Orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso”, de Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto e Jakson Silva da Silva. Do tema da segregação racial não pautada pelos movimentos sociais de Belém até as diversas formas de travar o comércio, esses trabalhos trazem à tona discussões do campo da Antropologia. Já a caminho do nordeste paraense, sobre a produção que chega aos mercados e aos pratos de pescadores graças ao conhecimento e ao trabalho feminino diante da escassez dos pescados mais apreciados, trata o artigo “Mulher e Mercado: participação e conhecimento femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar dos pescadores da RESEX Mãe Grande em Curuçá (PA)”, de autoria de Marllen Karine da Silva Palheta, Voyner Ravena Cañete e Denise Machado Cardoso. Belém permanece como locus da discussão no trabalho “De Senhora de Nazaré a ‘Nazinha’: singularidades na expressão do afeto à padroeira do Pará”, de Maria do Socorro Furtado Veloso e Maria Angela Pavan, que analisa as maneiras como a população passou a se referir à Nossa Senhora de Nazaré, em formas demonstrativas de afeto e de cumplicidade, oriundas da religiosidade ao tempo em que são reveladoras de identidade e pertencimento pelos que se apropriam da entidade. Helena Lucia Zagury Tourinho e Maria Goreti Costa Arapiraca da Silva, por sua vez, falam em “Quintais urbanos: funções e papéis na casa brasileira e amazônica” do significado desses espaços para as cidades amazônicas e o que a perda deles representa. Para isso, as autoras recorrem à literatura, em autores como Dalcídio Jurandir. Em “Aspectos etnoecológicos da agricultura Pumé”, Silvana Saturno e Stanford Zent se dedicam às práticas de cultivo de etnia indígena habitante da região do lhano venezuelano, de caçadores e coletores, mas conhecida também BELTRÃO, Jimena Felipe. Carta da Editora. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 557-558, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300001.
por práticas agrícolas características de uma economia mista, distintas de outras formas de significá-los. Do Brasil, “Conservação ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades”, de Laura Santonieri e Patricia Goulart Bustamante, discute as interações entre modelos de conservação em que se considerem tanto o germoplasma com os processos geradores de agrobiodiversidade, agregando agricultores e instituições de pesquisa. Ainda dentre as populações tradicionais, em “Caçar, Preparar e Comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará)” Rodrigo Augusto Alves de Figueiredo e Flávio Bezerra Barros indicam que a atividade cinegética envolve aspectos nutricionais e socioculturais, já que o produto da caça fornece proteína, ao tempo em que práticas alimentares são permeadas por costumes, imaginários, sociabilidades, tabus e modos de preparo. A edição traz, também, a trajetória de Kiju Sakai, antropólogo japonês que viveu em São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940 e, em sua prática de para-arqueólogo, escavou diversos sítios no estado, formando coleção amadora e hoje institucionalizada no Museu Histórico e Arqueológico de Lins (SP). O relato é feito por Márcia Lika Hattori e André Strauss no artigo “Kiju Sakai: o antropólogo japonês que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do século XX”. Ainda da Arqueologia, “Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais”, de João Carlos Ferreira de Melo Júnior, Eloiza Regina da Silveira e Dione da Rocha Bandeira, trata de investigação sobre madeiras como testemunho de sítio arqueológico em Joinville (SC), cujo achado evidencia o uso desse recurso para a construção de plataforma de sustentação desse sítio, localizado em área de mangue. Para “‘Culturas de Chimpanzés’: uma revisão contemporânea das definições em uso”, Eliane Sebeika Rapchan e Walter Alves Neves apontam que o conceito de “cultura de chimpanzés” em muito se distancia do conceito de cultura ligado à capacidade de manipulação de símbolos. Assim, sugerem reavaliação da proximidade genética e comportamental entre humanos e chimpanzés, redefinindo a fronteira do humano e não humano. “A agricultura moderna no Planalto Central: a experiência da Colônia Blasiana (1881-1895), na atual Luziânia, Goiás, Brasil”, de Mário Roberto Ferraro, é estudo sobre escola agrícola para órfãos negros beneficiários da Lei do Ventre Livre. O texto apresenta o que se constituiu como significativa contribuição para modernização da agropecuária do final do século XIX, em Goiás, iniciativa individual que se destacou, também, no campo científico. A seção que encerra esta edição, “Memória”, apresenta The first wordlist of Malayalam, written by a Portuguese seaman at the end of the 15th century (“A primeira lista de palavras do malaiala escrito por um marinheiro português no final do século XV”), uma nova edição com correções, acréscimos e versões para o inglês de 122 palavras de uso corrente no português com versões para o Malaiala ou Malabar, língua do sudeste da Índia, feitas no século XV. Esses vocábulos constam do relato da primeira viagem de Vasco da Gama (ca. 1460–1524) à Índia, disponível na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Portugal. Jimena Felipe Beltrão Editora Científica
CARTA DA EDITORA EDITOR’S NOTE ARTIGOS ARTICLES Segregação racial na orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso Racial segregation on the waterfront of Belém: the public ports at the Estrada Nova and at the Ver-o-Peso Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto, Jakson Silva da Silva............................................................................................................................563
Pedra do Peixe: redes sociais na circulação do pescado do Ver-o-Peso para a cidade de Belém do Pará Pedra do peixe: social networks in the commercial distribution of fish from the Ver-o-Peso market to the city of Belém, Pará Luiz de Jesus Dias da Silva, Carmem Izabel Rodrigues........................................................................................................................ 581
Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar dos pescadores da RESEX Mãe Grande em Curuçá (PA) Women and the market: female participation and knowledge with regard to the introduction of new fish species on the market and in the diet of fishermen of the Mãe Grande de Curuçá Extractive Reserve, Pará State Marllen Karine da Silva Palheta, Voyner Ravena Cañete, Denise Machado Cardoso............................................................................ 601
De Senhora de Nazaré a ‘Nazinha’: singularidades na expressão do afeto à padroeira do Pará From Nazaré to ‘Nazinha’: singularities in the expression of affection for the patron saint of Pará Maria do Socorro Furtado Veloso, Maria Angela Pavan....................................................................................................................... 621
Quintais urbanos: funções e papéis na casa brasileira e amazônica Urban backyards: functions and roles at the Brazilian and Amazonian home Helena Lucia Zagury Tourinho, Maria Goreti Costa Arapiraca da Silva................................................................................................633
Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé Ethnoecological aspects of agriculture among the Pumé Silvana Saturno, Stanford Zent...........................................................................................................................................................653
Conservação ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades Ex situ and on farm conservation of genetic resources: challenges for the promotion of synergies and complementarities Laura Santonieri, Patricia Goulart Bustamante....................................................................................................................................677
Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará) Hunting, preparing, and eating game meat: alimentary practices among Quilombolas at the Ipaú-Anilzinho Extractive Reserve, Pará State Rodrigo Augusto Alves de Figueiredo, Flávio Bezerra Barros.............................................................................................................. 691
Kiju Sakai: o antropólogo japonês que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do século XX Kiju Sakai: the Japanese anthropologist who dedicated his life to the study of Brazil in the first half of the 20th century Marcia Lika Hattori, André Strauss..................................................................................................................................................... 715
Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais Archaeobotany of a southern Brazilian shell midden: integrating evidence about the paleoenvironment and the use of forest resources João Carlos Ferreira de Melo Júnior, Eloiza Regina da Silveira, Dione da Rocha Bandeira....................................................................727
‘Culturas de Chimpanzés’: uma revisão contemporânea das definições em uso ‘Chimpanzee Cultures’: a contemporary view of the definitions in use Eliane Sebeika Rapchan, Walter Alves Neves.....................................................................................................................................745
A agricultura moderna no Planalto Central: a experiência da Colônia Blasiana (1881-1895), na atual Luziânia, Goiás, Brasil Modern agriculture on the Brazilian Central Plateau: the experience of the Colônia Blasiana (1881-1895), in Luziânia, Goiás Mário Roberto Ferraro......................................................................................................................................................................769
MEMÓRIA MEMORY The first wordlist of Malayalam, written by a Portuguese seaman at the end of the 15th century A primeira lista de palavras do malaiala escrito por um marinheiro português no final do século XV Gonçalo Fernandes...........................................................................................................................................................................793
ARTIGOS
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 563-579, set.-dez. 2016
Segregação racial na orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso Racial segregation on the waterfront of Belém: the public ports at the Estrada Nova and at the Ver-o-Peso Rodrigo Corrêa Diniz PeixotoI, Jakson Silva da SilvaI I
Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil
Resumo: Em Belém, intervenções urbanísticas na orla da cidade, conduzidas pela prefeitura com recursos do Banco Mundial, projetam a requalificação dos espaços públicos no sentido de transformá-los em ambientes de consumo. Gentrificação é o caso, e significa retirar pessoas e com elas sociabilidades que dão identidade aos lugares. Os portos da Palha e do Açaí e o Ver-oPeso são espaços públicos de grande relevância para a cidade e, principalmente, para a população de pretos e pardos, os negros e os indígenas mestiços que transitam e fazem transitar mercadorias entre as ilhas e o continente. Milhares de pessoas cruzam rotineiramente entre esses lugares no continente e as várias ilhas do outro lado do rio. Contudo, quem promove as intervenções urbanísticas quer remover a vida popular dos seus lugares. Como se costuma dizer, a pobreza tem cor. Eles resistem à remoção, mas a questão racial não está posta nesses lugares. Reconhece-se a segregação social, entretanto ela não é vista também como racial. A gramática racial não está presente na resistência contra os projetos excludentes. Somadas aos interesses de classe, a dimensão cultural e a luta pelo reconhecimento racial acrescentariam um conteúdo significativo na capacidade de resistência e insurgência dessas populações. O presente artigo levanta essa questão. Palavras-chave: Espaço público. Gentrificação. Segregação racial. Reconhecimento. Abstract: The municipal government, through urban developments, plans to gentrify public spaces in Belém´s waterfront. Gentrification here means to transform public spaces into consumption places, leading to the removal of people and, with them, the sociability that gives identity to these places. Public spaces focused here are the ports of Palha and Açaí and the Ver-o-Peso market. They are important places for popular life in Belém, mostly for the black people who use them. Thousands of people comute daily between these places in the continent and the many islands on the other side of the river. Gentrification tends to remove these people, most of them poor, and their activities to more distant areas. As the popular saying goes, ‘poverty has a color’. People resist urban developments that exclude black people. Nevertheless, racial factor isn’t acknowledged as contributing to segregation nor the racial argument is present in resistance discourse. Put together the cultural dimension and the racial factor recognized they would add significant weight to the capacity of resistance and insurgence among this population affected by the changes. This is a point the article raises. Keywords: Public space. Gentrification. Racial segregation. Recognition.
PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz; SILVA, Jakson Silva da. Segregação racial na orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 563-579, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222016000300002. Autor para correspondência: Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto. Travessa Belém, 56. Conjunto Bela Vista – Val de Cans. Belém, PA, Brasil. CEP 66617-220 (rodrigopeixoto1810@gmail.com). Recebido em 06/05/2016 Aprovado em 11/08/2016
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Segregação racial na orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso
INTRODUÇÃO As questões centrais deste artigo são a orla de Belém e a ameaça aos espaços públicos nela existentes – os portos públicos da Palha e do Açaí e a feira do Ver-o-Peso –, bem como às pessoas que usam esses lugares e fazem deles suporte para sua existência material e cultural. Vamos começar debatendo a compreensão de espaço público, para seguir qualificando esse debate com o argumento racial, uma vez que as pessoas ameaçadas de remoção nesses lugares são, em grande maioria, negras – pretas e pardas, conforme classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, segregadas e inferiorizadas pelas políticas urbanísticas em Belém. As políticas urbanísticas e seus gestores, impregnados de preconceito, não têm consciência plena do problema racial na cidade. Reproduzem o senso comum. Por outro lado, a resistência dos pretos e dos pardos nesses espaços públicos ainda não se dá plenamente com base no sentimento coletivo de desrespeito moral, uma vez que os coletivos ainda não se valem politicamente “do potencial semântico do vocabulário conceitual do reconhecimento” (Honneth, 2009, p. 253) ao não utilizarem a gramática racial para se insurgir contra a gentrificação racista que avança na orla da cidade. O artigo pretende, pois, jogar luz sobre uma questão relativamente oculta. O ponto de partida da abordagem é, portanto, o debate sobre o espaço público na cidade, a perda dele em virtude de uma concepção urbanística que prioriza a produção de riqueza, em vez da valorização da sociabilidade e da diversidade de modos de vida. A existência de espaços públicos onde as pessoas possam se encontrar, olhar umas para as outras e conversar livremente é condição básica para a democracia na cidade. Escrevendo sobre a modernidade, essa é uma condição que Marshall Berman coloca no prefácio do livro ‘Tudo que é sólido desmancha no ar’ (2007), reconhecendo que nada tem de especialmente moderno no exercício da comunicação e do diálogo, além do fato
de que a comunicação face a face ganhou mais urgência e importância nos tempos modernos, posto que ameaçada. Dividindo a mesma preocupação, Henri Acselrad, no artigo ‘Cidade – espaço público? A economia política do consumismo nas e das cidades’, afirma que os espaços públicos são cada vez mais visados pela lógica corrente do consumismo dos lugares (Acselrad, 2013), e alude ao racismo e à injustiça sofrida por grupos étnicos no espaço urbano, que têm seu modo de vida ameaçado: “a cidade do não reconhecimento, discriminatória, aquela em que os negros pobres encontram-se desprotegidos [...] se entrelaça com a cidade desigual” (Acselrad, 2013, p. 243). Argumentando também em termos de distribuição desigual de benefícios e ausência de reconhecimento, o presente artigo pretende evidenciar a segregação racial na orla de Belém, objeto de políticas de requalificação. Berman, ainda no mesmo prefácio em que defende os espaços públicos na cidade, afirma que sua intenção era escrever um livro aberto, “um livro em que os leitores pudessem incluir capítulos de sua própria lavra” (Berman, 2007, p. 16). Vamos aproveitar esse caminho aberto para apontar que a requalificação dos espaços públicos na orla de Belém é também uma segregação racial. O racismo nas políticas urbanísticas é uma realidade oculta, um capítulo invisível na crítica social, porque essa crítica não está ainda devidamente informada sobre a questão racial. Como diria Honneth (2009), os movimentos populares na orla de Belém não incluíram ainda a semântica racial e moral nas suas ações de resistência. A própria prefeitura, racialmente não alfabetizada, segrega e suprime sem talvez se dar conta do problema, que interessa a negros, indígenas e seus lugares, mas não apenas a eles, como também a toda a cidade, que tem neles riqueza cultural e diversidade. O mito da democracia racial e o tabu que ainda vigoram no Brasil sobre o tema são impedimentos a um caminho aberto, segundo Berman (2007, p. 17), desde o Iluminismo setecentista, no sentido de dar “esperanças coletivas de progresso moral e social, liberdade individual e felicidade pública”. Nesse sentido, o ideal de uma
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 563-579, set.-dez. 2016
democracia racial nos projetos urbanísticos de Belém é esperança coletiva de progresso moral e social, devir que necessita ser conquistado, realização de um processo que poderia partir da percepção de que as lutas nos espaços públicos da orla de Belém têm um conteúdo moral, de reconhecimento, respeito e antirracismo. Há racismo nas gentrificações – vistas aqui como requalificações de lugares populares em espaços de consumo – empreendidas na orla de Belém, particularmente nos portos e feiras públicos da Palha e do Açaí, onde vivem e trabalham pretos e pardos, que a prefeitura quer suprimir para criar novas ‘janelas para o rio’, e na feira do Ver-o-Peso, espaço público que a mesma prefeitura pretende requalificar, retirando dali ou reduzindo o local de tradições afro-brasileiras e indígenas. Vale dizer que, em 2016, o projeto da prefeitura não se realizou em virtude de resistências populares e institucionais. O senso comum que permeia a ideologia do progresso continua a idear a assimilação do indígena na sociedade nacional, ou seja, sua anulação. Igualmente, o preconceito religioso voltado contra as tradições afro-brasileiras, perseguidas por católicos conservadores, e presentemente ainda mais por pentecostais fundamentalistas, continua a tratar essas tradições como atrasadas e amorais, muitas vezes tornando-se caso de polícia. No entanto, no Pará, onde o Censo de 2010 registrou que 76,7% da população se autodeclarou preta e parda, o maior percentual do país na classificação ‘negro’ (mas entre os que se declaram pardos, classificados todos pelo IBGE como negros, não haveria também indígenas, incursos em uma desatenta assimilação oficial?), conforme a Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (PNAD), e em Belém, nas centenas de casas e de terreiros de culto afro-brasileiro, nos barrancos e beiras de água, as práticas e tradições persistem, apesar da repressão. Na Figura 1, dona Coló, erveira na feira do Ver-o-Peso, cuja barraca entrelaça tradições indígenas e africanas. A cultura afroindígena está presente nos espaços populares de Belém. Entre os denominados ‘pardos’
Figura 1. Tia Coló na sua barraca (nº 33 e 34) no setor das ervas da feira do Ver-o-Peso. Lá, são as mulheres que predominam. Negras, sábias, ligadas a orixás, convidam gentil e calorosamente você que está passando a se aproximar, e estabelecem uma doce conversação. Do que você precisa? Vendem garrafas e vidrinhos contendo poções, banhos e perfumes. Dão conselhos. Você pode sentar em um banquinho e realizar uma consulta. Chora nos meus pés, chega-te a mim, chama dinheiro, afasta-te de mim, hei de vencer, vence tudo, queira ou não queira tem que me querer... Basta ter fé. O dinheiro é quase um coadjuvante nesse mercado de bens espirituais. As erveiras do Ver-o-Peso são um patrimônio de Belém. Elas cultivam tradições indígenas e afro-brasileiras, que se entrelaçam nos banhos de cheiro, nos remédios preparados com a flora amazônica da tradição indígena, fortalecidos pela fé católica e umbandista. “Eu sou aquela pessoa sempre alegre, sempre carinhosa... eu me sinto bem quando as pessoas venham com problema e chegam aqui e diz que já resolveu. Então isso eu me sinto muito orgulhosa. E eu não sei nem como agradecer. Primeiro a que? A Deus e nossos orixás. É aonde na minha barraquinha tem um que é meu pai Ogum, é meu São Jorge Guerreiro. [...] Final de ano é a nossa festa, que é o dia do banho cheiroso [...] Eu sou católica, tenho bastante fé em Deus e na minha Nossa Senhora de Nazaré, aonde eu já recebi muitas graça, e sou também umbandista, eu adoro a minha umbanda. Então aqui a gente vai fazer os nossos banhos [...] porque pra mim fazer um banho desses eu tenho que tá concentrada, pedindo, implorando, porque aquelas pessoas que vêm em busca da saúde, do emprego, que alcancem [...] na festa de Iemanjá [...] eu vou pra beira da maré, pedindo permissão ao nosso pai Oxalá, minha mãe das água, então é uma coisa muito importante, é uma coisa muito importante você ter a fé, se eu não tiver a fé não adianta nada, porque é a fé que derruba qualquer montanha”. Foto: Kércia Figueiredo Peixoto, em 6 jul. 2016.
pelo IBGE estão os caboclos, indígenas mestiços, embora todos sejam classificados como negros. Os fenótipos humanos nesses espaços são reveladores da ascendência também indígena da população. Na feira do Ver-o-Peso, estão presentes tanto as tradições afro-brasileiras quanto as tradições indígenas nos gêneros comercializados,
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Segregação racial na orla de Belém: os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso
na alimentação e nas casas de artigos de candomblé. Especialmente no setor das erveiras, as tradições afro e indígena encontram-se muito entrelaçadas. A barraca da dona Coló, que entrevistada e fotografada, mostra a herança cultural combinada. O estudo procura dar visibilidade a uma realidade não reconhecida na vida social das cidades brasileiras e, particularmente, de Belém. Um livro original que trata das desigualdades raciais e da segregação urbana em Salvador e no Rio de Janeiro é o de Antonia dos Santos Garcia (2009), o qual justifica com dados e informações o argumento contundente de que os negros – e precisamos acrescentar os indígenas mestiçados aqui em Belém –, principalmente os que estão na base da pirâmide social, sofrem racismo institucional e são cidadãos de segunda classe (Garcia, 2009, p. 25). A autora mostra “como se dá a desigual distribuição dos equipamentos de consumo coletivo no espaço urbano e as formas segregadoras praticadas pela mão invisível do mercado e do Estado nessa distribuição” (Garcia, 2009, p. 26). Revela a “naturalização das desigualdades raciais” (Garcia, 2009). E o que podemos dizer de Belém? Nossa visão diz que aqui ocorre a remoção de pessoas, atividades e culturas afroindígenas que representam a diversidade, o outro não reconhecido, não respeitado no seu lugar, no seu cotidiano próprio, diverso do consumidor pretendido pelo mercado. O mercado, esse instrumento de dominação e segregação que expulsa as pessoas dos seus lugares, esse “moinho satânico” (Polanyi, 2000), é movido nas orlas de Belém por projetos de requalificação urbana com viés racista. Por outro lado, nessas orlas, os mercados ameaçados que estamos considerando nesse artigo têm dimensões concretas; são os portos públicos da Estrada Nova e o Ver-o-Peso, feiras populares onde as trocas objetivam a reprodução material da vida, assim como o cultivo de aspectos culturais e simbólicos, em vez de visar apenas ganho monetário. As segregações afetam uma coisa e outra. Afetam a sobrevivência material de feirantes e usuários, bem como as comunidades quilombolas e caboclas que fornecem os gêneros de consumo popular comercializados
nesses lugares. E afetam a identidade desses coletivos, significando um desrespeito, um não reconhecimento dessa alteridade no ambiente urbano. Daí o nexo que Honneth sugere para o surgimento de movimentos sociais de resistência, protesto e rebelião, a partir não apenas de interesses materiais usurpados, mas também da “experiência moral de desrespeito” (Honneth, 2009, p. 255). O que, aqui, se acrescenta às abordagens, cujo objetivo é valorizar o espaço público e o reconhecimento da alteridade e o que neles vigora, assim como têm feito outros autores, é um ‘capítulo’ racial, oculto por uma semântica a qual não inclui o tema, porque se usa enquadrar todas as resistências e conflitos apenas como lutas e interesses de classe, quando as resistências e insurgências podem ganhar a dimensão de lutas pela diferença cultural, pelo reconhecimento de pretos e pardos, entre estes os caboclos, indígenas mestiçados e socialmente inferiorizados. Tudo isso no contexto de uma orla cobiçada pelo capital imobiliário, que usa o apelo da cultura. Como diz Otília Arantes, trata-se do apelo da cultura produzindo consensos e gentrifications, criando a ‘necessidade’ de upgradings culturais, promovidos em conluio por governos, mídia e place entrepreneurs que descobriram o ‘lugar’, as orlas em particular, e nelas o ‘culturalismo de mercado’, como espaço privilegiado de valorização do capital no mundo dos negócios (Arantes, 2000). Ao caso de Belém, acrescenta-se a ideia de gentrificação branqueadora, que segue a lógica internacional, sintomaticamente abusando de termos importados, usados localmente para enobrecer os espaços. Trapiche passa a ser chamado de píer. Pretende-se rebatizar o Porto do Açaí como shopping do açaí. As beiras da cidade, com seus típicos barcos regionais, são projetadas para se transformarem em marinas. Os lugares populares são renomeados desde cima pelo poder público. Renomeados, os espaços sofrem uma requalificação, priorizando-se incentivos ao investimento de capital, alterando-se significados, usos, retirando-os do domínio popular, elitizando e embranquecendo-os, segregando seus originais usuários.
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Definitivamente, o que não se preza é o valor de uso desses lugares, o comportamento diverso de “seres totais e não divididos em faculdades” (Mauss, 2008, p. 213). Não se valoriza a cultura dos fatos sociais totais, o dar, o receber e o retribuir, que movem as relações de reciprocidade, as ‘forras’, por exemplo. O que é a forra? A forra, esse mecanismo popular de mercado, é uma prática baseada em relações face a face – na significância do rosto (Lévinas, 1997). Através dela, compradores e vendedores compensam alternadamente variações sazonais dos preços das mercadorias. Na entressafra, o vendedor recebe mais pela mercadoria do que a ‘mão invisível do mercado’ pagaria em função da oferta maior. Na safra, o comprador tem a forra e paga menos do que pagaria, em virtude da escassez relativa do produto. Tudo isso com base no mútuo reconhecimento pessoal, que difere do comportamento do chamado homo economicus, com sua inerente propensão à barganha, voltada à satisfação exclusiva do interesse próprio, que vem fragmentando, rotulando e reduzindo o ser humano a essa dimensão única. Queremos argumentar que o apelo de cultura que ‘as janelas para o rio’ encravam na mentalidade do belenense como um consenso, com seus espaços gourmet chic e seus pretensiosos e projetados píeres, adornados com palmeiras de açaí para dar um toque regional, a gentrification que tudo isso significa, representa também um branqueamento da orla. As Figuras 2 e 3 mostram trabalhadores exercendo seus ofícios no Porto da Palha. Quando entrevistamos Domingos Conceição em sua casa, no bairro do Jurunas, localizada próximo ao canteiro de obras da Estrada Nova, o coordenador do Mocambo – Instituto de Educação, Cultura e Desenvolvimento das Relações Sociais, criado em 1997 – mostra como a consciência racial é recente na cidade: “não tinha essa discussão de negro. Eu nem me entendia como negro. [...] As pessoas têm limitação para se reconhecerem negras. No Brasil não se nasce negro, mesmo numa família de negros”. Agora, o movimento já percebe quem são os trabalhadores dos portos públicos: “o feirante tem cor. O ribeirinho tem cor”. Ele diz que o racismo é público, seja
Figura 2. Um homem carregando uma rasa de açaí. Quantas rasas ele carrega todo dia? Esse açaí vem do quilombo da ilha do Maracujá? O Porto da Palha é uma porta de entrada para o continente. A prefeitura quer transformá-la em mais uma ‘janela para o rio’. Os feirantes e usuários negociam com a prefeitura em torno de projetos que caem de cima sobre eles. A questão racial não está posta nesses lugares, reconhece um militante do movimento negro. Foto: Kércia Figueiredo Peixoto, em 6 jul. 2016.
Figura 3. Homem exerce seu ofício de amarrador de sacas de açaí. As fotografias do Porto da Palha mostram pessoas nos seus diversos ofícios. Elas ocupam diariamente esse espaço público que existe para vender e comprar, mas elas vêm não apenas para realizar operações de compra e venda; embora essa seja a principal motivação, ocorrem nessas feiras outros tipos de troca. O comércio se dá dentro de um universo relacional próprio. Comprando e vendendo, as pessoas estabelecem relações, vínculos de clientela. Amarram-se umas às outras mediante fiados, forras e outras instituições típicas. O comércio se dá dentro de instituições, regras tácitas, que são parte da identidade desses lugares. Esta fotografia mostra um homem fechando sacos de açaí. Outros esperam. Essas feiras populares têm uma identidade racial. Foto: Kércia Figueiredo Peixoto, em 6 jul. 2016.
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ele velado ou aberto, e que os governos conservadores têm práticas mais racistas. Para estes, “quanto mais limpar, melhor. O Brasil tem uma história de faxinagem. Belém não é diferente. O branqueamento continua no Brasil e acontece na orla de Belém”. No mesmo movimento negro, mas a partir do Instituto Nangetu de Tradição Afro-Religiosa e Desenvolvimento Social, Arthur Leandro, também quando entrevistado, denunciou com sentimento de injustiça como o batuque, a religião, todas as tradições afro-brasileiras são perseguidas e abafadas na cidade, nos barrancos da orla e no mercado do Ver-o-Peso, sendo as tradições e os praticantes tratados literalmente como caso de polícia. Essa experiência de desrespeito, que gera esse sentimento de injustiça no indivíduo, pode conquistar um desdobramento e se alargar para relações de reconhecimentos intersubjetivos e indignação moral, abarcando amplas coletividades. Essa é uma discussão que Honneth (2009, p. 8) ensaia, ansiando por ações políticas capazes de promover progresso moral: “entre as finalidades impessoais de um movimento social e as experiências privadas que seus membros têm da lesão, deve haver uma ponte semântica que pelo menos seja tão resistente que permita a constituição de uma identidade coletiva”. Como os pretos e pardos ameaçados de remoção dos lugares que ocupam na orla de Belém podem mover uma luta por reconhecimento social? Como revelar o racismo embutido nas políticas de requalificação, tornando isso um tema visível na cidade, e então um conflito legitimado e ampliado por essa questão moral? A segregação racial em Belém é um caso entre outros no Brasil, como mostra o tópico que se segue, iniciado com a imagem de um homem desembarcando no Porto da Palha (Figura 4).
SEGREGAÇÃO RACIAL NAS ORLAS DE BELÉM: UM CASO ENTRE OUTROS NO BRASIL Em muitas cidades brasileiras, a segregação espacial tem um sentido racial, e Belém não foge a essa regra. A segregação racial é um fato importante para a interpretação das cidades, embora não seja muito levado em conta, de modo
Figura 4. Homem desembarca no Porto da Palha, carregando paneiros de açaí e uma mochila, que provavelmente ele traz para alguém que o espera. No porto, as pessoas se encontram. A fotografia foi tirada do trapiche, que balança e tem tábuas soltas, e não possui um sanitário decente. O chão onde o negro pisa foi aterrado com caroços de açaí e resíduos de madeira. Foram eles mesmos que fizeram o trabalho. O espaço popular é abandonado pelo poder público. A foto mostra esse abandono. Por que o poder público despreza tanto os lugares populares? Esse desprezo é também pelas pessoas que usam esses lugares. Foto: Kércia Figueiredo Peixoto, Porto da Palha, em 6 jul. 2016.
que ocorre sem o destaque, sem ganhar a visibilidade merecida pelo fato. Os projetos de urbanização na orla de Belém não valorizam a vida popular de lugares como o Ver-o-Peso e os portos públicos da Palha e do Açaí. O espaço popular não é valorizado, não é considerado como algo que pode ser melhorado, em termos de infraestrutura e de serviços, para permanecer enquanto espaço popular mesmo. A ideia que domina os projetos é a de substituir o uso popular desses espaços por usos capitalizados. É a de abrir esses espaços para investimentos de capital. Mas, ao abri-los ao capital, inclusive mediante incentivos e subsídios, fecham-se os espaços para outros usos. Os espaços deixam de ser públicos e passam a ser privados. Esse sentido político-econômico é bastante percebido nas requalificações urbanas. Contudo, não é tão comum interpretar essas requalificações, que envolvem a segregação social, no seu aspecto racial.
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As pessoas removidas nas requalificações urbanas são pretas e pardas. Os espaços populares, públicos, têm cor, podemos dizer. Na nova cara que os projetos pretendem dar à orla de Belém, o popular e o público não têm lugar. A nova cara é elitista, é privatista, consumista, aspira ao branqueamento dos lugares mais valorizados. Não será tudo isso uma forma de racismo? O efeito racista dos projetos de reforma urbanística na orla é substituir usos e lógicas populares por atividades empresariais. Com a mudança de uso, vem a remoção dos usuários originais. Do ponto de vista da prosperidade da cidade como um todo, e não apenas de poucos favorecidos, ‘amigos do rei’, a diversidade econômica e social é importante, como afirma Jacobs (2000, p. 13): “necessidade que as cidades têm de uma diversidade de usos mais complexa e densa, que propicie entre eles uma sustentação mútua”. O que se busca realçar aqui é o conteúdo racial da diversidade. O poder público despreza o popular, deixando as estruturas e os serviços se deteriorarem. Mas o que está de fato sendo desprezado? Não são as pessoas que usam esses espaços? Vale dizer que nos portos públicos da Palha e do Açaí, bem como nas suas imediações, vigora uma pujante economia popular, a despeito do abandono do poder público, que parece ser proposital. Quando os lugares se encontram bastante deteriorados, surgem as propostas de reabilitação, com outros usos, outras arquiteturas e outras pessoas. O jargão ‘gerar emprego e renda pelo turismo’ é um dos mais utilizados para remover dos seus lugares essa vibrante economia popular, movida por pretos e pardos. Eles contribuem para a prosperidade da cidade, mas não são reconhecidos. Outro jargão muito empregado na cidade é o das ‘janelas para o rio’. A metáfora das janelas embute o significado de privatizar espaços públicos, de abri-los para o investimento privado. Mas, por outro lado, as janelas fecham os espaços para usos populares, por parte dos pardos e dos pretos. Os assim chamados genericamente ribeirinhos preferem o espaço aberto. A metáfora das portas é mais condizente com a realidade de ir e vir entre
o continente e as ilhas (Silva; Peixoto, 2015). Gente e mercadorias circulam cotidianamente aos milhares e fazem a cidade se expandir para o outro lado das águas. Os portos públicos representam ‘portas para o rio’, segundo a metáfora da resistência. Permitem a relação entre o meio urbano e o meio rural (Silva, 2015), o abastecimento da cidade, o ir e vir cotidiano de estudantes e de pessoas que têm vínculos de um lado e de outro. Trata-se, como afirma Jacobs (2000, p. 12), de “observar mais de perto” e ver que os pretos e pardos cumprem uma função essencial à vida da cidade. Nem tudo na orla de Belém precisa ser janela. Objeto de intervenções públicas desde a sociedade colonial, a orla hoje é cobiçada como espaço de investimentos de capital. Lógica excludente, que prevê o consumo. Quem não pode pagar, não pode ficar. Os espaços gentrificados não são para os pobres. E quem são os pobres? Basta ‘observar mais de perto’ para ver a cor da pele, para perceber que esse processo, que pode ter tantos nomes – revitalização, requalificação, reabilitação etc. –, é de fato uma gentrificação racista. O significado do vocábulo inglês gentrification, derivado da palavra gentry – nobreza, senhorio, elite –, expressa bem o que se passa. Trata-se de uma elitização, a qual é também um branqueamento, aspiração histórica da elite nacional, reproduzida pela provinciana elite de Belém. Aqui, o processo tem como palco a paisagem cultural da orla, de onde se avista a floresta do outro lado, onde habitam os quilombolas e ribeirinhos, que terão a beira do rio interditada, posto que a orla se tornou espaço para investimentos de capital, na lógica do “culturalismo de mercado” (Arantes, 2000). Belém é um caso entre outros. Antonia dos Santos Garcia (2009), no seu livro ‘Desigualdades raciais e segregação urbana em antigas capitais: Salvador, cidade D’Oxum, e Rio de Janeiro, cidade de Ogum’, desvenda a lógica racial na própria gênese das cidades brasileiras. A autora empreende uma abordagem histórica para demonstrar que a segregação urbana é racial. Adotando as categorias de raça, cor, ocupação, escolaridade, renda e habitação, ela desvela a condição negra em Salvador e no
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Rio de Janeiro. Mostra como é necessário retirar o tema das desigualdades raciais e da segregação racial urbana da condição de tabu, e articulá-lo com a questão social: as metrópoles brasileiras “são espaços estruturados onde a hierarquia social se inscreve no plano de distribuição das residências e serviços urbanos” (Garcia, 2009, p. 32). As desigualdades raciais estão profundamente inscritas nas desigualdades sociais e na estruturação das cidades, que distribui serviços urbanos desigualmente. Junto com a autora, argumenta-se que, igualmente em Belém, há racismo institucional, posto que as políticas urbanas propõem verdadeiras limpezas étnicas, o branqueamento dos espaços, hierarquizando-os racialmente. Junto também com Jacobs (2000), queremos argumentar que essa segregação atravanca o crescimento pleno de Belém. Rompe uma ligação histórica que os bairros do Jurunas, Guamá e Condor têm com esses interiores. Afeta drasticamente o funcionamento dos mercados e das feiras populares localizados na orla, justamente porque dependem dessa ligação. Na Figura 5, homem carrega paneiro de açaí e usa o trapiche do Porto da Palha como porta de entrada para o continente. Segundo Garcia (2009, p. 164), para reverter a segregação espacial e a classificação racial, as “identidades territoriais coletivas têm uma importância fundamental para o repensar e o agir sobre a cidade e não podem ser ignoradas nas políticas urbanas que, de fato, pretendem garantir o direito de todos à cidade”. A questão das identidades territoriais levantada por esta autora é muito relevante. Se os pretos e pardos têm consciência da questão racial lá, no território onde estão, a resistência ganha um novo significado. Não se trata apenas de lutar pela sobrevivência material, mas de, ao mesmo tempo, reivindicar reconhecimento racial no território, uma atitude política de grande amplitude. Fernandes (1988), lidando com a “continuidade de estruturas sociais e mentais coloniais e escravistas” nas cidades brasileiras, defende a superação do passado e fala de uma “segunda abolição”: “a abolição erigida pelos negros e para os negros”; fala do
Figura 5. Vistos pela prefeitura como lugares desordenados, sem a modernidade exigida para colocar Belém no circuito internacional do turismo, os portos da Palha e do Açaí são feiras populares onde os habitantes do outro lado do rio vendem açaí e palha, mas também carvão, farinha, verduras e frutas regionais. Eles abastecem a cidade e movimentam as próprias feiras, mas a prefeitura não investe nessa genuína vida popular. Os portos poderiam ser melhorados, mantendo-se sua autenticidade. Um viajante interessado na vida genuína dos lugares certamente daria valor a esta paisagem tão própria de Belém. Contudo, o que se projeta é uma paisagem artificial, dentro da lógica do culturalismo de mercado, que representa uma paisagem amazônica para o turista convencional ver. Os usuários dos portos também fazem nas imediações seu consumo básico de gêneros alimentícios, roupas e gás de cozinha, entre outros, uma vez que nesses lugares se encontra de tudo um pouco, inclusive em termos de serviços populares. Portos públicos, os trapiches são portas abertas para quem vem navegando de ilhas e interiores e desembarca na capital para comprar e vender mercadorias, frequentar colégios, encontrar familiares e trocar conversas. Não é apenas para comprar e vender que eles vêm ao continente. Eles vêm aos portos também porque nos trapiches, nas barracas e nas imediações desdobram-se possibilidades, vida social, trabalhos. Foto: Yvana Crizanto, Porto da Palha, em 6 jul. 2016.
rompimento com a “continuidade de estruturas sociais e mentais coloniais e escravistas”. Podemos combinar os argumentos destes dois autores, e sugerir uma junção de luta de classes e luta pelo reconhecimento racial no território: “existem duas polaridades, que não se contrapõem, mas se interpenetram como elementos explosivos — a classe e a raça” (Fernandes, 1988). Os portos públicos da Palha e do Açaí estão situados na Estrada Nova, de Belém, avenida extensa que corta os bairros da parte sul da cidade: Guamá, Condor e Jurunas. Hoje, é uma periferia central na cidade de Belém. Periferia porque são precárias as condições de urbanização e de
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serviços urbanos. Periferia porque é lá que habitam os negros. Periferia porque lá é baixada inundável. Contudo, a cidade cresceu e hoje essa área é próxima, bem localizada, ainda mais porque está situada na beira do rio. Aí reside o interesse do Estado e do capital imobiliário. Antes segregada, essa área, conquistada à cidade pela construção do dique da Estrada Nova, realizado no bojo dos acordos de Washington de 1942 (Santos, 2002), é densamente povoada. Lá, está o bairro do Guamá, considerado o mais populoso da cidade, com 94.610 habitantes, conforme o censo de 2010 do IBGE. Vizinho ao Guamá, o Jurunas, outro importante bairro periférico central da cidade, com população de 64.478 habitantes. O bairro de Condor, que faz fronteira com o Jurunas e o Guamá, apresenta população de 42.758 habitantes. Todos esses locais concentram pretos e pardos, que, somados conforme a metodologia do IBGE, representam os negros. A população negra do Guamá, somando pretos (8, 66%) e pardos (67, 13%), é de 75, 79%. No Jurunas, os negros são 73,10%. Em Condor, 75,37% da população total. Ou seja, enquanto periferia, esses bairros concentram grande número de negros pobres. Agora em vias de urbanização pelo Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova (PROMABEM), os pretos e pardos estão ameaçados de remoção. A baixada saneada não é para eles. Becos, vilas, ruelas, guetos negros na baixada segregada. Projeta-se remover tudo, inclusive os negros, para longe, outra periferia distante. Muitos moradores querem ficar. Afinal, construíram todas suas vidas ali. Relações com vizinhos, ajudas mútuas, parentes morando próximo, pequenos negócios, emprego próximo, as feiras e portos do Açaí e da Palha, onde trabalham, compram, vendem e trocam afetos, conhecimentos, opiniões, tudo isso é território. Espaço físico e sociabilidades. Alguns, revoltados, reclamam. Sempre viveram lá, como dizem, no fedor, com água na canela. Agora que vem o saneamento são obrigados a sair. Grande injustiça. A vida dos negros pode ser também na baixada saneada. Como dizem lá, ‘quem roeu o osso tem que comer o filé’. Esse é um
mote bom e popular, mas é preciso dizer que apenas alguns revoltados não fazem um movimento social. Não se vê um forte movimento reivindicando a permanência e a melhoria dos espaços públicos na orla.
O OUTRO NEGADO: POLÍTICAS PÚBLICAS RACISTAS Pode parecer demasiado apontar racismo nas remoções projetadas pela prefeitura em intervenções gentrificadoras na orla da cidade. No entanto, o racismo está imerso nessas políticas de requalificação, apenas o fato não é enquadrado como tal, e não aparece por falta de uma devida nominação. Não nominada, a prática se situa fora do vocabulário conceitual dos que sofrem a violência. Como aponta Honneth (2009), a gramática dos conflitos sociais é atravancada por limitações semânticas, de modo que a percepção da violação moral acaba não sendo reconhecida. Nominar de racistas as intervenções na Estrada Nova e no Ver-o-Peso faz emergir esse caráter oculto das segregações espaciais de Belém. As segregações são espaciais e raciais. A compreensão desse fato, sua percepção no escopo das políticas públicas, passa pela nominação, que é um passo semântico para a conceituação da violência. Os pretos e pardos removidos pelas políticas se empobrecem, deslocados do cotidiano dos seus lugares e das suas ricas sociabilidades. Com um pé no continente e o outro nas ilhas, desde muito tempo tecendo relações nas beiras e barrancos da cidade, e também do outro lado do rio, em comunidades caboclas e quilombolas, eles perdem uma porta de entrada para a cidade, quando a beira se transforma e se fecha em mais uma janela para o rio. As janelas são espaço de consumo, enquanto se contempla as águas e a floresta do outro lado. Alternativa agradável para quem pode consumir. O problema está em pretender transformar toda a orla em janelas. As janelas para o rio se tornaram uma espécie de pensamento único em Belém. Aqui, também a cultura do consumo molda o homem unidimensional, de que falava Marcuse (1982). Mas existem outros modos de vida e nem toda
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a orla precisaria estar enquadrada na lógica do mercado, fossem as políticas públicas mais plurais. No entanto, nas intervenções urbanísticas domina uma ideia linear de progresso, que classifica e hierarquiza (Santos, 2013): civilizado/primitivo; branco/caboclo-negro; píer/trapiche; economia popular/economia de mercado. As Figuras 6 e 7 correspondem a imagens que mostram a intenção projetada pela prefeitura, em 2012, de remover a vida popular de onde se situa o Porto do Açaí, na Estrada Nova de Belém. O poder público inferioriza os caboclos e os negros, impondo a eles um deslocamento de onde eles se representam na sua cultura. Acontece na Estrada Nova e no Ver-o-Peso uma negação da identidade de pessoas que se reconhecem nos seus lugares e nas suas atividades. Como afirma Ricoeur (2006, p. 152), “a ideia de reconhecimento possui um vínculo privilegiado com a de identidade”. Nos seus lugares, nessas feiras e nesses mercados populares, as pessoas, mais do que comprar e vender, praticam fatos sociais totais, estabelecendo coletividades que nada têm de unidimensionais. Existe uma ética, uma responsabilidade pelo Outro, como diz Lévinas (1997), expressa no rosto de cada um para com o próximo, no face a face da vida cotidiana. Em consideração semelhante, Sen (1987, p. 6 apud Ricouer, 2006, p. 154) mostra como este autor leva “em consideração os ‘sentimentos morais’ no ‘comportamento econômico”. As pessoas, nessas feiras e mercados populares, não são exclusivamente utilitaristas, não têm como única motivação o interesse pessoal, não seguem o modelo unidimensional do homo economicus. Antes, no seu modo de agir, nas suas práticas jurídicas tácitas, seguem preceitos e valores que se ligam a certas responsabilidades coletivas. Daí a diversidade que esses coletivos representam no contexto da cidade não solidária. Os prefeitos conduzem as políticas e é incrível como a democracia pode produzir prefeitos tão pouco democráticos e tão avessos à pluralidade. Sendo assim,
Figura 6. A) Maquete eletrônica que corresponde à proposta inicial da prefeitura, em 2012. Fonte: Santos Jr. [s. d.]
Figura 7. Fotografia tirada no Porto do Açaí. O objetivo da contraposição das duas imagens é mostrar o contraste. O burburinho popular é substituído por avenidas e pela arquitetura vistosa, mas rarefeita de gente. Foto: Jakson Silva, em 5 maio 2016.
imbuídos de uma ideia linear de progresso, desde algumas gestões, fizeram com que as beiras da cidade peninsular, onde o rio Guamá deságua na baía do Guajará, se tornassem, pois, objeto de políticas públicas que buscam requalificar e enobrecer as orlas das áreas mais centrais. O enobrecimento, um tipo de gentrificaçao racista, varre o que já se encontrava abandonado, destinado à deterioração, que então justifica uma requalificação, revitalização ou qualquer outro nome que se dá a esses processos de varredura social. Os caboclos e os negros que, de sandálias de dedo, usam a beira para tecer relações sociais e desenvolver fatos totais, mediante reciprocidades maussianas, sem seus trapiches transformam-se em pobres e, então, objetos de políticas de inclusão social. É tudo muito contraditório.
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Removem-se as pessoas, arrancam-lhes a identidade, reduzem-nas à pobreza e então enquadram-nas, empobrecidas, na lógica alienante de políticas de inclusão social. Esse enquadramento de pessoas que são exteriores à ordem vigente mediante políticas de inclusão, essa transformação do Outro em objeto de políticas alheias ao sentido da sua existência, tudo isso é o oposto do reconhecimento da alteridade, conforme nos ensina Lévinas (1993), para quem ser ético é dar a possibilidade de o Outro ser ele mesmo. Na ótica de Ricoeur (2006), o não reconhecimento significa a morte do Outro, o contrário de uma presença da alteridade. Assim, o projeto Portal da Amazônia, na Estrada Nova, assim como a higienização que se projeta no mercado do Ver-o-Peso e cerceia a prática de tradições afro-brasileiras, são intervenções através das quais a prefeitura de Belém nega o Outro, na sua substância cultural, para removê-lo, transformá-lo em pobre, sem moradia e trabalho agora, para então finalmente incluí-lo na lógica de programas de enfrentamento da pobreza, bem ao gosto do Banco Mundial, que, aliás, financia tais projetos. Essa é a matriz a qual afeta não apenas a sobrevivência material dessas pessoas, mas também as fere moralmente pelo desrespeito. É pela importância e pela revelação de gramáticas morais nas lutas sociais, em complemento às lutas pela sobrevivência material, que Honneth (2009) argumenta. Dizemos neste artigo que ocorre racismo nas segregações espaciais experimentadas pela cidade. E que a autocompreensão desse desrespeito daria um novo conteúdo às resistências e às insurgências contrapostas pelos movimentos populares a essas políticas. Em substituição aos outros, e os outros são os pretos e os pardos, removidos a distantes lugares, para viverem longas situações provisórias, para a orla requalificada se projeta uma nova frequência: uma população rarefeita, com gente bonita, como se usa falar, vestida em paletó e gravata, como mostram as maquetes, a qual estaciona seus automóveis em frente ao píer, que tomou o lugar do trapiche. Para
contemplar e consumir. Grotesca emulação de waterfronts do chamado primeiro mundo. As orlas de Belém, que perifericamente acompanha uma tendência internacional, são alvo de apropriações modernizadoras. Aqui, onde o racismo existe sem ser reconhecido, a modernização desloca os negros, pretos e pardos, na classificação do IBGE, que lá estavam, substituindo-os e também à cultura local a que eles davam vida, substituindo essa “substância viva”, como diz Honneth (2009, p. 64), por uma paisagem cultural, ao gosto do mercado de consumo. A Figura 8 mostra uma negociação sendo concluída no Porto da Palha, onde vigora uma pujante economia popular. Segundo Arantes (2000), essa prática urbanística, cada vez mais disseminada como uma receita validada e financiada por agências internacionais, condiz com a lógica de tornar a cidade competitiva, vendável no mercado dos investimentos e do turismo, frente a outras cidades, que igualmente seguem o script e modernizam seus waterfronts. Aqui em Belém, o discurso mais repetido é o de gerar emprego e renda através do turismo. Para a Estrada Nova, projeta-se uma marina elegante. Para
Figura 8. Negócio fechado entre o apanhador de açaí e o maquineiro. O açaí que chega nos portos públicos alimenta centenas de pontos de venda nos bairros do Jurunas, da Condor, do Guamá e da Cremação. O comércio se desenvolve em quantidade, milhares de quilos de açaí, farinha e outros produtos. Diariamente, em ajuda mútua, amizade, compadrio, reconhecimento. Conhecem-se pelo nome. Brincam, caçoam uns dos outros, gritam com entusiasmo. Vida não falta nesses lugares. Entre todos os termos utilizados para se referir à gentrificação, o mais contraditório é o da revitalização. Foto: Kércia Figueiredo Peixoto, Porto da Palha, em 6 jul. 2016.
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o Ver-o-Peso, um também sofisticado espaço gourmet. E sob esses pretextos varre-se uma pujante economia popular, essa sim geradora de empregos e de renda. Consolidada como pensamento hegemônico, a ponto de ser tomada como única alternativa para o progresso, a prática leva a uma varredura de tudo o que parece atrasado, ‘primitivo’. Tendência culturalista, a qual, de acordo com a autora, abre toda uma concepção de cidade excludente do Outro. Quem são os Outros aqui em Belém? Observe se não são eles os pretos e pardos oprimidos e não reconhecidos como legítimos usuários da beira de água, que ocupam há décadas e décadas esse espaço, e que sofrem racismo nessas remoções forçadas. É um desastre do ponto de vista de uma desejada pluralidade urbana, proposta por autores tão influentes como Jacobs (2000) e Berman (2007), que defendem o burburinho, a vida intensa e diversificada no espaço urbano. É um desastre do ponto de vista da necessária valorização do sentido ético do humano e do respeito às diferenças e, portanto, da alteridade. O Outro é denegado pelas políticas públicas racistas, que não abrem espaço à diversidade da vida e das tradições que se desenvolvem nas orlas de Belém. As políticas não partem do Outro e não são conduzidas em direção ao Outro (Lévinas, 1993). Em vez disso, as políticas correspondem à lógica arrogante da dominação, que não valoriza a alteridade ou, em outros termos, a experiência. As gentrificações racistas de Belém desprezam a experiência social, vamos agora argumentar com Santos (2013), que fala do desperdício da experiência e critica a primazia que o todo tem sobre as partes, que não podem ter existência fora do todo. O local, o particular, o diverso é levado à não existência. Santos (2013) fala das classificações sociais que estabelecem e naturalizam hierarquias. Fala de racismo. Assim, a classificação racial é “produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural. Quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a quem é superior” (Santos, 2012, p. 248). Significa dizer que o racismo é naturalizado
e que é preciso revelar e desnaturalizar essa violência. Nos termos de Santos (2013), é preciso tornar visível o invisível, transformar ausências em presenças, expandir o presente, representado pela experiência diversa e contrair o futuro. É preciso incluir o diverso na totalidade homogênea. Voltando a Honneth (2009, p. 255), é preciso revelar “a lógica moral dos conflitos sociais”. A dimensão moral do desrespeito pode motivar resistências e ações insurgentes. Existe um nexo “entre o surgimento de movimentos sociais e a experiência moral de desrespeito”. Contudo, nem sempre os sujeitos estão “conscientes dos motivos morais de sua própria ação”, e assim “desconhecem intersubjetivamente o cerne moral de sua resistência, pelo fato de interpretarem-no por si mesmos segundo a semântica inadequada das meras categorias de interesses” (Honneth, 2009, p. 257). Consideramos, pois, importante incluir a palavra racismo na semântica coletiva dos movimentos sociais da Estrada Nova e do Ver-o-Peso para tirar os pretos e pardos da “situação paralisante do rebaixamento passivamente tolerado” (Honneth, 2009, p. 259). A Figura 9 mostra a Feira do Açaí por volta de seis horas da manhã.
Figura 9. Feira do Açaí, situada ao pé do Forte do Presépio, de onde a foto foi tirada. Para a feira e os portos, os homens vêm aos milhares desde muito cedo, quando o dia ainda não clareou, das ilhas do outro lado do rio Guamá e da baía do Guajará, e de outros municípios, como Acará, Bujaru, Salvaterra, Ponta de Pedras e São Domingos do Capim. Pelas águas, em embarcações de madeira e canoas com rabeta, elas trazem principalmente açaí e farinha, em milhares de quilos. Abastecem a cidade com esses gêneros essenciais na mesa típica de Belém. Foto: Rodrigo Peixoto, Porto da Palha, em 6 jul. 2016.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 2000, o professor Carlos Vainer esteve em Belém e, observando o conflito entre prefeitura e governo do Estado, percebeu que duas concepções de urbanização competiam na orla da cidade. Uma elitista, baseada no consenso da ideia de ‘janelas para o rio’, enquadrada na lógica da cidade-empresa – que ele chamou de city –, a qual nega o espaço público. E outra, mais popular, simpática aos movimentos sociais e ao debate político, que ele chamou de polis. No influente livro intitulado ‘A cidade do pensamento único: desmanchando consensos’, que no mesmo ano ajudou a organizar, o autor escreve que “a maneira como a transformação da cidade em mercadoria (de luxo) repercute no olhar lançado sobre a pobreza [...] a mercadoria-cidade tem um público consumidor muito específico e qualificado” (Vainer, 2000, p. 82). Assim, a economia popular, as soluções populares para remediar a pobreza, a combinação de residência e pequeno comércio, as pequenas baiucas, as máquinas de bater açaí, os muitos ofícios ligados a essa vida popular, tudo isso não tem lugar na concepção da city. O poder público não tem um olhar atencioso para essas atividades populares que sustentam pessoas que gostariam sim de prosperar. Os projetos de renovação urbana nessa lógica, diferindo superficialmente de cidade para cidade, têm um caráter excludente essencial. A vida popular é sempre removida para dar lugar ao investimento de capital e ao consumidor qualificado. Outro caráter essencial e recorrente desses projetos é a falta de transparência. A prefeitura pretende instalar uma estação do Bus Rapid Transit (BRT) fluvial e talvez um shopping do açaí justamente onde se localiza há décadas o Porto da Palha, o qual, segundo a prefeitura, será transferido provisoriamente para uma área contígua. Os feirantes atualmente não se posicionam reivindicando direitos territoriais. Suas lideranças adotam uma postura de negociação, acreditando nos benefícios anunciados pela prefeitura. Mas ninguém conhece o projeto porque ele de fato não foi apresentado. Por que não se projeta o tal do BRT fluvial para essa área contígua, melhorando as
instalações do porto público e deixando-o onde ele está? E o que encobre a palavra ‘provisoriamente’, dita pelo secretário que anunciou a ideia para os feirantes? No caso de Belém, para enfrentar a lógica que pretende transformar toda a orla em mercadoria de luxo e em espaço de investimento de capital, Vainer (2000) propôs uma insurgência, que denominou de “a guerra da orla”. De lá para cá, tem havido resistências e negociações – os populares costumam ser mais moderados do que os acadêmicos – para evitar a remoção dos portos públicos, inclusive com a realização, em 2007, de uma cartografia social, promovida pelo então Movimento em Defesa dos Portos Públicos da Cidade de Belém, dentro do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (Movimento em Defesa dos Portos Públicos da Cidade de Belém, 2008). A cartografia foi importante porque colocou no mapa os feirantes e os ribeirinhos dos portos públicos de Belém, título da cartilha que contém a localização e a história dos portos da Palha e do Açaí, lugares de intensa vida popular. Na época da elaboração da cartografia, Felix Silva dos Santos ainda estava vivo e atuava, como presidente da Associação dos Trabalhadores do Porto do Açaí, no que era efetivamente um movimento social pela manutenção e melhoria desse espaço público: “no Porto do Açaí quem usa 80% são os ribeirinhos, eles trazem seus produtos pra vender, eles desembarcam para ir fazer seus exames de saúde, para seus filhos estudarem. O Porto do Açaí é um porto público” (Movimento em Defesa dos Portos Públicos da Cidade de Belém, 2008). Se os portos públicos são tão importantes para o cotidiano de milhares de pessoas, cerca de 75% de negros, como mostra o censo do IBGE para os bairros adjacentes, o menosprezo do poder público para com essa realidade popular reproduz velhas heranças, das quais nossa sociedade ainda não conseguiu se libertar. O que queremos mostrar é que a vida popular tem cor nessas margens da cidade. O problema que queremos mostrar é que, não obstante a presença da população negra, a questão racial não está devidamente colocada nas lutas de resistência. E tampouco ela é considerada pelo
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poder público. Nesses lugares, a cor não está colocada nas lutas de resistência nem nas políticas, reconhece também o militante Domingos Conceição, ‘zelador’, como ele se denomina, do Instituto Mocambo: “Essa perspectiva não está posta, não tem esse debate na orla”. Os negros são ainda classificados como ‘ribeirinhos’, até pela cartografia social, e continuam invisíveis, sem exercer uma identidade afirmada, que pode ter grande significado nas lutas de resistência e insurgência. Urbanização para quem? Revitalizar por que, se esses lugares são tão vivos? Antigas e pertinentes perguntas que, desde sempre, põem em xeque discursos e práticas segregacionistas. Em 2016, quando Belém completou 400 anos, o prefeito lançou, sem maiores discussões, em ano eleitoral, um projeto de reforma do Ver-o-Peso, que ele chamou de ‘Novo Ver-o-Peso’. Belém foi intitulada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de “cidade criativa da gastronomia”, e isso ensejou parcerias do governo do estado e da prefeitura com empresários. Em Belém, grupos estabelecidos articulam recursos públicos e interesses empresariais para inserir a cidade em um circuito de negócios, eventualmente internacionais. O ‘Novo Ver-o-Peso’ enquadra-se no que se chama aqui de ‘gourmetização’, um tipo de gentrificação ancorada na culinária típica, elevada ao nível de alta cozinha, voltada para consumidores que podem pagar os altos preços. Bares e restaurantes para uma clientela com poder aquisitivo já se instalam. Nesse caso, a resistência contra o projeto ameaçador às tradições africanas e indígenas e a todo o conteúdo popular que dá identidade ao Ver-o-Peso se deu da parte dos feirantes, apoiados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN): “vamos realizar esta visita para demarcação de espaços estratégicos para sobrevivência de nossa cultura. Para que com esta reforma esses espaços não sejam extintos, garantindo a permanência da circulação de nosso povo lá”, se expressa Denilson de Oxalá, do grupo de Juventude de Terreiros (Tradições apresentadas, 2016).
Na feira, a resistência contra o ‘Novo Ver-o-Peso’ tem força entre as erveiras e os erveiros: “o trabalho de campo partirá do setor de ervas, espaço que melhor agrega o saber e o fazer acumulados por gerações sobre os recursos das matas e da floresta, entrelaçados com crenças e costumes que carregam a mistura das ancestralidades de matrizes indígenas e africanas” (Tradições apresentadas, 2016). As beiras de Belém são afroindígenas. Uma vez que o projeto é excludente, não é aberto para discussão. Assim como ocorre na Estrada Nova, o projeto não é explicitado em todo seu conteúdo e toda sua intenção. Para o Ver-o-Peso, a prefeitura lançou um referendo em que se podia apenas votar sim ou não, sem chance para um debate público, de onde poderiam emergir questionamentos e alternativas. O poder não quer debate público. Em função dessa falta de transparência, a erveira Dona Coló decidiu não votar: “Como é que eu vou votar se eu não sei como vai ser? Pra onde a gente vai, pra onde deixa de ir… Se a gente vai ficar, se não vai… A proposta dele é tirar nós daqui e levar num sei pra onde. E aí? Nós não vamos mais voltar pra cá. Eu me criei aqui e aqui eu morrerei. Esse é o meu lugar” (Sim ou não, 2016). Boaventura de Sousa Santos, em, aula de inquietação, ministrada em outubro de 2012, em espaço aberto na Universidade de Brasília, aponta como o racismo antiindígena e antinegro está dentro das mentalidades na sociedade brasileira (Santos, 2012). Este autor, também em tom insurgente, defende que o antirracismo precisa estar em cada ato de quem ele chama de “rebelde competente” (Santos, 2012). Essa é a questão apresentada neste artigo: como a motivação moral pode dar base para a organização de uma luta antirracista na orla da cidade? Nos termos propostos por Honneth (2009), a questão está em transformar a experiência de desrespeito e o sentimento de injustiça em movimento político; transformar a lesão sofrida por indivíduos e grupos ligados às suas culturas específicas em indignação moral, abrangendo inteiras coletividades. O artigo levanta a possibilidade de uma luta contra-hegemônica movida por negros ameaçados de remoção dos seus lugares
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na orla. A questão racial pode alargar o conflito, dar a ele um caráter de insurgência, uma legitimação e ampliação de significado. A luta antirracista é uma questão moral. A tarefa complexa de desconstruir um senso comum tão enraizado, como o do preconceito racial, é também do Estado, que implementa políticas afirmativas. Associando disparidades socioeconômicas e raciais, as políticas afirmativas procuram compensar grupos étnicos em desvantagem histórica, permitindo-lhes direitos. Tais políticas criam também visibilidade para um problema desde sempre camuflado e omitido nas agendas públicas e sociais. O lugar de vivência desses grupos étnicos deveria ser incluído na agenda dos direitos das políticas afirmativas. O problema, como mencionado, é que a perspectiva racial nem sempre está posta nesses lugares. Importante também notar que esferas do próprio Estado – entre estas, a prefeitura de Belém nas últimas gestões – não estão devidamente alfabetizadas sobre a questão racial. A prefeitura, com financiamentos nacionais e internacionais que privilegiam a lógica da cidade-empresa, empreende na orla de Belém políticas segregacionistas, que desrespeitam negros ao expulsá-los dos seus lugares. Para com esses Outros, diversos dos consumidores para quem a orla é projetada, não há uma responsabilidade, uma ética de reconhecimento por parte da prefeitura. Isso ocorre na Estrada Nova e no Ver-oPeso, mas o recorte racista das políticas de requalificação desses lugares não é coletivamente reconhecido. Muitos pardos no Brasil, sejam eles mulatos ou caboclos, não se reconhecem como negros e indígenas, e, entre estes, muitos almejam um branqueamento, desde sempre um enraizado desejo nacional, reproduzido aqui em Belém na gentrificação branqueadora da orla, empreendida pela prefeitura. O não reconhecimento dos muitos pardos brasileiros como negros ou indígenas, e tampouco como brancos, essa indistinção racial que caracteriza nosso caráter nacional não deveria inviabilizar, contudo, o reconhecimento dos outros que realmente lutam para preservar sua alteridade distintiva. Construir reconhecimento, colocar o
problema racial na ordem do dia e dos lugares, denunciar políticas urbanas racistas, desenraizar mitos e ideologias, criar novas mentalidades, os movimentos sociais têm uma extensa e complexa agenda contra-hegemônica a cumprir. Em uma ocasião, entrevistando um feirante sobre o saneamento da Estrada Nova, ele manifestou o desejo de permanecer no lugar onde sempre esteve, mas agora em condições melhores, na baixada saneada. Ele veio com a concisa expressão: “quem roeu o osso tem que comer o filé”. Que este lema seja compreendido como uma necessidade social e econômica dos que usam o lugar para sobreviver, mas que o lema ganhe também reconhecimento como uma questão moral, uma política afirmativa territorial capaz de sensibilizar a cidade. Argumentamos acerca da tendência que há, em Belém, assim como ocorre em outras cidades do mundo, de transformação de espaços públicos em espaços de consumo e investimento de capital. Isso corresponde a uma forma de gentrificação. Gentrifications que transformam orlas urbanas em waterfronts semelhantes uns aos outros, homogêneos no sentido de favorecer a produção de riqueza econômica em detrimento de vida popular. Isso ocorre no mundo inteiro, como mostram autores como Berman (2007), Glass (1964) e Smith (2007), para as realidades dos Estados Unidos e da Inglaterra, assim como Arantes (2000), para o Brasil. Em Belém, um exemplo de waterfront, nesses termos, é a Estação das Docas, e o poder público, associado a interesses privados, encaminha outras ‘janelas para o rio’, como é o caso do projeto ‘Portal da Amazônia’ e as propostas de requalificação dos portos públicos da Palha e do Açaí. Nestes lugares de intensa vida popular, feirantes e usuários resistem, inclusive se valendo da metáfora oposta de ‘portas para o rio’, que simboliza para eles a possibilidade de ir e vir entre as ilhas e o continente. Acrescentamos ao argumento das gentrificações, que tornam parecidas as orlas de várias cidades do mundo, o caráter racial do processo, que remove os usuários originais, no caso de Belém desrespeitando os definidos como
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negros pelo IBGE. Assim como o faz Garcia (2009), em livro que trata dos casos de Salvador e do Rio de Janeiro. A gentrificação, nesses termos, é uma forma de elitização que, na feira do Ver-o-Peso, em função do apelo turístico desse espaço e da tradição gastronômica da cidade de Belém, tem sido referida como uma ‘gourmetização’, ou seja, o estabelecimento de negócios na linha ‘gourmet chic’ para consumidores de alto poder aquisitivo. A partir de conversas que desenvolvemos com militantes do movimento negro em Belém, argumentamos que o problema racial não está devidamente posto nesses lugares, em razão do mito da democracia racial que ainda persiste no senso comum popular e também nas políticas públicas encaminhadas pelo poder municipal. Para enfrentar o problema, argumentamos no sentido de o movimento negro promover processos de ‘alfabetização racial’, colocando o problema na ordem do dia, dos lugares e das instituições. Acatando os apelos de Axel Honneth em ‘Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais’ (2009), defende-se que o acréscimo de uma gramática moral, representada por uma luta antirracista nesses espaços públicos de Belém, ameaçados por gentrificações que segregam os pretos e pardos, pode sobrepor uma nova motivação política aos movimentos de resistência.
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Pedra do Peixe: redes sociais na circulação do pescado do Ver-o-Peso para a cidade de Belém do Pará Pedra do peixe: social networks in the commercial distribution of fish from the Ver-o-Peso market to the city of Belém, Pará Luiz de Jesus Dias da SilvaI, Carmem Izabel RodriguesI I
Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma etnografia sobre a rede social envolvida no processo de circulação do pescado que chega diariamente ao mercado do Ver-o-Peso, principal entreposto pesqueiro da região amazônica, e é distribuído por toda a cidade de Belém do Pará. Diariamente, o pescado in natura, capturado e trazido em embarcações pesqueiras, entra na área urbana pela Pedra do Peixe, marco espacial e simbólico do mercado do Ver-o-Peso,no qual é vendido e distribuído na cidade e para outras praças do estado e do país, para chegar aos consumidores finais, que o encontram nas feiras, mercados, supermercados e outros pontos de venda, assim como nos restaurantes diversificados, em forma de pratos regionais preparados para os muitos apreciadores do produto. Essa extensa rede de comercialização do pescado apresenta aspectos econômicos, sociais, culturais, regras, informalidades e conflitos, que fazem com que a circulação do pescado em Belém permaneça, até a atualidade, com muito vigor, tendo a Pedra do Ver-o-Peso como centralidade do seu fluxo cotidiano, através das redes de relações e das práticas socioculturais incorporadas por trabalhadores e fregueses que circulam diariamente por esse espaço central da cidade. Palavras-chave: Pedra do Peixe. Ver-o-Peso. Redes sociais. Mercados. Feiras. Abstract: This article aims to present an ethnography on the social network involved in the circulation process of the fish that arrives daily to the market Ver-o-Peso, the main warehouse fishing in the Amazon region, and is distributed throughout the city of Belém, Pará. Every day the fresh fish, captured and brought in fishing vessels, enters the urban area by the Pedra do Peixe, spatial and symbolic milestone in the market Ver-o-Peso, where it is is sold and distributed in the city and other places of the state and country, to reach the final consumers who are at fairs, markets, supermarkets and other retail outlets, as well as the diverse restaurants in the form of prepared regional dishes to the many lovers of the product. This extensive network of marketing of fish has economic, social, cultural, rules, informalities and conflicts that make the circulation of fish in Belém remains, to the present, very powerful, and the Pedra do Peixe at Ver-o-Peso as the centrality of their daily flow through the networks of relationships and sociocultural practices incorporated by workers and customers that circulate daily by this central space of the city. Keywords: Pedra do Peixe. Ver-o-Peso. Social networks. Markets. Fairs.
SILVA, Luiz de Jesus Dias da; RODRIGUES, Carmem Izabel. Pedra do Peixe: redes sociais na circulação do pescado do Ver-o-Peso para a cidade de Belém do Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 581-599, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300003. Autor para correspondência: Luiz de Jesus Dias da Silva. Conjunto Euclides Figueiredo, rua I, casa 37 – Marambaia. Belém, PA, Brasil. CEP 66620-800 (ljds@ufpa.br). Recebido em 05/05/2016 Aprovado em 06/06/2016
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Pedra do Peixe: redes sociais na circulação do pescado do Ver-o-Peso para a cidade de Belém do Pará
INTRODUÇÃO Na dinâmica contemporânea do Ver-o-Peso, a comercialização do pescado na Pedra do Peixe mantém importância central, com sua cadeia produtiva1 e redes de circulação, que, desde o período colonial da cidade – quando o pescado desembarcado ali era utilizado, inclusive, como meio para pagamento de funcionários públicos e autoridades eclesiais (Cruz, 1973) –, já demonstravam sua relevância para a vida local. Esse desembarque de pescado contribuiu decisivamente para o estabelecimento de um mercado local e regional, como um mecanismo central na vida da cidade, confirmando que “toda cidade é um local de mercado” (Weber, 1979, p. 69) pois “as cidades são entidades sociais criadas por processos econômicos, sobretudo o comércio” (Becker, 2013, p. 18). No contexto socioespacial da maior feira e mercado popular da cidade, a Pedra do Peixe é o lugar que centraliza, condensa, organiza e distribui as principais atividades necessárias à manutenção e à expansão da economia local, especialmente as atividades relativas à comercialização diária da produção pesqueira do estuário amazônico2. A denominação Pedra do Peixe, atribuída ao entreposto pesqueiro oficial da cidade, pode ter surgido em função da construção de seu cais com pedra cantaria3, mas existem outras duas hipóteses para essa denominação. Uma de que seria originada da demarcação do local, ao lado da doca das embarcações, de “desembarcadouro da
Ponta das Pedras, nos séculos XVII e XVIII” (Penteado, 1968, p. 215); a outra é advinda de citação popular,coletada através de entrevistas com pessoas que afirmaram ser o termo ‘Pedra’ originado da pedra do primeiro necrotério da cidade colonial4. A rede social é um conceito operacional que permite entender como os diversos sujeitos envolvidos no processo de produção e circulação do pescado se relacionam através de múltiplas relações empíricas; ao mesmo tempo, é uma abstração da realidade (Barnes, 2010) usada para representar os modos como esses atores sociais se conectam no tecido social, por meio de uma teia de interações possíveis, no horizonte de possibilidades concretas ou virtuais5. A circulação6 compreende o processo pelo qual o pescado é distribuído, a partir da Pedra, entre e através de seus diferentes sujeitos. Essa distribuição comporta as sucessivas trocas comerciais de compra e venda, as remunerações realizadas com o pescado, as cortesias aparentemente gratuitas empreendidas no próprio entreposto, no Mercado de Ferro, nos mercados e feiras de bairros, nos supermercados e outros locais da cidade. Nesse processo, as redes sociais, tecidas para fazer circular o pescado, se fundem com esses pontos de venda ao longo de toda a cidade, constituindo uma tessitura que interliga as pessoas e eventos nessas localizações socioespaciais.
A cadeia produtiva envolve um conjunto de atividades inter-relacionadas que podem ser separadas, incluindo diferentes aspectos de produção e comercialização em um setor (Souza Junior, 2010). 2 Sobre a produção e comercialização do pescado na região estuarina e costeira do nordeste paraense, ver Furtado (1987, 1993, 2008), Leitão (1997, 2010), Loureiro (1985), entre outros autores regionais. 3 Pedra cantaria é uma técnica de construção que utiliza pedras talhadas em formas prismáticas, umas sobre as outras, unidas com elementos colantes, visando a uma fortificação em monobloco. 4 Em uma dessas entrevistas, um artista plástico que vende souvenirs e artesanato na entrada do Mercado de Carne do Ver-o-Peso afirmou que “o termo Pedra do Peixe surgiu devido ao necrotério da cidade, que ficava naquele prédio, lá no final da doca do Ver-o-Peso, perto da Feira do Açaí, que ainda existe hoje com outra função, que tinha a pedra, onde se colocava[m] os mortos, nos primeiros anos depois da fundação de Belém” (Venturieri, artista plástico, entrevista realizada em 18 dez. 2014). 5 Segundo Barnes (2010, p. 173), rede social é um conceito útil “na descrição e análise de processos políticos, classes, relação entre um mercado e sua periferia, provisão de serviços e circulação de bens e informações em meio social não estruturado, manutenção de valores e normas pela fofoca, diferenças estruturais entre sociedades tribais, rurais, urbanas e assim por diante”. 6 Circulação, para Marx (2007, p. 79), é o conjunto dos processos que envolvem o intercâmbio de mercadorias, “a troca social da matéria, isto é, a troca dos produtos particulares dos indivíduos privados [que] cria ao mesmo tempo relações sociais determinadas de produção nas quais os indivíduos entram nessa circulação da matéria”. 1
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Assim, o pescado in natura distribuído em Belém chega aos consumidores finais, que o encontram nas feiras, mercados, supermercados e outros pontos de venda da malha urbana da cidade e, mais ainda, nos seus restaurantes diversificados, em forma de pratos regionais preparados aos muitos apreciadores. Essa extensa rede de comercialização do pescado envolve aspectos econômicos, sociais, culturais, regras, informalidades e seus conflitos, permitindo e garantindo que a circulação do pescado em Belém permaneça até a atualidade com muito vigor, tendo a Pedra do Ver-o-Peso como centralidade desse fluxo.
A PEDRA DO PEIXE A Pedra do Peixe sempre foi um lugar de intensa circulação e interação na paisagem dinâmica da cidade, pela comercialização diária do pescado por atacado, quando aquele espaço passa a ter uso específico de compra e venda desse produto, o que só é possível nas madrugadas, para não haver concorrência com o comércio tradicional que ocorre durante o dia no Mercado de ferro. A figura 1 mostra a localização geográfica do Ver-o-Peso em quatro quadros (figuras 1A-1d), com destaque, na figura 1d, ao Ver-o-Peso e sua doca, com o indicativo georreferenciado da Pedra do Peixe.
figura 1. Mapa referencial contextualizando o Ver-o-Peso e a Pedra do Peixe na cidade de Belém: A) localização com relação à América do sul; B) localização no estado do Pará, ao norte do Brasil; C) localização da cidade de Belém do Pará; d) localização da Pedra do Peixe e do Ver-o-Peso no centro histórico de Belém. fonte: adaptado do site Google Earth e do site iBGE (2014).
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Após a comercialização do peixe na Pedra, esse espaço é transformado para outros usos, como o de circulação mais intensa de pessoas que vão e vêm ao mercado, à feira do Ver-o-Peso e, de modo mais específico, a alguns setores do complexo Ver-o-Peso, tais como indicados na figura 2, todos muito frequentados por pessoas que trabalham no local ou que vão à procura dos produtos oferecidos nos horários específicos de funcionamento de cada setor. Em destaque, a calçada – a Pedra do Peixe – que margeia a doca das Embarcações, e que durante o dia funciona como um passeio como outro qualquer, servindo de rota para quem vai ou vem do Mercado de ferro e da feira do Ver-o-Peso. Apesar de haver, nos dias atuais, uma pressão muito forte por parte dos gestores estaduais e municipais para a mudança de destinação do uso atual desse espaço como principal entreposto pesqueiro da região, o mesmo permanece como um marco comercial e um referencial simbólico, cuja organização, aparentemente caótica, de fato satisfaz ao conjunto de usuários que interagem nesse lugar central, voltado para a recepção e distribuição do
pescado in natura para toda a cidade, desde sua gênese. nesse sentido, Loureiro (1985, p. 21) comenta que desde o período colonial [...] a subsistência do homem amazônida fundamentou-se no pescado e na pequena produção agrícola, com destaque para a mandioca usada para fabricar farinha, a qual sobrexcedia todas as demais espécies. o pescado, como produto alimentar básico das populações paraenses tinha seu valor natural reconhecido a tal ponto que, em certa época, serviu como moeda em algumas formas de pagamento7.
A autora enfatiza a importância do pescado para o homem da Amazônia e, consequentemente, a sua comercialização e consumo para alimentação como algo presente na vida dos habitantes da região. furtado (1993) concorda com Loureiro (1985) quanto a essa combinação alimentícia entre farinha de mandioca e peixe como uma díade que vem acompanhando o habitante da região dos tempos pretéritos até os atuais8, fazendo com que haja sempre a procura por esses importantes gêneros alimentícios, necessários à composição da mesa do amazônida.
figura 2. Planta baixa do complexo Ver-o-Peso, com destaque para a Pedra do Peixe. fonte: adaptado de arquivos de projetos físicos de feiras e mercados do município de Belém. Belém: sECon/dfMP (2015). 7
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A autora se refere ao período colonial, em Belém, quando foi autorizada a taxação de produtos na mesa do Haver-o-Peso e que pagavam os “empregados públicos da época com pescado” (Cruz, 1973, p. 277). A dieta do pescador – em atividade de pesca – continua sendo peixe com farinha, sendo que, em muitas localidades do Pará, esse é um prato típico.
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A história de Belém do Pará está intrinsecamente ligada à história do Ver-o-Peso, pois, desde 1625 – apenas nove anos após a fundação da cidade –, com a taxação dos produtos que chegavam ou saíam do ancoradouro, logo denominado de Haver-o-Peso (Cruz, 1973), já se iniciava um lugar de comércio, mas também de socialização e de cultura, que perdura ao longo da trajetória de Belém, iniciando ali também uma rede de comercialização na qual diversas gerações vêm reproduzindo atividades voltadas à circulação do pescado para abastecer a cidade. Carlos (1997, p. 28) considera o espaço como fruto de uma relação que se concretiza, de modo formal, “em algo passível de ser apreendido, entendido e aprofundado”. Esse aporte teórico vem ao encontro do que representa o espaço do Ver-o-Peso, pois a sociedade o produziu ainda no século XVII, o aprofundou e o reproduz a cada dia no seu cotidiano relacional como um limiar entre o rural e o urbano, entre os rios e a cidade. Como afirma Campelo (2010, p. 45), o Ver-o-Peso “encerra em si próprio um espaço significativo para a identidade econômica e cultural da cidade e de toda a região, principalmente as ilhas que dele dependem, emblema oficial da cidade e porque não dizer de todo o Pará”, trazendo em si mesmo moradores da cidade, das ilhas, de outros municípios, principalmente ribeirinhos, que interagem nesse local; uns vendendo, outros comprando, outros carregando e outros tentando ‘dar um golpe’, tentando um furto, mas cada uma das milhares de pessoas que ali se reúnem contribui para a materialização espacial do Ver-o-Peso, mantendo viva sua originalidade de espaço limiar. Na Pedra, é possível perceber a existência e a manutenção cotidiana de relações de sociabilidade (Simmel, 1979, 1983, 2006), que se constituem e se mantêm através das redes de comercialização do produto; ao lado das relações mais fluidas, passageiras, como a simples compra e venda do pescado, acontecem também relações mais profundas, intrínsecas e duradouras entre os diversos agentes. Ao lado do comércio e das trocas propriamente econômicas, pode-se perceber
todo um sistema de trocas e dádivas não econômicas, marcadas pela presença de relações que não têm como objetivo principal ‘ganhar’ dos parceiros. Essas formas de relações confirmam a existência de dinâmicas específicas a partir de suas lógicas próprias de funcionamento, que ultrapassam ou não têm como referência necessária a lógica racional e utilitarista do mercado. Como ocorre com a economia local empreendida na Pedra, a qual é regida pela própria sociedade, e que, embora faça parte da economia de mercado, é ao mesmo tempo popular, no sentido de imperar a informalidade dentro de um microcosmo específico, com regras culturais próprias. Nesse sentido, a Pedra do Peixe é um espaço representativo da Feira do Ver-o-Peso, com temporalidades próprias, pois funciona durante a madrugada para a venda por atacado, encerrando suas atividades às seis horas da manhã. A Figura 3 apresenta um fragmento desse espaço-tempo peculiar no Ver-o-Peso, quando as balanças que ainda restam são guardadas e os vendedores de peixe aproveitam para oferecer seus produtos expostos em basquetas ou armazenados em caixotes, sendo vendidos no varejo a preços módicos, concorrendo com os praticados no Mercado de Ferro, como um ato de resistência às determinações do poder público.
Figura 3. Imagem da Pedra do Peixe em final de expediente, ao amanhecer. Foto: Luiz de Jesus Dias da Silva (2013).
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REDES SOCIAIS NA PEDRA DO PEIXE A teoria das redes sociais, iniciada na primeira metade do século XX9, ultrapassou as fronteiras e limites conceituais para se estender e alcançar os mais diversos níveis e dimensões da realidade; atualmente, esse termo remete diretamente à grande rede mundial de computadores (Castells, 1999), às redes sociais populares praticadas na internet, assim como às redes de lojas, de comunicação e outras tantas que se utilizam de tecnologias de informação, possibilitando e, cada vez mais, ampliando um sistema de comunicação entre sujeitos e seus relacionamentos sociais virtuais existentes no planeta. Remete, ao mesmo tempo, às redes globais e informacionais, ora referidas, e às interações sociais presenciais, onde há predominância dos contatos face a face entre as pessoas que as compõem. Assim, foi possível trazer dos agrupamentos humanos – cujos membros se relacionam entre si – a ideia da rede social, que, por diferentes processos de transformação, inspirou os modelos dos complexos conglomerados das redes globais. Na antropologia social inglesa, devemos a Barnes (1972, 2003, 2010), Bott (1976 [1957]), Mitchell (1969) e Epstein (1969), entre outros, análises situacionais de processos sociopolíticos que enfocavam as redes operacionalizadas por unidades sociais discretas (famílias, grupos, comunidades, associações). Radcliffe-Brown (2013, p. 170) definiu a estrutura social como a “rede de relações realmente existentes” em uma sociedade. Ao afirmar que a antropologia se ocupa de “fatos observáveis e concretos” Radcliffe-Brown (2013, p. 170) e assim propor um sentido empírico à noção de estrutura, o autor de fato inaugurou o uso simbólico da expressão e da ideia de ‘redes e laços sociais’, prenunciando visionariamente a importância que a análise de redes sociais ganharia a partir dos anos 1950 na
antropologia social (Barnes, 2010; Mayer, 2010). Segundo Barnes (2010, p. 179): [...] quer a rede possa ou não ser associada de maneira útil à “estrutura social”, não podemos encontrá-la nem aqui nem ali. Independentemente de qualquer coisa, a rede social é uma abstração de primeiro grau da realidade e contém a maior parte possível da informação sobre a totalidade da vida social da comunidade à qual corresponde. Chamo-a de rede social total.
Partindo dessa definição, é necessário ter claro que rede social, neste trabalho, é a interpretação das relações existentes entre os sujeitos em um determinado contexto, ou seja, não é uma evidência empírica imediata, mas uma abstração realizada a partir da interpretação de práticas e sentidos nativos. Nesse sentido, o conhecimento teórico sobre redes sociais na antropologia é necessário para a construção dos modelos de relações sociais, que foram utilizados na análise das redes, ou mesmo de seus diversos fragmentos (Barnes, 2010). Para este autor, a análise de redes sociais fica mais plausível quando considerada o que ele chama de rede parcial10. Barnes (2010) considera que, para empreender uma análise de redes, é importante o conhecimento quanto aos instrumentos analíticos disponíveis, entre os quais ele aponta a necessidade de construir um modelo que contenha a representação de pessoas, algumas das quais estão em relacionamentos sociais com outras. Na construção do modelo, o fato crucial é que toda pessoa real (ou virtual) se conecta com outra ou entra em contato com várias outras pessoas, formando redes parciais ou totais. Em um modelo de análise parcial ou total de uma rede, aparecem seus elementos, chamados de nós11, e suas ligações12, laços ou conexões. A esse modelo facilitador de análise, Wasserman e Faust (2009) chamam
Segundo Santos (2003, p. 3), a teoria das redes sociais surgiu de “várias perspectivas teóricas que em princípio já existiam de forma paralela e autônoma [e] acabaram por confluir para um mesmo ponto”, destacando-se, entre elas, a sociometria (Moreno, 1934), a teoria psicológica do equilíbrio estrutural (Heider, 1946; Cartwright; Harary, 1956), e a teoria matemática dos grafos, creditada a Leonhard Euler, matemático que viveu no século XVIII. 10 Rede parcial, para Barnes (2010), é qualquer extração de uma rede total, com base em critério que seja aplicável a essa. 11 Nó de uma rede é cada elemento que compõe essa rede social e está passível de ligação com outro nó. 12 Ligação, laços ou conexões de uma rede é a ligação entre os elementos ou nós da rede social. 9
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de sociograma13. Através dos modelos de redes parciais, é possível examinar seus elementos ou nós, “com base na posição, na forma ou no conteúdo” (Barnes, 2010, p. 180). É possível identificar a centralidade de um ator em uma rede em razão da quantidade de laços pelos quais está ligado aos outros participantes, de modo que a centralidade é definida pelo número extenso de relações que o ator mantém com os outros sujeitos, e pela maior visibilidade que alcança em razão disso (Wasserman; Faust, 2009). As interações existentes nas redes sociais da Pedra envolvem processos comunicativos baseados em informações incorporadas (Goffman, 2010), ou seja, no fluxo de mensagens que o emissor comunica através de sua própria atividade corporal e que depende da presença dos corpos dos sujeitos envolvidos no diálogo para sua sustentação e compreensão. Esse tipo de interação simétrica é caracterizado por um rico e contínuo fluxo de informações retroalimentado constantemente enquanto os sujeitos se comunicam, e é condição necessária para a tessitura de redes sociais. Dessa forma, os laços entre os diversos indivíduos concretos que atuam intencionalmente na circulação do pescado na Pedra não se limitam ao campo econômico-comercial, mas avançam para estágios que envolvem, principalmente, confiança, alianças, desafios, conflitos e reciprocidade. A teoria das redes sociais foi aplicada nessas relações para analisar as posições dos atores sociais, a centralidade de sujeitos de categorias específicas, a força de seus laços
(Granovetter, 1973), bem como coalisões (Boissevain, 2010) e formas de suas práticas14. As relações sociais na Pedra vão dos laços mais fortes, em função da proximidade entre os atores sociais, às mais amplas, que geram os laços mais fracos, os quais garantem, por outro lado, a ampliação e consequente densidade da rede. Para colocar em movimento essa extensa rede de circulação do produto, diversos sujeitos transitam incessantemente entre água e terra, portos e estradas, tendo a Pedra do Peixe como principal espaço mediador dessas relações. As redes sociais conectam os diversos atores sociais envolvidos no processo de circulação do pescado, a partir da pesca nas águas distantes da cidade, passando pelo entreposto pesqueiro do Ver-o-Peso, a Pedra; esse processo envolve direta e indiretamente diversas interações entre vários atores sociais em toda a área continental da cidade e até fora dela. As observações de campo permitiram perceber que os diversos sujeitos se relacionam em grupos previamente estabelecidos, formando pequenas redes que se interrelacionam e são interdependentes, lembrando o que Barnes (2010) denomina de redes sociais parciais. Por exemplo, um barqueiro só desembarca seu pescado capturado muito distante se ele tiver um balanceiro para fazer circular o produto, o qual, por sua vez, tem um grupo de pessoas que trabalham com ele, na sua rede parcial. De barqueiros 15 – também denominados de geleiros –, com seus tripulantes16 que aportam com os peixes na beira, a viradores17, carregadores18, balanceiros19
Sociogramas ou sociomatrizes são modelos da rede parcial passíveis de serem analisados; foram usados pela primeira vez por Moreno (1934), que demonstrou como se poderiam representar as relações retratadas (Wasserman; Faust, 2009). 14 Segundo Meneses (2007, p. 24), redes sociais são “um sistema aberto em permanente construção, que se constroem individual e coletivamente. Utilizam o conjunto de relações que possuem uma pessoa e um grupo, e são fontes de reconhecimento, de sentimento de identidade, do ser, da competência, da ação. Estão relacionadas com os papéis desempenhados nas relações com outras pessoas e grupos sociais, constituindo-se nas práticas sociais que no cotidiano não se aproveitam em sua totalidade”. 15 Barqueiros ou geleiros são proprietários de embarcações que capturam e trazem o pescado à Pedra. 16 Tripulantes são os trabalhadores que atuam nas embarcações que realizam a pesca, é como se autoidentificam para se diferenciarem de outros pescadores que utilizam anzol, ‘os anzoleiros’. São tripulantes também o maquinista ou motorista, o gelador, responsável por conservar o pescado nas urnas que ficam no porão das embarcações, além do cozinheiro e do encarregado ou comandante. 17 Viradores são profissionais que recebem o pescado do barco, levando-os até as balanças, onde viram (despejam) o produto na caixa do carregador. 18 Carregadores são os profissionais que carregam as caixas, com capacidade para até 100 quilos de pescado, até os carros de carreto. 19 Balanceiros são os comerciantes que intermediam a venda do pescado do barco aos compradores. 13
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e compradores20, entre outros21, há um conjunto de sujeitos em interações que colocam o pescado em movimento e o fazem chegar às casas e às mesas dos consumidores, como um alimento cotidiano ou como prato típico da culinária paraense. Os trabalhadores da Pedra do Ver-o-Peso desenvolvem suas atividades regulares dentro de suas especificidades, classificadas por eles mesmos em diversas categorias, como as de geleiros ou barqueiros, encarregados, tripulantes, dentro das quais estão as especialidades dos maquinistas, dos pescadores, do cozinheiro e do gelador; esse último trabalha no porão da embarcação, acondicionando o pescado no gelo e nas urnas, que são os compartimentos ou divisórias apropriados para transportar o pescado capturado com todo o cuidado para sua conservação; todos esses sujeitos trabalham embarcados para trazerem o pescado a ser comercializado na Pedra do Peixe. Antes mesmo da Pedra, a circulação do pescado está em constante movimento pelos tripulantes e barqueiros, por comerciantes que fornecem insumos necessários à pesca, e que muitas vezes são os próprios marreteiros22 ou balanceiros do Ver-o-Peso. Para fazer a captura do pescado em águas marinhas ou estuarinas, esses pescadores passam muitos dias afastados dos seus meios familiares, seus ambientes em terra, enfrentando dificuldades, obstáculos e perigos, tal como analisado por Furtado (2008), que exalta o profundo conhecimento dos ambientes hídricos que atravessam para capturar o pescado e levar sua carga à Pedra do Ver-o-Peso23. Em terra, estão as categorias dos balanceiros, que trabalham – cada um – com um virador; as categorias dos
carregadores, dos compradores, que podem ser peixeiros do Mercado de Ferro, de outros mercados e feiras da cidade, dos compradores de grandes supermercados, compradores avulsos, donos de restaurantes formais e informais, entre outros. Além dessas categorias, estão os vendedores avulsos de produtos diversificados, como miudezas em geral, sacolas, caixas de papelão, cafezinho, mingau, prestadores de serviços, como de manicure, de apostas de jogo do bicho e de loteria. Estão também, na Pedra, os agentes do poder público, como fiscais, policiais, entre outros. A partir da Pedra, o pescado é distribuído para os mercados, feiras, supermercados, grandes e pequenos consumidores de Belém e outros compradores de municípios próximos e até mesmo de outros estados brasileiros, havendo vários casos de exportação. Entre a produção, no caso a captura do pescado, que se dá ‘lá fora’24 e a pressão do consumo que se faz diariamente na Pedra, existem relações interpessoais que implicam a participação e a distribuição do conhecimento de cada ator social que participa desse conglomerado, em um fluxo que se expande socialmente e se complexifica cada vez mais.
A FEIRA DA MADRUGADA NA PEDRA DO PEIXE A feira da madrugada é formada por muitas pessoas, como o balanceiro Tetéo, o peixeiro Francisco e a peixeira Pingo, o carregador Faísca, o comprador Guru, a vendedora de caixas de papelão Luiza e tantos outros sujeitos, que participam das redes de circulação do pescado na Pedra do Peixe. Essa feira apresenta similaridades
Compradores são os sujeitos que compram o pescado, por atacado, dos balanceiros na Pedra. Corrêa e Leitão (2010) denominam essas atividades de acessórias, referindo-se aos vendedores de cafezinho, mingau, sopa, churrasquinho, lanches e outros produtos, como pneus velhos para proteção externa do barco. 22 Marreteiro é um termo sinônimo de balanceiro ou comerciante da Pedra, mas é usado de modo pejorativo como atravessador, o qual não é aceito pelo balanceiro. 23 O pescado recebido na Pedra é capturado em regiões costeiras, ao norte do Pará, foz do rio Amazonas, foz do rio Pará, na região do Salgado e nos rios interiores e estuarinos e em lagos, como o lago Arari, no Marajó. 24 ‘Lá fora’ é um termo muito usado pelos atores sociais envolvidos nessa relação comercial na Pedra, quando indicam os locais onde se captura o pescado, em uma referência à distância dos rios estuarinos e litoral em relação ao Ver-o-Peso. 20 21
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quanto aos ritmos e horário de funcionamento25, assim como contiguidade com a Feira do Açaí26, pois ambas acontecem durante a madrugada, reunindo pessoas e produtos nas interrelações comerciais, e também quanto à forma de comercialização de venda direta, em um ambiente onde muitos sujeitos se conhecem, realizam suas trocas comerciais, ao mesmo tempo em que desenvolvem relações de sociabilidade entre parceiros comerciais, clientes ou eventuais frequentadores do local; outra semelhança é quanto à periodicidade, pois ambas funcionam de segunda-feira a sábado. Muitos consumidores vêm de bairros distantes do centro histórico, são compradores ou feirantes de outros recantos da cidade que se abastecem, abastecem comerciantes ou consumidores finais, compram no Ver-o-Peso e/ou transportam as mercadorias para seu destino específico. Muitos feirantes da cidade se associam para dividir as despesas de transporte com outros companheiros, e vão juntos à Pedra, à Feira do Açaí ou a outro ponto do Ver-o-Peso, nas madrugadas belenenses. Esse tipo de associação ocorre a partir de vários bairros da cidade, e se baseia em relações construídas a priori face a face, em bases outras que não o puro interesse econômico: são relações de amizade, lealdade e confiança no outro, com características semelhantes às que estão presentes em um sistema de dádivas e reciprocidade (Mauss, 2003); no caso da associação observada, há também a necessidade coletiva de juntar forças, economizar, se proteger e, principalmente, comprar. Todos fazem parte da rede, alguns ‘lá fora’, outros muitos na Pedra e outros tantos na malha urbana da cidade, mas todos envolvidos na circulação do pescado, a qual, embora tenha passado por muitas modificações ao longo do tempo, mantém-se ativa, possivelmente nos
mesmos moldes há séculos, tendo sua gênese na Belém colonial e vindo por todo esse interstício de tempo a aumentar proporcionalmente com o crescimento espacial e populacional da cidade até os dias atuais, nessa segunda década do século XXI, não se sabe até quando. Alguns trabalhadores que atuam na Pedra, como o vendedor de peixe salgado Amarildo e o balanceiro Tetéo, preveem que haverá fim dessa atividade se as autoridades que os pressionam resolverem realmente retirar esse entreposto pesqueiro do Ver-o-Peso, ou se houver diminuição significativa da população e de espécies de pescado, ou mesmo se não houver mais trabalhadores das categorias existentes e necessárias para os ofícios que fazem existir a rede do pescado. Considerando que seus ofícios foram iniciados quando ainda eram crianças, e que hoje é proibido o aprendizado infantil, o que impede a renovação do contingente desses trabalhadores, haveria, desse modo, várias ameaças às atividades da Pedra, que, por esses motivos, pode resultar no fim dessa tradição no mercado local. No caso dos barcos que partem de Belém, após as providências iniciais, eles seguem rumo à cidade de Vigia, no litoral nordeste paraense, onde completam o abastecimento de combustível e procedem à compra do gelo; em seguida, iniciam a viagem até o local ou ponto da pesca ou captura do pescado, onde os tripulantes passam cerca de dez a 28 dias nessa atividade, até encher as urnas com peixes e gelo, ou até acabar o gelo para acondicionar e conservar; começa então a viagem de volta à Pedra, quando ocorre o desembarque e a comercialização pelos balanceiros aos compradores, que geralmente são revendedores e fazem o pescado chegar ao consumidor final. A Figura 4 apresenta um fluxograma dessa atividade.
Quanto ao horário, tanto a Feira do Açaí como a Pedra do Peixe funcionam nas madrugadas porque vendem por atacado aos comerciantes que revendem seus produtos durante o horário comercial. 26 A Feira do Açaí é formada na rua que fica na margem oposta à Pedra e suas adjacências, entre o Forte do Castelo e a Doca das Embarcações do Ver-o-Peso; é o local onde desembarcam açaí, ervas medicinais, farinha e diversas frutas vindas de cidades do interior do estado para comercialização. 25
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Ressalta-se que tripulantes, encarregados, barqueiros e balanceiros fazem muitas queixas sobre a diminuição de pescado nos pontos piscosos nas últimas décadas. Atualmente, os barcos levam 25 dias ‘lá fora’ e, por vezes, trazem as urnas com a metade da sua capacidade; uma embarcação com capacidade para vinte toneladas consegue trazer apenas um pouco mais do que dez toneladas de pescado. Quando esse pescado é totalmente vendido e retirado da embarcação, ocorre a prestação de contas pelo encarregado, para que os tripulantes recebam o que lhes é devido pelos acordos de trabalho estabelecidos e, a partir de então, eles iniciarão procedimentos para nova jornada de pesca. Fica implícito, no fluxograma da Figura 4, que há atividades específicas realizadas por diversos trabalhadores em cada etapa; todos se relacionam entre si, direta ou indiretamente, participando dessa rede organizada para levar o pescado à Pedra e fazê-lo circular pela cidade; portanto, cada ponto desse fluxo contínuo pode conter várias redes parciais, que formam a ‘rede’, ou seja, a rede social total do pescado. Em resumo, o fluxograma apresenta as etapas ou atividades empreendidas para a pesca, comercialização e circulação do pescado na cidade de Belém do Pará; do planejamento para realizar a pesca, desembarque do produto e comercialização na Pedra, momento após o qual os tripulantes recebem seus proventos resultantes da venda do pescado na Pedra e iniciam outro ciclo para realizar nova pescaria; ao mesmo tempo, prossegue, de modo aparentemente autônomo e independente, a comercialização que faz circular o pescado até chegar ao consumidor final. Os trabalhadores dessa ‘rede’ exercem suas atividades por categorias, agindo individualmente, mas seguindo os padrões de relações e características específicas de cada categoria, e que, em muitas ocasiões, ultrapassam os relacionamentos puramente comerciais entre os atores sociais envolvidos. Leitão e Rodrigues (2011, p. 1) percebem as relações de reciprocidades existentes entre as categorias na ‘rede’, no fluxo, pois:
[...] uma primeira abordagem deixa perceber as relações de reciprocidade entre as diferentes categorias de trabalhadores, revelando igualmente as redes sociais que emergem nos mercados e como a dinâmica de tais ambientes depende da existência dessas redes interpessoais.
Figura 4. Fluxograma das ações em torno do pescado. Elaborado pelos autores.
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Ao perceberem que a relação entre as categorias de trabalhadores e consumidores nas redes parciais se dá dentro dos princípios de reciprocidade, as autoras também consideram que essas redes garantem a dinâmica e a circulação no mercado. Abordagens qualitativas e quantitativas de pesquisa em torno da rede social imbricada nesse processo trazem à discussão a relevância quanto à sua composição, sua importância para as muitas categorias de trabalhadores envolvidas ou dependentes dessa atividade e aos muitos beneficiados, aí incluídos os consumidores finais, que saboreiam o peixe regional nos lares, restaurantes, botequins e outros locais onde esse alimento pode ser servido. A trama é feita por indivíduos que se relacionam em rede para vender e comprar produtos, onde o principal objeto é o pescado e sua circulação e, embora cada um tenha um posicionamento individual, eles passam a formar categorias interligadas por objetivos específicos, passíveis de serem analisados pela sua importância cultural e socioeconômica. No caso dos trabalhadores ligados à distribuição do pescado no Ver-o-Peso, é importante a análise da rede social para detalhar a posição de membros das categorias constituídas no contexto das atividades econômicas das quais participam: o que fazem, como fazem, quais as especificidades desse ‘saber fazer’; como se relacionam, como vivem, de onde são, e outras informações importantes que nos permitam apreender suas conexões interpessoais, que surgem a partir da afiliação a uma determinada categoria e fazem parte da “rede social total tanto quanto as que vinculam pessoas de grupos diferentes” (Barnes, 2010, p. 175). Na Pedra, como em outro setor apontado no fluxograma da Figura 4, existem várias redes parciais, que formam a rede social; como no caso da Figura 5,
um sociograma que representa o modelo de uma rede social parcial, onde o balanceiro Tetéo (A) é um nó alfa27, abastecido de pescado, nesse caso, pelo barqueiro Limatão (B). Essa rede visa a apresentar os atores sociais atuantes na Pedra, do ponto de vista do balanceiro Tetéo (A), a figura que tem maior número de ligações, portanto, um nó de centralidade ou nó alfa (Barnes, 2010) dessa trama. Barnes (2010) classifica as pessoas que têm ligações diretas com alfa como contatos de primeira ordem de alfa, e, a partir deste, inicia a análise de posição de cada indivíduo da rede social. Tetéo, um balanceiro da Pedra, faz o papel de intermediário entre um barqueiro, o Limatão, ponto (B) e um comprador, o Anísio (G/I); o barqueiro ou o geleiro são os proprietários da embarcação, às vezes, eles contratam um encarregado para o comando do barco; pode acontecer de o balanceiro ser também o dono do barco, pois “hoje em dia tem balanceiros que são os donos dos barcos, de frota de geleiras” (Tetéo, balanceiro, entrevista realizada em 17 nov. 2013). Ao tratar sobre o assunto, afirma que: Tem barqueiro que não tem mais filho pra continuar o seu trabalho ou então deve muito, aí negocia com balanceiro que entra nesse negócio de ter embarcação, quer dizer que ele (o balanceiro) ganha no pescado e ganha no peso; mas não deve ser fácil não, lidar com tripulante! Não tem mais homem que queira trabalhar embarcado, não. Isso é uma coisa que passava de pai pra filho, mas agora garoto não pode mais trabalhar [...] roubar ele pode, mas aprender um ofício enquanto é moleque, não pode. (Tetéo, balanceiro, entrevista realizada em 5 jun. 2014).
No sociograma apresentado na Figura 5, evidencia-se o balanceiro Tetéo (A), que vende o pescado do barqueiro Limatão (B) e é auxiliado pelo virador Bote (D). O Limatão (B) tem cinco tripulantes na embarcação, embora só apareça no sociograma o gelador Moacir (C).
Pessoa ou nó alfa é, segundo Barnes (2010), importante para a análise de uma rede social quanto à posição; assim, “é melhor tomarmos primeiramente o critério da posição. As conexões na rede total são relações diádicas entre pessoas, e uma maneira óbvia de isolar uma posição ou localidade social na rede, para estudo detalhado, é qualquer pessoa alfa e examinar a rede a partir do seu ponto de vista” (Barnes, 2010, p. 180).
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Figura 5. Sociograma representando rede social parcial com os atores pertencentes à Pedra. Elaborado pelos autores.
O Tetéo tem um sobrinho (F), que é seu auxiliar – quiçá futuro substituto – e uma espécie de conferente, e fica ao seu lado observando e conferindo tudo em volta, mas pode também fazer mandados, como comprar cafezinho, e, ao mesmo tempo, vai aprendendo o ofício. Os carregadores próximos, nesse caso, eram o Faísca (E) e o Motorzinho (E). Em geral, o Limatão (B), que é o dono de barco, negocia o preço do pescado com o Tetéo (A), mas quando o encarregado é empregado do balanceiro, como Tetéo (balanceiro, entrevista realizada em 05 jun. 2014) declarou anteriormente, “nesse caso ele não interfere no preço”. No barco do Limatão, está o gelador Moacir (C), um tripulante que tem o papel importante de classificar e gelar o peixe
“desde lá de fora” e de retirá-lo das urnas internas da embarcação, por espécies, jogando-o no convés do barco, onde o pegador28 o recebe e o coloca nas basquetas, para ser levado do barco à Pedra. Na Pedra, no caso etnografado, está presente o virador apelidado de Bote (D), um dos sujeitos que trabalha diretamente com o balanceiro Tetéo, sendo elemento de sua confiança; o Bote recebe o peixe do gelador Moacir, que trabalha embarcado como Limatão, ou o retira das caixas de isopor29, as quais, a essas alturas, já estão posicionadas próximas do balanceiro, colocando o produto solicitado na caixa do carregador Faísca (E), que já está na balança do Tetéo; o pescado é pesado
Pegador é um tripulante encarregado de pegar o pescado estocado nas urnas localizadas no porão do barco, que é jogado para o convés da embarcação, devendo colocá-lo nas basquetas que serão desembarcadas na Pedra. 29 Caixas de isopor, geralmente com capacidade para 200 litros, conservam pescado que vem pela estrada, dos centros pesqueiros como o município de Vigia. 28
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pelo Tetéo, sob os olhares atentos do comprador, e, em alguns casos, por um auxiliar do balanceiro, o conferente (F), do geleiro ou pelo barqueiro Limatão (B), que fica por ali, atento. Afinal o peixe é dele e de sua tripulação. A figura do virador (D) é essencial nesse processo, pois é ele quem trabalha diretamente com o balanceiro, “sendo geralmente parente desse ou seu conhecido há bastante tempo, em quem o balanceiro deposita muita confiança” (Corrêa; Leitão, 2010, p. 113); ele também deve ser forte para poder levantar a caixa do carregador juntamente com este, até ajustar bem na sua cabeça, mais especificamente na rodilha desse carregador, que, após o devido equilíbrio, sai carregando cerca de cem quilos na cabeça, quase correndo. Às vezes, é o carregador (E) quem encontra o comprador ou patrão (G), levando-o ao balanceiro ao qual é mais ligado, tem melhor relacionamento ou que poderia oferecer mais vantagem, conforme o caso, para negociação final do pescado, mas o comum é o comprador pesquisar, escolher bem o produto, o preço e o balanceiro para realizar a transação correta. A partir dessa etapa, a rede social se dilui bastante, porque os carregadores e compradores são diversos, não têm, a priori, o compromisso de comprar com o Tetéo, pois estão lá presentes cerca de cem a cento e cinquenta balanceiros vendendo nas proximidades, mas há um detalhe importante: alguns compradores são fiéis a um determinado balanceiro, e isso ocorre porque existe uma aliança entre eles, que foi criada anteriormente e permanece sinalizando uma relação entre parceiros comerciais que vai além da simples comercialização, e nesse caso os laços ou ligações se fortalecem. Mesmo os sujeitos que não possuem aparentemente laços fortes com determinados atores sociais em posições de prestígio podem muito bem se relacionar com outros de prestígio semelhante àquele com o qual pouco se relaciona
ou possui laços fracos. Isso demonstra as interconexões nas redes sociais que as tornam mais densas, demonstrando, ainda, que a existência de laços fracos com uns sujeitos pode resultar em laços fortes com outros sujeitos. Depois do comprador, a distribuição do produto continua até chegar ao consumidor final; D. Josefa (M), por exemplo, o adquire do peixeiro Francisco, na Feira da Avenida Tavares Bastos (J), assim como outros consumidores nos mercados (I), supermercados (K), chegando também aos restaurantes oficiais (L) e aos restaurantes informais, como o da ‘boieira’ Joana (N), que prepara o peixe frito ou cozido para o almoço de seus fregueses em uma barraca na Feira da Avenida Tavares Bastos. O comprador pode ser dono de talhos em mercados e feiras dos bairros, como o Francisco, o Maciel ou o Seu Moju; pode ser um dono ou gerente de restaurante, como o Germano, que compra para o restaurante administrado por ele dentro de um clube da cidade; pode ser um comprador profissional, como a Socorro Araújo e o Guru, que adquirem o produto em grande quantidade, a primeira para uma rede de supermercados da cidade, o segundo para exportação; ou mesmo uma pessoa comum, uma dona de casa que quer somente comprar para consumir, e busca um equilíbrio entre qualidade e preço do produto. Essa rede social parcial, que interage com outras redes semelhantes segundo os princípios de comercialização, mas também segundo as regras de reciprocidade e formas de sociabilidade local, é composta por muitos atores sociais envoltos na trama, os quais dependem uns dos outros e, quanto mais se ajudam, se comprometem mutuamente, mais estreitam ou fortalecem seus laços, como apontam Corrêa e Leitão (2010, p. 125): A estreiteza das relações permite certos compromissos entre vendedores e compradores de pescado, pois muitas vezes o dinheiro é adiantado ao marreteiro 30 para compra do
Marreteiro, na Pedra, é uma denominação pejorativa atribuída aos balanceiros, em uma conotação de sentido negativo, pois, para eles, são atravessadores e seriam os responsáveis pela alta dos preços do pescado na Pedra. Nos locais onde tradicionalmente há movimentação de pesca artesanal no estado, marreteiro é o atravessador que compra o pescado do pequeno pescador para revenda no mercado local ou para venda em Belém ou outra localidade, até fora do Estado.
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pescado, por alguém a quem ele se compromete a entregar toda sua produção. Encontram-se nesse emaranhado social também, além da reciprocidade, muitas relações de parentesco, seja consanguíneo ou por afinidade.
Um comprador bem tratado pelo balanceiro retorna para comprar desse sujeito; o carregador que ajuda a escolher o peixe, evitando que o patrão leve ‘peixe fraco’, passa a ser essencial para esse comprador e pode ganhar gorjeta extra, confiança e preferência deste, estabelecendo vínculos de lealdade e obrigações mútuas. O balanceiro que vende fiado ao peixeiro também constrói um vínculo de confiança, uma aliança, a partir do prolongamento da relação comercial. Mas essa aproximação a que se referem Corrêa e Leitão (2010) cria outros desdobramentos, a serem tratados a seguir, como a garantia da distribuição e consequentemente da renda obtida com a venda do pescado e até empréstimos eventuais. O balanceiro Tetéo, assim como outros atores sociais locais, faz parte de redes sociais de compra, venda, mas também de amizade, parentesco e muitas trocas. O Tetéo chega mais cedo e já conta com um grupo de trabalhadores que lhe dão apoio ali, diariamente, como o virador Assis, que, a essa altura, já está posicionando a cadeira e a balança do Tetéo próximo do barco com capacidade para vinte toneladas, cujo encarregado e dono é o Limatão, que ajuda o Assis a carregar e posicionar a balança e fica com sua tripulação a postos para o desembarque do pescado, pesado e vendido por Tetéo. Os laços fortes (Granovetter, 1973) dependem de relações duradouras, que, muitas vezes, são estabelecidas a partir do parentesco, da confiança, da empatia, da maneira de interagir, das alianças que produzem uma sociabilidade fundada na reciprocidade. Mas os sujeitos envolvidos em laços fracos, como os carregadores e compradores em geral, em relação à rede parcial do balanceiro Tetéo ou em relação à outra rede parcial qualquer, têm uma importância relevante na rede do pescado, justamente porque eles não são participantes
exclusivos dessa ou de qualquer outra rede parcial e, desse modo, podem estar presentes em várias redes parciais, o que implica uma difusão e uma integração entre as redes parciais, potencializadas por eles, que ora estão presentes na rede cujo nó alfa é o Tetéo, ora estão na rede do balanceiro Dudu, ora estão em outra rede parcial qualquer, dando densidade à rede total. Nesse sentido, é possível classificar os atores dessa rede parcial em dois grupos: 1) os que têm laços fortes, como é o caso dos trabalhadores do seu grupo, os respectivos viradores, os encarregados e suas respectivas tripulações; 2) os carregadores, os compradores, os agentes do poder público, os trabalhadores de atividades acessórias e os consumidores finais, que são identificados como os que têm laços fracos com o Tetéo. Esses laços ficam cada vez mais fracos, conforme se afastam do contato dele, considerando para a análise a teoria de Granovetter (1973), até chegar aos consumidores que não têm nenhum laço com a sua rede parcial, mas podem ter laços com a ‘rede’, através de outra rede parcial. Essas observações confirmam que esses atores sociais de laços fracos com o balanceiro Tetéo são responsáveis pela união ou aumento da densidade da ‘rede’. Como pode ser notado, a partir do nível dos carregadores, há uma mistura das redes parciais, pois o Faísca (carregador) ora está prestando serviço para o Guru (comprador) que só compra com o balanceiro Gouvêa, ora presta serviço para o Francisco (peixeiro), que compra com qualquer balanceiro, embora tenha preferência em comprar com o Morango (balanceiro); desse modo, o Faísca está presente em várias redes parciais, assim como seus colegas de categoria que compõem – ou atravessam – as diversas redes parciais. O mesmo se dá com alguns compradores que têm preferências por determinados balanceiros. Outros, todavia, não têm essa fidelidade, compram com o balanceiro que oferecer pescado de melhor qualidade com o preço mais acessível em cada ocasião e, assim, também circulam através das diversas redes parciais.
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O mesmo acontece com os consumidores finais, os quais têm preferência por comprar em determinado lugar, por determinado motivo e com determinado fornecedor, mas, como no caso dos compradores de pescado por atacado, é necessário relativizar sua preferência, em função das muitas opções existentes; no caso dos consumidores finais, há muitos pontos de venda que a cidade oferece para aquisição do pescado; diversos consumidores afirmaram que gostam do pescado do Ver-o-Peso, mas que cada vez está mais difícil estacionar lá, falta segurança, além de outras justificativas para irem às feiras e aos supermercados, em substituição à compra no Ver-o-Peso. Outras redes semelhantes às do Tetéo multiplicam-se na Pedra, formando a ‘rede’ do pescado, que envolve comercialização, mas também outros tipos de relações na circulação do produto, em uma dinâmica diária de trabalho. A sequência apresentada no fluxograma da Figura 4 representa a cadeia produtiva do pescado e as fases da trama comercial que se combinam, nos momentos de troca, aos atos de sociabilidade presentes nessas relações. Na Pedra, os sujeitos se agrupam, mesmo sem saber, em redes sociais parciais – que são abstrações semelhantes ao modelo representado na Figura 5 – por interesses mútuos, com práticas de solidariedade envolvidas a partir da relação comercial, progredindo em um processo que vai além da sociação31, pois “As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria.” (Simmel, 1983, p. 168), onde “[...] cada indivíduo deveria oferecer o máximo de valores sociais [...], compatível com o máximo de valores que [...] recebe.” (Simmel, 1983, p. 172); essas formas “São liberadas de todos os laços com os conteúdos, existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação desses laços.” (Simmel, 1983, p. 168), processo que o autor chama de sociabilidade. A partir da Pedra, há a distribuição para os diversos pontos de venda na cidade em transportes diversificados, sob a responsabilidade do carreteiro contratado pelo
comprador; esse comprador geralmente é um revendedor, podendo ser um peixeiro dos mercados de bairros ou das feiras livres, ou alguém que compra para abastecer supermercados, clubes ou restaurantes diversificados da cidade. Essa etapa do fluxo, na pesquisa, foi denominada de ‘depois da Pedra’.
A CIRCULAÇÃO DO PESCADO ‘DEPOIS DA PEDRA’ ‘Depois da Pedra’ é quando o fluxo do pescado e, consequentemente,a formação da rede social com seus atores sociais espalham esse produto pela cidade de Belém, mais especificamente nos diversos pontos de comercialização, como mercados, feiras livres, supermercados e outros, onde se vende o pescado in natura aos consumidores finais, como citado anteriormente, dentro do espaço urbano. As pessoas estão nos fluxos, onde se relacionam comercialmente e se interconectam em redes, fazendo circular o pescado desde a Pedra até os pontos de comercialização do produto na cidade. Na pesquisa, o autor observou a circulação do pescado em três feiras e uma rede de supermercados de Belém, como amostragem representativa do seu universo na malha urbana da cidade. No caso dos peixeiros de feiras de bairros, seu ganho ou lucro é nitidamente contabilizado a seu favor, a partir do trabalho de ir à Pedra para adquirir o pescado. Cada comprador e, de modo mais específico, cada peixeiro, tem seu jeito próprio de atuação, visando a circular o pescado adquirido na Pedra por toda a cidade, sendo possível até comprar pescado sem precisar ir à Pedra, por meio de um aparelho celular e com base na confiança nas pessoas de sua rede social que trabalham lá. Em diversos pontos de compra e venda do pescado em Belém, a pesquisa com sujeitos representativos de suas respectivas categorias, bem como com alguns dos seus fregueses, que representam os consumidores finais e o
Sociação, na visão de Simmel (1983), é a forma pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses.
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extremo da rede social do pescado, possibilitou observar esse processo de circulação do produto na malha urbana da cidade, assim como os modos de atuação dos sujeitos dentro dessa rede. É este o caso do peixeiro Francisco, da Feira da Tavares Bastos, que compra para seu box e para outros peixeiros, ganhando um real por cada quilo de pescado comprado para os seus parceiros Maciel, Moju e seu irmão Benedito, os quais não precisam ir à Pedra comprar. Semelhante, dentro de determinadas particularidades, é o caso da peixeira Pingo, que trabalha no mercado do Guamá e vai quase diariamente comprar pescado – na Pedra – do seu irmão, que é rotulado por alguns como balanceiro mercosul. Comprando com o Paulo, ela adquire peixe bom, com qualidade e preço que permite sua competitividade. Ela compra principalmente as espécies pescada branca, ‘pequena’, pescada gó e dourada, também de tamanho pequeno, mas ela enfatiza que compra do Paulo e também de outros balanceiros que garantam um preço bom, pois esse item é fundamental para ela. O Seu Boneco é peixeiro da Feira da 25 de Setembro32, trabalha em um box composto (espaço com quatro boxes unidos), que divide com três irmãos; compra peixe na Pedra três vezes por semana; além de pescado, ele compra também camarão e pirarucu salgado. Como tem carro próprio, tipo caminhonete, ele mesmo transporta o pescado comprado na Pedra para a Feira da 25. O Guru é um comprador profissional, que exporta pescado para outros estados e compra ainda para comerciantes que exportam para outros estados e até para outros países; ele compra o pescado todos os dias; prefere negociar com o Gouvêa, mas compra também de outros balanceiros, pela qualidade e pelo preço oferecido. Atualmente, ele está partindo para o ramo de filetagem de pescado. A Socorro é a gerente encarregada de comprar o pescado para uma grande rede de supermercados de Belém,
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e ela o faz com auxílio de vários colaboradores da organização comercial, um dos quais vai toda madrugada na Pedra receber, pesquisar e comprar pescado, enquanto outro recebe o pescado no Centro de Armazenamento e Distribuição do grupo; conta também com um gerente setorial em cada uma das lojas da organização em Belém, e um gerente supervisor setorial, que visita as lojas para garantir o padrão de qualidade almejado nesse setor do grupo comercial. Todos esses atores sociais citados representam categorias que têm em comum a incumbência de dar continuidade à circulação do pescado em Belém do Pará, isto é, à sua distribuição por toda a cidade. Essa distribuição, desde a Pedra, se irradia por toda malha urbana da cidade, de modo a se aproximar da população consumidora nos bairros ou subcentros, através das feiras, mercados, supermercados e outros pontos onde a comercialização se faz com frequência, havendo até promoção semanal nos supermercados, com preços anunciados como baixos. O modo como essa distribuição ou irradiação se materializa ramifica a rede para toda a cidade, finalizando-a nos consumidores do produto. Segundo dados da Secretaria Municipal de Economia (SECON, 2011), a quantidade de pescado que sai da Pedra é de cerca de 80 toneladas/dia em média; desse total, cerca de 30% sai para feiras e mercados populares da cidade. No entanto, foi possível observar, em um só dia, o comprador Guru adquirir 30 toneladas de um único balanceiro; em outra ocasião,observou-se o comprador da rede de supermercados receber o produto de uma embarcação com 20 toneladas, previamente contratado e comprado, naquela madrugada, por ele, o que permite pensar que há certa variabilidade, possivelmente sazonal, em relação aos dados oficiais. A SECON (2011), todavia, é assertiva em considerar que a “produção da Pedra é muito significativa na microeconomia de Belém e no seu abastecimento”,
A Feira da Avenida 25 de Setembro, mais conhecida como Feira da 25, fica localizada no bairro de São Brás, na Avenida Rômulo Maiorana, antiga Avenida 25 de Setembro, iniciando na confluência da Avenida Duque de Caxias e Travessa Jutaí se estendendo até a Travessa Antônio Baena.
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pois outros dados do Departamento de Feiras, Mercados e Portos (DMFP) da Secretaria confirmam que a “Pedra recebe o pescado por via fluvial e por via rodoviária” e que, na sua distribuição, envolve toda a cidade, “porque da Pedra vai peixe pra toda a Belém” (SECON; DFMP, 2015). Em síntese, a rede em torno do pescado na cidade de Belém envolve atores diversos: entre pescadores distantes, donos de embarcações e seus tripulantes, os profissionais que atuam na Pedra, os compradores, os consumidores finais e o Estado, que tenta controlar essa trama. Isso possibilita, assim, investigações e pesquisas sobre as relações aí existentes, antes da Pedra, na Pedra e na malha urbana. O que se pretendeu aqui foi fazer um recorte da circulação do pescado, da Pedra do Peixe aos diversos pontos espalhados pela cidade, chegando à ponta da rede social, onde está o consumidor final. Como lembra Penteado (1968, p. 402), “[...] talvez poucas áreas brasileiras consumam tanto peixe como na Amazônia, os mercados de Belém são fartos nesse apreciado alimento, proveniente quase todo das colônias de pesca localizadas na região da foz do rio-mar”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi possível constatar, nesta pesquisa, a existência de especificidades que só duram porque há um contrato social envolvendo a comercialização do pescado, mas que passam por alianças formadas a partir dessas relações, surgindo as amizades e outros tratos coletivos,os quais garantem sua continuidade, aceita por todos, havendo poucas exceções. A Pedra é um lugar de sociabilidade entre pessoas que, em rede, fazem circular o pescado em um fluxo constante, abrangendo toda a cidade. A dinâmica contemporânea do Ver-o-Peso, na visão de trabalhadores da Pedra, como o Amarildo, vendedor de peixe salgado, está atrelada à comercialização do pescado e de outros produtos trazidos pelas embarcações que ancoram
na Pedra do Peixe. Esses trabalhadores desembarcam suas cargas e, com os recursos financeiros que auferem, compram no comércio local outros produtos, muitas vezes em grandes quantidades, o que garante vida econômica e longevidade ao comércio central da cidade, além de ratificar a importância central no fluxo da cadeia produtiva do pescado e, consequentemente, na rede de circulação desse produto. Pode-se concluir que ocorre “um fato social total” (Mauss, 2003) em torno das atividades relativas ao pescado que desembarca na Pedra e que o fazem circular pelos pontos de venda em Belém. Pelas características como os atores sociais se relacionam no modus operandi do fluxo do pescado, pode-se considerar que essa interação empreendida na Pedra se reproduz ao longo de toda sua existência, desde o início do processo de colonização portuguesa, logo após a fundação da cidade de Belém, até os tempos atuais, e essa longevidade só é possível porque os sujeitos envolvidos a produzem através de redes sociais. Pode-se afirmar que a Pedra do Peixe e, de modo mais amplo, o Ver-o-Peso, possuem inegável importância, tanto histórica quanto cultural, simbólica e econômica, para a vida social de Belém, e que o Ver-o-Peso está atrelado à memória e à identidade do habitante de Belém33. A relevância das práticas e das relações sociais que existem na Pedra ao longo de aproximadamente quatro séculos, através dessa extensa rede social, dinamiza aquele lugar da cidade, garantindo a circulação do pescado para toda a malha urbana local e outros recantos. Enfim, a rede social em torno do pescado é composta por pessoas que, individualmente, formam os nós de ligações de uma rede. Grupos de pessoas se reúnem em volta de uma determinada atividade e de um determinado ator de grande prestígio ou de muitas ligações, como um balanceiro ou um barqueiro, por exemplo, e formam as redes parciais, as quais, reunidas
Em tempos recentes, houve duas enquetes onde, pelo voto popular e espontâneo, o povo deveria escolher o ícone de Belém. A primeira vez na década de 2000, promovida por uma rede bancária, e a segunda vez em dezembro de 2015, por ocasião de proximidade com a data da fundação da cidade, promovida por uma emissora de televisão. Nas duas vezes, o Ver-o-Peso foi o vencedor.
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em um conjunto, formam a rede social que faz circular o pescado, antes da Pedra, na Pedra e depois da Pedra, momento em que é distribuído na malha urbana de Belém, onde encontra a população que busca o pescado na qualidade de consumidor final. Pedra e redes ultrapassam, aqui, seus sentidos metafóricos, para materializar a circulação do pescado na cidade de Belém, marcando e reproduzindo história, cultura e sociabilidade em rede, envolvendo todos os pontos de comercialização ou degustação do pescado, que circula nesses fluxos, crescendo proporcionalmente e mantendo uma dinâmica própria, desde os primeiros desembarques na doca do Ver-o-Peso, ainda no século XVII, até os dias atuais.
BOTT, E. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
AGRADECIMENTOS Este artigo é um produto da tese de doutoramento intitulada ‘Pedra, redes e malha na circulação do pescado do Ver-o-Peso ao meio urbano de Belém do Pará’, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em março de 2016. Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar dos pescadores da RESEX Mãe Grande em Curuçá (PA) Women and the market: female participation and knowledge with regard to the introduction of new fish species on the market and in the diet of fishermen of the Mãe Grande de Curuçá Extractive Reserve, Pará State Marllen Karine da Silva PalhetaI, Voyner Ravena CañeteI, Denise Machado CardosoI Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil
Resumo: O artigo descreve como o conhecimento tradicional da mulher marisqueira e pescadora de rio e mar, da localidade de Caratateua, RESEX Marinha Mãe Grande de Curuçá (PA), contribui na inserção e comercialização de novas espécies de pescado. O trabalho utiliza metodologia quali-quantitativa e produz dados que apontam para um quadro de escassez dos pescados mais apreciados no mercado local. Apresenta o conhecimento tradicional feminino sobre as espécies-chave que compõem a dieta dos pescadores, sendo esse uma forma de inserção das mulheres no mercado. A coleta dos dados ocorreu no período de março a agosto de 2012. As técnicas metodológicas utilizadas priorizaram um fazer etnográfico, privilegiando o uso de entrevistas semiestruturadas, realizadas com pescadoras/marisqueiras da comunidade, sendo aplicados, ainda, dez questionários às mesmas e nove questionários no mercado do município de Curuçá, junto aos vendedores de pescado. Nas entrevistas, foi possível observar as mudanças ocorridas ao longo dos anos, evidenciando a escassez das espécies tradicionais, tanto na mesa do pescador quanto no mercado consumidor. Os resultados apontam, especialmente, para o papel da mulher na inserção de novas espécies em ambos os espaços, privado e do mercado, já que o conhecimento feminino evidencia uma maior percepção acerca dos recursos naturais disponíveis para consumo. Palavras-chave: Conhecimento tradicional. Trabalho feminino. Dieta. Mercado. Abstract: The article describes how the traditional knowledge of fisherwomen of river and sea in the town of Caratateua, RESEX Marinha Mãe Grande de Curuçá (PA), contributes to the integration of new species of fish in the marketing. The work uses a qualitative and quantitative methodology and produces data that point to a shortage of fish picture of most popular in the local market. It presents the female traditional knowledge on key species that make up the diet of fishermen, and this is a way to insert woman in the market of fishery. Data collection occurred from March to August 2012. The methodological techniques prioritized an ethnographic do, favoring the use of semi-structured interviews with fisherwomen / community seafood restaurants, being applied also 10 questionnaires to them and 9 questionnaires in market Curuçá municipality next to the fish vendors. In the interviews we observed the changes over the years, reflecting the scarcity of traditional species, both in the fisherman diet as the consumer market. The results point especially to the role of women in the insertion of new species in both spaces, private and market, since women’s knowledge means a greater perception of natural resources available for consumption. Keywords: Traditional knowledge. Women’s work. Diet. Market.
PALHETA, Marllen Karine da Silva; CAÑETE, Voyner Ravena; CARDOSO, Denise Machado. Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar dos pescadores da RESEX Mãe Grande em Curuçá (PA). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 601-619, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300004. Autora para correspondência: Marllen Karine da Silva Palheta. Universidade Federal do Pará. Avenida Augusto Corrêa s/n. Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 (marllenkarine@yahoo.com.br). Recebido em 30/09/2013 Aprovado em 15/08/2016
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INTRODUÇÃO A pesca na Amazônia é uma das principais atividades econômicas da região, tradicionalmente passada entre gerações e constituindo-se em fonte de alimento e de renda, principalmente para a população ribeirinha residente ao longo dos rios amazônicos. Desde o período pré-colonial, a pesca foi exercida na Amazônia de forma intensa, tendo como principais alvos de captura o peixe-boi (Trichechus inunguis), a tartaruga (Podocnemis expansa) e o pirarucu (Arapaima gigas), desencadeando, no transcorrer do tempo, uma redução nas populações desses animais (Torres, 2004). Atualmente, a pesca dessas espécies foi regulamentada, sendo proibida a pesca do peixe-boi e da tartaruga (Santos, G.; Santos, A., 2005). O estado do Pará se destaca no setor pesqueiro na região Amazônica por possuir um extenso litoral marinho com 562 km, correspondendo a 7% da costa brasileira. Devido a tais características, a atividade pesqueira é considerada uma das mais importantes no estado, principalmente pela relevância econômica de seus recursos pesqueiros (Santos, L., 2005). O Pará encontra-se dentro do estuário amazônico1 e se destaca pelo ambiente adequado ao ciclo reprodutivo de variadas espécies, dispondo de excelentes condições para a atividade
pesqueira, que possui grande importância econômica para a região (Oliveira; Frédou; Lucena, 2007). No entanto, ainda que dotada de recursos variados, a pesca no estado vem sofrendo com a sobre-exploracão dos estoques pesqueiros devido ao aumento desordenado do esforço de captura2, principalmente ocasionado pela pesca industrial 3, seguida da pesca artesanal 4 ou de pequena escala. As espécies de maior valor comercial dentro desse quadro são: a gurijuba (Arius parkeri, Trail, 1832), serra (Scomberomorus brasiliensis, Russo; ZavalaCamin, 1978), pescada amarela (Cynoscion acoupa, Lacepède, 1801), piramutaba (Brachyplatystoma vaillantii, Valenciennes, 1840), pargo (Lutjanus purpureus, Poey, 1876) e camarão-rosa (Farfantepenaeus subtilis, PérezFarfante, 1967). De acordo com Sousa et al. (2008), Isaac-Nahum (2006), Bentes (2004) e McGrath et al. (1996), esse quadro de sobre-exploração se deve ao avanço tecnológico da pesca na Amazônia5 nas últimas décadas e à grande expansão demográfica dos centros urbanos. Essas mudanças proporcionaram o crescimento na demanda de pescado, colaborando para uma maior exploração dos estoques pesqueiros. A RESEX Extrativista Mãe Grande de Curuçá (doravante nominada Resex MGC) é uma unidade
O estuário do Amazonas encontra-se entre os estados do Pará e Amapá, banhado pelos rios Amazonas e Tocantins, que desaguam no Oceano Atlântico. É formado por um ambiente aquático complexo, de alta produtividade biológica, suportando uma biomassa substancial de espécies de pescado, exploradas por frotas artesanais e industriais em ambos os estados. O estuário amazônico é considerado uma das regiões mais produtivas nacionalmente, tido como um grande polo industrial de exploração de recursos pesqueiros (Oliveira; Frédou; Lucena, 2007). 2 Diferentes literaturas definem esforço de pesca, também conhecido como esforço de captura, que pode ser entendido como a ampliação dos incrementos tecnológicos, tempo de atividades envolvidas e percurso realizado para a pesca, buscando aumentar ou manter a produção dessa atividade (Isaac-Nahum; Barthem, 1995). 3 A pesca industrial é definida como um tipo de atividade voltada para o mercado, nacional e internacional, que utiliza barcos de mais de 20 toneladas e tecnologia sofisticada (Pinheiro; Frédou, 2004). 4 A pesca artesanal na região da Amazônia brasileira é uma importante fonte de renda e fornecimento de alimentos à população local. A pesca é caracterizada pela diversidade de artes, algumas bastante primitivas e de origem tradicionais, tendo como alvo de captura uma enorme diversidade de espécies, destinados para o consumo e comercialização em mercados regionais e nacionais (Isaac-Nahum; Rufino, 2000; Bentes, 2004). 5 Segundo Isaac-Nahum (2006, p. 33), “o litoral amazônico, que inclui a linha de costa dos estados do Pará e do Amapá, possui uma vocação natural para a exploração de recursos pesqueiros. As zonas costeiras paraense e maranhense possuem uma grande diversidade íctica e são reconhecidas pela riqueza de recursos pesqueiros demersais, alguns deles muito explorados, mas a maior parte das vezes ainda com potencial desconhecido. A pesca é uma das atividades mais tradicionais e garante renda e subsistência para uma boa parte da população, além de render importantes divisas para o país”. 1
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de conservação ambiental marinha, com uma área de aproximadamente 36.678,24 hectares, considerada uma das mais importantes unidades de conservação situadas na costa amazônica6, integrando 52 comunidades de pescadores e agricultores7. Segundo Figueiredo (2007), a principal atividade econômica do município de Curuçá está ligada à atividade pesqueira industrial e artesanal, com projeto concreto de construção de um porto na região, cuja a finalidade é o escoamento de produtos nacionais. Diante do quadro de exploração de recurso pesqueiro já mencionado, a participação feminina na pesca aumentou gradativamente com o passar dos anos, pois novas atividades foram introduzidas para complementar o orçamento familiar. Segundo Maneschy (2000), a condição feminina na pesca pode ser assim classificada: marisqueiras, as tecedeiras de redes de pesca, pescadoras de praias e rios, beneficiadoras de pescado, as que fazem farinha de pescado, as ex-pescadoras, as esposas e filhas de pescadores e as presidentes ou membros de diretorias de colônias ou de outras associações de pescadores. A mulher desempenha diversas funções de extrema importância no cotidiano das comunidades pesqueiras artesanais. A partir dos recursos do ecossistema terrestre e aquático, geram renda e complementam o sustento familiar, valorizando, assim, os recursos naturais locais. Participam, ainda, de organizações sociais, a fim de buscar seus direitos e reconhecimento social (Maneschy, 2000). Sendo assim, são as mulheres que, convivendo diariamente com as dificuldades cotidianas, diferindo dos homens vinculados às longas viagens e atividades no mar, findam responsáveis pela casa e pela responsabilidade da alimentação das famílias dos pescadores. As mulheres são, portanto, as responsáveis pela introdução de novas espécies de peixes sem valor comercial à dieta dessas
famílias, diante da escassez das espécies valorizadas comercialmente. Incluir a perspectiva das relações sociais de gênero contribui de maneira significativa no estudo sobre a importância da mulher e seus conhecimentos naquilo que se refere à pesca, na comercialização de espécies daí advindas e no incremento do mercado local. Diante disso, as leituras acerca da inserção feminina em ambiente social e atividade considerada majoritariamente masculina, como é o caso da pesca, devem ser problematizadas. Assim, é importante questionar em que medida o conhecimento tradicional da mulher contribui para a inserção e comercialização de novas espécies de pescado no mercado local e em que medida esse conhecimento garante novas espécies na mesa das famílias de pescadores. Constitui-se como objetivo principal deste trabalho, portanto, descrever como o conhecimento tradicional da mulher marisqueira e pescadora de rio e mar, da localidade de Caratateua, na RESEX Marinha Mãe Grande de Curuçá, contribui na inserção e comercialização de novas espécies de pescado no mercado local. O trabalho apresenta dados que apontam para um quadro de escassez das espécies há muito apreciadas, assim como apresenta o conhecimento tradicional feminino sobre as espécieschave que compõem a dieta dos pescadores como uma das formas de inserção de novas espécies no mercado local. O trabalho descreve, ainda, as espécies que foram inseridas no sistema a partir do conhecimento feminino.
METODOLOGIA A construção do presente artigo foi realizada por uma abordagem quantitativa e qualitativa, utilizando inicialmente
Nos últimos anos, o município de Curuçá vem sendo objeto de estudo, em especial nos programas de pós-graduação da UFPA, originando trabalhos que permitem compreender diversos aspectos acerca do município, como população e meio ambiente. Para saber mais, consultar Almeida (2009), Palheta (2005), Figueiredo (2007), Queiroz (2011), Batista (2010), Martins (2010), Chaves (2010), Hercos (2006), Silva (2011) e Morais (2011). 7 Dado de campo, obtido em entrevista com o presidente da colônia de pescadores em janeiro de 2012. 6
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as técnicas de survey8 para a coleta de dados, acrescida de uma pesquisa bibliográfica e, posteriormente, acompanhada de estadas em campo para observação direta dos contextos de pesca orientados e organizados pela presença da mulher. A primeira viagem a campo ao município de Curuçá buscou levantar informações que levaram à escolha da comunidade de Caratateua para a realização do estudo. Pertencente ao município de Curuçá, Caratateua integra o domínio territorial da RESEX MGC, localizada no nordeste do Estado do Pará, a 160 km da capital, Belém; a 30 km de Curuçá; e a 4,5 km da PA-318. A comunidade apresenta como principal atividade econômica a pesca. Nessa localidade, a participação feminina na atividade pesqueira é bem acentuada, tanto na pesca de mar como na atividade de mariscagem, o que a destacou como opção na escolha para estudo. Agregada ao survey e à observação direta, já mencionados, a coleta de dados fez uso da observação participante9, além do uso de entrevistas semiestruturadas. Para a entrevista na comunidade com as marisqueiras, adotou-se a idade como critério de escolha, fazendo uso da faixa etária entre 15 e 65 anos, com o intervalo de 10 anos entre cada faixa etária. A escolha do critério mencionado repousou no fato da diferença de idade influenciar nos conhecimentos tradicionais relacionados à pesca, dado que, como aponta Woortmann (1991), as mulheres de mais idade são as mais respeitadas e valorizadas na comunidade, por terem um conhecimento mais apurado dos recursos naturais; já as mais novas são vistas como menos importantes, por não terem esse domínio ou, até mesmo, não evidenciarem interesse em tê-lo, voltando-se quase que exclusivamente para atividades do lar. Quanto mais idade,
maior a experiência acerca da atividade. Nesse sentido, essa escolha metodológica possibilitou observar como esse conhecimento é abordado entre diferentes gerações. No total foram realizadas 10 entrevistas, sendo entrevistadas duas mulheres para cada uma das faixas etárias estabelecidas. Para finalizar a pesquisa de campo, foram realizadas entrevistas com os vendedores de pescado do mercado municipal de Curuçá, a fim de verificar quais espécies adentraram o mercado nos últimos anos, tendo sido entrevistados nove vendedores ao total. A pesquisa descrita ocorreu no período de março a agosto de 2012, sendo que a permanência em campo foi em média de 10 dias para cada viagem à comunidade, totalizando quatro viagens a campo.
CONHECIMENTO TRADICIONAL FEMININO As sociedades tradicionais são grupos humanos diferenciados do ponto de vista cultural, reproduzindo seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, tendo embasamento na cooperação social e relação com a natureza (Diegues; Arruda, 2001). Segundo Arruda (2000) essa relação pode ser encontrada junto aos povos indígenas ou em populações tradicionais, por terem desenvolvido modos específicos de existência e adaptações ao meio em que vivem. De acordo com Diegues e Arruda (2001), as populações tradicionais são classificadas em várias modalidades, tais como: comunidades caiçaras, sitiantes e roceiros, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, grupos extrativistas, indígenas, dentre outras tantas e diversas comunidades com formas específicas de se relacionar e usar os recursos naturais.
Definição de survey: “A pesquisa survey pode ser descrita como a obtenção de dados ou informações sobre características, ações ou opiniões de determinado grupo de pessoas, indicado como representante de uma população alvo, por meio de um instrumento de pesquisa, normalmente um questionário. É uma pesquisa apropriada quando se deseja responder a tais questões: o que? Por que? Como? E quanto? Ou seja, quando se pretende saber ‘o que está acontecendo’ ou ‘como e por que isso está acontecendo” (Freitas et al., 2000). 9 A observação participante figura como um método de pesquisa desenvolvido nos primeiros anos do século XX, resultante do trabalho de campo de Malinowski, entre os anos de 1914 e 1918. Segundo Malinowski (1976), quando se vive na aldeia, sem qualquer responsabilidade a não ser a de observar a vida nativa, o pesquisador observa os costumes, festas, atividades cotidianas etc., muitas vezes absorve suas crenças, passando a viver por um determinado tempo a vida do nativo. Portanto, a observação participante complementa a entrevista semiestruturada. Vale salientar a necessidade de reunir critérios, tais como responder a objetivos prévios, ser planejada de modo sistemático, sujeita à validação e verificação, precisão e controle. 8
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A partir da lei de n° 9.985, de 18 de julho de 2000 (Brasil, 2000), foi instituído o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) 10; nela, defini-se como população tradicional aqueles povos cuja subsistência se fundamenta no extrativismo, como atividade complementar à agricultura de subsistência, e na criação de animais de pequeno porte. Essas populações se baseiam no uso sustentável dos recursos naturais, realizado ao longo de gerações, apresentando uma função de extrema importância na proteção da natureza e da diversidade biológica. Segundo Cunha (1999), o conhecimento tradicional produz um saber valioso que o mercado está começando a conhecer, possuindo um valor próprio e independente de parâmetros de verdade. Esse saber local não deve ser desprezado, mas sim valorizado na construção do uso sustentável dos recursos naturais. Considerando as características desse conhecimento e, do ponto de vista da manutenção dos recursos naturais, o papel da mulher nas comunidades pesqueiras é de grande importância para o meio ambiente, visto que elas possuem uma relação de proximidade com a natureza através dos conhecimentos tradicionais adquiridos nas relações geracionais. Esses conhecimentos possuem extrema importância para a conservação das espécies, em especial as que estão ameaçadas pela sobre-exploração dos recursos pesqueiros. Como visto, a mulher exerce um papel dinâmico no âmbito familiar, exercendo várias atividades, como os cuidados da família, a criação de animais, a roça, o transporte de água, a lenha, finalmente integrando esse saber tradicional (Cardoso, 2007; Almeida, 2002). Mesmo constatando essa participação de mulheres na pesca, há uma invisibilidade de suas atividades devido ao modelo patriarcal de relações sociais. De acordo com os
estudos sobre as relações sociais de gênero, esta situação é recorrente não apenas no que se refere ao trabalho, mas em outras atividades na qual há indicações de que caberiam aos homens exercê-las. Motta-Maués (1993), em estudo sobre comunidades pesqueiras no nordeste do Pará, já indicou que há interditos às mulheres naquilo que se refere ao exercício de poder político, religioso e no trabalho. Aos homens caberiam as atividades de liderança política, da pajelança e da pesca, e mesmo quando mulheres a exerciam havia discriminação e até mesmo invisibilidade de suas ações. Além da pesca, o mundo do trabalho como um todo é marcado pelas diferenciações conforme o gênero. Alencar (1993) indica em seus estudos o quão significativo é este trabalho silenciado das mulheres e é exemplar o estudo de Simonian (2001), no qual aponta para o silenciamento das ações de mulheres em várias comunidades tradicionais e indígenas na Amazônia. Coelho (2013) amplia este escopo de estudos para além da pesca ao incluir o espaço das águas em sua investigação sobre o trabalho de mulheres na marinha mercante. Estes e outros estudos revelam atividades consideradas eminentemente masculinas sendo exercidas por mulheres, mas que são tratadas socialmente como inferiores devido às questões de gênero. Os estudos de gênero iniciados em meados do século XX explicam que o processo de socialização se dá segundo o sexo biológico, de maneira dualista e hierárquica, de tal modo que cabe ao sexo feminino os espaços e atividades de menor valor social. Os estudos de Beauvoir (1980), Mead (1971) e Pateman (1996) são exemplares no que se refere à indicação de atividades e de comportamentos conforme o grupo social e cultural no qual os seres humanos são educados e, portanto, socializados. Desse modo, as relações afetivas, políticas e de trabalho são assentadas em lógicas
A lei de n° 9.985, de 18 de julho de 2000 (Brasil, 2000) institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), no qual estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação. O SNUC divide em duas categorias as unidades de conservação: a de proteção integral, formada por Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre, e a de uso sustentável, subdividida em Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Reserva Particular do Patrimônio Natural. O SNUC é uma das alternativas criadas pelo Governo Federal para criar áreas protegidas, a fim de resguardar a existência de meio ambiente ecologicamente equilibrado.
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nas quais o espaço feminino é eminentemente o espaço doméstico. Contudo, à revelia destas regras baseadas no gênero, as mulheres ocuparam espaços que socialmente não lhes caberia, como é o caso da pesca. O trabalho feminino na atividade pesqueira, nas últimas décadas vem crescendo e aparece de forma incisiva nas discussões em regiões com a economia voltada aos recursos pesqueiros. Segundo Maneschy (2000), a produção feminina nas comunidades pesqueiras é tão importante quanto a dos homens, embora não haja o devido reconhecimento como tal. A inserção da mulher na atividade pesqueira decorre de vários fatores, dentre estes o aumento da pobreza e da exclusão social das populações litorâneas, fazendo com que o trabalho feminino passe a ter suma importância na sobrevivência das famílias que vivem exclusivamente da pesca (Figueiredo; Santana, 2009). As mulheres, finalmente, atuam de forma a contribuir no orçamento doméstico, para tentar suprir as necessidades básicas de suas famílias (Maneschy, 1995). É possível dizer, então, que a mulher findou por transitar entre o espaço doméstico e de mercado do setor pesqueiro. Esse movimento conferiu à mulher um domínio sobre dois mundos que se traduziu na possibilidade de, ao dominar conhecimentos sobre recursos pesqueiros, ampliar a inserção dos mesmos em um mercado com maior demanda. Assim, ao mesmo tempo em que a demanda por recursos pesqueiros se amplia no mercado, os estoques das espécies mais apreciadas diminuem. Coube à mulher oferecer, através de seu conhecimento, novas espécies para o mercado de consumo.
MERCADO DO SETOR PESQUEIRO A pesca comercial foi uma das primeiras atividades econômicas da Amazônia colonial. Como mencionado, os
recursos mais explorados eram a tartaruga-da-Amazônia, o peixe-boi e o pirarucu. O aumento da demanda por essas espécies levou a uma superexploração, baixando, assim, a disponibilidade desses recursos, se intensificando nos períodos de decadência de outros produtos regionais como a borracha e a juta (Isaac-Nahum et al., 2004). Do pescado desembarcado em Belém, Santarém e Manaus, considerados os principais portos de desembarque na Amazônia, grande volume é destinado às indústrias, onde as empresas atuam tanto no mercado nacional, como internacional. No mercado nacional, as principais espécies comercializadas são a piramutaba (Brachyplatystoma vaillantii, Valenciennes, 1840), dourada (Brachyplatystoma flavicans, Castelnau, 1855), bagre (Bagre sp.) e camarão (Macrobrachium sp.). No mercado internacional, a preferência estende-se à venda de lagosta (Panulirus argus, Latreille, 1804) e camarão (Macrobrachium sp.) (Lopes et al., 2010). O desenvolvimento da pesca comercial se deu desde o século XVIII no Baixo Amazonas, motivando a necessidade de medidas normativas de controle, a fim de reduzir ou evitar a captura irresponsável. Essas medidas podem ter colaborado para diminuir o impacto da pesca desde então; no entanto, não foram satisfatórias para ensejar o uso sustentável dos recursos e evitar a degradação de locais de várzea na região, bem como evitar a redução da disponibilidade dos recursos e o incremento dos conflitos dos usuários (Isaac-Nahum et al., 2004). A expansão da pesca comercial na Amazônia teve início na década de 1950, devido ao desenvolvimento na tecnologia de pesca, transporte e armazenamento dos produtos pesqueiros capturados. A introdução das fibras monofilamentosas foi a principal inovação tecnológica de captura e, consequentemente, o crescente uso de malhadeiras11.
Malhadeira – arte de pesca conhecida também como rede de espera retangular, confeccionada em náilon monofilamento; o entralhe superior (parte da rede que fica mais próxima da superfície) contendo uma série de boias e, no entralhe inferior (parte da rede mais próxima do fundo), pequenas peças de chumbo são alocadas para facilitar o afundamento. Possui diversos tamanhos de malha (de 5 cm a 19 cm, entre nós opostos), dependendo da espécie alvo, com comprimento médio que varia de 70 m por panagem, com altura entre 1 m e 6 m (Relátorio Norte Energia, 2013). Disponível em: http://licenciamento.ibama.gov.br/Hidreletricas/Belo%20Monte/Relatorios%20Semestrais/4%C2%BARC%20 FINAL%2030.08.2013%20-%20PDF/CAP%202/13/13.3/13.3.5/ANEXOS/Anexo%2013.3.5%20-%202.pdf. Acesso em: 09 set. 2013
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Outras inovações ocorreram durante esse período, como na área de transporte e tecnologia de armazenamento, modificando-se a frota pesqueira de vela para diesel, o que possibilitou aos barcos pesqueiros viagens cada vez mais longas em um curto período de tempo. Tais mudanças tecnológicas foram acompanhadas pelo elevado aumento populacional regional e pela exportação de peixes da Amazônia para os mercados nacionais e internacionais. Esse aumento ocorreu devido ao crescimento explosivo das cidades amazônicas nos anos de 1970 e 1980 (McGrath et al., 1991). A indústria pesqueira da região Amazônica é responsável por absorver grande parte do volume de pescado local. Em Belém, para cada quilo de pescado desembarcado no mercado regional, aproximadamente três quilos são direcionados aos frigoríficos. Em Santarém, essa relação gira em torno de 50%, ou seja, metade do pescado desembarcado no local é destinada aos frigoríficos. Em Manaus, apesar de ser um grande centro comercial de pescado, essa relação é um pouco diferente, de toda forma esses números revelam a grande participação da pesca no abastecimento industrial (Almeida et al., 2004). O consumo de pescado no Brasil encontra-se diretamente ligado ao poder aquisitivo da população, à quantidade e qualidade ofertadas, conservação, alternativas para produtos substitutos e aos preços e hábitos alimentares (Lopes et al., 2010). As espécies comercializadas industrialmente se diferenciam de acordo com o mercado. As principais espécies comercializadas no mercado local são o tambaqui (Colossoma macropomum, Cuvier, 1818), o curimatá (Prochilodus nigricans, Agassiz, 1829) e o tucunaré (Cichla spp.). No mercado estadual, a demanda tende a ser dominada por peixes de escamas como o tucunaré (Cichla spp.) e o jaraqui (Semaprochilodus theraponura, Fowler, 1906). No mercado nacional, os peixes de couro como a piramutaba (Brachyplatystoma vaillantii, Valenciennes, 1840) e o surubim (Pseudoplattystoma tigrinum, Valenciennes, 1849), assim como os crustáceos lagosta (Panulirus argus, Latreille, 1804) e camarão (Macrobrachium sp.) passam a
ser a preferência do consumidor. Nesse mesmo formato, os produtos comercializados também variam de acordo com o mercado de origem. Nos mercados locais, o pescado sofre menor grau de processamento, sendo vendido inteiro ou eviscerado e congelado, enquanto que, para os mercados nacionais e internacionais, o pescado passa por um processo mais elaborado, como vários produtos originados pelo processamento dessas empresas, tais como o fishburguer, a linguiça e o filé de peixe defumado, peixe desossado, patê de peixe, bochecha de garoupa, polpa de pescado, óleo de peixe, grude, bolinho, cubinho e costela (Almeida et al., 2004). As espécies que possuem o maior valor agregado da atividade da indústria pesqueira ainda são aquelas espécies comerciais que consolidaram nos anos de 1970 e 1980 a atividade da pesca, tais como a piramutaba (Platistomatíctis vaillantii, Valenciennes, 1840), o camarãorosa (Farfantepenaeus subtilis, Pérez-Farfante, 1967), a dourada (Brachyplatystoma flavicans, Castelnau, 1855) e o pargo (Lutjanus purpureus, Poey, 1876), este especialmente comercializado no exterior. Concomitantemente à diminuição da captura dessas espécies comerciais clássicas, tem ocorrido um aumento na produção e na comercialização de espécies antes apreciadas como secundárias. Dentre essas espécies estão o bagre (Bagre sp.), o bandeirado (Bagre bagre, Linnaeus, 1766), a gurijuba (Arius parkeri, Trail, 1832), arraia (Dasiatis spp.) e o cação (Carcharhinus sp) (Almeida et al., 2004). Segundo Almeida et al. (2004), os motivos expostos em seu estudo para a introdução de novas espécies foram a diminuição dos estoques pesqueiros das espécies tradicionalmente comercializadas, a expansão e diversificação do mercado, o período de defeso de espécies comercializáveis, a agregação de valor ao produto final de espécies de baixo valor comercial e a demanda do mercado por determinadas espécies. A expansão do mercado consumidor pesqueiro ocorreu pelas seguintes razões: crescimento populacional, aumento da importância do pescado comercializado nos supermercados, aumento
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Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar
da consciência da alimentação saudável e os processos da preparação industrial. O mercado consumidor, com a escassez de espécies tradicionalmente comercializadas, teve que se adaptar às novas espécies de pescado, antes não muito apreciadas, a fim de suprir o aumento da demanda populacional ocorrida ao longo dos anos. A partir do momento que a mulher ingressa no universo do mercado econômico pesqueiro, ela passa a refinar sua percepção acerca das espécies apreciadas no mercado consumidor e acerca de quais espécies podem ser inseridas nesse espaço de comercialização. Tal cenário será discutido na seção a seguir, enfatizando esse processo de inserção de novas espécies de pescado por meio do conhecimento feminino.
INTRODUÇÃO DE NOVAS ESPÉCIES DE PESCADO NO MERCADO MUNICIPAL DE CURUÇÁ E NA DIETA DOS PESCADORES DE CARATATEUA Mediante o contexto de introdução de novas espécies no mercado nacional, os mercados regionais passaram a sofrer consequências, especialmente a escassez, ao longo dos anos. Nesse sentido, o mercado municipal de Curuçá se ressentiu desse processo, ademais de outras diversas razões relatadas pelos vendedores locais. Indagados, os entrevistados não souberam informar ao certo o período do ingresso de novas espécies para a venda, porém
alegam a percepção da escassez de alguns pescados antes vendidos em abundância, tais como a pescada gó (Macrodon ancylddon, Bloch; Schneider, 1801), tainha (Mugil spp.), dourada, piramutaba (Brachyplatystoma vaillantii, Valenciennes, 1840), pescada amarela, serra e mero (Epinephelus itajara, Lichtenstein, 1822)12. Atualmente esses pescados somente são vendidos no período de safra de cada espécie, à exceção do mero, que se encontra em processo de renovação de estoque. A maioria dos entrevistados, comerciantes do mercado de peixe de Curuçá, já havia sido pescador e atualmente apenas revende o pescado, alegando o abandono da atividade devido às dificuldades encontradas na pesca artesanal. Com a escassez das espécies tradicionais, as viagens se tornaram cada vez mais longas, o que no fim não lhes rendia bons lucros, especialmente em decorrência dos gastos ocorridos durante as viagens. Abaixo, o Quadro 1 mostra as razões que levaram à inserção de novas espécies no mercado de Curuçá, a partir da percepção dos vendedores. Os entrevistados relataram que a maioria das espécies, atualmente presentes no mercado, antes não eram valorizadas. Quando começaram a vender algumas espécies, por muitas vezes chegavam a doar os produtos por não conseguirem vender, a exemplo da sardinha (Anchovia clupeoides, Swainson, 1839). Atualmente, o consumidor se adaptou às novas espécies, mas considera esses pescados menos importantes e, no linguajar local, ‘de segunda’,
Quadro 1. Razões para a introdução de novas espécies de pescado no mercado municipal de Curuçá. Fonte: Dados de pesquisa (2012). Razões para os vendedores introduzirem novas espécies Nº de entrevistados que alegaram as razões identificadas (nove entrevistados) Atendimento da demanda do mercado
5
Adaptação à oferta de pescado
6
Sobre-exploração das espécies tradicionais
9
Crescimento populacional
9
O mero (Epinephelus itajara) é uma das maiores espécies de peixes marinhos, podendo chegar a pesar de 250 kg a mais de 400 kg e medir 2,7 metros. Pode ser encontrado em todo o litoral brasileiro; sua pesca, captura, transporte, comercialização, beneficiamento e industrialização foi proibida até setembro de 2007 pela Portaria Nº 121 de 20 de setembro de 2002 (Brasil, 2002), prevista na Lei de Crimes Ambientais, com uma multa de R$ 700,00 a R$ 1.000,00 ou uma pena que variava de um a três anos de detenção a ser aplicada aos infratores que pescassem os meros. Disponível em: < http://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/ Portaria/2002/p_ibama_121_2002_moratoria5anospescadomero_alterada_p_ibama_42_2007.pdf>. Acesso em: 09 set. 2016.
12
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com valores mais baixos, possuindo a preferência pelos pescados mais comercializados considerados ‘de primeira’. Porém, no mercado de Curuçá é difícil encontrar esses pescados avaliados como produto de primeira. Os pescados de maior valor comercial são destinados às indústrias pesqueiras e, na sequência, aos mercados regionais e nacionais, ficando no mercado local as espécies de pouco valor comercial. Os vendedores relatam que vendem os pescados de acordo com o poder aquisitivo da população local. Entre os principais pescados de maior comercialização está a pescada gó, porém sua abundância é influenciada pela sazonalidade da espécie, ocorrendo maior comercialização no período de safra, durante os meses de abril a setembro. Outras espécies que adentraram o consumo local são o cação e a arraia, corroborando o cenário identificado por Freire, Souza e Bentes (2012), para
o mercado de Bragança (PA). Neste, a comercialização de tais espécies se assemelha ao mercado de Curuçá. No Quadro 2, a seguir, encontram-se as espécies indicadas pelos vendedores do mercado municipal de Curuçá, sinalizando quais espécies tradicionais são vendidas no local e quais foram inseridas ao longo dos anos. No período de maior movimentação de turistas na cidade há uma circulação maior no mercado, onde é possível encontrar esses pescados tradicionais, mas ainda assim em pouca quantidade, levando em consideração a localização do município e seu papel de polo pesqueiro na região. Os pescados vendidos no mercado são geralmente adquiridos junto aos atravessadores, que compram nas comunidades pesqueiras de Curuçá. Caratateua figura como uma das localidades que fornece pescado para esses atravessadores, principalmente no período de safra.
Quadro 2. Produtos tradicionais e novas espécies introduzidas no mercado municipal de Curuçá. Fonte: Dados de pesquisa (2012). Pescados tradicionais N° de vendedores que indicaram a espécie (nove entrevistados) Gurijuba
2
Serra
2
Pratiqueira
5
Tainha
5
Pescada gó
5
Pescada amarela
6
Uritinga
4
Corvina
3
Bandeirado
3
Xaréu
1
Bagre
1
Anchova
1
Novas espécies (duas últimas décadas)
N° de vendedores que indicaram a espécie (nove entrevistados)
Sardinha
9
Pacamom
1
Uricica
1
Arraia
6
Cambéua
3
Cação
3
Cangatá
2
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Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar
Quando os pescadores chegam das viagens, são as mulheres as responsáveis pela manipulação e acondicionamento do pescado para a comercialização. Separam os peixes que irão consumir e os que serão vendidos. Daí a importância da participação da mulher nesse processo de inserção de novas espécies. A partir de seus conhecimentos tradicionais, sabem quais espécies são aptas ao consumo. Devido ao quadro de escassez dos recursos pesqueiros, as mulheres, através de seus conhecimentos, passaram a inserir novas espécies, sendo que muitas delas já se encontravam em sua dieta alimentar, porém ainda não havia chegado ao mercado. Quando indagadas como se deu esse processo, relatam que aos poucos foram introduzindo as espécies como uma forma de sobrevivência, pois havia épocas do ano em que não era safra das espécies apreciadas no mercado e que findavam vendendo o que conseguiam pescar a um baixo preço. Dessa forma, é o consumo de espécies variadas no espaço doméstico que fornece a informação necessária para a tentativa de sua inserção no mercado. As escolhas alimentares são resultantes da interação dos ciclos ecológicos e variações sazonais dos recursos naturais, estruturas habituais do cotidiano, da dinâmica econômica dos mercados locais e regionais e preferências individuais (Murrieta, 2001; Silva, 2007). A maioria das populações pesqueiras possui particularidades a respeito de suas preferências e aversões alimentares, ou tabus alimentares, referentes à proteína de origem animal. Tais preferências alimentares podem ser explicadas por fatores como a cultura e o ambiente, em função da disponibilidade do recurso, da posição da espécie na cadeia alimentar, e até mesmo de sua importância socialmente dentro da comunidade (Hanazaki, 2001). O peixe consumido é determinado pelas variações sazonais ecológicas, pela capacidade do pescador ou pela sorte. Duas categorias gerais agregam o peixe à classificação do pescado: o peixe liso ou de pele e o peixe de escama. Ambas são apreciadas por diferentes razões. Os peixes lisos são geralmente apreciados pelo sabor ‘forte’ e composição fibrosa da carne. E os peixes
de escama possuem um sabor mais ‘fraco’, leve e suave, de fácil digestão (Murrieta, 2001). A disponibilidade dos recursos pesqueiros na comunidade de Caratateua sofre variações sazonais ao longo do ano. No período de maio a setembro, as pescadoras relatam ser a safra do pescado, quando há uma maior abundância de pescado, permitindo à população garantir uma boa renda e apreciar as espécies disponíveis. Antes desse período, a comunidade se prepara para obter uma boa renda. Os moradores consertam suas redes, motores e canoas, a fim de se ‘garantir’ para a safra e nela a população quase não consome alimentos industrializados. Durante a safra, as pescadoras relatam capturar toda espécie de peixe. Percebem que a safra começou quando a sardinha começa a entrar no rio em grande quantidade. Relatam que a sardinha atrai muitas espécies de peixes que se alimentam delas. Nesse período, os pescadores costumam usar a sardinha como isca na pesca de caniço para capturar os peixes maiores, como a pescada amarela. Conseguem, nessa época do ano, pegar os peixes com maior rapidez, num menor período de tempo. Os currais são de grande valia nesse período, por capturar uma grande quantidade de pescado, sem maior esforço por parte dos pescadores. Fora da época de safra do pescado, os pescadores revezam sua alimentação com os produtos industrializados, como os enlatados, macarrão de preparo instantâneo, e com animais que geralmente criam em seus quintais, como o frango. Segundo Murrieta et al. (2008), com dificuldade de obter os tipos de comida, como o pescado, fora de safra, o frango é o alimento de origem animal de consumo mais frequente, resultante geralmente de criação própria, como estratégia emergencial de sobrevivência. A carne bovina quase não entra na dieta desses pescadores, alegando não acreditarem que a carne vendida na comunidade seja de boa qualidade e, para compra em outro local, teria que ser na sede municipal, o que seria um gasto maior. Porém, relatam não sentirem falta da carne bovina, pois os alimentos mais apreciados são conseguidos indo pescar na maré, sem precisar gastar nada, a não ser na
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compra da gasolina para o motor de barco. Os moradores que costumam comer carne com mais frequência são os que não vivem da pesca, tais como os comerciantes, professores, funcionários públicos, autônomos etc. Quando os recursos pesqueiros começaram a entrar em um quadro de escassez, o nicho alimentar teve que se expandir, incluindo na dieta itens menos apreciados, como já mencionado. Pescados que antes não eram consumidos passaram a fazer parte da alimentação, devido às espécies mais apreciadas escassearem ao longo dos anos. Assim, diante da baixa disponibilidade de espécies de importância comercial e muito apreciadas pelos consumidores, pescados tradicionalmente desprezados passaram a fazer parte da dieta alimentar dos pescadores de Caratateua cotidianamente. A participação feminina teve um papel fundamental nesse processo, visto que são elas, como já mencionado, que trabalham diretamente na manipulação dos pescados capturados. Ou seja, conhecem perfeitamente os recursos naturais capturados (Figura 1), embora muitas vezes não seja reconhecido tal trabalho. Essa desconsideração das atividades femininas pode ser compreendida a partir dos estudos de gênero, pois nesta perspectiva é possível perceber que aquilo que fora naturalizado como sendo de homem ou de mulher é algo apresentado conforme a cultura na qual o sujeito está inserido. Assim, Laqueur (2001) enfatiza que o sexo é algo inventado e não apenas determinado biologicamente. Consequentemente, as sociedades tendem a silenciar e desconsiderar aquilo que foge ao padrão estabelecido como sendo ‘de homem’ ou ‘de mulher’. As atividades femininas na pesca são exemplares (Figura 2), pois, à revelia de sua importância, ou são consideradas inferiores ou são invisibilizadas. Esse quadro não é diferente em Caratateua. As múltiplas atividades femininas, algumas delas, juntamente com seus conhecimentos tradicionais, permitem ampliar a percepção na utilização dos recursos naturais, visto que são as mulheres que lidam com as dificuldades diárias de suas famílias, enquanto que seus
Figura 1. Atividade de extração do molusco sarnambi (Protothaca pectorina, Lamarck, 1818). Foto: Marllen Palheta, 2012.
Figura 2. Atividade de mariscagem exercida pelas mulheres da comunidade para o complemento do sustento familiar. Foto: Marllen Palheta, 2012.
maridos estão focados na pesca voltada para o mercado. Sendo assim, são as mulheres que percebem quais espécies podem ser inseridas na alimentação de suas famílias, por apresentarem uma maior sensibilidade na sua percepção. Conforme visto por Ferreira, Jankowsky e Nordi (2009), o processamento e o preparo dos alimentos nas comunidades pesqueiras são realizados por mulheres, cabendo ao homem a responsabilidade da captura. As mulheres começariam a inserir aos poucos na dieta alimentar de suas famílias as espécies que, antes, não eram apreciadas pelos familiares. Partindo da imposição ditada pelo mercado que consome as espécies de maior valor, tiveram que substituir espécies e reorientar hábitos. É importante notar, no entanto, que as novas espécies não eram desconhecidas, apenas não apareciam como prioridade de consumo.
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Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar
As marisqueiras relatam que, com o passar do tempo, se adaptaram às novas espécies, principalmente no período que o pescado ‘falha’, como os próprios pescadores denominam. Nesse período, não há como escolher o que alimentar-se do que conseguirem pescar. O relato a seguir é revelador:
entrevistas, quando indagadas sobre inclusão de espécies em sua alimentação, as mulheres relataram que sempre comeram todo tipo de peixe. A diferença repousa no fato de que, antes, podiam optar pelas espécies que mais apreciavam e, atualmente, não possuem essa opção, conforme se observa nos depoimentos abaixo.
Logo quando me casei, meu marido colocava curral, quando dava gó, ele só escolhia as mais graúdas pra vender, as mais miúdas ele trazia pra casa. E pra não estragar, eu lanhava, salgava, ai a gente trocava por farinha. Por isso não tinha necessidade da gente fazer caso desses outros peixes, como a arraia, do cação, do tralhoto, porque tinha outros peixes gostosos e hoje em dia não. (N., 57 anos).
Entrevistadora: E quais são os peixes que a senhora vê que estão sumindo? Pescadora: A gó, espada; no inverno que dá muito peixe, vai começar agora a safra do peixe, no verão quase não dá; agora tá dando, piaba, bagre. Entrevistadora: E tem algum peixe que antes a senhora não comia e passou a comer devido ao desaparecimento dessas espécies?
Atualmente os fatores econômicos seguramente influenciam sobre as escolhas alimentares das populações tradicionais. Antes de vender ou doar o pescado capturado, os pescadores reservam suas espécies preferidas, priorizando aquelas que apresentam baixo valor comercial (Silva, 2007). Segundo Hanazaki e Begossi (2004), a escolha do pescado para o consumo e venda está relacionada a algumas variáveis, tais como a quantidade de espinha, calorias, proteínas, disponibilidade através da pesca, preço e preferências. No caso de Caratateua, as variáveis que mais influenciam na escolha relatada nas entrevistas são a disponibilidade do pescado e preferências pessoais. Há um grande dilema na hora de escolher o peixe de venda e de consumo, pois os pescados que são muito apreciados possuem um preço alto no mercado, como ressalta a fala a seguir: No verão, o peixe fica escasso, o que vier tem que comer, até por que o que pegamos, já vendemos pro atravessador, aí pra gente aqui fica difícil, nessa época é mais fácil comer peixe em Castanhal, do que aqui, que é beira de mar. (S., 37 anos).
Entretanto, ao contrário do cenário visto na inserção de novas espécies no mercado, na dieta alimentar dos pescadores essa inserção não ocorreu de fato. Durante as
Pescadora: Tem, o xaréu, o peixe-pedra, o bagre, a arraia-manteiga. Essa arraia a gente jogava fora, quando vinha uma pescada, cangatá, agora não, tudo que vem a gente come. Olha, quando eu morava com a minha mãe, a gente ia nessa beira, colocava a lamparina perto da água e via os peixes; eles pulavam pra dentro da canoa. Agora não, vamos tarrafear ai na beira e não pega nada mais; de tanta rede que colocam, os peixes nem chegam mais pra cá. Entrevistadora: E por que a senhora não comia esses peixes que a senhora falou, como a arraia, por exemplo? Pescadora: A gente comia, só que quando tinha outros a gente preferia os outros; mas, assim, eu gosto de tudo quanto é tipo de peixe. Entrevistadora: E por que vocês deixavam eles de lado? Pescadora: Porque tinha outros peixes. Entrevistadora: Por que eram mais gostosos? Pescadora: Era, agora não, o que vier a gente come. (F., 47 anos).
O relato evidencia como o mercado passou a conduzir as escolhas para o consumo, ao passo que o conhecimento sobre a variedade de espécies funciona como uma alternativa que amplia o leque de possibilidades para a dieta dessas famílias de pescadores.
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Os peixes de escama ainda estão na preferência da comunidade. O Quadro 3 apresenta os peixes inseridos na dieta alimentar dos pescadores de Caratateua e sua
relação com o mercado, do ponto de vista da apreciação nesses dois espaços de consumo (mesa do pescador – mercado consumidor).
Quadro 3. Espécies de pescado inseridas na dieta alimentar dos pescadores de Caratateua. Legenda: (AB) – Abundante; (A) – Ausência; (O) – Oscilante; (BP) – Baixa presença; (MA) – Muito apreciada; (PA) – Pouco apreciada. Fonte: Dados da pesquisa (2012) Presença no mercado
Presença na mesa
Apreciado pelos moradores
O
O
MA
AB
AB
PA
O
O
MA
Cynoscion virescens (Cuvier, 1830)
O
O
MA
Gurijuba
Arius parkeri (Trail, 1832)
BP
BP
MA
Mero
Epinephelus itajara (Lichtenstein, 1822)
A
A
MA
Pescada amarela
Cynoscion acoupa (Lacépêde, 1802)
BP
BP
MA
Pescada gó
Macrodon ancylddon (Bloch; Schneider, 1801)
O
O
MA
Pratiqueira
Mugil spp.
O
O
MA
Serra
Scomberomorus Brasiliensis (Collette Russo; Zavalla-Camin,1978)
BP
BP
MA
Produtos tradicionais
Nome científico
Anchova
Pomatomus saltatrix (Linneaus, 1766)
Bagre
Arius couma (Valenciennes, 1839)
Bandeirado
Bagre bagre (Linnaeus, 1766)
Corvina
Tainha
Mugil spp.
O
O
MA
Uritinga
Arius proops (Valenciennes, 1839)
O
O
MA
Xaréu
Caranx spp.
O
O
MA
Novas espécies Arraia
Dasiatis spp.
AB
AB
PA
Bodó
Hyppostomus cff. verres (Valenciennes, 1840)
BP
AB
MA
Cação
Sphyrna lewini (Grifith; Smith, 1834)
AB
O
PA
Cambéua
Arius grandicassis (Valenciennes, 1840)
O
O
PA
Cangatá
Arius quadriscutis (Valenciennes, 1840)
O
O
PA
Pacamom
Batrachoides surinamensis (Bloch; Schneider, 1801)
BP
O
PA
Peixe-galo
Selene vomer (Unnaeus, 1758)
BP
AB
MA
Peixe-espada
Trichiurus lepturus ( Lineu, 1758)
O
O
MA
Peixe-pedra
Genyatremus luteus (Bloch, 1795)
BP
AB
MA
Piaba
Brachyplatystoma Vaillantii(Valenciennes, 1840)
AB
AB
MA
Sardinha
Anchovia clupeoides (Swainson, 1839)
AB
AB
PA
Tralhoto
Anableps anableps (linnaeus, 1759)
A
AB
PA
Uricica
Cathorops spixii (Agassiz, 1829)
O
O
MA
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Mulher e mercado: participação e conhecimentos femininos na inserção de novas espécies de pescado no mercado e na dieta alimentar
Fora da época de safra, a população tem que se alimentar com o que está disponível. Nesse período, os pescadores informaram que, devido à grande abundância de tralhoto, piaba, bagres etc., essas espécies passam a ser os pescados consumidos fora de safra. Para a piaba13, há um caso interessante a relatar. No mês de julho, em uma praia próxima da comunidade é realizado um festival de piaba, quando os pescadores contam que essa é uma espécie que dá o ano inteiro na região, principalmente no período de safra. Entretanto, o tralhoto, apesar de estar inserido na dieta dos pescadores, ainda encontra-se ausente do mercado consumidor. Os demais pescados de pele mencionados, como uritinga, cangatá, cambéua e bandeirado, encontram-se oscilantes tanto no mercado quanto na mesa dos pescadores, estando disponíveis apenas em determinadas épocas do ano. Porém, é possível se observar que o bandeirado e a uritinga, apesar de serem oscilantes, são muito apreciados nos dois setores mencionados, ao contrário de espécies como o cangatá e a cambéua, que, apesar de terem sido inseridas na dieta do pescador e no mercado, ainda são pouco apreciadas. De toda forma, a comparação do Quadro 1 com os Quadros 3 e 4 sugere uma relação direta entre o consumo alimentar dos pescadores e a inserção de novas espécies no mercado. Os peixes de pele, apesar de estarem inseridos na dieta dos pescadores de Caratateua, são pouco apreciados, conforme visto no Quadro 3, por serem considerados reimosos14. Sobre a arraia, os pescadores alegaram ter certo receio de comerem, por ter ferrão, e relatam ter medo de encontrar ferrão na carne, principalmente quando alimentam seus filhos. Porém, apesar de não serem muito
apreciadas, bagres e arraias têm presença constante no mercado e na alimentação dos pescadores. Barthem e Goulding (1997), durante seus estudos na Amazônia, verificaram que há uma abundância de estoques de arraias, suficientes para serem exploradas comercialmente. Porém, na Amazônia, o hábito de consumir arraias ainda é muito restrito, sendo considerado um pescado de baixo valor comercial. Conforme visto também por Castro (2005) na região do Tapajós, os pescados mais apreciados pelos pescadores locais são os peixes de escamas, como as pescadas em geral. Em Caratateua observa-se a mesma preferência; todavia, as mais apreciadas encontram-se oscilantes no mercado e na dieta da comunidade, como a pescada gó, a pratiqueira, a tainha e a anchova,por se encontrarem em nível de sobrepesca. A incidência dessas espécies na região é principalmente no período de safra, falhando nas demais épocas do ano. A comunidade de Caratateua enfatizou a necessidade de práticas de manejo para minimizar a sobre-exploração do recurso. Uma prática muito mencionada foi a implantação do defeso de espécies comerciais exploradas, a fim de renovar os estoques pesqueiros. Relataram que, se houvesse defeso na região, pescarias no período reprodutivo iriam diminuir. Outro fator abordado refere-se à questão de a fiscalização ser precária, pois, apesar de ser uma reserva extrativista, muitos pescadores de fora do estado pescam na região, prejudicando a pesca artesanal local. A fala de uma entrevista figura de forma recorrente nas conversas com todos os moradores da comunidade e é reveladora: “se continuarmos pescando muito sem repor, um dia vai acabar o peixe, os mariscos, tudo que vem do mar”.
Observando as espécies consumidas, foi possível averiguar que o pescado denominado como piaba pelos moradores de Caratateua, corresponde a um tipo pequeno de piramutaba. 14 A reima é uma classificação atribuída a proibições e restrições no consumo de determinados alimentos. Está dividida em alimentos perigosos (reimosos) e não perigosos (não reimosos) à saúde física do consumidor (Murrieta, 2001). Porém, o presente trabalho não possui objetivo de aprofundar na questão da reima, mas esclarecer seu significado. 13
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É necessária, no próprio olhar dos moradores, portanto, a adoção de medidas emergenciais para garantir os estoques pesqueiros futuros. Caso isso não ocorra, poderá se concretizar a fala mencionada por quase todas as mulheres entrevistadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O município de Curuçá é um local privilegiado pela sua localização, por se encontrar às margens de um estuário rico em recursos naturais. O distrito de Caratateua, encontrado dentro da Resex Mãe Grande de Curuçá, está inserido no contexto de populações tradicionais, pois estas dependem das atividades de pesca e agricultura. Apesar da distância da sede municipal, a comunidade apresenta grande importância por abastecer o mercado local com pescados. Sendo assim, neste artigo buscouse problematizar e questionar em que medida o conhecimento tradicional da mulher contribui para a inserção e comercialização no mercado de novas espécies de pescado e em que medida esse conhecimento garante novas espécies na mesa das famílias de pescadores. A partir do levantamento socioeconômico, foi possível estabelecer uma aproximação descritiva acerca da comunidade de Caratateua, evidenciando a participação feminina na atividade pesqueira da localidade. Observou-se que a comunidade é marcada por uma divisão de trabalho pautada em uma lógica de gênero, ou seja, as mulheres são responsáveis por cuidar da casa, pescar na beira do rio e no mangue e trabalhar na roça, enquanto que seus maridos pescam em alto mar. As artes de pesca mais utilizadas pela comunidade são os currais e o puçá na pesca do camarão. Foi constatado que o mercado em geral teve que se adaptar a uma nova realidade para o consumo de pescado, pois a escassez das espécies apreciadas vem se impondo. Tal movimento se expandiu também para o setor industrial, influenciando as comunidades pesqueiras que fornecem pescados para essas empresas. Como apresentado, a participação feminina mostrou-se de importância fundamental na inserção
de novas espécies no mercado local, visto que são as mulheres que lidam diariamente com os pescados capturados, conhecendo perfeitamente suas características através dos conhecimentos tradicionais repassados pelas gerações passadas. As principais espécies inseridas no mercado de Curuçá foram a sardinha, o pacamom, a uricica, a arraia, a cambéua, o cação e o cangatá, antes ausentes nesse espaço de comercialização, mas presentes na mesa dos moradores de Caratateua, ainda que pouco apreciadas. Assim como na inserção referente ao mercado, a participação da mulher se destaca também na comunidade, mas é importante observar que as espécies relatadas como novas na dieta sempre estiveram presentes, apenas não eram apreciadas ou priorizadas para o consumo. Assim, a comunidade sempre teve contato com essas espécies, tais como o peixe-pedra, a arraia, o cação, a sardinha etc., porém não as consumiam por dispor de outras opões em forma abundante, como a gurijuba, a tainha, a pescada amarela etc. O resultado da pesquisa mostrou que a substituição de pescados mais apreciados pelos menos apreciados na mesa dos moradores se deu pela necessidade de contemplar a demanda do mercado e comercialização de espécies de maior valor. Assim, permaneceram na mesa do pescador as espécies consideradas de baixo valor comercial, ainda que menos apreciadas, como os bagres, ou até mesmo as espécies que ainda nem chegaram ao mercado, como é o caso do tralhoto. No período fora de safra do pescado, é possível visualizar de forma clara o cenário relatado nas entrevistas: pescadores que têm que se contentar com o que conseguem pescar, quadro totalmente oposto ao de algumas décadas atrás. Os produtos industrializados começaram a fazer parte da dieta dos pescadores e o consumo de frango aumenta significativamente, substituindo o peixe. Porém, a carne bovina não é muito apreciada pela comunidade, já que os moradores não confiam na sua qualidade.
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Sendo assim, é a pesca das mulheres que garante uma boa parte do sustento das famílias, não somente no período fora de safra do pescado, como ao longo de todo ano. Por apresentarem uma variedade de atividades em busca do sustento familiar, quando não o peixe, recorrem ao mangue em busca dos mariscos e trabalham na roça, cultivando mandioca, fabricando os produtos derivados da mesma, tão apreciados na comunidade, a exemplo da farinha. Tais observações e constatações evidenciam que, de fato, o trabalho das mulheres na pesca é de relevância não apenas no processo de captura, mas também na dinâmica do mercado. As inovações relacionadas à inserção de espécies de peixes no consumo local são exemplares e revelam relações sociais de gênero nas quais as mulheres superam aspectos binários e onde não lhes caberiam exercer determinadas atividades produtivas. Em que pesem as naturalizações do ser masculino e feminino no setor pesqueiro, as mulheres contribuem de maneira decisiva nas inovações e tecnologias sociais desta atividade. Mesmo com todos os entraves no setor pesqueiro, as pescadoras de Caratateua alegam gostar da profissão e dizem que atualmente não deixariam de exercê-la, independente de conseguir outra atividade, por ser um trabalho que aprenderam desde criança e, de muitas, é a única profissão que sabem exercer, além da agricultura. Esse conhecimento tradicional é de fundamental importância no setor pesqueiro e, como visto, contribui para que haja novas possibilidades de uso dos recursos naturais, embora, perante a sociedade, a atividade pesqueira exercida pelas mulheres não seja reconhecida como deveria ser, pois muitas vezes são consideradas apenas ajudante de seus maridos. Este artigo evidencia, por fim, o pensamento conservacionista como forte alternativa para minimizar os problemas ambientais relacionados aos impactos ocorridos no setor pesqueiro com a sobre-exploração das espécies. Medidas de manejo dos recursos pesqueiros deveriam ser implantadas, como o defeso para as espécies
de pescado mais exploradas, a fim de renovar os estoques pesqueiros e ao mesmo tempo consolidar uma maior fiscalização por parte dos órgãos públicos competentes. Tal como na inserção de novas espécies de pescado na mesa das famílias de pescadores e no mercado, a mulher marisqueira pode ser a protagonista dessa nova possibilidade.
AGRADECIMENTOS Às pescadoras de Caratateua e aos vendedores do mercado municipal de Curuçá, pelas informações e acolhimento; ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), pela concessão da licença 33232-1. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que, através do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aquática e Pesca (PPGEAP/ UFPA), viabilizou a pesquisa de mestrado de Marllen Karine da Silva Palheta, originando este artigo. REFERÊNCIAS ALENCAR, Edna Ferreira. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO, Lourdes Gonçalves; LEITÃO, Wilma Marques; DE MELLO, Alex Fiuza (Org.). Povos das águas: realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: MPEG, 1993. p. 63-81. ALMEIDA, Marineide Pereira. Trabalhos femininos e papéis sociais em uma comunidade rural no nordeste paraense. Projeto Integrado: Produção familiar rural paraense. In: HÉBETTE, J. (Org.). No mar, nos rios e na fronteira: faces do campesinato no Pará. Belém: UFPA, 2002. p. 85-110. v. 1. A L M E ID A , O r i a n a Tr i n d a d e d e ; C A B R A L , W i l s o n ; ANDROCZEVECZ, Scheyla; AMARAL, Lucilene; ARAÚJO, Bárbara. Caracterização da indústria pesqueira na Amazônia. In: PETRERE, Miguel (Org.). O setor pesqueiro na Amazônia: análise da situação atual e tendências do desenvolvimento da indústria da pesca. Manaus: ProVárzea/IBAMA, 2004. p. 61-75. ALMEIDA, José Bruno Araújo de. Efeito de características ambientais no uso dos canais-de-maré por três espécies de peixes bentófagos durante o período transição-seca no estuário de Curuçá (Pará-Brasil). 2009. 93 f. Dissertação (Mestrado em Ecologia Aquática e Pesca) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2009. ARRUDA, Rinaldo Sérgio Vieira. Populações tradicionais e a proteção de recursos naturais em unidades de conservação. Revista Ambiente e Sociedade, Campinas, NEPAN/UNICAMP, v. 2, n. 5, p. 79-93, 2000.
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De Senhora de Nazaré a ‘Nazinha’: singularidades na expressão do afeto à padroeira do Pará From Nazaré to ‘Nazinha’: singularities in the expression of affection for the patron saint of Pará Maria do Socorro Furtado VelosoI, Maria Angela PavanI I
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
Resumo: Este estudo parte do pressuposto de que existe um modo particular de relação devocional do povo paraense com a figura mítica de Maria de Nazaré, mãe de Jesus. ‘Naza’, ‘Nazica’, ‘Nazinha’ são diminutivos do nome original que comunicam o afeto à Santa, contribuindo para o fortalecimento de laços de identidade e pertencimento evidenciados nas festividades em homenagem à padroeira do Estado do Pará, no Norte do Brasil. Essas manifestações marcadas pela informalidade são continuamente mobilizadas por meio de conexões entre linguagem, religiosidade, cultura e mídia. O percurso teórico toma por referência as concepções de Muniz Sodré (2006), que, ao sinalizar para a urgência de novos mecanismos de interpretação para o campo da comunicação, defende a necessidade de se atentar para “a diversidade da natureza das trocas” e seus “poderosos dispositivos do afeto”. Depoimentos coletados em sites, blogues e redes sociais, além de duas letras de músicas e um videoclipe, compõem o conjunto de objetos analisados pelas autoras. Palavras-chave: Comunicação. Cultura. Identidade. Afeto. Círio de Nazaré. Abstract: This study stems from the premise that there is a particular mode of devotional relationship for the people of Pará to the mythical figure of Maria de Nazaré, mother of Jesus. Also known as ‘Naza’, ‘Nazica’, ‘Nazinha’, these diminuitives of the original name, express affection for the Saint, and contribute to the strengthening of ties of identity and belonging, evidenced in the many festivals in honor of this Patron Saint of Pará, in the North of Brazil. These manifestations, marked by their informality, are continually mobilized through connections between language, religiosity, culture and media. The theoretical basis for this work relies on the concepts of Muniz Sodré (2006), who, flagging the urgency for adopting new interpretive mechanisms in the field of communication, defends the need to attempt to “the diversity of the nature of exchanges” and their “powerful devices for affection”. Depositions collected on sites, blogs and social network pages, as well as in the lyrics of two songs and a video clip, comprise the set of objects analyzed by the authors. Keywords: Communication. Culture. Identity. Affection. Círio of Nazaré.
VELOSO, Maria do Socorro Furtado; PAVAN, Maria Angela. De Senhora de Nazaré a ‘Nazinha’: singularidades na expressão do afeto à padroeira do Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 621-631, set.-dez. 2016. DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300005. Autora para correspondência: Maria do Socorro Furtado Veloso. Alameda das Mansões, 218, bloco São Paulo, apto 904. Bairro Candelária. Natal, RN. Brasil. CEP 59.064-740 (socorroveloso@uol.com.br). Recebido em 18/12/2015 Aprovado em 01/08/2016
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De Senhora de Nazaré a ‘Nazinha’: singularidades na expressão do afeto à padroeira do Pará
INTRODUÇÃO “A Santa tá online!”, comemora com estardalhaço o personagem Tuco, de A Grande Família (TV Globo), ao ver Nenê, sua mãe, acertar uma sequência de respostas num quiz show televisivo. A frase espirituosa proferida no episódio ‘Ou vai ou racha’ da série, que foi ao ar em 9 de agosto de 2012, ilustra as alterações cada vez mais evidentes, e surpreendentes, no discurso daqueles que têm uma relação de devoção ou apenas de afinidade cultural, em maior ou menor grau, com a figura mítica representada por Maria de Nazaré, a mãe de Jesus. Essas alterações discursivas exprimem, no geral, um esforço que se caracteriza pela busca por formas de aproximação com a divindade. Na fala de Tuco, a marca da proximidade reside na habilidade com aparatos tecnológicos atribuída à mulher escolhida para gerar o novo Messias, segundo a tradição cristã: a Santa está online, conectada, em rede. Em on, pode atender aos pedidos dos devotos com mais agilidade, como sugere o personagem. Pois é da percepção dessa comunicação afetiva entre humanos e divindades, cuja marca é a presença da linguagem coloquial, que se constitui a matéria-prima do presente estudo. Essa percepção se consolidou desde que as duas autoras, uma paraense e outra paulista, voltaram suas atenções, ainda que informalmente, para os modos de tratamento dispensado por seus conterrâneos às Santas que simbolizam seus respectivos estados – Nazaré, no Pará, e Aparecida, em São Paulo, sendo a última padroeira do Brasil. No primeiro caso, notou-se um tipo de intimidade construída pela linguagem oral, cada vez mais presente na maneira do paraense de se referir à Santa. O que antes poderia soar como blasfêmia, desrespeito ou apenas provocação, aos poucos passou a significar um tipo muito particular de relação devocional com Maria de Nazaré. ‘Naza’, ‘Nazica’, ‘Nazinha’ são diminutivos do nome original, hoje associados à figura que, como nenhuma outra, traduz a ligação do povo do Pará com a fé cristã. ‘Poderosa’, ‘soberana’, ‘linda’ são adjetivos presentes em postagens escritas por paraenses residentes dentro ou
fora do estado, em sítios na internet consultados para este estudo. Esses adjetivos fazem referência ao esplendor da imagem que, adornada por um manto bordado com fios de ouro e pedras preciosas, anualmente deixa a sacristia da Basílica de Nazaré para uma série de peregrinações, a cada festividade do Círio. Sobre essas peregrinações, não é incomum se dizer, em tom de chiste, que a Santa chegou ‘cansadíssima’ a seu destino. Não se tem conhecimento, ao contrário, de que os devotos de Nossa Senhora Aparecida tenham por hábito tratá-la por ‘Cida’, ‘Cidinha’ ou ‘Cidoca’ – epítetos costumeiramente atribuídos a mulheres registradas com o nome da Santa paulista. O pitoresco modo do paraense de se referir à divindade evidencia uma forma de comunicação caracterizada pela afetividade, em contraponto à ausência do ‘medo de pecar pela palavra’, tão característico da relação que os cristãos mantêm com os elementos da devoção. Manifestações oriundas da indústria cultural também reiteram esse modo de afeto. Como se verá adiante, para a Santa já foi composta música em ritmo caribenho – ‘Nazaré’ (Zouk da Naza), de Almirzinho Gabriel -, e sua figura sacra é personagem em um videoclipe essencialmente profano – ‘Xirley’, de Gaby Amarantos. A música de Gabriel, o videoclipe de Amarantos e oito mensagens coletadas na internet são objetos deste artigo, que se utiliza de pesquisa documental com ênfase qualitativa, a partir da seleção de conteúdos em jornais impressos e na internet, e de análise fílmica. Neste estudo, optou-se por percorrer o “caminho teórico” proposto por Muniz Sodré na obra “As estratégias sensíveis” (2006). Ao sinalizar para a urgência de novos mecanismos de interpretação para o campo da comunicação, o autor defende a necessidade de se atentar para “a diversidade da natureza das trocas, em que se fazem presentes os signos representativos ou intelectuais, mas principalmente os poderosos dispositivos do afeto” (Sodré, 2006, p. 12-13). Buscando uma “dimensão primordial que tem mais a ver com o sensível do que com a medida
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racional”, o autor nos ajuda a refletir sobre a experiência do corpo no entorno comunicacional: Por exemplo, a dimensão da corporeidade nas experiências de contato direto, em que se “vive”, mais do que se interpreta semanticamente, o sentido: sentir implica o corpo, mais ainda, uma necessária conexão entre espírito e corpo. Ou então, a dimensão da imagem, em que o afeto e a tatilidade se sobrepõem à pura e simples circulação de conteúdos. Trata-se finalmente de reconhecer a potência emancipatória contida na ilusão, na emoção do riso e no sentimento de ironia, mas também na imaginação [...] (Sodré, 2006, p. 13).
É um olhar que se encaminha para leituras que podem estar “aquém e além do conceito”, diz Sodré (2006, p. 13), ao privilegiar emoções, sentimentos e elementos míticos. Trata-se, em suma, da decisão de assumir outra “atitude epistemológica”, “mais compreensiva, menos intelectualracionalista, capaz de apreender os fenômenos fora da medida universal” (Sodré, 2006, p. 14). Esse olhar proposto por Sodré conduz o presente estudo, que nasceu da percepção de que dispositivos do afeto são continuamente mobilizados por meio de conexões entre linguagem, religiosidade, cultura e mídia, no caso da singular atitude devocional dos paraenses frente à sua Santa padroeira. Esta pesquisa tem natureza qualitativa, por valer-se de amostras de caráter intencional. Nas amostras intencionais, os elementos “são selecionados conforme critérios que derivam do problema de pesquisa, das características do universo observado e das condições e métodos de observação e análise” (Fragoso; Recuero; Amaral, 2011, p. 78) – em contraposição às seleções de amostras de caráter probabilístico ou estatístico. Como observa Minayo (1994, p. 21), a pesquisa qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. A metodologia incluiu, ainda, análise fílmica, que foi realizada em duas etapas: primeiro descrevemos a construção fílmica, todas as cenas e cortes, e em seguida
interpretamos os dados. Como orienta Penafria (2009, p. 1), a “decomposição recorre pois a conceitos relativos à imagem (fazer uma descrição plástica dos planos no que diz respeito ao enquadramento, composição, ângulo [...]) ao som (por exemplo, off e in) e à estrutura do filme (planos, cenas, sequências)”. O objetivo, enfatiza a pesquisadora, é lançar luz sobre o funcionamento de determinada produção audiovisual e propor uma interpretação.
AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO CÍRIO Compreender os sentidos múltiplos da procissão que, anualmente, sempre no mês de outubro, louva a padroeira dos paraenses, demanda a necessidade de se permitir testemunhá-la, ainda que por uma vez e ainda que nem tão de perto. Isso porque o Círio de Nazaré é um fenômeno singular, cujas particularidades incluem desde a própria dimensão física da romaria até aspectos mais sutis, como a relação de humana intimidade com a figura divina. A romaria católica que acontece há 223 anos na capital do Pará, no segundo domingo de outubro, é uma das maiores do mundo em número de pessoas. O percurso começa na Catedral de Belém, no centro velho da cidade, e se estende por quatro quilômetros até a Basílica de Nazaré, no bairro do mesmo nome. A condução da Santa entre esses dois extremos, a Catedral e a Basílica, é caracterizada por situações que expressam duas dimensões evidentes da festividade, a devocional e a informal, como aponta Alves (2005a, p. 330-331):
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O Círio caracteriza-se, em todo o seu trajeto, de um lado, pelas situações que expressam um profundo respeito, com os atos correspondentes, e, de outro, por uma alegria festiva demarcada pelo ritmo das músicas e das bandas que se distribuem ao longo da procissão. O drama social, no caso do Círio, é uma combinação de situações que vão do sacrifício mais doloroso de um devoto que, de joelhos ou se arrastando, paga a sua promessa, até um desregrado comportamento de quem apela para a gargalhada, a conversa amena, os votos de uma feliz festa, o estardalhaço dos jovens ou o despojamento no vestir
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(a camisa de um clube de futebol, por exemplo) e no andar descalço, além da expressão de uma alegre convivência com a Santa que se torna, ao descer dos altares, uma personagem familiar.
No conjunto, trata-se de uma celebração hiperbólica: a quantidade de devotos que acompanha a imagem; o número e tipos de procissões, feitas a pé, de barco, de carro, de motocicleta; a comensalidade, caracterizada pela fartura de comidas típicas à mesa e pelo consumo elevado de bebidas alcoólicas; os modos sobre-humanos de agradecer pelas graças alcançadas, como cumprir o percurso da procissão de joelhos ou agarrando-se à corda que conduz a berlinda, por exemplo; as expressões de profunda adoração e crença em milagres patrocinados pela padroeira, marcadas por choro, gritos, aplausos e milhares de mãos espalmadas para o alto, à primeira visão da imagem; as manifestações de rua profanas, como o Arraial do Pavulagem - uma banda que valoriza elementos da musicalidade local, entre eles o boi-bumbá e o carimbó - e a Festa da Chiquita - que na noite de sábado reúne gays, travestis e drag queens na Praça da República, local por onde, apenas algumas horas depois, passará a imagem da Santa em direção à Basílica de Nazaré. Não basta, pois, presenciar o espetáculo. Como observa Figueiredo (2005, p. 35), a festa é também para ser vivida e percebida pelos vários sentidos, “que ficam sobrecarregados das sensações de experiências do Círio de Nazaré”. Por meio de dispositivos variados, os paraenses compartilham experiências que conjugam fé, alegria e afeto durante as festividades de outubro, sedimentando um forte traço da cultura local na imbricação permanente entre o sagrado e o profano. A partir das concepções de Sahlins (1974), pode-se pensar no Círio e em sua personagem central como expressões por meio das quais uma coletividade de devotos reafirma seu poder, exibindo ao máximo sua crença na amplitude da romaria, nas festas de rua, no vestuário e nos adornos, e também na tessitura de afetos que unem não só crentes e divindade, mas o próprio conjunto dos devotos, entre si.
Disso decorrem várias proposições corolárias encontradas na Antropologia moderna: que as crenças espirituais espelham a estrutura da sociedade; que os deuses, mitos e práticas rituais simbolizam os valores e relações sociais básicos, de que tudo isso funciona para integrar a sociedade, prover coesão, promover solidariedade e manter a continuidade. (Sahlins, 1974, p. 150).
Emprestada do mundo do sagrado por diferentes processos de mediação, a Santa adquire um tipo de reconhecimento antes reservado a artistas de televisão, cantores e jogadores de futebol. É o que se depreende de entrevista concedida pela cantora paraense Fafá de Belém ao jornal Diário do Pará (2011): “Vejam bem que não é um camarote de celebridades. A única celebridade aqui é ela, a ‘Nazica’”, tenta esclarecer Fafá, ao ser questionada sobre a presença de um grupo de nomes famosos em seu camarote na Estação das Docas - famoso ponto turístico de Belém, de onde, naquele momento, tinha-se uma visão privilegiada da procissão em homenagem à Senhora de Nazaré. Cercada por figuras vinculadas ao show business, como o cantor-padre Fábio de Melo, o ex-jogador Raí e o lutador Lyoto Machida, a artista quis sugerir, como devota, que naquele momento abria mão da condição de personagem célebre para reservá-la unicamente à padroeira local que, no ano de 2015, de acordo com estimativas dos organizadores, levou às ruas de Belém cerca de dois milhões de pessoas. Do mesmo modo que Fafá de Belém, outro nome local de expressão nacional, a atriz Dira Paes, comparou a Santa a uma ‘miss’ ao comentar os preparativos para o Círio. A preparação para a procissão começa alguns dias antes da festa. Minha irmã faz parte da diretoria do Círio de Nazaré. Como ela é uma das pessoas que organiza a berlinda, tive a oportunidade nos últimos anos de pegar no manto que envolve a Santa. [...] É uma riqueza, é como se estivéssemos preparando uma ‘miss’ para o grande dia. (Paes, 2005, p. 95).
A relação de proximidade com a padroeira é visível em todas as épocas do ano, em Belém, mas se intensifica
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no período do Círio – que não se resume aos 15 dias de festa, a partir do segundo domingo de outubro, mas começa muito antes, no fim do primeiro semestre, quando os organizadores (que incluem mandatários da Igreja e representantes da sociedade civil) anunciam preparativos, divulgam eventuais mudanças ou novidades no percurso, e tratam de questões que vão do cartaz oficial a eventos relativos ao calendário da festa.
MARCAS DA IDENTIDADE E DO PERTENCIMENTO As expressões da cultura do Pará, como se observa, estão fortemente centradas na Santa e no Círio. Ambos tecem sentidos com os quais os paraenses podem reforçar os laços do pertencimento e manter sua identidade por meio das histórias e dos produtos midiáticos e culturais que transcendem a festa. Criar e recriar a identidade através dessas histórias e produtos podem representar um gesto de resistência da comunidade visando a manter a noção de pertencimento. Para Halbwachs (1990, p. 19), a vivência do coletivo é essencial, pois o homem se define e se constrói pela cultura, já que se encontra inserido em ambiente social: Quando dizemos que o indivíduo se conduz com a ajuda da memória do grupo, é necessário entender que essa ajuda não implica na presença atual de um ou vários de seus membros. Com efeito, continuo a sofrer a influência de uma sociedade ainda que tenha me distanciado: basta que carregue comigo em meu espírito tudo o que me capacite para me posicionar do ponto de vista de seus membros, de me envolver em seu meio e em seu próprio tempo, e de me sentir no coração do grupo.
A festa religiosa de clara noção identitária tem outras peculiaridades, como a de ser considerada o ‘Natal dos paraenses’. Às vésperas ou no dia da grande procissão, é comum que as pessoas se cumprimentem umas às outras com beijos, abraços e votos de ‘feliz Círio’ ou ‘bom Círio’. A esse respeito, Alves (2005a) aponta para o “sentimento de pertencimento” presente na troca de
cumprimentos, outra marca dessa celebração contida em um tempo particular. Uma das características da Festa de Nazaré é que ela é um ponto nodal (fim e início) de um ciclo no calendário regional que compreende um tempo muito particular [...]. O cumprimento ritual atualiza a passagem de um ciclo a outro, revela os desejos comunitários e o sentimento de pertencimento e a renovação de relações socialmente estabelecidas. Por isso mesmo, em seus desdobramentos, a realização da Festa durante a quinzena vai mostrar esses aspectos valorativos que lhes são próprios. (Alves, 2005a, p. 317).
Maués (1999, p. 7 apud Alves, 2012, p. 43) reitera a dimensão identitária das festividades do Círio, ao situá-las como celebração de um modo de ser típico do povo do Pará: “É uma maneira de mostrar ‘eis a nossa festa, esses são os paraenses, vejam nossa culinária, nossos hábitos, somos nós’. Não estamos simplesmente festejando a Santa, estamos festejando nossa própria sociedade”. No eixo desses sentidos está Maria, ‘mãe’ e ‘rainha’ da Amazônia, a padroeira ‘poderosa e milagrosa’, com quem os devotos mantêm uma relação estreita. Deste modo, como observa Alves (2005b, p. 323), a Santa cumpre “no plano da representação religiosa, um poder feminino pouco correspondente no plano do mundo cotidiano. [...] Não é sem razão que no Brasil os grandes padroeiros são Santas, Virgens Marias, cultuadas e reverenciadas, isso só para falar no catolicismo popular”. Os laços de identidade que unem os paraenses em torno da divindade incluem um momento histórico marcante para a Igreja Católica, em Belém: o ano de 1969, ocasião em que a imagem original - uma peça barroca de 28 cm de altura, esculpida em madeira -, foi substituída, nas procissões, por outra imagem. Encomendada pelo então vigário local, Miguel Giambelli, ao escultor italiano Giacomo Mussner, a imagem que hoje é chamada de ‘peregrina’ tem os cabelos soltos caindo em cachos sobre o ombro direito, a exemplo da original. O tom do cabelo é castanho escuro, em contraponto ao castanho claro da ‘autêntica’ – como os paraenses costumam chamar a
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imagem que, reiterando a mitologia do achado de Santas como Guadalupe, Aparecida e Fátima (Alves, 2005b), foi encontrada por um pescador de nome Plácido, no ano de 1700, às margens do igarapé Murucutu, onde depois seria erguida a Basílica de Nazaré. Os traços fisionômicos da peregrina são mais joviais e próximos da mulher amazônica. É na figura do menino Jesus - sentado no braço direito de ambas as imagens e com um globo nas mãos -, que reside, contudo, a maior diferença: enquanto, na escultura original, o filho de Deus é representado por um bebê de cabelos loiros e fisionomia europeia, na ‘peregrina’ o menino é tipicamente nativo - os cabelos são negros, e o rosto e o nariz, arredondados, a exemplo de tantas crianças com traços indígenas vistas nas ruas de Belém. A Santa que anualmente protagoniza um longo circuito de procissões com seu pequeno Jesus amazônico nos braços é, portanto, mãe sagrada e cabocla ao mesmo tempo. Como na música do compositor Gabriel ([2010]), ‘Nazaré’ (Zouk da Naza), é a personificação da mulher paraense, amazonense, acreana, aquela que vive na periferia das capitais ou no interior, às margens dos rios, no meio da imensa floresta. É aquela que prepara o peixe, colhe o açaí, cuida da palha que vai cobrir a casa humilde. Segundo a letra da música: Nazaré chegou por aqui já era Santa/E aqui já era aqui no mesmo lugar/Se acocorou pra beber água a chuva caiu/Resolveu ficar/Tirou palha, envira, cipó, galinho de pau/Fez uma casinha arrumou cozinha e quintal/Assou peixe, fez avoado, tirou açaí/Sem nada magoar/Naza, Nazarezinha, Nazaré rainha/ Nazaré, mãe da terra, mãezinha me ajuda a cuidar. (Gabriel, [2010]).
Aqui, também, a Santa humanizada pode ser ‘Naza’, ‘Nazarezinha’. Mas é ‘rainha’, é ‘mãe da terra’, e o povo a ela devoto recorre para que ajude “a cuidar”. Outro exemplo colhido para este estudo é o videoclipe ‘Xirley’, da cantora Gaby Amarantos. Disponível no Youtube, ‘Xirley’ mostra simbolicamente como Maria de Nazaré está presente no imaginário e no cotidiano dos paraenses. No clipe, Gaby representa uma moradora da
periferia de Belém que tem uma modesta casa tomada por elementos do hiperconsumo. A casa denota um ambiente transgressor, onde funciona uma fábrica de CDs falsificados. Xirley circula no espaço com total desenvoltura. Público e privado são tecidos na mesma ambiência. Tudo está conectado circularmente: o passeio da câmera em plano sequência é feito de dentro para fora e de fora para dentro. O cenário antes modesto vai se modificando a cada instante, com a incorporação de objetos de cena e de uso mais sofisticados. Essa sofisticação está claramente associada à transgressão da pirataria, motor da ascensão econômica da personagem ‘Xirley Xarque’. No plano sequência, são apresentados símbolos do consumo relacionados a símbolos de devoção: além da imagem da padroeira, estão lá Buda, Mickey Mouse, Minnie Mouse, pedras preciosas, automóvel, televisores ligados. Tudo fica centrado no conteúdo significativo gerado pela colisão dos planos internos e externos à casa. A montagem prioriza a evolução dos aparatos de consumo. O que não muda é o lugar de destaque reservado à imagem da Virgem Maria e a maneira amorosa como Xirley reverencia a Santa (Figura 1). Ao longo do videoclipe, a personagem saúda a divindade quatro vezes, sempre usando vestimentas diferentes. Xirley ascende socialmente, e a Santa ascende com ela, adquirindo novos adornos a cada passagem da câmera (Figuras 2 e 3). No quarto movimento de edição, no momento da reverência, o que transparece é irreverência: o manto de Nazaré aparece adornado com luzes de neon (Figura 4). Diante da delicadeza de Xirley nos gestos de respeito à Santa, o paradoxo com a reprodução ilegal de CDs é evidente. A letra da música e a edição confirmam esse paradoxo entre transgressão e devoção, visto que o sinal de respeito à imagem se dá exatamente no momento em que Gaby canta: “[...] café coado na calcinha, só pra te enfeitiçar” (Xirley, 2011). A letra da música, que incorpora marcas da oralidade típica dos moradores da região Norte do Brasil, também alude à pirataria ao brincar com a palavra samplear - “Eu vou samplear, eu vou te roubar” (Xirley, 2011):
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Figura 1. Personagem Xirley reverencia imagem da padroeira. Fonte: Youtube.
Figura 2. Primeiros sinais da ascensão social da personagem. Fonte: Youtube.
Figura 3. Nova mudança de cenário, no terceiro movimento de edição do videoclipe. Fonte: Youtube.
Figura 4. Na sequência final, o manto da imagem aparece adornado com luzes de neon . Fonte: Youtube.
Saia vermelha, camisa preta/Chegou pra abalar/ Quando tu for na casa dela, lhe buscar, ela vai preparar/Café coado na calcinha, só pra lhe enfeitiçar/E se tu for na aparelhagem/Tu vai ver só o que ela vai aprontar/Saia vermelha, camisa preta/ Chegou pra abalar/Quando tu for na casa dela, lhe buscar, ela vai preparar/Café coado na calcinha, pra te enfeitiçar/E se tu for na aparelhagem/Tu vai ver só.../Eu vou samplear, eu vou te roubar! (Roubar! Roubar! Roubar!)/Eu vou samplear, eu vou te roubar!/Eu vou samplear, eu vou te roubar!
uma voz over que, associada a uma imagem de Cristo, faz jocosa advertência sobre a reprodução ilegal de músicas: “A prática da pirataria é pecado, de acordo com a palavra de Deus, e a violação de quaisquer direitos acarretará sanções previstas na lei 9.610 do Código Penal. A pirataria é crime e pecado. Não transgrida a lei de Deus”.
Ao seguir a dinâmica narrativa, conforme proposto por Penafria (2009), e observando o sentido visual e sonoro das cenas construídas, notamos que, apesar da repetição do refrão “Eu vou samplear, eu vou te roubar” (Xirley, 2011) ao longo do videoclipe, a centralidade das imagens está no altar da Virgem de Nazaré. Nos créditos finais, a diretora Priscilla Brasil, mais uma vez, reúne crença e transgressão ao posicionar
‘NOSSO POVO, DELA, É TÃO ÍNTIMO’ Este estudo reúne, também, oito depoimentos coletados na internet (em seis blogues, uma página em rede social e um site) que evidenciam a relação de intimidade dos devotos com a Santa por meio da linguagem escrita. Os depoimentos estão reproduzidos exatamente do modo como foram registrados, sem ajustes de ordem gramatical. Os autores estão identificados por iniciais.
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É só uma vez por ano, mas a bichinha deve ficar exausta depois de tanto rodar por aí, o pior é que, a ‘Nazinha’ não tem nem tempo de cuidar da maniçoba e do pato no tucupi dela!!! Brincadeiras à parte... essa é a forma carinhosa com a qual boa parte dos paraenses trata sua mãezinha, comenta A., em blogue. (Ela, 2009).
Sou alucinada pelo Círio e pela Nossa Senhora, eu ensinei meus amigos a chamarem de ‘Nazica’. O cartaz do Círio é pregado em uma porta da minha casa e tenho uma imagem dela na minha estante. Sempre rezo pra ela me proteger e amenizar a saudade que sinto principalmente da família. Toda vez que ouço qualquer música do Círio, eu choro muito, conforme B., em entrevista ao jornal Diário do Pará, reproduzida em blogue. (Gonzaga, 2011).
Outubro para o Pará é como Dezembro para o resto do mundo, comemoramos o Círio de Nazaré, não sou adoradora da ‘Nazica’ (‘Naza’, ‘Nazinha’ e etc. é como a chamamos carinhosamente, porque somos muito íntimos com ela) mas adoro o sentimento de união que ela trás neste momento, diz M., em blogue. (Fernandes, 2010).
Já faz três anos que acompanho a trasladação. No primeiro ano, fui romeira da corda. Posso garantir que a dor física não é nada comparada com a satisfação de se sentir parte da corda. Ver a ‘Nazica’ de perto é o ápice! Uma mistura de fé, emoção, felicidade e cumplicidade, que só quem é devoto sabe. Tudo nesse momento se resume em um ato simples: as lágrimas escorrendo pelo rosto, diz P., em blogue. (Rodrigues, 2011). Nosso povo é dela tão íntimo que se atreve a chamá-la de ‘Nazinha’, ‘Nazica’, ‘Naza’, é a grande convidada e homenageada no tradicional almoço do círio, onde não pode faltar a maniçoba, a feijoada amazônica e o pato, trazido pelo nosso interiorano, com bastante tucupi, encomendado desde cedo no ver-o-peso, diz W., em blogue. (Cardoso, 2010). Hoje minha amada cidade de Belém do Pará vive nas suas ruas centenárias a maior festa religiosa do Brasil, são mais de dois milhões de fiéis que caminham lado a lado na principal das onze romarias acompanhando a berlinda que conduz MARIA DE NAZARÉ, nossa mãe e padroeira da Amazônia, carinhosamente chamada por nós de ‘Naza’, ‘Nazinha’ ou ‘Nazica’ dependendo da intimidade que cada um de nós com ela estabeleça durante cada dia do ano, comenta E., em rede social. (Freitas, 2011). Viva Nossa Senhora de Nazarééééé [mais de dois milhões de pessoas respondendo] VIVAAAAA! ‘Nazaré’, ‘Nazinha’, ‘Nazica’, nós paraenses que temos intimidade com a rainha da amazonia podemos chamá-la assim, rsrsrs, diz T., em blogue. (Paixão, 2009). Não há quem não se comova ao ver a ‘Nazica’ passar, envolta em seu manto, escândalo, ‘poderosa’, ‘soberana’, ‘linda’... e olha que ela roda horrores, é tanta procissão, que ela chega a ficar tonta, vai de carro pra lá, vem de barco pra cá, vai pra Sé, vem pra Basílica, ufa!!! Eu canso só de imaginar o tanto que a ‘Naza’ roda mana... esse ano, até pro Rio ela foi a ‘poderosa’... sem falar nas visitas que ela faz em vários órgãos de governo e sedes de empresas um mês antes do Círio.
Lindo vê a ‘Nazica’ passando e sendo adorada cheia de amor e muito carinho. Não é a imagem e a fé, o poder que ela tem de remover as nossas montanhas. A gente crer tanto na Nazinha que é de emocionar, de chorar e de confiar, conforme J. V., em blogue. (Vieira, 2010).
Em quatro dos oito depoimentos colhidos, a relação de intimidade com a padroeira do Pará está explícita no discurso. Seu poder como divindade nunca é questionado, mas ao ser humanizada pela linguagem, é como se a Santa estivesse agora partilhando com os devotos também no ambiente terreno. “Ver a ‘Nazica’ de perto é o ápice!”, ilustra P., remetendo ao significado da proximidade física com a imagem, sempre tão desejada por parte dos que acompanham as romarias e demais eventos protagonizados pela Santa. A proximidade é tão sentida que parece tratar-se, a padroeira, de alguém da família, ou uma convidada. “Nosso povo é dela tão íntimo que se atreve a chamá-la de ‘Nazinha’, ‘Nazica’, ‘Naza’, é a grande convidada e homenageada no tradicional almoço do círio [...]”, diz W. A impressão da ‘presença’ da Santa encontra eco no modo com os devotos enfeitam seus lares no período de festividades. As imagens da padroeira que muitos paraenses abrigam em casa ganham novos adornos, como fitas, flores e terços: “A Santa tem um lugar na festa da casa e, muitas vezes, esse lugar é na sala que acontece o almoço. Nesse sentido, simbolicamente, é como se ela estivesse ‘presidindo’ o almoço do (seu) Círio, em que ela seria (ou é) a homenageada principal” (Maués, H.; Maués, A., 2005, p. 49).
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O tom de chiste também é notado em alguns depoimentos reunidos neste artigo, especialmente de A., que adjetiva a Santa como “poderosa”, “soberana” e “linda”, e brinca com a quantidade de romarias realizadas durante as festividades: “[...] olha que ela [a Santa] roda horrores, é tanta procissão, que ela chega a ficar tonta, vai de carro pra lá, vem de barco pra cá, vai pra Sé, vem pra Basílica, ufa!!” Os gracejos prosseguem na mensagem, como a falta de tempo da Santa para cuidar dos afazeres do tradicional almoço, diante dos compromissos com as peregrinações. Ao final, amenizando o tom de brincadeira, A. chama a padroeira de “mãezinha”. Chistes como esses são costumeiramente seguidos de recuos, possivelmente porque o temor e o respeito permanecem como pressupostos da relação que devotos mantêm com os santos da Igreja Católica: “O medo da ira do santo, ou de ser abandonado por sua proteção, é constante”, explica Figueiredo (2005, p. 30). Os discursos coletados para este estudo também reiteram percepção de Maués, H. e Maués, A. (2005), que já haviam apontado para o hábito recente, entre os paraenses, de eleger ‘apelidos carinhosos’ para a Santa. Naquele momento, atribuiu-se o hábito, porém, apenas a um grupo de intelectuais ou artistas. De uns tempos para cá, as pessoas chamam-na de “Naza”, “Nazica”. “Reparaste como a Naza estava linda?”. Comumente se diz “Santa”, mas esses ares de modernidade [...] parecem ter adotado também o apelido da Santa. De alguns anos para cá, eu tenho ouvido certa categoria de pessoas falar dessa forma. Mas penso que isso se restringe a um grupo de intelectuais, de artistas que, como que trazendo a Santa para seu próprio nível pela irreverência ou intimidade do apelido, tangenciam a “devoção” de que, na verdade, todos partilham – como paraenses, mesmo que não religiosos. (Maués, H.; Maués, A., 2005, p. 50).
Nota-se, nos oito depoimentos reunidos acima, que o tratamento informal à Santa parece já não se resumir a um grupo específico; pelo contrário, permeia diferentes discursos, o que é facilmente notado também empiricamente, em rodas de conversas com paraenses.
Pesquisadores que mais recentemente se debruçaram sobre as potencialidades de significados do Círio de Nazaré também apontam para esse modo singular de tratamento da Santa padroeira dos paraenses. É o caso de Silva (2015), Frugoli (2014) e Alves (2012), cujos estudos, ainda que de modo secundário e pontual, sublinham o afeto e a intimidade constituintes da relação entre devotos e divindade. Alves (2012, p. 48) entende que o hábito de nominar a Santa por apelidos familiares, como ‘Naza’, ‘Nazinha’ ou ‘Nazica’, denota a “relação direta e afetiva que com ela mantêm seus fiéis, típica do catolicismo popular”. Frugoli (2014, p. 105) chama atenção para o papel da comensalidade no reforço desses laços de afeto: “É o dia da Nazinha. É o dia do almoço do Círio de Nazaré. É o dia do banquete amazônico, que na festa se manifesta tradicionalmente. É o dia de dividir a mesa com o outro”. Para Silva (2015, p. 35), que analisou a virtualização do Círio de Nazaré nas redes sociais, essa proximidade não é um fenômeno tão recorrente em outras devoções populares no Brasil, o que combina com a percepção das autoras deste artigo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A SANTA EM REDE A despeito de sua grandiosidade, o Círio de Nazaré ainda é um evento mantido à distância para quem reside fora do Pará. Somente no segundo domingo de outubro, por ocasião da festa, o assunto recebe tratamento mais detido em noticiários de televisão. Por outro lado, hoje se ouve falar dos paraenses e de sua cultura em telenovelas, documentários e programas de auditório. A música, especialmente o ‘tecnobrega’, e o modo de falar típico se popularizam por meio da divulgação promovida por artistas locais de expressão nacional, como Fafá de Belém, Joelma e Gaby Amarantos. Com as novas tecnologias, a Virgem de Nazaré, por sua vez, ganha espaço no ambiente online, onde os internautas podem manifestar sua crença afetuosa na padroeira, como é o caso das mensagens citadas neste artigo. A Santa é desmitificada e agora, nominada
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de ‘Naza’, ‘Nazinha’ ou ‘Nazica’, apresenta-se como companheira fiel do cotidiano. Não há mais lugar demarcado para o exercício da devoção: com as redes sociais e os produtos da indústria cultural, para ficar em dois exemplos, a devoção à Santa ganha dimensão e intensidade que extrapolam os cortejos de outubro. A aliança forjada historicamente entre os devotos e a padroeira permitiu desenvolver uma proximidade singular, por meio de linguagem própria, íntima, só perceptível entre os paraenses; é um tratamento que se coloca à margem da ritualística cultivada pelo chamado ‘catolicismo oficial’. ‘Naza’, como celebridade, é hoje figura central do espetáculo midiático, no Pará. Se a divindade mantém seus poderes – o que se depreende do número de promessas cumpridas a cada romaria –, ela também se apresenta humanizada por mecanismos de comunicação do afeto, e, nesta condição, parece cada vez mais próxima de seu povo.
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Quintais urbanos: funções e papéis na casa brasileira e amazônica Urban backyards: functions and roles at the Brazilian and Amazonian home Helena Lucia Zagury TourinhoI, Maria Goreti Costa Arapiraca da SilvaII I II
Universidade da Amazônia. Belém, Pará, Brasil
Secretaria de Estado de Educação. Belém, Pará, Brasil
Resumo: Desde os tempos coloniais os quintais estão presentes como elemento tradicional nas casas urbanas amazônicas e brasileiras. Entretanto, atualmente, grande parte das novas moradias construídas, nas grandes cidades da região e do país, prescinde dos espaços contíguos às residências chamados de quintais. O propósito do estudo é analisar, historicamente, a importância e as funções dos quintais nas moradias brasileiras, e amazônicas em particular. O trabalho está dividido em três seções. Na primeira, discute os conceitos de quintais urbanos e de casa; na segunda analisa as transformações nas tipologias de moradias, destacando as permanências e as mudanças na importância e nas funções dos quintais. Por fim, conclui mostrando que, com o crescimento urbano e o desenvolvimento do capitalismo, a emergência de padrões modernos e pós-modernos de morar vem provocando o crescente esvaziamento das funções tradicionais de produção alimentar, de prática de atividades domésticas e de local privilegiado de lazer e convivência familiar. Como consequência, os quintais urbanos tem visto seu conceito e suas funções alterados ou, simplesmente, vêm sendo suprimidos das moradias. Por fim, alerta para as consequências desse processo para a qualidade de vida urbana, especialmente nas cidades amazônicas. Palavras-chave: Quintais urbanos. Habitação. Amazônia. Brasil. Abstract: Ever since colonial times, backyards have been present as a traditional element in urban houses in the Amazon and in Brazil in general. However, currently, most new homes built in large cities in this region and throughout Brazil forego the spaces contiguous to homes called backyards. The purpose of this study is to conduct a historical analysis of the importance and functions of backyards in Brazilian homes, and in the Amazon in particular. The article is divided into three sections. The first discusses the concepts of urban backyards and houses; the second analyzes the transformations in housing typology, highlighting the continuities and the changes in the importance and functions of backyards. Finally, it concludes by showing that, with urban growth and the development of capitalism, the emergence of modern and post-modern patterns of living has increasingly been prompting the ebbing away of a backyard’s traditional functions of producing food, being a favored locus in which to engage on domestic activities, forms of leisure and of family life. As a result, backyards have seen their concept and functions or have simply disappeared. Consequently, an alert sounds to the consequences of this process for the quality of urban life, especially in Amazonian towns. Keywords: Urban backyards. Housing. Amazon. Brazil.
TOURINHO, Helena Lucia Zagury; SILVA, Maria Goreti Costa Arapiraca da. Quintais urbanos: funções e papéis na casa brasileira e amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 633-651, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ 1981.81222016000300006. Autora para correspondência: Helena Lucia Zagury Tourinho. Av. José Bonifácio, 656, apto 1302. São Braz. Belém, PA, Brasil. CEP 66.063-075 (helenazt@uol.com.br). Recebido em 20/03/2015 Aprovado em 27/07/2016
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INTRODUÇÃO Os quintais urbanos são desses lugares de história de vida privada que fazem parte tradicionalmente da vida amazônica, estando presente nas habitações rurais e urbanas. São espaços reveladores da cultura do povo e da qualidade de vida das cidades. Desde os tempos coloniais, quando foram previstos pelos colonizadores portugueses em Cartas Régias, os quintais estão presentes nas casas urbanas brasileiras e amazônicas. Entretanto, atualmente, nas grandes cidades da região, como Belém, além da destruição de muitas casas antigas que possuíam quintais, parte expressiva dentre as novas moradias construídas prescindem destes espaços. O presente estudo objetiva construir uma abordagem histórica sobre a importância e as funções dos quintais urbanos nas moradias brasileiras, em especial as amazônicas, a partir da análise da evolução nas funções e organização do espaço das habitações e dos papéis nela desempenhados pelos quintais. Para além de mera analogia entre a evolução dos quintais e a evolução da habitação, o texto procura encontrar elementos de permanências e sobrevivências seculares, capazes de iluminar reciprocamente o passado e o presente, contribuindo para o entendimento dos quintais. Os estudos específicos sobre quintais urbanos no Brasil são raros e se concentram ora na caracterização da vegetação neles encontradas, ora nas possibilidades que este espaço oferta para o desenvolvimento da chamada agricultura urbana. A abordagem histórica dos papéis e funções dos quintais, quando realizada, restringe-se ao período colonial. Construir uma historiografia dos quintais que ultrapasse o período colonial é uma tarefa necessária, mas bastante complexa, uma vez que, na literatura existente sobre as cidades e a arquitetura habitacional brasileira, nem sempre este espaço é referenciado explicitamente. Essa carência se amplia quando se direciona o olhar para a Amazônia, visto que aqui as informações são mais escassas ainda.
Assim sendo, a construção ora apresentada foi baseada, sobretudo, em releitura de estudos sobre a história da cidade e da arquitetura da casa brasileira e amazônica. Mediante pesquisa bibliográfica e documental, procurou-se identificar como as transformações observadas no modo de morar, na concepção e nos tipos das moradias se articularam com permanências e mudanças na importância e nos papéis dos quintais urbanos. Ressalte-se que, para fins deste artigo, a casa é, antes de tudo, o local privilegiado da vida cotidiana. O artigo encontra-se estruturado em três blocos, além desta introdução. No primeiro, apresenta os conceitos de quintais urbanos e de habitação utilizados; no segundo, analisa as transformações nas tipologias de moradias, destacando as permanências e as mudanças na importância e nas funções dos quintais nos contextos da moradia, da vida cotidiana e da cidade; e, no terceiro, expõe as conclusões e aponta para a necessidade de novos estudos.
CONCEITOS DE CASA E QUINTAL A palavra casa vem do latim e quer dizer abrigo, materialmente falando. Para Lemos (1989), contudo, o conceito de casa vai muito além do caráter social e da forma arquitetônica. Na mesma linha, Bachelard (1993, p. 23) define casa de forma mais ampla, que transcende o espaço geométrico, “porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é um verdadeiro cosmos.”. Viollet-le-Duc (1854 a 1868 apud Rossi, 2001, p. 80), ressalta que “na arte da arquitetura, a casa é certamente o que melhor caracteriza os costumes, os gostos e os usos de um povo; sua ordem, assim como sua distribuição, só se modifica em tempos muito longos”. Numa perspectiva de casa como lar, Rolnik (2009, p. 49) esclarece que “o lar – domínio de vida privada do núcleo familiar e de sua vida social exclusiva – se organiza sob a égide da intimidade”. Portanto, a casa é, também, o espaço da intimidade familiar.
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Além disso, a casa é parte importante na vida social humana. É próprio do ser humano o sonho e o anseio por um lugar onde possa revelar e exercitar a multiplicidade de suas relações. É no campo do pertencimento, da proteção, da convivência familiar, do exercício do seu modo de vida, das tradições e do atendimento de necessidades, dentre outros, que deve ser pensada a casa. Como se pode notar nestas definições, a casa não é somente o local de abrigo físico. Ela é muito mais do que isso, razão pela qual é uma das manifestações mais presentes na história da evolução humana através do tempo e dos lugares. Inserida no conjunto de relações sociais mais amplas que conformam “comunidade autônoma”, a casa é componente essencial do tipo de organização urbana que possibilitou a emergência do capitalismo (Weber, 1967). Alguns autores distinguem os conceitos de casa, moradia e habitação. Definem a casa como o edifício (obra construída); a moradia como o edifício acrescido das funções residenciais; e a habitação como a moradia inserida num contexto mais amplo da infraestrutura urbana. Para os fins deste artigo, as expressões casa, moradia e habitação urbanas são consideradas sinônimas, sendo apreendidas nas suas dimensões físicas, funcionais e simbólicas, tanto no seu âmbito restrito, como na escala da cidade, como sugere Carlos (2011, p.130): Se o ponto de partida é o espaço privado, revelando-se através do habitar que é real e concreto, ele também se abre, inexoravelmente, em direção ao público, ao coletivo como lugar da prática cotidiana que descreve e dá conteúdo à vida na cidade, ligando lugares e pessoas.
O quintal é parte integrante da casa. O termo quintal surgiu para designar uma pequena quinta, ou seja, a parcela de terreno localizada atrás e/ou no lado das moradias, ocupada com jardim ou com hortas (Delphim, 2005). Fraxe (2006, p. 249) diferencia quintal de sítio. Para esta autora, o quintal decorre da:
[...] separação entre os lugares de residência e a área de produção em função, principalmente, da presença de elementos representativos do mundo rural no urbano. O quintal é denominado pela população local como área próxima às residências onde está presente uma diversidade de plantas – fruteiras, hortaliças, plantas medicinais e ornamentais.
Não existe consenso sobre a localização do quintal no lote com relação à casa. Silva (2004, p. 53), em estudo sobre o cotidiano das moradias brasileiras, considera o quintal como o espaço residual, espaço que “resulta da concentração da construção na parte frontal do lote, sem recuo em relação à rua, nem recuos laterais, deixando um grande espaço ‘livre’ atrás da construção principal, ainda dentro dos limites do lote”. Delphim (2005) o posiciona atrás ou ao lado da casa, como visto anteriormente. Martins et al. (2003, p. 215) alarga as possibilidades locacionais do quintal ao afirmar que este “compreende a parte de trás e lateral da casa e eventualmente a parte frontal”. Para fins deste artigo entende-se quintal urbano como um espaço aberto, protegido por muros ou cercas localizado no interior dos lotes, normalmente ao fundo, onde se desempenham funções complementares àquelas desenvolvidas no espaço edificado da casa, sendo “[...] ocupado, normalmente por arvoredo de frutas, hortas ou jardins”, dentre outros (Holthe, 2002, p.161). As funções e os papéis deste espaço variam em função das mudanças nos modos de vida cotidiano dos moradores. Para Silva e Tourinho (2013), os quintais urbanos na Amazônia representam parte do passado e do presente de seus moradores, especialmente porque o homem amazônico é culturalmente ligado à natureza. Sua vivência, em grande parte de descendência indígena ou cabocla, está ligada à floresta, aos rios e igarapés, sendo fortemente influenciada pelo modus vivendi rural ou das florestas, mesmo quando habita nas cidades. Na região, os quintais são muito mais do que um espaço funcional e utilitário. Eles têm múltiplos significados para a vida privada e coletiva.
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Portanto, para que se compreenda a importância e o papel dos quintais urbanos é necessário entender a natureza e as funções que são desempenhadas, em cada momento histórico, no espaço residencial, de um modo geral, e o significado que este espaço assume em uma região como a Amazônia, em particular.
IMPORTÂNCIA E FUNÇÕES DOS QUINTAIS URBANOS Desde o aparecimento do homem na terra, há cerca de 2,5 milhões de anos, o habitat humano sofreu muitas e substanciais transformações. No princípio, o homem precisava vagar, pela hostil superfície terrestre, em busca de alimento e de proteção contra intempéries e ataques de animais selvagens. Nesta época, não havia a necessidade de construir abrigos fixos e permanentes. Segundo investigações arqueológicas e históricas, as grutas e cavernas foram os primeiros espaços que o homem buscou para abrigar-se. Desde então, o homem passou a usar a sua engenhosidade para construir abrigos, primeiramente rudimentares, o que fazia utilizando ferramentas feitas de pedras e ossos. Estas cabanas geralmente eram construídas com galhos, folhas e peles de animais. Depois, foram utilizados os punhados de terra transformados em tijolos de barro cozido e a pedra, materiais disponíveis na própria natureza (Guimarães, 2004). A partir do momento em que o homem conseguiu dominar a natureza, produzindo seus próprios alimentos - o que foi proporcionado pela revolução agrícola -, a casa permanente passou a ser considerada como uma necessidade, tanto para atender demandas materiais, quanto para responder a requisitos de caráter mais subjetivos. No mundo antigo havia a disposição dos deveres de amor para com lar, um sentimento profundo e virtuoso. A casa era o lugar sagrado da família, espaço e templo perpétuo dos deuses, os quais tinham a missão de resguardar os seus moradores e o próprio ambiente para não ser violado. Pouco importava se a casa era de paliçada,
sebe ou de muro de pedra; desde que fosse isolada, por faixas de terra de alguns pés de largura, da casa de outra família. Isso representava um limite sagrado, que deveria ser respeitado (Fustel de Coulanges, 2001). Para os gregos, a religião fixava o homem ao lugar para sempre. A moradia erguida era fixa, inseparável e legítima, devendo ser passada aos descendentes. Aquele que vendesse sua propriedade recebia severa punição: perdia os seus direitos de cidadão (Fustel de Coulanges, 2001). Da mesma forma que os gregos, os romanos entendiam que o destino da cidade estava ligado ao lar, lugar de representação dos deuses. Estes se manifestavam através do culto doméstico secreto, onde só a família tomava parte, ao redor do altar que era peça fundamental no espaço habitacional (Fustel de Coulanges, 2001). Foi nas habitações urbanas romanas denominadas de ‘domus’ que surgiram os primeiros indícios dos quintais tradicionais. Nelas, ao fundo dos lotes, após os espaços abertos do átrio e do peristilo, aparecia uma área arborizada, com pomares ou jardins, que era usada privativamente pela família. Foi a partir da influência romana sobre a arquitetura habitacional portuguesa, e das influências intrínsecas da própria cultura portuguesa, que os quintais chegaram ao Brasil.
AS MORADIAS NATIVAS BRASILEIRAS A moradia dos habitantes encontrados pelos colonizadores portugueses em território brasileiro tinha um significado que transcendia o simples ato de morar, ela guardava perfeita integração com a mata, o rio ou mar, ou seja, com toda a natureza. A despeito das distinções dos hábitos e costumes existentes entre as diferentes etnias, o espaço de habitação era, normalmente, o espaço do viver coletivo, portanto, sem separações físicas marcantes. O compartilhar estava ínsito na vivência de grupos de famílias, quer no espaço aberto, quer no interior de uma mesma moradia, nos momentos de lazer, nas refeições e até nas redes de dormir.
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Dentre as inúmeras etnias espalhadas pelo território brasileiro que construíram moradias nesta época, grande parte utilizava como matérias-primas os galhos e troncos de árvores, a palha, as palmas e folhas de modo geral. Em termos geométricos, se posicionavam em aldeias que possuíam forma circular, como das etnias dos Caiapós e Timbiras, ou meia-lua, como dos Xavantes (Azevedo, 2008). O grupo Bororo, do Mato Grosso, por exemplo, organizava-se em uma aldeia com grandes habitações (onde viviam dois ou três casais com filhos), construídas superpostas em um grande círculo. Deixavam uma área no centro para servir às diversas cerimônias das famílias. Daí vem o nome da etnia Bororo, que quer dizer ‘pátio da aldeia’. As construções indígenas nativas, seja nos planos físico e estético ou em termos funcionais, se desenvolviam com forte componente de respeito pela natureza. Neste contexto, os quintais não se faziam necessários enquanto espaços autônomos, ao contrário, eram substituídos pela própria natureza circundante ao espaço da moradia.
AS PRIMEIRAS CASAS NÃO INDÍGENAS BRASILEIRAS Numa terra de chuva, sol e mata a perder de vista, era preciso pensar rápido como erguer ‘umas moradas’ para habitar esta colônia. Os materiais estavam na natureza, mas os portugueses não os conheciam e nem os distinguiam claramente. A necessidade os fez adotar ‘o gosto dos nativos’ quanto à construção de suas moradias e, mesmo trazendo uma arquitetura de descendência romana e árabe, os portugueses tiveram que se adaptar à natureza do Brasil. Na exuberância das árvores, em particular, das palmas de coqueiro e de outras palmas, tudo serviria para ‘cobrir’ e ‘levantar’ as moradas dos colonizadores nos períodos iniciais. No grande descampado, o forte era construído. O mar, na enchente e na vazante, banhava e ‘desbanhava’ o terreno de edificações de taipa e palha.
Azevedo (1969, p. 71) explica como viviam o indígena e o colonizador Caramuru na região da Baía de Todos os Santos: A aldeia em que vivia o Caramuru, com sua mulher e filhos, era em 1535, de acordo com a descrição de Oviedo, um dos típicos conjuntos de grandes habitações dos tupinambás; nalgumas dessas cabanas, - que na ocasião eram umas trezentas, umas às vistas das outras, viviam a seu modo centenas de pessoas. Os europeus certamente tinham casas de barro, cobertas de palha de palmeiras, mas de arquitetura europeia, não somente pela exigência dos seus hábitos de conforto, diversos e mais apurados que os dos índios, como principalmente pelos seus costumes de segregação de cada casal ou família em uma habitação, ou compartimento de habitação, ao passo que os aborígines viviam em comum no interior de suas casas-grandes.
Observa-se que as moradias – àquela época do encontro de civilizações diferentes – não eram exclusivamente de concepção indígena, nem exclusivamente de concepção europeia. A mescla era evidente, com as casas de barro (formato europeu) e cobertura com palha de palmeiras (de influência indígena) Holanda (2008), compondo o que Lemos (1989) denominou de cidades de palha. A preocupação dos colonizadores era com o povoamento e a instalação das moradias necessárias aos colonos. Vidal e Malcher (2009, p. 35) explicitam essa questão ao afirmar que “a frutificação da terra ainda não era demandada, a questão essencial era o povoamento, era a ocupação e atribuição de terra a quem se dispusesse a cultivá-las”, de modo a garantir o controle territorial português, diante das incursões de outros povos, a exemplo dos franceses. Embora a presença da natureza em torno da casa, no modo de vida indígena encontrado pelos portugueses, fosse muito marcante, tudo indica que o quintal ainda não estava presente nas primeiras casas dos colonizadores no Brasil.
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OS QUINTAIS NAS CASAS NO BRASIL COLONIAL Alguns estudos revelam que os quintais, enquanto espaço contíguo às moradias brasileiras, já estavam presentes no urbanismo colonial português. Segundo Silva (2004), sua origem estaria nas quintas portuguesas originadas do gosto pela bela paisagem, pela natureza e, acima de tudo, pelo caráter utilitário da vegetação. Cabia ao governo português os ditames de organização do espaço social e urbano na colônia com o objetivo precípuo de ‘civilizá-lo’, tarefa que se configurava com um determinado grau de dificuldade, considerando que a convivência com os nativos nem sempre era pacífica. Por isso, no processo de colonização do Brasil, as autoridades reais portuguesas estabeleceram, em Cartas Régias, os princípios que deviam ser obedecidos na fundação de vilas, na concessão de lotes e na construção de casas (Oliveira, 2010; Oliveira, 2011; Silva, 2004). De acordo com Robba e Macedo (2002, p. 20) existiam intenções e conveniências por trás dos decretos normativos da Carta Régia: No Brasil, a vila só poderia ser fundada com anuência da Metrópole, isto é, a coroa portuguesa decretava, por meio das cartas régias, a elevação de um povoado à condição de vila, conforme sua conveniência, estruturando a rede urbana de acordo com suas intenções, em um processo de implantação de estruturas urbanas muito rápidas e planejadas para dominar toda a extensão do território recém-descoberto.
Essa lei tinha o propósito de “garantir às cidades uma aparência portuguesa”, não a aplicação de um modelo rígido de organização do espaço urbano (Reis Filho,1978, p. 24). A necessidade de instalar casas amplas com quintais estava explicitada nas Cartas Régias, a exemplo da de número 20, de outubro de 1736, assinada por D. João V, que estabeleceu, com anuência de seu Conselho Ultramarino, a fundação da Vila de Icó, no Ceará. Não apenas por intermédio das Cartas Régias, mas também mediante outros documentos de instituições locais
da época, como os códigos de posturas e inventários das Câmaras Municipais, pode-se confirmar a existência de quintais urbanos nas casas brasileiras ao longo de todo período de colonização portuguesa. Que motivações orientavam o afã de transplantar os quintais às casas brasileiras? Tratava-se simplesmente de reproduzir, no Brasil, a tradição das casas lusas? Objetivavam o embelezamento ou a aclimatação das vilas ou se pensava apenas em criar a condição de espaço para garantir a subsistência dos colonos? Estas são questões ainda não plenamente respondidas. Com a organização e o melhoramento estético urbano das precárias vilas coloniais, novos elementos materiais e técnicos foram sendo usados nas habitações, contribuindo, para isso, o aperfeiçoamento e especialização dos artesãos. A Igreja Católica, ao promover o soerguimento de capelas e igrejas, colaborou nesse processo. Seus próprios artesãos, mestiços ou escravos, foram se especializando conforme suas vocações e aptidões para os ofícios. Surgiram, assim, paulatinamente, os mestres oleiros, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, ladrilheiros etc. Nesse processo inicial, é de se ressaltar a importante contribuição dos aqui chegados engenheiros militares portugueses e italianos, com experiência urbanística (Teixeira, 1996). De acordo com Holanda (2008), no primeiro século de colonização do Brasil, nas construções e obras, inclusive nas habitações, não havia a preocupação com a utilização de materiais duráveis e funcionais. “O aspecto das moradias era simples e pobre, pois que habitavam pessoas com poucos recursos financeiros”. (Algranti, 1997, p. 90). Com a chegada da Companhia de Jesus, essa fase começou a ser superada, sendo criado um tipo de construção mais estável, do ponto de vista material, em consonância com o modelo português. Como a intenção das autoridades portuguesas era ordenar a colônia para o controle interno e externo, o cuidado em ordenar focou, primeiramente, as instituições públicas e os serviços, como as igrejas, os conventos e as casas de câmaras. Conforme
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Reis Filho (1978), no período colonial a arquitetura, residencial urbana seguia as antigas tradições portuguesas.
Reis Filho (1978), além do número de pavimentos, as diferenças fundamentais entre o sobrado e as casas térreas: [...] consistiam no tipo de piso: assoalhado no sobrado e de “chão-batido” na casa térrea [...] habitar um sobrado significava riqueza e habitar casa de “chão batido” caracterizava pobreza. Por essa razão os pavimentos térreos dos sobrados, quando não eram utilizados como lojas, deixavam-se para acomodações dos escravos e animais ou ficavam quase vazios, mas não eram utilizados pelas famílias dos proprietários. No mais as diferenças eram pequenas [...] (p. 28).
Nossas vilas e cidades apresentavam ruas de aspecto uniforme, com residências construídas sobre o alinhamento de vias públicas e paredes laterais sobre os limites do terreno. Não havia meio-termo: as casas eram urbanas ou rurais, não se concebiam casas urbanas recuadas com jardins. De fato, os jardins, como os entendemos hoje, são complementos relativamente recentes, pois foram introduzidos nas residências brasileiras durante o século XIX. (p. 22). A uniformidade dos terrenos correspondia à uniformidade dos partidos arquitetônicos: as casas eram construídas de modo uniforme e, em certos casos, tal padronização era fixada pelas Cartas Régias ou em posturas municipais [...] As salas da frente e as lojas aproveitavam as aberturas sobre a rua, ficando as aberturas dos fundos para a iluminação dos cômodos de permanência das mulheres e dos locais de trabalho. Entre estas partes com iluminação natural situavam-se as alcovas, destinadas à permanência noturna e onde dificilmente penetrava a luz do dia. A circulação realizava-se sobretudo em um corredor longitudinal que, em geral, conduzia da porta da rua aos fundos. (p. 24).
Dentre os principais tipos de habitação urbana do período colonial estavam: a casa térrea, o sobrado e as chácaras, estas últimas localizadas na periferia urbana. Para
A Figura 1 mostra o esquema básico dos sobrados, com o quintal ao fundo, onde se encontravam pomares, hortas e espaços para as criações de animais. Os sobrados eram as habitações de dois pavimentos que possuíam espaço ‘sobrado’ ou ‘ganho’ devido à presença de um soalho suspenso (Lemos, 1989). Freyre (2000) mostra que, no século XIX, com a decadência do regime escravocrata e do patriarquismo rural brasileiro, os sobrados se tornaram as moradias urbanas dos aristocratas que se mudaram das casasgrandes, localizadas no campo, enquanto os escravos libertos deixavam as senzalas para viver em mocambos, casebres de palha e barro, localizados nas áreas mais pobres da cidade.
Figura 1. Esquema de sobrado do Brasil Colonial. Fonte: Reis Filho (1978, p. 29).
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Esses tipos de habitação foram peculiares, também, na Amazônia; no caso dos sobrados, em especial, no Maranhão e Pará. Os sobrados do Pará e Maranhão são famosos, não só pelos seus azulejos multicoloridos, mas também pela sua imponência, conservando todo aquele zoneamento térreo e sobreloja para o comércio, depósitos, dormitório de empregados e guarda de veículos de tração animal. (Lemos, 1989, p. 34).
Restam ainda vários exemplares desse modelo de habitação em bairros centrais das cidades de São Luís e Belém tombados como patrimônio histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uns restaurados, outros abandonados, ocupados irregularmente ou em processo de deterioração, apresentando risco de desabamento. Quanto às chácaras, localizadas nas franjas urbanas, Reis Filho (1978) mostra que elas constituíram a solução preferida pelas camadas de maior renda, pois possibilitavam resolver não apenas os problemas de abastecimento alimentar e de saúde - que no caso das casas urbanas eram solucionados mediante a produção doméstica realizada nos pomares, hortas e espaços de criação de animais, localizados nos quintais -, como também os de abastecimento de água e de destinação dos dejetos - que, nos espaços urbanos, dependiam da mão de obra escrava para serem solucionados. Lemos (1989), ao descrever as casas no período colonial, explica que: “nos fundos das casas, fechava fila a cozinha, a varanda alpendrada que dava acesso ao quintal, onde sempre havia um arremedo de instalação sanitária”. Pontua ainda que, nas casas urbanas, a cozinha e o local das refeições proporcionavam vistas ao quintal, o que equivale dizer que este espaço fazia parte da vida cotidiana das moradias. Lemos (1989, p. 19) ressalta que tanto nas casas quanto nos sobrados, a presença dos quintais era notada. Este tinha, dentre outras funções, a de prover o abastecimento alimentar das famílias, dada a escassez de produtos de primeira necessidade. A produção doméstica
realizada nos quintais, conforme Algranti (1997), ia desde a criação de galinhas até a feitura da farinha nas mais primitivas e trabalhosas técnicas. Assim sendo, com o fito de facilitar a vida privada e de abastecer com alimentos os domicílios urbanos, existiam, no âmbito das moradias brasileiras, os quintais, compostos por pomares com mangueiras, abacateiros, limoeiros, sapotizeiros, hortas e áreas para criação de aves e animais domésticos (Algranti, 1997). Em Minas Gerais, no decorrer do século XVIII, por influência da metrópole, surgiram, em algumas cidades, as “quintas ajardinadas” (Pereira, 1999). Na cidade de São Paulo, conforme assinalado em documento de inventário de Francisco de Almeida datado de 1616, confirma-se a constituição de “casas da vila, dois lanços de taipa de mão, cobertas de telha e com o quintal” (Algranti, 1997, p. 91). Na vila de Macapá, em 1761, a Câmara estabeleceu, através do código de posturas, a obrigação do plantio de árvores frutíferas nos quintais, como laranjeiras, limoeiros, ananases, mamoeiros, pacoveiras (Pereira, 1999). Belém, assim como outras cidades da Amazônia, no rastro da colonização portuguesa, também respeitou os ditames reais de modelos de habitações. Segundo Derenji, Jussara e Derenji, Jorge (2009, p. 78): Em 1753, já existiam plantas e vistas da cidade feitas pelo alemão Schwebel, que mostram construções concentradas na orla dos rios, muitas de grande porte e assobradadas [...] Logo atrás, nas ruas paralelas, as casas são mais espaçadas e de menor altura, deixando ver uma vegetação abundante.
O que é relevante destacar nesta época é que cada habitação, fosse uma chácara imponente, um sobrado ou uma modesta casa térrea de ‘chão batido’, possuía ao fundo uma extensa área de terra arborizada e usada de maneira utilitária. Este espaço era denominado de quintal. Dourado (2004) afirma que estes quintais formalizaram os primeiros espaços verdes urbanos, antes da estruturação de passeios e parques públicos que só começaram a ser implantados, no país, a partir do século XVIII.
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Cabe destacar que, até o século XVIII, em Portugal, diferentemente do resto da Europa, não havia o hábito cultural de valorização de áreas verdes ou espaços ajardinados em áreas urbanas públicas. Somente a partir da criação de algumas leis municipais, como os códigos de posturas, foram observadas mudanças no tratamento do verde em espaços urbanos (Pereira, 1999). Contribuiu para isto a necessidade de reconstrução, verificada a partir de 1755, em função do terremoto ocorrido no país que provocou a destruição quase completa de Lisboa e da parte do sul do país, litoral de Algarve.
OS QUINTAIS NAS CASAS NO BRASIL-MONARQUIA Uma terra estranha, um mundo verde ocupado por um povo miscigenado, rude e de costumes atrasados. Esta foi, de acordo com os relatos históricos, a leitura feita pela família imperial e a Corte Portuguesa, ao chegarem ao território brasileiro. Nas duas mais importantes cidades da Colônia, Salvador e Rio de Janeiro, de um modo geral, a corte encontrou casarios pequenos, uniformes e do tipo solar de dois pavimentos. Com a chegada da família real, habitações foram escolhidas, confiscadas e submetidas a adaptações com o fito de abrigar inúmeros ‘estrangeiros’. A Corte trazia um contingente de 15 mil pessoas, entre nobres, conselheiros reais e militares, bispos, padres, oficiais, cavalariços, damas de companhia e serviçais (Gomes, 2010). Oriunda de país civilizado, a Corte obviamente exigiu um padrão mais refinado de habitação, à altura da realeza, nobreza e oficialato. Daí a explicação para a construção de palacetes e chalés em território brasileiro, para servirem de habitação refinada após a vinda da família real no século XIX (Veríssimo et al., 2001). Este padrão arquitetônico, normalmente, seguia a tradição renascentista europeia. Naturalistas estrangeiros foram contratados, pelo rei e sua corte, para aclimatar a cidade e as suas residências, organizando especialmente
os jardins públicos e particulares. Por se considerar que o material botânico aqui existente não tinha valor, tal empreendimento foi acompanhado da importação de mudas finas e exóticas do Oriente, da África e de outros países. Prevalecia, então, o entendimento de que as plantas aqui existentes eram de gente baixa; plantas de macumba; plantas de negro. Esta era a mentalidade da aristocracia e da rica burguesia colonial, segmentos sociais que tinham condições de adquirir as caras plantas importadas (Delphim, 2005). Entretanto, “conservando-se as formas de habitar dependentes do trabalho escravo, não havia margens para grandes mudanças” (Reis Filho, 1978, p. 33). Herdeira do esquema urbanístico e arquitetônico do período colonial, no geral, a habitação dos primeiros anos do século XIX apresentou apenas discretas modificações. Como descreve Reis Filho (1978): As edificações dos começos do século XIX avançam sobre os limites laterais e sobre o alinhamento das ruas como as casas coloniais. A essas assemelhavam-se pela simplicidade dos esquemas, com suas paredes grossas, suas alcovas e corredores, telhados elementares e balcões de ferro batido (p. 34). Sua aparência difere apenas em pequenos detalhes das construções coloniais. Em alguns a porta de entrada, maior do que as outras, ocupando posição central, abre para um saguão relativamente amplo, valorizado por barras de azulejos coloridos e pela presença de uma escada de madeira torneada. Em outros, como nos velhos modelos descritos por Debret, essa passagem corresponderia ao acesso às estrebarias do quintal e abrigo para as carruagens (p. 36).
A partir da chegada da Missão Cultural Francesa e da Academia Imperial de Belas Artes do Rio Janeiro, difundiu-se a arquitetura neoclássica europeia e implantaram-se tipos mais refinados de construções habitacionais, com usos de: platibandas em substituição aos velhos beirais; de vidros simples ou coloridos em portas e janelas; aplicação de vasos e figuras nas fachadas sobre as platibandas; coberturas com telhados de quatro águas; compartimentos de banhos; assoalhos encerados etc.
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Data desta época, segundo Reis Filho (1978), o aparecimento da casa de porão alto, com óculos ou seteiras de gradis de ferro, nos bairros residenciais localizados fora da zona comercial. Configurou-se, então, um novo estilo arquitetônico de moradias. Não obstante, pouco se alterou na estrutura de organização espacial dessa moradia. Lemos (1989, p. 56) confirma a presença dos quintais nestas moradias: É certo que existiam as casas de banho, isto é, acomodações balneárias também nos quintais, mas completamente afastadas das “casinhas”, cujos odores eram incompatíveis com a limpeza corporal, sempre perfumada por essências caras vindas de fora.
Já Mattoso (1992, p. 446), ao analisar a cidade de Salvador do início do século XIX, relata: Casas com belos assoalhos ou casebres de chão batido, imponentes palacetes de vários andares ou casinholas de uma janela só, quase todos os imóveis tinham em comum um corredor estreito e escuro e levava da porta da rua até uma espécie de pátio interno indispensável – o quintal – cujas dimensões variavam segundo a importância da construção. Em cada quadra, o conjunto desses pomares ou jardins formava um espaço mais ou menos verde. A cozinha dava sempre para o quintal e dependências de diferentes alturas, anexos mais ou menos feios, mas práticos, faziam dessa parte da casa o centro da vida dos moradores. Alguns viajantes conseguiam vislumbrar (e cheirar) alguma coisa quando uma porta se entreabria: nada de canalização de água, nada de esgoto; os banhos eram de bacia e cuia. Se a isto somarmos o cheiro do mofo que, graças à umidade, esverdeava madeiras e couros mal conservados, teremos uma ideia dos odores e eflúvios que emanavam daqueles escuros corredores, entre a rua e o quintal. Os viajantes e transeuntes nada podiam adivinhar do que se passava atrás das portas, muito embora, pelos fundos, de quintal para quintal a intimidade dos lares ficasse exposta à curiosidade dos vizinhos.
Junto às moradias ricas com os seus quintais, são retratadas, também, as moradias pobres com quintais, alguns em precárias condições ambientais. Conforme relatório de comissão pública de higiene, que observou as condições da cidade de Bananal, no estado de São Paulo, em 1854 havia, nesta cidade, “casas edificadas em charcos; quintais com lama, com profundidade de dois palmos; depósito de imundícies, chiqueiro de porcos, animais mortos em decomposição” (Rodrigues, 1986, p. 86). No cenário brasileiro das habitações de outrora e seus quintais, é válido ressaltar, também, a impressão do viajante naturalista Henry Walter Bates, em 1848, quando da sua viagem pela Amazônia, particularmente em visita à cidade de Belém, descrita pelo extinto jornal ‘A Província do Pará’ de 25 de agosto de 1982 (A reconstrução...,1982, p. 62-68): Destaque especial Bates dá às rocinhas (espécie de granjas, nos dias atuais), que os ricos possuíam principalmente no bairro de Nazaré. A que ele alugou, de um português chamado Danin, localizava-se bem no arraial de Nazaré. Constituía-se de um edifício quadrado, com quatro salas do mesmo tamanho. O quintal, que parecia recentemente roubado à floresta, era plantado de árvores frutíferas e de pequenos trechos com roças de café e mandioca.
OS QUINTAIS NAS CASAS DO BRASIL REPÚBLICA: DE 1850 AO INÍCIO DO SÉCULO XX A segunda metade do século XIX é marcada pela decadência do trabalho escravo. Nas cidades, residências começaram a ser atendidas por serviços de abastecimento de água, de captação de esgotos, de iluminação artificial e de transportes coletivos. Sob a inspiração do ecletismo, as casas passaram, então, a apresentar novos padrões de implantação, surgindo, então, as residências afastadas da casa vizinha e com jardins laterais, inicialmente alinhadas com a rua e, depois, dela afastadas (Figura 2). Reis Filho (1978, p.46-48) assim descreve as habitações desta época:
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As residências maiores eram enriquecidas com um jardim do lado. Esta novidade [...] oferecia a essas grandes possibilidades de arejamento e iluminação [...]. Ao mesmo tempo, a arquitetura aproveitava o esquema da casa de porão alto, transferindo porém a entrada para a fachada lateral. Desse modo, as casas conservavam a altura discreta da rua, protegendo a intimidade e aproveitando simultaneamente os porões para o alojamento de empregados e locais de serviços. O contato da arquitetura com os jardins laterais, dificultado pela altura dos prédios era resolvido pela presença de varandas apoiadas em colunas de ferro, com gradis, às quais se chegava por meio de caprichosas escadas com degraus de mármore. As residências menores [...] apresentavam, então, pequenas entradas descobertas, com portões e escadas de ferro. Internamente lançavam mão de poços de iluminação. Também as chácaras, na periferia, sofriam transformações. Seus terrenos eram mais reduzidos e sua arquitetura cada vez mais assumia características urbanas.
Pelo Brasil afora, a partir da segunda metade do século XIX, novas habitações se originaram, provindas das riquezas do café, das fortunas da borracha, dos endinheirados banqueiros, de prósperos comerciantes, enfim da circulação da riqueza que imprimia um caráter de vida fervilhante nas ruas, nos cafés, nos teatros, nas reuniões e convenções sociais e políticas. Que habitações eram essas? Eram símbolos delirantes da distinção social, do progresso e do conforto: palacetes faustosos, mansões ecléticas, casarões resplandecentes, residências neoclássicas etc., que serviam para receber políticos, personalidades da época, artistas renomados para os saraus e personalidades de destaque regional e nacional (Lemos, 1989). A geração que viu o Proclamar da República do Brasil viu, também: o surgimento da primeira linha telefônica; o nascimento tímido da indústria, o letreiro francês das casas de moda; a ascensão do poder dos senhores coronéis que elegiam ‘quem eles queriam’; a chegada dos imigrantes italianos; a abertura das confeitarias do café da tarde; a emergência do costume dos intelectuais a discutir o naturalismo e o romantismo de Victor Hugo e o positivismo de Augusto Comte (Neves; Heizer, 1991). Nesse tempo de admiração pelo progresso, os quintais, os costumes e a vida eram assim retratados: As casas das grandes cidades de então tinham quintais com goiabeiras e mangueiras. Pelas ruas, o que se ouvia era o trote dos cavalos, porque os primeiros automóveis só chegaram aqui no começo do século XX. Também se ouviam os pregões dos vendedores ambulantes que andavam com mercadoria às costas. Alguns eram ainda meninos e carregavam tabuleiros de doces e balas, por vezes equilibrando-se nos estribos dos bondes, uma das grandes novidades da época. (Neves; Heizer, 1991, p. 4).
Figura 2. Esquema de residência com jardim lateral. Fonte: Reis Filho (1978, p. 47).
Mello (2007, p. 179), no estudo dos projetos de residências brasileiras do engenheiro português Ricardo Severo, destaca a presença do quintal nos palacetes da época.
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Internamente o palacete se caracterizava pela definição de zonas distintas – estar, repouso e serviços – e pela especialização dos ambientes, sobretudo da área social, subdivididos em sala de música, leitura, estar, visitas, festas, etc. O vestíbulo articulava os espaços da casa e garantia a desejada separação entre as zonas de atividade de modo que os serviços ficavam restritos aos espaços da cozinha, porões, quintal e edícula.
Para a transformação do Rio de Janeiro em cidade moderna, o prefeito Pereira Passos, influenciado pela reforma urbana de Paris promovida por Haussmann, destruiu parte da cidade colonial, inclusive moradias populares, num esforço que procurava ‘civilizar’ e europeizar a capital carioca, nos moldes das avenidas parisienses (Delphim, 2005). Nesse ‘bota abaixo’, foram destruídos os pomares, o hábito das floreiras e da plantação dos pés de ervas de banho e de tempero bem juntinho das portas e janelas das casas. Pereira Passos, na tentativa de tirar a ‘pecha’ de causador da destruição de casas e cortiços em favor da modernidade que ‘precisava acontecer’, sugeriu a construção de casas populares. Na Amazônia, o ciclo da borracha permitia que Belém e Manaus também aspirassem à modernidade. Foi uma ousadia para época, transformar estas cidades, esquecidas pelas elites nacionais, em metrópoles requintadas, semelhantes a outras cidades brasileiras importantes, como Rio de Janeiro e Salvador. Belém do século XIX foi assim retratada na Sinfonia de Abertura (Barata, [s. d.] apud Menezes, 1954, p. 15): Alargaram-se as ruas, arborizaram-lhe as avenidas, encheram-na de parques e logradouros, procurando fazer da antiga aldeia de vielas estreitas e tortuosas dos portugueses, a metrópole esplendorosa, onde todos os viajantes do Planeta, a operlustrarem-na, exclamavam embevecidos: Isto enfim, já é uma cidade que, se não tem os grandes melhoramentos urbanos das capitais europeias, pelo menos, imprime ao forasteiro uma sensação de “algo nuevo”, que fá-lo bem dizer do seu esforço de viajar. E tudo devido à utilização inteligente da árvore, no seu traçado do urbanismo moderno.
Como mostram Silva e Tourinho (2013), referências sobre quintais amazônicos, na virada do século XIX para o XX, podem ser encontradas em obras e romances regionais. Dentre eles, dois trazem valiosas informações sobre os quintais urbanos: o romance ‘O Coronel Sangrado’, de Inglês de Sousa, passado na cidade de Óbidos, em 1870, na região do Baixo Amazonas; e, o romance ‘Belém do Grão Pará’, de Dalcídio Jurandir, ambientado em 1909, na capital paraense. Sousa (2003) assim descreve a residência do protagonista do romance, o tenente-coronel Vitorino Paiva, o Coronel Sangrado: Era uma grande casa, com duas grandes salas de frente, separadas por um corredor largo, as espaçosas alcovas e a imensa varanda ou casa de jantar, aberta para o quintal [...]. O puxado, em que ficavam a despensa e a cozinha, o quintal inculto e desprezado, prolongando-se até grande distância pelo largo adentro. (p. 47). O quintal da casa do coronel Sangrado não era murado, mas simplesmente cercado de varas e em parte de estacas. Em alguns lugares, arrancadas por algum vizinho larápio, davam livre passagem para os animais vagabundos das ruas, e porventura, a algum vizinho noturno mal intencionado. Isto, porém, não impedia o coronel de deixar a cerca sempre no mesmo estado, e de fechar com precaução todas as noites o portão do quintal. (p. 48). A sala de visitas estava arrumada com gosto, um grande pedaço do quintal carpido, e um curumim impedia com um galho de limoeiro que as galinhas e patos invadissem a varanda. (p. 49).
Em outros trechos do romance, o autor dá subsídios para compreender o papel do quintal nas moradias e na vida das pessoas da região, ressaltando seu caráter de espaço privado, sua característica física de local arborizado e sua função de provisão de alimentos para o consumo doméstico (Sousa, 2003).
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É preciso mostrar para essa gente que Óbidos não é Juruti nem Anderá, que é uma cidade civilizada. O que querem dizer porcos pelo meio da rua, perturbando a higiene pública e a saúde da população? Pois lá tem cabimento isso! Então a rua, por ser da nação, há de servir de quintal de criar galinhas? (p. 161).
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Saiu da janela, à hora do jantar, às seis horas. A casa tinha um ar triste, causado pela aproximação das sombras da noite, a custo de demoradas pelos enfraquecidos raios do sol no poente. Nas árvores do quintal cantavam melancolicamente as cigarras. (p. 204).
Para Alfredo, Libânia parecia mudar. Em quê, não sabia bem. Eram mudanças súbitas, misteriosas. Ora no modo de falar, numa repentina raiva, no resmungar lá no fundo do quintal. (p. 205).
Prosseguindo com seu relato, Sousa (2003) assinala que os quintais eram cercados por varas ou estacas de madeira, alguns dispondo de portão, para que não se tornassem passagem de ‘vagabundos’ e animais. As estacas e o portão eram usados para demarcar os limites do espaço privado, e ao mesmo tempo, serviam para delimitar o lugar de criação de animais domésticos e o pomar. No quadro descrito pelo autor, em determinados momentos, o quintal é entendido como uma área desprezada ou ‘inculta’ e, em outros, informa tratar-se de algo precioso, um prolongamento da habitação a ser devidamente ‘cuidado’, face ao perigo de violação. No romance ‘Belém do Grão Pará’, Jurandir (2004) faz diversas referências explícitas aos quintais de Belém do século XIX:
Levantava a cabeça da rede e via: o trapo, o lixo em que vinha o homem, recendendo bebida por toda a casa, as tosses e os resmungos e gritos do fundo do quintal contra os galos, os cachorros, o leitão espantado, em meio aos jabutis adormecidos. (p. 474).
O abacateiro entanguido, a velha goiabeira e as varas de secar roupa enchiam o quintal escasso e atolado nas baixas do fundo. (p. 45). Um “papagaio” tombou no abacateirinho do quintal. Vinha das baixas um bulício de crianças, picado de risos e gritos. (p. 49). Esticava o beiço para a goiabeira no fundo do quintal. (p. 54). Alfredo olhou para o quintal, onde imaginava extraordinários acontecimentos à noite. (p. 149). No quintal, as frutas apodreciam ou algumas caindo na rua, já podres, serviam de bolas para as crianças. O quarteirão vivia cheirando de goiaba, manga, abacate, sapotilha. [...] Estava em suas mãos o passarinho. Voara tão baixo, que as sentinelas o alcançaram. Quietinho ainda. Enfiava o dedo pelas penas. Seria melhor atirá-lo para dentro do quintal. (p. 150). Levou Alfredo para ver o pé de tajá naquele quintalório em que mal cabia o banheiro, a tina de lavar, a corda de roupa e as panelas de plantas. (p. 187).
Libânia enterrou o bicho no fundo do quintal. (p. 265).
No quintal, olhou o cacto, um jamaracaru que abria dentro dela as suas duras folhas. (p. 507).
O quintal ou ‘quintalório’, como o denominava Jurandir (2004), era espaço privado que ficava à ‘ilharga’ e no fundo da casa, presente em todas as habitações, fossem chalés, sobrados ou qualquer outro tipo de moradia da época, sendo normalmente cercado por estacas de madeira. Funcionava como uma espécie de refúgio natural que protegia a casa. Podiam ser extensos ou de pequenas dimensões, estar ou não sujeitos a alagamentos, notadamente após o ‘chuvaral que cobria o quintal’, característica do clima da região amazônica. No quintal ficavam: a ‘tina de lavar roupa’; as cordas de estender roupas para secar; o ‘tendal’, onde as roupas eram colocadas para que o sol tirasse as sujeiras; a ‘sentina’, denominação dada para uma espécie de vaso sanitário; e o poço, a única forma de abastecimento de água presente nas moradias onde não se dispunha de água das fontes públicas. O quintal descrito continha o pomar, onde cresciam árvores cujos frutos alimentavam os moradores: o abacateiro, a goiabeira, a mangueira, a sapotilheira, o açaizeiro e outros tipos de árvores frutíferas da região. Servia também de ‘criatório’ de jabutis, porcos, galos e galinhas e outros animais, destinados à alimentação em dias de festejos das pessoas da terra, tais como batizados, casamentos e ‘festas de santos’. Em alguns casos, os criatórios eram cercados por estacas de madeira, compondo pocilgas, galinheiros etc.
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Os limites feitos com estacas de madeira permitiam o olhar por entre e/ou sobre as cercas e, por esta via, alcançar o dia a dia da vida do vizinho; possibilitava, ademais, estreitar as relações sociais de vizinhança. Era comum um morador, pela cerca, solicitar empréstimo de mantimentos e haveres, hábito de auxílio mútuo, que funcionava como elemento facilitador do estreitamento dos laços de solidariedade e amizade na vizinhança. Estas características parecem ter se reproduzido não apenas nas casas das cidades amazônicas, embora aqui ainda assumam importância peculiar, sobretudo nas cidades pequenas e em algumas áreas da periferia urbana. Tal quadro só começou a se modificar de forma mais substancial a partir da segunda metade do século XX.
OS QUINTAIS A PARTIR DO SÉCULO XX Das primeiras décadas do século XX até o período entre guerras a arquitetura brasileira iniciou, sobretudo nas regiões central e sudeste, a procura por novos caminhos, movidas pelo crescente processo de urbanização, pela introdução de movimentos como o ‘Art Nouveau’ e o Neocolonial, que conduziriam, mais tarde, à emergência do movimento moderno. Estas mudanças, depois irradiadas para outras regiões e cidades do país, resultaram, dentre outros, na mudança dos padrões habitacionais e em alterações na importância e nos papéis dos quintais. A partir dos anos 1930, o movimento moderno começou a se instalar na arquitetura brasileira, num momento marcado pela crise do café, pelo início do processo de industrialização e pelo crescimento populacional urbano. O aumento da urbanização promoveu a elevação dos preços do solo urbano e dos aluguéis, contribuindo para a redução e, em alguns casos, para a eliminação dos grandes quintais e jardins nas moradias das cidades de maior porte. O desenvolvimento do processo de industrialização e a mecanização do campo mudaram, sobremaneira, os hábitos de consumo das populações. Primeiro das camadas mais abonadas e, depois, do conjunto da população. A provisão doméstica de alimentos, que justificava a presença
de pomares, hortas e criação de animais nos próprios lotes residenciais, progressivamente cedeu lugar ao consumo de alimentos e medicamentos naturais e industrializados produzidos em larga escala, distribuídos inicialmente por redes de mercados e farmácias e, posteriormente, por grandes redes de supermercados e hipermercados, etc. Junto com o movimento moderno também vieram novas formas de lazer. Como mostra Macedo (1999), a partir da década de 1920, introduziram-se as práticas de esportes nas cidades, com a popularização do futebol, do remo, da natação, etc. Esses novos hábitos se materializam na instalação de áreas destinadas a estas práticas. Nas habitações das famílias ricas, surgiram as piscinas e quadras de esportes onde outrora se localizavam os tradicionais quintais arborizados. Para atender às demandas de lazer destas camadas e das famílias da classe média e baixa apareceram, respectivamente, os clubes recreativos e os espaços públicos com quadras e áreas esportivas. A tendência para a realização do lazer, sobretudo o infantil, fora do quintal da casa se acentuou após os anos 1940, com a introdução e disseminação de playgrounds, com seus brinquedos industrializados, implantados em praças, escolas e, posteriormente, nas áreas livres dos prédios e condomínios fechados. O modernismo contribuiu para alterar, ainda mais a paisagem urbana, com a difusão: da habitação multifamiliar em prédios verticalizados de apartamentos; do uso de elementos decorativos, como os jardins; da necessidade de garagens para automóveis, que emprestavam qualificação social para os moradores que as possuíssem nas suas residências (Lemos, 1989). Aliás, as garagens, nesse período, se tornaram elementos imprescindíveis nas casas unifamiliares mais abastadas, o que colaborou para o processo de restrição de área verde nos lotes. Nos primeiros prédios de apartamentos, a preocupação dos arquitetos consistia em inovar na tipologia e no uso de materiais, possibilitando criar áreas nos fundos. Reis Filho (1978, p. 80) afirma que, nesta época, “os prédios e apartamentos continuavam, como as casas, a ter frente e
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fundos, fachada e quintal, servindo este para garagem, casa do zelador, depósito, etc.” Embora estes prédios tivessem padrão semelhante aos das casas térreas, em termos de ocupação do lote, neles o quintal assumia outras funções. A presença da vegetação em espaços privados foi sendo substituída pela ênfase ao espaço coletivo, separaram-se os usos e funções na cidade e na casa. Nos prédios habitacionais multifamiliares, outras centralidades foram implantadas, a área de esporte, a do playground, da piscina, da churrasqueira, etc. Do ponto de vista espacial e funcional, tais áreas se tornam cada vez mais distintas dos antigos quintais (Macedo, 1999). À medida que as cidades cresciam, se intensificou o uso e a ocupação do solo urbano, por meio da construção de empreendimentos imobiliários verticalizados. Neste contexto, os quintais se tornam mercadoria valiosa, incorporando crescente valorização imobiliária. Os agentes imobiliários avançam em direção aos espaços privados naturais tradicionais das antigas residências urbanas com amplos quintais. Os conjuntos residenciais populares, no Brasil, começaram a ser produzidos pelo Estado, em 1940, para enfrentar o déficit de habitação para a classe trabalhadora. Como mostram diversos estudos, estes conjuntos eram construídos em padrão único, compostos por prédios idênticos, com apartamentos ou casas, normalmente de até quarenta metros quadrados, para cada família. Segundo Bonduki (2004, p. 143):
unifamiliar. Os planejadores alegavam que, numa grande área, deveriam ser construídos prédios de apartamentos modernos e confortáveis com piscina, jardins, recreio, para abrigar milhares de famílias, em vez de casas modestas usando o velho sistema de quintal com horta, pomar e criação de animais, que representava práticas rurais atrasadas. Os que saíam em defesa das casas tradicionais unifamiliares refutavam que, nesse tipo de habitação, os trabalhadores se sentiriam mais ‘donos’ ou ‘possuidores’ da casa em que moravam (Bonduki, 2004). Ressalte-se que, já nos projetos dos conjuntos habitacionais, na década de 30, dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), se notava que a “substituição dos quintais, nem sempre convenientemente tratados, por áreas coletivas destinadas a recreio e edificação dos moradores, torna-se, de maneira geral, medida de grande alcance” (Bonduki, 2004, p. 158). Desta forma, inaugurou-se a oferta de apartamentos em prédios mais ou menos verticalizados também para as camadas de trabalhadores das faixas de renda mais baixa, prática que se mantém até o presente, agora intensificada nos projetos vinculados ao Programa Minha Casa Minha Vida. Em Belém, a destruição dos grandes quintais, iniciou-se pela implantação de passagens e vilas de casas térreas. Como mostram os estudos da Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (Codem), a partir dos anos 1940,
Na década de 40, em quase toda a intelectualidade de orientação progressista e no pensamento reformista, predominava o dualismo entre o atrasado e o moderno, sendo predominante a ideia de que a principal tarefa era levar adiante a modernização, o que significava incutir nos trabalhadores hábitos diversos dos que haviam trazido do meio rural ou que tivessem desenvolvido em um espaço urbano organizado de forma espontânea e, portanto reproduzindo práticas “atrasadas”.
[...] começa um processo de adensamento de ocupação nas áreas urbanizadas, abrindo-se “passagens” e “vilas” para aproveitamento dos espaços internos dos quarteirões, muitas vezes se loteando espaços verdes que correspondiam aos grandes quintais das mansões de fins do século XIX e início deste século, como nos bairros de Nazaré e Batista Campos bem como em alguns pontos mais altos dos bairros de Umarizal e Marco. (CODEM, 1975, p. 115).
A concepção desse tipo de habitação social gerou muitos embates entre os planejadores influenciados por Le Corbusier e alguns arquitetos que defendiam a casa própria
A concepção modernista penetrou no ideário dos planejadores urbanos e arquitetos, se fazendo notar em projetos habitacionais espalhados por todas as cidades
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brasileiras, fossem de iniciativa privada, fossem promovidos por organismos estatais ou mesmo fruto de parcerias com organizações comunitárias. Nesse contexto, não cabia mais o imaginário rural ser transportado para as casas da cidade, trazendo plantas, animais e árvores frutíferas (Reis Filho,1978). O pensamento então em vigor advogava que se devia deixar de lado os resquícios rurais das residências urbanas com quintais, para enaltecer, dentre outras questões, os jardins de inverno e o paisagismo de espaços socialmente mais valorizados (Reis Filho, 1978). Paralelamente à intensificação da verticalização e seu espalhamento para todas as áreas da cidade e para todas as camadas de renda, apareceu no Brasil na década de 1970, e se difundiu no final dos anos 1980 um novo padrão de assentamento urbano: os condomínios fechados, com casas ou prédios exclusivos, primeiro destinados para a população de alta renda, depois disseminados para os demais padrões de renda. Tais conjuntos, separados por muros, segregam segmentos de população em territórios próprios e diferenciados (Rolnik, 2009). Não cabe chamar as áreas livres dos lotes destes empreendimentos de quintais, pelo menos sem algumas ressalvas. Elas se diferenciam dos quintais urbanos tradicionais. Nelas, parte do solo é impermeabilizada para instalação de churrasqueiras, piscina, canis, edículas, áreas de serviço etc. As árvores lá existentes são vistas mais como pequenos ornamentos da paisagem, não raramente plantados em vasos. Talvez até em função disso, muitos profissionais que lidam com os projetos habitacionais aboliram a expressão ‘quintal’ e passaram a se referir aos espaços não edificados no lote como ‘área de lazer’ ou ‘área verde’. Outro tipo característico de moradias nas cidades médias e grandes surgidas no século XX é a favela, que se caracteriza pela presença de moradias improvisadas e precárias, geralmente em áreas de ocupação irregular e carentes de infraestrutura e serviços públicos. É quase impossível as famílias disporem de quintais tradicionais nesse contexto. As casas são emendadas umas às outras,
o que resulta na quase inexistência de sobras de terreno. Isso não impede, contudo, que nas habitações da favela de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, seja criada, nas ‘lajes’, uma espécie de ‘quintal suspenso’, com as funções de lazer, plantio de horta, área de serviço etc. Em que pesem todas estas transformações, alguns quintais ainda resistem com seus pomares, hortas e criação de animais, sobretudo nas cidades pequenas e médias da Amazônia, mesmo naquelas onde a pobreza e pressão por moradia induzem sua substituição por garagens, quitinetes etc., como se pode constatar num breve olhar na seção de classificados de jornais locais e em sites imobiliários de compra, venda e aluguel de imóveis, a exemplo dos anúncios abaixo: Tipo de imóvel: sobrado. Vende-se casa de 02 pavimentos com garagem, pátio, ampla sala, suíte, 05 quartos, 03 wc, cozinha, área de ventilação e quintal, 300 m2. Localização: Cidade Velha. (OLX, 2014). Sobrado charmosíssimo, com caramanchão florido! Em alameda na Pedreira. Pátio, garagem pra 2 carros, sala com 2 ambientes, escritório, banheiro social, copa-cozinha planejada, DCE, área de serviço, quintal, 3 suítes, 1 com closet, v [....] (OLX, 2014). Alugo casa mista, sal, 2 ambientes, 2/4, em madeira, forrada e gradeada, cozinha ampla e banheiro social em alvenaria, com 1 vaga de garagem e quintal com depósito [...] (OLX, 2014). Excelente casa c/ 2 pav. Com área construída 700 m2 e área total de 1000 m2, com 5 suítes todas com sacada, 3 salas, 2 cozinhas, banheiro social, lavabo, área de serviço, dependência completa de emprega, jardim de inverno, 5 vagas, de garagem. Acabamento em porcelanato, área externa, porcelanato, casa com grade maciça, piscina, churrasqueira, muros de 4 metros com cerca elétrica, quintal grande com árvores. (VivaReal, 2014).
O que leva algumas famílias a preservarem essas áreas? Que novos conteúdos estão presentes nesse espaço herdado do passado permanecem tornando-o relevante nas cidades amazônicas, mesmo com toda a pressão do mercado imobiliário e decorrente dos novos padrões de consumo e de morar capitalistas? Seria a tradição das
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famílias de ter uma área privativa de convívio, onde a natureza é recriada para a contemplação, o bem estar e a eventual complementação do abastecimento alimentar? Seria o contributo dos quintais para a obtenção de um ambiente agradável, não só nos espaços privados da moradia, como da cidade como um todo? População, academia e instituições públicas ainda podem ser sensibilizadas e cobradas sobre a necessidade desse espaço na cidade.
CONCLUSÃO Desde o período colonial até as primeiras décadas do século XX, muitas habitações brasileiras e, em particular, residências amazônicas, de diferentes estilos e padrões arquitetônicos, contavam com o quintal, um espaço destinado: ao abastecimento doméstico de alimentos, com áreas de pomar, horta e de criação de animais; ao desenvolvimento de atividades domésticas, como cozinhar, lavar, quarar e secar roupas; e, local de encontro, de festas e de lazer das crianças e de toda a família. Ao longo da história, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX, o quintal urbano sofreu inúmeras transformações que alteraram sobremaneira sua tipologia e sua funcionalidade. Na base explicativa dessas mudanças está o esvaziamento da necessidade de realização, no espaço da moradia, de atividades de produção de alimentos e de ervas medicinais, assim como de atividades de lazer familiar, proporcionados pelo avanço do capitalismo nestes setores. Na esteira do processo de urbanização capitalista, e da lógica fundiária e imobiliária que o acompanhou, os quintais se converteram em uma mercadoria com valor de troca, função que, muitas vezes, suplantou seus valores culturais, ambientais e de uso. Para alguns proprietários, os quintais ainda são elementos importantes no cotidiano da casa e da vida de seus moradores, mantendo papel relevante, se não na economia doméstica, ao menos na amenização climática e como espaço de descanso e convívio social. Eles entendem que o
quintal tradicional é lugar de refúgio, lazer, conforto térmico, tradição, cultura e interação familiar. Para outros, os quintais são espaços supérfluos, difíceis de serem cuidados e que podem ser aproveitados para outros usos ‘mais modernos’, como garagens, piscinas, espaços para churrasqueiras etc. Mas há ainda aqueles para quem os quintais são mera reserva de valor, ou seja, espaço com potencialidades de agregar valor adicional em rendas fundiárias futuras. Especialmente em cidades onde o valor de mercado dos terrenos ou de residências é alto, os quintais são, notadamente para famílias mais pobres, o espaço disponível para a construção das moradias de filhos ou erguer quartos para alugar, em busca de complementação da renda familiar. Para construtores e incorporadores imobiliários, os quintais são espaços passíveis de adensamento populacional; constituem excedente de área onde é possível construir novos imóveis ou edificar prédios cada vez mais altos, os quais podem ser viabilizados, quer mediante a abertura de passagens e vilas, quer por meio de remembramentos, ou seja, união de dois ou mais lotes. Todos esses interesses em curso resultam num processo de aniquilamento ou de redução no tamanho e na importância dos quintais. O resultado concreto é que muitos quintais vêm sendo ‘tomados’ quer pela especulação fundiária, quer pelo capital imobiliário, quer pela necessidade de prover de moradias parte da família que não consegue acessar o mercado formal de terras, ou ainda gerar renda visando à complementação dos sustentos familiares. É importante assinalar que a humanidade vive uma época marcada pelo crescente despertar de consciência social quanto à necessidade de preservar os valores culturais e de cuidar do meio ambiente, estabelecendo formas mais harmoniosas de convivência homem/natureza. Ademais, a presença dos quintais pode auxiliar na resolução de problemas urbanos complexos como o aquecimento dos ambientes habitados e a redução dos níveis de impermeabilização do solo, cujos efeitos se mostram nas crescentes inundações enfrentadas pelas cidades.
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O resgate do debate sobre o valor do quintal para a cidade precisa ser realizado. A identificação dos quintais com uma possibilidade de contato com a natureza é confirmada na história da casa brasileira. Não parece ser, portanto, absurdo considerar-se a possibilidade de incluir os quintais como áreas urbanas de interesse, capazes de conciliar melhoria da qualidade de vida privada e proteção do meio ambiente coletivo urbano. Para isso, outras pesquisas deverão surgir, destacando outros olhares, perspectivas e possibilidades quanto a estes espaços, a exemplo da abordagem que aprofunda a relação entre os papéis dos quintais urbanos e as transformações nas relações entre sociedade e natureza, e as dualidades entre espaço doméstico civilizado e espaço selvagem.
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Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé Ethnoecological aspects of agriculture among the Pumé Silvana SaturnoI, Stanford ZentII I II
Instituto de Estudios Avanzados. Caracas, Venezuela
Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Caracas, Venezuela
Resumen: En este artículo se presenta una descripción de las formas de manejo agrícola entre los Pumé desde una perspectiva etnoecológica. Los Pumé son un pueblo indígena que habita en la ecorregión de los Llanos (Venezuela). Aunque han sido identificados por algunos etnógrafos como un grupo de cazadores-recolectores, desde hace tiempo se ha señalado que poseen economías mixtas. Basados o no en las descripciones etnográficas, los agentes del Estado también han hecho representaciones de los Pumé como un grupo que carece de conocimientos agrícolas. En este sentido, el enfoque etnoecológico constituye la posibilidad de considerar aspectos cognitivos, perceptuales, cosmológicos y prácticos de la agricultura de este pueblo indígena. A partir de un estudio etnográfico, se describen siete formas de manejo agrícola que difieren en características como nivel de manejo, extensión, organización social del trabajo y propiedad de la cosecha. Por último, se profundiza en la descripción de los aspectos etnoecológicos de la agricultura de tala y quema de este grupo. Palabras clave: Agricultura. Etnoecología. Pumé. Ecorregión Llanera. Venezuela. Abstract: This article reports on agricultural management techniques among the Pumé from an ethnoecological perspective. The Pumé are an indigenous people that inhabit the Llanos ecoregion in Venezuela. Although some ethnographers consider them to be primarily a hunter-gatherer group, there are also reports going back to the colonial era indicating that they have a mixed farming-foraging economy. Development agents of the nation-state, whether informed or not about these ethnographic accounts, tend to look upon the Pumé similarly as a group lacking in agricultural skill and knowledge. An ethnoecological approach opens up the possibility of considering the cognitive, perceptual, cosmological and practical aspects of agriculture from the perspective of the Pumé themselves. Based on an ethnographic field study, here we describe seven forms of agricultural management that differ in terms of level or intensity of management, managed area extension, social organization of work, and harvest property/rights. Lastly, we provide a detailed description of key ethnoecological aspects of slash and burn cultivation among this group. Keywords: Agriculture. Ethnoecology. Pumé. Llanos Ecoregion. Venezuela.
SATURNO, Silvana; ZENT, Stanford. Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 653-676, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300007. Autora para correspondência: Silvana Saturno. Instituto de Estudios Avanzados, Dirección de Sociopolítica y Cultura. Apartado 17606,1015-A. Caracas, DC, Venezuela (lsaturno@idea.gob.ve). Recebido em 22/07/2015 Aprovado em 21/09/2016
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Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé
INTRODUCCIÓN El proceso de colonización de América implicó la reconfiguración no solamente de poblaciones y estructuras sociopolíticas sino de modos y relaciones de producción entre los habitantes nativos del Nuevo Mundo, incluyendo las formas de producir y obtener alimentos (Schwartz, 1978; Morey, N.; Morey, R., 1973; Denevan, 1992). Los colonos europeos importaron nuevas tecnologías (especies domesticadas, herramientas, medios de transporte) y abrieron nuevos mercados que se extendieron eventualmente a diferentes distritos y pueblos, aunque lejos de las zonas de contacto, provocando profundas transformaciones en los sistemas agrícolas precolombinos y los paisajes bioculturales (Morey, N.; Morey, R., 1980; Colchester, 1984; Dreyfus, 1992; Zent, 1992; Robert; Monasterio, 1995; Denevan, 2001; Scaramelli, 2007; Rodríguez Villarreal, 2011). Una revisión de la literatura histórica y etno-histórica nos enseña que dichas transformaciones no fueron siempre y totalmente voluntarias, ni determinadas por la supuesta superioridad de la tecnología europea (Arvelo-Jiménez et al., 1989; Amodio, 1991; Navarrete, 2000; Tiapa, 2008, 2010). Para impulsar la conquista tecnológica, era necesario imponer una racionalidad exógena que contrastaba con las percepciones y prácticas etnoecológicas de los habitantes indígenas, especialmente con respecto a lo que debe ser la actividad agrícola y el uso de la tierra. Durante el periodo colonial, los amerindios fueron representados por la mayoría de los oficiales y cronistas como primitivos, salvajes o perezosos (Gumilla, 1944; Rivero, 1883) 1. Una consecuencia directa de este retrato despectivo fue la generación de un discurso de deslegitimación de los conocimientos y capacidades productivas de la gente indígena, lo cual se arraigó en las leyes y políticas indigenistas de la época. Amodio (1991) ha realizado un análisis de la legislación colonial en materia de propiedad, ocupación y uso de tierras agrarias en los llanos
orientales de Venezuela, señalando la instrumentalidad de dichas leyes en lograr la apropiación de tierra y trabajo indígenas. La apropiación de tierras indígenas se efectuó a través de encomiendas, expropiaciones, ocupaciones directas (i. e., invasiones) y otros mecanismos jurídicos (e. g., declaración de tierras baldías), así como reubicaciones forzosas de la población indígena (en reducciones o resguardos). La mano de obra indígena fue explotada en una primera etapa por medio del repartimiento, tributos o impuestos, y luego por el empleo de los desposeídos como peones en los hatos y haciendas. En esta provincia y otras, la imposición de cambios sociales y económicos entre la población indígena se justificó con el razonamiento de que esto era necesario para asegurar su protección física, conversión religiosa, bienestar e integración social. En la Venezuela de los siglos XX y XXI, detectamos la reproducción de antiguos prejuicios y percepciones en los programas de desarrollo modernos. A partir de los años 1960’s, el Estado venezolano decretó una serie de reformas agrarias diseñadas a estimular el desarrollo rural a través de la dotación de tierra, la transferencia de tecnología y la oferta de créditos e insumos para la producción comercial. Para cuestiones de esta legislación, la población indígena fue tratada como una porción no diferenciada de la población campesina, sin reconocer sus conocimientos ambientales especializados ni sus formas de tenencia territorial colectiva. A partir de 1969, el mega-plan de desarrollo CODESUR (Comisión para el Desarrollo del Sur) fue implementado en el sur del país, dirigido a transformar a las poblaciones indígenas en buenos ciudadanos a través de su integración social y económica con la sociedad criolla. Se consideró que el camino hacia la integración pasaba por su reubicación en comunidades permanentes donde se les ofrecieran servicios sociales (e. g., escuelas, medicaturas) y por la implantación de programas de desarrollo agropecuario,
Es importante no perder de vista que el propósito explícito de estos textos era informar sobre los avances del proceso de colonización, pero de forma implícita su finalidad era generar discursos para la validación de un orden político, social, cultural y económico hegemónico. La imagen de los habitantes nativos de América que se presentaba en estos textos fue cuestionada por primera vez por Fray Bartolomé de Las Casas durante el siglo XVI (Arias, 1991).
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con énfasis en la cría de ganado y la siembra de cultivos exóticos para la venta. Un mecanismo utilizado para transformar a los indígenas en productores comerciales fue la creación de empresas indígenas pero apenas una de las 80 empresas establecidas durante la década de los setenta sobrevivió más de unos pocos años, una falla atribuida a la falta de ajustar los modos de organización y producción a las condiciones locales (Heinen; Coppens, 1981; ArveloJiménez; Perozo, 1983). Pese a que algunos sectores del movimiento indigenista abogaban a favor de la participación activa, creativa y autogestionaria de los pueblos indígenas en el proceso de desarrollo durante esta época (Clarac Noirtin, 1983), no lograron convertir la retórica en acción, posiblemente porque el motivo fundamental de esas políticas fue la promoción de los intereses económicos y geopolíticos del Estado venezolano sin tomar en cuenta las necesidades y aspiraciones de los actores indígenas (Arvelo-Jiménez, 1983; Arvelo-Jiménez; Perozo, 1983). Varios países suramericanos han reformado sus constituciones nacionales en las últimas décadas, en las cuales reconocen explícitamente el carácter multi-étnico de su sociedad y los derechos culturales y humanos de sus pueblos indígenas. Aunque esto crea condiciones más favorables para un entendimiento entre indígenas y Estado (Van Cott, 2002), se hace necesario construir un diálogo real2, más allá de la retórica. En Venezuela, con la promulgación de la Constitución Bolivariana de 1999, han proliferado discursos y se han promulgado leyes que promueven una nueva etapa, más igualitaria y respetuosa, en las relaciones entre los grupos indígenas y el Estado (Frías, 2001). Sin embargo, en la práctica, las políticas públicas dirigidas a pueblos indígenas
siguen estando impregnadas de una visión esencialista y paternalista de éstos (Ruette, 2011). El Estado (o sus agentes) continua asumiendo la incapacidad que tienen los indígenas para hacer aportes más que folklóricos al desarrollo nacional, dejando de lado sus propias percepciones sobre qué es y cómo debe ser el desarrollo (Angosto Ferrández, 2010). En resumen, la relación entre Estado y pueblos indígenas en Venezuela sigue siendo asimétrica y unidireccional. El desconocimiento de las prácticas agrícolas indígenas impide la formulación de modelos de desarrollo empáticos y apropiados en sentidos tanto cultural como ecológico. En vista de este problema persistente, el presente trabajo ofrece una descripción etnográfica de la agricultura de los Pumé, un pueblo indígena venezolano, resaltando su propia perspectiva etnoecológica. El caso de la agricultura Pumé es especialmente pertinente para la discusión anterior debido a las representaciones encontradas de la misma desde puntos de vista académicos y desarrollistas.
PERCEPCIONES EXTERNAS DE LA AGRICULTURA PUMÉ Pumé es como se autodenominan las personas de uno de los pueblos indígenas que habita en la ecorregión de los Llanos, en Venezuela. Aunque los Pumé han sido representados por algunos etnógrafos como un grupo de cazadores-recolectores (Petrullo, 1969; Kirchhoff, 1948; Greaves, 1997), desde hace tiempo se ha señalado que poseen economías mixtas basadas en la agricultura y la ganadería, además de la caza-recolección (Mitrani, 1988). Históricamente, la economía de este grupo ha sido fuente de controversia entre quienes lo han descrito,
Con ‘diálogo real’ nos referimos al intercambio simétrico entre dos partes (colectivos o individuos). Ese diálogo que proponemos se ajusta a lo que, en 1970, Freire (2008, p. 99) reflexiona cuando señala que: “[...] el diálogo es una exigencia existencial. Y siendo el encuentro que solidariza la reflexión y la acción de sus sujetos encauzados hacia el mundo que debe ser transformado y humanizado, no puede reducirse a un mero acto de depositar ideas de un sujeto en el otro ni convertirse tampoco en un simple cambio de ideas consumadas por sus permutantes”. Respecto al acto de dialogar, el autor se plantea las siguientes interrogantes: “¿Cómo puedo dialogar, si alieno la ignorancia, esto es, si la veo siempre en el otro, nunca en mi? ¿Cómo puedo dialogar, si me admito como un hombre diferente, virtuoso por herencia, frente a los otros, meros objetos en quienes no reconozco otros ‘yo’? ¿Cómo puedo dialogar, si me siento participante de un ‹ghetto› de hombres puros, dueños de la verdad y el saber, para quienes todos los que están fuera son ‹esa gente› o son ‹nativos inferiores›?” (Freire, 2008, p. 101, subrayado nuestro). Creemos que estas preguntas se encuentran en la médula del interés por investigar sobre otros sistemas de conocimiento no científico.
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principalmente respecto a si tienen una subsistencia basada en la producción de plantas cultivadas (agricultura) o en la procuración de alimentos silvestres (forrajeo). El disenso entre las percepciones externas de la economía del pueblo Pumé aparece en diferentes momentos históricos en los cuales se repiten las descripciones opuestas sobre este punto, empezando con las primeras crónicas en donde hay mención de los Pumé (Yaruro). En el siglo XVIII, los misioneros jesuitas Gumilla (1944) y Gilij (1965) describieron prácticas agrícolas y mencionaron algunos de los cultivos que poseían los Pumé, mientras que Rivero (1883), también misionero, afirmó que ellos carecían totalmente de conocimientos agrícolas. Durante el siglo XX, las discrepancias sobre la economía de los Pumé vuelven a aparecer a cuenta de los etnógrafos pero ahora más elaboradas por distintos argumentos sobre las causas de su situación3. Estas discrepancias han sido sintetizadas, analizadas y criticadas bajo el nombre de “debate sobre la práctica de la horticultura” (Orobitg, 1997, p. 18) entre los Pumé (Barreto, 1994). Se ha señalado que este debate ha estado impregnado de visiones culturalistas y evolucionistas de los grupos humanos (Barreto, 1994), dejando de lado las percepciones que de sí mismos tienen los Pumé en relación a sus prácticas económicas y, en particular, la agricultura. El desconocimiento acerca del carácter de la agricultura Pumé se refleja en los tratos dados por parte de los agentes de desarrollo, sean gubernamentales o no gubernamentales. La inserción de este grupo en los procesos de desarrollo planificados y dirigidos se remonta al año 1959, con la fundación de un centro piloto indígena en Riecito (Edo. Apure, Venezuela) bajo el auspicio de la Oficina Central de Asuntos Indígenas (OCAI)4. El centro tenía como objetivo abrir una pista de aterrizaje para facilitar la llegada de agentes del Estado venezolano en territorio Pumé, establecer un asentamiento fijo entre esta población nómada donde dichos
agentes pudieran contactarlos a su conveniencia y brindar asistencia, cultivar una vocación agrícola y ganadera entre ellos para mejorar su seguridad alimentaria y fomentar su conexión con mercados externos, y dar acceso a alimentos y bienes industriales5. A partir de la creación de Riecito, se fundaron otras comunidades similares entre los Pumé durante los años 60-70 aunque los gobiernos y programas específicos cambiaron. En la actualidad, la mayoría de la población Pumé vive en comunidades fijas y la agricultura y la cría de animales en conjunto constituye la ocupación primaria en la mayoría de ellas. A pesar de esta realidad contemporánea, todavía persiste la percepción de que este grupo ‘en general’ padece de pobreza extrema e insuficiencia alimentaria debido a la carencia de conocimiento y capacidad en la producción de alimentos y por lo tanto requieren la intervención constante del Estado para poder sobrevivir. Este punto de vista se refleja, por ejemplo, en el fallo judicial emitido por el Tribunal de Protección del Niño y del Adolescente del estado Apure como una de las causas de raíz de la alta mortalidad registrada en el 2007 en la región de Chaparralito: […] por cuanto son unas personas que carecen de recursos económicos y de una preparación académica; de igual manera se hace necesaria la implementación por parte del Estado venezolano de políticas dirigidas a las comunidades indígenas del sector CHAPARRALITO, el Municipio Achaguas, Estado Apure, a desarrollar en la zona el cultivo y la cría de animales que puedan garantizar la alimentación para sus comunidades, así como también dotarlos de asistencia técnica de manera que estas comunidades se puedan desenvolver en el campo de la producción agropecuaria para su subsistencia. (Venezuela, 2008).
Otra evidencia de la percepción de la vocación agrícola de los Pumé se vislumbra en las prioridades
Un análisis profundo de las descripciones y los argumentos planteados por los diferentes autores sobre este punto merecería especial atención. Ver Saturno (2014). 4 En ese momento se fundaron cinco centros pilotos indígenas: Riecito (Estado Apure), Yaguasirú (Estado Zulia), Isla de Casabe (Estado Bolívar), Santa Bárbara (Territorio Federal Amazonas) y Curiapo (Territorio Federal Delta Amacuro). 5 Francisco Prada (2011), comunicación personal. 3
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de asistencia externa y programas de desarrollo que prevalecen en la zona. En varias comunidades Pumé, reciben beneficios de forma directa o indirecta del Estado, de los cuales la mayor parte está destinada precisamente al financiamiento de la actividad ganadera o la adquisición de insumos agrícolas (semillas, fertilizantes). En el diseño e implementación de las políticas agrícolas, la perspectiva que los agentes del desarrollo parecen tener sobre la economía de subsistencia del grupo está basada en la idea de que se dedican a la recolección y carecen de conocimientos para el cultivo de especies vegetales. [...] la costumbre de sembrar y establecer cultivos es cuesta arriba para unas comunidades acostumbradas a migrar según vengan las estaciones de lluvia o verano. Sin embargo, se están realizando esfuerzos por fomentar la cultura del conuco para que los kuiva y pumé ensayen formas de producción organizada de alimentos. Sandra Peñaloza coordina el programa de Ganadería y Siembra y dice que Marisela les está dando el adiestramiento completo. ‘Antes se les daba las semillas y se abandonaba el proceso. Ahora se les dan talleres para el uso de herramientas, construcción de canteros, prevención de plagas, desmalezamiento, es decir, para que no pierdan las siembras por abandono. La idea es que tengan sus siembras de verduras, musáceas, hortalizas y frutales, y aquí en la sede de Indio Alegre también se está sembrando en canteros.’ (Duque, 2012, p. 14).
El objetivo de este trabajo es mostrar, de forma descriptiva y exploratoria, las formas de manejo agrícola Pumé desde una perspectiva etnoecológica. El enfoque etnoecológico es importante para el abordaje de este problema de investigación debido a que, como se dijo, hasta ahora no se ha considerado la percepción, cognición, comprensión y cosmovisión de los propios Pumé en relación a sus prácticas económicas, en especial, la agricultura. La carencia de estos elementos ha sido común entre académicos y agentes políticos. Antes de comenzar con el estudio descriptivo en sí, haremos un recuento de los aportes etnográficos que se hicieron sobre la agricultura entre los Pumé durante el siglo XX y, posteriormente, presentaremos algunas de las ventajas que ofrece una mirada etnoecológica a este problema de investigación. El
estudio descriptivo estará organizado en dos partes. En una primera sección, se mencionarán y describirán los tipos de manejo agrícola que los Pumé realizan en las comunidades visitadas. En la segunda sección, se ahondará en los aspectos etnoecológicos que consideran en sus cultivos de tala y quema.
DEBATE CONTEMPORÁNEO EN TORNO A LA PRÁCTICA DE LA AGRICULTURA ENTRE LOS PUMÉ En 1939, Vincenzo Petrullo afirma que los Pumé que conoció en el río Capanaparo (Venezuela) no cultivaban ningún alimento (Petrullo, 1969). Basado en la etnografía de Petrullo, Kirchhoff (1948) describe a los Pumé entre las tribus de cazadores-recolectores de la cuenca del Orinoco mencionadas en el “Handbook of South American Indians”. Mientras que autores como Le Besnerais (1948) y Antolínez (1974) señalan que los Pumé sí practican la agricultura en cierta medida pero que ha sido producto de una adquisición reciente por el contacto con grupos criollos. Posteriormente, Leeds (1961, p. 13) clasifica a los Pumé como un “grupo de horticultura incipiente”, bajo una tipología desarrollada por él para clasificar a diferentes grupos indígenas de Sur América. En otro trabajo, el mismo Leeds expone las diferencias entre sus observaciones etnográficas y las presentadas por Petrullo, empleando tres fuentes diferentes: lingüísticas, arqueológicas e históricas (historia escrita) como fuentes principales (Leeds, 1964). La conclusión más importante a la que llega es que Petrullo (1939) estaba equivocado por lo menos en cuanto a la economía de subsistencia del pueblo Pumé. Algunas de las explicaciones que propone para esta equivocación, basado en su experiencia etnográfica, son: 1) Petrullo no recorrió todo el territorio, lo cual es absolutamente necesario para conocer las actividades de subsistencia. Leeds afirma que casi todos los conucos, casas y otras evidencias de uso de la tierra fueron descubiertos por él de forma casual durante sus largas caminatas; 2) Petrullo sólo exploró los bancos que se encuentran en las riberas de los ríos. Leeds menciona que tanto él como Le Besnerais (1948)
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encontraron conucos alejados de las riberas y 3) Petrullo sólo estuvo durante la estación seca. La tipología de Leeds (1964) fue criticada por Mitrani (1973). En particular, Mitrani hace referencia a las debilidades de la categoría de “agricultor incipiente” señalando que si, en efecto, la agricultura entre los grupos clasificados con dicha etiqueta es una adquisición por contacto con otros grupos entonces el interés debería centrarse en el cambio cultural y social asociado a esa adquisición y no en el desarrollo de tipologías. Finalmente, Mitrani (1973, p. 32) concluye que: “la horticultura parece, en todo caso, mantener – y haber mantenido en el pasado- un lugar más importante para los Yaruro del que Leeds le atribuye”. El principal argumento mostrado por el autor para sustentar esta afirmación es la existencia de cultivos en los bordes de los ríos que no requieren una gran inversión de trabajo para su preparación y que, además, han sido mencionados en fuentes escritas durante el período colonial (Mitrani, 1973). Por otro lado, Mitrani (1973) propuso la existencia de una división geográfica de la población Pumé en cuatro zonas diferentes, que se traduce en diferencias intraculturales dentro del grupo. En particular, el autor plantea que existen diferencias en los modos de subsistencia entre cada uno de los subgrupos. Más tarde, Greaves (1997) dedica una sección muy corta al debate al que se ha hecho referencia y plantea una postura parecida a la de Mitrani, señalando que los Pumé han adoptado estrategias económicas diferentes que dependen de relaciones espaciales y temporales establecidas entre grupos Pumé con ubicaciones geográficas y patrones de asentamiento diferentes y entre los Pumé con criollos y otros grupos indígenas (Greaves, 1997). Por último, Orobitg (1997) hace un análisis sintético de este asunto y sugiere que es posible que el carácter
marcadamente empirista y la tendencia a negar el carácter dinámico de la cultura se encuentren en el corazón del debate sobre la agricultura hasta el momento planteado. Como se ha señalado más arriba, la intención esta vez será mostrar de qué manera los Pumé obtienen/ producen sus alimentos vegetales. En particular, se profundizará en sus conocimientos sobre el clima, los suelos y la vegetación en relación a cómo configuran su práctica agrícola. Aunque esta perspectiva no permitirá resolver el dilema de si los Pumé son agricultores prehispánicos o no, contribuirá al entendimiento de la integración entre su conocimiento ecológico y la actividad agrícola.
PERSPECTIVA ETNOECOLÓGICA La etnoecología puede definirse como una orientación distinta en la ecología humana que busca investigar cómo los grupos humanos ven la naturaleza a través de filtros culturales que consisten de lenguajes, conocimientos, creencias y propósitos, y cuál es el papel de esas imágenes para la apropiación, utilización y manejo de los recursos naturales (Toledo, 1992, 2002). Según esta formulación, el objeto de estudio tiene un triple enfoque: corpus, praxis y kosmos. Por corpus se entiende la percepción, clasificación y valorización de unidades significativas del medio ambiente (flora, fauna, comunidades ecológicas, suelos, rocas, geomorfología, aguas, fenómenos climáticos, entre otros). La praxis abarca todas las conductas involucradas en la procuración o producción de recursos, tales como la agricultura, la cría de animales, la cacería, la pesca y la recolección, así como el procesamiento o manipulación de éstos en la fabricación de alimentos, medicinas, herramientas, indumentaria, viviendas y otros fines. Kosmos refiere a creencias que se encuentran reflejados en cosmología, mitos, ritos, cuentos y otros.6
Aunque reconocemos que la religión, mitología y ritual pueden constituir elementos de suma importancia en la agricultura Pumé, debido a la complejidad del asunto así como las limitaciones de espacio para un artículo de revista, no estamos en condición de desarrollar este tema en el trabajo actual. Sugerimos al lector consultar la tesis de maestría de la primera autora para mayor información (Saturno, 2014).
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La metodología etnoecológica descansa sobre una división epistemológica entre el punto de vista nativo (o emic) y el del investigador (o etic)7. El primero se deriva fundamentalmente de la recolección de datos lingüísticos – léxico, gramática y discursos - con informantes de la población local, y el análisis semántico según los métodos desarrollados en estudios de la etnolingüística. Los datos lingüísticos y cognitivos se complementan con datos de los componentes materiales y conductuales del ambiente desde los criterios de observación, descripción y clasificación del investigador. Como orientación etnográfica, la meta es lograr una traducción adecuada de los conceptos y conductas locales en términos científicos. Se ha considerado que al emplear esta perspectiva el etnógrafo puede aportar descripciones culturales de mayor calidad y autenticidad al hacer accesible el punto de vista nativo (Fowler, 1977; Zent, 2009). El impacto del método etnoecológico ha trascendido la academia al convertirse en herramienta importante de la investigación aplicada de los sistemas locales de manejo de recursos bajo un paradigma de ‘desarrollo participativo‘ o de ‘abajo hacia arriba’. Este paradigma pone énfasis en la comprensión de los sistemas de conocimiento/práctica indígena o local como punto de partida para cualquier intervención, reconociendo que dichos sistemas representan adaptaciones a largo plazo a ambientes particulares, y cuentan con una riqueza de información ecológica que puede tener relevancia para el diseño de paquetes tecnológicos aprropiados y mejorados (Brokensha et al., 1980; Warren et al., 1989). Siguiendo esta misma lógica de investigación aplicada, en este artículo presentamos una visión etnoecológica de la vocación agrícola de los Pumé como un recurso
documental potencial para los actores gubernamentales y no gubernamentales, endógenos y exógenos, quienes trabajan en temas de desarrollo agrícola con este grupo.
LOS PUMÉ Y SU CONTEXTO ECOLÓGICO Los Pumé también son conocidos como Yaruro, Saruri y Yuapin, nombres usados en las etnografías más antiguas (Petrullo, 1969; Wilbert; Simoneau, 1990). En Venezuela, habitan en las riberas y zonas interfluviales de los ríos Arauca, Cunaviche, Capanaparo, Riecito y Meta y, en menor cantidad, en algunos centros urbanos cercanos (Petrullo, 1969; Greaves, 1997; Barreto; Rivas, 2007). Este grupo está constituido por unas 9840 personas, más de la mitad de las cuales se ubican en zonas rurales distribuidas en 42 comunidades aproximadamente (Barreto; Rivas, 2007; INE, c2011). Actualmente, las comunidades Pumé poseen economías mixtas que combinan de forma diversa cacería, recolección, pesca, agricultura, ganadería y trabajos asalariados. Aunque es posible que el territorio Pumé se ubicara más hacia al sur del que ocupan en la actualidad (Vega, 1974; Mitrani, 1975), este pueblo indígena ha habitado lo que hoy conocemos como la ecoregión de Los Llanos desde tiempos inmemoriales. A pesar de su gran extensión, la ecoregión de Los Llanos posee características ecológicas generales: dos estaciones bien marcadas, una estación lluviosa de abril-mayo a octubre y una estación seca de noviembre a abril-mayo; topografía monótona con relieves pobres, casi imperceptibles, y altitudes que van desde los 300 m hasta cerca del nivel del mar; vegetación principalmente herbácea con parches de bosque, bosques de galería y otras asociaciones vegetales; y suelos extremadamente
Tal distinción ha sido criticado con el argumento de que una separación epistemológica clara entre el observado y el observador significa la imposición de una visión esencialista sobre lo que es más bien una realidad dinámica e interconectada. Mientras que concordamos con la observación de que ningún grupo cultural es ni ha sido aislado del resto del mundo, al mismo tiempo suscribimos a la tesis de Sahlins (1994) de que los pueblos locales no son receptores pasivos de elementos culturales que se adoptan de otros grupos sino que dan su propio significado y uso a dichos elementos, y en el proceso los transforman a su manera. En este sentido, reconocer que un punto de vista etnoecológico Pumé existe y que es distinto del punto de vista de otro grupo indígena o de la sociedad nacional no es igual que asumir que nunca han sido afectados por los contactos culturales de estos grupos.
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pobres en nutrientes (Ramia, 1967; Lasser, 1969; Sarmiento; Monasterio, 1969; Sarmiento, 1984; Schargel, 2007). Dichas características, y los efectos de su combinación (por ejemplo, inundación de áreas grandes durante buena parte del año), imponen fuertes limitaciones sobre el tipo, la escala y la intensividad de agricultura que puede practicar en la región.
TRABAJO DE CAMPO Y METODOLOGÍA Los datos presentados en este artículo provienen de diferentes sesiones de trabajo de campo, realizadas de forma intermitente durante las estaciones seca y lluviosa de 2010 a 2014. El grueso de los datos etnoecológicos que aquí se presentan fueron colectados en dos comunidades Pumé del sector Riecito, Estado Apure,
Venezuela: Boca Tronador y Banco Largo (Figura 1). Estos datos fueron enriquecidos y ampliados durante visitas cortas a otras comunidades Pumé ubicadas en las riberas de los ríos Capanaparo, Riecito y Cinaruco y en comunidades Pumé ubicadas en zonas interfluviales. Para profundizar en la descripción de las actividades económicas de las comunidades visitadas, realizamos observación participante. Participamos en actividades de recolección y agricultura durante las cuales elaboramos listas libres de plantas y animales. En el caso de las plantas, registramos sus nombres y usos: dieta, medicina, materiales de construcción, etc. También indagamos acerca del reconocimiento de ecotipos y cuáles características son importantes para definirlos desde la percepción de los Pumé.
Figura 1. Sitio de estudio.
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En el caso particular de la actividad agrícola realizamos observación participante y entrevistas semiestructuradas en los conucos a fin de responder preguntas acerca del reconocimiento de cultivos, malezas, plagas, tipos de suelo y fases del ciclo de cultivo: tala, tumba, quema, siembra, cosecha y barbecho. Respecto a cada una de las fases hicimos preguntas particulares en cuánto a: quiénes participan y si hay tareas exclusivas de algún género; de qué forma se realizan, ¿hay técnicas específicas para cada una de ellas? ¿qué instrumentos se emplean? Y cuándo se realizan ¿existen reglas específicas en relación a la estacionalidad? En relación a los cultivos principales preguntamos acerca de la existencia de variedades. Para registrar los datos lingüísticos en lengua Pumé, empleamos la lista de fonemas propuesta por Castillo et al. (2001). Posteriormente, las listas libres fueron revisadas por dos maestros Pumé. Por último, exploramos las conceptualizaciones de los propios Pumé acerca de la importancia que tiene la agricultura en su modo de vida. Esta parte de la recolección de datos se realizó mediante conversaciones cotidianas y no planificadas. Estas conversaciones podían fluctuar entre relatos anecdóticos sobre su relación con los criollos, relatos sobre cambios en las prácticas económicas en relación a eventos particulares y relatos míticos relacionados a la agricultura.
TIPOS DE MANEJO DEL ESPACIO AGRÍCOLA Se reconocieron siete tipos de manejo del espacio agrícola. La tipología presentada está basada en características como nivel de manejo, extensión, organización social del trabajo y propiedad de la cosecha. Las descripciones de cada uno de los tipos de manejo se han complementado con algunos datos obtenidos en publicaciones anteriores sobre la agricultura entre los Pumé y otros grupos indígenas de la cuenca Amazónica.
1. Conucos grandes (Ĉhado) Los conucos grandes son los espacios cultivados de mayor extensión (aproximadamente 5000 m²), se encuentran alejados de la comunidad en terrenos boscosos al borde de los caños y pertenecen a familias extendidas. En el caso de las comunidades de Boca Tronador y Banco Largo, por estar rodeadas de fundos ganaderos, cada vez es más difícil encontrar un terreno apto para un conuco grande. Durante el trabajo de campo, solo se conocieron tres de éstos. Uno de dichos conucos lo comparten dos familias extendidas y está dividido internamente (aunque sin divisiones físicas). Mitrani (1975) ha señalado que los terrenos cultivados pertenecían a quienes los trabajaban mientras permanecieran allí sus cultivos. Sin embargo, algunos de los Pumé de Boca Tronador y Banco Largo afirman que las separaciones internas en estos conucos son cada vez más comunes. Al haber más ofertas de trabajos remunerados, la separación del trabajo en el conuco se hace cada vez más injusta. Los jóvenes van a trabajar al pueblo o a los fundos cercanos y todo el trabajo recae en los viejos, lo cual genera fuertes discusiones sobre la propiedad de la cosecha. Los conucos grandes se encuentran bastante alejados entre ellos, a pesar de pertenecer a familias de la misma comunidad. En otro estudio se ha sugerido que este distanciamiento puede evitar el surgimiento de plagas y la disminución de enfermedades en las plantas, además de estimular la llegada de animales (Posey, 1983; Carneiro, 1983). Estos conucos son siempre policultivados: maíz alternado con frijol o yuca, caña de azúcar, patilla, plátano, tabaco, auyama y piña son algunos de los cultivos (Cuadro 1). Luego de la primera cosecha solo la yuca se sigue resembrando en el conuco y las labores de desmalezamiento cesan.8 Las plantas pioneras del bosque de galería comienzan a cubrir el terreno intercaladas con las plantas de yuca y algunas plantas de plátano.
Freire (2007), analizando el caso del cultivo de yuca entre el grupo Piaroa de la Amazonia venezolana, sugiere que la decisión de dejar de limpiar el conuco después del primer año obedece menos a la caída de productividad de la yuca y más al plan de facilitar la sucesión de una mayor diversidad de especies de uso económico.
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Cuadro 1. Cultivos principales. Nombre Pume
Nombre común Yuca amarga
Ekará paę
Manihot esculenta Crantz (Euphorbiaceae)
Yuca dulce
Hurarēã paę
Manihot esculenta Crantz (Euphorbiaceae) Yuca blanca Yuca pebeta Concha 'e guamo Ñema 'e huevo
Paę berebęrea Paę koę Paę koę Okararonuto paę Phue
Nombre científico
Pume phue
Maíz Pume
Nive phue
Maíz criollo
Zea mays L. (Poaceae)
Ĉĩãrēãŋue
Caña de azúcar
Saccharum officinarum L. (Poaceae)
Ŋambí
Tabaco
Nicotiana tabacum L. (Solanaceae)
Edé koę hurarēã
Patilla
Edé ĉimannea
Auyama
Cucurbita sp. L. (Cucurbitaceae)
Paratuna
Musáceas
Musa sp. L. (Musaceae)
Citrulus lanatus (Thunb.) Matsum. & Nakai (Cucurbitaceae)
Cambur Topocho concha gruesa Pineo Plátano Topocho de concha rosada Cambur morado Costeño
Paratuna kãrã Paratuna i itu Ete ĉame paratuna Paratuna õti Huidigara paratuna Torēto paratuna Yaba paratuna Ĉierame
Ñame
Discorea sp. L. (Dioscoreaceae)
Õari
Batata
Solanum sp. L. (Solanaceae) Batata morada Batata blanca Batata amarilla
Õari koę Õari berebęrea Guevá õari Ô ŋue
Piña
Ananas sp. Mill. (Bromeliaceae)
Caraoĉo
Caraota
Phaseolus vulgaris L. (Fabaceae)
Existe cierto patrón de distribución espacial de los cultivos dentro del conuco (Figura 2)9. Las plantas de tabaco y caña de azúcar son sembradas en las zonas más cercanas al caño, donde los terrenos conservan mayor cantidad de agua. En el resto del terreno se encuentran las plantas de maíz que generalmente se intercalan con yuca o frijol. En un espacio particular se concentran las plantas de plátano, cambur y
topocho. Antes de dejar en barbecho, los conucos grandes son resembrados y mantenidos bajo cuidados especiales durante cuatro años. Luego de la cosecha de maíz, cuando las plantas de yuca han superado sus primeros estadios de desarrollo el desmalezamiento se hace menos riguroso. Generalmente, después del primer año, los conucos Pumé se tornan en collages de plantas de yuca, plantas de plátano
Denevan (2001) observa que la siembra de rubros particulares en parches dentro del conuco constituye una práctica de amplia extensión en la región amazónica y que dicha práctica es deliberada y frecuentemente motivada por requerimientos o ventajas ecológicos de las especies cultivadas. Ver también Frechione (1982).
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Figura 2. Calendario agrícola.
con sus hijos que esperan a ser trasplantados a un nuevo espacio, plántulas o pequeñas plantas de especies diversas y restos orgánicos de plantas que fueron cosechadas o consumidas in situ. Entre esta diversidad, la yuca luce dominante y permanece por tres años más.10
2. Conucos pequeños (Ĉhado bui) Son pequeñas áreas cercadas (no más de 3 m²) que se encuentran próximas a las casas. La administración de estas áreas está a cargo de las mujeres. Ellas son las encargadas de preparar la tierra, sembrar, cuidar las plantas y cosechar. La propiedad de estos espacios es
exclusiva de la familia nuclear, aunque el intercambio de información y material vegetal procedente de los conucos caseros se realiza permanentemente entre familias diferentes. Los ĉhado bui son espacios para la experimentación, en ellos se hacen germinar semillas de plantas de reciente introducción entre los Pumé, se siembran plantas de uso culinario y plantas medicinales.11 Entre los cultivos principales se encuentran: óregano12 y cilantro13 (phũdagüeĩpiã, cuya traducción es ‘hoja que huele bien’), malojillo14 (kërögüeĩpiã: ‘gramínea que huele bien’), ají15 (hurareamerereato: ‘planta que se le pone a la comida’).
Se nota una periodicidad parecida en otros sistemas agrícolas amazónicos en donde domina la yuca (Carneiro, 1983; Johnson, 1983). En varias partes de la región amazónica-orinoquía, es común encontrar que los agricultores indígenas y locales aprovechan de estos espacios domésticos, o en otras palabras los homegardens ‘jardines de casa’, para llevar a cabo experimentos y observaciones controladas con especies o variedades introducidas, semi-domesticadas o silvestres (Smith et al., 1995; Miller et al., 2006; Heckler, 2007; Lojka et al., 2011). 12 Posiblemente Origanum vulgare L. Lamiaceae. 13 Posiblemente Coriandrum sativumL.Apiaceae y/o Eryngium foetidum L. Apiaceae. 14 Posiblemente Cymbopogon citratus (DC.) Stapf Poaceae. 15 Capsicum frutescens L. Solanaceae. 10 11
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Estos espacios se encuentran cercados para evitar la entrada de los animales. En general, se establecen poco tiempo después de vivir en una casa y suelen permanecer hasta que la casa es abandonada.
3. Pequeños cultivos de yuca o plátano Son áreas de entre 300 y 500 m² que sirvieron como corrales para el ganado. Son usados con dicho fin durante tres años aproximadamente, de modo que la tierra es abonada con las heces del ganado durante ese tiempo y luego son aprovechados como terrenos para la siembra. Se encuentran cerca de las viviendas y su administración está a cargo de una familia nuclear. Los cultivos dominantes son yuca y/o plátano, pero también puede haber piña, patilla y auyama en pequeñas cantidades. La siembra en estos espacios, al igual que en los conucos grandes, ocurre en sincronía con la entrada de la época de lluvias para aprovechar la humedad de esta temporada. No se observó una distribución espacial específica de los cultivos y tampoco cuidados particulares. Es probable que, debido a que estos conucos se encuentran en espacios caracterizados por vegetación de sabana y que además fueron sometidos a pastoreo continuo durante varios años, la colonización por especies herbáceas de los espacios circundantes sea más lenta. Por esta razón, el desmalezamiento es menos intensivo que en los conucos grandes que se encuentran rodeados por bosques y que fueron talados poco tiempo antes de ser usados como espacios de cultivo. 4. Arboledas y arbustales domésticos Son conjuntos de árboles y arbustos que se encuentran alrededor de las casas. El cuidado de estas plantas es intensivo solo en los primeros meses cuando a un son plántulas y esta tarea es responsabilidad de los adultos, hombres o mujeres. Al igual que los conucos pequeños, estos espacios son propiedad de la familia nuclear, aunque los frutos son ofrecidos a cualquiera que los desee.
Entre las plantas más comunes cultivadas en estos espacios se encuentran: guayaba (ĉoroto; Psidium guajava L. (Myrtaceae)), naranja (ĉina; Citrus sp.L. (Rutaceae)), limón (Citrus sp.L. (Rutaceae)), mango (mangoto; Mangifera indica L. (Anacardiaceae)), jayo (tuipah; aff. Banisteriopsis caapi Spruce ex Griseb (Malpighiaceae)), onoto (Bixa orellana L.) y merecure (orĩcurito; Licania pyrifolia Griseb (Chrysobalanaceae)).
5. Conucos en barbecho (Ĉhado duri) Después de dos a tres años de cultivo, siembra y resiembra de yuca, los terrenos de los conucos son abandonados por siete o más años antes de una nueva tala y quema. Los conucos abandonados son espacios ideales para las actividades de cacería y recolección (Posey, 1983; Padoch; Denevan, 1988; Zent, 1992, 1995; Freire, 2007; Zent, S.; Zent, E., 2012). Es decir, son espacios manejados para el aprovechamiento de recursos vegetales cultivados y no cultivados. Myrosma cannifolia L. f. Maranteaceae (ĉokui, nombre común en español: guapo) es un tubérculo recolectado por los Pumé durante la estación de lluvia, preferiblemente entre los meses de junio y septiembre (Gragson, 1997). Al preguntar si ellos sembraban este tubérculo, la respuesta siempre fue que no era necesario sembrar algo que crecía sin problema en cualquier lugar. Sin embargo, los lugares escogidos para la recolección fueron, en todos los casos, los conucos en barbecho. Esta tarea y la recolección de otros tubérculos son realizadas por las mujeres. En La Flora de la Guayana Venezolana esta especie es descrita como una especie cultivada: “Esta especie es cultivada por los Amerindios debido a sus rizomas almidonosos. La distribución actual está probablemente muy influida por el cultivo” (Steyermark et al., 2001, p. 245). Entonces, es posible pensar que, aunque este tubérculo ha sido mencionado entre las especies recolectadas por los Pumé, en los conucos abandonados se crean condiciones que favorecen su crecimiento, siendo esto una forma de manejo indirecto de este recurso vegetal.
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Otro recurso vegetal aprovechado por los Pumé en los conucos en barbecho es el mango. La presencia de mangos en el paisaje llanero puede significar dos cosas para los Pumé: la antigua presencia de criollos o un conuco abandonado. Generalmente, los Pumé de Boca Tronador trasplantan de sus semilleros algunas plántulas de mango en sus conucos. Para los Hiwi (Cuiva), que comparten territorio con los Pumé, el consumo de mango es la fuente principal de energía proveniente de frutas (Hurtado; Hill, 1990) y durante los meses de abril y mayo, los Pumé colectan
grandes cantidades de mango, siendo uno de los alimentos más ingeridos durante esos meses. Aunque el mango es una especie cultivada, la relación de los Pumé con esta planta se parece más a la del aprovechamiento de un recurso silvestre que a la de uno cultivado. Tal como se verá más adelante, los Pumé parecen tener un conocimiento amplio de nombres, usos y relaciones planta-animal de especies que colonizan los conucos (Cuadro 2). A partir de esto se puede deducir que la lista de plantas aprovechadas no se limita a las
Cuadro 2. Plantas pioneras (malezas). Pume mae
Español (nombre común)
Familia
Especie
Usos/relaciones ecológicas
Acanthaceae
Aphelandra sp.
Tiene inflorescencia alargada que atrae a los colibríes.
Caesalpinaceae
Bauhinia sp.
Puĉiĉito
?
Vakataĉarato
Pata de vaca
Göĉibuto
?
Meturaremeto
Palo lechero
Euphorbiaceae
Mabea sp.
Tiene una leche (látex) que va deteriorando la visión. Es motivo de precaución a la hora de talar conuco.
Oreĉituto
Pata de perro
Malvaceae
Urena lobata L.
Con la raíz de esta planta se hace una infusión para las enfermedades de los riñones. La raíz es machacada y dejada al sereno por una noche.
Coa
Escobilla
Malvaceae
Sida sp.
Se usa para hacer escobas. Se usa para calmar a los niños inquietos. Se coloca una ramita en la frente del niño mientras duerme.
Chrysobalanaceae Hirtella racemosa Lam.
Guerěguerěõto
Dormilona
Mimosaceae
Mimosa sp.
Cuĩĉirito
Guayabita
Myrtaceae
?
Õtoto
?
Rubiaceae
Randia sp.
Ĉututo
?
Rubiaceae
Palicourea sp.
Araõ
?
Smilacaceae
Smilax sp.
Nërito
Yagrumo
Urticaceae
Cecropia sp.
Fruto comestible
Padeto
Guaratara
?
?
Ënü kërö
Gamelote
?
?
Tëtëto
?
?
?
Tiene una raíz parecida a la del guapo que se usa para hacer mazamorra.
Padá kërö
Paja brava
?
?
Atrae a los patos reales (posiblemente Cainina moschata).
Terotero
?
?
?
Katato
?
?
?
Tiene una raíz parecida a la del changuango. Es muy buscada por los capuruchanos como alimento.
Ubĩto
?
?
?
Atrae muchas larvas de mariposa.
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Fruto comestible
Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé
dos especies mencionadas en esta sección. Un estudio más profundo sobre este punto contribuiría a un mayor entendimiento del manejo de los bosques secundarios o de galería por parte los Pumé.
6. Conucos de yuca en playas (Ŋave pae) Los conucos en playas o vegas son pequeñas extensiones de tierra escasamente manejadas que se encuentran en las orillas de los ríos o lagunas y que son sembradas durante el verano. Las playas o vegas son terrenos que permanecen cubiertos de agua durante la estación lluviosa donde el agua se repliega en la estación seca.16 Este tipo de manejo agrícola ha sido mencionado anteriormente por Gumilla (1944) y Mitrani (1973). El primero los reporta en 1741 para varios grupos indígenas de la ecorregión llanera, entre los cuales se incluyen los Pumé (saruros), y el segundo en 1973 para el caso exclusivo de los Pumé. Mitrani describe estos espacios como: […] una horticultura de estación seca sobre esos terrenos llamados vegas [...] que simplemente son limpiados y sembrados durante el mes de diciembre con plantas de yuca dulce y amarga, de maíz y de auyama [...]. Las plantas son cosechas en marzo y abril y reutilizadas en los jardines de invierno. (Mitrani, 1973, p. 35, traducción nuestra).
Es menester señalar la importancia anterior del maíz en la agricultura de playa. Era una variedad de rápida maduración, en dos meses. Hoy en día, los Pumé del Capanaparo y Sinaruco cultivan todavía el ‘maíz de los dos meses’ y lo llaman maíz Pumé (Pume phue), a modo de sugerir gran antigüedad. Las semillas son bienes de intercambio muy preciados, no solo por el valor que tienen como reservorio de alimento sino también porque son las piezas claves de un juego tradicional (Saturno, 2014). En el caso de los Pumé de las comunidades visitadas,
poseen el maíz Pumé pero está sembrado principalmente en los conucos grandes. Mientras los espacios de playa son destinados al cultivo exclusivo de yuca y según ellos, constituyen un almacén vivo de semillas que serán usadas durante la estación lluviosa en los conucos grandes.
7. Morichales (Thoto hi) (‘reunión’ de moriche) Los morichales son asociaciones vegetales con predominancia de palma moriche (Mauritia flexuosa L. f. Arecaceae) que se ubican en terrenos inundados, generalmente depresiones donde el nivel freático es tan alto que el agua percola hacia la superficie (Aristiguieta, 1968). En Venezuela, los morichales se ubican en la región norte del Orinoco en los estados Guárico, Apure, Anzoátegui, Monagas y Delta Amacuro y al sur del Orinoco en los estados Bolívar y Amazonas (Aristiguieta, 1968; Heinen; Ruddle, 1974). Gragson (1995) ha sugerido que la extracción de hojas de moriche, que los Pumé usan para la fabricación de viviendas y la obtención de fibra, puede tener incidencia en la estructura de las comunidades de esta palma. Dicha incidencia se manifiesta no solo sobre el número de individuos sino también sobre la composición del suelo de los terrenos. Él ha sugerido que, al extraer todas las hojas de un individuo de moriche, la materia orgánica que se genera por la descomposición del tallo y las raíces debe ser significativa, generando cambios en la composición del suelo. Gragson afirma, además, que la selección de los lugares donde los Pumé establecen sus asentamientos es en parte determinada por la localización de los morichales. Entre los habitantes de las comunidades Pumé de Boca Tronador y Banco Largo, el uso principal que se le da a esta palma es el consumo de sus frutos, específicamente durante los meses de abril a agosto. Otro uso frecuente
Aparentemente diferentes cultivos se adaptan a las playas o vegas en las tierras bajas sudamericanas. En los llanos orientales de Colombia, se encuentra el cultivo de plátano en las vegas (Martínez Garnica, 1998). Entre el pueblo Ticuna del Río Amazonas hacen entierros de yuca en estos eco-topos (Arias García; Camacho Gonzaléz, 2005). Los Sikuani del Río Meta, muy cerca de la zona Pumé, siembran yuca de 3 meses, maíz precoz, maní, frijol y otros rubros en conucos de playón (Mejía Gutiérrez, 1998).
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de M. flexuosa está asociado a la elaboración de mapires (cestas y bolsos) a partir de sus hojas. En varias ocasiones, los Pumé hicieron comentarios que reflejaban cierto grado de consciencia de la función que cumplen al dispersar las semillas de moriche. Al caminar por las sabanas, la interacción con estas palmas es muy frecuente. Para buscar frutos caídos o verificar si hay frutos que vayan a madurar pronto, para evaluar la disponibilidad de hojas, entre otros. Algunos dicen recordar el nacimiento de algunas de estas plantas. Sin embargo, no se tiene suficiente evidencia para afirmar que el manejo de estas comunidades vegetales (los morichales) es producto de un cultivo consciente del moriche. Parece ser parte del sentido común que ellos reconozcan su papel activo en la dispersión de semillas, su germinación y el establecimiento de plántulas (Posey, 1998). Se preguntó acerca de los métodos o técnicas empleadas para ‘sembrar’ estas palmas y las respuestas nunca fueron claras. En algunos casos apelaron a recuerdos anecdóticos de sus padres o abuelos. En otros, explicaron que, luego de comer los frutos de moriche, arrojaban las semillas en los terrenos de menor altura cercanos a la comunidad. Estas personas afirmaban que las condiciones de humedad de estos terrenos favorecen la germinación de las semillas. Diversos investigadores en la ecología humana de la región Orinoco-Amazonas han señalado el factor antropogénico en la creación y mantenimiento de ecosistemas dominados por palmas (Balée, 1989; LópezZent; Zent, 2004). En el caso particular de M. flexuosa, Heinen y Ruddle (1974) han propuesto que la distribución de los morichales no es uniforme a lo largo del Delta del Orinoco y que en la región al sur del Caño Arawao se encuentran algunas formaciones vegetales de este tipo que podrían estar asociadas a antiguos asentamientos Warao17. Los estudios paleopalinológicos realizados en los Llanos Orientales de Colombia han contribuido a pensar en el origen antrópico de los morichales en la ecorregión 17
llanera. Según dichos estudios, hubo una expansión de los morichales en la región desde el Holoceno medio, hace unos 4000 años, por lo cual se ha sugerido que las asociaciones vegetales que existen hoy en torno a esta palma pueden haber sido producto del cultivo de la misma para el consumo local (Berrio et al., 2012).
FASES DE CULTIVO Las fases de cultivo que se describen a continuación están basadas en el manejo agrícola en conucos grandes (ĉhado), ya que este tipo de manejo es comparable con los conucos de tumba y quema o conucos de barbecho, que es el modelo agrícola de los grupos amazónicos más conocido (Triana-Moreno et al., 2006; Robert et al., 2012; Zent, S.; Zent, E., 2012; López Garcés, 2016). En forma general, el ciclo de cultivo se puede resumir en un esquema (Figura 2), aunque enfatizamos que se trata de un modelo. Los tiempos de tumba, quema, siembra y cosecha pueden variar de año a año. Los Pumé reconocen que existen particularidades climáticas de un año a otro y ellos ajustan sus operaciones según las condiciones predominantes en un momento dado. De igual forma, se asignaron nombres en Pumé para cada fase del ciclo de cultivo. Estos nombres, sin embargo, no son categorías fijas, sino más bien construcciones descriptivas que los Pumé usan para referirse a los terrenos donde se ha practicado alguna acción: quema, tala, siembra o para referirse al tiempo que tiene el conuco desde la primera siembra. Ĉhado kharapa o ĉhado deã (conuco talado) es el nombre que se le da al bosque talado donde luego se sembrará. Se refiere al terreno que ya ha sido talado, se ha dejado secar bien y está listo para ser quemado. En el momento de la quema los Pumé se refieren al terreno como ĉhadoa khǫrǫpa (conuco que se está quemando). Después de quemar se retiran todos los troncos que no fueron quemados totalmente. El terreno limpio, dejando solo las cenizas finas se llama ĉhado ia (conuco desnudo). Una vez sembrado, al conuco
Grupo indígena que habita en el delta del río Orinoco.
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Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé
nuevo, donde no se ha cosechado aún, se le llama ĉhado peaha (conuco nuevo). El tiempo de existencia del conuco se mide por el número de estaciones lluviosas que haya pasado desde que fue sembrado por primera vez. Así, un conuco que ha sido resembrado durante dos estaciones lluviosas (dos años) se llama õarí uigoa ĉhado; durante tres estaciones lluviosas (3 años) se llama tharari uígoa ĉhado y durante cuatro estaciones lluviosas (4 años), que suele ser el máximo de tiempo durante el cual se resiembra yuca, se llama hodoĉi uígoa ĉhado. Cuando ya la productividad de la cosecha de yuca es muy baja se dice que el conuco está viejo, ĉhado ǫtamai. Por último, un parche de bosque donde hubo un conuco se llama ĉhado duri (barbecho). Se ha sugerido que las percepciones del clima de algunos grupos indígenas están íntimamente ligadas a la actividad agrícola (Sillitoe, 1996; Robert et al., 2012), y entre los Pumé podemos observar, de modo similar, que el ciclo de labores agrícolas tiene su calendario (Figura 2) (ver también abajo en donde se describen las fases de tala, quema y cosecha abajo). Los Pumé reconocen la existencia de dos estaciones marcadas, una estación de sequía (hono) y una estación lluviosa (uithó). Hono (estación seca) comienza en octubre. Entre los meses de septiembre y octubre empieza a retirarse el agua de la sabana y comienza a disminuir el caudal de los ríos, a este período de transición se le denomina gapegapekhea. Para los Pumé, la estación seca se caracteriza por vientos muy fuertes, las nubes son muy blancas y están dispersas. Cuando ya han secado los terrenos peri-fluviales, puede comenzar la tala y tumba de bosques para los conucos nuevos. Marzo es el mes de mayor sequía. Este pico de sequía se conoce como honothó. Además de la fuerte sequía, los Pumé dicen que este periodo de transición entre la época de sequía y la época de lluvia se reconoce porque los vientos comienzan a ser menos fuertes. Lo que indica la entrada de la estación de lluvia y sirve como señal de que ya es tiempo de quemar la vegetación talada.
Uithó (estación lluviosa) comprende los meses de abril a septiembre y se caracteriza por la presencia de nubes grises, en mayor cantidad y más juntas que durante la estación seca. La siembra constituye actividad importante durante la primera parte de uithó. A partir de Junio el maíz Pumé está listo para cosechar y 1-2 meses más tarde están cargados las otras variedades de maíz. Por otra parte, la mayor cosecha de yuca y plátano ocurre en hono.
Selección del terreno Los Pumé de Boca Tronador y Banco Largo reconocen formas ecosistémicas en al menos dos dimensiones semánticas, una cuyos referentes son el tipo de vegetación y la hidrografía y otra cuyo referente es la topografía. Según el tipo de vegetación y la hidrografía, existen siete zonas ecológicas diferentes: la sabana (ĉiri18) que está compuesta de gramíneas con algunos árboles dispersos como el chaparro (karamba, Byrsonima verbascifolia (L.) DC.) y el alcornoque (ĉinde, Bowdichia virgilioides Kunth); los morichales (thoto hi) que son bosques húmedos con predominancia de moriche (thoto, Mauritia flexuosa L. f.); los parches de bosques que se intercalan en la matriz sabanera se denominan to hoai y los bosques de galería reciben diferentes nombres que dependen de la forma hidrográfica a la que están asociados, los bosques asociados a lagunas se denominan daętha hoai, a caños dorǫ hoai y a ríos be ahoai (Figura 3). Según las características topográficas, existen tres niveles de clasificación del entorno, los terrenos más altos, que nunca se inundan, se llaman dabü pupü (tierra alta). Cuando los terrenos altos están constituidos por arena (médanos) se llaman ŋabe pupü. Los terrenos de alturas intermedias, que se inundan durante la estación lluviosa se denominan dabü hötö (tierra ‘en bajada’) y los terrenos que permanecen inundados todo el año se denominan dabü daętha. Los terrenos para los conucos nuevos se ubican preferiblemente en los bosques de galería de los caños
Esta palabra también es usada para referirse a ‘territorio’.
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 653-676, set.-dez. 2016
(dorǫ hoai). Estos terrenos, que normalmente exhiben una leve inclinación topográfica, tienen una particularidad mencionada anteriormente por Zent (1992) para los conucos Piaroa: la de poseer una distribución desigual de la carga de agua en el suelo, permitiendo así que se acomoden cultivos que requieren mucha agua (caña de azúcar) y otros que no (yuca). El tipo de suelo es otro indicador a la hora de escoger el terreno a talar para establecer un nuevo conuco. Los Pumé clasifican los suelos en función de cuatro variables: tamaño de grano, color, humedad y temperatura. Tanto humedad como temperatura están íntimamente relacionadas dentro de la tipología de suelos empleada por los Pumé. Para ellos, los suelos fríos (dabü hĩĉã) son aquellos que están cargados de agua y son los más aptos para la agricultura. A su vez, estos suelos están compuestos de granos finos, muy probablemente del tipo arcilla. Los suelos arcillosos, húmedos y fríos pueden clasificarse de acuerdo a su color en dabü arĩ achiá, de color marrón, con presencia de lombrices; dabü hĩcã koe de color amarillo ocre y dabü hĩcã tokotokua de color gris.
Los suelos permeables, calientes y arenosos se llaman dabü ƞãbe, que caracterizan médanos y playas (Figura 4). Los terrenos con suelos húmedos y con presencia de lombrices son los escogidos para el nuevo conuco. Frost et al. (1985), han afirmado que las lombrices de tierra tienen al menos dos efectos positivos en el suelo.19 Por un lado, promueven mayores tasas de infiltración de agua debido a que se amplía la superficie del suelo mediante la formación de galerías y, por otro lado, disminuyen el efecto de la lixiviación y el lavado ya que mueven material desde el subsuelo hacia la superficie. Los Pumé señalaron en varias oportunidades que la presencia de montículos de tierra es una condición privilegiada para la siembra, estos montículos parecen formados por la actividad de las lombrices. Se refirieron a ellos con dos nombres diferentes pupü ĉame y/o coĉo.20 Algunos indicadores florísticos también son usados para escoger el terreno. El criterio es la cantidad y calidad de la ceniza que producirán después de ser quemados.21 Las especies mencionadas que cumplen este criterio fueron ƞoēto (palo de aceite, posiblemente
Figura 3. Ecotipos.
Figura 4. Representación de un conuco Pumé.
Ver también Rodrígues de Lima; Brussaard (2010) para una evaluación similar en sistemas de cultivo de arroz al sur de Brasil. Leeds (1969) reporta que los Pumé del Sinaruco utilizaban los hormigueros quemados de una especie de hormiga (huachaquero) en la preparación de montículos para la siembra de plátano, pero no se ha observado esta técnica entre los agricultores del sector Riecito. 21 Es interesante notar que los Jodï, grupo selvático de la Guayana Venezolana, reportan los mismos criterios para algunos de los indicadores florísticos utilizados en la selección de terrenos aptos para cultivar (Zent, S.; Zent, E., 2012). 19
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Copaifera pubiflora Benth. (Caesalpinaceae)); toĉoto (algarrobo, Hymenaea courbaril L. (Caesalpinaceae)) y ĉarato (saladillo, posiblemente Vochysia venezuelana Stafleu. (Vochysiaceae)). Todas estas especies tienen en común que son árboles grandes (de hasta 20 metros de altura) y se encuentran en los bosques de galería (Duno de Stefano et al., 2007). Tomando estos indicadores como referencia se puede inferir que los bosques más aptos para la agricultura, según los Pumé, son bosques en períodos sucesionales bastantes tardíos o bosques vírgenes.
Tumba y tala Una vez escogido el terreno para el nuevo conuco se procede a eliminar primero, las plantas del sotobosque y los árboles pequeños y, luego, los árboles más grandes y gruesos. Esta tarea la realizan exclusivamente los hombres durante los meses de enero y febrero. Los instrumentos que se utilizan son machete (topene), hacha (hibe) y garabato22. Las labores de tumba y tala del conuco duran aproximadamente una semana. Los Pumé son capaces de reconocer muchas de las especies que están cortando y conversan sobre sus propiedades medicinales o urticantes. En particular, señalaron los efectos del látex de un arbusto llamado meturaremeto (palo lechero, Mabeasp. Euphorbiaceae) que al caer en los ojos de quien lo corta puede afectar la visión a largo plazo. La presencia de este arbusto es común en los bosques de riberas de caño, donde los Pumé hacen sus conucos. Algunas especies del género Mabea pueden estar asociadas a bosques secundarios, lo cual indica que los bosques que en la actualidad talan los Pumé pudieron haber sido conucos en un pasado no muy lejano (Duno de Stefano et al., 2007). Sin embargo, como se dijo antes, todo parece indicar que los Pumé prefieren sitios cubiertos de bosques primarios para sus conucos.
Quema Una vez transcurridos entre uno y dos meses después del talado de los árboles se procede a quemar. La quema suele realizarse durante el mes de marzo, que es el mes más seco del año y es una actividad exclusivamente masculina. Antes de quemar el conuco se limpia alrededor dejando una franja para evitar que el fuego alcance el bosque que no fue talado o la sabana. De la lectura de algunos relatos míticos23 en torno al origen del fuego se pueden hacer algunas inferencias sobre la relación de los Pumé con este elemento. Por un lado, desde la mirada de los Pumé el fuego parece estar más asociado a la vida de los criollos que a la de ellos, en especial porque ellos no poseen fósforos. Por otro lado, el uso del fuego está estrechamente ligado a la cocción de los alimentos como uso principal. A continuación, algunos fragmentos de dichos relatos: [...] Fue la sapa, Kiberoñi, quien adquirió el fuego. Ella se acercó a los indios que estaban sentados allí, y los niños empezaron a ahuyentarla. “No me ahuyenten”, dijo.” Si quieren fuego, lo crearé”. “Sí, danos fuego”, respondieron. Entonces Kiberoñi vomitó fuego, pero se lo dio solo a los criollos. Fueron ellos quienes se lo tomaron para sí, y los indios no recibieron nada. Luego, la sapa les dijo: “Vayan y pesquen”. Entonces, ellos fueron a pescar, y después se dispusieron a capturar el fuego, el cual pertenecía a los criollos. Los peces empezaron a saltar y las chispas volaron hacia ellos. Los indios tomaron ventaja de esto y se apoderaron de un poco de fuego. Hoy en día, tenemos que comprar el fuego con dinero. (Obregón Muñoz et al., 1984 apud Wilbert; Simoneau, 1990, p. 33).
En la actualidad (y probablemente desde hace mucho tiempo), el uso del fuego no se restringe a la cocción de alimentos. Al momento de quemar el conuco, el fuego debe ponerse primero en contacto con la materia vegetal que se encuentra ‘más abajo, porque el viento corre hacia
El ‘garabato’ es un instrumento que se fabrica con un pedazo de rama; se escoge una rama fina y liviana que posea una curvatura natural, la cual sirve para abrir paso a la persona que está talando y para reunir varias lianas y plantas pequeñas que serán cortadas con el machete. 23 Ver recompilación Wilbert y Simenau (1990, p. 20, 33-41). 22
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 653-676, set.-dez. 2016
arriba’. Los llaneros24 llaman ‘abajo’ al lugar donde sale el Sol (este) y ‘arriba’ al lugar donde se esconde (oeste). Los Pumé también usan esta forma de referirse a la dirección del viento, al decir que el viento corre de abajo (este) hacia arriba (oeste). Otra referencia que usan los Pumé de Boca Tronador es la dirección del río, que en el caso de Riecito (beatokui, literalmente río pequeño) va de oeste a este a depositar sus aguas en Capanaparo (beaana, literalmente río grande), entonces se dice que el fuego debe iniciarse río abajo (yaboro pomo) para que el viento lo lleve río arriba (ĉiaro pomo). Para la ganadería, los Pumé realizan quemas controladas de áreas con vegetación sabanera. Estas quemas se realizan en el período de transición entre la época de lluvias y la época de sequía. Debido a que el terreno se encuentra parcialmente húmedo por la variación topográfica algunos parches se queman y otros no. Esto se hace con la idea de renovar el pasto ya que los becerros prefieren comer retoños de pasto fresco que crecen en los parches que fueron quemados.25
Siembra La primera siembra en el nuevo conuco se realiza durante el mes de abril, cuando ya las lluvias han comenzado pero los terrenos más bajos aún no se encuentran inundados. En la siembra participan todos los miembros de la familia, mujeres, hombres y niños. Los instrumentos utilizados son machete (topene) y chícora (tore). Los cultivos más importantes, en términos de espacio ocupado dentro del conuco son maíz (phue); yuca (paę) y variedades de Musa paradisiaca x. (paratuna). Desmalezamiento El trabajo de desmalezamiento lo realizan tanto mujeres como hombres, en algunas ocasiones acompañados por los niños. Es intensivo solo durante los primeros meses, mientras las plantas de yuca son pequeñas. Pasados
unos cuatro o cinco meses después de la siembra el desmalezamiento no se sigue realizando. Los Pumé afirman que la yuca “se pone aguada” si se hace un desmalezamiento intensivo una vez que las plantas de yuca ya están grandes, muy probablemente esto se deba a que es necesario más plantas que compitan por el agua. Por otro lado, los Pumé tienen un alto conocimiento sobre las plantas que colonizan rápidamente el recién talado bosque, y muchas de las plantas tienen utilidad como medicina o alimento (Cuadro 2). Beckerman (1987), afirma que muchas de las especies animales que cazan los Barí son también plagas en los conucos, por lo cual las áreas cercanas a los mismos representan grandes reservas de alimento.En especial, en los conucos abandonados, debido a que la frecuencia de presencia humana es menor, los animales se sienten más atraídos. Balée (1989), muestra varios ejemplos de grupos indígenas del neotrópico donde los barbechos son usados como espacios especiales para la cacería. Igualmente, Zent (1992, 1995) señala que tanto las especies cultivadas como sucesionales en los conucos Piaroa son atrayentes de animales. Además, sugiere que los conucos de tala y quema generan diversidad dentro del bosque debido a que se forman parches en estadios sucesionales diferentes, y por lo tanto, composiciones florísticas diferentes. Esta diversidad vegetal atrae un también diverso conjunto de animales en espacios relativamente pequeños.
Cosecha La división sexual de trabajo agrícola, y en particular la partición de rubros masculinos versus rubros femeninos en las fases de siembra y cosecha, es un rasgo cultural notable entre grupos agricultores amazónicos (Whitten, 1976; Johnson, 1983; Zent, 1992). Los Pumé comparten esta característica en tanto que los encargados del trabajo de cosecha varían de acuerdo al cultivo. El maíz, el plátano y el tabaco son cosechados por los hombres, mientras que
Habitantes no indígenas de los Llanos. Se ha observado la misma práctica por la misma razón en el ecosistema de cerrado en Brasil (Pivello, 2011).
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Aspectos etnoecológicos de la agricultura entre los Pumé
la cosecha de yuca es un trabajo exclusivamente femenino. Sin embargo, el procesamiento (en el caso del maíz y la yuca) y la cocción de la cosecha es tarea de las mujeres. Existen diferentes formas para referirse a la acción de cosechar, determinadas por las acciones que implican cosechar diferentes cultivos. Cuando se trata de tubérculos como la yuca se dice coęa. Cuando se trata de arrancar un fruto como el maíz se dice mĩte y para referirse a plantas o frutos que se cortan como la caña de azúcar o los frutos del género Musa se dice bodo.
CONCLUSIONES En este artículo de corte reflexivo-etnográfico hemos trazado algunos planteamientos acerca de las ventajas del enfoque etnoecológico para el entendimiento de la práctica agrícola entre los Pumé, un grupo indígena de la ecorregión de los Llanos en Venezuela. Primeramente, hemos mostrado que las políticas y planes enmarcados en el modelo de desarrollo moderno son el resultado del devenir histórico que inicia con el proceso de colonización de América. La colonización estuvo signada por prejuicios acerca de la capacidad productiva de los habitantes del Nuevo Mundo. La percepción despectiva de los grupos indígenas americanos implicó la construcción de un discurso de deslegitimación de sus conocimientos y prácticas de aprovechamiento del entorno ecológico. Este discurso imperó hasta mediados del siglo XX con el surgimiento de corrientes que estimulaban la revalorización de los conocimientos indígenas como recursos para el diseño de políticas públicas. Sin embargo, en Venezuela, las políticas agrarias implementadas durante la segunda mitad del siglo XX asumían que los habitantes indígenas debían ser considerados como parte de la población campesina. Dichas políticas dejaban de lado las particularidades culturales y ecológicas de la diversidad de pueblos indígenas que habitan el territorio nacional. En la actualidad, a pesar de reformas legales que permiten una relación más justa con los pueblos indígenas, las visiones de los agentes del Estado venezolano parecen
seguir estando impregnadas de prejuicios y desvalorizaciones de las capacidades productivas de estos. El caso de los Pumé nos permite evidenciar la problemática hasta ahora expuesta. Mostramos como se construyen las percepciones externas sobre este pueblo y sus capacidades productivas. Asimismo, expusimos sucintamente el recorrido etnográfico que conduce a su polémica catalogación como grupo de cazadoresrecolectores. Resaltamos que aunque este estudio no permite resolver el dilema asociado a su vocación agrícola, sí permite comprender de forma integral las relaciones entre algunos aspectos de su etnoecología y sus formas de producir/obtener alimentos vegetales. Como se pudo ver, la práctica agrícola de este grupo se caracteriza por presentar una diversidad de formas de manejo espacio-temporales: los conucos grandes (ĉhado), conucos pequeños (ĉhado bui), pequeños cultivos de yuca o plátano, arboledas y arbustales domésticos, conucos en barbecho (ĉhado duri), conucos de yuca en playas (ŋave pae) y morichales (thoto hi). Nuestro centro de interés en esta ocasión fue el conuco de tala y quema, práctica de manejo y cultivo cíclico de los bosques de galería, sobre el cual ofrecimos detalles acerca de sus fases de manejo. Como pudimos observar, los Pumé poseen criterios etnoecológicos particulares para cada una de las fases, desde la selección del terreno hasta la cosecha y resiembra. Quisiéramos culminar enfatizando la importancia de profundizar en este tipo de estudios con el propósito de construir diálogos entre los pueblos indígenas y el Estado. El enfoque etnoecológico es una herramienta teóricometodológica que permite un acercamiento a la complejidad y diversidad de relaciones de grupos humanos y su entorno natural y, en consecuencia, de formas de producción.
AGRADECIMIENTOS Esta investigación no hubiese sido posible sin el apoyo tanto espiritual como material de los habitantes de las comunidades Pumé de Boca Tronador y Banco Largo, Venezuela. En especial, queremos mostrar nuestra gratitud
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a los maestros Pumé Luis Ostos y Samuel Romero por su colaboración en la revisión de la ortografía. Este artículo muestra parte de los resultados y conclusiones del trabajo de grado para obtener el Título de Magister Scientiarum de la primera autora, el cual se llevó a cabo gracias al financiamiento del Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Estamos agradecidos con Daniela Torres y Eduardo Carrera por tomar el tiempo para leer versiones anteriores y brindarnos sus sugerencias. Por último, le damos las gracias a Carlos de Obaldía, Nuria Martin, Jorge Saturno y Edgar Lucena por su colaboración en la realización de las Figuras.
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Conservação ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades Ex situ and on farm conservation of genetic resources: challenges for the promotion of synergies and complementarities Laura SantonieriI, Patricia Goulart BustamanteII I II
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Brasília, Distrito Federal, Brasil
Resumo: Historicamente, o Brasil priorizou o modelo da conservação ex situ, realizada em câmaras frias, em meio de cultura in vitro e em coleções vivas no campo. Esse tipo de conservação capta o momento evolutivo em que a coleta foi realizada, mas as plantas assim conservadas não continuam a evoluir. Tal característica revela parte das limitações desse tipo de conservação para oferecer respostas mais rápidas em um momento de crise relacionado a mudanças ambientais, por exemplo. Atualmente, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) reconhece que a diversidade genética deve ser mantida não só nos bancos de germoplasma, como também nos sistemas agrícolas locais, onde a participação dos agricultores é fundamental. O Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFAA), instrumento vinculante assinado pelo Brasil em 2001, torna obrigatória essa linha de ação e de pesquisa para o país. Mas com implementá-la? Neste artigo, apresentaremos uma reflexão sobre as complementaridades entre os modelos de conservação ex situ e on farm, tomando a proposta de gestão compartilhada das coleções ex situ como exemplo do incipiente processo de construção, no campo científico e institucional, de caminhos que possibilitem novas maneiras de interação entre os agricultores tradicionais e as instituições de pesquisa agrícola, com o objetivo de conservar não apenas o germoplasma, mas também processos que geram a agrobiodiversidade. Palavras-Chave: Recursos genéticos. Modelos de conservação. Complementaridades ex situ e on farm. Manihot esculenta Crantz. TIRFAA/FAO. Abstract: The Brazil historically prioritized the model of ex situ conservation held in cold storage, in vitro conservation and living collections in the field. This type of conservation captures the evolutionary moment in which the collection was made, but plants not continue the evaluation. This characteristic reveals the limitations of this type of conservation to provide faster answers in a time of crisis related to environmental changes, for example. Currently, FAO recognizes that genetic diversity should be maintained not only in genebanks as well as in local agricultural systems, where the participation of farmers is crucial. The ITPGRFA binding, instrument signed by Brazil in 2001, makes this a line of action and research required for all members. But how to implement it? In this paper, we present a reflection on the complementarities between the models of ex situ conservation and on farm, taking the proposed ‘shared management of ex situ collections’ as example of incipient process of construction, the scientific and institutional paths that enable new ways of interaction between traditional farmers and agricultural research institutions, in order to preserve not only the germplasm, but also processes that generate agrobiodiversity. Keywords: Genetic resources. Models of conservation. Complementarities ex situ and on farm. Manihot esculenta Crantz. ITPGRFA/FAO.
SANTONIERI, Laura; BUSTAMANTE, Patricia Goulart. Conservação ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 677-690, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300008. Autora para correspondência: Laura Santonieri. Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências. Campinas, SP, Brasil. CEP 13083-896 (santonieri@gmail.com). Recebido em 22/11/2013 Aprovado em 29/09/2016
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Conservação ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades
INTRODUÇÃO Desde que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) foi fundada, no final da década de 1940, suas maiores preocupações estavam relacionadas à fome mundial e à conservação dos recursos genéticos vegetais, aspectos essenciais para os programas de melhoramento genético que emergiram no contexto da Revolução Verde. Na Décima Conferência da FAO, realizada em Roma (novembro/1959), os especialistas já expressavam preocupação com o desaparecimento das variedades crioulas e de seus parentes silvestres, destacando a necessidade urgente de uma “ação imediata de conservação” (Pistorius, 1997, p. 16). Adentrando a década de 1960, o reconhecimento do problema por parte da FAO e das associações internacionais de pesquisadores que atuavam no melhoramento das plantas cultivadas estabeleceu-se gradualmente. O termo “erosão genética” (Pistorius, 1997, p. 20), como concebido hoje, foi cunhado durante a Conferência Técnica de Exploração, Utilização e Conservação dos Recursos Genéticos Vegetais da FAO/Programa Biológico Internacional (IBP)1, em 1967, encontro que resultou na publicação do livro ‘Genetic Resources in Plants: their exploration and conservation’ (1970) 2. Foi ainda nessa mesma conferência que a conservação ex situ adquiriu um papel importante como metodologia dominante para a conservação dos recursos genéticos vegetais, em detrimento de outras modalidades de conservação (Pistorius, 1997). Desde o início da constituição do sistema de conservação ex situ, o foco da conservação recaiu sobre os principais cultivos que formam a base da alimentação humana – entre eles o milho, o trigo, a batata, o arroz, a mandioca – e enquanto os primeiros esforços mundiais logravam estabelecer os principais centros internacionais de pesquisa agrícola com base em bancos de germoplasma,
povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares espalhados pelo globo continuavam os processos de diversificação agrícola em âmbito local – ou processos evolutivos, nas palavras da ecóloga Begossi (2006) –, conservando, sob cultivo, diversas variedades de plantas, de importantes espécies. A questão dos limites da conservação ex situ em relação à conservação dos recursos genéticos vegetais sob cultivo, aliada aos problemas técnicos e administrativos encontrados em grande parte dos Bancos de Germoplasma que compõem a rede de conservação ex situ do Grupo Consultivo em Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR), e a evidente aceleração do processo de erosão genética culminaram na Declaração de Leipzig, em 1997. Naquele momento, a FAO reconheceu que a erosão genética não é um processo restrito aos campos de cultivo e ecossistemas: ela ameaça também os bancos de genes. Para além das discussões técnicas e científicas sobre os limites do modelo de conservação ex situ, estabelecidos sem qualquer conexão com a conservação on farm, a questão do direito soberano dos países sobre os seus recursos e o direito de agricultores sobre as plantas por eles cultivadas começaram a ganhar força também na arena política. Assim, um dos resultados da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) realizada em 1992, no Rio de Janeiro (RJ), foi a mudança de status dos recursos genéticos enquanto “patrimônio comum da humanidade” para patrimônio dos Estados Nacionais (Santilli, 2009, p. 234). A principal consequência prática dessa mudança foi a necessidade de consentimento prévio, pelos países detentores dos recursos, para toda e qualquer atividade realizada com material genético nativo, da coleta à bioprospecção, por outros países ou por empresas privadas (Santilli, 2009). Em 2001, o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFAA)
O Programa Biológico Internacional (IBP) funcionou apenas entre os anos de 1964 e 1974. Editado por Frankel e Bennet (em associação com R. D. Brock, A. H. Bunting, J.R. Harlan e E. Schreiner), esse livro formou a base da genética vegetal moderna, sendo, por isso, chamado de ‘bíblia’ por especialistas da área (Damania, 2008).
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(Brasil, 2008) reconheceu que a diversidade genética deve ser mantida também nos sistemas agrícolas locais, onde a participação dos agricultores é fundamental. Como instrumento vinculante, assinado pelo Brasil em 2001, o TIRFAA torna obrigatória essa linha de ação e de pesquisa no país. Contudo, implementá-la exige esforço de cientistas e gestores para encontrar os caminhos que tornem possível a necessária articulação entre os sistemas agrícolas locais e a agricultura industrial. A fim de contribuir para essa discussão, apresentamos aqui uma reflexão sobre as complementaridades entre os modelos de conservação ex situ e on farm3, a partir não só de uma revisão bibliográfica, mas das experiências das autoras na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mais especificamente na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen): uma, antropóloga, realizou uma etnografia, entre os anos de 2008 e 2010, voltada a compreender as práticas e os conceitos fundamentais envolvidos na constituição e manutenção dos bancos de germoplasma; a outra, pesquisadora da instituição, atuou por vários anos no núcleo de conservação de recursos genéticos. Nesse período, empreendeu estudo, com o auxílio de uma estudante da Universidade de Brasília (UnB), que buscou caracterizar, culturalmente, parte dos acessos de mandioca mantidos na coleção de base do Cenargen – estudo que, por um lado, ilustra algumas das dificuldades encontradas para a implementação da gestão compartilhada das coleções ex situ e, por outro, fornece subsídios para pensarmos novos caminhos para a superação das mesmas.
A CONSERVAÇÃO DE RECURSOS GENÉTICOS EX SITU NO BRASIL – O PAPEL DA EMBRAPA Quando a Embrapa foi criada, em 1973, já estava em curso um movimento global pela conservação de recursos fitogenéticos. Criada em 1945, a FAO promoveu uma série de encontros e conferências técnicas, entre as décadas de 1960 e 1970, para discutir as bases científicas e as estratégias mais adequadas para conservá-los. Foi em uma conferência realizada em Roma, em 1967, que, após amplo e controverso debate, ficou decidido que os recursos genéticos deveriam, preferencialmente, ser conservados em locais com ambiente controlado, fora de seu habitat natural, ‘conservação ex situ’, deixando em segundo plano as outras formas de conservação ‘in situ e on farm’ (Santonieri, 2015). As conferências e reuniões sobre o tema que vieram a seguir tiveram o objetivo de estabelecer os critérios científicos a serem adotados para conservação de recursos genéticos ex situ (Pistorius, 1997). A data de criação da Embrapa está no intervalo entre a criação do CGIAR e do Conselho Internacional para Recursos Genéticos Vegetais (IBPGR), organismos internacionais criados a partir das conferências da FAO, realizadas entre 1961 e 1973, que objetivavam equacionar o problema da erosão genética, em um momento de intensa modificação na agricultura, ocasionado pela implementação do modelo da Revolução Verde. A aceleração do processo de perda de diversidade genética observado nesse período fez crescer o interesse pelas variedades locais ‘landraces’ como fontes de genes resistentes a estresses bióticos e abióticos, levando à recomendação expressa da coleta
A conservação on farm é definida como conservação sob cultivo; teve suas primeiras definições elaboradas na década de 1990, como resultado da noção de conservação que passou a ser difundida após a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), em 1992 (Santonieri, 2015). Antes disso, a ciência da conservação operava com dois conceitos fundamentais: a conservação ex situ, na qual as plantas cultivadas são conservadas em bancos de germoplasma, fora do habitat natural, e a conservação in situ, concebida como a conservação de todo um ecossistema, em que a sobrevivência de uma espécie de planta, sem a ajuda humana, se dá pela interação “com outros organismos dentro da comunidade, sendo algumas dessas interações (polinização, dispersão de sementes, simbiose microbiana etc.) cruciais para a sua sobrevivência” (Scariot; Sevilha, 2007, p. 481). A conservação in situ é concebida como a conservação de espécies silvestres em habitats naturais, onde a sua interação com seres humanos é admitida, embora não apareça como central (Scariot; Sevilha, 2007). Dessa forma, a emergência do conceito de conservação on farm, na década de 1990, é importante para legitimar, no campo científico e político, o papel fundamental desempenhado por agricultores na conservação e diversificação dos recursos genéticos vegetais, a partir do seu manejo e uso.
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generalizada de germoplasma dos principais gêneros agrícolas presentes na alimentação humana a partir de 1972, bem como a sua conservação em bancos de germoplasma (Damania, 2008). Seguindo as diretrizes propostas pela FAO e CGIAR, forte ênfase foi dada à conservação ex situ pelo Brasil. O principal reflexo desse movimento em prol dos recursos genéticos no país se deu em 1976, quando foi criado, no âmbito da Embrapa, o Cenargen. Com a missão original focada na conservação dos recursos genéticos para alimentação e agricultura, o Cenargen, inicialmente, teve como objetivo a consolidação das diferentes iniciativas de coleta e conservação de germoplasma já em curso, realizadas por diversas instituições de pesquisa e universidades brasileiras. É preciso salientar que algumas coleções e bancos de germoplasma, hoje sob a responsabilidade da Embrapa, foram criadas e mantidas durante muitos anos em outras instituições. O Banco de Germoplasma de Milho, por exemplo, foi fruto do trabalho realizado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, (ESALQ/USP) em 1952, quando se efetuou, com recursos da Academia Nacional de Ciências (NAS) dos Estados Unidos, o estudo das raças de milho existentes no Brasil (Brieger et al., 1958). Na ocasião, foram coletadas variedades de milho crioulas e indígenas. Essas coletas englobaram mais de 3000 amostras, armazenadas no banco de germoplasma do Departamento de Genética (LNG) da ESALQ/USP, onde foram cultivadas e avaliadas quanto a algumas de suas características morfológicas e agronômicas. Foi só a partir do final da década de 1970 que o Banco Ativo de Germoplasma de Milho (BAG-Milho) passou a ser mantido pela Embrapa Milho e Sorgo (Paterniani et al., 2000). Da mesma forma, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) (primeiro instituto de pesquisa agronômica do Brasil), a Universidade Federal de Viçosa (UFV) (que possui um banco de germoplasma formado inicialmente com recursos da Fundação Rockefeller) e muitas outras
instituições brasileiras e estrangeiras ajudaram a formar o acervo de cerca de 250 mil acessos que hoje compõem as coleções e bancos de germoplasma que se encontram hoje sob a responsabilidade da Embrapa. Com a criação do Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen) e a implantação de instalações com câmaras frias, capazes de armazenar sementes em condições de longo prazo (temperaturas de -20ºC), assim como a estrutura quarentenária para receber germoplasma introduzidos de outros países, a Embrapa passou a uma posição estratégica para a conservação ex situ no país. Seus profissionais passaram a ser cada vez mais requisitados para participar de coletas de germoplasma e material botânico (exsicatas) no Brasil e na América do Sul. Tais expedições de coleta, muitas vezes, contavam com especialistas internacionalmente reconhecidos, integrando o esforço internacional de resgate e salvaguarda de germoplasma – em um momento em que os recursos genéticos eram considerados patrimônio da humanidade e circulavam livremente entre os países.
A CONSERVAÇÃO EX SITU E O PROCESSO EVOLUTIVO DAS PLANTAS CULTIVADAS A justificativa para coletar espécies e variedades de plantas domesticadas e seus parentes silvestres centrase no próprio processo de estreitamento da base genética vegetal, consequência do cultivo extensivo de determinadas culturas agrícolas desenvolvidas a partir de um pequeno grupo de genótipos, largamente utilizados em diferentes partes do mundo pela agricultura industrial, incentivando também a substituição do germoplasma tradicional, inclusive entre pequenos agricultores familiares (Walter et al., 2005). O estreitamento da base genética nos campos de produção alimentar também está relacionado ao baixo número de plantas utilizadas na produção de alimentos. Atualmente, trinta espécies seriam responsáveis por 95% de toda alimentação humana, sendo 75% advindas do cultivo de apenas sete (milho, batata, batata-doce,
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mandioca, cevada, arroz e trigo); número irrelevante frente às estimativas de até 30.000 plantas potencialmente úteis existentes (Walter et al., 2005). No processo de estreitamento genético, não só a diversidade de plantas utilizadas para a alimentação reduziu-se, como também a diversidade de variedades intracultivos. A preocupação da comunidade científica, de que uma praga ou uma doença afetasse variedades amplamente utilizadas pela agricultura industrial, esteve presente desde o início da Revolução Verde – como aconteceu nos episódios de fome ocorridos nos séculos XIX e XX4. A conservação da variabilidade de plantas em câmaras de conservação ex situ adquire, assim, relevância não apenas como base para os programas de melhoramento, que buscam alto desempenho e maior produtividade, como também constitui uma questão de segurança alimentar e garantia da contínua utilização das espécies vegetais mais importantes para a alimentação humana. Embora o modelo da conservação ex situ tenha, historicamente, recebido destaque no combate ao processo de erosão genética, constituindo-se em um poderoso aliado para salvaguarda desse patrimônio, tal metodologia ‘estática’ tem seus limites. Há uma disputa no interior do próprio campo científico sobre a eficiência de um modelo de conservação ‘estático’ (objetivo da conservação ex situ), que não considera as interações dinâmicas entre o ecossistema, as plantas e os seres humanos ao longo do tempo. Esse conflito está presente na FAO desde o fim da década de 1950. Na Conferência Técnica da FAO/IBP de 1961, por exemplo, os especialistas resolveram estabelecer como projeto piloto um Centro em Izmir (Turquia), cuja abordagem gene-ecológica era a base conceitual da conservação. Ali, buscava-se uma conservação atrelada à pesquisa sobre a manutenção dos mecanismos naturais de resistência das plantas. Tal
perspectiva, conhecida como ‘resistência poligênica’, orienta-se pela teoria de que a resistência é formada a partir de um complexo de genes em interação com o ambiente, e não a partir de um único gene (ou seja, baseia-se na teoria de que a resistência das plantas se desenvolve a partir de um ‘complexo de genes de base local’, e por isso o foco era a conservação desses grupos de genes - gene pools). Por esse motivo, a abordagem gene-ecológica não agradou os financiadores do projeto (programas de melhoramento dos países industrializados interessados na descoberta de ‘genes promissores’) e essa corrente científica foi marginalizada (Santonieri, 2015). Pistorius (1997) afirma que a abordagem geneecológica, que pode ser definida como uma junção da teoria genética e da teoria ecológica no estudo das populações de plantas cultivadas em relação aos seus habitats, dominou o debate nas décadas de 1950 e 1960. Segundo o mesmo autor, quando da recomendação da conservação ex situ como estratégia dominante, cientistas não discordaram ‘em princípio’ da preponderância inicial desse modelo de conservação, por representar uma maneira de amortizar o processo de erosão genética (Pistorius, 1997). Portanto, a metodologia da conservação ex situ tem se revelado insuficiente, por ser fundamentada na corrente hegemônica que domina o debate desde fins da década de 1980. Assim, tem-se considerado cada vez mais a necessidade de conservar o germoplasma também junto aos agricultores familiares e às populações tradicionais, que realizam uma agricultura diversificada, voltada para a garantia de alimentação da própria família. De fato, os agricultores familiares e tradicionais manejam seus recursos de modo autônomo, pelas trocas de variedades e conhecimentos associados. Tal agricultura, que é parte de um sistema cultural, permite a seleção, pelos
A mais conhecida talvez seja a que ocorreu na Irlanda entre os anos de 1845 e 1851, quando um fungo atacou as plantações, matando, aproximadamente, dois milhões de pessoas. Outros casos mais recentes, como o que ocorreu no sul dos Estados Unidos com o milho, em 1970, e com o trigo, na União Soviética, durante o ano de 1972, serviram de alarde para a comunidade científica internacional (Mooney, 1987; Damania, 2008).
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agricultores, de materiais resistentes à diversidade das condições de produção e, com frequência, à geração de novas variedades. A integração entre os modelos de conservação ex situ e on farm pode trazer, assim, importantes soluções para um futuro de drásticas mudanças climáticas. Segundo Nodari (2007), quando uma cultivar 5 qualquer é reintroduzida em seu local de origem depois de dez, quinze anos conservada ex situ, muito provavelmente não se apresentará em plenas condições de responder positivamente às pressões do ambiente - que se modificaram desde então. Quando mantidas sob cultivo, as plantas estão interagindo com micro-organismos (como fungos, bactérias, vírus), fatores climáticos (temperaturas, seca etc.), insetos e diferentes tipos de solo; de forma dinâmica, são selecionadas para as novas condições dos ecossistemas dos quais são parte, além das demandas de agricultores interessados no seu desenvolvimento e perenidade, orientados por razões e usos extremamente diversos. No entanto, como bem coloca Cunha (2009, p. 270), “[...] essa conservação não é obra simplesmente da natureza; gerações de cultivadores foram cruciais para descobrirem o valor das espécies, selecioná-las e mantêlas até nossos dias [...]”. A contribuição das populações tradicionais para a conservação, o desenvolvimento e a disponibilidade de recursos genéticos vegetais foi reconhecida pela FAO de forma explícita no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFAA/ FAO), adotado em 2001. O documento, que é um
instrumento jurídico de direito internacional, reconhece o papel dos agricultores tradicionais não apenas do ponto de vista da manutenção do processo evolutivo das plantas, mas considera também a capacidade intrínseca dos sistemas agrícolas tradicionais em ‘criar’ diversidade6. Porém, na visão dominante, não há conservação tradicional, já que agricultores tradicionais não vinculados a instituições científicas não têm sua atividade regulada por elas e não a formulam como meta. A atividade dos agricultores tradicionais, de fato, é guiada ao mesmo tempo pela preocupação em conservar variedades boas, e de investigar e explorar variações, atuando de maneira paralela e articulada por redes de vizinhança, intercâmbio e parentesco. Dessa forma, a variação nas plantas cultivadas, embora seja a fonte de diversificação em sistemas agrícolas tradicionais, pode ser percebida como ‘contaminação’ do ponto de vista da conservação em coleções científicas. Assim, temos como pano de fundo uma profunda divergência entre estratégias científicas e técnicas, a saber: uma estratégia de imobilização da mudança biológica, por um lado; e estratégias de diversificação, elaboradas por redes dinâmicas, pelas quais circulam materiais genéticos e informações em tempo real, por outro. Conforme o Ministério do Meio Ambiente (2006, p. 9): Na prática agrobiodiversidade e diversidade cultural sempre caminharam juntas, par e passo. Nas comunidades locais isoladas, na agricultura familiar tradicional e nas populações indígenas, o cultivo e o manejo de componentes da biodiversidade sempre estiveram associados às praticas culturais, religiosidade e ao desenvolvimento de tecnologias próprias de produção.
A Lei Nº 9.456, de 25 de Abril de 1997, assim a define (Art. 3, inciso IV): Cultivar: a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outros cultivares conhecidos por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos (Brasil, 1997). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9456.htm>. Acesso em: 23 out. 2016. 6 Em sua Terceira Parte, Artigo 9º Direito dos Agricultores, o Tratado estabelece: 9.1. As Partes Contratantes reconhecem a enorme contribuição que as comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do mundo, particularmente nos centros de origem e de diversidade de cultivos, têm dado e continuarão a dar [...] para a conservação e para o desenvolvimento dos recursos fitogenéticos que constituem a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo (Brasil, 2008). Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6476.htm>. Acesso em: 14 jun. 2013. 5
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O próprio termo “sociobiodiversidade”, que “expressa a interrelação entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais” 7 (MDA et al., 2009, p. 5), tem como base a ideia subjacente de que os diversos povos e comunidades locais existentes no Brasil conservam os recursos da biodiversidade, onde os sistemas agrícolas tradicionais são modelados pelas culturas locais em termos de escolha de variedades, padrões alimentares, normas e conceitos, que orientam as escolhas das populações locais.
A constituição do estoque de variedades está ligada às regras de casamento e às posteriores trocas. As normas de constituições das linhagens são exogâmicas, patrilineares e patrilocais: uma mulher casa-se com um homem que pertence a um grupo diferente do seu e passa a morar na aldeia do marido. Pode se tratar de exogamia linguística no caso dos grupos da língua Tukáno; de clã, no caso dos Baníwa; ou de aldeia, no caso dos Baré. A mulher casada residirá na aldeia do marido e receberá, em geral, de sua sogra, o primeiro estoque de variedades. Em seguida, ela o modificará em função de suas viagens a sua aldeia de origem ou por ocasião de visitas a parentes e aliados [...] (Emperaire, 2008b, p. 347).
SOCIODIVERSIDADE E DIVERSIDADE AGRÍCOLA Estudos têm revelado a riqueza dos sistemas tradicionais de cultivo (Begossi, 2006; Mathias; Novion, 2006; Emperaire, 2008b; Cunha, 2012). No Alto Rio Negro (AM), por exemplo, é possível encontrar uma roça com mais de 40 variedades de mandioca. A diversidade das variedades assegura uma produção contínua ao longo do ano, bem como uma diversidade de produtos alimentícios (farinhas, gomas para beiju, bebidas fermentadas etc).
Os sistemas agrícolas do Rio Negro (AM) demonstram como, para as referidas populações tradicionais, cultura e agricultura são dimensões inextricáveis; tais exemplos demonstram como a circulação de manivas de mandioca produzem relações sociais, ao passo que são também produtos dessas relações (Cunha, 2012). É interessante notar, ainda, que o próprio conceito de variedade de plantas cultivadas se manifesta de maneira diferente entre povos tradicionais e cientistas de instituições de pesquisa. Enquanto o geneticista tem implícita a noção de homogeneidade, Emperaire (2008b, p. 339-340) ressalta que
[...] As variedades respondem a critérios diversos – cor, gosto, facilidade de descascar, teor em fécula, tempo de maturação, entre outros –, que se sobrepõe ao critério de produtividade. A diversidade permite plantar em diversas condições ecológicas, resistir a pragas e predadores, é um fator de estabilidade dos sistemas agrícolas e, portanto, um fator de segurança alimentar. Ela também tem uma dimensão cultural. (Emperaire, 2008a, p. 420).
Um sistema agrícola tradicional é composto por diferentes dimensões da vida social e cultural de uma comunidade, o que acaba por influir na diversificação germoplasma de mandioca. Na região do Alto e Médio Rio Negro (AM), que abriga vinte e duas etnias indígenas, de três famílias linguísticas diferentes:
[...] a variedade é um conceito local cuja abrangência depende do contexto cultural. [...] Para o geneticista, uma variedade de mandioca [...] é um clone, isto é, é constituída por um conjunto de indivíduos geneticamente idênticos. Para o agricultor, uma variedade será um conjunto de indivíduos com características morfológicas suficientemente próximas e suficientemente diferentes das de outros conjuntos, para que se constitua uma unidade de manejo e seja reconhecida por um nome que lhe seja próprio. Assim, a análise genética de variedades de mandioca coletadas no rio Negro ou na Guiana mostrou que sob um mesmo nome encontrava-se não um, mas vários clones mais ou menos próximos, constituindo metapopulações. O conceito de variedade não é, portanto, um referencial absoluto: trata-se da unidade mínima de percepção e manejo da diversidade biológica [...]
Ver <http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/user_arquivos_64/PLANO_NACIONAL_DA_SOCIOBIODIVERSIDADE-_ julho-2009.pdf>. Acesso em: 25 out. 2016.
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Temos acompanhado, principalmente nas duas últimas décadas, um processo de reconhecimento cada vez maior do papel dos agricultores, não só no interior do programa de conservação dos recursos genéticos, mas também como atores fundamentais na produção de conhecimentos sobre a agrobiodiversidade. A emergência e valorização cada vez maior das etnociências, por exemplo, pode ser um indicativo do reconhecimento, por parte da comunidade científica, de todo um corpus de saberes produzido pelas populações tradicionais. A etnobiologia, a etnobotânica, a etnoentomologia etc. buscam, acima de tudo, compreender o conhecimento que diferentes povos e culturas construíram sobre a natureza: como se dá sua percepção acerca dos organismos vivos, das plantas, dos insetos; como se relacionam com o meio ambiente; e como elaboram um sistema classificatório, sobre o qual constroem o seu conhecimento e a sua relação com os elementos da natureza (Begossi, 1993). Segundo Begossi et al. (2006, p. 13-14), Os estudos sobre diversidade agrícola ou a chamada agrodiversidade têm revelado uma riqueza ímpar de espécies e variedades cultivadas por populações humanas indígenas e tradicionais em diferentes partes do Brasil. [Uma sociobio] diversidade que podem manter ativos processos evolutivos, como a manutenção da riqueza das variedades de mandioca, por exemplo. Neste sentido, estudos da interação homem–ambiente–planta cultivada podem revelar que os agricultores podem estar manejando suas roças dinamicamente ao longo do tempo, influenciando a dinâmica evolutiva das espécies.
Por outro lado, também observamos que, desde a fundação do Cenargen, em 1976, foram grandes os avanços do Brasil no que se refere à consolidação de um sistema de conservação ex situ e à formação de importantes coleções de germoplasma, bem como ao fortalecimento da pesquisa agropecuária nacional. No entanto, a conservação on farm (sob cultivo) e a conservação ex situ continuam a ser tratadas como formas isoladas de conservação, sem ações políticas ou conceitualizações que as pensem ‘em conjunto’, admitindo, inclusive, os constantes e dinâmicos processos de interação entre eles.
RECURSOS GENÉTICOS: GESTÃO, RASTREABILIDADE E REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS O principal instrumento administrativo utilizado pela Embrapa para gestão dos atores responsáveis pela manutenção da rede de bancos de germoplasma é a Supervisão de Curadorias de Germoplasma, criada em 1993. Os pesquisadores responsáveis por enriquecer os bancos e coleções de germoplasma, chamados ‘curadores’, são os mesmos que respondem pela manutenção do poder germinativo das sementes, pela multiplicação, caracterização, regeneração e documentação dos acervos. Os curadores, em muitos casos, atuam também como melhoristas (Santonieri, 2015) e estão atentos aos acessos dos bancos de germoplasma que podem ser promissores para determinada característica de interesse no contexto dos programas de melhoramento. Dessa forma, a Embrapa é, ao mesmo tempo, responsável pela conservação de germoplasma e usuária desses recursos em seus programas de pesquisa. Como mostra Santonieri (2015), embora haja um clara definição das atribuições dos curadores, pesquisadores e melhoristas, muitas vezes essas atribuições se sobrepõem. Aqui, lembramos que, em muitos bancos de germoplasma, boa parte dos acessos armazenados provém de germoplasmas gerados pelos programas de melhoramento das instituições nacionais e internacionais, principalmente, cultivares melhoradas antigas e linhagens elite. Na Embrapa, os programas de melhoramento têm usado, com maior interesse, tais germoplasma. Acessos de coletas têm sido pouco explorados pelos programas de melhoramento da Embrapa, devido à falta de uma melhor caracterização agronômica do material de coleta. Dentre as atividades exercidas pelos curadores de germoplasma na Embrapa, a documentação dos acessos é uma das mais complexas. A Empresa construiu um sistema de informação, denominado Sistema Brasileiro de Informação de Recursos Genéticos (Sibrargen), para reunir as informações sobre os acessos das coleções e bancos de germoplasma que, desde 1976, estavam em disquetes
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com cada um dos curadores (Embrapa et al., 2008). Graças ao sistema elaborado, as informações da coleção de longo prazo da Embrapa puderam ser organizadas, mas o mesmo não aconteceu para os bancos de germoplasma da Empresa espalhados por todo o Brasil. Os curadores tiveram diferentes dificuldades para adotar o Sibrargen e alguns deles optaram por desenvolver sistemas próprios de informação, como o Sistema de Gerenciamento dos Bancos Ativos de Germoplasma (BAGs) da Embrapa Trigo, que disponibiliza as informações dos acessos conservados naquela unidade da Embrapa, localizada em Passo Fundo (RS) (Bonow et al., 2008). Embora esse constitua um bom exemplo de gestão dos recursos genéticos, a maior parte das informações sobre os acessos em outras unidades da Empresa continuam sendo mantidas pelos pesquisadores em arquivos pessoais ou sendo divulgada, de forma parcial, em publicações científicas. A base de dados brasileira sobre a coleta de germoplasma também não foi historicamente organizada, também pela falta de uma política científica voltada a fomentar e a valorizar a pesquisa básica com recursos genéticos. A maior fonte de registro sobre as coletas realizadas no Brasil ainda está em cadernetas pessoais e em relatórios de viagens, que, na maior parte das vezes, estão restritos às instituições de origem de seus coletores. Algumas dessas instituições foram extintas ou drasticamente transformadas, o que dificulta resgatar a memória da formação das coleções de germoplasma no Brasil. Por certo, houve muitas expedições, mas a literatura sobre o assunto é escassa, está dispersa e muitas vezes negligenciada, particularmente porque os coletores de germoplasma, ao contrário daqueles que faziam aquisições para o herbário, quase nunca vinculavam seus nomes às plantas que coletavam (Walter et al., 2005). O TIRFAA torna obrigatório o desenvolvimento de estratégias que viabilizem não só a rastreabilidade do germoplasma utilizado em programas de melhoramento,
mas estratégias que possibilitem aos agricultores “o direito de participar na tomada de decisões, em nível nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura” (Brasil, 2008, art. 9)8. Alguns curadores de bancos de germoplasma deram uma posição de destaque em suas coleções para os acessos coletados junto a agricultores tradicionais e indígenas, como no caso dos BAGs de milho (Teixeira, 2008) e de arroz (Rangel, 2008) localizados em Sete Lagoas (MG) e Santo Antonio de Goiás (GO), respectivamente. Na coleção de arroz, por exemplo, cerca de 2.700 acessos foram identificados como variedades tradicionais do Brasil. Se, na época da coleta, o conhecimento tradicional tivesse sido considerado, importantes informações teriam sido agregadas aos acessos, possibilitando não só encurtar o caminho para o desenvolvimento de novos produtos e tecnologias – ao desonerar a instituição de pesquisa agronômica da necessidade de realizar pesquisa básica – mas, tão importante quanto, possibilitaria a solicitação de autorização de uso e repartição de benefícios no caso dos materiais coletados depois de 2001. Entretanto, tais ações são ainda isoladas e dependem de motivações individuais de pesquisadores e curadores, mesmo quando existe a identificação do grupo dos agricultores e povos tradicionais que estavam conservando e utilizando o material no momento da coleta.
O EXEMPLO DA MANDIOCA: DO RIO NEGRO (AM) AOS BANCOS DE GERMOPLASMA Como exercício de identificação dos principais desafios para conservar os recursos genéticos de forma complementar, desenvolvemos, no Cenargen, a experiência de comparar, com o auxílio de uma estudante da Universidade de Brasília (UnB), a base de dados da conservação on farm de mandioca, contida no “Dossiê de Registro do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro” (Emperaire, 2010) - apresentado
Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6476.htm >. Acesso em: 20 out. 2016.
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ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no processo de registro do sistema agrícola local como patrimônio cultural imaterial do Brasil - e os dados do banco de germoplasma de mandioca da Embrapa Amazônia Ocidental, unidade de pesquisa localizada em Manaus (AM). Os resultados obtidos evidenciaram a grandeza do desafio de promover complementaridades entre os dois sistemas, uma vez que os registros realizados pelas populações indígenas do Rio Negro estão voltados para o uso dos materiais, enquanto os descritores utilizados na base de dados da conservação ex situ focam, principalmente, na sua caracterização e diferenciação intraespecífica. Segundo a estudante da UnB e autora do estudo-experiência: [...] os bancos de dados da Embrapa, ou sistema de registro dos acessos de germoplasma, são estruturados por meio de dados de passaporte e descritores de cunho técnico, catalogando amostras vegetais através de um código identificador. Os descritores utilizados pelo Dossiê de registro do [Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro] diferem daqueles utilizados pela Embrapa. Esta diferença de abordagem desfavorece a confrontação da variabilidade das coleções ex situ com a variabilidade do SAT/RN, cujos descritores são basicamente morfológicos e se utilizam de critérios descritivos baseados na origem social, geográfica ou individual em suas denominações, além da caracterização social do sistema. (Emperaire, 2010 apud Medeiros et al., 2014, p. 69).
Diferenças de linguagem e de abordagem entre as duas formas de registro também constituem um desafio para a comparação dos dados disponíveis. A conservação ex situ oferece uma caracterização das variedades acessadas, baseada em parâmetros botânicos e genéticos, mas não considera aspectos culturais. O “Dossiê de registro do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro”, por sua vez, oferece a caracterização cultural de um conjunto de variedades conservadas on farm, com suas categorias nativas de designação, e usos pelos povos que as manejam, mas sem integrar parâmetros que permitam a sua comparação com o registro mantido pela Embrapa sobre variedades de mandiocas acessadas na região, a não ser o nome.
As coordenadas geográficas dos pontos de coleta que constam da base de dados do banco de germoplasma da Embrapa podem contribuir para uma identificação cultural preliminar das variedades, por exemplo, dos acessos obtidos em terras indígenas do Rio Negro. Caso essa hipótese se confirme, será possível, por aproximações sucessivas, a abertura de uma interface entre os dados disponíveis na EMBRAPA e aqueles do registro do IPHAN, com novos desdobramentos para a discussão quanto aos desafios da integração dos esforços de conservação ex situ e on farm.
A CARACTERIZAÇÃO CULTURAL E A GESTÃO COMPARTILHADA DOS RECURSOS GENÉTICOS: UM CAMINHO PARA A INTEGRAÇÃO ENTRE AS DIFERENTES MODALIDADES DE CONSERVAÇÃO? A partir do exemplo das mandiocas descrito acima, verificamos o quanto os sistemas agrícolas tradicionais e o sistema agrícola baseado no monocultivo de variedades melhoradas seguem conceitualmente distantes, com critérios próprios e singulares de melhoramento e seleção de variedades, bem como dinâmicas próprias de circulação do material genético. No entanto, embora os sistemas pareçam mutuamente estranhos e conceitualmente excludentes, não é possível negar sua relação, já que o germoplasma vegetal de fato circula ‘entre’ eles. Como reconhecer essa relação? Quais instrumentos atualmente em vigor são capazes de dar visibilidade às atividades realizadas por agricultores tradicionais e ao mesmo tempo reconhecer o seu papel no que toca à evolução, à conservação e ao uso dos recursos genéticos? A caracterização cultural realizada no Rio Negro e a experiência desenvolvida por nós na Embrapa (em parceria com a UnB) constitui um bom exemplo a ser seguido, apresentando um esforço concreto de aproximação entre as linguagens e abordagens ‘tradicionais’ e ‘científica’. O “Dossiê de Registro do Sistema Agrícola do Rio Negro” apresenta uma riqueza enorme de informações culturais atreladas às variedades de mandioca, possibilitando
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o suporte e o desenvolvimento da experiência pioneira descrita acima. Tal iniciativa pode ser utilizada não só para apontar os principais desafios de melhor identificar os detentores dessas variedades, como para propor uma caracterização das formas de manejo no interior do sistema de conservação ex situ. É possível começar o trabalho a partir da sobreposição das coordenadas geográficas presentes nos dados de passaporte das espécies e variedades coletadas pela Embrapa, com os mapas de informação socioambiental georreferenciada (alimentados e disponibilizados pelo Instituto Socioambiental – ISA9, bem como pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada – RAISG10). A partir de uma primeira identificação dos materiais conservados ex situ, provenientes de áreas reconhecidamente ocupadas por povos e comunidades tradicionais, seria possível iniciar o processo de identificação dos povos e comunidades dos quais o material provém, para, em seguida, realizar projetos de pesquisa que, em colaboração com as populações locais, investigassem as dinâmicas envolvidas na produção e na conservação on farm dos materiais. A partir dos dados georreferenciados, poderá ser reconhecida a contribuição daquele povo/ comunidade para o desenvolvimento do material conservado ex situ. Tal abordagem permitiria também avaliar as dinâmicas de erosão/transformação do acervo de plantas cultivado segundo uma abordagem diacrônica. Após essas etapas, os termos de uma gestão compartilhada – se essa for precisa em situação de risco de perda – do material então conservado nos bancos de germoplasmas seriam definidos para o caso dos materiais coletados após 2001, incluindo ou não a possibilidade de uso desse material para pesquisa e prospecção. E a gestão compartilhada, o que seria? Atualmente, a gestão das coleções públicas de germoplasma está sob a tutela de instituições públicas com mandato para curadoria
das coleções. O Brasil não conta com um sistema de gestão compartilhada que favoreça ações colaborativas na gestão das coleções públicas, envolvendo os diferentes atores sociais interessados. É sabido o potencial que os sistemas de gestão compartilhada têm para aperfeiçoar o sistema de governança de recursos naturais, permitindo compartilhar recursos e responsabilidades. Esta modalidade já vem sendo aplicada, em alguma medida, na gestão de áreas protegidas, que são os principais espaços de conservação in situ da biodiversidade silvestre. Considerando a importância estratégica dos recursos genéticos para a agricultura e a alimentação, e a necessidade de maior coordenação entre as estratégias de conservação ex situ e manejo on farm da agrobiodiversidade, se faz necessário adotar inovações no sistema de gestão dos bancos de germoplasma. A adoção de mecanismos de gestão compartilhada das coleções de recursos genéticos conservados ex situ é um passo fundamental para que se intensifiquem as ações colaborativas e se avance na governança democrática desses recursos. Já está em curso a implementação de um projeto piloto no Nordeste de gestão compartilhada de recursos genéticos conservados ex situ, desenvolvido pela Embrapa Semiárido e a Articulação do Semiárido (ASA), a partir de um amplo processo de consultas a curadores, melhoristas, representações de redes de guardiões e guardiãs da agrobiodiversidade e de organizações da sociedade civil, que visam a elaborar protocolos para a gestão compartilhada. As propostas serão negociadas e validadas com setores de governo, com mandato para criação de um Comitê Gestor. Os bancos de germoplasma que participarão da experiência piloto serão dotados de suporte necessário para que possam adequar-se ao novo sistema de gestão. Os resultados da experiência piloto serão sistematizados, analisados e disseminados, gerando subsídios para a elaboração de uma proposta de normativa
Ver <https://www.socioambiental.org/pt-br/mapas>. Acesso em: 20 out. 2016. Ver <http://raisg.socioambiental.org/>. Acesso em: 20 out. 2016.
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para a extensão do modelo de gestão compartilhada a toda a rede de bancos públicos de germoplasma. Assim, a caracterização cultural e mecanismos de gestão compartilhada dos recursos genéticos vegetais podem representar um avanço no reconhecimento e institucionalização da contribuição que os agricultores vêm dando ao programa de conservação e à pesquisa desenvolvida pelas instituições científicas – seja mantendo os recursos genéticos no plano local em constante adaptação, seja cultivando uma diversidade de ‘genes resistentes’, concebidos pela comunidade científica como uma fonte importante de material genético para as expedições de coleta e enriquecimento dos bancos de germoplasma –, fator essencial para a segurança alimentar do país, sua economia, autonomia e soberania. Se, por um lado, vivemos a era da biotecnologia, cujo valor econômico dos recursos genéticos para o mercado é incalculável, por outro lado não é possível criar a vida em laboratório (Santos, 2003); toda tecnologia agrícola parte de variedades preexistentes, portadoras de genes resistentes a estresses bióticos e abióticos de suma importância para a pesquisa agropecuária e a soberania alimentar dos países – e o Brasil é uma das nações que possui recursos ‘técnicos’ e ‘biológicos’ para criar a sua ‘estratégia local’ de conservação e que está, com experiências inovadoras, explorando novos marcos na aproximação do on farm e do ex situ. De modo mais geral, trata-se de: [...] achar os meios institucionais adequados para em um só tempo preencher três condições: reconhecer e valorizar as contribuições dos saberes tradicionais para o conhecimento científico; fazer participar as populações que as originam nos seus benefícios; mas sobretudo, e essa é a mais complexa, preservar a vitalidade da produção do conhecimento tradicional [...] (Cunha, 2009, p. 309).
Tal empreendimento traria benefícios para todos os agentes envolvidos, de agricultores e suas comunidades a pesquisadores, melhoristas e instituições de pesquisa. Não apresentamos aqui uma solução para a questão da repartição de benefícios, cuja complexidade todos
conhecemos; apresentamos uma tentativa de avançar na questão do ‘reconhecimento dos direitos’ de agricultores, que contemplem, efetivamente, todos os envolvidos no trabalho com os recursos genéticos, bem como uma tentativa de avançar, em termos científicos, em direção a uma melhor e mais eficiente conservação de tais recursos. Somar a caracterização cultural e a gestão compartilhada da agrobiodiversidade aos trabalhos de avaliação e caracterização morfológica e molecular que já ocorrem no interior das instituições de pesquisa pode ser um caminho para que conhecimentos científicos e tradicionais andem lado a lado. A caracterização cultural e a possibilidade de uma gestão compartilhada dos acessos de germoplasma, mediante acordos com as comunidades locais, permitiriam o depósito de um dado material genético, juntamente com informações sobre sua utilização, facilitando a identificação de genes raros, relacionando fenótipos a genótipos específicos – um trabalho que é, ao mesmo tempo, custoso e valioso e que muito interessa à pesquisa científica. Iniciaria, talvez assim, uma conscientização mais contundente entre os pesquisadores do setor agrícola e gestores públicos acerca do papel e da vitalidade dos sistemas agrícolas tradicionais para a conservação dos recursos genéticos, ao formalizar, institucionalmente, a contribuição dos povos indígenas e de comunidades de agricultores tradicionais no interior do sistema ex situ de conservação – aliando assim, os interesses e estratégias locais às da sociedade mais ampla. Sem dúvida, pode ser um passo em direção a um novo paradigma no interior da ciência da conservação, conectando as estratégias locais de conservação com as políticas oficiais de desenvolvimento agrícola; contudo, é preciso garantir a vitalidade dos sistemas agrícolas tradicionais, que são, ao mesmo tempo, sistemas culturais. Interessante é perceber que, do ponto de vista do processo de construção do conhecimento sobre a natureza e a agricultura, não é desejável separar por completo o papel dos agricultores daquele desempenhado por pesquisadores alocados em centros e instituições de pesquisa. Nesse
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sentido, é urgente assumir que o conhecimento tradicional sobre a agricultura é também ciência, expressão de outros processos e práticas, construído a partir de uma lógica diferenciada, mas que merece, contudo, o devido lugar dentro do quadro da conservação dita científica.
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Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará) Hunting, preparing, and eating game meat: alimentary practices among Quilombolas at the Ipaú-Anilzinho Extractive Reserve, Pará State Rodrigo Augusto Alves de FigueiredoI, Flávio Bezerra BarrosI I
Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil.
Resumo: A caça de animais silvestres tem desempenhado um papel importante para a reprodução física e simbólica de famílias rurais que vivem em diferentes regiões tropicais do planeta. Com efeito, muitas dimensões do uso de recursos cinegéticos como fonte de alimentação ainda não foram suficientemente estudadas, sobretudo dos pontos de vista da Antropologia e da Etnoecologia. Tais dimensões, com frequência, são ignoradas nas intervenções de conservação da biodiversidade. Este artigo tem por objetivo analisar o uso da fauna silvestre em práticas alimentares por famílias da comunidade quilombola de Joana Peres, localizada na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho, uma unidade de conservação situada no município de Baião, Pará, Amazônia brasileira. Conduzimos o estudo a partir dos pressupostos da Etnoecologia. Destacamos os elementos de ordem social e cultural que norteiam os processos de obtenção, preparo e consumo de alimentos a partir da atividade cinegética. Empregamos os métodos da observação participante e entrevistas abertas e semiestruturadas. Interpretamos os dados tanto de modo qualitativo como quantitativo. Particularmente, para cada uma das espécies citadas procuramos calcular o índice de Valor de Uso (VU), que possibilita demonstrar o grau de importância relativa das espécies conhecidas localmente. O estudo evidenciou que a atividade cinegética envolve tanto aspectos nutricionais como socioculturais, uma vez que os recursos faunísticos fornecem proteína e as práticas alimentares são permeadas por diferentes processos que incluem costumes, imaginários, sociabilidades, tabus e modos de preparo. Palavras-chave: Caça. Antropologia da alimentação. Etnoecologia. Conhecimento tradicional. Quilombolas. Amazônia. Abstract: Hunting of wild animals has played a significant role in the physical and symbolic reproduction of rural families living in various tropical regions of the planet. Indeed, many dimensions of using cynegetic resources as a source of human food have not been sufficiently studied, yet, above all from the viewpoints of Anthropology and Ethnoecology. Such dimensions are often overlooked in biodiversity conservation interventions. This article aims to analyze the use of wild animals in feeding practices among families in the quilombola community of Joana Peres, located in the Extractive Reserve Ipaú-Anilzinho, a conservation unit within the municipality of Baião, Pará, Brazilian Amazon. We conducted the study by using Ethnoecology postulates. We highlight elements having a social and cultural nature that guide the procedures for obtaining, preparing, and eating food through the cynegetic activity. We employed the methods of participant observation and semi-structured and open interviews. We interpret data both qualitatively and quantitatively. Particularly, for each of the species mentioned we seek to calculate the index of Use Value (UV), which allows to demonstrate the degree of relative importance of locally known species. The study has shown that the cynegetic activity involves both nutritional and socio-cultural aspects, since wildlife resources provide protein and the dietary practices are permeated by various processes including habits, imaginary, sociability, taboos, and preparation modes. Keywords: Hunting. Anthropology of food. Ethnoecology. Traditional knowledge. Quilombolas. Amazonia.
FIGUEIREDO, Rodrigo Augusto Alves de; BARROS, Flávio Bezerra. Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 691-713, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300009. Autor para correspondência: Flávio Bezerra Barros. Universidade Federal do Pará. Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural Rua Augusto Corrêa, n. 1, Cidade Universitária José da Silveira Netto, Guamá. Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 (flaviobb@ufpa.br). Recebido em 15/04/2015 Aprovado em 25/07/2016
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Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará)
INTRODUÇÃO Os animais silvestres têm constituído uma fonte de proteína importante na história evolutiva humana e nas mais diferentes culturas. Estudos nesse sentido têm observado e descrito a caça como uma prática cotidiana em várias partes do mundo (Beltrán, 1966; Linares, 1976; Cooke, 1981; Godelier, 1992; Shepard Jr., 2014). Um dos aspectos que têm aflorado a partir desses estudos é a grande diversidade de usos da fauna silvestre, ligados à evolução cultural na relação homem/fauna, embora a alimentação de subsistência continue sendo o mais representativo. Na África, por exemplo, os recursos faunísticos servem como a maior fonte de alimento para muitas famílias rurais que vivem no Sul do Sahara (Asibey, 1974) e na República do Congo (De Merode et al., 2004). Não obstante, estudos feitos no México identificaram que o consumo de diversas espécies de caça tem considerável relevância para subsistência e reprodução de comunidades rurais localizadas na região de Quintana Roo (Jorgenson, 1993) e na Península de Yucatán (Santos-Fita et al., 2012). Na América do Sul, muitos grupos étnicos, tais como os povos indígenas, também dependem inteiramente da fauna silvestre para adquirir a energia necessária à sua sobrevivência (Esser, 1979; Ojasti, 2000). Neste ponto, é de se destacar que a caça está inserida numa rede de escolha e utilização de alimentos altamente influenciada pelos padrões ecológicos, econômicos e culturais que regem seu contexto social. No entanto, temse pouco conhecimento sobre os diferentes aspectos que estruturam e regulam o uso da fauna silvestre em práticas alimentares, especialmente entre os povos tradicionais do Brasil. Tem-se uma grande carência de estudos que incorporem melhor a compreensão da caça como uma atividade que estabelece conexões entre a ordem material e imaterial nos modos de apropriação da natureza, tendo em conta que as relações dos seres humanos com seus ambientes abrangem questões de ordem perceptiva, cognitiva e prática sobre o território (Descola, 1998; Viveiros de Castro, 2002).
Estudos antropológicos sobre a alimentação como parte da cultura de um grupo humano têm revelado importantes descobertas e observações sobre a forma de produção, preparo e consumo de alimentos, demonstrando que o ato de se alimentar não responde apenas à satisfação de uma necessidade biológica (Richards, 1939; Firth, 1961; De Garine, 1995). Essa ideia coloca em discussão o estudo da alimentação como uma maneira de analisar o sistema de subsistência e a relação entre o ambiente e o desenvolvimento cultural (Vila, 2012). Cada grupo humano, ao longo de sua evolução, adaptou-se aos mais diversos tipos de ambientes e sua alimentação, consequentemente, sofreu influências das limitações ambientais e econômicas, mas também da estruturação de regras e interdições próprias, relacionadas com o que é considerado comestível ou não (Costa-Neto, 2011). Depreende-se daí, por exemplo, as interdições alimentares de cunho religioso e cosmológico que pairam sobre o universo dos povos tradicionais e atuam como um elemento de identidade cultural, ainda que reconheçamos toda a complexidade que permeia essa noção. Nessa perspectiva, este artigo apresenta e analisa os resultados de um estudo sobre o uso da fauna silvestre em práticas alimentares por famílias de uma comunidade quilombola da Amazônia brasileira. Do ponto de vista metodológico, utilizamos a abordagem da Etnoecologia, uma ciência interdisciplinar que opera na interface entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais, tendo como objetivo central compreender como as sociedades humanas se interrelacionam com o ambiente natural que está em sua volta (Toledo, 1992; Toledo; Barrera-Bassols, 2009; Nazarea, 1999). A vantagem desta abordagem teórica é a possibilidade de dialogar com o conhecimento local sobre os recursos naturais numa perspectiva que converge com a diversidade de interações homem/animais. Levando em conta os apontamentos acima, as principais questões que procuramos responder com esta pesquisa foram: i) Que características socioculturais estão presentes na atividade de caça e no ato de se alimentar entre os quilombolas da região estudada? ii) Que animais
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são caçados para uso alimentar nesta parte da Amazônia? iii) Que preferências e restrições (tabus) estão incorporados no consumo da caça na região? iv) Como se organiza o trabalho familiar em torno da caça e quais formas de sociabilidade marcam a prática?
ÁREA DE ESTUDO E A COMUNIDADE: OS DESAFIOS DO CAMPO A área deste estudo compreende a comunidade quilombola de Joana Peres (49º 44’ 55” o, 03º 00’ 57” s), localizada na reserva Extrativista (rEsEX) ipaú-Anilzinho, uma Unidade de Conservação (UC) de Uso sustentável, município de Baião, Pará, Amazônia brasileira (figura 1). As rEsEX’s constituem uma das categorias de áreas protegidas do Brasil, originalmente concebida como parte
de uma luta empreendida por seringueiros da floresta Amazônica na década de 1980. Essa luta foi liderada pelo seringueiro e sindicalista Chico Mendes para a garantia de acesso aos recursos naturais e proteção das territorialidades e modos de vida dos povos da floresta. nas rEsEX’s, pelo seu status de UC de uso sustentável, a utilização dos recursos naturais deve se dar de maneira a conciliar tanto as necessidades humanas como os objetivos de conservação e desenvolvimento (Allegretti, 1989). A rEsEX ipaú-Anilzinho foi criada pelo decreto presidencial s/nº de 14 de junho de 2005 como resposta à mobilização empreendida pelos moradores da região de Anilzinho1 para manter a sua organização social em meio aos conflitos fundiários que se potencializaram nas terras de uso comum do grupo na década de 1980.
figura 1. Mapa de localização da área de estudo na reserva Extrativista ipaú-Anilzinho, estado do Pará, Brasil. fonte: iBGE, 2009/ iBAMA, 2009. Elaboração: roberta fortes. 1
Uma terra herdada do processo de formação de comunidades negras rurais no vale do rio tocantins, norte do Brasil, ainda no período colonial.
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Com uma área de 5.816,10 hectares, Ipaú-Anilzinho é delimitada pela margem esquerda do rio Tocantins (sentido Leste) e margem direita do rio Jacundá (sentido Oeste), apresentando uma paisagem típica da floresta amazônica brasileira, com vegetação composta por trechos de florestas de terra-firme, florestas sazonalmente inundadas (várzea) e florestas de campinarana. O clima é quente e úmido com temperatura média anual de 26,3°C e com a maioria das chuvas (2.202-3.000 mm anuais) caindo no período compreendido entre dezembro e maio (inverno). O período de menor incidência de chuvas vai de junho a novembro (verão) (IBAMA; CNPT, 2008). Esta UC da Amazônia brasileira abriga cerca de 600 famílias distribuídas em seis comunidades: Joana Peres, Anilzinho, Xininga, Lucas, Espírito Santo e Fé em Deus. Dentre elas, Joana Peres foi escolhida como campo de estudo para este trabalho por apresentar o maior núcleo populacional, somando 280 famílias que se autorreconhecem como quilombolas, categoria social utilizada para designar povos remanescentes de quilombos que resistiram (e resistem) e lutaram (e lutam) por suas territorialidades desde a época da escravidão no Brasil (Almeida, 2004; Acevedo Marin; Castro, 2009). A comunidade está localizada mais especificamente às margens do rio de mesmo nome, afluente do rio Tocantins, onde as famílias que ali residem desenvolvem diversas atividades que incluem a pesca artesanal, a coleta de Bertholletia excelsa (castanha-do-Brasil), a caça e agricultura de subsistência. O acesso à área pode ser realizado via rodoviária pela BR-422, a partir da cidade de Tucuruí, e via fluvial pelo rio Tocantins, a partir da sede municipal de Baião.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Realizamos o trabalho de campo entre janeiro e junho de 2014, sendo que entre os meses de setembro e dezembro de 2013 já haviam sido empreendidos alguns estudos exploratórios (survey) na área. Como a pesquisa envolveu acesso ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA), houve necessidade de elaborarmos um Termo
de Anuência Prévia (TAP) para obtenção de autorização da pesquisa junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – autorização Nº 10/2014 – Processo 01450.004703/2014-85. Uma vez que o estudo foi conduzido no interior de uma unidade de conservação, um pedido de autorização foi solicitado junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que concedeu permissão para a consecução da pesquisa, conforme autorização Nº 41866-1. Acessamos as informações a partir da técnica da observação participante (Spradley, 1980), que consistiu na experiência de observar a rotina de oito grupos domésticos, cada um composto basicamente por pai, mãe e filhos solteiros. Dessa forma, foi possível acompanhar o trabalho diário de homens e mulheres nos processos de obtenção e preparação de alimentos provenientes da fauna silvestre. Os critérios para a seleção dos grupos estudados foram se as pessoas caçam com finalidade alimentar e a disposição dos seus respectivos membros em participar do trabalho, tendo em conta que no grupo doméstico se reproduzem papéis de parentesco, socialização e cooperação econômica entre os indivíduos que vivem numa mesma unidade (Netting, 1993). Realizamos entrevistas semiestruturadas (Huntington, 2000) com a utilização de questionários. Efetuamos 84 entrevistas junto aos interlocutores, sendo 43 homens e 41 mulheres com idades entre 14 e mais que 60 anos. Cada questionário aplicado priorizou um interlocutor por grupo doméstico, totalizando uma amostragem de 30% do universo das famílias da comunidade estudada. Esta metodologia nos auxiliou a compor uma lista dos animais silvestres utilizados na alimentação pelas famílias quilombolas, bem como a registrar informações gerais acerca da atividade de caça, hábitos, preferências e aversões alimentares. Para o registro das entrevistas, utilizamos gravador digital e diário de campo. As conversas informais durante o trabalho de campo também foram consideradas fundamentais. Interpretamos os dados tanto de modo qualitativo como quantitativo. Particularmente, para cada uma das espécies citadas procuramos calcular o índice de Valor de
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Uso (VU), que possibilita demonstrar o grau de importância relativa das espécies conhecidas localmente. De maneira simplificada, podemos dizer que o VU de uma espécie é calculado através da fórmula: VU = ∑U/n, onde VU: valor de uso da espécie, U: número total de citações por espécie, e n: número de interlocutores, atribuindo-lhe, portanto, um valor que varia de 0 a 1 (Phillips; Gentry, 1993; Rossato et al., 1999). Quanto mais baixo ou próximo de zero, significa que o conhecimento sobre a espécie é pouco difundido entre a comunidade estudada. E quanto mais alto ou próximo de 1, significa que a espécie é conhecida por quase todos os interlocutores. Para a identificação dos animais em termos científicos, consultamos especialistas e guias de biodiversidade. Contamos também com o registro fotográfico, recurso que nos auxiliou na hora da identificação taxonômica.
RESULTADOS E DISCUSSÃO O LUGAR DA CAÇA NA ALIMENTAÇÃO As famílias de Joana Peres desenvolvem diversas atividades produtivas ao longo do ano, sendo estas superpostas e influenciadas por uma combinação de fatores ambientais, econômicos e culturais. Nesse contexto, o regime de alternância de cheias e secas do rio Tocantins, e seu afluente Joana Peres, exerce influência direta na reprodução do calendário da produção rural familiar. Assim, atividades como a colheita da roça, a coleta de frutas, a caça e a pesca assumem, em períodos distintos, um papel mais central ou coadjuvante no âmbito do processo de produção e consumo de alimentos, complementando-se entre si. O cardápio alimentar das famílias em geral é, em termos de proteína, constituído por peixe, padrão observado em vários estudos com populações tradicionais na Amazônia (Murrieta; Dufour, 2004; Murrieta et al., 2004; Adams et al., 2005; Silva, 2007). Com efeito, a atividade de caça apresenta grande importância no período chuvoso (inverno), quando o nível do rio aumenta, dificultando assim o acesso ao pescado devido a sua maior dispersão nas áreas alagadas. Com isso, a carne
de caça se faz mais presente na alimentação das famílias, desempenhando papel relevante para subsistência das mesmas. Na percepção dos entrevistados, a submersão da floresta contribui para o abate de muitas espécies que acabam ficando isoladas nas porções de terras remanescentes (‘torrões’). Também, é no período do inverno, que amadurece e cai grande parte dos frutos que servem de alimentação aos animais, fazendo com que eles caminhem com maior frequência pela floresta e deixem seus rastros no chão úmido por onde passam. Os fatores econômicos certamente exercem influências sobre os processos de escolha e uso dos recursos cinegéticos como fonte de alimentação, tendo em conta o baixo poder aquisitivo da população estudada. No entanto, é necessário salientar que, em diversas situações, os moradores declararam preferir comer carne de caça à carne de boi ou à de frango na carência do pescado, por influência de fatores simbólicos que estão intimamente conectados a tradições religiosas, momentos de sociabilidade e/ou preferências individuais e sociais (tabus alimentares). As espécies Chelonoidis denticulata (jabuti-amarelo) e Chelonoidis carbonaria (jabuti-vermelho), por exemplo, estão carregadas de valores religiosos, sendo consumidas com maior frequência no período da Semana Santa por influência da tradição judaico-cristã local, o que as destaca entre as espécies mais importantes no consumo alimentar durante o inverno. Inclusive, nesse contexto, pudemos observar que muitas famílias costumam manter criações de jabutis nos fundos dos quintais, alimentando-os com carne, frutas doces, verduras e legumes para que então fiquem gordos para consumo. A carne de jabuti preparada cozida ao leite da castanha-do-Brasil (Bertholletia excelsa) está entre as mais preferidas para consumo e é considerada uma iguaria na culinária local, tratando-se de uma prática característica dos costumes e da cultura da região. Deste modo, a carne de caça revelou-se um elemento de destaque na representação simbólica dos alimentos na comunidade quilombola de Joana Peres, como veremos mais à frente.
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DIVERSIDADE DE ANIMAIS CONSUMIDOS Os entrevistados citaram 44 espécies cinegéticas de uso alimentar (Tabela 1). Essa diversidade pode ser considerada um fator importante para a diversificação e ruptura da monotonia alimentar do cardápio diário das famílias, em geral constituído por peixe. As espécies citadas pertencem a 28 famílias e três classes distintas: répteis, aves e mamíferos. Os mamíferos constituem o principal grupo mencionado, representando 63% das citações. O consumo de caça concentrado entre os mamíferos tem sido observado em vários estudos na Amazônia (Pezzuti et al., 2004; Terra; Rebelo, 2005; Zapata-Ríos et al., 2009; Van Holt et al., 2010; Figueiredo; Barros, 2016). As espécies que obtiveram o maior número de citações e valor de uso foram: Cuniculus paca (paca; VU = 0,91),
Mazama americana (veado-mateiro; VU = 0,82), Euphractus sexcenctus (tatupeba; VU = 0,79), Tayassu pecari (queixada; VU = 0,58), Dasyprocta leporina (cutia; VU = 0,55) e Hydrochaerus hydrochaeris (capivara; VU = 0,50), todas pertencentes ao grupo de mamíferos. Durante o trabalho de campo efetuamos 184 registros de animais caçados, sendo 125 répteis, 52 mamíferos e 7 aves (Tabela 1). Aqui é necessário destacar que os répteis revelaram-se o principal grupo caçado, principalmente em função das espécies Chelonoidis denticulata (jabuti-amarelo; n = 74) e Chelonoidis carbonaria (jabuti-vermelho; n = 39), que somaram 61,41% do total de indivíduos abatidos. Duas razões podem explicar este resultado: a tradição religiosa e uma maior facilidade de encontrar e capturar jabutis.
Tabela 1. Espécies cinegéticas de importância alimentar para as famílias quilombolas da comunidade de Joana Peres, Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará, Brasil). Legendas: VU (Valor de uso) e IUCN (União Internacional de Conservação da Natureza, sigla em Inglês). Categorias de conservação: CR – Criticamente em perigo/DD – Dados insuficientes/LC – Pouco conhecida/NT – Próximo de ameaçada/ SI – Sem informações/VU – Vulnerável. Fonte: IUCN (2014). (Continua) Família/Nome local Nome científico Nº de Citações VU Nº de indivíduos abatidos IUCN MAMÍFEROS (27) Fam. Tapiridae Anta
Tapirus terrestris
09
0,29
-
VU
Hydrochaerus hydrochaeris
17
0,50
02
SI
Coendou prehensilis
02
0,05
-
LC
Nasua nasua
02
0,05
-
LC
Lutra longicaudis
02
0,05
-
DD
Aotus azarai
01
0,02
-
SI
Macaco-guariba
Alouatta belzebul
13
0,38
04
VU
Macaco-prego
Cebus apella
04
0,11
-
SI
Chiropotes satanas
02
0,05
-
CR
Fam. Hydrochoeridae Capivara Fam. Erethizontidae Coamin/porco-espinho Fam. Procyonidae Quandu/quati Fam. Mustelidae Lontra Fam. Aotidae Macaco-da-noite Fam. Cebidae
Fam. Pitheciidae Macaco cuxiú-preto Fam. Didelphidae
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Tabela 1. Família/Nome local
Nome científico
Nº de Citações
VU
Nº de indivíduos abatidos
(Continua) IUCN
Didelphis marsupialis
03
0,08
-
LC
Panthera onca
01
0,02
-
NT
Cutia
Dasyprocta leporina
19
0,55
06
LC
Paca
Cuniculus paca
31
0,91
07
LC
Preguiça-branca
Bradypus variegatus
02
0,05
03
LC
Preguiça-bentinha
Bradypus tridactylus
02
0,05
01
LC
Choloepus hoffmanni
02
0,05
-
LC
Porcão-do-mato/queixada
Tayassu pecari
20
0,58
09
VU
Caititu
Pecari tajacu
15
0,44
06
LC
Myrmecophaga tridactyla
02
0,05
-
VU
Cabassous unicinctus
01
0,02
01
LC
Mucura Fam. Felidae Onça-pintada Fam. Dasyproctidae
Fam.Bradypodidae
Fam. Megalonychidae Preguiça-real/riá Fam. Tayassuidae
Fam. Myrmecophagidae Tamanduá-bandeira Fam. Dasypodidae Tatu rabo-de-couro Tatu-de-quinze-quilos
Dasypus kappleri
01
0,02
-
LC
Tatu-bola
Tolypentis tricinctus
02
0,05
-
SI
Tatu-canastra
Priodontes maximus
02
0,05
01
VU
Tatu-peba
Euphractus sexcinctus
27
0,79
05
LC
Veado-mateiro/vermelho
Mazama americana
28
0,82
04
DD
Veado-amarelo/branco
Ozotoceros bezoarticus
10
0,29
02
NT
Veado-cariacu
Odocoileus virginianus
03
0,08
-
NT
Ara chloropterus
02
0,05
01
SI
Jabiru mycteria
02
0,05
-
SI
Psophiaviridis obscura
02
0,05
-
SI
Fam. Cervidae
AVES (10) Fam. Psittacidae Arara-vermelha Fam.Ciconiidae Jaburu Fam.Psophiidae Jacamim-de-costas-verdes Fam. Cracidae Jacupemba
Penelope superciliaris
04
0,11
-
LC
Mutum-pinima
Crax fasciolata pinima
01
0,02
01
VU
Mutum-castanha
Pauxi tuberosa
01
0,02
01
SI
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Tabela 1. Família/Nome local
(Conclusão) IUCN
Nome científico
Nº de Citações
VU
Nº de indivíduos abatidos
Tinamus guttatus
03
0,08
02
NT
Cairina moschata
03
0,08
02
LC
Tigrisoma lineatum
01
0,02
-
LC
Aramides cajaneus
01
0,02
-
LC
Tupinambis teguixim
02
0,05
-
LC
Jabuti-amarelo
Chelonoidis denticulata
06
0,17
74
VU
Jabuti-vermelho
Chelonoidis carbonaria
05
0,14
39
SI
Jacaretinga
Caiman crocodilus
03
0,08
06
LC
Jacaré-açú
Melanosuchus niger
02
0,05
-
LC
Fam.Tinamidae Nambu-galinha Fam. Anatidae Pato-do-mato Fam. Ardeidae Socó-boi Fam. Rallidae Saracura-do-brejo RÉPTEIS (7) Fam.Teiidae Calango-jacuraru Fam.Testudinidae
Fam.Alligatoridae
Fam.Podocnemididae Tracajá
Podocnemis unifilis
05
0,14
03
VU
Tartaruga-da-Amazônia
Podocnemis expansa
06
0,17
03
LC
TOTAL
-
272
-
184
-
Entre os mamíferos, merecem destaque: Tayassu pecari (queixada; n = 9), Cuniculus paca (paca; n = 7), Pecari tajacu (caititu; n = 6), Dasyprocta leporina (cutia; n = 6) e Euphractus sexcenctus (tatupeba; n = 5), que para os caçadores são consideradas espécies de bastante importância na composição da caça na comunidade ao longo do ano. Com relação às aves, destacamos o pequeno número de indivíduos abatidos. Apenas duas espécies apresentaram mais de um registro de caça, sendo elas: Tinamus guttatus (nambu-galinha; n = 02) e Cairina moschata (pato-do-mato; n = 02). Isso pode estar relacionado à maior oferta de outras espécies preferidas e de maior importância para consumo. O declínio da fauna cinegética, após a implantação da UC, foi percebido por 78% dos caçadores entrevistados,
com destaque para mamíferos terrestres como Mazama americana (veado-mateiro), Cuniculus paca (paca) e Hydrochaerus hydrochaeris (capivara). Outros caçadores declararam que: i) perceberam o aumento de animais (6%) e; ii) não perceberam diferenças (15%). Dentre as espécies registradas nos eventos de caça, oito estão listadas como vulneráveis de acordo com a Lista Vermelha da IUCN (2014): Tapirus terrestres (anta), Alouatta belzebul (macaco-guariba), Tayassu pecari (queixada), Priodontes maximus (tatu-canastra), Crax fasciolata pinima (mutum-pinima), Chelonoidis denticulata (jabuti-amarelo) e Podocnemis unifilis (tracajá). No entanto, são necessários estudos específicos para podermos afirmar qual o real status de conservação das populações destas espécies na região estudada.
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PREFERÊNCIAS E AVERSÕES ALIMENTARES: PODE OU NÃO PODE COMER? As preferências e aversões (restrições) alimentares são geralmente determinadas por fatores de origem social ou cultural e atuam como elementos fundamentais para limitar ou ampliar o consumo dos alimentos disponíveis (Macbeth; Lawry, 1997). Muitas vezes, tais restrições podem constituir tabus alimentares, permanentes ou temporários, quando compartilhadas entre membros de um grupo por razões associadas à estrutura de comportamento, costumes e crenças que definem sua própria cultura. Segundo De Garine (1994), os tabus alimentares reproduzem-se como marcadores sociais na medida em que a variabilidade das escolhas individuais desvela diferenças entre indivíduos e grupos, influenciando atitudes e comportamentos e facilitando o funcionamento dos sistemas sociais. Neste sentido, importa destacar que as escolhas alimentares, dentro das suas possibilidades, estão associadas aos hábitos que são peculiares a cada região, tendo cada grupo humano sua dieta básica característica. A escolha do que comer está íntima e funcionalmente ligada a um conjunto de apreciações como matriz de experiências passadas, abarcando diferentes repertórios socioculturais na natureza das suas ações (Bourdieu, 1983a). No interior de uma norma aceita, por exemplo, crenças transmitidas oralmente através de gerações expressam a classificação simbólica de determinados alimentos e ao mesmo tempo ocupam um lugar de destaque na afirmação da identidade de grupos. Péclat (2005, p. 3) afirma que: Como se sabe, o homem está longe de “comer de tudo”. Ele é por ação cultural, um ser seletivo. Comer transcende em muito a simples satisfação de necessidades orgânicas. Assim, temos “comida para nós” e “comida para os outros”. A classificação alimentar serve para distinguir o “nós” de “outros”, isto é, constitui um elemento simbólico da afirmação. A comida desempenha um papel diferenciador. Assim sendo, “somos o que comemos”. Somos aquilo que escolhemos comer. E comemos aquilo que está relacionado ao nosso universo simbólico.
Isto nos permite refletir que os hábitos e escolhas alimentares estão conectados com a sobrevivência básica, mas também são guiados por elementos simbolicamente construídos. Apesar de ser um imperativo biológico, a alimentação é uma atividade que está regulada socioculturalmente, por meio da qual cada sociedade define seus modos de produzir, preparar e consumir os alimentos. É exatamente nessa perspectiva que pudemos observar uma seleção de critérios no que se refere às escolhas relacionadas aos animais de caça para consumo na comunidade quilombola de Joana Peres, desvelando preferências, aversões e tabus alimentares.
OS BICHOS PREFERIDOS PARA CONSUMO A variedade de espécies cinegéticas destinada ao consumo oferece certa diversidade de escolhas e, consequentemente, de preferências. As espécies mais citadas como preferidas foram: Mazama americana (veado-mateiro; n = 23), Cuniculus paca (paca; n = 19), Euphractus sexcenctus (tatupeba; n = 14), Tayassu pecari (queixada; n = 9) e Chelonoidis denticulata (jabuti-amarelo; n = 8), em função de aspectos relacionados à consistência, cheiro, sabor, aparência e densidade (quantidade de gordura) da carne. Dois dos interlocutores declararam não possuir preferências alimentares com relação aos animais de caça. A carne do veado-mateiro (M. americana) foi a mais citada como preferida, sendo considerada de qualidade superior entre todas devido à sua consistência ‘macia’ e sabor mais suave, como ainda pela sua comparação à carne de gado, que é percebida em certas ocasiões como um elemento de prestígio ou, simplesmente, do desejo de ascensão social (Bourdieu, 1983a; Murrieta, 1998). A paca (C. paca) revelou-se a segunda espécie mais citada como preferida em função do sabor naturalmente adocicado e pela baixa quantidade de gordura da sua carne. O tatupeba (E. sexcenctus) e a queixada (T. pecari) são espécies apreciadas particularmente pelo sabor acentuado da carne. Já o jabuti-amarelo (C. denticulata) é apreciado por ter a ‘carne mole’ e não ter ‘cheiro ruim’.
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Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará)
É interessante observar que as preferências alimentares denotam uma correlação com as espécies mais cobiçadas para o abate. Por exemplo, em diversas situações os moradores expressaram o desejo de abater o veado-mateiro (M. americana) por se tratar da caça mais apreciada para consumo em relação a outras, como já referido. Porém, isso não está diretamente relacionado com a capacidade de o caçador encontrar e abater o animal desejado, nem com a capacidade das espécies em lidar com a pressão de caça, servindo apenas como um indicativo de escolha a qual cada uma está exposta nas práticas de caçada.
‘ESTE EU NÃO COMO’: ESPÉCIES REJEITADAS PARA O CONSUMO Diversas espécies de caça foram citadas como rejeitadas (evitadas) para consumo por critérios associados a paladar, aparência e/ou cheiro desagradável. Entre as espécies mais mencionadas, estão: Tapirus terrestres (anta; n = 15), Alouatta seniculus (macaco-guariba; n = 9), Tayassu tajacu (caititu; n = 8), Dasyprocta leporina (cutia; n = 5) e Myrmecophaga tridactyla (tamanduá-bandeira; n = 5). Os critérios atribuídos a cada uma dessas espécies podem ser constatados nos relatos a seguir: A anta é um animal muito catinguento. Já provei a carne, não adianta, não vai mesmo. (Josué2, 42 anos). Pra mim macaco é igual gente. Guariba tem jeito de gente e o bicho fede que só. Não tenho vontade de comer. (Francisco, 28 anos). O caititu tem um cheiro ruim e a carne é dura, então não dá pra comer. (Maria Raimunda, 57 anos). Não gosto da carne de cutia, parece não ter sabor. Eu já comi e não deu certo. É sem gosto. (Zuleide, 32 anos). Tamanduá? Já provei, não dá. A carne é dura e tem um pichézinho3, um gosto ruim, não me agrada. (Zé Maria, 23 anos).
A anta (T. terrestris) é evitada para consumo pela associação ao ‘cheiro ruim’, termo localmente designado de ‘pitiú’, e pelo sabor desagradável da carne. Com efeito, o consumo da carne de anta não foi observado durante o trabalho de campo em Joana Peres. O macaco-guariba (A. seniculus) (n = 9) representa a segunda espécie de caça mais citada como rejeitada para consumo devido à sua semelhança com humanos e cheiro desagradável. O caititu (T. tajacu) e o tamanduá-bandeira (M. tridactyla) são evitados para consumo devido ao ‘cheiro ruim’ e à consistência ‘dura’ da carne (“caititu tem um cheiro ruim”; “tamanduá tem a carne dura”), sendo que o tamanduá foi citado como tabu alimentar permanente. Já a cutia é evitada porque tem a carne avaliada como sem sabor (“não gosto da carne, é sem sabor”; “a carne parece não ter sabor”). Cerca de 17% dos interlocutores disseram não fazer qualquer rejeição com relação aos animais de caça, enfatizando que comem ‘de tudo’. Nesse contexto, deve-se considerar que a ingestão ou não de certos animais silvestres ainda é altamente influenciada pelo sistema local de restrições e proibições alimentares: o sistema simbólico dos tabus alimentares ou reima. De acordo com Murrieta (2001, p. 69),“a reima é caracterizada por oposições binárias entre alimentos perigosos (reimosos) ou não perigosos (não reimosos)”. Ela se aplica a pessoas em estados físicos e sociais de liminaridade, aqui entendidos como estados de representação ritual e simbólica de transição ou passagem. Dentre os principais estados considerados de liminaridade estão as enfermidades (feridas, erupções cutâneas e doenças inflamatórias), a menstruação, a gravidez e o pós-parto. O equilíbrio do corpo e da mente é a principal finalidade de proibições da reima e tem como consequência a proteção social dos indivíduos nas situações em que é preciso resguardar o organismo de agressões externas (Murrieta, 2001). Na percepção local, algumas espécies de
Optamos por utilizar nomes fictícios para preservar a identidade dos interlocutores. Mau cheiro.
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caça são consideradas reimosas e representam categorias liminares em função de suas particularidades cosmológicas, morfológicas e/ou comportamentais, sendo, por isso, evitadas para consumo. As espécies mais citadas como reimosas foram: T. terrestris (anta; n = 20), T. tajacu (caititu; n = 18), C. paca (paca; n = 17), E. sexcenctus (tatupeba; n = 17), M. americana (veado-mateiro; n = 12). A anta está carregada de significado simbólico, estando sujeita a tabu alimentar permanente devido à sua representação mítica entre os habitantes da localidade estudada. Um caçador relatou que a anta é reimosa porque é um animal perigoso e tem poder sobrenatural de se transfigurar em vários outros bichos da floresta (por exemplo: queixada e onça), sendo capaz de castigar as pessoas que agem em desacordo com as leis da natureza (“a crença diz que a anta é muito reimosa, não se pode comer”). Isso torna o consumo da sua carne potencialmente ofensivo, podendo ocasionar dor de cabeça, inchaço dos olhos e tontura. É importante observar que esse tabu alimentar em torno da anta pode atuar como uma forma de controle do recurso, uma vez que ela é um animal que está em risco de extinção e tem uma reprodução mais longa, com período de gestação maior em comparação a outras espécies de mamíferos, além de a fêmea ter somente um filhote por gestação. A paca também é uma espécie de caça cercada de valores simbólicos, sendo relatada como reimosa porque tem dentes conspícuos e mora no mesmo hábitat da cobra surucucu (Eunectes murinus), podendo, até mesmo, transformar-se nessa espécie de serpente, o que representa um fator de risco em situações liminares, uma vez que terão de volta a vingança da cobra morta. Na cosmologia amazônica, as cobras são animais envoltos em significados mitológicos, sofrendo restrições de consumo determinadas por forte influência dos povos indígenas (Azevedo, M.; Azevedo, A., 2003; Lima, 2008). Assim, o sistema simbólico da reima revela as relações entre o mundo humano e o animal sob diferentes princípios culturais, atuando como um marcador de identidade por meio da experiência e socialização.
A classificação do caititu como espécie reimosa foi associada ao seu hábito generalista, por comer de tudo, inclusive animais como cobras, rejeitadas para consumo humano (“o caititu come tudo que vem pela frente, inclusive outros animais”; “ele tem a carne carregada”), característica reforçada pela literatura (Emmons, 1997; Judas, 1999). O tatupeba é considerado reimoso por se tratar de uma carne ‘carregada’ (imunda), pelo fato de o animal se alimentar de pequenos insetos (formigas, cupins, besouros) e suas larvas. Já o veado-mateiro deve ser evitado em situações de liminaridade por ocasionar enjoos no estômago. A ingestão de um alimento reimoso pode prejudicar principalmente as mulheres em períodos de pós-parto e menstruação, pois são considerados momentos de fragilidade e vulnerabilidade feminina, podendo trazer consequências, até mesmo, para o recém-nascido. Nesses períodos, as mulheres só podem alimentar-se de alimentos considerados não reimosos na concepção local. O luto também é tido como um estado de liminaridade em que não se pode comer carne de caça ou qualquer outro alimento considerado reimoso, pois diz a crença que, durante o período de ‘sete dias de cova’, as pessoas estão sujeitas aos perigos relativos da passagem do espírito do morto pelo mundo dos vivos. Embora este período seja bem definido, há quem siga a restrição durante vários meses ou anos. Aqui é necessário salientar que os animais considerados reimosos e não reimosos não são homogêneos e nem consensuais entre os interlocutores. Isso porque as práticas alimentares subjacentes podem variar de acordo com o gênero, a idade, o estado liminar e a relação do alimento com cada organismo consumidor (Murrieta, 1998; Rodrigues, 2001). Além disso, a condição de reimoso atribuída a uma espécie não é permanente, variando de acordo com o estado liminar, e pode estar relacionada à forma como o alimento é preparado e consumido. Entre as poucas espécies de caça consideradas não reimosas estão Bradypus variegatus (preguiça-branca), Tinamus guttatus (nambu-galinha), o Myrmecophaga tridactyla (tamanduá-bandeira) e Pauxi tuberosa (mutum-castanha).
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No entanto, deve-se mencionar que as restrições da reima estão sujeitas aos riscos de quebra do tabu, tendo em conta que o alimento proibido pode ser a única opção em situações específicas de escassez alimentar. Normas similares têm sido observadas e descritas entre outras populações da Amazônia brasileira por Castro (1957), Douglas (1966), Motta-Maués e Maués (1980), dentre outros.
DA MATA PARA A COZINHA: TRABALHO E HIERARQUIA NA LIDA COM A CAÇA A considerar-se a produção de diferentes estudos em comunidades rurais (Heredia et al.,1984; Woortmann, 1985; Brumer, 2004; Menasche et al., 2008; Wedig et al., 2008; Motta et al., 2011), é possível dizer que a organização familiar do trabalho no espaço rural se estabelece mediante laços de parentesco amparados nas noções de gênero, de idade e de geração, considerando que pai, mãe e filhos desempenham atividades diferenciadas, delineando-se, assim, os lugares masculinos e femininos nessa organização. No universo investigado, tornou-se possível observar que as atividades que possibilitam a obtenção dos recursos alimentícios para o consumo familiar correspondem ao trabalho dos homens (caçadores) por influência de diferentes condicionantes, dentre as quais: i) condições físicas; ii) formas de acesso e pertencimento a um dado território; iii) conhecimentos relacionados aos hábitos e comportamentos dos animais; iv) estratégias de caça. Por isso mesmo, na rotina do cotidiano, o lugar do caçador é na mata. Compete a ele articular os meios necessários para prover o alimento que será consumido coletivamente pelos membros do grupo doméstico. Em geral, os homens caçam sozinhos, tendo o horário certo para ir, mas não para voltar da floresta. O caçador bem-sucedido, que tem a sorte de abater uma presa de imediato, não demora a voltar para casa e, quando lhe falta sorte, se vê moralmente obrigado a mudar sua estratégia de ação. Com efeito, um caçador dificilmente retorna da mata de mãos vazias, mesmo quando se está sem sorte
(condição localmente conhecida como ‘panema’), pois procura trazer consigo frutas silvestres que de alguma maneira servirão de alimentação ao grupo, como a castanha-do-Brasil (Bertholletia excelsa). Por conseguinte, as atividades relacionadas à preparação dos alimentos correspondem ao trabalho das mulheres, reafirmando a concepção da cozinha como espaço feminino e da sociabilidade entre elas. Elas detêm os saberes e domínios culinários, sendo totalmente responsáveis pelos afazeres que estejam ligados à cozinha, o que inclui as técnicas e formas de aprovisionamento e de transformação de alimentos em comida. Aqui é necessário estabelecer uma distinção entre comida e alimento para uma melhor compreensão dos processos de consumo alimentar no contexto estudado. Seguindo a visão de DaMatta (1986, p. 56), entende-se que “a comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o ingere”. É justamente nessa perspectiva que se torna possível apreender que na cozinha se estabelece a organização e o controle das atividades vinculadas à materialização do consumo alimentício, isto é, às maneiras de fazer o alimento transformando-o em comida. A mãe de família é quem tem o papel preponderante na coordenação das atividades desse espaço com o auxílio das filhas. Neste sentido, conforme pôde ser observado, tem-se uma divisão de tarefas geracional, sendo que as mais idosas, as doentes e as crianças até uma determinada idade não participam dessa divisão.
A COZINHA JOANAPERENSE DO DIA A DIA Ao refletir sobre os alimentos e as práticas alimentares de tribos indígenas brasileiras, Lévi-Strauss (1968) destacou a cozinha como uma forma de atividade humana universal, levando em consideração que todas as sociedades cozinham ao menos alguns de seus alimentos. No entendimento desse antropólogo, a cozinha de uma sociedade é uma
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linguagem pela qual se traduz inconscientemente sua estrutura. Nela, estabelece-se a articulação entre natureza e cultura nos processos de preparação dos alimentos, que vêm a ser um ato culinário de transformação, pelo qual é possível explicitar outras relações da alimentação com a estrutura da sociedade, seja de natureza sociológica, econômica, estética ou religiosa. É nesse espaço do sistema alimentar humano que pode ser observado o protagonismo da mãe de família, especialmente na maneira de fazer a comida, por meio da qual ela exerce sua autoridade doméstica. Compete a ela, por exemplo, definir a composição de uma refeição e sua distribuição para todos os membros da família. Conforme salientado por Woortmann (1985, p. 12): Em todos os grupos sociais sobre os quais existem estudos de práticas alimentares, as refeições são preparadas pela mãe de família. Na divisão do trabalho familiar o domínio culinário é feminino. É no âmbito da refeição que a mãe exerce sua autoridade e controle, determinando, dentro das possibilidades geradas pelo trabalho do pai, o que irá compor a refeição e como esta será distribuída entre os membros da família.
Entre as famílias quilombolas observadas, algumas mulheres, apesar de cumprirem com os afazeres culinários, revelaram não gostar ‘de fogão’ ou não saber cozinhar satisfatoriamente. Nesses termos, é de se destacar que existe o reconhecimento entre os membros da família de que, muitas vezes, o trabalho na cozinha é um ‘dom natural’. As mulheres pesquisadas também revelaram que o ato de cozinhar está fortemente associado a valores de natureza religiosa. E, por esse motivo, a cozinha é concebida como uma atividade direcionada para preparar aquilo que é sagrado à sobrevivência humana: ‘o alimento, dádiva de Deus’. É na cozinha onde se preparam e realizam, na maioria das vezes, as principais refeições das famílias residentes na Vila de Joana Peres. Essas refeições compreendem basicamente o café da manhã, o almoço e o jantar. Com exceção do domingo, um dia de trabalho
na cozinha não se diferencia essencialmente de qualquer outro dia, começando geralmente às seis e meia da manhã, hora em que a maioria dos membros da família se levanta para cumprir suas respectivas tarefas ou compromissos. Nessas primeiras horas do dia, a mulher é responsável pelo preparo do café da manhã. Essa refeição acontece entre sete e oito horas e compõe-se de café, acompanhado por beiju (tapioca), torta de farinha de milho (cuscuz), bolo de macaxeira ou pão caseiro. Por volta das nove horas da manhã, as tarefas destinadas ao preparativo do almoço são iniciadas no intento de transformar os recursos alimentícios em comida. As filhas não ocupadas com algum trabalho formal ou alguma atividade escolar durante essa parte do dia são orientadas pela mãe a auxiliá-la nas tarefas da cozinha. O almoço ocorre normalmente por volta do meio-dia e tem como prato principal peixe, frango ou carne de caça, sendo que esta última é preparada preferencialmente cozida ao leite da castanha-do-Brasil. O jantar ocorre geralmente por volta das oito horas da noite e é composto pelo mesmo cardápio do almoço. Os acompanhamentos das refeições são basicamente o arroz, o feijão, a farinha de mandioca e o açaí. Dificilmente se vê o consumo de verduras e legumes na dieta local. Estes se restringem às pequenas quantidades de temperos e ervas que são cultivados em canteiros suspensos (‘jiraus’) e utilizados nos processos de preparo e cozimento dos alimentos, conforme será apresentado no próximo item. No que se refere ao consumo de frutas, é comum ver o uso de espécies como o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), o murici (Byrsonima crassifolia), o taperebá (Spondias mombin) e o bacuri (Platonia insignis) na elaboração de sucos que também servem de acompanhamento às refeições. O domingo é considerado o dia da semana mais importante por estar associado a um dia de celebração religiosa, lazer e descanso. Nesse dia, o almoço se caracteriza particularmente pelo preparo de uma comida mais refinada, como o peixe desfiado e a carne de caça assada. Também, mais raramente, a carne bovina
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assada ou cozida costuma ser consumida no domingo e apresenta-se como um elemento de apropriação simbólica de prestígio, que incorpora a representação do poder aquisitivo. No momento das refeições, a mãe de família ou alguma das filhas é a responsável pela arrumação da mesa e distribuição da comida que será consumida. Desse modo, elas convidam primeiramente os demais membros da família para servirem-se. O pai é o chefe da família, o responsável pela maioria das atividades que promovem o consumo alimentício do grupo, e, por isso, é normalmente o primeiro a sentar-se à mesa para comer, enquanto a mãe é geralmente a última. A comida das crianças é servida separadamente. Ao final de cada refeição, a mãe é quem desarruma a mesa retirando a louça para então ser lavada geralmente por alguma das filhas. Conforme observado, a participação dos homens na cozinha e em outras atividades domésticas é pequena. Os pais e os filhos sabem cozinhar o que é classificado como ‘o básico’: arroz, feijão e carne. Essa pequena participação dos homens na cozinha está fortemente associada à noção de ‘ajuda’ em algumas situações nas quais as mulheres, por algum motivo, encontram-se impossibilitadas de cuidar sozinhas dos afazeres culinários, tendo em conta que elas também são as responsáveis pela organização e limpeza da casa, entre outras funções. Nesse sentido, a noção de ajuda expressa a hierarquia do trabalho familiar entre quem organiza (mulheres) e se deixa organizar (homens), considerando que a cozinha é um espaço de domínio feminino.
‘BICHO DO MATO, TEM QUE SABER PREPARAR!’ Sabe-se que os alimentos são vitais para a sobrevivência do ser humano. No entanto, os modos como eles são apropriados e preparados para consumo podem ser elencados como de fundamental importância para a aceitação ou não de uma refeição. Nesse sentido, cada sociedade define ao seu modo o que é comida ou aquilo
que deve servir de refeição dentro de uma percepção que abrange não somente os valores nutricionais e biológicos humanos. Como observado pelo sociólogo francês Fischler (1995), o homem se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário. Para além do simples utilitarismo, os recursos alimentícios possuem lugar no plano das representações sociais e simbólicas de diferentes culturas, que estabelecem os seus modos de comer e organizar o espaço. Nessa perspectiva, um dos aspectos mais interessantes do uso da fauna em práticas alimentares na Vila de Joana Peres deriva dos saberes e práticas que são empregados no ato culinário no sentido de se alcançar uma comida largamente apreciada pelos membros do grupo doméstico. Isso porque a carne de caça tem, em geral, uma textura firme (dura) e um cheiro forte (catinga) que encobrem o paladar característico de cada espécie e, assim, dificultam sua digestão caso não seja bem preparada. Partindo dessa constatação, entende-se que os conhecimentos locais associados aos processos de preparação dos alimentos desempenham um importante papel na materialização do consumo dos recursos cinegéticos. No âmbito deste estudo, os conhecimentos associados às práticas culinárias e hábitos alimentares enraizados no cotidiano investigado são considerados conhecimento tradicional. Esse conhecimento pode ter origens diversas e ser explicado, sob a perspectiva do saber-fazer, como sendo um conhecimento empírico oriundo particularmente dos povos tradicionais, construído ao longo do processo histórico-cultural de práticas locais, mediante a interação dos indivíduos com seus ambientes, e transmitido de geração a geração através da oralidade (Siena; Menezes, 2007; Ferreira; Jankowsky, 2009). Entretanto, tradicionais são os modos de construção dos saberes, que não são estáticos e inabaláveis em si, mas sim dinâmicos e influenciados pela relação direta com os diferentes recursos e sujeitos de um dado território referenciado temporal e espacialmente (Castro, 1997; Motta et al., 2011).
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Nesses termos, não se pode deixar de reconhecer que os modos de fazer, conservar e consumir os alimentos passam pelas ‘mãos’ das mulheres. Elas detêm o poder culinário sobre a organização do cardápio, as técnicas, os ingredientes e os temperos que serão utilizados na elaboração da comida, resguardando saberes e práticas tradicionais vinculados ao patrimônio cultural imaterial do grupo étnico pesquisado. Pois, conforme Hernández e Gracia Arnáiz (2005) destacaram, os saberes e comportamentos inerentes às práticas alimentares expressam valores relativos a uma culinária peculiar, gerada por cada cultura, com classificações particulares. É no preparativo da comida que advém a transmissão dos saberes e práticas tradicionais, basicamente, de mãe para filhas, por meio da oralidade. É interessante perceber que nesse movimento de transmissão se evidencia uma relação de poder, porque são as mães que possuem os conhecimentos fundamentais à preparação da ‘boa’ carne de caça, além de conhecerem as preferências individuais e coletivas dos membros da família. Compete a elas, inclusive, dar um caráter mais democrático à alimentação, definindo como os alimentos serão preparados, no intento de atender à preferência de homens, mulheres e crianças. A partir das observações realizadas nos grupos domésticos estudados, chama atenção a diversidade dos modos de preparação e consumo da carne de caça, tendo em conta que o grande número de espécies possíveis de ser abatidas para alimentação e a diversidade de saberes levam a diferentes práticas. No limite desta diversidade, a morfologia, o comportamento e a maturidade sexual do animal são características que influenciam as maneiras de tratar e de cozinhar os recursos alimentícios. Entende-se, pois, que quanto mais adulto e mais usado for o músculo do animal, mais firme será a sua carne e mais forte será a catinga nela presente.
Seguindo este entendimento, considera-se que as espécies mais jovens geralmente requerem processos de preparação menos longos em contraposição às espécies mais adultas, que demandam maior dispêndio de trabalho e tempo no sentido de harmonizar texturas, cheiros e sabores, entendendo que estes são elementos centrais na classificação de uma comida como ‘boa’ ou ‘ruim para comer’ pelos membros do grupo doméstico. Entretanto, de um modo ou de outro, pode-se dizer, sem hesitação, que o preparo de qualquer carne de caça, pelo exotismo e características peculiares de cada espécie, envolve um alto grau de particularidades na execução de suas receitas. De todo modo, o processo de preparação da carne de caça, em linhas gerais, envolve as tarefas de ‘descourar ou pelar4, tirar o bucho, cortar, ferventar, temperar e pôr no fogo’ (Quadro 1). Num primeiro momento, quando se trata do caso de descourar o animal, os homens têm uma pequena participação na cozinha que é ritualmente privilegiada pelas mulheres, porque elas consideram que ‘eles sabem aproveitar melhor a carne’. Está embutida nessa participação a ideia de ‘ajuda’, que desvela laços de sociabilidade entre homens e mulheres em torno da preparação da comida. Tendo sido feito o ‘descouro’ ou o ‘despelo’ da caça, deve-se então prosseguir com a tarefa de corte das partes (peças). Inicialmente, é necessário retirar os órgãos e as vísceras do animal com certo cuidado para não atingir as tripas e a bolsa de fel (bílis) que ficam abaixo do fígado, a fim de evitar qualquer risco de contaminação da carne. Caso a caça tenha sido abatida com espingarda, ainda é necessário retirar todo chumbo nela alojado para que no ato da ingestão da comida não ocorra intoxicação. Posteriormente, deve-se prosseguir com a lavagem das peças e das vísceras selecionadas em água fria corrente,
Do ponto de vista local, entende-se por descourar o ato de separar o couro/casco da carne a partir de uma primeira incisão. Enquanto despelar é o ato de arrancar as penas ou os pelos do animal, jogando água quente para facilitar. Em ambos os procedimentos é necessário o auxílio de uma faca.
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que então ficarão aptas para ser submetidas a processos de conservação5 ou de cozimento. Antes do cozimento, uma das técnicas locais utilizadas para se retirar o cheiro forte característico da carne de caça é o uso da folha da goiabeira (Psidium guajava). Para tanto, primeiramente põem-se as peças de molho juntamente com as folhas esmagadas em água fria durante cerca de trinta minutos; depois, dá-se uma fervura para que a carne fique no estado considerado como adequado para cozimento. De modo similar, outra técnica que pode ser utilizada para harmonizar cheiros é a lavagem e fervura das peças com o sumo de frutas cítricas, como a laranja da terra (Citrus aurantium) ou o limão (Citrus limonium), e de ervas fortes, como o alecrim (Rosmarinus officinalis). Dependendo da maturidade sexual do animal6, estes procedimentos devem ser feitos de uma a oito vezes, com a devida renovação da água e dos ingredientes citados. Somado a isto, diversos temperos são utilizados para apurar o sabor da carne, que deve ser furada em toda sua volta com a ponta de uma faca para poder ‘pegar melhor o tempero’. A cebolinha (Allium fistulosum), a alfavaca (Ocimum basilicum), a chicória (Cichorium endivia), o coentro (Coriandrum sativum) e o urucum (Bixa orellana), geralmente cultivados em pequenas quantidades nos jiraus, são os tipos de temperos mais frequentemente utilizados. Dentre estes, chama atenção o uso do urucum (Bixa orellana) como colorante no sentido de não se preparar uma comida ‘sem cor’. Mais que uma especiaria para dar aroma, o urucum serve mesmo para temperar o apetite dos olhos, transformando uma carne descorada em uma comida atraente. O óleo vegetal de bacaba (Enocarpus bacaba) é
um item que costuma ser adicionado para dar uma primeira cozedura nos temperos e diversificar o sabor da comida. De acordo com as mulheres entrevistadas, assar é a melhor maneira de preparar todas as caças novas (ou mais jovens), sobretudo, as aves, mas sem deixar a carne ficar muito passada. Os animais mais velhos, por terem uma carne mais consistente e rija, ficam melhor quando preparados guisados com base num refogado (molho), que pode ser feito com água ou leite. Neste caso, o cozimento requer processos mais longos e demorados para que a carne fique tenra e saborosa. Uma estratégia importante para dar maciez à carne, mantendo ao mesmo tempo seu sabor, é cozinhá-la em panela de pressão a fogo brando, deixando os ingredientes cozerem e se misturarem lentamente. Durante o cozimento, o pescoço é uma das partes dos animais que tem maior concentração de gordura e ajuda a carne a ficar úmida. O uso da panela de pressão também minimiza o tempo de cozimento da carne, estimando-o em uma hora e meia. Ademais, destaca-se que a carne de caça ainda pode ser preparada e consumida grelhada, frita, como bife, ou incrementada em outros pratos especiais. Mas em que pese todas essas possibilidades de cozimento, tornou-se possível constatar que, independente da espécie animal, a carne de caça refogada ao leite da castanha-do-Brasil (Bertholletia excelsa) é unânime em termos de gostos e preferências, sendo considerada uma iguaria na culinária local e, por esse motivo, de grande prestígio entre os comensais. O motivo por tal preferência é facilmente compreendido quando se leva em consideração que a castanha representa primariamente um gosto social e culturalmente adquirido pelos habitantes joanaperenses
Em se tratando de processos de conservação, é preciso apontar que a maioria das famílias possui unidades de refrigeração, que permitem o congelamento dos alimentos. Aqueles moradores minoritários, ou seja, que não possuem refrigerador ou geladeira, geralmente solicitam a parentes ou vizinhos mais próximos o congelamento da carne. Contudo, em raras ocasiões, como na ausência de energia elétrica por dias seguidos, métodos de conservação dos alimentos através da salga, defumação, da imersão em gordura ou da desidratação pelo sol ou fumaça (moquém) podem ser utilizados, especialmente pelos moradores mais antigos. 6 O estado de maturação de um animal é analisado pelos moradores, excepcionalmente, pelo cheiro forte (catinga), no sentido de classificá-lo como ‘jovem’ ou ‘adulto’, levando em consideração que é, praticamente impossível, identificar a idade exata de determinado espécime somente pela aparência. Deste modo, entende-se que a catinga é menos forte nos espécimes jovens do que nos adultos. Sendo assim, a idade de maturação do animal é um fator que influencia os processos de tratamento e cozimento da carne. 5
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por influência dos seus antepassados. Trata-se, portanto, de um habitus, aqui compreendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis à determinada prática, intimamente conectado com as experiências passadas, percepções, apreciações e ações de grupos sociais, conforme conceituado por Bourdieu (1983a; 1983b). É em torno de um ponto de fogo localizado no espaço livre de trás das casas, denominado terreiro, que as mulheres costumam cozinhar a carne de caça. Este ponto nada mais é que uma espécie de fogão artesanal, fabricado
geralmente com barro (argila) e alimentado com carvão ou mais raramente lenha, que é utilizado para o cozimento de alimentos com maior tempo de cozedura. Nesse exercício do cotidiano, é de se mencionar a abordagem feita por Lévi-Strauss (1997), na qual o fogo é apreendido como uma técnica de preparação de alimentos e, por isso, representa o elemento que liga a natureza à cultura. Essa ligação seria representada pelos alimentos crus que, após serem submetidos à ação do fogo, tornam-se cozidos, passando então de um alimento em estado natural para o estado cultural.
Quadro 1. Informações sobre algumas espécies de caça utilizadas para alimentação segundo os moradores da comunidade quilombola de Joana Peres, Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará, Brasil). Fonte: Pesquisa de campo (2014). Ilustrações feitas por Paulo Maia, morador da RESEX. Caça
Tarefa inicial
Textura da carne
Observações e sugestões de preparo
Muito Firme
O sabor da carne é comparado ao da carne do porco do mato e também remete, de longe, ao sabor do porco doméstico. No ato do preparo, deve-se retirar com muito cuidado a gordura interior e exterior que é a parte catinguenta do animal. Depois de lavada e temperada, recomenda-se assar o lombo a fogo aberto, molhando-o, aos poucos, com sumo de laranja da terra até ficar pronto para servir.
Macia
Dependendo do tamanho da espécie, o sabor da carne fica entre a do cabrito e a do gado. Logo após o abate, é recomendável rachar as suas unhas para dar fluxo de saída ao líquido que atribui parte da catinga presente na carne. O corte da carne em bifes para ser temperados a gosto, e, depois, fritos ao óleo de bacaba é uma boa opção de preparo.
Macia e suculenta
Tem a carne branca e sabor semelhante à carne de coelho e à de lebre. É tão apreciada quanto à da paca. Para dar um sabor mais exótico ao prato, deixe-a imersa no leite da castanha por aproximadamente uma hora. Feito isso, é preciso escorrer a carne e temperá-la com cebolas grandes picadas, dentes de alho, pimentinha e sal a gosto para, então, assá-la.
Muito Firme
Tem a carne branca e sabor entre o peixe e o frango. O filé retirado do rabo (cauda) é considerado o corte mais nobre. No ato do preparo, a carne não deve ser submetida a temperos muito fortes para não mascarar seu sabor. Recomenda-se usar sal a gosto, alho e um pouco de pimenta do reino para que a carne seja grelhada em chapa.
Macia
Tem a carne branca e sabor semelhante ao da galinha, porém mais marcante. Após a retirada do casco, é preciso ter o cuidado na recolha das glândulas e alguns caroços que ficam logo abaixo das coxas, pois é nestes locais que se concentra a catinga do animal. Uma boa sugestão de preparo é fritar a carne ao óleo de bacaba.
Capivara Descourar
Veado Descourar
Cutia Despelar
Jacaretinga Descourar
Tatu Descourar
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Nessa interseção entre natureza e cultura, note-se que o ato culinário de transformação da carne de caça em comida está embebido de significados no contexto das práticas alimentares, que são as possíveis invenções e reinvenções das maneiras de fazer e consumi-la, baseadas em ações técnicas, operações simbólicas e rituais. O Quadro 1 reúne algumas informações sobre determinadas espécies de caça, no que se refere aos processos habituais de preparação e consumo, de acordo com as observações realizadas nos grupos domésticos estudados. Como já mencionado anteriormente, “comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se” (DaMatta, 1986, p. 56). E como foi visto, ‘bicho do mato, tem que saber preparar!’.
CAÇA COMPARTILHADA Na realidade estudada, normas sociais intimamente conectadas com a sobrevivência básica e, ao mesmo tempo, com elementos simbolicamente construídos fazem circular diariamente os alimentos entre as famílias locais. Nesse contexto, é comum observar a carne de caça sendo compartilhada de alguma maneira com parentes e vizinhos, atribuindo a esse alimento certo significado de valor que estimula a retribuição como expressão da “reciprocidade” (Mauss, 2003). Esta se desvela no cotidiano como uma norma que estabelece a partilha dos animais caçados no sentido de criar e manter laços sociais entre indivíduos nos processos de consumo de alimentos, segundo regras específicas que atuam na definição de grupos. Um exemplo da noção exposta acima é que um animal de caça costuma ser compartilhado somente com os parentes mais próximos e os chamados ‘bons vizinhos’, como pode ser observado nos trechos de falas de caçadores entrevistados: Quando a gente mata uma caça, sempre um vizinho dá pro outro, sem pedir. A gente tem sempre um costume aqui, porque tem o bom vizinho e o mau vizinho. O bom vizinho, o que ele come na casa dele, o que ele pega,
também divide com o vizinho. Do mesmo modo, quando a gente arruma, também tem que dar pro vizinho. (Luis Henrique, 28 anos). Aqui na vizinhança, é assim: o bom vizinho compartilha a carne igual, tem aquela união. Já o mau vizinho é aquele que não se conversa e não compartilha o que arruma. Se matou ou pegou alguma coisa, come só pra lá, não dá nada pro vizinho, nada se compartilha. É o vizinho pra lá e a gente pra cá. Não tem aquele entrosamento. (Amarildo Ferreira, 39 anos). Quando a gente pega alguma caça, a gente divide com os parentes e vizinhos mais próximos, né? Daí, a gente sempre recebe de volta também. (José Luís, 47 anos).
Evidencia-se, assim, que a boa vizinhança é uma regra recíproca segundo a qual se partilha a carne de caça somente com os parentes e vizinhos com os quais o caçador mantém relações de amizade na medida em que há uma retribuição material e simbólica. Essa constatação permite remeter o compartilhamento da caça à condicionalidade da dádiva, como ensina Mauss (2003): quem tem, dá, quem não tem, recebe e em outra oportunidade retribui, concretizando uma obrigação moral coletiva como uma espécie de dívida. Nesse círculo, o ato de retribuir revela o ‘comprometimento’ e o ‘engajamento’ individual ou coletivo como elementos imbricados na construção de vínculos comunitários, identitários e hierárquicos, conforme Marques et al. (2007) destacaram. É importante ter presente que a carne de caça é um alimento valorizado culturalmente pelas famílias rurais da região estudada, principalmente nos dias atuais que sua obtenção é considerada relativamente mais difícil, o que lhe confere um alto valor de uso e, consequentemente, de doação e de retribuição, que são então impregnadas pelo simbólico, “pois a obrigação de dar é que garante a honra e o prestígio; a obrigação de receber mantém e reproduz a hierarquia [...] a obrigação de retribuir garante a permanência do vínculo, o pertencimento: aí se reiteram os laços, constitui-se a aliança” (Menasche et al., 2008, p. 155). É nesse contexto de expressão da dádiva que se evidencia a aliança que beneficiará a todos em torno
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do compartilhamento da fauna silvestre no universo investigado. Caso se trate de uma caça grande, como a capivara, cabe à mulher do caçador decidir que parte do animal será enviada para cada parente e vizinho, sendo ela também a responsável pela entrega da parte dedicada a cada um. O traseiro e o espinhaço são considerados partes nobres da carne e ficam na casa do caçador, enquanto que o dianteiro é destinado para a distribuição. No entanto, se for uma caça pequena demais, como a Tinamus guttatus (nambu-galinha), a carne dificilmente será compartilhada em partes. Nesse caso, é mais comum convidar os amigos caçadores mais próximos para a partilha da refeição. Entre os próprios caçadores, pode-se dividir a caça ‘de banda’, meio a meio, quando se trata de uma caçada realizada a dois, ou ‘de quarto’, dianteiro ou traseiro, quando a caçada envolve mais de dois caçadores, sendo que o caçador que atirou costuma ter o direito sobre o espinhaço e a cabeça do animal. O planejamento da caçada é uma preocupação diária e quando organizada em grupo ultrapassa a simples necessidade de ordem material, desenvolvendo-se em redes de troca de força de trabalho entre os caçadores. Essas trocas se amparam no princípio da ajuda mútua, reafirmando a dádiva nos processos de obtenção de alimentos. É interessante notar que a regra recíproca da boa vizinhança não é alterada pelo fato de um caçador não ir pra mata com a mesma frequência ou então não ser bem-sucedido nela em relação a outro caçador. Isso porque a carne de caça está inserida numa rede de compartilhamento que envolve outros produtos alimentícios, como a carne da criação doméstica (galinhas, patos, porcos etc.) e o pescado. É dentro dessa rede abarcada por diferentes grupos de moradores que parentes e vizinhos que não caçam mais, ou não têm um caçador em casa, garantem a carne de animais silvestres como parte da sua alimentação. Entretanto, conforme observado, os laços sociais das redes de troca e reciprocidade podem ser desfeitos com a quebra da permanência do vínculo, isto é, pela ausência da obrigação de retribuir, sob o risco de gerar conflitos entre parentes e vizinhos.
FINALIZANDO... Os resultados apontam que os processos de escolha e utilização da fauna silvestre em práticas alimentares são permeados por importantes fatores ecológicos, econômicos e socioculturais na Vila de Joana Peres. A atividade de caça apresentou-se como uma referência da cultura e costumes da região e uma prática significativa à subsistência das famílias locais, especialmente na época das enchentes (inverno), considerando a escassez do pescado durante este período. Assim, foi possível constatar que uma relativa diversidade de espécies cinegéticas é utilizada na preparação de alimentos, levando-nos a crer numa resultante quebra na repetitividade da estrutura dietética dos moradores. Essa diversidade de animais úteis à alimentação das famílias nos revela, igualmente, o papel da floresta tropical enquanto provedora de alimento para os povos que nela habitam. Desse modo, não cabe aqui uma visão estreita do processo, pois a fauna não atua apenas como ‘recurso alimentar’, mas também como marcador de uma cultura, de uma identidade. A invenção desse tipo de Unidade de Conservação, por essa ótica, é uma espécie de motor para a proteção e manutenção dos recursos naturais tão essenciais à reprodução da vida material e simbólica. No limite dessa diversidade relativa, o que comer, como, com quem, onde e como são decisões que expressam diferentes motivações de natureza simbólica, indo além do simples desejo de satisfazer as necessidades biológicas humanas. Oposições e preferências são articuladas social e culturalmente, criando os desejos por alimentos específicos, os quais estão por sua vez associados às condições contextuais do cotidiano, às experiências degustadoras per se e aos sistemas de representações locais. Aqui podemos utilizar o curioso consumo da carne de jabuti no período da Semana Santa, os tabus alimentares e a reima como ilustração. Neste ponto, o uso da fauna silvestre desempenha um papel privilegiado, ao mesmo tempo em que quebra a monotonia dietética, incorpora um valor sociocultural
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no contexto das percepções cognitivas e do domínio do habitus, um gosto adquirido e estruturado (Bourdieu, 1983a; 1983b). Os conhecimentos tradicionais que os moradores de Joana Peres têm sobre os recursos cinegéticos são fundamentais para a sua devida apropriação e utilização como fonte de alimento. Assim, textura, cheiro e sabor convergem como elementos centrais para a preparação da ‘boa’ carne de caça, que demanda uma experiência integrada quanto às características dos animais caçados, técnicas e modos de preparo, sendo estes últimos basicamente de domínio feminino. A esse respeito, é preciso salientar que, no processo alimentar (obtenção, preparo e consumo), a noção de gênero é construída a partir das diferenças de gênero e geracionais na organização familiar do trabalho, considerando que pai, mãe, filhos, e filhas desempenham tarefas diferenciadas, como já evidenciado em diversos estudos (Heredia et al., 1984; Menasche; Schmitz, 2007; Wedig et al., 2008). Ademais, importa ressaltar que a caça está inserida numa rede de troca e reciprocidade intensa na comunidade quilombola de Joana Peres, conectando parentes e vizinhos em sistemas de organização e troca de força de trabalho que visam à obtenção de itens alimentares. Considera-se, assim, que o uso da fauna silvestre para fins alimentares está inserido num contexto sociocultural bem mais complexo do que naqueles destacados na literatura acadêmica até o momento. Isso pode ser facilmente compreendido pela conexão histórica que a caça sempre manteve em diferentes culturas (Beltrán, 1966; Linares, 1976; Cooke, 1981; Godelier, 1992; Ojasti, 2000). Portanto, é necessário considerar as tradições e as especificidades locais que incidem sobre o uso dos recursos cinegéticos nas discussões de intervenção conservacionista e sobre o desenvolvimento na região.
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Kiju Sakai: o antropólogo japonês que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do século XX Kiju Sakai: the Japanese anthropologist who dedicated his life to the study of Brazil in the first half of the 20th century Marcia Lika HattoriI, André StraussI,II,III,IV I II III IV
Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil
Eberhard Karls Universität Tübingen. Tübingen, Alemanha
Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Leipzig, Alemanha
Centro de Arqueologia Annette Laming-Emperaire. Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil
Resumo: Kiju Sakai foi um antropólogo e arqueólogo japonês que veio ao Brasil em 1934. Ao longo de sua vida, ele escavou diversos sítios e formou uma importante coleção arqueológica. Até recentemente, essa coleção não estava institucionalizada e a biografia de Sakai era desconhecida. O estudo apresenta a história de constituição desta coleção, a partir da vida do antropólogo, e trazer dados sobre a curadoria do material, seus desdobramentos e contribuições para a história da Arqueologia brasileira no início do século XX e o papel dos ‘amadores’ e de instituições como a Sociedade Archaeológica Brasileira de Amadores (SABA) e o Instituto Kurihara nas pesquisas desenvolvidas no estado de São Paulo. A “Coleção Arqueológica Kiju Sakai” se encontra hoje no Museu Histórico e Arqueológico de Lins, no estado de São Paulo, e conta com os mais distintos tipos de material arqueológico, dentre os quais se destacam: cerâmicas Tupi e Jê; remanescentes humanos, provenientes de sambaquis e de montículos funerários Kaingang; artefatos líticos, lascados e polidos, de sambaquis; pontas feitas de ferro; e medalhas do Serviço Nacional de Proteção ao Índio. Além do material arqueológico, também se encontra no acervo a documentação primária que Sakai produziu, incluindo mapas de dispersão linguística na América do Sul escrito em japonês, diários de campo e aquarelas representando os motivos presentes em cerâmica Tupi. Palavras-chave: História da Arqueologia. Imigração japonesa. Instituto Kurihara. São Paulo. Sepultamentos. Abstract: Kiju Sakai was a Japanese anthropologist and archaeologist who came to Brazil in 1934. Throughout his life, he excavated many sites and formed an important archaeological collection. Until recently, however, the collection was not officially recognized and few academics knew of its existence. The very biography of Sakai is still largely unknown. The objectives of this study are to present the academic community with the collection, to introduce Sakai´s biography, to bring information about the curation of the material and its contribution to the history of the Brazilian Archaeology at the beginning of the 19th century as well as the role of the non-professional archaeologists and institutions such as th Sociedade Archaeológica Brasileira de Amadores and the Instituto Kurihara in the research developed in Sao Paulo State. The “Archaeological Collection Kiju Sakai” is now in the newly built Museum of History and Archaeology of Lins, State of São Paulo. The collection includes the most distinct types of archaeological material among which: ceramics of Tupi and Jê groups; human skeletons from riverine shell middens and Kaingang burial mounds, flaked and polished stone artifacts, projectile points made of iron and medals of the Serviço Nacional de Proteção ao Índio (the National Bureau for the Protection of Native Brazilians). In addition to the archaeological items, the collection also includes the primary documentation Sakai produced, including maps of linguistic dispersion in South America written in Japanese, field diaries and watercolors representing the motifs present in Tupi ceramics. Keywords: History of Archaeology. Japanese imigration. Kurihara Institution. São Paulo. Burial sites.
HATTORI, Marcia Lika; STRAUSS, André. Kiju Sakai: o antropólogo japonês que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do século XX. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 715-726, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222016000300010. Autora para correspondência: Marcia Lika Hattori. Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo. Av. Prof. Almeida Prado. 05508-900. São Paulo, SP, Brasil (marcia.hattori@gmail.com). Recebido em 18/06/2015 Aprovado em 18/07/2016
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Em 2002, uma coleção arqueológica é doada à Universidade de São Paulo (USP) e fica sob guarda do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), do Instituto de Biociências (IB) dessa Universidade. Tratava-se da coleção de um antropólogo japonês, que falecera em Ferraz de Vasconcelos, na região da Grande São Paulo, cujo acervo estava guardado no asilo onde vivia. Parte desse material era exposto em estantes para os visitantes do local. Após conversas entre as instituições, a coleção é transportada para a USP sob responsabilidade dos professores Astolfo Gomes Araújo e Walter Alves Neves. Aquilo que inicialmente se pensava ser uma coleção com artefatos fortuitos, coletados sem referência, era o acervo de uma instituição científica do início do século XX, que estava sob responsabilidade de Kiju Sakai, coordenador dos trabalhos de Antropologia e Arqueologia, enquanto outros, como Goro Hashimoto, estavam à frente do inventário de plantas brasileiras. Este texto apresenta a história da constituição dessa coleção, a partir da vida de Kiju Sakai, e traz dados sobre a curadoria do material, seus desdobramentos e contribuições para a história da Arqueologia brasileira, no início do século XX, e sobre o papel dos ‘amadores’ nas pesquisas desenvolvidas no estado de São Paulo.
O ANTROPÓLOGO IMIGRANTE: KIJU SAKAI Em maio de 1934, Kiju Sakai chegou ao Brasil, país que, imaginava ele, seria sua residência permanente. Nascido no Japão, sua história confunde-se com a de muitos outros que imigraram para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Seus pais eram de Toyama e instalaram-se em Hokkaido. Sakai nasceu em Tomakomai, em 1910, mas, posteriormente, transferiu seu registro civil para a vila de Hiroshima, na comarca de Sapporo. Passou a infância na cidade de Sapporo. Cursou o ensino primário na Escola Primária de Kita-Kujô e, após concluir os estudos na Escola Secundária de Sapporo I, fixou-se em Tóquio. Ficou órfão enquanto cursava Ciências Comerciais no Instituto Meiji Gakuin, que abandonou sem concluir para ir estudar na Escola de Colonização Ultramarina de Sapporo (Sakai, 1979). Sua jornada na Antropologia teve
início no Japão, onde, ainda criança, já se interessava pelas ligações fonéticas entre as palavras do japonês moderno e aquelas oriundas dos antigos habitantes da província de Hokkaido. Não só a vocação de arqueólogo já se fazia presente, como também a de etnógrafo, que levava o jovem Sakai a passar horas em meio às aldeias do interior do Japão (por exemplo a aldeia de Shiraoi), com o intuito de conhecer seu modus-vivendi, nas palavras do próprio Sakai. Já no Brasil, desperta seu interesse perceber, em sua viagem pelo interior de São Paulo, que as localidades, animais e plantas tinham nomes indígenas. Junto com outros imigrantes japoneses, ele passa a integrar diferentes grupos científicos que pesquisavam em território brasileiro, ficando responsável pelas áreas de Antropologia e Arqueologia. Documentou diferentes modos de vida no Vale do Ribeira e empreendeu ‘expedições científicas’ aos sambaquis no sul do estado de São Paulo e aos sítios relacionados a grupos Kaingang, no noroeste do estado. Os locais escolhidos estavam sempre relacionados aos núcleos de colonização para onde eram levados os imigrantes japoneses (Figura 1). Um deles era o Núcleo das Alianças, no atual município de Mirandópolis (SP), local onde, é provável, Sakai se fixou inicialmente. Digno de nota é que nenhum outro núcleo de colonização conseguiu reunir tantos intelectuais, incluindo militares,
Figura 1. Mapa do estado de São Paulo com as localidades visitadas por Sakai. O título do mapa é: “Estado de São Paulo. Colônia das Alianças”. O mapa faz referência à colônia das Alianças e ao Vale do Ribeira locais onde o antropólogo desenvolveu as pesquisas - e aos estados que fazem fronteira - Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Fonte: Sakai ([s.d.]).
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pesquisadores, funcionários do governo, artistas e religiosos (Yoshioka, 1995). Chegou a contar com um Instituto de Sericicultura, onde se produziam ovos do bicho-da-seda, além do Instituto Kurihara, criado em 1932, no município de Mirandópolis, interior de São Paulo (Figura 2), pelo lavrador Shinishi Kamiya e um grupo de ‘amadores’, que desenvolveram estudos nas áreas de Astronomia, Meteorologia, Zoologia, Botânica, Arqueologia, Antropologia e História. Em 1937, para pesquisar os sambaquis I e II do município de Pedro de Toledo (SP), Sakai recebeu a proposta para ser professor de língua japonesa na Vila de Três Barras. Paralelamente ao exercício do magistério, empenhou-se à pesquisa nos dois sítios arqueológicos, aproveitando as férias escolares (Sakai, 1981). Em agosto de 1941, juntamente com Shiniti Kamiya, Sakai viaja ao Japão para buscar auxílio e recursos para continuidade das pesquisas, mas, em dezembro do mesmo ano, a Segunda Guerra Mundial eclode e ambos ficam impossibilitados de retornar ao Brasil. [...] Logo depois de minha chegada ao Japão irrompeu a Segunda Guerra Mundial, o que me impediu de voltar ao Brasil. E assim, passou-se a mocidade para a idade adulta e ao fim entrou-me a idade avançada. Sonhava de vez em quando, no Japão, com a cena de escavação de sambaquis e túmulos de índios. (Sakai, 1979, p. 117).
Antes da Segunda Guerra Mundial, todo o valioso acervo coletado nos sítios arqueológicos estava exposto no Instituto Kurihara. Entretanto, devido à participação do Brasil
na guerra, os imigrantes japoneses se sentiam intimidados em função do decreto que congelava seus bens. Os membros do Instituto ficaram profundamente preocupados com o destino dos acervos sob sua guarda, especialmente os remanescentes humanos. Não sabendo exatamente como proceder, decidiram dividir a coleção. Uma parte ficou com Hidefumi Okubo, um dos pesquisadores do Instituto, que a transportava consigo a cada mudança (Sakai, 1981). Outra parte foi guardada por Goro Hashimoto, companheiro das pesquisas, dentro das caixas que continham as plantas cultivadas pelos japoneses e que foram transportadas até o Paraná para serem empilhadas no meio de milhares de outras caixas. Fica claro, portanto, que a rede de contatos da comunidade japonesa havia sobrevivido à guerra e tinha sido capaz de realizar o improvável, garantindo a preservação da coleção arqueológica de Kiju Sakai. Por fim, em 1967, Sakai imigra novamente ao Brasil, com a família dedicando-se à agricultura e com a convicção de se estabelecer permanentemente no país. Alguns anos após seu retorno ao Brasil, em 1978, Sakai se encontra novamente com as coleções arqueológicas e seus diários de campo. Preocupado em divulgar os trabalhos desenvolvidos, publica, em 1979, com a ajuda do arqueólogo e professor da Universidade de Tóquio, IchiroYawata, a versão em japonês do “Notas Arqueológicas do Estado de São Paulo” pela editora Rokko Shuppan-sha, de Tóquio. Em 1981, a versão em português é editada pelo Instituto Paulista de Arqueologia e impresso pela Gráfica e Editora Nippon’Art Ltda. É importante destacar que a versão em japonês apresenta inúmeros dados e trabalhos que não constam na versão em
Figura 2. Linha do tempo dos trabalhos realizados pelo Instituto Kurihara.
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português do livro, como é o caso da descrição etnográfica dos guaranis da Serra dos Itatins na região de Itanhaém (SP), relatando a vida, costumes, danças e as representações nos instrumentos musicais. Em 1981, preocupado com a divulgação dos trabalhos realizados, Sakai pede a Aurélio M. G. de Abreu que apresente a pesquisa sobre os ‘Túmulos de Terra do Interior de São Paulo’ na III Jornada Brasileira de Arqueologia, ocorrida no Rio de Janeiro. Em algum momento que não podemos determinar, Sakai se muda para Atibaia, no distrito de Tanque, e passa a viver na região da Grande São Paulo cultivando uvas e flores com seu filho. Visita ainda alguns locais por onde passou, como o sambaqui de Jipovura, no município de Iguape (SP), 41 anos depois, e segue em contato com alguns pesquisadores, incluindo o próprio Aurélio de Abreu e também Caio del Rio Garcia, do Instituto de Pré-História da USP, que o auxiliou na classificação dos ossos de animais da coleção; José Luiz Moreira Leme, do Museu de Zoologia de São Paulo, para classificação dos moluscos; Goro Hashimoto, que na época era diretor do Museu Agrícola da Colonização do Paraná e o auxiliou na classificação de plantas; e Gui Collet com quem dialogava sobre as pesquisas no interior de São Paulo. Já em idade avançada, como se referia o próprio Sakai, seu interesse e envolvimento com a Arqueologia e com a divulgação das pesquisas se mantinham, embora já vivendo um outro momento, onde vemos a institucionalização da ciência arqueológica no Brasil e as pesquisas majoritariamente desenvolvidas por arqueólogos inseridos nas instituições acadêmicas. Nos anos 1980 realiza, no Museu Municipal de Ferraz de Vasconcelos (SP), uma exposição com o acervo gerado ao longo de sua vida. Os dados dessa exposição não foram acessados pelos autores deste trabalho, embora no acervo da coleção se encontrem guias de visitação com uma breve explicação de cada artefato exposto.
O INSTITUTO KURIHARA DE PESQUISAS EM CIÊNCIAS NATURAIS E A SOCIEDADE ARQUEOLÓGICA BRASILEIRA DE AMADORES (SABA) Sakai se juntou a uma entidade de pesquisa composta exclusivamente por japoneses, cuja ata de reuniões era aberta por uma página na qual todos os membros assinavam seus nomes em torno de um círculo vermelho, como se fossem os raios de um sol nascente. Tratava-se do Instituto Kurihara, cujos pesquisadores transformaram um velho galinheiro em observatório astronômico, enviando dados para o Observatório de Kwazan1, no Japão, e para o Observatório Nacional, no Brasil (Haag, 2008). Kiju Sakai e Goro Hashimoto passam a integrar o Instituto posteriormente: o primeiro, para contribuir na área de Arqueologia; e, o segundo, na área de Botânica e Biologia (Sakai, 1981). No âmbito desse Instituto, são organizadas pesquisas arqueológicas e antropológicas, cujos dados das escavações, registros de campo e das peças estão documentadas na atual coleção Kiju Sakai. Ao longo de quatro anos, logo após a chegada de Sakai ao Japão, diferentes etapas de campo são desenvolvidas pela instituição, mobilizando inúmeros moradores dos núcleos de colonização (Figura 2). O Instituto possuía diferentes frentes de pesquisa e também contava com uma publicação, nos moldes de uma revista científica, em que estavam registrados os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores. A revista, denominada ‘Natura’, tem o primeiro número publicado em 1940 (Figura 3). Anos mais tarde, em fevereiro de 1951, após o fim da Segunda Guerra Mundial, outra publicação, denominada Boletim do Instituto Kurihara, é impressa. Em sua tese de doutoramento, Wichers (2012) chama a atenção do grupo de pesquisas no que concerne à musealização dos vestígios e à estreita relação com museus de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 1935, a
Sakai (1981) cita também um convênio firmado com o Observatório Astronômico Hanayama, de Kioto, Japão, para o intercâmbio de literatura científica e dados de pesquisa.
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sede do Instituto é transferida do Núcleo das Alianças, noroeste de São Paulo, para a capital do estado, no bairro da Liberdade, onde o acervo ficava exposto. O Instituto Kurihara é, na década de 1930, junto com o Museu Paulista (criado em 1894) e o Museu de Etnografia (vinculado à Faculdade de Filosofia), uma das poucas instituições que abrigam acervos arqueológicos no período (Wichers, 2012). Os dados referentes às pesquisas arqueológicas, com base na documentação manuseada pelos presentes autores, apontam que o Instituto Kurihara, sob coordenação de Kiju Sakai, empreendeu de maneira contínua pesquisas de campo em ao menos seis municípios do estado de São Paulo, escavou ao menos sete sítios arqueológicos e realizou etnografias em dois estados: com os guaranis, no litoral do estado de São
Paulo (Figuras 4 a 6); e com os Kadiwéu, no Mato Grosso, este último pesquisado por Osamu Sato. Outra instituição, criada em 1937 com o objetivo de empreender pesquisas arqueológicas, surge no seio do Instituto Kurihara: a Sociedade Archaeologica Brasileira de Amadores (Wichers, 2012). Parte dos integrantes, como Shinichi Kamiya, participava também do Instituto Kurihara. É importante destacar que os membros do grupo recém-criado ocupavam cargos de bastante destaque, como o presidente da Sociedade, Kozo Itige, cônsul-geral do Japão à época, e ‘Carlos’ Yoshiyuki Kato, ligado ao Banco América do Sul; Midori Kobayashi, um educador protestante, responsável pelo internato ‘Seishû Gijuku’; e Kiyoshi ‘Zenpati’ Ando, jornalista de orientação marxista. Shinichi Kamiya, que imigrou para o Brasil em 1926, é fundador do Instituto Kurihara.2
Figura 3. Capa da Revista Natura. Fonte: Natura (1940-).
Figura 4. Guaranis em Itariry, 6 de janeiro de 1940. Fonte: Sakai (1940b).
Comunicação pessoal do pesquisador Kenji Matsuzaka, do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.
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Sociedade Archaeologica Brasileira de Amadores, com sede na capital do Estado de Sáo Paulo. FIM: Estudar anthropologia em geral, particularmente archeologia sobre os habitantes pré-históricos no Brasil [...] MEMBROS DA DIRECTORIA: Presidente – KozoItige. Thesoureiro – Yoshiaki Katoh. Directores – Shiniti Kamiya, Midori Kobayashi, Kioshi Ando. (São Paulo, 1937, p. 59).
As únicas pesquisas atribuídas especificamente à SABA são a primeira etapa de escavação no sambaqui Alecrim, a vinda dos arqueólogos japoneses Ryuzo e Ryujiro Torii para o Brasil e a escavação do sambaqui de Jipovura (Figuras 7 e 8). Vale lembrar que Sakai (1981) descreve a dificuldade de obter autorização da polícia para as escavações do sambaqui
Figura 6. Escavação em um dos sepultamentos ‘túmulos de terra3’, no noroeste de São Paulo. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
Figura 7. Escavação em sambaqui no Vale do Ribeira, estado de São Paulo. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
Figura 5. Estudo das representações encontradas nos artefatos dos guaranis em Itariry. Fonte: Sakai (1940b).
Figura 8. No Rio do Azeite, no Vale do Ribeira, retornando da aldeia Guarani. Fonte: Sakai (1940b).
Termo utilizado por Sakai.
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do Alecrim, em 1936. As autoridades locais os consideravam estrangeiros e chegaram a apreender três esqueletos humanos em Pedro de Toledo (SP). Sob o nome de SABA, eles conseguem a autorização para escavações, que se seguiram, sistematicamente, por dois meses em 1937, mobilizando mais de 150 pessoas no sambaqui de Jipovura. O contexto da eminente guerra também é ressaltado por Sakai (1981). Durante os trabalhos de campo no sambaqui de Jipovura, o arqueólogo japonês Ryuzo Torii faz uma apresentação sobre arqueologia para os moradores dos núcleos de colonização, a maior parte deles imigrantes e descendentes de japoneses. Um dos moradores, filho de japoneses nascido no Brasil, perguntou ao arqueólogo Torii
o que fazer caso o Brasil e o Japão entrassem na guerra em lados opostos, uma vez que ele era brasileiro e também se sentia japonês (Sakai, 1981). Em 1940, a SABA publica um relatório denominado ‘Notas e informações sobre objetos indígenas achados em escavações efetuadas em Jypubura, Alecrim e Fazenda Aliança, 1940’ (Sakai, 1940a). Sistematizando os dados apresentados por Sakai e relacionados à duração das etapas de campo, realização, sítios arqueológicos trabalhados, financiamento e equipe, temos, para as duas instituições – SABA e Instituto Kurihara –, um verdadeiro empreendimento em termos de pesquisas desenvolvidas no início dos anos de 1930 (Quadro 1).
Duração
Realizado por
Quadro 1. Projetos de pesquisa empreendidos no litoral e oeste de São Paulo. Pesquisa arqueológica no Sambaqui de Alecrim
Pesquisa arqueológica no Sambaqui da Vila de Jipovura, no município de Iguape (SP)
Pesquisa arqueológica nos túmulos de terra do interior de São Paulo
Expedição ao Rio Preto e Itariry
SABA Kiju Sakai (individualmente)
SABA
Instituto de Ciências Naturais Kurihara.
Instituto de Ciências Naturais Kurihara.
Primeira etapa: 29 de dezembro de 1936 interrupção da polícia local Segunda etapa: 19 a 23 de junho de 1937
28 de outubro de 1940 (Lins - SP) De 21 de abril de 1937 a 12 de junho de 1937 (praticamente dois meses de campo)
Terceira etapa: um ano
Sítios arqueológicos trabalhados
(Continua)
Sambaqui I - sete quilômetros da estação férrea de Pedro de Toledo (SP), na vila onde há o encontro do Rio do Peixe, Rio Braço do Meio e Rio Mariano Sambaqui II - quatro quilômetros da Vila de Três Barras, subindo a margem do Rio do Peixe
Março de 1938 (Túmulo A de Promissão - SP) 12 de dezembro de 1938 (Túmulo B de Promissão - SP)
31 de dezembro de 1939 a 6 de janeiro de 1940.
1 de agosto de 1937 (Túmulo de Guararapes - SP)
Sambaqui de Jipovura.
Fazenda Ouro Branco, distrito de Macuco, município de Getulina (SP)
Colônia de Imigração Katsura, administrada pela colônia de imigração Ultramarina S. A.
Colônia japonesa Uetsuka, bairro de Bonsucesso, município de Promissão (SP) Colônia de Jangada, município de Guararapes (SP)
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Pesquisa etnográfica com guaranis, no interior de Jabotatuba, possivelmente no município de Itanhaém
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Financiamento
Solicitação de autorização de pesquisa
Quadro 1.
(Conclusão) Pesquisa arqueológica no Sambaqui de Alecrim
Pesquisa arqueológica no Sambaqui da Vila de Jipovura, no município de Iguape (SP)
Pesquisa arqueológica nos túmulos de terra do interior de São Paulo
Expedição ao Rio Preto e Itariry
Polícia local
Sakai fez o pedido para o Dr. Langue de Morretes, do Museu do Ipiranga (atual Museu Paulista da Universidade de São Paulo). Ambos foram solicitar no dia 24 de abril autorização para escavação na delegacia policial da cidade de Iguape (SP).
Sem informação
Sem informação
Sem informação.
Empresa Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha4, pelo sr. Iwao Nakano, valor lançado como despesas extras da Companhia que administrava a colônia de imigração - recursos para escavação e hospedagem.
Sem informação
Sem informação
Túmulo de Lins (SP): Goro Hashimoto e Kiju Sakai, do Instituto Kurihara; e Motomu Konda, médico e morador da cidade de Lins;
Equipe
Primeira etapa: Kozo Itige Segunda etapa: 17 pessoas Terceira etapa: Kiju Sakai
176 pessoas, além dos colaboradores da Colônia Katsura
Túmulo A de Promissão (SP): Shinichi Kamiya e Kiju Sakai, do Instituto Kurihara, e moradores da região; Túmulo B de Promissão (SP): Fumihide Okubo e Kiju Sakai, do Instituto Kurihara, e moradores da colônia japonesa local;
Goro Hashimoto, Kiju Sakai, Jusuke Ohshiro e Masakazu Ohashi
Túmulo de Guararapes (SP): Kiyoshi Araki, jornalista do Nambei Shimpo, e moradores da região.
A Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, empresa de desenvolvimento industrial e rural de apoio aos imigrantes japoneses implantada em Registro, em 1912, à época um bairro pertencente ao município de Iguape. A KKKK, como ficou conhecida, funcionava como beneficiadora de arroz e como entreposto cooperativo. Em 1937, a empresa foi dissolvida e os seus bens vendidos a diversos proprietários. O conjunto é formado por amplos galpões em tijolos aparentes, com arcadas nas elevações principais, envolvendo janelas e portas. As coberturas são em duas águas, apoiadas sobre estruturas de tesouras metálicas. Em 2000, o Governo Estadual iniciou a restauração do edifício que atualmente abriga o Centro de Formação Continuada de Gestores da Secretaria de Estado da Educação e o Memorial da Imigração Japonesa. Fonte: http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.bb3205c597b9e36c3664eb10e2308ca0/?vgnextoid=91b6ff bae7ac1210VgnVCM1000002e03c80aRCRD&Id=f4031aa56faac010VgnVCM2000000301a8c0____
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A CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA: A CURADORIA DA COLEÇÃO Toda a documentação que se encontrava no asilo em Ferraz de Vasconcelos (SP) e que foi levada ao Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH-IB-USP) fora submetida a um tratamento de higienização. A coleção arqueológica, composta por artefatos líticos, cerâmica, artefatos ósseos, fauna, remanescentes humanos, entre outros itens, foi curada, catalogada, organizada, e seu inventário foi entregue ao Museu Histórico e Arqueológico de Lins (SP), depositário da coleção. A partir da organização desse material, pudemos desdobrar a história de Sakai e construir uma narrativa sobre parte das pesquisas arqueológicas do início do século XX. Com seu retorno ao Brasil, bastante conhecido na comunidade japonesa, Kiju Sakai acaba recebendo artefatos encontrados por agricultores e, a partir do que recebe, elabora relatórios com a apresentação de quem enviou as peças, a localidade de onde foram retiradas e uma listagem com numeração e descrição das peças recebidas (Figuras 9 a 13). A curadoria do acervo possibilitou entender que a coleção é composta por um conjunto relacionado às pesquisas empreendidas por Sakai, a partir de instituições como a SABA e o Instituto Kurihara, na década de 1930, e outra parte, relacionada a um conjunto formado por diversas doações feitas por imigrantes japoneses e seus descendentes a Kiju Sakai. Essas doações vêm, em sua maioria, de diferentes municípios do estado de São Paulo, como Marília, Mirandópolis, Lençóis Paulistas, Vinhedo, Registro, Analândia e Mogi das Cruzes. Dentre as peças oriundas de outros estados, a maioria é proveniente de Guaíra, no Paraná, ainda que material de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e nove peças, cuja procedência é indicada como Amazônia, também estejam presentes. O predomínio de peças vindas do Paraná, possivelmente, indica a presença nesse estado de um outro pesquisador japonês, que, posteriormente, doou sua coleção a Sakai. A curadoria dos remanescentes humanos, exumados durante as pesquisas arqueológicas empreendidas
por Sakai, soma o total de 1916 fragmentos ósseos relativos a, pelo menos, 30 sepultamentos humanos. Os remanescentes arqueológicos não esqueléticos somam 6924 itens catalogados.
Figura 9. Cadernos de campo de Kiju Sakai. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
Figura 10. Cerâmica Tupi pertencente à coleção arqueológica Kiju Sakai. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
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Figura 11. Aquarelas pintadas por Sakai para documentar os fragmentos de cerâmica coletados. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
Figura 12. Pote cerâmico coletado por Kiju Sakai. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
Figura 13. Pontas de metal encontradas por Sakai durante escavação dos montículos de terra, sepultamentos relacionados aos Kaingang. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
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O material etnográfico é, majoritariamente, oriundo do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, é, possivelmente, relacionado às pesquisas empreendidas por Osamu Sato. A seção da biblioteca do Instituto Kurihara com os livros sobre Arqueologia e Antropologia também ficou sob a guarda de Kiju Sakai. Obras de Angyone Costa, Rudolf von Ihering, Estevão Pinto, Raymundo Panafort, Roquete Pinto, Teodoro Sampaio, Hans Staden, Jean de Lery, Visconde de Taunay, General Couto de Magalhães, Aníbal Mattos, Benedito Calixto, Raymundo Lopes e João Barbosa Rodrigues compunham o acervo de 119 livros que acompanhou a coleção arqueológica. O restante da documentação e acervo do Instituto Kurihara está, atualmente, em um centro de pesquisas na região de Itaquera, no município de São Paulo. Da documentação primária associada a Sakai constam 131 textos, entre publicações, cadernos de campo, jornais, panfletos, pasta com desenhos das cerâmicas Kadiwéu, relatórios, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS As etapas de escavação realizadas nas colônias japonesas do Vale do Ribeira e do Noroeste Paulista, muito mais do que achados fortuitos, se delineavam como verdadeiras investigações científicas, com pesquisadores de diferentes áreas: Agronomia, Paleontologia, Astronomia e Arqueologia. Durante seu primeiro período no Brasil, Sakai dedicou-se às pesquisas de maneira quase sistemática, nos anos de 1937, 1938, 1939, 1940 e 1941 (Sakai, 1940a, 1940b, 1979, 1981), quando viaja ao Japão. O contexto histórico, a Segunda Guerra Mundial e o envolvimento do Japão e do Brasil no conflito acabam por interromper, de maneira decisiva, as pesquisas científicas desenvolvidas pelos imigrantes japoneses. A curadoria do acervo Kiju Sakai possibilitou construir uma nova narrativa sobre um momento da história da
Arqueologia brasileira pouco abordado, que antecede a institucionalização da Arqueologia como ciência, somado a uma desconstrução da figura de Sakai como mero colecionador. Sua preocupação na divulgação das pesquisas que desenvolveu, seu retorno ao Brasil e encontro com a coleção arqueológica e a documentação relacionada nos mostram o pesquisador engajado (a seu tempo). Igualmente, os artefatos reunidos por Sakai, doados a ele por diferentes imigrantes japoneses que encontravam essas peças no manejo com a terra, apontam também para outra relação, que possibilita repensar o que é valorização do patrimônio, conforme salienta Bezerra (2011), quando refletimos sobre a relação das populações com os ‘lugares e coisas’. O exemplo, apresentado por Alfonso e Hattori (2012), sobre a construção do tori (templo japonês) ao lado do sepultamento Kaingang e a reverência dos imigrantes japoneses aos indígenas ali sepultados, nos possibilita repensar outras relações de pertencimento. Algumas questões permanecem abertas: por que havia o interesse do governo japonês em financiar as pesquisas no território brasileiro? Seria apenas um elemento da estratégia colonialista? De alguma maneira, o diálogo entre as pesquisas (ao menos as arqueológicas) do Brasil e do Japão certamente fora muito mais estreito no início do século XX e foi profundamente afetado pela Segunda Guerra Mundial. Arqueólogos como Ryujiro e Ryuzo Torii5, da Universidade de Sophia, estiveram no Brasil e participaram de escavações no Vale do Ribeira (SP), em diálogo com as instituições em parte financiadas pelo governo japonês, o Instituto Kurihara e a Sociedade Archaeologica Brasileira de Amadores (SABA). Ichiro Yawata, da Universidade de Tóquio, veio em outro momento, no ano de 1954, para o primeiro Congresso Internacional de Americanistas, realizado em São Paulo, e explorou sambaquis no município de Cananeia, litoral
Ryuzo Torii (1870-1953) era antropólogo, etnólogo e arqueólogo. É considerado o pai da Antropologia no Japão. Desenvolveu pesquisas na China, Taiwan, Coreia, Rússia e na América do Sul. Segundo pesquisadores, seus trabalhos de campo ascendem e decaem paralelamente ao imperialismo japonês.
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Kiju Sakai: o antropólogo japonês que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do século XX
do estado. Segundo Sakai (1981), o arqueólogo japonês descreveu essa pesquisa em um artigo à ‘Correspondência Arqueológica’, da Universidade de Nippon, sob o título ‘Notícias da América do Sul’ (Yawata, 1955). Por fim, é fundamental salientar que a história da arqueologia no país ainda trata esse período de atuação do antropólogo Kiju Sakai (período do entreguerras) como época dos amadores ou de poucas pesquisas arqueológicas e de falta de recursos para manter a efervescência da produção do século anterior (Barreto, 1999-2000). Retomar o histórico desses trabalhos, bem como realizar novas pesquisas com essa coleção, certamente trará à tona outros olhares para a história da constituição da Arqueologia no Brasil.
AGRADECIMENTOS Nossos agradecimentos às pessoas que contribuíram para a preservação deste acervo: Astolfo Araújo, Walter Neves, Robson Rodrigues, Louise Alfonso, Camila Wichers, Tiago Hermenegildo, Camila Zanini, Francisco Pugliese, Rafael Santos, Marisa Afonso, Pedro Damin, Sara Herter, Michele Tizuka e Leticia Ribeiro. Às instituições LEEH-IB-USP, Fundação Araporã, Secretaria de Desenvolvimento Sustentável de Lins (SP) e Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, na pessoa de Kenji Matsuzaka, por todo o apoio. REFERÊNCIAS ALFONSO, Louise Prado; HATTORI, Márcia Lika. Território e apropriação no Noroeste Paulista: educação e implantação do Museu Histórico e Arqueológico de Lins. In: CURY, Marília Xavier; VASCONCELLOS, Camilo de Mello; ORTIZ, Joana Monteiro (Coord.). Questões indígenas e museus: debates e possibilidades. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura, 2012. p. 151-162. (Coleção Museu Aberto). Trabalhos apresentados no Encontro Paulista de Questões Indígenas e Museus, 1., e no Seminário Museus, Identidades e Patrimônio Cultural, 3.
BARRETO, Cristiana. A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da Arqueologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, dez.-fev. 1999-2000. BEZERRA, Márcia. “As moedas dos índios”: um estudo de caso sobre os significados do patrimônio arqueológico para os moradores da Vila de Joanes, ilha de Marajó, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan.-abr. 2011. HAAG, Carlos. A terra da ciência nascente: a contribuição nipônica para a pesquisa brasileira. Revista Pesquisa FAPESP, n. 151, p. 86-89, set. 2008. NATURA. São Paulo: Instituto Kurihara da Ciência Natural Brasileira, 1940-. SAKAI, Kiju. Notas Arqueológicas do Estado de São Paulo. São Paulo: Instituto Paulista de Arqueologia, 1981. SAKAI, Kiju. Archaeological investigations in São Paulo, Brazil. Anthropological papers of the Anthropological Society of Tokyo, v. 87, n. 4, p. 25-52, 1979. SAKAI, Kiju. Notas e informações sobre objetos indígenas achados em escavações efetuadas em Jypubura, Alecrim e Fazenda Aliança. In: COLEÇÃO Arqueológica Kiju Sakai: inventário da documentação. [S. l.]: SABA, 1940a. p. 1-40. SAKAI, Kiju. Estudo das representações encontradas nos artefatos dos guaranis em Itariry. Revista Natura, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 99-114, 1940b. Expedição ao Rio Preto e Itariry. SAKAI, Kiju. Diário de campo. In: COLEÇÃO Arqueológica Kiju Sakai [s. d.]. SÃO PAULO (Estado). Sociedade Archaeologica Brasileira de Amadores. Diario Oficial [do] Estado de São Paulo. São Paulo, n. 57, p. 59, 13 mar. 1937. WICHERS, Camila Azevedo de Moraes. Patrimônio arqueológico paulista: proposições e provocações museológicas. 2012. 382 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. 2 v. YAWATA, Ichiro. Notícias da América do Sul. Correspondência Arqueológica, n. 3, não paginado, maio 1955. YOSHIOKA, Reimei. Por que migramos do e para o Japão. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995.
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Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais Archaeobotany of a southern Brazilian shell midden: integrating evidence about the paleoenvironment and the use of forest resources João Carlos Ferreira de Melo JúniorI, Eloiza Regina da SilveiraII, Dione da Rocha BandeiraIII I
Universidade da Região de Joinville. Laboratório de Anatomia e Ecologia Vegetal
Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade. Joinville, Santa Catarina, Brasil II III
Universidade da Região de Joinville. Joinville, Santa Catarina, Brasil
Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville. Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade. Joinville, Santa Catarina, Brasil
Resumo: Madeiras in natura são testemunhos raros em sítios arqueológicos de tipologia sambaqui. A partir da evidência de estacas encharcadas de madeira na base do sítio, objetivou-se conhecer as espécies vegetais e a sua funcionalidade no contexto arqueológico do sambaqui Cubatão I, localizado na região norte de Joinville, Santa Catarina, e com base datada de 3480 ± 60 AP. A caracterização da madeira foi realizada por meio de preparações histológicas e seguiu a terminologia proposta pela International Association of Wood Anatomists (IAWA). A determinação dos táxons deu-se mediante comparação em coleção de referência. Foram reconhecidas diferentes espécies madeiráveis de ocorrência natural nos ambientes de manguezal, floresta de terras baixas e restinga. Destacaram-se os seguintes táxons: Andira sp. (Fabaceae), Avicennia schaueriana (Acanthaceae), Bauhinia sp. (Fabaceae), Buchenavia sp. (Combretaceae), Handroanthus sp. (Bignoniaceae), Laguncularia racemosa (Combretaceae), Ocotea sp. (Lauraceae), Rhizophora mangle (Rhizophoraceae), Schinus sp. (Anacardiaceae) e Xylopia (Annonaceae). Entre as propriedades físicas que conferem qualidade às madeiras identificadas, destaca-se a densidade básica, com valores médios a altos em sua maioria, indicando seu uso potencial em elementos com função estrutural. Dentre as possíveis interpretações, os resultados evidenciam o uso de madeiras para a construção de uma plataforma projetada para dar sustentação ao sítio, possivelmente em função das características plásticas dos solos de manguezal. Palavras-chave: Patrimônio cultural. Arqueologia brasileira. Paleoetnobotânica. Sambaqui. Santa Catarina. Abstract: Woods in nature are rare evidence in archaeological sites sambaqui typology. From the evidence of wood soaked piles at the base of the site, is aimed to know the species and its functionality in the archaeological context of sambaqui Cubatão I, located in the northern region of Joinville, Santa Catarina, and based dated 3480 ± 60 BP. The characterization of the timber was performed by histological preparations and following the terminology proposed by IAWA. The determination of taxa occurred through comparison with wood reference collections. Different timber species were recognized that naturally occur in mangrove environments, lowland rainforest and sand dunes, which included the following taxa: Andira sp. (Fabaceae), Avicennia schaueriana (Acanthaceae), Bauhinia sp. (Fabaceae), Buchenavia sp. (Combretaceae), Handroanthus sp. (Bignoniaceae), Laguncularia racemosa (Combretaceae), Ocotea sp. (Lauraceae), Rhizophora mangle (Rhizophoraceae) Schinus sp. (Anacardiaceae) and Xylopia (Annonaceae). Among the physical properties that confer quality to the identified woods are their high overall basic density, which indicates their potential use as structural elements. Among the possible interpretations, the results suggest the use of wood to construct a platform, possibly designed to increase structural support above the mangrove swamp soils. Keywords: Cultual heritage. Brazilian archeology. Paleoethnobotany. Sambaqui. Santa Catarina state.
MELO JÚNIOR, João Carlos Ferreira de; SILVEIRA, Eloiza Regina da; BANDEIRA, Dione da Rocha. Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 727-744, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000300011. Autor para correspondência: João Carlos Ferreira de Melo Júnior. Universidade da Região de Joinville. Laboratório de Anatomia Vegetal. Rua Paulo Malschitzki, n. 10. Joinville, SC, Brasil. CEP 89219-710 (jcmelo_wood@hotmail.com). Recebido em 29/01/2015 Aprovado em 18/07/2016
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Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais
INTRODUÇÃO Estudos que mostram a interação entre culturas humanas passadas e plantas são reconhecidos como importantes fontes de informação para a arqueologia, uma vez que as plantas teriam atendido às necessidades básicas dessas populações, servindo como alimento, combustível, materiais para a construção de abrigos, roupas e ferramentas (Hastorf; Popper, 1988; Hastorf, 1999; Pearsall, 2000), bem como as relacionadas aos contextos ritualísticos (Bianchini et al., 2007). Apesar de as condições de conservação dos vestígios de origem vegetal serem consideradas pobres em sítios arqueológicos da região tropical (Stahl, 1995; Tengberg, 2002), a criação da técnica da flotação (Pearsall, 1995) e a proposição de amostragens padronizadas para macrovestígios bioarqueológicos (Scheel-Ybert et al., 2005-2006) representam avanços metodológicos nas técnicas de recuperação de vestígios orgânicos nas pesquisas arqueobotânicas, possibilitando ampliar o potencial de análise do uso das plantas por populações pretéritas, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo. No Brasil, as interpretações sobre o uso de plantas por populações pretéritas durante muito tempo foram unicamente baseadas nas descobertas realizadas pela Antracologia, a partir da madeira e de sementes carbonizadas comumente encontradas nos sítios arqueológicos, associadas a fogueiras (Vernet et al., 1994; Scheel-Ybert, 1998, 1999, 2000, 2001; Bianchini, 2008; Beauclair et al., 2009, 2011; Melo Júnior; Ceccantini, 2010; Scheel-Ybert et al., 2009; Secchi, 2012). Atualmente, tem-se ampliado seu potencial interpretativo pela inserção de outros elementos, como fibras (Ceccantini; Gussella, 2001; Peixe et al., 2007), estacas de madeira in natura (Ceccantini, 2002; Ceccantini; Fernandez, 2005; Bianchini et al., 2007), frutos e sementes (Gussella, 2003; Nakamura et al., 2010) além de fitólitos e amidos (Freitas, 2002; Wesolowski, et al., 2007; Iriarte; Dickau, 2012). Não obstante o grande avanço metodológico nas pesquisas arqueológicas, a preservação de vestígios de
origem vegetal nos sítios arqueológicos é determinada pela sua fragilidade e, principalmente, por fatores como problemas geoquímicos do solo, chuvas torrenciais, temperaturas elevadas, erosão, entre outros que contribuem para o seu desaparecimento. Plantas são os itens arqueológicos mais frágeis e dificilmente resistem à decomposição microbiana (Hastorf; Popper, 1988). Entretanto, é possível encontrar restos orgânicos arqueológicos em locais cujas condições climáticas são extremas (seco ou úmido), na ausência de oxigênio no sedimento ou em solos calcários (Kamase, 1999). Em sítios sul-brasileiros de tipologia sambaqui ainda são poucos os estudos com restos vegetais in natura. O trabalho realizado por Peixe et al. (2007), com estruturas radiculares de Philodendron sp. (Araceae) tratadas como fibras para produção de cordas, nós e trançados, é considerado pioneiro na região e indicador da anatomia vegetal como importante ferramenta de análise de macrorrestos vegetais recuperados em matrizes arqueológicas. Os sambaquis são mundialmente conhecidos como colinas ou montes artificiais, de dimensões variadas, construídos em grande parte com conchas de moluscos bivalves, além de outros materiais, como ossos de animais e artefatos. Dada sua proximidade com o litoral, sua abrangência temporal e espacial - são encontrados sambaquis nos cinco continentes e desde 300 mil AP -, eles são importantes “marcadores do comportamento humano com particular ênfase na interação homemambiente” (Balbo et al., 2011, p .147) e, “considerando a trajetória da dispersão humana, esses grupos representam a última expressão de uma tradição que tem suas raízes dentro da emergência e dispersão do homem moderno na África do Sul” (Balbo et al., 2011, p. 147). Devido às dimensões monumentais de muitos sambaquis, acredita-se que serviam como marcadores territoriais e identitários (Gaspar, 2000). Ocorrem preferencialmente em planícies litorâneas do Holoceno e estão inseridos nas paisagens formadas pelos
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manguezais, estuários, florestas aluviais e restingas. Há uma enorme variedade na forma, tamanho (entre 1 a 30 m de altura) e localização dos sambaquis. Na maioria dos sambaquis pesquisados, a existência de sepultamentos humanos, estruturas de combustão e restos alimentares indica que eram utilizados como moradia (Bandeira, 2005), embora estudos recentes venham interpretando alguns sambaquis como locais cerimoniais para o sepultamento e a reverência aos antepassados (Kokler, 2010). Sambaquis mais antigos registram ocupação em cerca de 6.500 AP (Gaspar, 2000), enquanto os mais recentes apresentam datação de 1.110 AP (Bryan, 1993). Apesar de o modo de vida das populações sambaquianas ter sido interpretado basicamente pela cultura material associada aos esqueletos humanos, artefatos e vestígios de animais (Bandeira, 2004), a ocorrência de vestígios vegetais em sambaquis pode não ser exclusiva a um determinado sítio, mas sua evidência requer métodos de recuperação em campo mais apropriados (Scheel-Ybert et al., 2005-2006; Ochoa et al., 2013). Apesar da investigação de madeiras encharcadas ser comum em sítios arqueológicos subaquáticos que exibem embarcações naufragadas em diferentes períodos da civilização humana (Giachi et al., 2003; Capretti et al., 2008), o mesmo não ocorre abundantemente em outras tipologias de sítios arqueológicos no Brasil, tendo registro, por exemplo, de estacas de madeiras recuperadas em abrigos rupestres de Santa Elina, Mato Grosso (Ceccantini, 2002), e estacas de uso ritual no sambaqui Jaboticabeira, Santa Catarina (Bianchini et al., 2007). Assim, a rara presença de madeiras encharcadas em sambaquis brasileiros é uma preciosa fonte de informações sobre o uso de recursos florestais e suas propriedades tecnológicas pelas populações coletoras-pescadoras. O presente estudo teve como objetivos: a) conhecer a identidade taxonômica das espécies de madeiras recuperadas na camada arqueológica da base do sambaqui Cubatão I; b) discutir a funcionalidade das estruturas em
madeira na arquitetura construtiva do sítio arqueológico; c) inferir sobre processos de seleção ou não de recursos florestais pela população sambaquiana; d) inferir sobre o estado de conservação das madeiras arqueológicas.
MATERIAL E MÉTODOS ÁREA DE ESTUDO O sítio arqueológico Sambaqui Cubatão I está localizado na região nordeste do município de Joinville, estado de Santa Catarina, sob as coordenadas UTM: 7099808 N e 722575 E (Bandeira et al., 2009) (Figura 1). Encontra-se junto à foz do rio Cubatão, na margem direita, em área sujeita a inundações marinhas periódicas (Gonçalves et al., 2006). Estudo estratigráfico realizado no perfil exposto na face nordeste do sítio em função do processo erosivo fluviomarinho demonstrou a existência de 20 camadas de distribuição irregular, compostas em sua maior parte por sedimento arenoso (Tabela 1). As camadas inferiores (1 a 4) apresentam-se mais planas, espessas e homogêneas, possuindo, além de outros vestígios orgânicos, estacas de madeiras cruzadas e dispostas nos planos horizontal e vertical, muitas vezes atadas por cordas trançadas, predominantemente na camada 2 (Figuras 2 e 3) (Bandeira et al., 2009). Esse sítio foi datado entre 3480 ± 60 AP (1430 – 1120 AC), a base, e 2250 ± 40 AP (400 – 200 AC), topo (Figuti, 2009). O estudo estratigráfico permitiu levantar a hipótese de que o processo de construção do sítio Cubatão I se deu por meio de, pelo menos, duas técnicas distintas que formam, atualmente, dois estratos/blocos: 1) Um, composto pelas camadas 1 e 2 com o emprego de material mineral (fragmentos de rochas angulosas) e vegetal: estacas e amarrações (madeiras e fibras); 2) Outro, composto pelo acréscimo de diferentes camadas, com predominância de material faunístico (restos de moluscos) e sedimentos. (Bandeira et al., 2009).
Escavação de sondagem por meio de duas trincheiras no topo do sítio até a profundidade de 130 cm,
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Figura 1. Localização do sítio arqueológico Sambaqui Cubatão I, município de Joinville, região nordeste de Santa Catarina. Fonte: Bandeira et al. (2009, p. 121).
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realizada entre os anos de 2006 e 2009, identificou duas áreas: uma com concentração de sepultamentos (num total de 21 com 23 indivíduos) e outra com restos de fogueiras e grandes conchas de ostras (Figuti, 2009). Durante as pesquisas realizadas nesse sítio, poucos artefatos confeccionados de rochas e ossos foram coletados, a maioria estando associada aos sepultamentos (Figuti, 2009). Estes dados indicam que pelo menos no final da ocupação o sítio tinha uma
função cerimonial (Figuti, 2009). Estudo com os restos faunísticos indicam que os peixes foram os animais mais consumidos, sendo os bagres, seguidos do baiacu e da corvina, os mais localizados (Fossile, 2013). O entorno do sítio é ocupado por propriedades rurais cobertas por vegetação atlântica (Knie, 2002), caracterizada por florestas ombrófilas de terras baixas e aluviais, restinga e manguezal em diferentes estádios sucessionais.
Tabela 1. Caracterização das camadas estratigráficas identificadas no Sambaqui Cubatão I, Joinville, Santa Catarina. Características Camada Datação AP estratigráfica (C14) Coloração Compactação Textura Presença de estacas 1
2.250±40
Cinza médio (base)
Não
Rugosa
Não
2
-
Cinza escuro, com marcas de estacas horizontais
Não
Rugosa
Sim
3
-
Cinza médio
Não
-
Não
4
-
Clara médio com lentes amarelada
Sim
-
Não
5
-
Cinza médio com lentes mais claras
Não
-
Não
6
-
Cinza escuro
Sim
-
Não
7
-
Cinza médio
Sim
-
Não
8
-
Cinza médio com fina lente no centro
Sim
-
Não
9
-
Cinza claro mesclado com cinza escuro
Não
-
Não
10
-
Cinza médio
Não
Rugosa
Não
11
-
Várias lentes, cinza claro, cinza escuro e amarela
Não
-
Não
12
-
Várias lentes, cinza claro e cinza escuro, bolsão de conchas soltas
Não
-
Não
13
-
Cinza escuro
Não
Rugosa
Não
14
-
Várias lentes, cinza claro, bolsão de conchas soltas
Não
-
Não
15
-
Cinza claro com conchas
Não
-
Não
16
-
Cinza escuro
Não
Homogênea
Não
17
-
Cinza claro
Não
-
Não
18
-
Cinza claro com bege
Não
-
Não
19
-
Cinza escura
Não
-
Não
20
3480 ± 60
Bege (topo)
Não
-
Não
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Figura 2. Caracterização do sítio arqueológico Sambaqui Cubatão I: A) vista panorâmica do perfil erodido do sítio (Fonte: Bandeira et al., 2009, p. 122); B) topografia do sítio, sua delimitação espacial e estacas mapeadas (+) (Fonte: Bandeira et al., 2009, p. 139); C) estratigrafia (camada 1 e 2 da base mais escura com estrutura de madeiras, desenhos representam estacas horizontais) (Fonte: Bandeira et al., 2009, p. 130); D) representação esquemática de ocorrência das estacas de madeiras cruzadas e atadas por cordas na base do sítio (Fonte: Bandeira et al., 2009, p. 140).
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Figura 3. Estacas de madeira encontradas em disposição vertical nas camadas estratigráficas inferiores do sítio arqueológico Sambaqui Cubatão I, Joinville, Santa Catarina, SC. Fonte: Bandeira et al. (2009, p. 138). Barra de escala = 10 cm.
COLETA E PRESERVAÇÃO DAS MADEIRAS ENCHARCADAS A coleta do material lenhoso encharcado foi efetuada pelo Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (MASJ) durante o estudo detalhado do perfil erodido na face nordeste do sítio (Bandeira et al., 2009) e em coletas fortuitas durante vistorias ao sítio desde o ano de 2006. Em função da ação da maré, porções do sítio desmoronaram e o material lenhoso foi exposto. Assim, as estacas verticais são, na maioria das vezes, fragmentadas quando ocorre o desmoronamento, permanecendo a parte inferior enterrada na ‘praia’ entre o sítio e o rio. Aquelas estacas que estavam expostas no momento de visita ou trabalho no sítio foram coletadas. Todas as madeiras foram salvaguardadas no acervo arqueológico do referido museu. Sua conservação ex situ foi realizada pelo acondicionamento das madeiras em diferentes meios líquidos, com predomínio da imersão total das amostras em solução tamponada Karnovsky (Karnovsky, 1965), cuja eficiência em frear o processo de deterioração dos componentes estruturais da madeira foi testada por Santos (2010), o que gerou um protocolo para coleta e conservação de madeiras arqueológicas encharcadas (Santos et al., 2013).
MICROTÉCNICA E ANÁLISE DAS MADEIRAS ENCHARCADAS As madeiras arqueológicas aqui estudadas, num total de 30 amostras, foram aquelas salvaguardadas no MASJ e testadas quanto à sua conservação (Santos, 2010). Em função da condição de encharcamento da madeira tanto in situ quanto ex situ, que provocou a falta de consistência do lenho da maioria das amostras, estas tiveram duas formas distintas de preparação histológica. Prepararam-se as amostras que mantiveram as características de integridade e rigidez do tecido por meio das técnicas usuais em anatomia da madeira, com obtenção de cortes histológicos nos planos transversal, longitudinal radial e longitudinal tangencial em micrótomo de deslize e navalha tipo C (Johansen, 1940; Sass, 1951). Em seguida, os cortes foram clarificados em hipoclorito de sódio, lavados em água destilada, corados com safrablau, desidratados em série etílica crescente (Kraus; Arduin, 1997) e montados em resina sintética do tipo verniz vitral (Paiva et al., 2006). As demais amostras de madeira, friáveis ao corte de navalha, foram preparadas com a junção de protocolos de histologia animal e de anatomia da madeira acima descrita. Após secção manual dos planos de observação da madeira, as amostras foram acondicionadas em
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cápsulas plásticas e receberam banhos de desidratação de álccol etílico absoluto, xilol e parafina aquecida, com posterior emblocamento em parafina (Beçak; Paulete, 1976). Após enrijecimento da parafina por congelamento, cortes histológicos foram obtidos em micrótomo rotatório e navalha de vidro fosca, transferidos para banho histológico a 55º C e pinçados para as lâminas. Para a desparafinação, as lâminas foram acondicionadas em estufa a 70 ºC por 30 minutos, sendo transferidas para cubas com xilol e novamente colocadas em estufa por mais 10 minutos (Becker, 1997). Em seguida, os procedimentos de coloração e montagem da lâmina em resina sintética seguiram as técnicas convencionais da anatomia da madeira. A descrição anatômica das madeiras arqueológicas baseou-se na terminologia sugerida pelo International Association of Wood Anatomists Committee (Wheeler et al., 1989). A determinação taxonômica aconteceu, principalmente, por comparação em coleção de referência da Xiloteca (JOIw) da Universidade da Região de Joinville (Melo Júnior et al., 2014), a qual possui lâminas histológicas de espécies de madeiras ocorrentes nos ambientes característicos da região de localização do sambaqui estudado, banco de dados Inside Wood (2010) e obras de referência (Record; Hess, 1943; Metcalfe; Chalk, 1950; Détienne; Jacquet, 1983; Mainieri; Chimelo, 1989). Informações sobre a densidade básica da madeira foram obtidas da literatura (Mainieri; Chimelo, 1989).
RESULTADOS E DISCUSSÃO ANATOMIA DAS MADEIRAS ENCHARCADAS E USO DE RECURSOS FLORESTAIS A integridade parcial da arquitetura da madeira das estacas permitiu a caracterização anatômica de vários atributos estruturais importantes para a diagnose das espécies. No entanto, em muitos casos, não foi possível mais detalhamentos de certas estruturas, como as pontoações intervasculares, raiovasculares e em fibras,
a espessura da parede das fibras e as inclusões minerais. As principais características utilizadas na diagnose dos táxons das madeiras arqueológicas são apresentadas na Tabela 2. A Figura 4 ilustra a anatomia das madeiras arqueológicas identificadas. Todos os táxons identificados correspondem a espécies madeiráveis com registro de ocorrência comum na mata atlântica, incluindo as formações de floresta ombrófila stricto sensu e restinga (JBRJ, 2014). As espécies Avicennia schaueriana, Laguncularia racemosa e Rhizophora mangle possuem ocorrência restrita à formação de manguezal, sendo as únicas plantas arbóreas desse ambiente na região sul do país (Lima; Tognella, 2012). A espécie L. racemosa representou a matéria-prima de maior uso dentre as estacas estudadas, abrangendo 40% das amostras. Essa distribuição natural das espécies nos ambientes próximos ao sítio parece ter sido um dos critérios de seleção das madeiras identificadas no sambaqui. Majoritariamente, as espécies identificadas no sítio são plantas de hábito arbóreo que podem atingir consideráveis dimensões e que, em associação a elevadas densidades (Tabela 3), têm sido utilizadas na atualidade em obras externas e na construção civil (Lorenzi, 1992; Paula; Alves, 2007), demonstrando sua resistência mecânica às forças de tração e compressão, além de, em geral, baixo ou médio risco de fendilhamento (Mainieri; Chimelo, 1989). A densidade pode conferir à madeira boa resistência mecânica e durabilidade em condições naturais (García, 1995). Trabalhos realizados em sítios arqueológicos coloniais brasileiros demonstraram haver certa preferência por madeiras construtivas com média a alta densidade, indicando um critério de seleção baseado nas propriedades físicas e mecânicas da madeira (Terezo, 2004; Andreacci; Melo Júnior, 2011; Melo Júnior, 2012a, 2012b; Melo Júnior; Boeger, 2015). Das madeiras aqui identificadas, apenas Avicennia schaueriana e Xylopia sp. são consideradas como de baixa durabilidade e resistência ao ataque de xilófagos (Lorenzi, 1992, 2009).
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Figura 4. Aspecto geral da estrutura anatômica das madeiras das estacas arqueológicas do Sambaqui Cubatão I, em seção transversal: A) Andira sp; B) Avicennia schaueriana; C) Bauhinia sp.; D) Buchenavia sp.; E) Handroanthus sp.; F) Laguncularia racemosa; G) Ocotea sp.; H) Rhizophora mangle; I) Schinus sp.; J) Xylopia sp. Barra de escala = 200 µm.
735
+ -
Vasos exclusivamente solitários
Vasos múltiplos
736 +
Parênquima aliforme
-
-
-
Parênquima difuso
+
-
Fibras septadas
Parênquima escasso
-
Pontuação intervascular escalariforme
Parênquima vasicêntrico
-
+
Pontuação intervascular alterna
+
+
-
-
+
-
-
Placa de perfuração escalariforme
+
28-36
40-63
+
-
+
3
manguezal
+
31-39
Fabaceae
Bauhinia sp.
+
+
-
-
-
-
+
-
+
3-6
108-126
-
+
+
3
floresta
Mague-preto Pata-de-vaca
Placa de perfuração simples
Frequência dos vasos (número/mm2)
69-85
+
Camadas de crescimento
Diâmetro tangencial do vaso (µm)
1
Floresta e restinga
Ambiente de ocorrência
Amostras identificadas
Angelim
Fabaceae Acanthaceae
Família
Nome popular
Andira sp.
Espécie
Avicennia schaueriana
+
-
-
-
-
-
+
-
+
15-21
79-140
+
+
-
1
floresta
Amarelão
Combretaceae
Buchenavia sp.
+
+
-
-
-
-
+
-
+
16-22
51-83
+
+
+
1
Floresta e restinga
Ipê
Bignoniaceae
Handroanthus sp.
+
-
-
-
-
-
+
-
+
30-38
56-73
+
+
-
12
Manguezal
Mangue-branco
Combretaceae
Laguncularia racemosa
-
-
+
-
+
-
+
-
+
26-34
43-61
+
-
+
4
Floresta e restinga
Canela
Lauraceae
Ocotea sp.
-
-
+
+
-
+
-
+
-
89-122
30-39
-
+
-
2
manguezal
Mangue-vermelho
Rizophoraceae
Rizophora mangle
-
-
+
+
-
-
+
-
+
29-35
50-69
+
-
+
2
Floresta e restinga
Aroeira
Anacardiaceae
Schinus sp.
-
-
+
-
-
-
+
-
+
30-40
50-75
+
+
-
1
Floresta e restinga
Pindaíba
Annonaceae
Xylopia sp.
Tabela 2. Características anatômicas de diagnose das madeiras arqueológicas recuperadas da camada estratigráfica 2 do Sambaqui Cubatão I e sua correspondência taxonômica. (Continua)
Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais
-
Estratificação
-
+
Raios heterogêneos
Depósitos de gomas/resinas
-
Raios homogêneos
-
+
Raios de 1-3 células de largura
Canais intercelulares de origem traumática
-
Raios unisseriados
-
-
Parênquima escalariforme
Células oleíferas
-
Parênquima em faixas
-
+
Parênquima marginal
-
-
Floema incluso
+
Parênquima confluente
Parênquima unilateral
Tilose
Andira sp.
Espécie
Tabela 2.
737 -
-
-
-
+
-
+
-
+
-
-
-
-
-
+
Avicennia schaueriana
-
-
-
-
-
-
+
-
+
-
-
+
-
-
-
Bauhinia sp.
-
+
-
-
-
-
+
-
-
+
-
-
-
-
+
Buchenavia sp.
+
-
-
-
-
+
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+
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-
+
+
+
Handroanthus sp.
-
-
-
-
-
-
+
-
-
+
-
-
-
-
+
Laguncularia racemosa
+
-
+
+
-
-
+
-
+
-
-
-
-
-
-
Ocotea sp.
-
-
-
-
-
-
-
+
+
-
-
+
-
-
-
Rizophora mangle
-
-
-
-
-
-
+
-
+
-
-
+
-
-
-
Schinus sp.
+
-
-
-
-
-
+
-
+
-
+
-
-
-
-
Xylopia sp.
(Conclusão)
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Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais
Tabela 3. Táxons identificados por meio da anatomia da madeira das estacas arqueológicas do Sambaqui Cubatão I, aspectos gerais das plantas, densidade da madeira e aplicações atuais. Legendas: * = extraída de Mainieri e Chimelo (1989); ** = extraída de Lorenzi (1992). Táxon
Família
Aspecto geral (altura, m; diâmetro do tronco, cm)
Densidade da madeira (g.cm³)
Aplicações
Andira sp.
Fabaceae
2-12 / 30-50
0,84*
Obras externas, estacas, tábuas e mourões
Avicennia schaueriana
Acanthaceae
3-6 / 20-35
0,86*
Tábuas
Bauhinia sp.
Fabaceae
3-5 / 15-25
0,94*
Estacas, mourões e lenha
Buchenavia sp.
Combretaceae
5-12 / 30-50
0,92*
Caibros, vigas, moirões e estacas
Handroanthus sp.
Bignoniaceae
15-40 / 40-150
0,98*
Acabamentos internos e externos de construções
Laguncularia racemosa
Combretaceae
3-5 / 20-30
0,92*
Vigotes, esteios, traves e moirões
Ocotea sp.
Lauraceae
5-10 / 20-30
0,76*
Construção civil
Rhizophora mangle
Rhizophoracea
5-10 / 20-30
0,87*
Vigas, caibros, esteios e obras imersas
Schinus sp.
Anacardiaceae
1-8 / 20-40
0,39*
Lenha
Xylopia sp.
Annonaceae
4-6 / 15-25
0,70**
Caixaria leve
As propriedades físico-mecânicas das madeiras arqueológicas, aliadas à distribuição geográfica dos táxons identificados, são indicadoras do uso de recursos florestais obtidos em formações vegetacionais circundantes ao sítio arqueológico que tenham passado por algum tipo de seleção, como evidenciado na seleção de madeiras para uso combustível num sítio paleoíndio de Minas Gerais (Melo Júnior; Magalhães, 2015). Árvores com fustes retilíneos teriam sido ideais para a confecção das estacas e sua posterior orientação vertical e horizontal, criando uma espécie de estrado ou plataforma de assentamento do sítio arqueológico, muito possivelmente para dar-lhe sustentação ante a grande plasticidade dos solos associados ao manguezal (região de depósitos paludiais e flúvioestuarinos). Atualmente, aterros sobre solos moles são estabilizados com o emprego de estacas que consistem na transferência do peso a solos profundos de maior resistência. Estudo que reuniu dados geomorfológicos da região indica que, no período inicial da ocupação, a área sofreria influência de maré, dificultando a ocupação humana (Fossile, 2013). A construção de um aterro poderia ser uma alternativa para o assentamento no local.
Estudos arqueológicos realizados em sítios arqueológicos brasileiros de diferentes tipologias têm mostrado o uso de recursos vegetais em função de atributos peculiares a cada espécie, cuja aplicabilidade está relacionada ao uso tecnológico (Ceccantini; Gussella, 2001; Mertz et al., 2014), ritual (Bianchini et al., 2007), propriedades combustíveis (Melo Júnior; Magalhães, 2015) e obtenção de alimentos com maiores reservas nutricionais (Wesolowisk et al., 2007; Nakamura et al., 2010). Assim, apesar da presença dos testemunhos vegetais permitir diferentes interpretações quanto ao uso da flora por populações pré-coloniais, a adição de características como a densidade, potencial porte das árvores, uso atual das madeiras e posição na camada arqueológica das amostras analisadas neste estudo sugere o uso estrutural das madeiras no sítio.
CONSERVAÇÃO DAS MADEIRAS ENCHARCADAS As estacas de madeira recuperadas do perfil exposto do Sambaqui Cubatão I encontravam-se muito friáveis em função da condição de encharcamento das camadas estratigráficas da base do sítio, que culminou em processos
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de deterioração do material lenhoso. Todas as madeiras apresentaram-se saturadas por água e, em grande parte, tinham consistência esponjosa. Algumas estacas também tinham perfurações em forma de galerias, provocadas pela
instalação de Teredo sp., um molusco marinho comumente associado aos caules de Laguncularia racemosa (Figura 5A). Dentre os agentes degradadores da madeira em ambientes marinhos, os moluscos bivalves dos gêneros Teredo e Bankia
Figura 5. Aspectos da preservação das madeiras arqueológicas do Sambaqui Cubatão I: A) galerias formadas pela instalação do molusco Teredo sp. em madeira de Laguncularia racemosa; B) degradação da madeira de Andira sp. por desprendimento da parede celular secundária em fibras (setas); C) preservação da estrutura anatômica da madeira de Handroanthus sp. pela presença acentuada de gomas/óleo-resina em células dos parênquimas axial e radial e nos vasos (setas). Barra de escala = 2 cm (A), 20 µm (B) e 100 µm (C).
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Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais
são considerados os mais importantes causadores de severos prejuízos ao cerne (Unger et al., 2001). Mesmo completamente enterradas na matriz sedimentar rica em calcário e numa condição anaeróbica, o que possibilita a preservação da madeira por um tempo muito longo, podem ser observados diferentes graus de deterioração provocados por modificações físicas e químicas na madeira (Capretti et al., 2008). Conforme Kim e Singh (2000), em condições de alagamento, a deterioração da madeira é ocasionada pela perda de componentes da parede celular do lúmen em direção à lamela média. Essa degradação ocorre pela ação enzimática de agentes bióticos, como fungos e bactérias, que atuam gradual e continuamente sobre a madeira, sendo as bactérias os únicos organismos capazes de degradar a madeira em condições anaeróbicas do ambiente (Powell et al., 2001). Conforme observado nas estacas do sítio arqueológico estudado neste trabalho, a degradação da madeira foi caracterizada pela distorção do citoesqueleto celular, com achatamento tangencial das células, e pelo desprendimento da parede celular secundária (Figura 5B). Para Blanchette (2000), tais características são tidas como as principais manifestações de deterioração em madeiras arqueológicas, em que as paredes celulares são convertidas em substância amorfa composta por bactérias e material lenhoso residual. Essa perda progressiva de material lenhoso provoca a redução da densidade da madeira e o aumento da sua permeabilidade, o que resulta, além da saturação por água, no inchaço da madeira (Fengel, 1991), visto também no material estudado. Por outro lado, a natureza química da madeira pode desempenhar um importante papel na manutenção da densidade e manutenção da estrutura histológica e celular do xilema (Pereira et al., 2003). A presença de células parenquimáticas axiais e radiais e de vasos condutores obstruídos por gomas ou óleos/resinas foi constatada nas estacas de Handroathus sp., cuja estrutura anatômica foi considerada a mais bem preservada entre todas as madeiras estudadas, não apresentando os sinais de deterioração supradescritos (Figura 5C). Estudo experimental de
resistência ao intemperismo demonstrou que, dentre as espécies de madeiras tropicais avaliadas, a de Handroanthus impetigionosus é aquela que apresenta maior resistência natural à degradação por intemperismo, resultando em longa durabilidade do lenho (Silva et al., 2007).
CONCLUSÃO O progressivo processo erosivo no perfil do sítio arqueológico Cubatão I tornou evidente uma estrutura construtiva ainda não registrada em sítios arqueológicos de tipologia sambaqui, cuja funcionalidade está presumivelmente associada às características das madeiras identificadas e sua relação a um tipo de assentamento do sítio em razão da sua localização na paisagem marcada pela ocorrência de solos plásticos de manguezal. Diferentes espécies de madeira constituem as matérias-primas utilizadas para a produção das estacas dispostas vertical e horizontalmente nas camadas basais do sambaqui, sendo a densidade média a alta uma característica comum entre a maioria das madeiras empregadas. Tais resultados apontam que, dentre os critérios de seleção das madeiras usadas na produção dessa estrutura construtiva, está a disponibilidade de recursos madeireiros nos ecossistemas de entorno, assim como as propriedades físicas e mecânicas do lenho das espécies identificadas. Por outro lado, mesmo sendo esta a explicação mais plausível, não é possível eliminar outras possibilidades de interpretação sobre o uso das madeiras aqui identificadas. AGRADECIMENTOS Ao Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (MASJ), pela cessão das madeiras arqueológicas recuperadas do Sambaqui Cubatão I para a realização da pesquisa arqueobotânica ao primeiro autor. À especialista em Conservação e Restauro, MSc. Adriana Maria Pereira dos Santos, do MASJ, pelo grande incentivo a este estudo. Ao Laboratório de Anatomia e Ecologia Vegetal da Univille, pelo suporte material e instrumental dado à produção dos dados.
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Arqueobotânica de um sambaqui sul-brasileiro: integrando indícios sobre o paleoambiente e o uso de recursos florestais
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‘Culturas de Chimpanzés’: uma revisão contemporânea das definições em uso ‘Chimpanzee Cultures’: a contemporary view of the definitions in use Eliane Sebeika RapchanI, Walter Alves NevesII I
Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil II
Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil
Resumo: As ‘culturas de chimpanzés’ correspondem a uma ideia especialmente importante porque chimpanzés são os animais mais próximos aos humanos em termos genéticos e de complexidade de comportamento. Uma avaliação crítica desses fenômenos irá certamente redefinir as fronteiras entre humanos e não humanos. Além disso, criará novas formas de representação da humanidade e sua alteridade. Consequentemente, é também urgente discutir as definições de cultura porque as concepções de ‘culturas de chimpanzés’ adotadas pelos primatólogos são profundamente distintas das concepções de cultura adotadas pelos antropólogos socioculturais. Há um consenso crescente entre os antropólogos socioculturais de que cultura envolve necessariamente a produção de sentidos e a manipulação de símbolos. O que os primatólogos frequentemente apresentam está muito distante disso. Para os antropólogos, cultura é a expressão plena de representações, mitos, arte, rituais e ciência. Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa bibliográfica feita sobre 24 periódicos representativos da área, de 1999 a 2011. Do material encontrado, 63 artigos que apresentam explícitas ou implícitas definições de ‘culturas de chimpanzés’ foram identificados e analisados. Um dos resultados mais importantes é que a grande maioria dos conceitos apresentados não se sustenta sobre concepções de cultura que envolvam a produção de significados e a manipulação de símbolos. Palavras-chave: Comportamento social de chimpanzés. Definição de cultura. Teoria antropológica. Trabalho de campo. Abstract: ‘Chimpanzee culture’s’ idea is a very important topic because chimpanzees are, genetically and behaviorally, the closest animals to humans. A critical assessment of these phenomena will certainly redefine the frontiers between humans and non-humans. Likewise, it may create new forms of representing the humanity and its alterity. Consequently, it’s urgent to discuss the definitions of ‘culture’ because the conception of’ ‘chimpanzee cultures’ adopted by primatologists is far from the sociocultural anthropologists’ conception of culture. At the same time, there is a growing consensus among the sociocultural anthropologists that culture necessary involves the production of meanings and the manipulation of symbols. What primatologists frequently present is far from modern sociocultural anthropologists’ conceptions. For the later, culture is the full expression of representations, myths, art, rituals and science. This paper presents the results of a bibliographical research that was carried out in 24 representative journals of the area from 1999 to 2011. From this survey 63 papers presenting explicit or implicit definitions of ‘chimpanzee cultures’ were identified and analyzed. One of most important results is that the great majority does not rely on a concept of culture that involves production of meanings and manipulation of symbols. Keywords: Chimpanzee social behavior. Culture definition. Anthropological theory. Field work.
RAPCHAN, Eliane Sebeika; NEVES, Walter Alves. ‘Culturas de Chimpanzés’: uma revisão contemporânea das definições em uso. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 745-768, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10. 1590/1981.81222016000300012. Autora para correspondência: Eliane Sebeika Rapchan. Universidade Estadual de Maringá. Avenida Colombo, 5790 – Jardim Universitário. Maringá, PR, Brasil. CEP 87020-970 (esrapchan@gmail.com). Recebido em 03/06/2014 Aprovado em 18/07/2016
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‘Culturas de Chimpanzés’: uma revisão contemporânea das definições em uso
CULTURA EM VERSÃO PRIMATOLÓGICA A primatologia dedicada ao estudo do comportamento promoveu, nas últimas seis décadas, uma profunda revolução no conhecimento sobre primatas não humanos ao publicar dados até então desconhecidos (De Waal, 2000, 2007; Gibson; Ingold, 1995; Goodall, 1991; Rapchan, 2005, 2012; Rapchan; Neves, 2005, 2014; Whiten et al., 1999; Wrangham et al., 2001; Tomasello, 1999a). Este artigo pretende, num sentido teóricoepistemológico amplo, promover uma reflexão crítica acerca do conteúdo e das consequências dos resultados desses estudos sobre a definição de humano ao analisar a correlação entre as definições de cultura de chimpanzés adotadas pelos primatólogos e apresentadas em artigos publicados em periódicos internacionais, de grande impacto na comunidade acadêmica, a partir de 1999, e as concepções antropológicas de cultura. Tal correlação se justifica na medida que o consenso em torno do reconhecimento da existência de complexidade social e de capacidades cognitivas amplas em não humanos questiona concepções filosóficas e antropológicas sobre as relações entre natureza e cultura em seus moldes clássicos. Ou seja, tanto abre brechas para revisões rigorosas dos determinismos biológico e cultural, quanto revisita possibilidades outrora impensadas de reflexão sobre o lugar e o papel de aspectos físicos e não físicos da evolução em relação aos primatas, particularmente em nossa espécie. Além disso, o material analisado reforça a percepção de que é urgente refletir sobre as mudanças nas concepções clássicas sobre humanos e não humanos, bem como sobre as relações possíveis entre eles, tanto empíricas quanto analíticas. Entre elas estão as cogitações acadêmicas sobre a atribuição de alteridade a não humanos (Rapchan, 2010, 2012; Rapchan; Neves, 2014; Stanford, 1998), os debates jurídicos e filosóficos sobre a possibilidade de extensão da condição de pessoa a não humanos (Lestel, 2004; Cavalieri; Singer, 1995; Teubner, 2006) e também as análises que apontam para um reposicionamento ético
em relação a animais não humanos (Armstrong; Botzler, 2008; Beauchamp; Frey, 2011; Gruen, 2011). Em resumo, os resultados apresentados aqui visam, particularmente, a produzir subsídios para questionar concepções de “natureza humana” que se tornaram ultrapassadas (Haraway, 1990; Ingold, 1994; Latour; Woolgar, 1997) e desconstruir antigos parâmetros definidores da condição humana, a partir da proposição de um diálogo consistente entre as biociências e a antropologia sociocultural. Wolfgang Köhler (1887-1967) é considerado o primeiro a sugerir e desenvolver pesquisas em laboratório orientado pela ideia de que primatas não humanos poderiam produzir algo semelhante à cultura humana (McGrew, 2007). Contudo, é a década de 1960 que marca a origem das pesquisas modernas sobre comportamento de chimpanzés selvagens, com os trabalhos pioneiros de Jane Goodall, Christopher Boesch e também do primatólogo japonês Toshisada Nishida (Stanford, 1998). Foram tais pesquisas que originaram o debate acadêmico sobre a existência de culturas entre chimpanzés selvagens. Nesse contexto, o artigo de McGrew e Tutin (1978) merece destaque por ter sido, senão a primeira, ao menos a mais influente comunicação acadêmica a efetivamente aplicar o termo ‘cultura’ para explicar variações entre o groominge o groominghandclasp praticado por duas populações distintas de chimpanzés selvagens em Gombe (Tanzânia) e na Floresta de Taï (Costa do Marfim), respectivamente. Desde aquele período, os primatólogos têm publicado dados surpreendentes sobre os chimpanzés: nas florestas, eles vivem em grupos complexos que possuem sofisticada dinâmica social, produzem e usam conjuntos de ferramentas específicos de cada grupo (Gruberet al., 2012; McGrew 1992, 2010; Möbius et al., 2008; Schöning et al., 2008; Whiten et al., 1999), caçam em grupo (Boesch, C.; Boesch, H., 1989; Boesch-Achermann; Boesch, 1994), têm comportamentos sociais próprios a cada população, dissimulam diante dos mais fortes e demonstram extensa e complexa capacidade cognitiva em vários segmentos (Whiten et al., 1999; Whiten, 2005a, 2011) .
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Numa outra vertente de pesquisa, desde a década de 1970, pesquisadores dedicados ao aprendizado de linguagem humanizada e não vocal por chimpanzés (Fouts; Mills, 1997) e bonobos (Savage-Rumbaugh; Rumbaugh, 1995; Segerdahl et al., 2006), os quais vivem em ambientes humanizados, têm fornecido muitos dados sobre cognição, transmissão de comportamentos e aprendizado social. Mais recentemente, pesquisas sobre comunicação entre grandes símios têm enfocado a expressão corporal e vocalização natural com resultados surpreendentes em relação ao comportamento vocal de humanos e de chimpanzés (Fedurek; Slocombe, 2011; Hobaiter; Byrne, 2011; Liebal et al., 2004; Crockford et al., 2004; Whiten; Erdal, 2012) Estes estudos têm enriquecido e aquecido os debates sobre inteligência, vida social, comunicação e aprendizado entre esses animais, bem como sobre a evolução da linguagem humana. Contudo, a iniciativa de tratar comportamentos de primatas não humanos a partir de uma concepção de cultura surgiu, num núcleo distante do ocidente, na primatologia japonesa na década de 1950 (Perry, 2006), inicialmente dedicada ao estudo de uma espécie nativa, Macaca fuscata, popularmente conhecido como macaco-japonês. A primatologia japonesa daquele período usava termos distintos para os fenômenos identificados (kaluchua era o termo aplicado a não humanos) e entendia que as culturas humanas são fenômenos distintos dos comportamentos observados entre os macacos, mas orientava-se pela possibilidade de que são as interações sociais que produzem as variações comportamentais (Perry, 2006) A primeira iniciativa de McGrew e Tutin (1978) no sentido de associar as variações intergrupais verificadas entre duas populações africanas de chimpanzés à ideia de cultura surgiu, talvez não por acaso, quando esses dois jovens primatólogos visitaram a reserva de Taï, então coordenada por Toshisada Nishida. Além disso, das leituras feitas sobre concepções antropológicas de cultura, McGrew e Tutin (1978) selecionaram a de Edward Tylor
(1832-1917) e Alfred Kroeber (1876-1960) (Davidson; McGrew, 2005). De Kroeber adotaram os seis critérios propostos para identificar cultura: inovação, disseminação, estandardização, durabilidade, difusão, tradição. A estes fatores, McGrew e Tutin (1978) acrescentaram a não-subsistência (nonsubsistence) (comportamentos não associados à sobrevivência) e a naturalidade (comportamento não estimulado por influência humana) (Lestel, 1998). Curiosamente, o aspecto que aproxima a síntese da concepção de cultura proposta por Kroeber e Kluckhohn (1952, p. 153) da capacidade de “simbolização”, “generalização” e “substituição imaginativa” não é explorada inicialmente pelos primatólogos, sendo ainda hoje comum nos estudos cognitivos em laboratório (Biro; Matsuzawa, 2001) e rara entre chimpanzés selvagens (Boesch, 2001). O impacto do artigo publicado em 1978 foi que McGrew e Tutin anunciaram mais claramente que, além dos humanos, ao menos os grandes símios produzam cultura (Davidson; McGrew, 2005). Perry (2006) assinala que a maioria dos primatólogos ocidentais, indiferentes à ‘questão da cultura’ até a década de 1990, com raras exceções, abraçaram fortemente o propósito de investigar as ‘culturas de chimpanzés’ a partir de então. Segundo Lestel (1998), embora nem uma única população chimpanzé apresente todas essas características simultaneamente, a cada critério indicado correspondem dados sobre o comportamento dos chimpanzés que são dignos de nota. Atualmente, as concepções correntes de ‘culturas de chimpanzés’ não são mais tão formais ou explicitamente tributárias de Kroeber e Kluckhohn (1952). Modelos explicativos mais contemporâneos, fortemente influenciados pela teoria evolutiva, como os da “inteligência maquiavélica” (Byrne; Whiten, 1988), da cultura cumulativa (Tomasello, 1999b; Tennie et al., 2009) e da teoria da mente (Mindreading) (Call; Tomasello, 2008) foram acoplados às discussões sobre as ‘culturas de chimpanzés’, mas o núcleo original dessa concepção ainda influencia significativamente as concepções primatológicas de cultura.
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A partir de 1990 os primatólogos ocidentais aproximaram suas observações sobre variações nos padrões de comportamentos de chimpanzés africanos de uma concepção de cultura que se parece parcialmente com as concepções da primatologia japonesa (Asquith, 2000). Em relação ao enfoque no uso de ferramentas (McGrew, 1992; Whiten et al., 1999; Wrangham et al., 2001), vale ressaltar que esse interesse sinaliza um esforço comparativo entre humanos e chimpanzés pautado na exploração paleoantropológica, que, além dos ossos, busca, nas ferramentas, indícios para gerar modelos sobre comportamento (Klein, 2000, 2009; Neves, 2013). No entanto, apesar do reconhecimento da importância da vida social dos primatas, os estudos ocidentais dedicados às ‘culturas de chimpanzés’ têm uma história de afastamento e aproximação em relação às ciências sociais, com predomínio do primeiro tipo de movimento. Assim, se os primeiros trabalhos contaram com influências do trabalho de campo e da teoria antropológica, como é o caso de DeVore (1965) entre os babuínos, ou com a ausência de formações acadêmicas rígidas em psicologia ou biologia, como é o caso de Godall, Fossey e mesmo Galdikas (Jahme, 2001), posteriormente a primatologia iniciou e tem mantido uma forte aproximação da sociobiologia (Perry, 2006). Ao mesmo tempo, mais recentemente, a aproximação entre a primatologia ocidental e a japonesa, que conta, entre outras coisas, com a realização de inúmeras pesquisas conjuntas e a publicação da revista japonesa Primates em inglês, parece estar ocorrendo uma flexibilização do campo (Asquith, 2000, 2010; Perry, 2006). O impactante artigo ‘Chimpanzee Cultures’ publicado em 1999 por um grupo de primatólogos influentes na Nature definiu uma nova era na primatologia ocidental. A era das ‘culturas de chimpanzés’, por sua vez, é marcada por muitas inovações na primatologia e por novas questões, críticas e apropriações advindas de outras áreas do conhecimento (Asquith, 2011; Haraway, 1989), pela possibilidade do delineamento de novas áreas de pesquisa e, principalmente, pela redefinição do que seja humanidade (Asquith, 2011;
Rapchan; Neves, 2014; Whiten, 2005a, 2005b), que Ingold (1994) sinaliza como um processo recorrente do conhecimento ocidental. Ou, como sinalizam Whiten et al. (2003, p. 92), ao anunciar que “chimpanzee also exihibit such cultural variation thus not in itself evolutionary. What is new is the richness of the phenomena uncovered in recent years and here reviewed.” Ao mesmo tempo, a surpresa diante das novidades sobre as variações verificadas nos comportamentos de chimpanzés é atenuada pelo fato de o fenômeno identificado como ‘tradição’, concebido como o conjunto das variações intergrupais, observadas num conjunto de comportamentos transmitidos entre gerações e verificadas em inúmeras espécies de mamíferos (Rendell; Whitehead, 2001), aves e peixes, ser algo já bastante conhecido pelos etólogos, há décadas (Lorenz, 1995). O que parece muito valorizado por alguns primatólogos (Boesch, 2001, 2003) em relação ao comportamento de chimpanzés, frente a outras espécies, é a quantidade de comportamentos variantes registrados, ou tradições, (Whiten et al., 2003) e os arranjos singulares de cada conjunto de comportamentos que particulariza cada grupo como único (Whiten, 2005a), como ocorre entre culturas humanas. Atualmente, há cerca de quarenta diferentes tradições registradas na África (Whiten; Erdal, 2012). Múltiplas tradições variantes foram identificadas apenas em chimpanzés e humanos e isso, segundo muitos primatologistas, marca a diferença entre culturas (humanas e chimpanzés) e outras tradições animais (De Waal, 1999; Whiten, 2005a). “Each local chimpanzee community hás a unique array of specific traditions, representing a ‘package’ that can be described as its local culture.” (Whiten, 2005a, p. 53). Tal critério de distinção não é contudo um consenso, como sinalizam os comentários de Rendell e Whitehead (2001) e de Galef sobre o tema (Boesch; Tomasello, 1998; Galef, 1992). Nota-se que, diante de tamanha extensão e variedade comportamental, a ponto de o conjunto de padrões reproduzidos por cada grupo expressar arranjos
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únicos, e do surpreendente número de ferramentas, que varia em torno de 20 tipos em cada grupo (McGrew, 2010), os primatólogos dedicados às pesquisas sobre chimpanzés seguem registrando a estabilidade dos padrões comportamentais registrados, a variabilidade intergrupal desses padrões, a pluralidade e a recorrência dos padrões costumeiros, mas também têm ousado em direção à realização de experimentos com chimpanzés selvagens (Gruber et al., 2012; Sakura; Matsuzawa, 1991) e ao estabelecimento de comparações com outros primatas humanos e não humanos, recorrentemente os macacosprego (Boesch, 2012; Falótico et al., 2016). Para alguns primatólogos, o alto número de padrões de comportamento variável aproximaria mais os chimpanzés da condição de seres culturais frente a outros não humanos (Boesch, 2001, 2003). Além disso, a ideia da existência de ‘culturas de chimpanzés’ também adquire importância como parâmetro comparativo fundamental para compreender a evolução humana tomando os primeiros como modelos vivos do comportamento de nossos ancestrais. (Lycett et al., 2007; Whiten; Erdal 2012; Lycett et al., 2009; Whiten et al., 2009; McGrew, 2010; Langergraber et al., 2010; Whiten et al., 2001; Whiten, 2011). Entretanto, nem a primeira nem a segunda premissa são consensuais. Os paleoantropólogos, por exemplo, consideram a validade das pesquisas sobre comportamento de grandes símios selvagens como modelos vivos dos nossos antepassados, o que remete às iniciativas consistentes de Louis Leakey (Goodall, 1991) e Sherwood Washburn (De Vore, 1965) na década de 1960. Por outro lado, há debates sobre o alcance desses modelos em relação à chamada Revolução Criativa, Humana (Diamond, 1992) ou Cultural (Harari, 2015; Klein, 2009; Mithen, 1996; Rapchan; Neves, 2005). Ou seja, ou a cultura é um fenômeno que surgiu apenas no Paleolítico Superior (Ingold, 1996; Klein, 2009; Mithen, 1996) ou ela é um fenômeno verificável entre os hominídeos pré Sapiens e, provavelmente, entre outras espécies e, daí, o alcance dos modelos pode ser maior ou menor.
Além disso, há, atualmente, pelo menos, duas maneiras de se pensar as ‘culturas de chimpanzés’, considerando dois aspectos centrais do comportamento, que são ‘variação’ e ‘transmissão’. Às vezes, elas aparecem juntas e relacionadas; em outras, são tidas como fenômenos distintos ou diferenciados em termos de impacto e importância. À medida que as ‘culturas de chimpanzés’ foram identificadas como fenômenos “não genéticos”, considerados parcialmente independentes (Laland, 2008b) ou complementares aos fatores ambientais (Gruber et al., 2012), mais pesquisadores têm enfocado seus mecanismos de transmissão e suas dinâmicas sociais. Para tratar a transmissão de comportamentos, sua variabilidade e a produção de inovações, como pontos críticos do tema ‘culturas de chimpanzés’, pesquisadores têm desenvolvido estratégias, infelizmente, quase sempre isoladas da antropologia sociocultural e da sociologia, para explorar e refletir sobre o ‘social’ (Boesch, 2003; Van Schaik; Pradhan, 2003), o “aprendizado social”, o “aprendizado individual” (Boesch, 2003; Call; Tennie, 2009) e mecanismos de aprendizado (Ripoll; Vauclair, 2001; Whiten, 2001) como, por exemplo, a facilitação do aprendizado (Boesch, 2003; De Waal, 1999; Premack; Hauser, 2001), a imitação (Castro; Toro, 2004; Janson; Smith, 2003; Slater, 2001; Whiten et al., 2001; Whiten, 2005a), os mecanismos de tentativa e erro (Boesch, 2003; Castro; Toro, 2004; Gruber et al., 2009; Schöning et al., 2008) e o efeito engrenagem “ratcheteffect” (Lycett et al., 2007) abordando chimpanzés, humanos e outros, como os cetáceos (Rendell; Whitehead, 2001; Whiten, 2001). O aprendizado é, por sua vez, um capítulo à parte. Há algumas décadas, Ingold (2001) sinalizou que chimpanzés aprendem, mas não ensinam porque não elaboram e não transmitem conceitos abstratos. Nos anos seguintes, primatólogos buscaram oferecer respostas a essa assertiva (Boesch, 2003; De Waal, 1999; Janson; Smith, 2003; Lycett et al., 2009; Mitchell, 2001; Premack; Hauser, 2001; Slater, 2001) Mais recentemente, Whiten e Erdal (2012, p. 2126) sinalizaram, “Despite the yawning
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gulf in the cultural achievements of chimpanzees and humans, the rich core of cultural cognition is shared and this likely reflects ancestor”. Entre eles, estão o aprendizado imitativo e emulativo, a seletividade para modelos de ação, a conformidade às normas, o controle intencional da repetição entre outros. Contudo, entre os chimpanzés, cada um desses aspectos parece evoluir devido aos benefícios que eles oferecem aos indivíduos. Essas observações merecem grande destaque, pois, do ponto de vista da antropologia sociocultural, qualquer fenômeno só é efetivamente cultural se for, também, realizado coletivamente (Ingold, 1996). A mesma observação já foi feita por Walter Neves em relação a outros representantes da espécie humana na apresentação de “O colar do Neanderthal”, de Arsuaga (2005). Dean et al. (2012) chegaram a conclusões semelhantes. Ao comparar os conjuntos de habilidades sociocognitivas de crianças humanas, chimpanzés e macacos-prego, verificaram que há uma distinção fundamental entre as primeiras e os outros dois no que tange ao domínio de habilidades pedagógicas (ensinar predominantemente por instrução verbal), imitação e pró-sociabilidade (altruísmo). Ou seja, enquanto para chimpanzés e macacos-prego interagir com os aparatos usados nos testes de laboratório significa procurar recursos favoráveis a eles mesmos, para os humanos esses dois fatores foram fundamentais para promover uma performance de alto nível que os pesquisadores associam diretamente à capacidade cumulativa da cultura humana que, para autores como Tomasello (1999a), seria o maior diferencial entre as culturas humanas e as culturas de outros animais. Na evolução humana, as interações positivas entre cada um desses aspectos sociocognitivos refletem sobre vantagens que também são sociais. Os registros sobre comportamento de chimpanzés em campo não são fáceis de obter, particularmente em relação à transmissão na relação entre adultos e filhotes. Eles implicam, por exemplo, em aproximar-se de mães e seus filhotes (para verificar a transmissão vertical), por períodos de tempo compatíveis, o que não é tarefa
das mais fáceis, dado que elas costumam manter-se relativamente isoladas para se protegerem por um bom tempo depois do nascimento. Há mais dados sobre transmissão obtidos em laboratórios e sobre variabilidade de comportamentos sobre chimpanzés selvagens, mas isso está se modificando nos últimos anos (Gruber et al., 2012; Whiten; Erdal, 2012). Trabalhos como os de Luncz et al. (2015) registram evidências arqueológicas de conformidade comportamental de indivíduos migrantes encontrados na floresta de Taï. Em que pesem os problemas relacionados a atribuir comportamentos em contextos arqueológicos, os dados identificados apontam indícios de processos relevantes na incorporação de usos de ferramentas por fêmeas migrantes. É importante lembrar aqui que há profundas diferenças entre as pesquisas dedicadas a chimpanzés selvagens e aos nascidos em cativeiro. Elas são distintas sob a perspectiva metodológica, epistemológica e teórica. Devido à enorme importância do meio e da experiência nos estímulos cognitivos e das interações sociais nos processos de aprendizado dos chimpanzés, discute-se que chimpanzés selvagens e chimpanzés nascidos em cativeiros são seres profundamente distintos. Pode-se cogitar que talvez seja possível prever melhor o comportamento e os humores e reconhecer as individualidades dos animais em cativeiro do que dos animais selvagens (Asquith, 2011). Segundo alguns pesquisadores (Carpenter et al., 1995), se é possível afirmar que chimpanzés selvagens possuem ‘cultura’, então chimpanzés de laboratório são “enculturados” por humanos. Apesar disso, há mais de duas décadas, alguns pesquisadores de laboratório e de campo têm buscado comparar seus resultados e manter diálogo (Whiten et al., 1999; Wrangham et al., 2001). O comportamento animal, do ponto de vista da transmissão intergeracional, oferece a fascinante perspectiva de violação da premissa da seleção natural. Em tese, a transmissão pode gerar variações fenotípicas no espaço e, sob determinadas circunstâncias, estes
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comportamentos podem tanto permitir a reprodução de comportamentos adaptativos ou comportamentos arbitrários e mal adaptativos (Laland, 2008a, 2008b; Slater, 2001; Wrangham, 2006). Podem, ainda, abrir brechas para se pensar sobre a ‘autonomia do social’ entre animais não humanos, ou seja, a possibilidade de que a dinâmica comportamental reproduza a si mesma e siga suas próprias regras, independentemente dos mecanismos evolutivos, como ocorre com os coletivos humanos. Mas que problema há em usar o termo ‘cultura’ para definir e orientar análises sobre comportamentos de primatas não humanos? Como Ingold (2001) já mencionou, as concepções culturalistas que resultaram no compêndio de Kroeber e Kluckhohn (1952) e foram adotadas pelos primatólogos na década de 1970 são consideradas ultrapassadas pela antropologia há décadas (Ingold, 2008; Kuper, 2005). A maioria dos antropólogos as criticou e as abandonou. Antropólogos descartaram tais concepções de cultura não apenas devido a um problema conceitual, mas também por suas limitações empíricas. Ou seja, o conceito culturalista de cultura foi sendo considerado pobremente funcionalista (ao estabelecer relações causais entre as expressões culturais e seus praticantes) e incapaz de representar a dimensão coletiva do fenômeno por ser muito pautada na simples somatória de ações individuais e não na força coletiva que a cultura representa. Há uma diferença qualitativa, e não quantitativa, entre diferença entre o que a maioria dos primatólogos chama ‘cultura’ e entre o que os antropólogos socioculturais entendem por cultura. Aliás, alguns antropólogos têm sinalizado a necessidade de redimensionar os sentidos e avaliar a potência de ideias como cultura e sociedade para a antropologia (Ingold, 1990, 2015; Kuper, 2002; Latour, 2012; Strathern, 2004) e, ainda assim, culturas humanas e culturas animais não se diferenciam porque umas têm quatro, outras têm quarenta e outras, ainda, têm quatrocentos padrões variantes. Os comportamentos já observados e registrados entre chimpanzés selvagens e entre outros primatas não humanos são certamente
a expressão de sua grande complexidade social e de suas amplas capacidades cognitivas e devem receber seu merecido reconhecimento. Entretanto, identificar e lidar com a dimensão simbólica dos fenômenos é um grande desafio, tanto empírico quanto teórico-metodológico, como sabem os antropólogos, arqueólogos, linguistas, semiólogos e, agora, os primatólogos.
DEFINIÇÕES PRIMATOLÓGICAS DE ‘CULTURAS DE CHIMPANZÉS’: REFLEXÕES SOBRE CONCEPÇÕES IMPLÍCITAS E EXPLÍCITAS Os chimpanzés, seja por suas características genéticas (Dennis, 2005), seja por seu comportamento individual e social (Boesch, 2003; Davidson; McGrew, 2005; De Waal, 2007) considerados isolada ou mutuamente (Lycett et al., 2007, 2009), têm tido sua complexidade reconhecida por pesquisadores das mais distintas áreas do conhecimento. Eles são a espécie de primata não humano mais estudada até o presente (McGrew, 1998; Stanford, 1998). Há algumas décadas, as comparações entre chimpanzés e humanos foram alçadas a novos patamares. Esse é o caso do fenômeno das ‘culturas de chimpanzés’. O tema ‘culturas de chimpanzés’ é muito importante porque chimpanzés são os animais mais próximos dos humanos em termos genéticos e comportamentais. Uma avaliação crítica disso certamente irá redefinir as fronteiras entre humanos e não humanos num futuro não muito distante. Contudo, ao mesmo tempo e infelizmente, há pouca reflexão conjunta sobre o profundo impacto disso sobre nossos paradigmas e nossos sistemas de classificação do mundo. De um lado, conforme já foi mencionado, há um crescente consenso entre os antropólogos socioculturais, construído a partir de um genuíno compromisso com o problema, de que cultura envolve, necessariamente, a produção e a manipulação coletiva de símbolos em contextos históricos e naturais que envolvem humanos e não humanos. Entretanto, a maioria desses antropólogos
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está muito pouco preocupada em saber quando e como surgiu nossa capacidade simbólica, do ponto de vista evolutivo, por uma perspectiva paleoantropológica. Além disso, eles estão afastados dos debates que analisam aspectos cognitivos e sociais, sob perspectivas evolutivas, entre humanos ou em espécies não humanas, seja dos pontos de vista teórico, experimental ou observacional. De outro lado, o que os primatólogos frequentemente oferecem está longe de se aproximar das concepções contemporâneas dos antropólogos socioculturais. São raríssimas as iniciativas em favor do diálogo com as ciências humanas em geral que, há mais de um século, dedicam-se a pensar a vida humana em termos individuais e coletivos. É lamentável que isso ocorra, dado que o cerne dos próprios fenômenos mais estudados pela primatologia, do ponto de vista comportamental, referese ao que os primatas não humanos aprendem em suas relações com os membros de seu grupo, quando são selvagens, ou com os humanos com os quais convivem e interagem, quando vivem em laboratórios. Decidimos, então, analisar os artigos que apresentavam as ‘culturas de chimpanzés’ como ideia central, publicados em 26 periódicos internacionais representativos na área no período de 1999 a 2011. Tal período foi definido em função da forte influência exercida pelo artigo ‘Chimpanzee Cultures’ (Whiten et al., 1999) sobre a primatologia ocidental (Perry, 2006) e se estende até 2011, como resultado de projeto de pesquisa pósdoutoral desenvolvido naquele ano, com o intuito de oferecer um quadro reflexivo sobre o debate. Apresentar as ‘culturas de chimpanzés’ como ‘ideia central’ significa a referência dos autores ao termo cultura como um aspecto relevante no tratamento de dados ou na abordagem teórica propostos no artigo. Foi feito um exame sistemático sobre as definições correntes de ‘culturas de chimpanzés’, com o intuito de identificar e analisar as concepções de cultura utilizadas pelos primatólogos (Figura 1). As revistas escolhidas são internacionais, plurais em sua ênfase e de alto impacto na comunidade científica.
Figura 1. Definições de ‘Culturas de Chimpanzés’.
Encontramos, no referido período, um total de 102 artigos. Observando esse conjunto, separamos inicialmente os que apresentavam alguma definição de cultura: 84 (82,4%) dos que não apresentavam qualquer definição: 18 artigos (17,6%). Contudo, verificamos que, dentre os 84 artigos selecionados, apenas 40 artigos (39,2%) oferecem uma definição explícita de cultura, enquanto 44 artigos (43,1%) apresentam apenas sugestões ou definições implícitas de ‘culturas de chimpanzés’. Assim, se reunirmos os artigos que não apresentam definições aos que só apresentam definições implícitas temos um conjunto significativo formado por 62 artigos (60,8%) que não apresentam claramente um conceito operacional para ‘cultura’. Tais resultados sugerem, ao menos, dois caminhos para reflexão. Ou indicam o consenso entre os pesquisadores da ausência de necessidade de indicar uma definição e, nesse caso, pode-se supor que os primatólogos já tenham chegado a um acordo sobre o que seria ‘cultura’, ou mesmo considerar que cultura seja tida pelos pesquisadores como um fenômeno empiricamente conhecido por humanos, por serem os últimos portadores e reprodutores culturais e, portanto, a vivência ofereceria os elementos necessários para a definição. Ou, em contrapartida, pode-se considerar que a ausência de
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definições aponte para a incerteza, sugerindo a dificuldade de elaboração conceitual dos elementos que dão suporte a uma concepção de ‘cultura’ aplicável ao comportamento dos chimpanzés selvagens, apesar do uso do termo parecer adequado aos pesquisadores. Numa perspectiva inversa, o conjunto de 62 artigos que reúne o material que não oferece definições ou apenas apresenta definições implícitas pode indicar um forte consenso em torno de uma dada definição e a não necessidade de replicá-la. Contudo, nesse último caso, provavelmente encontraríamos constantes referências a uma definição largamente aceita e corrente do termo ‘cultura’ para os primatólogos, mas isso não foi verificado. As causas precisas para essa ausência ou falta de explicitação ainda não estão completamente claras para nós e ainda demandam expansão e continuação da pesquisa. De qualquer modo, esses resultados indicam que é importante refletir por que uma abordagem tão impactante, como a que sugere que não humanos possuem ‘cultura’, é tão limitada na apresentação de definições por parte dos pesquisadores. Em termos gerais, pode-se afirmar que todos os artigos que oferecem uma definição implícita para ‘culturas de chimpanzés’ associam, predominantemente, cultura à variabilidade de comportamentos, fenômeno que costuma estar associado à transmissão ou ao aprendizado social frequentemente avaliados em relação às influências genéticas ou ecológicas sobre sua expressão. Essas ideias também fundamentam concepções gerais sobre ‘culturas animais’ e sinalizam a partilha de um núcleo conceitual evolutivo comum. Nos 40 artigos (39,2%) que oferecem uma definição explícita para ‘culturas de chimpanzés’, a ênfase recai sobre as várias formas de transmissão de padrões de comportamento: aprendizado, transmissão, dinâmica social e comunicação. Isso pode estar relacionado a um esforço em explicar o grande número e a significativa variabilidade de comportamentos já registrados. Nos artigos que oferecem definições explícitas para as ‘culturas de chimpanzés’, a ênfase recai sobre as mais variadas
formas de transmissão de padrões de comportamento: aprendizado social, transmissão social, dinâmica social e comunicação social. A análise do conjunto sugere que a iniciativa visa a atender dois tipos de demanda: o debate com os críticos ou o refinamento do instrumental teórico. Considerando nossa crítica à validade do uso da expressão ‘cultura’ para definir e explicar o comportamento de chimpanzés selvagens, é importante destacar que, desde sua origem, a proposição desta pesquisa nunca se baseou em ‘biofobia’ e nem numa intransigente e metafísica defesa da singularidade humana. Ao contrário da maioria das investidas da antropologia social ou cultural produzida entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX para explicar a diversidade cultural humana, não apostamos na hipótese da “tábula rasa” (Ingold, 1990). Reconhecemos que humanos são seres vivos e, portanto, submetidos constantemente a processos evolutivos, inclusive em suas capacidades cognitivas (Pinker, 2011) e de produzir cultura (Klein, 2009). Não temos hostilidade prévia à ideia de ‘culturas de animais’, mas defendemos que ela merece uma análise crítica e multidisciplinar. Ou seja, não recusamos, a priori, a possibilidade de existência de ‘culturas’ em outras espécies, mas entendemos a necessidade indispensável de diálogo entre os usos e proposições acerca das possibilidades de existência de culturas não humanas e as concepções antropológicas de cultura, que têm sido construídas ao longo de mais de 150 anos da história da disciplina.
O QUE DIZ UM NOME? REFLEXÕES SOBRE OS SENTIDOS DOS USOS DO TERMO ‘CULTURAS DE CHIMPANZÉS’ Para definir cultura no sentido humano, os antropólogos já escreveram centenas de milhares de páginas. A pluralidade, a complexidade, a plasticidade e seus aspectos aparentemente intangíveis (subjetividade, partilha de significados) parecem ser os responsáveis por tais dificuldades. Para os especialistas em comportamento animal, a denominação cultura tem uma função mais
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precisa. Eles afirmam que cultura é um meio objetivo de descrever o comportamento animal não herdado geneticamente (Whiten, 2005b), através de uma “definição operacional” (Schöning et al., 2008, p. 48). Nossa pesquisa demonstra que isso não é plenamente verdade. Há muitas variantes, debates, discordâncias e imprecisões sob a proposição de uma definição precisa e objetiva, que serão analisados a seguir.
CULTURA COMO UM COMPORTAMENTO VARIANTE O primeiro aspecto, mais recorrente e mais relevante, na concepção de ‘culturas de chimpanzés’ é a variação de comportamentos. Etólogos descrevem variações em um ou mais comportamentos animais de uma mesma espécie como “tradição” (Fragaszy, 2003; Nishida, 1987). Muitos primatólogos, biólogos e antropólogos biólogos também definem os fenômenos associados às ‘culturas’ de animais como “tradição” (Van Schaik; Pradhan, 2003, p. 660). Como mencionado, alguns sugerem que, devido ao mais alto número de comportamentos variantes, humanos e chimpanzés produziriam “culturas”, enquanto outras espécies de animais produziriam “tradições” (Whiten et al., 2001). Há primatólogos que rejeitam as concepções antropológicas de cultura por considerá-las demasiado antropocêntricas (Boesch, 2001, 2012; De Waal, 1999; Whiten et al., 2009) e propõem definições que ultrapassem os limites da espécie e sejam mais gerais e mais generalizantes. Isso se justifica, em parte, por certas vertentes dominantes da biologia, mas não por todas. Perspectivas mais processuais e relacionais podem estabelecer diálogos mais fluidos e fecundos com a antropologia (Ingold, 1990). Nesse sentido, o melhor caminho talvez seja explorar pontos reconhecidamente comuns, como a centralidade da vida social para humanos, chimpanzés e vários outros (Rapchan, 2010, 2012), ao invés de tentar vencer as “guerras culturais” (McGrew, 2009). Entre outras coisas, o repertório de comportamentos de chimpanzés já registrado que se assemelha às
variações culturais humanas é instigante. Esta é a razão de falar-se não em “cultura de chimpanzés”, mas em “culturas de chimpanzés”, no plural (Whiten et al., 1999; Whiten et al., 2001; Wrangham et al., 2001). Segundo alguns primatólogos, a significância desses padrões de variantes comportamentais é tão representativo que uma comunidade pode facilmente ser distinguida de outra por seu conjunto singular de características comportamentais por um(a) primatólogo(a) bem treinado(a) (De Waal, 1999), como ocorre em relação aos humanos. Podemos facilmente reconhecer um inuíte, um guarani, um catalão, um zulu ou um brasileiro por seus hábitos, língua e comportamento. Segundo os primatólogos, um pesquisador de campo experiente consegue saber a qual população um chimpanzé pertence a partir de seu repertório de comportamentos. Contudo, rejeitar o termo ‘tradição’ para os chimpanzés porque seu comportamento é mais variado que o das outras espécies não humanas é apenas puxar a escala classificatória para incluir humanos e chimpanzés (talvez bonobos) e excluir as outras espécies. Poderíamos até chamar isso de antropomonocentrismo.
INFLUÊNCIAS GENÉTICAS OU ECOLÓGICAS Quais as causas dessas variações no comportamento de chimpanzés? Há um debate. Mas, mais importantes que as respostas, são as reflexões decorrentes da análise das correlações entre contextos e fenômenos. Os primeiros trabalhos sobre ‘culturas de chimpanzés’ enfatizavam uma independência quase exacerbada das causas genéticas (Whiten et al., 1999; Wrangham et al., 2001) e a relativa autonomia frente ao modo pelo qual ambientes distintos moldam o “desenvolvimento comportamental” (Laland, 2008a, p. 368). Trabalhos mais recentes enfatizam o papel decisivo da cultura ou da tradição sobre o comportamento de chimpanzés (Mesoudi et al., 2006; Whiten et al., 2009) e reconhecem o meio ambiente como uma força integrada à diversidade cultural (Gruber et al., 2012).
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Posições críticas têm apontado que a natureza do trabalho de campo observacional que enfoca o comportamento de chimpanzés torna impossível a oferta de conclusões sobre a validade de explicações genéticas ou ecológicas. Entre os limites, há, por exemplo, problemas éticos em relação a experimentos invasivos que poderiam indicar mais claramente influências ecológicas deslocando populações no espaço e verificando suas respostas comportamentais (Laland, 2008a). Em contrapartida, alguns dos artigos consultados apresentam argumentos de que chimpanzés em cativeiro aprendem comportamentos de seus pares e indicam que explicações exclusivamente genéticas ou ecológicas são “[...] insufficient to explain the behavioral differences seen between communities [...]” (Gruber et al., 2009, p. 1806). Outros autores analisados tentam encontrar as causas das variações em outro lugar. Eles recusam tanto o determinismo ecológico quanto o cultural (King, 2000; McGrew, 2007) e tentam encontrar um caminho para discutir tal relação, partindo da abordagem proposta pela coevolução gene-cultura (Laland et al., 2000; Whiten et al., 2001) ou mesmo da controversa ideia de “memes” (Dawkins, 2007; Whiten, 2007). Há muitas posições e não há consenso quanto ao papel de fatores genéticos, ecológicos e sociais sobre os padrões de variabilidade comportamental dos chimpanzés e sua transmissão, considerando, inclusive, que a própria transmissão é potencialmente um fator gerador da variabilidade. Tal configuração coloca-nos algo bom para pensar: por muitas décadas, para as ciências sociais, os comportamentos eram concebidos a partir de um determinismo social ou cultural. Tomar a cultura (ou a sociedade) como a única e exclusiva causa da variedade comportamental humana era uma premissa. A luta contra o determinismo geográfico e contra o Evolucionismo Cultural levou a um determinismo cultural. Somente no final da década de 1940 a Antropologia Ecológica retomou essa abordagem e, a rigor, a Antropologia Social só se aproximou teoricamente dessa discussão a partir
de autores como Tim Ingold, Marilyn Strathern, Donna Haraway, Pamela Asquith, Bruno Latour e outros. Os questionamentos da primatologia sobre as relações entre o meio e os seres vivos sugerem reflexões sobre as continuidades e descontinuidades entre comportamentos e habilidades identificados em espécies distintas, bem como a revisão do papel de fatores ecológicos ou genéticos sobre tais características. Quão profundas são tais influências? A cultura dá a seus possuidores absoluta autonomia? Podemos afirmar que, excluídos os determinantes genéticos, a dinâmica social, por si só, define os comportamentos adquiridos? Essa não é apenas mais uma escolha determinística? Um dos fatores limitantes das análises que enfocam as culturas em animais, segundo Ingold, é que eles se esquecem que o comportamento é só a superfície aparente de seres complexos e plenos que são produtos de seus genes, de seu meio e de sua cultura (Ingold, 1990, 1994, 1996, 2001; Ingold; Gibson, 1995).
COMPORTAMENTOS SIGNIFICATIVOS: SOCIABILIDADE E USO DE FERRAMENTAS Há dois tipos de fenômeno predominantemente enfatizados na análise das variantes dos comportamentos de chimpanzés: a produção e o uso de ferramentas e os comportamentos sociais. O’Malley (2001) sugeriu a classificação de comportamentos relativos à subsistência e não relativos à subsistência. Outros preferem a expressão “cultura material” (Assersohn et al., 2004; Davidson; McGrew, 2005; Gruber et al., 2009; McGrew, 2010; Morgan; Abwe, 2006; O’Hara; Lee, 2006; Van Schaik et al., 1999; Van Schaik; Pradhan, 2003; Whiten et al., 2005) ou, ainda, comportamento ou transmissão ‘cultural’ (Möbius et al., 2008; Mitchell, 2001; Whiten, 2001; Poirier; Fitton, 2001; King, 2000; Laland et al., 2000; Boesch; Tomasello, 1998; Wrangham, 2006; Call; Tennie, 2009, Gruber et al., 2009; McGrew, 2007; Whiten et al., 2009) ou ‘social’ (Hirata, 2009; Bonnie et al., 2006).
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USO E PRODUÇÃO DE FERRAMENTAS: ‘CULTURA MATERIAL’ A descoberta da fabricação e do uso de ferramentas por chimpanzés foi uma das coisas mais incríveis do século XX, o que a tornou uma das mais importantes áreas de pesquisa. Ela recebe influências da paleoantropologia para produzir modelos com o intuito de delinear e compreender comportamentos (McGrew, 2010; Davidson; McGrew, 2005; Mercader et al., 2007). Portanto, entre outros objetivos, visa a oferecer parâmetros sustentáveis de comparação entre homininios e chimpanzés a partir de uma perspectiva evolutiva. Ela também oferece fortes evidências acerca da variabilidade de comportamentos, num formato materializado. Nos artigos analisados, muitos primatólogos chamam de ‘cultura material’ a produção e o uso de ferramentas por chimpanzés, bem como as variações intergrupais desses padrões (Boesch, 2003; Davidson; McGrew, 2005; Gruber et al., 2009; Morgan; Abwe, 2006; O’Malley, 2001; Van Schaik et al., 1999; Van Schaik; Pradhan, 2003; Schöning et al., 2008; Whiten et al., 2009). É importante sinalizar que a denominação ‘cultura material’ contempla os agregados funcionais de objetos que tornam possíveis ações que se estendem da edibilidade dos recursos disponíveis à higiene (O’Hara; Lee, 2006), mas também servem para objetos que operam como ferramentas comunicativas, como indica o artigo de Kühl et al. (2016) publicado recentemente. Van Schaik et al. (1999) observaram que a dispersão no uso de ferramentas depende das condições de forrageamento, de inteligência e de tolerância social. Eles classificam pelo menos seis formas distintas de uso de ferramentas por primatas. Elas são: “intimidação de predadores ou rivais”, “ ferramentas de uso defensivo”, “caça” (só por hominídeos), “display social”, “limpeza de partes do corpo”, “extração de insetos, de produtos de insetos” ou “quebra de castanhas”. Whiten et al. (2009, p. 422-3) apresentam uma lista de ferramentas de tecnologia percussiva (ferramentas de força, power tools). Elas são usadas principalmente
como arma (clava), para triturar, para martelar e para cortar. Gruber et al. (2009, p. 1806) observam que: Some of the strongest evidence for animal culture comes from studies on wild chimpanzees comparing the behavioral patterns of different populations in Africa. Population specific behavioral differences are particularly evident in tool use. However, the observational nature of most field studies makes it difficult to draw definitive conclusions, because it is impossible to rule out all potential ecological or genetic explanations for behavioral variation attributed to culture.
Boesch (2003) sugere que a variabilidade encontrada no uso de ferramentas por chimpanzés é um sinal da existência de uma cultura material de chimpanzés. Van Schaik e Pradhan (2003) defendem que o uso de ferramentas por chimpanzés selvagens é uma expressão de cultura, no sentido de tradição, porque ela está associada à rotina e que ela é, geralmente, amplamente difundida na população. Indo além, Whiten et al. (2009) afirmam que o gênero Pan, como os primeiros hominídeos, produzem uma tecnologia lítica caracterizada por intencionalidade, transmissão e continuidade. O’Hara e Lee (2006), em acordo com Davidson e McGrew (2005), oferecem o argumento de que seleção e elaboração de ferramentas são sinais de criatividade e inovação. Gruber et al. (2009) assumem que as ‘culturas de chimpanzés’ são um modo específico de expressão de um comportamento individual num grupo que é sustentado por parâmetros comuns. Estes parâmetros definem a matéria-prima mais usada, se folhas ou galhos, por exemplo, para suporte material da produção de ferramentas. Os autores apresentam evidências disso a partir de resultados obtidos em experimentos com chimpanzés selvagens, que indicam uma distribuição de preferências por matérias-primas padronizadas por grupo. Considerando os resultados apresentados nesses artigos, as variações no uso de ferramentas por chimpanzés são fortemente relacionadas à conformidade dos indivíduos ao comportamento dominante. Mesmo considerando a
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produção e o uso de ferramentas como ‘display social’, eles são todos comportamentos sociais e fortemente orientados para a sobrevivência. Por isso mesmo elas não podem ser ‘cultura material’, mas meios e comportamentos usados direta e exclusivamente para manter a vida individual e coletiva. Mesmo as culturas chamadas por alguns de ‘culturas de subsistência’ não são uma expressão isolada de técnicas e práticas. Cada uma de suas expressões é fortemente relacionada à estética, ao status, ao parentesco, às crenças e à mitologia, entre outros aspectos. No caso das culturas humanas, sejam caçadorescoletores ou qualquer outro grupo, tanto as técnicas quanto a arte, a mitologia ou os sistemas de classificação estão fortemente articulados entre si e integram os indivíduos às suas coletividades de forma única, produzindo o que Mauss (2007) chamou de “totalidade”. Ao mesmo tempo, as ferramentas, por exemplo, correspondem a conjuntos mais amplos em número e em função. Além disso, sua forma e decoração sinalizam que há concepções e ideias associadas à caça, à agricultura, à coleta, à pesca, à criação de animais, que integram funções técnicas a funções estéticas, de parentesco, de status, de crenças etc. Essa integração entre funções mentais distintas (Mithen, 1996) ou o registro passível de transmissão de ideias abstratas (Tomasello, 1999b) não foi verificado entre chimpanzés, ao menos até o momento. Além disso, as características relativas à transmissão, continuidade e inovação observadas na produção e transmissão do uso de ferramentas são também comuns aos fenômenos definidos como tradição, observados em outros primatas, por exemplo, a macaca fuscata e o macaco-prego. Intencionalidade e criatividade são sugeridas nos artigos sobre uso de ferramentas (Gruber et al., 2012). Hauser (2009) oferece ainda mais elementos que permitem um questionamento da existência de uma ‘cultura material de chimpanzés’ quando observa que eles usam apenas um tipo de matéria-prima para produzir cada ferramenta. Humanos, por sua vez, usam dois ou mais
tipos de matéria-prima até para fazer objetos tão simples quanto um lápis. Isso está relacionado à capacidade de combinar diferentes módulos de inteligência (o naturalístico e o técnico) que, segundo Mithen (1996), estariam isolados entre os chimpanzés. Aliás, a integração entre esses módulos mentais, por meio do pensamento abstrato, estaria no próprio princípio da capacidade para produzir cultura.
TRANSMISSÃO E VARIABILIDADE: DEBATES SOBRE COMPORTAMENTOS ADAPTATIVOS E MALDAPTATIVOS EM PRIMATAS HUMANOS E NÃO HUMANOS Se a causa central da variabilidade do comportamento de chimpanzés estiver relacionada aos mecanismos de transmissão, então os dados sobre isso são extremamente relevantes para o debate sobre ‘culturas de chimpanzés’. A transmissão de comportamentos através do aprendizado social coloca, simultaneamente, a possibilidade de continuidade e o potencial de mudança. Muitos autores (Janson; Smith, 2003; Richerson; Boyd, 2005; Tomasello, 1999a) propõem que todos os padrões de comportamento que são socialmente transmitidos podem ser chamados de ‘culturais’. Eles distinguem as culturas humanas das culturas não humanas pelo efeito ‘cumulativo’ ou pelo efeito ‘catraca’ (ratcheteffect), que é a capacidade de reter comportamentos por gerações e, no caso humano, constitui-se em patrimônio cultural. Poirier e Fitton (2001) defendem:
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que o comportamento cultural de primatas não humanos não é apenas aprendizado mas também “transmissão cultural”, ou seja, trata-se de comportamento partilhado e transmitido intra e inter-gerações, um fator essencial para a sobrevivência de certas espécies. Segundo eles, espécies que possuem altos índices de encefalização, vidas longas, grupos sociais estáveis, sistemas de comunicações estáveis ou funcionais a longa distância e precisam lidar com ambientes que mudam, frequentemente, ou mesmo inesperadamente, são espécies potencialmente culturais. (Poirier; Fitton, 2001, p. 349-350, tradução nossa).
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Whiten et al. (2001) enfatizam que as pesquisas devem enfocar o papel do aprendizado social, dada sua importância na transmissão de tradições comportamentais, e apresentam modelos bastante limitados para analisar o que denominam de “processos culturais”. Restringemse a determinar origens e difusão de comportamentos. Segundo os autores, comportamentos variam quando são “difundidos” (spread) e a variação pode ocorrer na forma, na função ou no objetivo do comportamento. Ainda no esforço de oferecer parâmetros para análise da variação comportamental, Van Schaik e Pradhan (2003) sugerem que há três tipos de oportunidades para o aprendizado social: a horizontal, a vertical e a oblíqua. Na transmissão vertical, o aprendizado vem exclusivamente da relação com a mãe (Cavalli-Sforza; Feldman, 1981 apud Van Schaik; Pradhan, 2003). Já em organizações sociais nas quais predomina a tolerância, o aprendizado provém igualmente de todos os membros da unidade social para o filhote. Ainda na direção do problema da transmissão de comportamentos, mas adotando posição oposta em relação à adoção das ‘culturas de chimpanzés’ como parâmetro, Knight (2001) oferece uma explicação interessante (e feminista) para justificar sua defesa acerca da ausência de ‘culturas de chimpanzés’: o que falta aos chimpanzés para produzir cultura não são habilidades cognitivas, mas estabilidade política. Eles compõem sociedades filopátricas instáveis (modelo de sociabilidade fusãofissão), o que não facilita a retenção de patrimônio cultural. Outros críticos da ideia de ‘culturas de chimpanzés’ postulam que as tradições entre esses animais são fenômenos restritamente funcionais e adaptativos e que as culturas humanas, por sua vez, frequentemente geram comportamentos mal adaptativos como o celibato, a excisão do clitóris, a ingestão descontrolada de açúcares e gorduras ou a bulimia e a anorexia (Rapchan; Neves, 2005). Em resposta, alguns primatólogos têm trazido dados que apontam que, em tese, a transmissão de comportamentos pode também produzir comportamentos
adaptativos ou mal adaptativos (Laland, 2008a; Perry, 2011; Slater 2001; Wrangham, 2006). Sem dúvida, essa perspectiva é impactante e, se comprovada, sinaliza a importância das críticas da antropologia no direcionamento da pesquisa primatológica. Entretanto, definir cultura exclusivamente como aprendizado social continua a ser um grande problema. Aprendizado social não corresponde apenas às ações de facilitação, ensino ou imitação como sugere o trabalho de Luncz et al. (2015). Os dois últimos, aliás, são temas de intensa polêmica em relação aos chimpanzés selvagens não apenas devido às dificuldades para se conseguir fazer observações do fenômeno em campo, mas também porque há um único caso citado na bibliografia (Boesch, 1991). Em sociedades humanas, o aprendizado social inclui mecanismos de partilha coletiva de valores, ideias, regras, sentimentos e medos, através da circulação de ideias abstratas sobre aspectos materiais e imateriais da vida. Isso depende do uso de capacidades simbólicas. A transmissão cultural não se restringe a ações individuais de aprendizado social. Assim, é preciso aprofundar a coleta e a análise de dados sobre os processos de aprendizado entre não humanos.
SOCIABILIDADE, DINÂMICA SOCIAL E TRANSMISSÃO DE COMPORTAMENTOS Perry (2006) concebe ‘culturas de chimpanzés’ como um fenômeno relacionado à complexidade social que não se restringe a variações ecológicas ou exclusivamente à experiência individual. Davidson e McGrew (2005) defendem que ‘cultura’ para um grupo de chimpanzés corresponde a padrões comportamentais partilhados por seus membros, baseados em informação aprendida e transmitida, mesmo considerando que informação, nesse caso, é algo bem difícil de definir. Van Schaik e Pradhan (2003) enfatizam a dinâmica social, abordagem incomum entre os primatólogos ocidentais. Os autores chamam a atenção para o fato de que as espécies mais inteligentes de primatas vivem em grupos
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sociais caracterizados por comportamentos complexos. Nesses casos, verifica-se uma combinação de ‘habilidades cognitivas sofisticadas’ e ‘tolerância social e gregarismo’ (sociabilidade) para que exista aprendizado social. Na mesma direção, Fragaszy (2003) oferece uma avaliação mais densa do que seja aprendizado social, distinguindo-se de muitos primatólogos para os quais aprender é apenas trocar informações. De acordo com Fragaszy (2003), em termos de aprendizado social, a expressão ‘influência’ é melhor do que ‘informação’. Ela não menciona Clifford Geertz, mas é inevitável lembrar do antropólogo interpretativista ao tomar contato com essas ideias de Fragaszy (2003). Perry (2006) enfatiza o comportamento individual sob um ponto de vista inovador: as relações interindividuais, segundo ela, criam ou modificam os comportamentos coletivos. Isso remete fortemente à ‘teoria da ação social’ de Weber, que defende uma abordagem do social a partir das interações interindividuais, o que, por sua vez, influenciou King (2000), e Shanker e King (2002) também sugerem que o comportamento cultural dos chimpanzés é uma interação que produz uma “dinâmica social”. Estes autores sinalizam um ponto de ruptura nas adesões teóricas dominantes na primatologia contemporânea. Eles são uma minoria que, ao invés de fixar suas concepções de cultura num uso pobre e funcional de concepções da antropologia cultural do início do século XX, como fazem os primatólogos que acentuam a influência da herança mesmo quando consideram a importância do aprendizado e da vida social (Whiten, 2005a), buscam respostas mais completas e sofisticadas. King (2004), por exemplo, critica as definições correntes de ‘culturas de chimpanzés’ porque elas são simplesmente listas de comportamentos ou apenas dados quantitativos. Esse grupo reduzido, mas interessante, é formado por primatólogos que estão tentando encontrar respostas nas teorias de ação social. Para fazer isso, é necessário também considerar que os chimpanzés e outros primatas não humanos são seres ativos dentro e fora das relações de pesquisa.
A DINÂMICA DO SIMBÓLICO Boesch (2003) apresentou uma concepção simbólica simplória das ‘culturas de chimpanzés’ enfatizando o que ele chama de diversidade de significados. De acordo com o autor, o mesmo comportamento, como, o que os primatólogos chamam de ‘leaf-clip’, está relacionado a diferentes intenções dos agentes e a reações distintas correlatas do grupo. Mas não há evidências substantivas de que o ‘leaf-clip’ seja um símbolo só porque aparece em diferentes contextos. Ele pode muito bem ser apenas um signo num processo básico de comunicação em que há troca de informações. Signo e símbolo são coisas diferentes. Ambos são arbitrários, como observado por Boesch (2003), mas símbolos afetam os membros de uma coletividade a ponto de configurarem o real. No caso dos humanos, isso vale para a ciência, a tecnologia, a arte, a moral, a ética, as ideologias políticas e econômicas, a religião etc. Um signo, por sua vez, serve essencialmente para a comunicação estrita de uma mensagem precisa como: pare! E pode, evidentemente, ser usado nos contextos mais diversos e manter seu significado preciso. Whiten (2005a), por sua vez, defende que uma concepção simbólica de cultura é essencialmente antropocêntrica e exclui uma perspectiva evolutiva. Daí, talvez, por isso, entenda que o diálogo da primatologia com a antropologia sociocultural esteja inviabilizado. O’Malley (2001) pontua que variações nas vocalizações dos chimpanzés são “dialéticas” (O’Malley, 2001 apud Mitani et al., 2002) reforçando a defesa de que o ‘leaf clipping’ é um tipo de comunicação simbólica (O’Malley, 2001). Em ambos os casos, os autores não oferecem definições minimamente explícitas do que seja um fenômeno ‘dialético’ nem do que entendem por ‘comunicação simbólica’. Vale lembrar, ainda, que na filosofia, na antropologia e na linguística, por exemplo, essas expressões possuem muito mais do que uma única definição. Lycett et al. (2009) argumentam contra a definição antropológica fundada na ideia de que a cultura é fenômeno essencialmente simbólico, afirmando que ela
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não é um consenso entre os antropólogos. De acordo com eles, tratar a cultura como algo partilhado por um grupo de indivíduos traz resultados muito melhores em termos de pesquisa. Mas é preciso salientar que a soma de indivíduos não constitui uma sociedade. É preciso mais do que isso para que um coletivo se estabeleça. Como foi visto, a maioria dos primatólogos que recusa concepções simbólicas de cultura não o faz a partir de comparações que considerem os referenciais teóricos de ambas as disciplinas. A já mencionada primatóloga King (2004) é uma exceção. Ela propõe uma definição de cultura aplicável aos chimpanzés selvagens como uma forma de comunicação social via gestos e vocalizações que ela chamou “dynamic dance” (King, 2004). King (2004), Parker e Gibson (1994), SavageRumbaugh e Rumbaugh (1995) e Segerdahl et al.(2006) defendem que habilidades críticas, como a linguagem e a capacidade de produção de sentidos e de símbolos, evoluíram gradualmente. Em contrapartida, uma das tendências da paleoantropologia está disposta a discutir a possibilidade de que, entre as culturas humanas, as habilidades simbólicas, quando surgiram, apareceram, invadiram e integraram aspectos cruciais da vida coletiva e produziram expressões únicas do que universalmente denomina-se comportamento cultural, arte, rituais ou mitos. Estes fenômenos não surgiram como unidades isoladas de fenômenos especializados mas como uma capacidade totalizante e integrada (Harari, 2015; Klein, 2009; Mithen, 1996; Rapchan; Neves, 2005, 2014). Só para dar um exemplo, os termos de parentesco demandam linguagem, concepções sobre a vida humana, linhagem e descendência, mitologia e regras de organização social (Brown, 2004). Isto é o que Mauss (2007) e muitos outros antropólogos sociais chamaram totalidade. Este sentido de totalidade implica na percepção de que todos os aspectos da vida social e cultural estão profundamente, e simbolicamente, ligados. De acordo com Mauss (2007, p. 82), isso é um “[...] fato social total”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: REFLEXÕES SOBRE DEFINIÇÕES ANTROPOLÓGICAS, IDEIAS PRIMATOLÓGICAS E COMPORTAMENTO DE CHIMPANZÉS SELVAGENS A proposição deste artigo não está baseada numa intransigente e metafísica defesa da singularidade humana. Nós somos evolucionistas. Não refutamos o fato de que humanos são seres vivos e, portanto, estão submetidos a processos evolutivos, inclusive em sua capacidade de produzir cultura. Não temos hostilidade prévia à ideia de ‘culturas de animais’, mas defendemos que a validade de sua aplicação e uso demanda uma análise crítica e multidisciplinar justamente porque, se definições de cultura transespecíficas alcançarem legitimidade, elas facilmente serão transpostas aos humanos e o debate antropológico sobre as culturas humanas, que já dura mais de 150 anos, não deve ser descartado, mas agregado. Além disso, como pretendemos demonstrar, é fundamental lembrar que, mesmo sob perspectivas evolutivas, a cultura pode ser tratada por mais de uma perspectiva e cada uma delas deve ser analisada e considerada ou descartada quando se trata de pensar semelhanças e diferenças entre humanos e chimpanzés a partir da chave da cultura. Em seguida, é essencial discutir corajosamente o que é cultura, enquanto fenômeno. Daí, observar se a capacidade de produzir cultura é resultado de um processo predominantemente evolutivo, então é necessário analisar quando e como isso ocorreu. Ou, então, se as dinâmicas sociais tiveram um papel mais importante nesse processo. Ou, ainda, se as teorias sobre coevolução gene-cultura (Flinn, 1997; Gintis, 2011; Laland, 2008a, 2008b; Richerson; Boyd, 2005) oferecem os melhores caminhos explicativos. É também importante descobrir se a cultura, uma vez surgida, continua sob influência de pressões evolutivas ou passa a operar sob algum tipo independente de dinâmica própria. Infelizmente, a maioria dos primatólogos tem adotado uma recusa ortodoxa de todos os argumentos que questionam a existência de ‘culturas de chimpanzés’.
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Ingold (1990, 1994, 1996, 2015) constantemente nos lembra que somos todos produtos de genes, ambiente e cultura. Comportamento é apenas a aparência de cada ser social complexo. Ingold (1990, 1994) também nos lembra que definições de cultura com ênfase biológica e que enfocam exclusivamente a soma de comportamentos individuais e suas repetições e variabilidade é excessivamente simples e elementar. Abler (2005) nos lembra que tentar demonstrar a continuidade evolucionária entre humanos e outros seres clamando apenas pela conformidade de dados com certas proposições pode ser uma falácia. Discutir cultura implica discutir a continuidade entre mentes de chimpanzés e mentes humanas. Os primatólogos têm, de fato, apresentado dados empíricos e experimentais rigorosos, assim como análises minuciosas. Entretanto, isso não torna óbvia a continuidade entre comportamentos humanos e de chimpanzés. É preciso considerar contribuições como as de Galef (1992), que sinaliza a importância em distinguir o que é análogo e o que é homólogo em relação às semelhanças de comportamentos verificadas entre as espécies ou considerar de que modo a capacidade de produzir cultura cumulativa distingue humanos de não humanos (Tennie et al., 2009) e quanto isso é relevante. Observando os artigos analisados em nossa pesquisa, percebemos que, a despeito de os primatólogos frequentemente buscarem uma definição universal e sintética de cultura, o que eles apresentam, em termos de definição, é quase fortemente relacionado aos seus dados específicos de pesquisa e a universalização da explicação baseia-se no pressuposto consensual da aplicabilidade das teorias evolutivas. Mas, e se tal universalidade tiver de ser relativizada quando se trata de seres sociais?
O COMPORTAMENTO DE CHIMPANZÉS SELVAGENS SERIA CULTURAL, NO SENTIDO ANTROPOLÓGICO? Observando os artigos analisados em nossa pesquisa, percebemos que, a despeito de os primatólogos
frequentemente buscarem uma definição universal e sintética de cultura, o que eles apresentam, em termos de definição é, ainda, insuficiente. Ou seja, se os antropólogos socioculturais ainda não elaboraram um conceito forte nem operacional para cultura (Ingold, 2015), os primatólogos, apesar de operarem sob matrizes universalistas e comparativistas, também não atingiram esse intento. As diferenças entre as concepções antropológicas e primatológicas de cultura esbarram nos debates sobre os critérios quantitativos e qualitativos aplicáveis às mesmas. Não pretendemos aqui resolver esse problema, apenas apontá-lo como relevante (Rapchan; Neves, 2014). Há diferenças significativas entre o fenômeno que a maioria dos primatólogos e dos antropólogos chama de ‘cultura’. Os comportamentos complexos já registrados sobre chimpanzés e outros primatas não humanos são certamente expressões de sua grande complexidade social e extensas capacidades cognitivas (Rapchan, 2005, 2010, 2012; Rapchan; Neves, 2005). Entretanto, se o objeto eleito são as ‘culturas de chimpanzés’, além do próprio conceito, do ponto de vista da antropologia, é importante discutir o método. Num sentido amplo, o que é correntemente usado pela primatologia (de cunho objetivo, fortemente marcado por abordagens quantitativas e, predominantemente, influenciado pela sociobiologia) deixa de lado aspectos subjetivos relevantes para o tratamento da cultura no sentido antropológico e em relação aos quais a antropologia tem muita experiência acumulada. As críticas e reflexões promovidas por primatólogas como King (2004) e pelos debates estimulados por Strum, em parceria com Fedigan (2000), são indícios de caminhos possíveis para diálogos futuros nessa direção. Em relação ao alinhamento teórico, a maioria dos primatólogos defende a existência de um continuum na capacidade de produzir cultura na linhagem primata; um processo de evolução cultural longo e gradual (Castro; Toro, 2004; Janson; Smith, 2003; Mesoudi et al., 2006; Perry, 2006; Whiten et al., 2009), que teria se manifestado
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na linhagem primata antes do processo de especiação, que resultou na distinção entre humanos e chimpanzés. De um ponto de vista estritamente evolucionista, o debate sobre a existência, ou não, de ‘culturas de chimpanzés’ propõe reflexões agudas sobre o processo que nos tornou humanos. Se foi gradual e se ocorreu antes da separação entre as espécies, então haverá manifestações culturais análogas em Hominídeos Pliso-pleistocênicos (McBearthy; Brooks, 2000) e mesmo em outros grupos animais (monos, cetáceos e aves, como os corvos da Nova Caledônia) (Holzhaider et al., 2010; Holzhaider et al., 2011; Laland, 2008a, 2008b; Laland; Hoppitt, 2003). Se houve um salto evolutivo (Eldredge; Gould, 1972; Klein, 2009; Mithen, 1996; Rapchan; Neves, 2005), uma ‘revolução humana’, então a cultura humana é um fenômeno resultante de um processo recente, que ocorreu em nossa espécie e remonta a, no máximo, 100 mil anos antes do presente (Mellars, 1989; Diamond 1992; Janson; Smith, 2003; Klein, 2009). A hipótese do salto evolutivo, vale destacar, não se baseia numa perspectiva redutoramente antropocêntrica, mas em indícios que, até o momento, parecem exclusivos dos humanos comportamentalmente modernos. Em termos evolutivos, podemos afirmar a nosso favor que há inúmeras características que são únicas para uma dada espécie (Foley, 1993). O canto das baleias (Rendell; Whitehead, 2001) é um ótimo (e não exclusivo) exemplo disso. Asquith (2010) sinaliza alguns aspectos do trabalho de campo em primatologia que são frequentemente subtraídos dos registros científicos (a subjetividade, as emoções, as interações com os animais e os contextos humanos e não humanos em que a pesquisa é desenvolvida) e que são frequentemente alijados dos textos publicados pelos primatólogos. Segundo a autora (Asquith, 2010), um dos indícios da riqueza das relações estabelecidas em campo e que expressa toda a potência do compromisso dos primatólogos com aqueles por eles estudados é a própria proposição e defesa do termo ‘cultura’ para representar os chimpanzés e outros animais não humanos.
Não se pode alcançar satisfatoriamente o domínio do simbólico das ‘culturas de chimpanzés’, caso ele exista, abandonando as possibilidades postas por abordagens mais qualitativas e mesmo subjetivas, inclusive a aplicação do método etnográfico para registrar e analisar as relações entre humanos e primatas não humanos em diferentes contextos (Rapchan; Neves, 2014). Assim, caso não cheguemos a um consenso transdisciplinar em relação às de concepções de cultura, podemos encontrar outros aspectos considerados consensualmente compartilhados, como a centralidade da vida social para todos os primatas, e mesmo para outras espécies, que possam garantir e expandir os diálogos. Além disso, é fundamental garantir pesquisas em direção às relações entre humanos e não humanos. Os debates sobre a existência, ou não, de ‘culturas de chimpanzés’ não devem inviabilizar a exploração das semelhanças e diferenças entre essa espécie e seres humanos, nem impossibilitar o tratamento etnográfico das relações entre ambas. Estudos sobre comunidades de humanos e não humanos no âmbito das relações de pesquisa, no convívio em espaços partilhados rurais e urbanos, na configuração híbrida das paisagens e nas representações da natureza e da cultura, por exemplo, poderão oferecer resultados relevantes e impactantes sobre as concepções vigentes acerca da definição do humano e dos novos parâmetros necessários para se considerar as relações entre humanos e não humanos.
AGRADECIMENTOS Essa pesquisa contou com o suporte da Fundação Araucária/ Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI), através de bolsa de pós-doutorado concedida a ESR de setembro/2010 a setembro/2011, através do Convênio 346/2010 – UEM/Fundação Araucária – Chamada de Projetos 18/2009 e do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, da Universidade de São Paulo (LEEH - USP). Agradecemos pelas contribuições e comentários dos dois pareceristas anônimos que analisaram minuciosamente este manuscrito.
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A agricultura moderna no Planalto Central: a experiência da Colônia Blasiana (1881-1895), na atual Luziânia, Goiás, Brasil Modern agriculture on the Brazilian Central Plateau: the experience of the Colônia Blasiana (1881-1895), in Luziânia, Goiás Mário Roberto Ferraro Universidade Estadual de Goiás. Anápolis, Goiás, Brasil
Resumo: A Colônia Blasiana foi uma instituição de ensino criada para acolher crianças negras órfãs, beneficiadas pela lei do Ventre Livre. Funcionava também como escola agrícola. Seu modelo era o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Foi investigada a hipótese de ela ter sido um referencial na modernização da agropecuária goiana e de ela ser, possivelmente, um espaço de produção científica no Planalto Central. De fato, sua contribuição foi importante, pois instituiu práticas modernizantes no trato das coisas do campo, tais como irrigação, plantação em linha, introdução de novas espécies, aclimatação de espécies vegetais e de animais exóticos ao cerrado, criação de gado em estábulos, cura de moléstias, dentre outras, apoiadas nos conhecimentos científicos de seu diretor, Joseph de Mello Álvares, um autodidata versado sobre os mais diversos assuntos. Não foi possível avaliar o impacto da instituição na agricultura goiana como um todo. Quanto ao fato de ser uma instituição de produção de conhecimentos científicos, a hipótese não se confirmou. Faltavam-lhe pesquisadores capacitados e um guia curricular, com programas claramente definidos para a escola, embora houvesse uma boa biblioteca, com o mais atualizado acervo da produção científica nacional sobre o tema. Também não foi possível apurar se os experimentos com aclimatação eram cientificamente controlados. Palavras-chave: Colônia Blasiana. Agricultura moderna. Goiás. Século XIX. Abstract: The Colônia Blasiana was an educational institution created to accommodate orphaned black children freed by the Free Womb Law. It took on the modelo f the Imperial Institute Fluminense of Agriculture. In this study, we investigated the possibility that the colônia Blasiana has been a reference for the modernization of agriculture in Goiás as well as whether it constituted a space for scientific knowledge production in the Brazilian ‘Planalto Central’. Indeed, its contribution was importante because it introduced modern agricultural practices such as irrigation; planting in rows; introduction and acclimatization of plant and domestic animals not native of the savanna; cattle breeding in the stables; disease cure cattle etc., based on scientific knowledge of its director, Joseph de Mello Álvares, a self-taught man versed on various subjects. It has not been possible to evaluate the impact of the institution in agriculture and livestock in the region. The hypothesis that Colônia Blasiana was an establishment producer of scientific knowledge was not proven. Although there was a good library with current scientific literature on the subject, the lack of qualified researchers and curriculum guide with clearly defined programs was an obstacle. It wasn´t possible either to determine if the acclimatization were held with scientifically controlled experiments. Keywords: Colonia Blasiana. Modern agriculture. Goiás. Nineteenth century.
FERRARO, Mário Roberto. A agricultura moderna no Planalto Central: a experiência da Colônia Blasiana (1881-1895), na atual Luziânia, Goiás, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 769-789, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222016000300013. Autor para correspondência: Mário Roberto Ferraro. Universidade Estadual de Goiás. Campus de Ciências Socioeconômicas e Humanas de Anápolis. Av. JK, 146 – Jundiaí. Anápolis, GO, Brasil. CEP 75110-390 (mariofr6@gmail.com). Recebido em 25/05/2015 Aprovado em 09/08/2016
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A agricultura moderna no Planalto Central: a experiência da Colônia Blasiana (1881-1895), na atual Luziânia, Goiás, Brasil
INTRODUÇÃO Este é um estudo sobre A Colônia Blasiana, entendida como um espaço de produção de conhecimentos científicos em assuntos ligados à agricultura, que se localizava em Santa Luzia, atual Luziânia, Goiás, no Planalto Central brasileiro, no entorno do Distrito Federal. Pretende verificar como ela organizava sua produção agropecuária e buscar nela indícios de modernidade, levando-se em consideração o que era moderno no século XIX. Será discutido o ensino de práticas agrícolas adequadas a essa modernidade, entendendo essa fazenda, portanto, como um espaço de produção e de transmissão de conhecimentos agrários, de acordo com o que havia de mais atualizado na época. A grande meta da agricultura científica era o combate à chamada rotina agrícola, isto é, à agricultura de corte e queima, já tomada como nociva ao meio ambiente por August Saint-Hilaire, em 1819, durante sua estada em Goiás. Os referenciais teóricos e metodológicos utilizados são a história das ciências, na concepção desenvolvida recentemente pelo grupo capitaneado por Maria Amélia Dantes, presente em diversas instituições que desenvolvem pesquisas na área, e o paradigma indiciário de Ginzburg (1989). Para Dantes (2001), a história da ciência anterior a 1980 era apresentada em uma posição dicotômica: as instituições científicas eram retratadas por alguns pesquisadores da disciplina tendo como prioridade o estudo da evolução conceitual da ciência, ou seja, com foco na evolução dos conceitos de cada disciplina, nos progressos alcançados, com ênfase na genialidade do cientista. ‘Fazer avançar a ciência’ é uma expressão recorrente nesse tipo de estudo. As instituições científicas eram apresentadas como uma decorrência necessária do valor intrínseco do conhecimento verdadeiro, isto é, como espaços que são conquistados pelos cientistas e que passam a sediar suas atividades. No outro polo, segundo a mesma autora, inclusive com alguns historiadores de tendência teórica marxista, a história da ciência tem se voltado, de maneira predominante, para as dimensões sociais da prática científica, deixando para a
história epistemológica as questões relacionadas à natureza do conhecimento científico. Esse quadro, segundo ela, começou a ser questionado no Brasil a partir dos anos 1980, época em que se perguntava como ocorreu a implantação de instituições científicas em um país não central do capitalismo, em uma área que fora Colônia e, em seguida, tornou-se país periférico, em regiões que não ocupavam a liderança na produção de conhecimento. Para se responder a essa questão, a alternativa utilizada foi a valorização da história social da ciência. Os primeiros estudos, nos Estados Unidos, questionavam a relação entre ciência e imperialismo. Outros, refletindo sobre essa tendência, argumentavam que, nos estados nacionais, a ciência foi repensada para atender a especificidades locais, que possuíam dinâmicas sociais próprias. No Brasil, a partir dos anos 50 do século passado, formou-se uma tendência que via a implantação da ciência no país apenas a partir da criação das universidades, ocorrida nos anos 1930. As realizações anteriores são consideradas como pré-história da ciência. Isso fez com que os espaços da ciência e sua produção não fossem tratados como relevantes, ou mesmo fossem desconsiderados. Instituições, tais como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1808); as escolas médicocirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro (ambas de 1808); a Academia Real Militar (1810); a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1825); ou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), com suas publicações, foram as que sofreram mudanças ao longo do século e perduraram por todo o período imperial, as quais, entretanto, não receberam da história da ciência, até os anos 1980, consideração à altura de sua importância no século XIX. Ao longo do Império, instituições científicas foram também criadas, entre as quais: a Escola de Minas (1875), de Ouro Preto; a Comissão Geológica do Império (1875); a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886); e a Imperial Estação Agronômica de Campinas (1887). A cronologia da história da ciência anterior aos anos 80 registra a presença dessas instituições, mas não reconhece
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a importância desses espaços. Nos anos 80 do século XX, a historiografia das ciências passou a realizar pesquisas que valorizavam essas instituições e outras menos conhecidas, por exemplo, o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Ou seja, o reconhecimento desses espaços somente se deu a partir de uma mudança do ponto de vista metodológico. Ainda de acordo com Dantes (2001), a nova perspectiva surgida entre os anos 1970 e 1980 voltava-se para o estudo das condições sociais de implantação das atividades científicas: por que se implantou tal atividade ou instituição? A quais interesses ela servia? A quais demandas sociais ela procurava atender? etc. Procurava, ainda, mostrar, entre outras questões, os critérios de cientificidade do período estudado: que tipo de ciência se fazia então? Quais seus pressupostos teóricometodológicos? Enquadram-se nessa linha os estudos de Figueirôa (1987), sobre a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, e o de Lopes (1997), sobre os museus enquanto espaços de produção de ciência. Historiadores das ciências diretamente ligados a esse grupo têm estudado os espaços de produção de conhecimentos na área agrícola nos séculos XIX e XX. As pesquisas de Domingues (1995); Oliver (2009); Melone (2004); Bediaga (2011); Ferraro (2005, 2012), entre outras, sobre ciência e agricultura estão alinhadas a essa corrente interpretativa. Também há as pesquisas de Mendonça (1994); Araújo (2010); Santos (2013); Versieux e Gonçalves (2012), que valorizam essas instituições. Há poucos estudos sobre a agricultura científica em Goiás ou sobre Goiás. Sob esse ponto de vista foi analisada a Colônia Blasiana, como um espaço de produção científica do período, procurando, em uma documentação escassa e esparsa, embora os esforços de buscá-la tenham
sido intensos, os indicadores que apontavam ser aquela fazenda-escola um espaço da ciência ainda não reconhecido enquanto tal. Por outro lado, a especificidade das fontes e a falta de estudos a respeito da Colônia Blasiana exigiu o uso do paradigma indiciário de Ginzburg (1989). Há poucos documentos institucionais e a maioria já havia sido analisada por Marin (2006), sendo a presente pesquisa um desdobramento desta. Há poucas menções nas obras dos viajantes que por lá passaram, sendo que poucos olharam para a escola como espaço das ciências ou como escola, tendo-a enaltecido como uma instituição de caridade. Diante dessas dificuldades, a documentação selecionada foi aquela comumente menosprezada pelos historiadores: pequenas notas em jornais, observações de viajantes ou de autores do período que tangenciaram o tema. O uso dessa metodologia não convencional torna o texto também não perfeitamente alinhado aos paradigmas convencionais, o que deverá provocar algum estranhamento no leitor.
A COLÔNIA BLASIANA A Fazenda Conceição, onde estava instalada a Colônia Blasiana, de acordo com seu proprietário, Joseph de Mello Álvares (1837-1919) 1, localizava-se em uma antiga área mineradora que se encontrava em ruínas, chamada de Lavras do Palmital, no lugar onde o rio Palmital desemboca no rio Corumbá2. Não foi possível precisar a localização das instalações da Colônia, pois o rio Corumbá encontra-se represado e é provável que parte da fazenda esteja submersa. Essa represa abastece a capital federal. A água que abastece Luziânia é captada no Rio Palmital.
Bertran (2000, p. 105) apresenta o Diretor da Colônia Blasiana como “o nunca assaz citado cronista de Santa Luzia”. Também como “Joseph de Mello Álvares – o conhecido Zé de Mello, que a gente antiga de Luziânia achava ser auxiliado pelo Romãozinho, o Diabo, pela sua versatilidade como político, farmacêutico, médico, advogado, fazendeiro e escritor – foi o grande autodidata do Planalto em fins do século XIX, seu primeiro pesquisador científico [...]” (Bertran, 2000, p. 26). E, finalmente, o qualifica como “o Herôdoto do Planalto” (Bertran, 2000, p. 72). 2 De acordo com Álvares (1911, p. 3), no território onde a fazenda se situava “[...] ainda existem muralhas, restos de construcções domesticas e lavadraria de ouro [...] muita madeira de lei e uma extraordinária pastagem de capim gordura.” 1
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Em 1867, cerca de quinze anos antes da fundação da Colônia Blasiana3, Mello Álvares participou de uma exposição regional de produtos agropecuários na capital da província (Cardoso Jr., 2014). A feira, promovida pelo Império, foi realizada concomitantemente em cada província, e os melhores expositores representariam seus estados em uma grande exposição, que se realizaria no Rio de Janeiro. Possivelmente, essas exposições eram preparatórias para a exposição de Paris de 18674. No evento preparatório, Mello Álvares expôs a marmelada e o doce de marmelo, assim apresentados no catálogo da mostra: N.° 194. – Marmellada. Exposta pelo collector do municipio de Santa Luzia, José de Mello Alvares. Este doce é feito no referido municipio, onde o marmelleiro cresce e produz tantos fructos e de tão bôa qualidade, como em nenhum outro lugar do Brazil. Grande parte da população emprega-se ali no fabrico da marmellada, que é o principal ramo de commercio: muitas mil arrobas deste doce são exportadas annualmente para os outros municipios desta provincia e tambem para as de Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro. N.° 195. – Doce de Marmello. Exposto pelo mesmo. É preparado em calda de assucar no mesmo municipio; porém não em tão grande quantidade como a marmellada, sendo aliás, um doce muito estimado. (Catalogo..., 1867, p. 3).
Mello Álvares, portanto, processava artesanalmente o marmelo, que era beneficiado na sua própria fazenda, permitindo sua conservação e comércio em outras regiões – ou seja, a Fazenda Conceição já se destacava no cenário agrícola goiano antes da fundação da Colônia Blasiana. Com a implantação da agricultura científica, ficou
sendo um campo de experimentação ou uma espécie de fazenda-modelo. A Colônia Blasiana era uma instituição particular de ensino agrícola, voltada para a instrução de crianças negras, órfãs e desvalidas5. Também objetivava a modernização e a diversificação da agricultura goiana, pois procurava aplicar métodos científicos de cultivo, com a intenção de transformar os métodos rotineiros até então praticados. Diversas personalidades a visitaram: autoridades civis e religiosas, bem como viajantes brasileiros e europeus. Em comum a todos os relatos – além de ressaltarem o caráter filantrópico da entidade e magnanimidade de seu diretor –, são mencionadas as diferentes e inovadoras formas de se cultivar o solo então praticadas naquel local. Da mesma forma que no Brasil colonial, quando houve um curto período minerador, a economia brasileira da época imperial baseava-se na agricultura. Porém, ao contrário do que acontecia nas nações mais desenvolvidas, no Brasil havia o desconhecimento de técnicas de manejo da terra, o que resultava em práticas tradicionais de cultivo do solo, também chamadas de ‘rotina agrícola’ ou de ‘agricultura de corte e queima’6. A Colônia Blasiana representava, portanto, uma tentativa de modernização da agricultura em Goiás. Nossa hipótese é de que a Colônia Blasiana se constituía em um espaço de renovação da agricultura e, concomitantemente, de produção, ensino e aplicação de conhecimento científico agronômico no Planalto Central brasileiro. Segundo Marin (2006), com a Lei do Ventre Livre, de 1871, as crianças negras passaram a ser vistas como um potencial perigo para a sociedade, pois, encontrando-se
O nome é uma homenagem a seu fundador, o Juiz de Órfãos Braz Bernardino Loureiro Tavares. Braz vem do latim Blasius, daí Blasiana. Klug (2012) não menciona a participação goiana em nenhuma das exposições por ele analisadas. 5 Segundo Rocha (2007), que, apoiada em Marin (2006) e Bretas (1991), estudou especificamente a questão da educação das crianças negras e pobres em Goiás sob o ponto de vista social, a outra instituição educacional voltada para esse público era a Companhia de Aprendizes Militares. Bretas (1991) estudou a instrução pública goiana e a Colônia Blasiana era uma instituição particular, por isso mereceu dele apenas algumas linhas. 6 Em Goiás, atualmente é chamada de roça de toco, pois não promove o destocamento. 3 4
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em estado de pobreza e abandono, corriam o risco de sucumbir à marginalidade, sendo, portanto, necessária a criação de escolas que as educassem, com o objetivo de se tornarem cidadãos de bem, prontos para participar da consolidação da nação. Um segundo problema apontado pelo autor foi a possibilidade de a mão de obra se tornar escassa com o fim da escravidão. Em futuro próximo, poderia não haver mão de obra qualificada o suficiente para suprir a nova demanda, e isso poderia levar a uma estagnação da economia, uma vez que o aumento da produção agropecuária, que implicava o incremento das exportações, era feito basicamente pela incorporação de novas terras e de novos trabalhadores no processo produtivo. Ambos os problemas, com ênfase no segundo, levaram o governo imperial a incentivar a criação de colônias agrícolas voltadas para ensinamentos de agricultura prática, abrigando crianças negras e garantindo, destarte, mão de obra qualificada para as fazendas (Marin, 2006). A Colônia Blasiana possuía como modelo o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (IIFA). Bediaga (2011) o descreve como um instituto agrícola de natureza privada que, contraditoriamente, fora criado na província do Rio de Janeiro, por meio de decreto imperial, no ano de 1860, tendo como finalidade nortear o progresso da agricultura fluminense. Funcionava como asilo para órfãos (orfanato) e escola agrícola profissionalizante para os internos e externos, também como centro de pesquisa agrícola. Por contar com um corpo de associados mais qualificados, com cientistas renomados e com apoio oficial, desenvolvia pesquisas agrícolas e possuía uma revista que se constituía em uma referência na área, a ‘Revista Agrícola’7.
Segundo Marin (2006), a Colônia Blasiana, durante o seu funcionamento, abrigou um total de 43 meninos, com uma média de 25, sendo 36 o maior número, em 1884, e 17 o menor, nos últimos três anos de sua existência (1893-1895). Oferecia educação pautada na disciplina e nos bons modos. O conteúdo ofertado eram as disciplinas português, matemática, ciências e artes, chegando ainda a formar uma banda de música. Havia também o aprendizado de práticas da agricultura científica. Oscar Leal, viajante brasileiro, que visitou Goiás no último quartel do século XIX, destacou os aspectos de modernidade na Colônia Blasiana: A tres leguas da cidade e a um kilometro da margem esquerda do rio Corumbá, existe a colonia Blaziana de que é director o capitão Joseph de Mello Alvares, que dignou-se receber a nossa visita no dia 6 de maio. N'esta colonia orphanologica ensina-se a cultivar a terra, e as creanças recebem as primeiras noções de agricultura depois que sabem lêr corretamente. (Leal, 1892, p. 142).
A Colônia Blasiana era ponto de parada dos viajantes ilustres que passavam por Santa Luzia. Mello Álvares fazia questão que visitassem a Colônia. Não só chamava a atenção desses visitantes o espírito da instituição em dar abrigo e instrução a dezenas de crianças desamparadas, mas também as novas técnicas no cultivo ali praticadas. Dessa forma, seu dirigente poderia divulgar e perpetuar o que ali era realizado. O diretor queria mostrar a imagem de progresso e de civilização de sua instituição, o que justificaria a captação de mais recursos junto aos órgãos públicos e junto a particulares. Essa imagem angariava, além de recursos, prestígio político e votos.
“A Revista Agrícola foi criada em 1869. Em suas edições trimestrais, publicadas ininterruptamente durante 22 anos, até 1891, apresentaram-se ao público 87 números e 5.165 páginas. Seus principais objetivos eram divulgar os conhecimentos acerca das atividades rurais, promover o debate sobre as novas tecnologias e ciências que despontavam na Europa e nos EUA em prol da agricultura e suas adaptações à realidade brasileira, além de discutir a ‘crise’ da mão de obra e a sua substituição por colonos e propagandear o uso de máquinas e instrumentos agrícolas. A missão pedagógica da Revista se traduzia em ensinamentos ao leitor sobre as vantagens de abandonar as práticas agrícolas tradicionais e rotineiras e incorporar novos hábitos no trato com a planta e o solo, com apresentação de exemplos advindos, principalmente, dos países chamados civilizados.” (Bediaga, 2011, p. 135).
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A PLANTAÇÃO Em 1882, o jornal ‘A Tribuna Livre’ publicou as impressões do padre Doutor Raymundo Henrique des Genettes8 sobre sua estada na Colônia Blasiana. Ele a descreve como um local agradável, organizado, com jardins e fontes de água que encantaram os seus olhos, informando que apenas na Corte se poderia encontrar algo de tamanho bom gosto. Elogiou também o zelo com que as crianças eram tratadas, as quais mostravam-se cheias de bons modos, apontando a instituição como exemplo para a criação de outras colônias no Brasil. No entanto, outro importante aspecto é demonstrado em suas palavras: “De cada lado do pateo, correm fontes de agua viva que banhão o jardim. As plantações achão-se em uma area de 1.500 a 1.600 metros perfeitamente plana, offerecendo vastos passeios bordados todos elles de flores e cortados em angulos rectos” (Genettes, 1882, p. 3), o que é uma área significativa para uma fazenda que não se estruturava na forma de plantation. O mais importante indício de técnicas modernas apresentadas pelo padre é o de que em cada lado do jardim9 corria água que o banhava, a qual, podemos supor, irrigava tanto o jardim da propriedade quanto a plantação. É característico da região Centro-Oeste atravessar uma longa estiagem no decorrer do ano, que pode durar até seis meses, daí a necessidade da irrigação. Não seria lógico irrigar o jardim e deixar a plantação à míngua, todavia não se pode comprovar se a plantação era irrigada. Chamava sua atenção também que a área cultivada formava ângulos retos, hoje chamada pelo agricultor de ‘quadra’, isto é, era configurada em blocos, formando figuras geométricas regulares, um quadrado ou um retângulo, sendo um indício de modernidade.
Tanto Leal quanto o padre Genettes notaram um formato diferente na organização da plantação. Leal (1892, p. 142) destaca a “simetria na disposição das plantas”. O padre Genettes aponta como as plantas eram dispostas nas ‘quadras’: todas em um ângulo extremamente reto. Fala também sobre “bananeiras plantadas à cordel” (Genettes, 1882, p. 2)10, isto é, plantadas em linha reta, com o uso de uma corda esticada. Configura-se que as plantações não eram organizadas de forma irregular e aleatória, conforme é costumeiro nas roças de toco até hoje, pois havia um padrão a ser seguido, assinalando o uso de técnicas científicas no manejo da plantação. A técnica de plantar em linhas retas, resultando na otimização do espaçamento entre as plantas, confere maior facilidade no manejo da lavoura, e o espaço, dessa forma, torna-se melhor aproveitado, havendo aumento de produtividade, pois estimula a competição entre as plantas na busca por luz solar e nutrientes. A instituição foi responsável pela introdução de novos cultivos no sertão goiano, inclusive de plantas exóticas ao cerrado. Algumas delas são cultivadas até a atualidade, porém outras não obtiveram tanto sucesso. Marin (2006) destaca diversas plantas cultivadas na Colônia Blasiana, tais como: café, feijão, arroz, milho, trigo, mandioca, batata-doce, batata-inglesa, cará, inhame, gengibre, amendoim, gergelim, erva-doce, algodão, tabaco, fava, linho, centeio, cevada, trevo, sorgo, guandu, urucum, anil, lúpulo, palmeiras, marmelo, videiras, bananeiras, chá e diversas variedades de cana-de-açúcar. Algumas dessas culturas eram comuns em Goiás, a exemplo do feijão, do arroz, do milho, da mandioca, da banana, do amendoim e da cana-de-açúcar. Algumas, possivelmente, foram introduzidas em terras goianas por Mello Álvares: o eucalipto, o sorgo, a uva, o
O padre Raymundo Henrique des Genettes foi, por muitos anos, pároco em Santa Luzia, mas atuou em diversos municípios e fundou vários colégios católicos em um momento no qual, com o advento da República, a Igreja se vê privada de verbas públicas. Foi mencionado no Relatório Cruls, no debate sobre a localização dos Montes Pirineus. O padre acertou na latitude e errou por pouca coisa na longitude, que Cruls (2012, p. 55) considerou exagerada. Também era deputado provincial. 9 Jardim, na época, era um misto de horta, pomar e jardim, na acepção em que o termo é usado hoje. Possivelmente, essa concepção é oriunda dos jardins aristocráticos portugueses (Rodrigues, 2016). 10 Trata-se da transcrição de um artigo publicado no ‘Jornal do Commercio’, periódico carioca. 8
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trigo-de-inverno, a baunilha, variedades de pimenta e outras. Todas essas tiveram a necessidade de passar por aclimatação, adaptando-se às condições de solo, de clima e de temperatura do cerrado. Entre as plantas introduzidas na Colônia Blasiana, algumas são cultivadas em larga escala atualmente, como o eucalipto, usado na produção de lenha e na fabricação de papel, e o sorgo, aproveitado para alimentar o gado no período da seca. No entanto, não se pode afirmar que houve sucesso da Colônia Blasiana na introdução de plantas exóticas, pois muitas caíram no esquecimento. A uva, por exemplo, é pouco produzida atualmente. A cevada também, apesar de haver fábricas de cerveja no estado. Muitas delas não se transformaram imediatamente em culturas de valor comercial e tiveram de ser reintroduzidas posteriormente (eucalipto e sorgo, por exemplo). O objetivo, nas tentativas de introdução e aclimatação de novas plantas, era o de encontrar um produto de grande valor comercial, que desse impulso à economia goiana, e o de superar a crise gerada pela falta de gêneros alimentícios em Goiás naquele período. A implantação de novas culturas pela Colônia Blasiana contempla outro aspecto de modernidade presente na instituição. Sua intenção não era a prática da monocultura, característica da agricultura da época, mas, sim, da policultura. Provavelmente, isso seria válido enquanto não se encontrasse um produto de grande valor comercial para ocupar aquelas terras, que, por imposição do mercado, certamente se tornaria monocultora. Quando o assunto é produção e aclimatação de plantas, Mello Álvares é otimista: “pretendo fornecer d’hora em diante muda e sementes de todas as plantas que [a Colônia] possui, aos agricultores da província”. E completa: “Se a Colônia Blasiana tiver a fortuna de propagar todas as plantas úteis que possui, ficará sobejamente pago ao trabalho que tem tido” (Álvares, 1889, p. 12). E, realmente,
o esforço não era pequeno: possuía muitas variedades enviadas pelo IIFA; outras que comprou e aquelas que foram oferecidas por diversas pessoas no Rio de Janeiro, que, mesmo sendo gratuitas, demandavam gastos, pois tinha de arcar com os custos altos dos fretes. Orgulhava-se de ter mudas de vegetais “que nunca penetraram no alto sertão” (Álvares, 1889, p. 12), dentre as quais relaciona o eucalipto e a quina calisaia11, que a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (SENACOP) se esforçava por aclimatar. Certamente, a cultura da colônia que ganhou mais notoriedade na época foi a do trigo. Em 1882, o Correio Official (Expediente..., 1882) informava que Mello Álvares havia se candidatado ao prêmio que o governo imperial concederia ao melhor produtor do cereal, talvez daí advenha seu prestígio como agricultor. Em 1883, o jornal Correio Paulistano informava que na Colônia Blasiana o trigo “está florescendo com aspecto prometedor.” (Cultura..., 1883, p. 2). Não foi possível descobrir quem foi o ganhador desse certame. Também não se sabe por quanto tempo o trigo foi cultivado com sucesso na fazenda.
A CRIAÇÃO Há um discurso modernizante em Mello Álvares também em relação à pecuária, mas que deixa espaço para alguns questionamentos sobre sua efetividade concreta. No Relatório de 1889, Mello Álvares informa que o gado vacum de sua fazenda não era para exportação, isto é, para ser comercializado fora da província, mas para o “serviço do campo e alimentação do pessoal, que não é pequeno” (Álvares, 1889, p. 11). O mesmo relatório informa que “gado ovino, caprino, cavalino e suíno, e aves domésticas” (Álvares, 1889, p. 11) também eram para autoconsumo e que os bovinos estão bastante melhorados com o “cruzamento por seleção”, mas não menciona quais eram as raças que formavam seu rebanho, nem como e
Árvore (Cinchona calisaya) da família das rubiáceas, com casca da qual se extrai a quina amarela, rica em quinino, que é usada no tratamento da malária.
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onde conseguia as matrizes ou os touros de raça superior, e nem quais os critérios que usava na seleção. Qual seria a composição e o montante desses plantéis? Numa região à longa distância dos grandes centros, isolada por falta de meios de transportes, na qual faltavam alimentos e, por conseguinte, eles eram caros, por que esses produtos não eram comercializados? Todavia, a questão mais importante é: seriam usados para tracionar arados? Ou apenas para transporte de cargas e pessoas? Aproveitava a oportunidade, como sempre, para solicitar do governo imperial alguns casais de animais de raças superiores para aclimatação. Em 1887, a ‘Revista de Engenharia’ noticiou que foi despachado à Colônia Blasiana, pela SENACOP, um projeto arquitetônico de estábulos apropriados para a criação científica de gado12, que, na verdade, era um livro do engenheiro José Gonçalves de Oliveira a indicar critérios para a construção de um estábulo científico (Plano..., 1887). O recolhimento do gado em currais, além de garantir maior produtividade do rebanho, proporciona a concentração do estrume em um único local, facilitando seu aproveitamento como adubo. Portanto, o uso de estábulos para animais possui estreita ligação com a adubação do solo. Essas técnicas podem ser consideradas modernas, tanto a adubação do solo com fertilizantes orgânicos (estrume) quanto a forma de manejo da criação. O superior dominicano, frei Raymundo M. Madré, conforme mencionado em artigo publicado 11 anos depois de sua elaboração, registrou que o gado da Colônia Blasiana era criado pelo “systema de estabulação” (Monografia, 1895, p. 3). O Relatório de 1889 também se refere à existência de estábulos na fazenda. Entretanto, não foi possível apurar se era construído de forma científica13, pois não há sequer uma descrição deles nos relatórios enviados ao SENACOP, nos relatos dos viajantes, nem na imprensa. Todavia, o
fato de existir estábulo indica que o gado não era criado solto no campo e que poderia haver aproveitamento do estrume, facilitando a aplicação dos animais como tração de máquinas agrícolas ou nos carros de boi. Também tornaria mais fáceis atividades como ordenha, acompanhamento de partos, cuidado com feridas, promoção de cruzamentos selecionados, fornecimento de feno, de sal etc., pois os animais estabulados estariam sempre à disposição. Não foram encontradas referências a pastos cercados, o que seria outro sinal de modernidade. O fato de os alunos aprenderem a curar enfermidades também indica uma nova forma de manejo, pois, com o gado criado solto nos campos, era muito difícil curar as moléstias. Mas curar como? De maneira científica? Ou com saberes populares sedimentados pela tradição, muitas vezes incompatíveis com práticas científicas? Não há referências nas fontes. Convém salientar que o cientificismo era característico dos meios intelectuais da época e, como Mello Álvares tinha acesso aos principais periódicos científicos de então, pode ser que ele ensinasse e que aplicasse métodos científicos de cura. A prática da adubação orgânica naquela época era um indicativo de ocupação permanente do solo, que precisa ter seus nutrientes repostos, para continuar produtivo. Evitavam-se, dessa forma, duas práticas inerentes à rotina agrícola: o nomadismo agrícola (ou itinerância) e as terras em pousio14. Na agricultura tradicional afro-ameríndiaportuguesa, que se praticava no Brasil desde o período colonial, o único adubo eram as cinzas resultantes das queimadas, que são rapidamente levadas pelas enxurradas. Usa-se o solo até seu completo desgaste, e a recuperação da fertilidade é feita deixando as terras ‘cansadas’ em repouso por um período não inferior a vinte anos, indo-se desmatar mais adiante para a instalação de novas plantações. Essas terras cansadas eram chamadas em São Paulo de deserto,
Para descrição de um estábulo científico com modelo típico do final dos oitocentos, ver Botelho (1895). Esse sistema foi construído antes de o projeto ser enviado pela SENACOP. 14 Pedroso Júnior et al. (2009) fizeram uma revisão bibliográfica sobre o tema. Ferraro (2012) estudou a itinerância da lavoura cafeeira e os rastros de destruição que ela deixava. 12 13
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embora não o fossem na acepção da palavra. Todavia, não há menção sobre queimadas, nem sobre a existência de terras cansadas nas fontes consultadas sobre a Colônia Blasiana, o que é compreensível, pois a ideologia da época priorizava o registro do progresso e não da decadência e de suas mazelas. Também não foram encontrados registros sobre taperas, um indicativo da prática do nomadismo agrícola. Entretanto, uma nota publicada em 1910 no jornal ‘O Planalto’ nos permite entrever que havia problemas decorrentes do impacto ambiental das lavouras. Declarava Álvares (1910, p. 5) que “[...] procederá criminalmente contra todos aquelles que derribarem, comprarem ou carrearam [...]” sem sua autorização madeiras da sua fazenda. Essa pequena nota pode ser interpretada de várias maneiras, mas vamos nos ater a três delas. Primeiramente, as matas da região estavam escasseando devido à agricultura predatória típica da rotina agrícola realizada pelas populações sem terras, que cultivavam em seus terrenos com ou sem sua autorização. Essas populações, que até então haviam sido toleradas, começavam a ser prejudiciais ao fazendeiro, pois a madeira e a lenha, devido à escassez, tornavam-se caras15. Estaria ele a levar prejuízos econômicos. Em uma segunda interpretação, caberia notar que possivelmente havia poucas matas em sua fazenda, pois a maior parte já havia sido destruída por práticas agrícolas predatórias, sobre as quais não há registros disponíveis, realizadas pelo próprio Mello Álvares. Uma terceira possibilidade seria a apropriação indevida de lenha ou de madeira por parte das vizinhanças, sobretudo comerciantes de lenha, mas este fato é pouco provável, dadas às dificuldades de transporte. Muito provavelmente, a carência de matas se explica devido ao fato de boa percentagem das terras estarem ‘cansadas’, desgastadas pelo manejo inadequado, isto é, tratava-se de terras em pousio a aguardar a recomposição natural da vegetação. Se se aceitar como válida a segunda possibilidade, poder-se-ia
afirmar que, a despeito dos discursos e de algumas práticas modernas adotadas, a modernidade na fazenda não era completamente concretizada. Todavia, não foi possível prová-la.
OS INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS NA COLÔNIA BLASIANA Para que as formas de plantio na Colônia Blasiana sejam consideradas modernas, outro ponto a ser levantado é o uso de instrumentos agrícolas mecânicos. O auxílio da tração animal ou mecânica proporciona maior eficácia e rapidez na produção agrícola, portanto, maior produtividade. Alguns exemplos de máquinas movidas à tração animal são o arado, a carpideira, o gradeador, a semeadeira, a adubadeira, entre outros. Álvares (1889, p. 11) informava que “possuía as máquinas indispensáveis para o ensino da agricultura prática”. Dizia que “comprou uma coleção completa de instrumentos de jardinaria” para substituir a que tinha. Que máquinas seriam essas? Seriam as ora mencionadas? Não há informações, predomina o silêncio. Quando, porém, o assunto é o beneficiamento dos produtos agrícolas, ele é mais preciso: para beneficiar produtos colhidos na fazenda, são mencionados o monjolo de pêndulo, o engenho de açúcar e o moinho. O ARADO EM GOIÁS A seguir, em uma inserção longa, serão tecidas algumas considerações sobre o arado em Goiás no século XIX, com a finalidade de mostrar em que nível se encontrava o debate sobre mecanização da agricultura na região, para, em seguida, verificar como a Colônia Blasiana se situava nesse debate. Em 10 de abril de 1880, o jornal ‘A Tribuna Livre’ noticiava que o Sr. Francisco Antônio16 apresentou um projeto que isentava de impostos os fazendeiros que usassem o arado e a charrua em suas plantações pelo prazo de dez anos (Assemblea..., 1880). Dizia que o
O protesto de Mello Álvares antecede em quatro anos ao desabafo raivoso de Monteiro Lobato no jornal ‘O Estado de São Paulo’ contra os caipiras que queimavam as matas de sua fazenda, e foi essa carta que deu notoriedade ao autor paulista. 16 Na verdade, o projeto foi apresentado em julho de 1879 pelo Sr. Aristides Spinola, que voltara encantado com os novos métodos agrícolas depois de uma visita à Escola Bahiana de Agricultura. 15
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arado implicaria mudanças no sistema da lavoura e o justificava devido à falta de braços. Em 1880, o mesmo jornal mencionou que um projeto, apresentado à Assembleia Provincial pelo Sr. Spinola, que “[...] isemptava por dez annos, dos impostos provinciaes, a todo o lavrador que introduzisse ou antes que uzasse do arado ou da charrua.” (Dois poderes..., 1880, p. 2), havia sido vetado pelo governador. Somente 13 anos depois é que o arado voltou a ser notícia. Em 1893, em 25 de fevereiro, o ‘Estado de Goyaz’ noticiava que: [...] a família Gomes, da campanha do Turvo, adoptou o arado para o serviço da Lavoura. O resultado obtido fica a perder de vista da rotineira roça das derrubadas. [...] A experiencia tem demonstrado que em terreno de alqueire lavrado pelo arado produz mais do dobro do que actualmente pelo velho systhema e o serviço de um homem é igual ao de dez que desperdiçam sua actividade nos roçados e se arriscam a ser esmagados pelas arvores. (Lavoura, 1893, p. 3).
A presença de um arado deveria ser algo muito extraordinário neste contexto, uma novidade que merecia ser noticiada na imprensa. O mesmo jornal voltou ao assunto, em 24 de junho de 1893, propondo que o Congresso Estadual amparasse a lavoura, apontando para a necessidade de mudanças, entre as quais se sobressaía o uso do arado e suas vantagens. Enfatizava sua utilidade na recuperação das terras cansadas, chamadas de estéreis, cobertas de ervas daninhas e de espinheiros. Divulgou que, na Câmara Estadual dos Deputados, estava ocorrendo um debate sobre o uso do instrumento e que também estava sendo solicitado subsídio para a compra e o transporte do produto. Mostrou que
a província tinha autorização do governo imperial para fabricar arado desde 185717. As notícias, mais do que mera curiosidade, expressavam um compromisso político: o desejo de reforma na agricultura. O periódico estava a fazer pressão junto aos políticos para a modernização do campo. Na edição de 5 de julho de 1893, o jornal ‘Estado de Goyaz’ aponta dois exemplos bem sucedidos, os quais transcrevermos a seguir: Em Setembro de 1889, o Sr. Manoel Couto [...] arou o terreiro da fazenda, logar invadido pelas vassouras, carrapichos e outras vegetações das terras cansadas e acamadas18 pela frequência do gado. Hoje cresce alli um mato denso e vigoroso, causando admiração a todos que julgavam incultivavel e perdido o terreno. (Ainda a..., 1893, p. 1).
O pai do Sr. Couto – continua o relato –, “[...] prevendo o despovoamento19 de suas mattas, mandou arar um campo que não tendo sido utilisado tornou-se bosque espesso.”. Há, portanto, uma preocupação com a reconstituição florestal ou preservação ambiental. Convém observar que o que parecia incomodar era a pouca disponibilidade de terras cobertas com mata virgem e o fato de já haver muitas terras cansadas. Aponta também o uso do arado em Bonfim e Santa Luzia20, na propriedade da família Cunha Telles. E conclui: “As vantagens do emprego do arado são immensas. Basta considerar-se que suprimem as perigosas derrubadas, o dispendioso muchirão21, encurta-se a distancia que costumam ter as roças, suaviza-se a capina, o pessoal empregado é diminuto, etc.” (Ainda a..., 1893, p. 2). Em 17 de setembro de 1893, o ‘Estado de Goyaz’ (Jatahy, 1893, p. 3), dando sequência em sua campanha pró-arado, expressa que o instrumento era usado com sucesso em Jataí, na lavoura do padre Brom,
Há uma breve menção de Oscar Leal a uma fábrica de fundição de ferro no Arraial das Areias, a 10 km da cidade de Goiás: “perto da fabrica houveram algumas officinas de ferreiro nas quaes se fabricavam instrumentos de lavoura” (Leal, 1892, p. 60), que por ocasião de sua visita não existiam mais. Fabricariam arados? 18 Talvez o significado de acamada aqui seja pisoteada e, portanto, compactada. O solo compactado necessita de aração. 19 Significa hoje desflorestamento, desflorestação ou desmatamento. 20 A Colônia Blasiana situava-se muito próximo a Bonfim, atual Silvânia. 21 Em itálico no original. ‘Muchirão’ é o mesmo que mutirão. 17
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que organizou uma reunião de “pessoas gradas” da sociedade para assistir a uma demonstração do arado em funcionamento, conduzida pelo cidadão ‘rio-grandense’22 Joaquim Francisco de Souza. O mesmo jornal informava, na edição de 11 de fevereiro de 1894 (Municipio..., 1894), que o Concelho Municipal da Vila criou um premio de dois contos de réis para aquele agricultor que primeiro introduzisse o arado para mondar a terra em vez da rotineira derrubada e queima dos matos que grandes prejuízos causarão para o futuro. A preocupação central do articulista do jornal ‘Estado de Goyaz’ nessa série de artigos dos anos 1890 era com o desmatamento e as mudanças climáticas, além da consequente desertificação, o que remete aos relatórios da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (CGG), sobretudo ao de 1888. Silvia Fernanda Mendonça Figueirôa assinalou que Orville Derby, no relatório da CGG de 1888, definiu como prioridade para a seção de Botânica o estudo das áreas de campo, que no estado de São Paulo eram as áreas desertificadas, devido à rotina agrícola. Para Derby (apud Figueirôa, 1985, p. 19), seriam tarefas prioritárias daquela seção o: estudo da vegetação dos campos com referência especial às plantas forrageiras, têxteis e medicinais. [...] Parece-me de especial interesse as observações sobre a melhor utilização dos campos. Estando parte considerável da área da Província constituída por campos a questão da possibilidade de cultura em terreno dessa natureza, no caso afirmativo, o estudo dos gêneros e meios de cultura mais adequados têm uma importância econômica capital.
Esse jornal também pode ter se inspirado nos boletins da CGG que apresentam os resultados coletados pela equipe de Derby nas explorações do território paulista para um público maior. Principalmente no relato
da exploração dos vales do Itapetininga e Paranapanema realizada por Sampaio (1890) e nos resultados dos estudos botânicos de Löfgren (1890) sobre a flora paulista, publicados no mesmo ano. Mas isso é apenas uma possibilidade, pois não há indícios concretos que remetam a essas publicações. Remetem também aos experimentos23 de Franz Josef Wilhelm Dafert24, no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), comparando a produtividade do roceiro tradicional com o trabalho mecanizado, que também tiveram muita repercussão na mídia (Dean, 1989; Melone, 2001). É possível que esses fazendeiros tenham tido acesso a eles. O jornal ‘Goyaz’, em 17 de dezembro de 1900, no artigo ‘A nossa lavoura’, propõe a substituição dos métodos rotineiros por práticas agrícolas mais adequadas: “O seu intelligente amanho, seu revolvimento pelos instrumentos aratorios, o seu beneficiamento pelo adubo, restituir-lhe-ão o primitivo vigor, se não os augmentar.” (A nossa..., 1900, p. 1). O assunto, portanto, era pouco frequente na mídia impressa de então, mas havia um incipiente debate sobre a necessidade de modernizar a agricultura goiana, bem como as constantes reclamações sobre falta de incentivos (subsídios) por parte do governo aos lavradores. Entretanto, tais reclames não eram traduzidos por ações concretas, como criação de associações de classe, de centros de pesquisas científicas ou de ensino agrícola, bem como de uma imprensa especializada, ao menos até 1911, quando se tem alguns indícios da implantação de uma política pública no sentido de promover a modernização da agricultura. Em 1911, o arado apareceu novamente como notícia. Em Natividade, então município do norte goiano, há a presença de uma autoridade, o Sr. Abílio Wolney, da Inspetoria Agrícola de Goyaz, que, em serviço,
O arado foi introduzido, primeiramente, nas províncias do sul, devido à influência dos imigrantes europeus que lá se fixaram. Sobre alguns desses experimentos, ver Antônio Gomes Carmo, em sua obra “Reforma da agricultura brazileira”, de 1897, que é uma coletânea de artigos publicada pelo agrônomo mineiro originalmente no jornal ‘Minas Gerais’, onde começou a escrever a partir de 1891. Os experimentos de Dafert tinham também repercussão na imprensa paulista. 24 Dafert foi diretor do Instituto Agronômico de Campinas de 1887 a 1897. 22 23
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[...] fez experiencias com o arado reversivel tirado á bois num cercado do cl. Joaquim da Silva, junto à villa, empunhando elle mesmo o arado e operando com pericia e resultado, apezar dos animaes poucos adextrados. (Natividade, 1911, p. 2).
Pode-se notar que, em 1911, o arado ainda era novidade entre os lavradores, e percebe-se também – e essa era a principal novidade – o esforço do Estado em transformar a agricultura. O modernizar da agricultura se torna uma política pública. Segundo Ferraro (2005), no final do século XIX e início do século XX somente poucos agricultores do Sul e do Sudeste utilizavam máquinas agrícolas modernas. Silva (2009) mostrou que, somente na década de 20 do século passado, o uso de maquinário agrícola foi incorporado efetivamente pelos fazendeiros. Foi somente a partir dos anos 1920 que a agricultura moderna se efetivou em São Paulo.
O ARADO NA COLONIA BLASIANA Essa explanação sobre o uso do arado no Goiás dos oitocentos e início dos novecentos nos remete a outra questão: fica difícil supor que, diante do debate na imprensa regional sobre o uso desse instrumento, a Colônia Blasiana ficasse alheia e não fizesse uso dele ou nem sequer o mencionasse. Mas será que eles realmente usavam o arado? O fato de não haver sido encontrada nenhuma menção direta ao seu uso, embora o diretor, no Relatório de 1889 (Álvares, 1889, p. 5), afirmasse que “todos os alunos já sabem aplicar a charrua, a grade e outros instrumentos, empregar os agentes fertilizadores”25, não permite comprovar totalmente a nossa hipótese. Como supor que a Colônia Blasiana foi um importante agente de modernização da agricultura goiana, se ela não praticava totalmente a agricultura
científica em suas lavouras? Não há, portanto, dados concretos sobre quais máquinas eram utilizadas e nem de quaisquer pedidos de instrumentos agrícolas feitos por Mello Álvares, como era de seu feitio, ao governo ou a outras instituições, nem de, tampouco, o envio de maquinários à instituição. Se houvesse, provavelmente, seria alardeado pelos visitantes e pela imprensa, como ocorria nas situações mencionadas anteriormente.
O TRABALHO A Colônia Blasiana não possuía mão de obra escrava mesmo antes da abolição, o que desponta como outro indício de modernidade para a época. Lá era proposto o aproveitamento do trabalhador nacional, capacitado pela educação morigerante e profissionalizante e pelo higienismo médico. Parte de sua mão de obra era formada por crianças e jovens ali abrigados. Eram eles que realizavam muitas das atividades da faina agrícola: plantavam, colhiam, cuidavam dos animais domésticos, além de outros afazeres, embora houvesse também outros trabalhadores assalariados26. Em todo caso, os alunos recebiam um salário anual, mesmo contrariando as determinações do governo imperial, que designava que menores de 12 anos não deveriam trabalhar. Álvares (1889) alegava que os internos possuíam abrigo, alimentação, vestimentas, cuidados de saúde e educação, e que isso custava caro, daí a necessidade de os menores trabalharem. Talvez o todo ou parte dos salários ficasse retido para formar um pecúlio, a fim de que, quando atingissem a maioridade, e não conseguissem colocação nas fazendas da região, os egressos tivessem algum recurso para começar a vida. Por outro lado, é controvertido o caráter filantrópico da instituição27. McCreery (2006, p. 179) questiona
Pode ser que eles tivessem aprendido teoricamente como fazê-lo, mas não aplicassem esses conhecimentos. Segundo o relatório de 1884 (Penna, 1884, p. 71) apresentado ao Imperador pelo Ministro Affonso Penna, da SENACOP, a Colônia contava com cerca de “50 adultos” empregados nas plantações. 27 Essa forma de acolhimento, na qual os alunos sem regime de internato trabalham e aprendem ao mesmo tempo, era aplicada nas colônias, presídios (como eram chamados os quartéis) e outras instituições imperiais que abrigavam menores, inclusive no IIFA. 25 26
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até que ponto [a Colônia] Blasiana funcionava na verdade como verdadeira instituição filantrópica, em oposição [a ser apenas uma] fonte de mão de obra barata para os detentores de terras do município, o que [para o autor] não está claro28.
Estariam fazendo um bem ou apenas explorando o trabalho de crianças e jovens socialmente fragilizados? Quando, no Relatório de 1889, Álvares (1889) diz que o trabalho de um menino com menos de doze anos pouco ou nada rende e que a maioria das crianças estava nessa idade, talvez se configure como um indício de que não houvesse a intenção de explorar, pois o salário pago a um adulto é um pouco maior e sua produtividade muito maior. Nada sugere intencionalidade de explorar as crianças, mas ficou a impressão de que sua obra era uma justificativa para angariar verbas e outros donativos, prática de muitas instituições filantrópicas ainda hoje. Os cuidados dispensados aos meninos e adolescentes parecem estar além daqueles que seriam destinados àqueles que somente se quer explorar. Sem falar que as cinco filhas de Mello Álvares eram adotivas e todas foram bem casadas e lhes deram netos. Para Marin (2006), a real intenção da Colônia Blasiana em abrigar crianças não era apenas para dar-lhes uma educação que pudesse realmente as emancipar. Seu intuito era salvaguardar a agricultura goiana de um colapso de mão de obra, devido à abolição da escravatura. As crianças eram educadas no e para o trabalho braçal. Ao completarem 21 anos, os jovens iriam trabalhar nas fazendas vizinhas como braçais e subalternos. Para Andreson Carlos Elias Barbosa, a sociedade brasileira via um processo de morigeração. Dessa forma, os morigerados, que tanto se desejava formar, na mesma época, no Instituto Paraense de Educandos, seriam aqueles cidadãos cooperativos que se submetiam a toda e qualquer condição e situação sem fazer reclamações ou reivindicações, agindo sempre com a devida civilidade e, porque não dizer, docilidade. O mais
importante, no entanto, era que, independente de quaisquer inconvenientes e/ou limitações, os sujeitos trabalhassem de forma prestativa e laboriosa. (Barbosa, 2011, p. 149).
Apoiado em Marin (2006), Barbosa (2011, p. 149) diz que “apesar de geograficamente separadas, ideologicamente essas instituições [a Colônia Blasiana e o Instituto Paraense de Educandos] tinham a mesma fundamentação”, pois, em ambas as instituições, a paraense e a goiana, o esforço de morigeração dos alunos era grande. No Relatório de 1889, Álvares (1889, p. 2) comenta que dois alunos, ao completarem a maioridade, tinham saído da Colônia “perfeitamente morigerados” e sequer menciona se eles eram bons agricultores. Gabava-se também de haver retirado estes jovens “das garras da barbaria” e colocado “nas mãos da civilização” (Álvares, 1889, p. 1). Essa é uma visão bastante diferente daquela apresentada pelo agrônomo Antonio Gomes Carmo (1897), que apostava na regeneração do agricultor nacional e queria formar trabalhadores aptos e eficientes no manejo de máquinas agrícolas, capazes de tomar atitudes racionais, calcadas em rudimentos de princípios científicos e que tinha uma atitude de menosprezo ao ‘enxadeiro’, como pejorativamente chamava o agricultor tradicional. No caso da Colônia Blasiana, a hipótese de Marin (2006) e de Barbosa (2011) de que havia mais preocupação com a morigeração do que com a instrução profissionalizante parece ser razoável, pois foi constatado, também nas leituras das fontes, que havia mais uma crença no processo de morigeração dos trabalhadores através da educação do que a preocupação com a colocação do egresso no mercado de trabalho. O padre Genettes, por exemplo, enfatiza muito o bom comportamento dos colonos, que usam uniformes de brim pardo e bonés azuis com as iniciais da colônia e “[...] antes e depois da refeição, assim como ao recolherem se e ao levantarem-se cantão lindos hymos apropriados.” (Genettes, 1882, p. 2). Não há uma ênfase nos relatos a
No original: “But to what extent Blasiana functioned in fact as genuine philanthropic institution, as opposed to source of cheap labor for the municipality’s land holders, remains unclear”. (McCreery, 2006, p. 179).
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respeito da formação profissional com a intensidade que era de se esperar.
AS AULAS De acordo com o relatório apresentado à Assembleia Geral pelo Ministro da SENACOP, D’Avila (1883, p. 169), o ensino era “dividido em três aulas: a de instrução elementar, regida por Antonia Euphrosina de Mello, filha do diretor; a de economia agrícola e rudimentos de agricultura, regida pelo diretor; a de música vocal, regida pelo professor Carlos José da Rocha”. Não havia currículo estruturado, nem divisão do ensino em graus, embora os alunos lá permanecessem até a idade de 21 anos. Não foram encontradas menções a nenhum tipo de bibliografia usada pelos alunos ou pelo professor, apesar de a biblioteca ser um orgulho para o diretor. O único na escola que possuía conhecimentos científicos era o próprio diretor, apesar de ser autodidata, era um polivalente, no dizer de Bertran (2000), que o considerava um historiador afinado com seu tempo29. Os relatórios não mencionam laboratórios, campos experimentais de cultura, uso de química agrícola, bem como uso de tecnologia. O relatório enviado à Assembleia Geral pelo Ministro Affonso Augusto Moreira Penna informa que os alunos “exercitavam-se em trabalhos rurais nas plantações do estabelecimento” (Penna, 1884, p.71)30, o que nos faz crer que aprendiam por observação, de maneira empírica, pois não havia uma estrutura curricular e nem professores qualificados. Marin (2006, p. 130) afirma que “os meninos eram educados no e para o trabalho manual”. No relatório de 1886, o Ministro Affonso Augusto Moreira Penna é mais detalhado:
As disciplinas constam de lingua nacional, geometria, desenho, arithmetica, geographia e historia do Brazil, doutrina christã, musica vocal, principios de agrilogia, principalmente os de zootecchnia no ponto de visto de economia rural, principios de economia agricola e o manejo de instrumentos agrarios.(Penna, 1996 apud Neves, 2011, p. 216).
Todavia, não menciona professores e programas e nem quais eram os instrumentos agrícolas usados. Como aprender manejando arados, gradeadores e charruas, se, provavelmente, não havia esses instrumentos lá? Qual era o programa dessas disciplinas? Quem eram os professores? Que qualificações possuíam? O fato de o relatório do ministro ser baseado nas informações enviadas pelo diretor da própria Colônia Blasiana e delas não se confirmarem em outras fontes de informação, a rigor, não permite considerá-las aceitáveis, pois, provavelmente, o relatório de Mello Álvares estivesse exagerando em suas considerações para justificar maior aporte de recursos. O relatório de Mello Álvares, escrito em 1889 e enviado à SENACOP em 1890, faz um apelo quase desesperado por verbas, pois a falta de ajuda oficial poderia inviabilizar a instituição. Não se pode deixar de observar que é o primeiro enviado às autoridades do novo regime, daí o desejo de impressionar. Nesse documento, o programa de ensino, bem como as concepções pedagógicas do diretor, está mais detalhado. 1 Conhecimento dos instrumentos agrários, 2 manipulação para preparar a terra para receber as culturas apropriadas, 3 tratamentos dos vegetais, desde a germinação até o completo desenvolvimento, 4 colheita dos produtos, 5 estudo prático sobre estrumes e adubos, 6 tratamentos dos animais domésticos e melhoramentos,
Para Bertran (2000, p. 108), Mello Álvares “houve-se, em fins do Século XIX, com verdadeiros métodos científicos de pesquisa histórica. Para cada um dos anos de 1746 a 1775, compulsou os livros do conselho do julgado, das irmandades religiosas, os sermões dos vigários de Santa Luzia e os registros das igrejas em geral, testamentos e inventários – enfim toda a papelada sobrevivente dos anteriores 140 anos – quase toda hoje desaparecida. Fez história oral: deve ter-se consultado com octogenários que ainda conservavam velhas legendas do Século XVIII, e deve tê-las cotejado com os documentos à vista. A única obra sobre a história de Goiás que parece ter sido do conhecimento do ilustre luziano foram os Anais da Província de Goiás, de José Maria Pereira de Alencastre: melhor companhia não podia haver para os horizontes da época”. 30 Segundo o jornal ‘O Apóstolo’ (Colônia Blasiana, 1884a, p. 2), os “28 educandos ali recebem [...] instruções práticas de agricultura nas plantações do estabelecimento, das quais tiram os meios de subsistência”. 29
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- de Horticultura, a saber: 1 estudos práticos sobre os tecidos elementares dos vegetais, seus órgãos e funções respectivos, 2 enxertia e outras operações próprias de horticultura, prática de jardinagem, embelezamento de parques e irrigações. (Álvares, 1889, p. 9).
E complementava o diretor sobre o sucesso da empreitada: “todos os alunos já sabem aplicar a charrua, a grade e outros instrumentos, empregar os agentes fertilizadores, plantar e cultivar, já tratam animais domésticos e compreendem [o] modo seu melhoramento, são bons agricultores e jardineiros” (Álvares, 1889, p. 5). Entretanto, conforme já dito, talvez tivessem conhecimentos apenas teóricos e não práticos sobre uso de máquinas agrícolas. Contraditoriamente, poderia ser também o inverso, pois é possível ainda que eles aprendessem somente por instruções no campo, isto é, de maneira empírica, mas isso implicaria a existência de maquinário agrícola, conforme mencionado anteriormente, o que não foi constatado em outras fontes. Por outro lado, livros para estudos havia em qualidade e quantidade a se confiar na competência dos doadores, porém não se sabe de sua adequação àquele público.
LIGAÇÕES EXTERNAS Mello Álvares era continuamente citado como um homem laborioso31. Ele possuía contatos com todo o país, mostrando-se influente em suas correspondências com instituições científicas e com o governo da época. Tornou-se sócio correspondente na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, em 1871, e, portanto, pode-se assegurar que, desde essa data, ele tinha acesso a uma literatura modernizante. Era membro desde 1886 da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, que publicava estudos sobre geografia agrícola. Também, em 1894, aparece como sócio da Sociedade de Geographia de Lisboa.
Mantinha contatos com vários cientistas e instituições. Emílio Goeldi o agradeceu publicamente pela colaboração. Dez craneos com galhadas de C. [Cervus] campestris recebi directamente do Brazil central, quando no Rio de Janeiro em 1897, por boiadeiros vindos de Goyaz. Foi um presente, que me enviou o Sr. José de Mello Alvaro, Director da Colonia orphanologica Blasiana em Santa Luzia, Estado de Goyaz. Aproveito a occasião para testemunhar-lhe aqui, publicamente, a minha gratidão por tão solicito empenho de auxiliar-me com material nos meus estudos. (Goeldi, 1902, p. 24).
Não deveriam ter contatos assíduos, pois que Goeldi errou na grafia de seu nome duas vezes. Todavia, essa nota permite vislumbrar o interesse que ele tinha pela ciência, pois estava disposto a colaborar com a pesquisa científica. A maioria de sua correspondência, no entanto, versava sobre pedidos de recursos para sua instituição, e, não sobre assuntos ligados à educação ou à ciência. Também era politicamente hábil: escreveu ao ‘Correio Uberabense’ (Uma instituição..., 1881, p. 1) informando da criação da Colônia e pedindo ao jornal que a colocasse “sob a sua valiosissima protecção”, e informava que o governador da província “[...] o exm. dr. Leite Moraes acaba de auctorizar-me para contractar um professor de musica, cujo ordenado será pago pela provincia. Anima-me bem mais esta prova que o grande administrador vem de dar do seu genio philantropico e progressista”. Estava a procurar um professor em Uberaba, mas o que chama atenção é o elogio ao governador. A adulação aos poderosos sempre fez parte da cultura política brasileira.
AUXÍLIOS MATERIAIS EXTERNOS (DONATIVOS) Mello Álvares era muito competente ao apelar para a caridade alheia. São inúmeros os pedidos de donativos que fez pela imprensa. Serão mencionados apenas alguns.
Leal (1892, p. 142) o apresenta como um “homem intelligente, um espirito forte [...], o homem mais entendido em agricultura e economia rural n’este estado”, fato não valorizado por Bertran (2000) e pela historiografia em geral.
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A biblioteca da Colônia Blasiana era considerada a melhor de Goiás. Segundo Sávio (1911, p. 4-5): Ainda, para confirmar a minha opinião franca e despretencsiosa, devo notar que, depois da capital, S. Luzia é a cidade goiana melhor servida em pharmacia e em bibliothecas particulares, sendo dicto por muitos que a mais preciosa bibliotheca particular de Goiás é a que possue o exmº. sr. cel. José de Mello Alvares.
Mello Álvares não poupou esforços ao realizar pedidos de livros a instituições de norte a sul do país. Pouco mais de um mês após o envio de alguns pedidos a diversas instituições científicas, o jornal ‘O Globo’ (1883, p. 2) noticiou uma solicitação feita por Mello Álvares à Associação Promotora da Instrução, situada na Corte, para que enviasse “[...] livros litterarios, agricolas e religiosos [...]” à biblioteca da colônia. Em nota publicada no jornal ‘O Apóstolo’, em 2 de fevereiro de 1883, Mello Álvares (1883) agradeceu ao bispo da Diocese de Mariana pela doação de livros religiosos e didáticos enviados à biblioteca da Colônia Blasiana. No ano seguinte, o mesmo jornal anunciava que havia sido criada, na capital de Goiás, uma comissão de notáveis, incumbida de angariar doações de livros, jornais e revistas para a biblioteca da instituição. A comissão foi composta pelos conselheiros “Francisco Antônio de Azevedo, João Gonzaga de Siqueira, João Geraldo Teixeira e José Ignacio da Luz” (Colonia..., 1884b, p. 3). Outra comissão com os mesmos objetivos foi criada posteriormente no Rio de Janeiro. Seus membros eram “os conselheiros Corrêia, Leoncio e Doria” (Colonia..., 1884b, p. 3). Em 1896, o jornal ‘Cidade do Rio’ notificou que o Ministério do Interior recomendou “[...] ao director do Pedagogium que providencie a respeito da remessa de uma colecção da Revista Pedagogica ao director da Colonia Blasiana, em Goyaz” (Atos do Ministério..., 1896, p. 2), a qual, possivelmente, servia para auxiliar os professores da colônia na instrução das crianças.
Outra personalidade a enviar livros à Colônia, segundo Álvares (1889), foi José Domingos Nogueira Jaguaribe Filho, fundador do Gabinete de Leitura de Rio Claro, São Paulo, e proprietário da ‘Revista Útil’ e do jornal ‘O Municipal’, em São Paulo, além de fundador da Sociedade Pastoril e Agrícola (1895) e proponente da Sociedade Nacional de Agricultura. Foi também fundador, proprietário e redator da ‘Revista Agrícola’ paulista, em 1895. Dono de considerável fortuna, Jaguaribe era um incansável defensor da agricultura científica. Os pedidos atendidos demonstram o prestígio que o diretor da Colônia possuía em todo o território nacional. E também a eficácia do lobby criado em Goiás e na capital do Império com essa finalidade. Instituições científicas e religiosas da capital do Império, Rio de Janeiro, de Belém, de São Paulo conheciam e possuíam contatos com a Colônia Blasiana. Os livros doados ampliavam e diversificavam o acervo da biblioteca da colônia. Todos os livros ficariam à disposição para auxílio na catequização religiosa (com bases no catolicismo), para a alfabetização, formação literária e profissional dos alunos. Os de temática agrícola seriam utilizados na capacitação dos meninos, produzindo mão de obra especializada. Além de exemplares de livros e revistas, também foram solicitadas à SENACOP sementes de diversas plantas de interesse econômico. Tais solicitações foram atendidas graças à influência e ao prestígio de Mello Álvares. O Imperial Instituto Fluminense de Agricultura lhe enviava também sementes sempre que solicitadas. Por exemplo, em 30 de novembro de 1881 foi publicada, no ‘Diário do Brazil’, uma solicitação ao IIFA para que enviasse ao diretor da Colônia Blasiana sementes de “[...] trigo, centeio, cevada, avêia e linho maior [...]” (Solicitou-se..., 1881, p. 3). Provavelmente, foi o próprio Mello Álvares o solicitante. No dia 10 de fevereiro de 1883, o ‘Correio Official’ noticiou o recebimento de uma segunda remessa de trigo branco do Chile à Colônia enviada pela SENACOP:
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Ao director da colônia Blasiana de S. Luzia, remettendo mais 4 pacotes contendo sementes de trigo branco do Chile, com os quaes fica completa a remessa feita pelo ministerio da agricultura e de que trata o officio desta presidencia n. 67 de 13 de Novembro ultimo, visto terem chegado estragadas algumas latas, perdendo-se assim grande parte de sementes. (Officios, 1883, p. 2).
O trigo branco do Chile é uma variedade possivelmente inexistente na província de Goiás. Observase que a Colônia Blasiana era agraciada com o recebimento de sementes enviadas por instituições diferentes, sejam elas particulares, como o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, ou públicas, como a SENACOP. Em 19 de janeiro de 1896, a ‘Gazeta de Notícias’ do Rio de Janeiro informava que foi remetida pelo Instituto Sanitário Federal “[...] 100 cubos de lympha vaccinica para vaccinação e revaccinação dos habitantes d’aquella colonia” (Estado do Rio, 1896, p. 2). Note-se que, mesmo em 1896, em pleno regime republicano, a Colônia Blasiana ainda se fazia ouvir.
APOIO FINANCEIRO Segundo Marin (2006, p. 127), Mello Álvares: [...] constantemente afirmava, reiterado por outras pessoas, que tirava dinheiro do próprio bolso, para garantir a manutenção da instituição. Todavia, entre pessoas físicas, jurídicas e agentes religiosos, havia cerca de trinta doadores que contribuíam para o orçamento da Colônia, através de donativos em dinheiro, em livros e periódicos, para ampliar o acervo da biblioteca, ou através da doação de animais melhorados, sementes e mudas de plantas.
A Colônia Blasiana, além dos recursos anuais, sempre recebia ajuda financeira extra por parte do governo imperial. Nos anos de 1882 e 1883, a Colônia recebeu
as primeiras doações monetárias, que se destinavam à biblioteca e à banda de música. Na ‘Gazeta de Notícias’ do dia 24 de dezembro de 1883, foi divulgado o recebimento de uma quantia de 200$ réis para auxílio da recém-fundada biblioteca32 (Conferências pedagogicas, 1883, p. 1). Em 1891, a SENACOP publicou um extrato de considerações acerca da indústria agrícola no Brasil, no qual nomeou uma série de instituições que recebiam subsídios, entre elas a Colônia Blasiana. Um ano após a fundação da Colônia Blasiana, ela recebia do governo um montante anual de 5.000$000 réis, passando a 6.000$000 depois de dois anos. No ano de 1884, três anos após sua fundação, Mello Álvares apresentou um relatório ao governo da Província informando que seus gastos chegavam a 9.576$000 réis, para o qual se tornava pequena a quantia recebida de 6.000$000 réis. Segundo o ‘Boletim da Alfândega’ do Rio de Janeiro (Lei n. 3349, 1887, p. 3), “[...] 5.500$, augmento de subvenção á colonia Blaziana, na provincia de Goyas”33. Entretanto, apesar de subsídios serem destinados à instituição, os mesmos não eram suficientes. O prestígio de Mello Álvares e a pressão política da bancada goiana no Congresso não foram suficientes para a manutenção da escola em funcionamento. Vinte anos depois, quando a memória da colônia se esvaía e seu diretor já havia falecido, o Dr. Noles (1915, p. 2) informava que o estabelecimento de ensino havia sido “[...] fechado pelo governo de Manoel Victorino Pereira, quando na presidencia da República substituia o dr. Prudente de Moraes, durante a molestia que obrigou este a deixar a administração por algum tempo”. Em outubro de 1896, depois de intensa luta da bancada goiana, o Congresso aprovou a retirada dos
Essa biblioteca merece um estudo mais detalhado, porém não foram encontradas nas fontes informações a seu respeito. O acervo sobre agricultura poderia servir para corroborar a hipótese de que, de fato, havia uma preocupação com a implantação da agricultura moderna. 33 É uma quantia considerável, se considerarmos apenas o percentual destinado à educação de órfãos, pois, de um total de 32:000$000, a instituição goiana abocanhava 5.500$. Todavia, era muito pouco, se comparado ao montante destinado naquela ocasião a outras instituições. O IIFA sozinho recebeu 48.000$ e o Imperial Instituto Bahiano de Agricultura, 20.000$. Como fazer ciência com tão pouca verba? 32
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subsídios que haviam sido concedidos pouco antes à Colônia Blasiana. Nesse ano, a escola teve suas atividades encerradas, com a justificativa de contenção de gastos (Marin, 2006). Na verdade, houve problemas de cunho político com o governo republicano da época, assim como houvera antes com o IIFA, que encerrara suas atividades quatro anos antes, em circunstâncias parecidas. Ambas eram instituições de referência da monarquia, que acrescentavam prestígio ao Imperador e era temerária sua continuidade, pois poderiam trazer constrangimentos ao novo regime.
E, finalmente, também não há elementos suficientes para afirmar que ela tenha influenciado nos rumos da agricultura goiana. Para Bertran (2000, p. 29), o
CONSIDERAÇÕES FINAIS A Colônia Blasiana introduziu novos métodos de cultivo, trouxe novas culturas e promoveu a aclimatação de plantas. Pode-se afirmar, com segurança, que essa instituição fazia uso de irrigação e que plantava em linha. Ela inovou na criação de animais, ao construir estábulos, ao curar doenças do gado, ao promover cruzamentos para melhoria da produtividade. Também inovou ao fundar uma biblioteca e se ligar às principais instituições científicas de seu tempo. Entretanto, é possível dizer que ela introduziu apenas parcialmente aspectos da agricultura moderna em suas plantações, mas que algumas características importantes da agricultura científica não foram, até o momento, constatadas nas pesquisas, tais como mecanização e ensino agrícola similar ao de outras instituições do gênero à época. Não há publicações de resultados ou relatos de experiências científicas. Apesar dos esforços na aclimatação de plantas e de animais, bem como da menção aos cruzamentos de animais para melhoria do plantel, não foram constatados registros ou informações sobre experimentos cientificamente controlados. A Colônia recebia visitas de pessoas ilustres, mas não de cientistas34. Portanto, não se pode afirmar com segurança que a instituição de ensino agrícola profissionalizante realmente fosse responsável pela implantação da agricultura moderna e que servisse de modelo para outros agricultores.
Boa imagem essa, a de um homem culto a clamar em um deserto... E talvez essa caracterização do contexto histórico goiano do século XIX explique a não proliferação do exemplo da Colônia Blasiana e, possivelmente, até mesmo suas limitações. Faltava em Goiás uma classe social (a burguesia agrária) organizada em associação de classe, com força suficiente para influenciar nos rumos da política agrícola da província e, depois de 1889, do Estado e de instituições científicas e de ensino voltadas para a modernização da agricultura que dessem suporte a essa política. Por outro lado, Goiás talvez não fosse tão atrasado e tão isolado quanto se imagina. Deveria haver outros homens tão cultos e laboriosos quanto Mello Álvares, que escreviam, mantinham contatos com instituições científicas e intelectuais de prestígio, estavam atualizados em relação à produção científica de seu tempo, inovavam em seus ramos de atividade, mas que permanecem esquecidos pela historiografia.
Oitocentos em Goiás é o do viver e produzir moderadamente, da autossuficiência, roçando pelo subsistente, um século de enormes lentidões e vaguidões que desesperava ao industrialista Joseph de Mello Álvares e que ele próprio escarmentava... “vê-se homens vigorosos dignos de melhor sorte... deitarem-se no balcão, onde, em doce ócio, mansa e pacificamente, esperam adquirir fortuna!”35.
AGRADECIMENTOS Muito obrigado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRP), da Universidade Estadual de Goiás (UEG), que apoiou financeiramente esse projeto e ao aluno colaborador Hamilton de Matos Cardoso Júnior.
A Missão Cruls, por exemplo, ficou acampada em Santa Luzia e sequer menciona a Colônia. Em itálico no original.
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MEMÃ&#x201C;RIA
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 793-809, set.-dez. 2016
The first wordlist of Malayalam, written by a Portuguese seaman at the end of the 15th century A primeira lista de palavras do malaiala escrito por um marinheiro português no final do século XV Gonçalo Fernandes Universidade de Trás-os-Montes Alto Douro. Centro de Estudos em Letras, Vila Real, Portugal
Abstract: MS-804 from the Municipal Library of Porto, Portugal, is a unique copy of the journal of the first voyage to India under Vasco da Gama’s (ca. 1460–1524) command. It describes the voyage subsequent to the departure from the Tagus River, Portugal, on 8 July 1497 until the return up the shallows of the Grande River de Buba, Guinea, on 25 April 1499. The author of the original of this account is probably Álvaro Velho (fl. 1497/1507), born in Barreiro, but the arguments are still weak, being only achieved by deduction. The copyist is also probably John Theotonius, CRSA. The great merit of this document is the fact that the author was a direct eyewitness of all events. In the last appendix, at folio 45, it has a list of 122 useful daily words and expressions in Portuguese and their translation into Malayalam, a provincial Dravidian language spoken in Kerala State, India. It is a relevant testimony of a variety of Malayalam at the end of the 15th century, despite certain transcription mistakes and the scribe’s censorship of some vulgarisms. In this new semi-diplomatic edition, I applied rigorous transcription criteria and corrected earlier editions, adding English translations and Malayalam equivalences. Keywords: Portuguese Discoveries. Vasco da Gama. India. Malayalam. Álvaro Velho. Semi-diplomatic edition. Resumo: O manuscrito 804 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Portugal, é uma cópia única do relato da primeira viagem de Vasco da Gama (ca. 1460–1524) à Índia. Descreve a expedição desde a saída do rio Tejo, Portugal, em 8 de julho de 1497, até a chegada, no regresso, ao Rio Grande de Buba, na Guiné-Bissau, em 25 de abril de 1499. O autor do texto original terá sido provavelmente Álvaro Velho (fl. 1497/1507), natural do Barreiro, mas os argumentos não são ainda muito convincentes, tendo sido obtidos somente por dedução. O copista será, também provavelmente, o agostinho João Teotónio, C.R.S.A. O grande mérito deste documento é o fato de o autor ser uma testemunha ocular de todos os eventos. Por outro lado, no último apêndice, no fólio 45, há uma lista com 122 palavras úteis e expressões de uso diário em português e respectiva tradução no malaiala ou malabar, uma língua dravídica falada no estado de Querala (ou Kerala), no extremo sudoeste da Índia. Trata-se de um testemunho relevante de uma variante do Malaiala, no final do século XV, apesar de alguns erros de transcrição e censura de alguns vulgarismos, possivelmente pelo copista. Nesta nova edição semidiplomática, aplicamos rigorosos critérios de transcrição e corrigimos as edições anteriores, bem como adicionamos as traduções em inglês e as respetivas equivalências em malaiala. Palavras-chave: Descobrimentos portugueses. Vasco da Gama. Índia. Malaiala. Álvaro Velho. Edição semidiplomática.
FERNANDES, Gonçalo. The first wordlist of Malayalam, written by a Portuguese seaman at the end of the 15th century. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 3, p. 793-809, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81 222016000300014. Autor para correspondência: Gonçalo Fernandes. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Quinta de Prados, Vila Real 5000-801. Portugal (gf@utad.pt). ORCID http://orcid.org/0000-0001-5312-6385. Recebido em 14/06/2016 Aprovado em 04/08/2016
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The first list of Malayalam words at the end of 15th century by a Portuguese seaman
INTRODUCTION MS-804 from the Municipal Library of Porto in Portugal is an anonymous copy of the journal (or diary) of the first voyage of Vasco da Gama (ca.1460–1524) (and the consequent “discovery” of the maritime route) to India. It describes the voyage subsequent to the departure of the first armada on 8 July 1497 until the return up the “baixos do Rio Grande” [the shallows of the Grande River de Buba] of modern day Guinea-Bissau on the west coast of Africa on 25 April 1499, where, who is presumably the author, Álvaro Velho (fl. 1497/1507), might have remained. Diogo Köpke (1808–1844) and António da Costa Paiva (1806–1879), the first who published the text and studied it comprehensively, tell that: O merito, porem, deste Roteiro consiste, não na linguagem nem no estilo, mas em ser escripto por uma testemunha ocular do portentoso feito do Descobrimento da India. [The merit, though, of this “Journal” consists neither in the language nor in the style but in its being written by an eyewitness of the portentous feat of the discovery of India.]1 (Köpke; Paiva, 1838, p. XXI, my translation).
In fact, in this first fleet, the four ships (three carracks or “naus” – the S. Gabriel [90 tons], S. Rafael [90 tons] and an unnamed supply ship [110 tons] – and the caravel Bérrio [50 tons]) and the 170 Portuguese seamen under the command of Vasco da Gama (ca. 1460–1524) departed from the Tagus River in Lisbon, Portugal on 8 July 1497, and they arrived at Calicut (or Kozhikode) on the Malabar Coast (currently the state of Kerala) in southern India almost a year later on 20 May 1498. They stayed at Calicut for approximately three months, and, during that period, they established political and commercial relationships. Inclusively, the Samorin2, the ruler or “king” of Calicut, received a Portuguese committee represented by Vasco da Gama and twelve other Portuguese “seamen” on 28 May 1498 (Velho, 1st half of 16th century, ff. 9v.-23r.). Vasco da Gama left Calicut on 29 August 1498 and arrived at Lisbon approximately a year later at the end of August or the beginning of September 1499 with only two ships and nearly 50 sailors. The caravel Bérrio, also known as São Miguel, under Nicolau Coelho’s (ca. 1460–1504) command, arrived on 10 July (Couto, 1996).
CODEX MS-804 MS-804 is allegedly the most ancient and the unique copy of a lost text, catalogued by the Municipal Library of Porto as “Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia”, 1497–1499 [Journal of the first voyage of Vasco da Gama to India, 1497–1499]. It was listed by United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) in the Memory of the World Register on 19 June 2013 (see UNESCO, 2013). It belonged to the Monastery of Santa Cruz de Coimbra (established ca. 1131) from the Canons Regular of Saint Augustine (Canonici Regulares Sancti Augustini – CRSA) until 1834 when the Portuguese Minister of Justice Joaquim António de Aguiar (1792–1884), nicknamed “The FriarKiller”, suppressed the Portuguese religious orders by a decree published on 30 May 1834. The majority of the library of the Canons Regular of the Monastery of Santa Cruz de Coimbra was moved into the Municipal Library of Porto. MS-804 is a codex in paper with 45 folios measuring 287 mm by 205 mm. The foliation is in Arabic numbers on the top right corner of the recto folio. However, pagination between folio 2 verso (page 4) and folio 43 verso (page 86) was added in a different and later handwriting. The codex is collated in three booklets with six (12 folios), All translations into English are my own. “The term Samorin or Zamorin used by the Portuguese for the ‘king’ of Calicut was a corruption of Samudrî Raja or Samudrāthiri (Samoothiri) Raja, Malayalam from Sanskrit for ‘one who has the sea for his borders’ or ‘lord of the sea’. […] By the time of Vasco da Gama’s arrival, the Zamorin’s power extended over coastal Kerala north from Cochin (Kochi) to Pantalayini-Kollam.” (Ames, 2009, p. 74, note 19).
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six (12 folios) and nine (18 folios) bifolia respectively and has three extra pages, which contain the list of the “language of Calicut” words. The binding is parchment from a liturgical book with musical notations. I consulted six semi-diplomatic editions3 and two English translations of this copy, published between 1838 and 2009, and they use different titles. For four of them, the editors preferred the term “Roteiro” [Route / Itinerary] (Velho 1838, 1861, 1969, 1999); Baião and Basto (1945) chose “Diário” [Diary / Account]; Albuquerque (1989) chose “Relação” [Relation / Report] and Ravenstein (1898) and Ames (2009), in the English translations, adopted the term “Journal”. However, all of them can be considered correct. The problem is that the copy of the manuscript is untitled. In effect, it has two posterior (kinds of) titles. On the one hand, on the original flyleaf, there is “Relação do descubrimento da India por Vasco da Gama”4 [Relation of the discovery of India by Vasco da Gama], possibly written by the “owner” (and also probably its scribe), the friar John Theotonius, CRSA. There is also, though erased, an inscription telling that this codex was for the use of the friar John Theotonius: “Pertinet ad usum fratris Theotonii de Sancto G… Canonici Regularis in cenobio Sancte Crucis” [Pertains to the use of the friar Theotonius of Saint G…, Canon Regular in the monastery of the Holy Cross] (Köpke; Paiva, 1838, p. VIII). On the other hand, on the first page top right corner of the manuscript, “Descubrimento da India por Vasco da Gama” [Discovery of India by Vasco da Gama] was added, in a letter probably from the end of the 18th century (or the first half of the 19th century). Thus, the authors have adopted the title according to different arguments each and, fundamentally, the sense on how they understood the Portuguese words “Relação”, “Roteiro”, “Relato” and “Diário”, and the kind of the text genre they believed it was. Albuquerque (1989, p. 6), for example, preferred the designation “Relato”, because this document was not a really “roteiro” but a description [“relato”] of certain chronological events. However, I agree with Marques (1999), who chose “Roteiro”, because of “a necessidade de não nos desviarmos da conhecida frequência da utilização do termo” [the necessity of not turning away from the known frequency of the use of the term] (Marques, 1999, p. 13-14, my translation). He inclusively enlightened that […] poderíamos, é certo, socorrer-nos de outros termos, como Diário, que, à semelhança dos anteriores, não seria totalmente adequado para traduzir com rigor específico a diversificada riqueza do conteúdo latente neste importante documento [[...] we could, of course, use other terms, such as Diary/Journal, which, like the previous ones, would not be entirely suitable to translate, with unambiguous objectivity, the diverse richness of the potential content in this important document] (Marques, 1999, p. 14, my translation).
3 I have adopted the following criteria for the selection of the semi-diplomatic editions: - both editions from the 19th century by Köpke and Paiva (1838); Alexandre Herculano and the Baron of Castelo de Paiva (António da Costa Paiva, 1861). - the first two 20th-century editions by Costa (1969) and Baião and Basto (1945). - two of the newest editions, which means the last two of the 20th century by Albuquerque (1989); and Marques (1999). 4 In order for a better clarity and readability of the texts, I have adopted the following transcription criteria, based mainly on Pinho (1987, p. 255-262) and Costa (1993, p. 46-59): - I have expanded all abbreviations and brevigraphs, except the Portuguese indefinite articles/pronouns <hũa(s)>, <algũa(s)> and <nenhũa(s)>, inclusively when they are written with two vowels <uu>, in order to preserve a Portuguese phonetic specificity, which still remains in some northern Portuguese villages; - I have changed into uppercase the first graphemes in the beginning of the sentences and in the proper nouns, anthroponyms and toponyms; - I have normalized the use of the Ramist letters <v> and <j> (as consonants) and <u> and <i> (as vowels), and I have changed the long (medial or descending) <ſ> for the short (terminal or round) <s>; - I have separated the words that were improperly joined and have combined those that were separated; - I have kept the original punctuation (and the double slash) in order to not change the thought or expression of the authors; - I have corrected the very clear errors in the original text.
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So, the translation into English by Ravenstein (1898) (1834-1913) and Ames (2009) and the rendering in the application to UNESCO as the “Journal of the first voyage of Vasco da Gama” (UNESCO, 2013) are good choices.
MANUSCRIPT AUTHORSHIP The text is anonymous, but, after the analysis of Köpke and Paiva (1838), the first Baron of Castelo de Paiva, it is consensual amongst almost all researchers that the author of the original text might have been Álvaro Velho. He was born in Barreiro, near Lisbon, and lived in Africa from 1499 to, at least, 1507 and was one of the informers of the German-Portuguese printer Valentin Ferdinand of Moravia (fl. 1450–1519)5 for the writing of Codex Hispanus 27 from the Bavarian State Library in Munich (Fernandes, 1507). The arguments are still weak, and there is not yet a clear proof of its authorship, being only achieved by deduction. In summary, the main arguments for considering Álvaro Velho to be the author of the original text of codex MS-804 have been: - He was an ordinary soldier or sailor (maybe deported) of the first fleet to India with some seamanship knowledge; - He was one of the twelve emissaries of the Portuguese committee accompanying Vasco da Gama to the Samorin, the ruler or the “king” of Calicut: E ao outro dia pella manham que foy hũa segunda feira vinte oito dias do mes de Mayo foy o capitam a falar a el rey e levou comsygo dos seus treze homens dos quaes eu fuy huum delles. [And the other day, by the morning, which was a Monday, May 28, the Captain went to speak to the king and took with him of thirteen men of whom I was one.] (Velho, 1st half of 16th century, ff. 19v.–20r, my translation).
- According to Castanheda (1551) (1500–1559), Vasco da Gama took with him twelve emissaries to the Samorin, referring explicitly to beyond an anonymous “veador” (comptroller), Diogo Dias (scribe of Vasco da Gama), Fernão Martins (Arabic interpreter), João de Sá (scribe of Paulo da Gama, ca. 1465–1499), Gonçalo Pires (sailor), Álvaro Velho (soldier or sailor) and Álvaro de Braga (scribe of Nicolau Coelho)6: […] e ali se assentou que fossen co ele doze pessoas, scilicet, Diogo diaz seu escrivão & Fernão Martinz, ho lingoa, & ho seu veador, & Ioão de Saa que despois foy tesoureyro da casa da India, & hũ marinheyro chamado Gonçalo Pirez que fora de sua criação, & hũ Alvaro Velho, & Alvaro de Braga que despois foy escrivão dalfandega do Porto, & assi outros a que não soube os nomes que co ele erão treze. [[...] and there it was decided that twelve persons should go with him, i.e., Diogo Dias, his scribe; Fernão Martins, the translator and his comptroller; João de Sá, who was further a treasurer of the House of India; a sailor named Gonçalo Pires, who was created with him; one Álvaro Velho; Álvaro Braga, who later was officer of the customhouse of Porto, and likewise others of whom I didn’t know their names. Altogether, with him, were thirteen.] (Castanheda, 1551, p. 50, my translation).
- He knew Alcochete7, nearby ca. 15 km from Barreiro, and that allowed him to compare it with the African town Malindi or Melinde (in modern day Kenya):
Valentim Fernandes, as he is known in Portugal, or Valentin von Olmütz (currently is Olomouc, in Czech Republic) or Valentinus Moravus, as he was called by Falkenstein (1840, p. 295), was one of the most important early printers in Portugal and lived there for 23 years, most probably between 1494 and 1519. 6 I did not find out the life-dates of Diogo Dias, Fernão Martins, Gonçalo Pires and Álvaro de Braga. 7 The similarity between Malindi and Alcochete is a very weak argument. The Portuguese King D. Manuel I (1469–1521, kingdom 1495–1521) was born in Alcochete. With this reference, the author may have wanted to entertain the king, or he may have had the intention to present the manuscript directly to the king, and it would be more understandable for him. 5
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 3, p. 793-809, set.-dez. 2016
[…] esta villa de Milyndes esta em hũa angra e esta asemtada ao lomguo de hũua praya a qual villa se quer parecer com Alconchete. [[...] this village of Malindi is in a cove, and it is placed on a beach and seems to look like the village of Alcochete.] (Velho, 1st half of 16th century, fol. 18r, my translation).
- The description ends suddenly with the arrival at the Grande River in Guinea on 25 April 1499: […] e hũa quinta feira vinte e cinquo dias do mes d’Abril achamos fundo de trinta e cinco braças e todo o dia fomos per este caminho e o menos fundo foram vinte braças e nom podemos aver vista de terra e os pilotos diziam que eramos nos baixos do Rio Grande. [[...] and, on Thursday 25 April, we found the floor at thirty-five “braças” (similar to fathoms, but each “braça” measured 10 “palmos”, about 2.20 meters), and the whole day, we went down this way, and the least deep was twenty “braças”, and we could not see the land, and the pilots said that we were in the shallows of the Grande River.] (Velho, 1st half of 16th century, fol. 40r, my translation).
- And, according to Fernandes (1507), in 1507 Álvaro Velho had been in West Africa since precisely 1599, i.e., for eight years: “Alvaro Velho do Barreyro que esteve algũuns oyto annos nesta terra”8 […] [Álvaro Velho from Barreiro who was some eight years in this land […] (Fernandes, 1997, p. 115, my translation).
Nevertheless, Ames (2009) considers different hypotheses. For him, it is unlikely that a humble (possibly deported) sailor (or a simple soldier) could have a humanistic education as is reflected in the document: While the style, syntax and vocabulary are far from the level of the leading humanist chroniclers of the period, the document certainly reflects a fluency in language and grammar in Portuguese with periodic Latin abbreviations, which belie the educational background of many common sailors or soldiers of that period. (Ames, 2009, p. 21).
For Ames (2009), there are solid arguments to consider João de Sá (fl. 1497–1514), the scrivener for the carrack São Rafael under Paulo da Gama’s command and also one of the emissaries to the Samorin (Pereira; Rodrigues, 1912, p. 427), the author of the “Roteiro”. Nevertheless, “both Álvaro Velho and João de Sá have factors in their favor and which weigh against them in the longstanding authorship debate” (Ames, 2009, p. 25). On the other hand, he believes also that […] there is the very real possibility that neither of these men was indeed the author of this Journal. After all, the names of only 39 of the ca. 170 men of the fleet have ever been established. Moreover, we know the names of only 8 of the 13 men who accompanied Vasco da Gama on his initial visit to the Samorin of Calicut in late May 1498. One of these unknown companions of the Captain Major may have also been the author. (Ames, 2009, p. 25).
In addition, Correia (1858) (16th century), who went to India when very young, probably in 1514, arriving in India fifteen years before Fernão Lopes de Castanheda and dying in Goa before 1583 (Stanley, 1869, p. I–II), wrote a history of the first 53 years of Portuguese exploits in India. His manuscripts were only published in 19th century, between 1858 and 1866. In the first tome, he says that he had used a copy of a diary written by the priest João Figueira, who had participated in the first voyage of Vasco da Gama to India:
It is not clear that Valentim Fernandes was referring to Guinea because he was speaking of the villages of Sierra Leone, but, earlier, he said, “[...] em esta terra e em toda a guynee […]” [[...] in this land and in whole of Guinea [...]] (Fernandes, 1997, p. 113).
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O que tambem fez hum Clerigo da nao chamado João Figueira, que tomou de sua vontade escrever tudo o que nesta viagem se passou; que chegou a Melinde e esteve com a candea na mão pera morrer. Então cuidando que havia de morrer deo ao Capitão hum quaderno em que tudo tinha escrito, com que muyto folgou, e partindo de Melinde lhe encommendou que assi escrevesse até acabar a viagem, o que assi fez. Do que este Clerigo escreveo depois se fizerão muitos treslados, de que eu vi os pedaços d’hum delles em poder d’Affonso d’Albuquerque, antre huns papeis velhos […], polo que vendo tão gostosas cousas pera folgar de ouvir e saber, recolhi este quaderno já feito em pedaços. [It was also done by a cleric of the carrack named João Figueira, who, of his own will, wrote everything that happened on this voyage, including that he arrived in Melinde and was with a candle in the hand in order to die. Then, thinking that he was going to die, he gave to the captain a booklet in which he had written everything, which much pleased the captain, and, leaving from Malindi, he ordered that he write in the same manner until ending the voyage, which he did. Of what this cleric wrote were made afterwards many copies, of which I saw some fragments of one of them in the ownership of Afonso de Albuquerque, amongst some of his old papers […], whereby, seeing things so pleasing to hear and to know, I gathered this booklet, which was already torn in pieces.] (Correia, 1858, p. 134, my translation).
Unfortunately, there is no other information about this priest João Figueira, and I did not find any similarity between both accounts. Moreover, there is another interesting reference in the prologue to the third volume, in which Correia (1862) says that he had also used a manuscript booklet written by a deported man who travelled in the first Vasco da Gama fleet: E por algum pouqo que meu rudo entendimento pòde alcançar, com vontade nacida em mim satisfazendo meu desejo, crecido de hum caderno que me veo ter ás mãos, que fez hum degredado que veo com dom Vasco da Gama no descobrimento, perguntando per os portugueses mais antigos na India e a muytos gentios em Cananor e em Cochym, fiz este breve sumario de lendas, em que entitoley o primeyro livro do começo do descobrimento da India feito per dom Vasco da Gama […] [And, for any little that my rude knowledge can reach, with will the born in myself satisfying my desire, grown by a booklet which came to my hands, which a deported man wrote, who came with Sir Vasco da Gama in the discovery, and asking for the oldest Portuguese in India and many gentiles in Cannanore and Cochin, I did this short summary of legends, in which I titled “The first book of the beginning of the discovery of India, made by sir Vasco da Gama” [...]] (Correia, 1862, p. 8, my translation).
Obviously, without any other information, it is impossible to say if Correia (1862) was talking about Álvaro Velho or another journal written by “another” deported man. On the other hand, Marques, who is absent in Ames’ references, adds another interesting argument in favor of Álvaro Velho as the author of the original manuscript. There is no reference to any reward given by the Portuguese king D. Manuel I (1469–1521) to the author, as would be expected. This could be explained by the absence of Álvaro Velho from Portugal (Marques, 1999, p. 19). In summary, all arguments are still weak and fallible. However, I will continue considering Álvaro Velho the author of the Roteiro until the discovery of a stronger hypothesis. Furthermore, we do not have any concrete data about the author of this unique copy, but it is possible that the friar John Theotonius, CRSA, from the Canons Regular of the Holy Cross of Coimbra could have written it. This would explain, for example, the quality of a certain language fluency and the use of some “periodic Latin abbreviations”, as referred to by Ames (2009, p. 21), and the “censorship” of certain vulgarisms in Portuguese as we will show. Codex MS-804 is, undoubtedly, a copy with the many typical errors of a copyist, like the repetition of words and some wrong transcriptions, particularly in the examples of the “language of Calicut”, as Johannes Franz Heinrich Hümmerich (1868–1930) proved (Hümmerich, 1927, 1945).
THE DATING OF THE MANUSCRIPT Concerning the dating of the manuscript, if we accept that the author is, in fact, Álvaro Velho, the original might have be written during the voyage, which means that it was probably written between 8 July 1497 (the departure from
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Lisbon) and 25 April 1499 (the disembarkation in the shallows of the Grande River de Buba in Guinea). Nevertheless, this copy is undated, but a palaeographic and codicologic analysis by Marques (1999, p. 19-21) and Albuquerque (1989, p. 5) shows that it was written most probably in the first half of the 16th century.
THE “LINGUAJEM DE CALECUTE” After the end of the codex, i.e., after folio 41 (page 81), there are some appendices with descriptions of the kingdoms to the south of Calicut (fol. 41r., p. 81–fol. 43r., p. 85), elephants (fol. 43r., p. 85–fol. 43v., p. 86), the price for which spices were sold in Alexandria (fol. 43v., p. 86–fol. 44r.) and the language of Calicut and a short list of “their names” (fol. 45r.–fol. 45v.), items not transcribed by some of the historians who published semi-diplomatic editions (Albuquerque, 1989). The unique explicit study about the language of Calicut I know was done by Hümmerich firstly in German (Hümmerich, 1927, p. 56-85), and, (only) fifteen years after his death, was translated into Portuguese (Hümmerich, 1945, p. 181-230). This list occupies only one folio (two pages) and contains 122 useful daily expressions, organized in two columns, and sixteen proper nouns. It is interesting that the list is interrupted to insert the nouns (without any explanation), finishing with more six words. The proper nouns are: “Tenae // Pumi // Paramganda // Usapee // Quilaba // Gouaa // Ajapaa // Arreco // Axirania // Cuerapa // Cutitepa // Anapa // Canapa // Gande // Remaa // Mamgala.” (Velho,1st half of 16th century, fol. 45v.). The entries are not listed by alphabetical order, but they are ordered mutatis mutandis by semantic domains. Each entry starts with the Portuguese preposition “por” [for], followed by the Portuguese word(s), a double slash and the translation into the “language of Calicut”. At first glance, what stand out are five erased or scratched out Portuguese words, with the same ink of the other handwriting, which means that they might have been erased by the scribe. All of them are words from the sexual semantic domain, such as “caralho” (“canay”) [dick], “colhons” (“feirim”) [balls], “quuo” (“cudo”) [ass], “peydo” (“baly”) [fart] and “foder” (“panany”) [to fuck]. This could signify that the author considered them as usual or daily words but the scribe (possibly the friar John Theotonius, CRSA) considered them offensive, rude or impolite words, i.e., vulgarisms. However, it is interesting that the word “cono” (“cula”) [pussy] was not similarly erased, without any explanation. Curiously, the German missionary in India, Hermann Gundert (1814–1893), reported a similar situation when he was writing his Malayalam-English dictionary. First of all, he tells that his main sources for the idiomatic significations to southern Kerala or Travancore had: […] been carefully collected both from the productions of the Cottayam Press, and from the very valuable Dictionaries compiled by the Portuguese and Italian Missionaries of Verapoli; works which, although completed in 1746, rest upon materials accumulated in the 17th, perhaps even 16th century, and rank as the oldest monument extant of the study of Indian languages by Europeans. (Gundert, 1872, p. IV).
Secondly, he adds that he did not reject the provincialisms and vulgarisms, but he preferred signing them with the abbreviation “obsc.” (obscene), as the Portuguese and Italian missionaries of Verapoli did: […] provincialisms and vulgarisms have not been rejected, though they are pointed out as such […]. To discard coarse and even obscene modes of speech, has not been thought advisable, however much their existence and currency may be regretted. They are marked “obsc.”, as was done by the fathers of Verapoli in their day, that they may be avoided. (Gundert, 1872, p. V).
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I suppose that these erased “vulgarisms” were common words in those days amongst certain sectors of Portuguese society. I found similar examples, for instance, in the manuscript “Obra nova de lingoa geral de mina” (1741) written by António da Costa Peixoto (1703–1763) and some contemporaneous dictionaries register the majority of them (Fernandes, 2012, p. 37-42). The unique words I did not find in the first Portuguese dictionaries were “foder” [to fuck], “cono” [pussy] and “caralho” [dick], but there are synonyms for the last two, such as “membro de molher” (cunnus, i) [woman organ / pussy] (Barbosa, 1611, p. 722) and “pissa” (mentula, ae) [dick] (Cardoso, 1562, 86r.; Barbosa, 1611, p. 851). The others are registered in the same terms (sometimes with a different orthography), such as “colham” / “colhão” (coleus, ei; testiculus, i) [balls] (Cardoso, 1562, 32v.; Barbosa, 1611, p. 218); “cu” (podex, cis; anus, i) [ass] (Cardoso, 1562, 37r.); “peido” / “peydo” (crepitus, us) [fart] (Cardoso, 1562, 84v.; Barbosa, 1611, p. 826)9. In sum, the list is composed by 75 nouns related to human beings and parts of the body, daily objects, fish and other animals, boats and navigation, parts of the day and cardinal points, 36 verbs in infinitive and imperative moods, five adjectives and, maybe, two adverbs (or adjectives too), one negative (“nam quero”: “totenda” [I do not wish]) and other interrogative sentences (“ouves”: “que que ne” [Do you hear?]).
MALAYALAM, THE “LANGUAGE OF CALICUT” The “language of Calicut” corresponds to the Malayalam language, but it can be mixed with some words of a neighbor or related tongue, like Tamil or Canarese (or Kannada). Throughout the codex, there is no concrete expression about any Indian language. Álvaro Velho speaks once of “mourisco” [Moorish] (Velho, 1st half of 16th century, fol. 24v.) and “Arrabia” [Arabic] (Velho, 1st half of 16th century, fol. 17v.), explaining, for example, that, in Malindi (in the present-day Kenya), they found some Indian navigators who spoke a language different from Arabic: […] a sua linguajem he estremada da dos mouros e alguns delles sabem algũa pouca d’arravia polla continoa comunicaçom que tem com elles. [[...] their language is distinguished from that of Moorish, and some of them know a few Arabic due to the continuous communication they have with them.] (Velho, 1st half of 16th century, fol. 17v, my translation).
Zwartjes (2011) explains, for example, that Portuguese missionaries used a confused language terminology, and they referred to both Tamil and Malayalam languages as Malabar, for example, because of the confusion between the language and the name of the region, i.e., the Malabar Coast, as the southwestern coast of India was called: Their terminology for Indian languages is sometimes confusing: the Bracmana tongue did not necessarily mean Sanskrit; at Goa it meant rather Konkani or Marathi, while Hindostani applied even to Marathi […]. Henriques, however, always refers to Tamil as “lengua Malabar”. (Zwartjes, 2011, p. 31).
I compared this list with the Malayalam-English dictionary of Gundert (1872), and I found some similar roots, for instance, “pagal” (for “pagalalu”) [day] and “meenuh” (for “miny”) [fish]. There are at least two main published sources that prove that this list of words is, indeed, the Malayalam language. On the one hand, the Anglican Bishop of the Diocese of Central Travancore, John Martindale Speechly (1864–1904) believed that the “language of Calicut” corresponded effectively to a “bad” Malayalam, spoken in the coastal regions of southern India, mixed with some Tamil and Arabic words. He said, in a personal letter to Ravenstein (1898): See also DICIweb.
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[…] at the sea-port towns generally the worst Malayālam is spoken. Many Malayālam words are the same in Tamil, and in this list there are some which a Tamil scholar would be able to point out. Also, it is not unlikely that there are some Arabic words Malayālamised, in the list. The anonymous author’s list is a very interesting one, and his journal, I have no doubt, will be so also. The “ne”10 which ends so many words may stand for “ni”, “thou”. Sometimes it is only an expressive ending. (Speechly, 1869 apud Ravenstein, 1898, p. 105).
On the other hand, Hümmerich (1945) presented it likewise as the Malayalam language, which belonged to the Dravidian languages: O idioma com o qual o descobridores portugueses pela primeira vez vieram ao contacto na Índia, “a linguagem de Calecut” o malaialim, e, sobretudo, no Malabar, pertence à língua dravídica, falada por cêrca de 57 milhões de pessoas, segundo o censo de 1901. [The language which the Portuguese explorers first came into contact in India, “the language of Calicut”, Malayalam, especially in Malabar, belongs to the Dravidian language spoken by approximately 57 million people, according to the census of 1901.] (Hümmerich, 1945, p. 192, my translation).
However, Fontoura da Costa (1869–1940) and José Marques translated Malayalam into Portuguese as the word “Malaio” [Malay] (Costa, 1969, p. 95-99; Marques, 1999, p. 25), an Austronesian language spoken, for example, in Malasia, Indonesia and also in Singapore (Lewis et al., 2016b). It is, obviously, a wrong translation, because, for example, Costa mentioned that “Ravenstein e Hümmerich provaram que o vocabulário é malaio, estando algumas palavras mais ou menos estropiadas” [Ravenstein and Hümmerich proved that the vocabulary is Malay (i.e., Malayalam) with some words more or less crippled] (Costa, 1969, p. 138, note 296, my translation). So, they might have wanted to say “Malaiala” [Malayalam] in Portuguese. According to the Ethnologue, Malayalam is Dravidian, southern Tamil-Kannada, Tamil-Kodagu, Tamil-Malayalam and Malayalam, and it is a statutory provincial language in Kerala state spoken by 33 million people in India (India Census, 2001) and by 26,300 people in Singapore (Singapore Government, 2011) (Lewis et al., 2016a). Hümmerich (1945, p. 192) explained that Malayalam is closely related to Tamil and Canarese, and it was spoken in 1901 by 6 million people in a coastal region of ca. 45 kilometers in southern India. On the other hand, the German missionary Hermann Gundert had already said that it had: […] been found difficult to draw the line of demarcation between Malayālam and Tamil words. These two languages of old differed rather as dialects of the same member of the Dravidian family, than as separate languages; in consequence many Tamil words occur still in local usage […] or in time-honored phrases and formulas […], which have long ceased to be used in colloquial speech. (Gundert, 1872, p. III).
In addition, Caldwell (1875) (1814–1891) said that […] the difference between Malayalam and Tamil, though originally slight, has progressively increased, so that the claim of Malayalam, as it now stands, to be considered, not as a mere dialect of Tamil, but as a sister language, cannot be called in question. Originally, it is true, I consider it to have been not a sister of Tamil, but a daughter. It may best be described as a much-altered offshoot (Caldwell, 1875, p. 24).
Hümmerich (1945, p. 219) explains that the suffix “-ne” corresponds to the verbal morpheme “-(k)unnu” of the infinitive present, and the final sound is equivalent to the Portuguese allophone [ə]. However, Jiang (2010, p. 30) presents it as the morpheme of all persons of the present .
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A NEW SEMI-DIPLOMATIC EDITION OF THE “LINGUAJEM DE CALECUT” Concerning the differences between this new transcription and other semi-diplomatic editions, it should be highlighted that the edition of Hümmerich (1927, p. 56-60) is one of the best, and it was very useful in terms of the analysis of the “language of Calicut”. He was, for example, the first who attempted to transcribe the Portuguese verb “foder” [to fuck], and he presented the most complete list of current Malayalam equivalences. Nevertheless, the Portuguese translation (Hümmerich, 1945, p. 185-189), published posthumously fifteen years after his death, has unbelievable errors in terms of the transcription of some Portuguese words. The translator, Moura Brás (1881–1954), inconceivably exchanged, for example, all Portuguese vulgarisms into more “ethical” or “moral” polite words; instead of “cono” [pussy], he transcribed the word as “vagina” [vagina]; instead of “caralho” [dick], he wrote “pénis” [penis]; for “colhons” [balls], he transcribed the word as “testículos” [testicles]; and, for “foder” [fuck], he transcribed it as “cópula” [copulate]. Given this, I followed Marques’ edition (1999, p. 128-132) more closely because, not only it is the latest one, but it also – and essentially – uses very similar criteria. However, I do not agree with him in a few situations; for instance, he modernized the punctuation too much, transforming, for example, the double slash into a hyphen, and he transcribed the word “colhoes” (Marques, 1999, p. 130) without a nasal sign and with a final diphthong, but I interpret it with only the final vowel <o> and the consonant <n> as sign of nasality (“colhons”). Hümmerich (1927, p. 57) transcribed it with a tilde and a reduplicate vowel <e> (“colhõees”); Marques (1999, p. 129) interpreted the word “maoo” (“betall”) as an adjective [bad], but, for me, there is a tilde above the vowels, such as in the plural of the same Portuguese word for “lamguaim” (“mãoos”), which is obviously a mistake of the scribe; he did not appoint an hypothesis in Portuguese for the Malayalam word “panany”, as Hümmerich (1927, p. 59) did. Marques (1999, p. 129- 128) interpreted the imperative expressions “day lhe” [give him!] and “tira lhe” [take him away!] as “criane”, but the first word cannot be the consonant <c> and is rather the vowel <e> (“eriane”), as in other examples, and the Malayalam word is “eryyunnu”, as Hümmerich (1927, p. 57) referred. Another problematic choice I had to make is related to the Portuguese verb “andar”, which is repeated in the manuscript. All paleographers transcribed the Malayalam words as “narecane” and “mareçane” respectively, which correspond to what is effectively written in the manuscript. However, the second (“mareçane”) is a mistake of the scribe. The correct form might be “narecane” for both because the Malayalam verb is, in fact, “nadakkunnu” (Hümmerich, 1945, p. 185). I had a similar problem with the transcription of the Malayalam word for the Portuguese verbs “beber” [to drink] and “morder” [to bite]. I read “carichany” (“canchany” for Marques, 1999, p. 130) for both because they have exactly the same handwriting. This could simply be a mistake of the author or also of the scribe as the “correct” Malayalam words are actually very similar: “kudikkunnu” [to drink] (Hümmerich, 1927, p. 57) and “kadikkunnu” [to bite] (Hümmerich, 1927, p. 58). Furthermore, in this new edition of the appendix, the “Language of Calicut”, I tried to add the maximum degree of information. On the one hand, I transcribed the manuscript with rigorous criteria, trying to correct earlier editions. On the other hand, I introduced the English translations of Ravenstein (1898, p. 105-108) within braces or curly brackets ({ }) and those of Ames (2009, p. 121-124) within (square) brackets ([ ]) when different from Ravenstein’s. I have also added my own English translation when I suppose there is a different interpretation — within chevrons or angle brackets (< >). I have also introduced Ravenstein’s Malayalam equivalences within the same braces or curly brackets ({ }), which had been furnished by Bishop John Martindale Speechly. Finally, I have also presented Hümmerich’s Malayalam (1945, p. 185-189) equivalences within double angle brackets (« »).
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FOLIO 45R LEFT COLUMN por olha {see, look!} // no cane {nōkka} «nōkkunnu» por ouves {hearest thou?} [Do you hear?] // que que ne {kēlka} «kēkkunnu» por tira lhe {take him away} // eriane «eriyyunnu» por tirar {to draw} // balichene {walikkān} «valikkunnu» por corda {rope} // coraoo {kayara}«kayaru» por alarga {largely} <enlarge> // lacany «idakkunnu or ilakunnu» por da me {give me} // comda {kutippān} «kondā» por beber {to drink} // carichany «kudikkunnu» por come {eat} // tinane {tinmān} «tinnunnu» por toma {take} // y na «innā» por nam quero {I don’t wish} // totenda «todēndā» por andar {to go} [to go away] // narecane «nadakkunnu» por vai te {go away!} // poo {pō} «pō» por vem qua {come here!} // baa {bā or wā} «vā» por cal[a] te {be silent!} [be quiet!] // pote «pōdu» por levanta te {rise!} [get up!] // legany «ilakunnu» por lançar {to throw} // carecane {karikkān} «kalekkunnu» por falar {to speak} // parane {parane, speak thou} «parayunnu» por doudo {mad, silly} [mad, crazy] // moto «mūdhan?» por sesudo {serious} <unsmiling> // monday dicany «moyai midukkanu» por manco {lame} [crippled] // muracall {murakāl} «muda kāl» por cair {to fall} // biamce «vīlunnu?» por muito {many, much} // balidu {walare} «valitu» por mãoo {bad}11 [hand] // betall {chītta} «viral» por vento {wind} // clacle {kātta} «kārru» por pouco {little} // chiredu {chiratu?} «chirutu» por day lhe {give him!} // eriane «eriyyunnu» por paoo {timber, wood} [wood] // mara {maram} «maram» por pedra {stone} // calou {kallu} «kallu» por dentes {teeth} // faley «pallu» por beiços {lips} // çire {chīra?} «chiri»
Bad interpretation by Ravenstein (1898, p. 105), because the Portuguese word has a tilde, which means that it is the noun “mãoo” [hand] and not the adjective “maoo” [bad].
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RIGHT COLUMN por nariz {nose} // muco {mūkka} «mūkku» por olhos {eyes} // cana {kanna}«kanna» por testa {forehead} // necheim {nīcha?} «nerri» por cabelos {hair} // talanay {talla} «talanār» por cabeça {head} // tala «tala» por orelhas {ears} // cadee {chewi} «kātu» por lingoa {tongue} // naoo {nākka} «nāvu» por pescoço {neck} // caestez «kaluttu» por mamas {breast} <boobs> // mulay {mula} «mulay» por peitos {breasts} // nane «neññu» por braços {arms} // carit «kai or kayyi» por estamago {stomach} // barri {wayara} «vayaru» por pernas {legs} // cali {kāla} «kālu» por caralho <strikethrough> [penis] <dick> // canay «kanay?» por colhons <strikethrough> [testicles] <balls> //feyrin12 por quuo <strikethrough> [ass] // cudo «kūti» por mãoos {hands} // lamguaim {kai} «idangai» por dedos {fingers} // beda «viral» por cono [vagina] <cunt, pussy> // cula «kula?» por pescado {fish} // miny {mīna} «mīnu» por masto {mast} // mana «maram» por lume {light, fire} [light] // tiir {tī} «tī» por dormir {to sleep} // teraquy «urakku» por homem {man} // amoo {āna} «ānnu» por molher {women}13 [woman] // pena {penna} «pennu» por barba {chin, beard}[beard] // tari «tādi» por lagosta {lobster} // xame «chemmīn» por papagayo {parrot} // tata {tatta} «tatta» por ponbas {doves} // cayninaa «mainainā» por peydo <strikethrough> [fart] // baly «vali» por beijar {to kiss} // mucam «muttunnu or mukarunnu» por morder {to bite} // carichany {katikkān} «kadikkunnu»
Hümmerich (1927, p. 57) transcribed “seyrim”, but the first consonant cannot be the long (medial or descending) <ſ>, but it is the consonant <f>. 13 The Portuguese word is singular. It has not the suffix <s>, morpheme of the plural. 12
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FOLIO 45V LEFT COLUMN por olhar {to see, look} // noquany {nokkuwān} «nōkkunnu» por ouvir {to hear} // cegade {kēlkawān} «chekidu» por bater {to beat} // catane «kottunnu» por ferida {wound} // morubo «moruvu» por espada {sword} // batany «vettunnu?» por adarga {shield} // cutany «kuttunnu?» por arco {bow} // cayny «kavinu» por frecha {arrow} // ambum {anpa} «ambu» por lança {spear} // com cudoo «kundam» por tirar com arco {to shoot with a bow} // heany «eyyunnu» por soll {sun} // nerara «ñāyaru» por lua {moon} // neelan «nilā» por ceo {heaven} [sky, heaven] // mana «mānam» por terra {the earth} // caraa «kara» por mar {the sea} // caralu «kadalu» por naoo {ship} <carrack> // capell {kappal} «kappal» por barcos {boat} // canbuço «chambokku» por noute {night} // erabut «iravu» por dia {day} // pagalalu «pakalu» por comer {eat} [to eat] // tinane {tinmān} «tinnunnu» por mijar [to urinate] // matara «mūtaram» por asentar {to mount} <to sit down> // arricany «irikkunnu» por estar em pee {to be on foot} <to stand> // anicany «nikkunnu» por andar {to go, travel}[to walk, go] // narecane14 «nadakunnu» por abraçar {to embrace} // tarigany «talukunnu» por pancadas {blows} // talaney «tallunnu» por chorar {to mourn, wail} [to cry] // quene «kēlunnu» por alevantar {to raise} [to lift] // alagany «ilakunnu» por baylhar {to dance} // canechane «kunikkunnu» por tirar com pedras ou paoo {to throw with stones or wood} [to throw a stone or wood] // ouryany «eriyyunnu» por cantar {to sing} // fareny «pādunnu» por chuva {rain} // majaa {mara}«mala or maya»
In the manuscript is written undoubtedly “mareçane”, but it is a mistake by the copyist.
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The first list of Malayalam words at the end of 15th century by a Portuguese seaman
RIGHT COLUMN por agoa {water} // tany {tanni} «tannīr or tanni» por cego {blind} // curuge {kurutan, blind man} «kurudi or kuruttu» por decepado de mãoo {maimed of a hand} // muraquay {murukai} «mudakai» por foder <strikethrough> [to copulate] <to fuck> // panany «pannunnu» por toma {take!} // ennay «innā» por vamo nos {let us go!} // pomga {pomka} «pōkām» por leste {east} // careçache {kirakka} «kilakkārru» por loeste {west} // meçache {patinynyara} «mēkkārru» por norte {north} // barcangache {watakka} «vadakkangārru» por sull {south} // tycamgarche {tekka} «tekkangārru» por cam {dog} // naa {nāya} «nā» por cadella {bitch} // pena {pennāya} «pen nā» por moço {young man} // humnee «yuvanu» por minino {girl}15 <little boy> // copoo «kochchu» por cassa {house} // pura {pura} «pura» por agulha [needle] // cudoo «kūdu?» por verga {rod} // parima «parimaram» por remo {oar} // tandii {tandu} «tandu» por bombardas {a great gun} [great gun, cannon] // vedii «vedi» por gavea {top-sail} // talii «talīl» por driça {halyard} // anguua «āwang?» por // ___: ___: ___: ___ Estes sam os seus nomes: {The following are some of the names [of persons]}[These are their names] Tenae // Pumi // Paramganda // Ujapee // Quilaba // Gouaa // Ajapaa // Arreco // Axirama // Cuerapa // Cutitepa // Anapa // Canapa // Gande // Remaa // Mamgala // ___: ___: ___: ___: ___ por ancora {anchor} // napara «mangūram» por bandeiras e estandarte {flag} [flag, standard] // çoti {koti} «kodi» por governalho {rudder, helm} // xoca «chukkān»
Wrong interpretation by Ravenstein (1898, p. 107) and Ames (2009, p. 122): the last vowel is, undoubtedly, an <o>, morpheme of the masculine, and not the <a>, morpheme of the feminine gender.
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por pelote {pilot}16 <pelote> // cupajaoo «kuppāyam» por calça {shoe} <trousers, pants> // cacu paja «kālkuppāyam» por barrete {cap} // tupy {topi} «toppi»: ___: ___: ___
CONCLUSIONS Codex MS-804 from the Municipal Library of Porto, in Portugal, is a copy from the beginning of the 16th century of a lost journal written by a simple soldier or sailor (maybe deported) of the first fleet to India. The author was most probably Álvaro Velho (fl. 1497/1507), born in Barreiro, under the command of Captain Vasco da Gama (ca.1460–1524). This codex describes the voyage from the departure from Lisbon, Portugal on 8 July 1497 to the arrival in the shallows of the Grande River de Buba in present day Guinea-Bissau on 25 April 1499. The great merit of this document is the fact that the author was as a direct eyewitness of all events he describes. Particularly relevant for this study is the vocabulary in one final appendix at folio 45 (recto and verso). It has 122 useful daily words / expressions organized in two columns in Portuguese, their translation into the language spoken in Calicut (the current city of Kozhikode) in the southern Indian state of Kerala and sixteen proper nouns. It has mainly nouns (75) related to human beings and parts of the body, daily objects, fish and other animals, boats and navigation, parts of the day and cardinal points, verbs in infinitive (24) and imperative (12) moods, one negative and several other interrogative sentences, some adjectives (5) and, maybe, two adverbs (or adjectives too). Despite some transcription mistakes and the censorship of some “obscene” words or vulgarisms by the scribe, maybe the friar John Theotonius, CRSA, from the Canons Regular of the Holy Cross of Coimbra, it is a relevant testimony of a variety of Malayalam, a statutory provincial Dravidian language in Kerala State, at the end of the 15th century, though mixed with some neighbor tongues, such as its “mother”, i.e., the Tamil language. This list deserved a new semi-diplomatic edition in order to correct earlier editions, following rigorous transcription criteria and adding other relevant pieces of information, such as English translations and Malayalam equivalences. ACKNOWLEDGEMENTS I gratefully acknowledge the two anonymous referees whose valuable and stimulating comments I’ve tried to implement in the final version of this paper. REFERENCES ALBUQUERQUE, Luís. Introdução. In: VELHO, Álvaro. Relação da viagem de Vasco da Gama. Lisboa: Editorial do Ministério da Educação, 1989. p. 5-7. AMES, Glen Joseph (Ed.). Em nome de Deus: the journal of the first voyage of Vasco da Gama to India, 1497–1499. Boston: Brill Academic Publishers, 2009. BAIÃO, A.; BASTO, A. de Magalhães (Ed.). Diário da Viagem de Vasco da Gama. Porto: Livraria Civilização, 1945. BARBOSA, Agostinho. Dictionarium lusitanicolatinum. Braga: Fructuosi Laurentii de Basto, 1611. Available at: <http://purl.pt/14016>. Last access: 29 Apr. 2015.
Wrong interpretation by Ravenstein (1898, p. 108) and Ames (2009, p. 124): the word “pelote” still exists in Portuguese and means a (medieval) large coat usually with large flaps and without sleeves (Casteleiro, 2001, v. II, p. 2805) e (Houaiss; Villar 2009, p. 1463).
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The first list of Malayalam words at the end of 15th century by a Portuguese seaman
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AGRADECIMENTOS ACKNOWLEDGEMENTS Os Editores do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas agradecem aos que colaboraram na avaliação de artigos durante o ano de 2016. The Editors of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas thank those who assisted in the peer review process during 2016.
Alberico Nogueira de Queiroz (Universidade Federal de Sergipe) Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira Smith (Universidade da Amazônia) Anne Rapp Py-Daniel (Universidade Federal do Oeste do Pará) Camila do Valle Fernandes (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Camilo Torres Sanchez (Universidade do Estado do Amazonas) Maria Cândida Barros (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Célia Futemma (Universidade Estadual de Campinas) Claide de Paula Moraes (Universidade Federal do Oeste do Pará) Clicie Nunes Adao (Universidad de Concepción, Chile) Cristiana Barreto (Universidade de São Paulo) Cristina Donza Cancela (Universidade Federal do Pará) Cristina Muru Universita degli Studi della Tuscia Cristiano Ramalho (Universidade Federal de Pernambuco) Denize Genuína Adrião (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Doyle Mckey (Université de Montpellier)
Egleé López Zent (Instituto Venezolano de Investigaciones Cientificas) Elaine Moreira (Universidade Estadual de Campinas) Emilie Coudel (Universidade de Brasília) Eric Sabourin (Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Dével, França) Esther Katz (Institut de Recherche pour le Développement, França) Eurípedes Antônio Funes (Universidade Federal do Ceará) Fábio de Oliveira Freitas (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia, Brasília) Fernando Marques (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Flávio Bezerra Barros (Universidade Federal do Pará) Gessiane Picanço (Universidade Federal do Pará) Hein van der Voort (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Jennifer Watling (Universidade de São Paulo) João Aires Ataíde da Fonseca Júnior (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Joel Orlando Bevilaqua Marin (Universidade Federal de Santa Maria)
José Guilherme dos Santos Fernandes (Universidade Federal do Pará) José Antonio VieiraPimenta (Universidade de Brasília) Levy Figuti (Universidade de São Paulo) Lourdes Furtado (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Lucia van Velthem (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Luciana Gonçalves de Carvalho (Universidade Federal do Oeste do Pará) Luís Eduardo Aragon Vaca (Universidade Federal do Pará) Luiz Fernando Leal Padulla (Colégio Anglo de Santa Bárbara D’Oeste) Marcello Broggio (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO) Márcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Marcia Regina Calderipe (Universidade Federal do Amazonas) Márcio Rangel (Museu de Astronomia e Ciências Afins, Ministério de Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro) Márlia Coelho (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Monica Celeida Rabelo Nogueira (Universidade de Brasília) Muriel Saragoussi (Consultora independente, Manaus) Myrtle Shock (Universidade Federal do Oeste do Pará) Nathalie Pétesch (Museu de História Natural de Toulouse) Neuza Pressler (Universidade da Amazônia)
Nurit Bensusan (Instituto Internacional de Educação, Brasília) Olimpia Resque (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Paula Chamy (Conservação e Gestão Participativa de Recursos de Uso Comum, Nepan, São Paulo) Paulo Eduardo Moruzzi Marques (Universidade de São Paulo) Pedro Makumbundu Kitoko (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Espírito Santo) Raymundo Heraldo Maués (Universidade Federal do Pará) Ricardo Secco (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Rosa Acevedo Marín (Universidade Federal do Pará) Rui Sergio Sereni Murrieta (Universidade de São Paulo) Stanford Zent (Instituto Venezolano de Investigaciones Cientificas) Stephen Grant Baines (Universidade de Brasília) Tiago Falótico (Universidade de São Paulo) Vera Lúcia Guapindaia (Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI) Vinicius Honorato (Universidade de Brasília) Violeta Refkalefsky Loureiro (Universidade Federal do Pará) Viviane Kraieski de Assunção (Universidade do Extremo Sul Catarinense) Wilma Leitão (Universidade Federal do Pará) Zélia Amador de Deus (Universidade Federal do Pará)
BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUÇÕES AOS AUTORES
Objetivos e política editorial O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem como missão publicar trabalhos originais em arqueologia, história, antropologia, linguística indígena e disciplinas correlatas. A revista aceita colaborações em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: Artigos Científicos – textos analíticos originais, resultantes de pesquisas com contribuição efetiva para o avanço do conhecimento. De 15 até 30 laudas. Artigos de Revisão – textos analíticos ou ensaísticos originais, com revisão bibliográfica ou teórica de determinado assunto ou tema. De 15 até 30 laudas. Notas de Pesquisa – relato preliminar mais curto que um artigo, sobre observações de campo, dificuldades e progressos de pesquisa em andamento, enfatizando hipóteses, comentando fontes, resultados parciais, métodos e técnicas utilizados. Até 15 laudas. Memória – seção que se destina à divulgação de acervos ou seus componentes que tenham relevância para a pesquisa científica; de documentos transcritos parcial ou integralmente, acompanhados de texto introdutório; e de ensaios biográficos, incluindo obituário ou memórias pessoais. Até 20 laudas. Debate – ensaios críticos sobre temas da atualidade. Até 15 laudas. Resenhas Bibliográficas – texto descritivo e/ou crítico de obras publicadas na forma impressa ou eletrônica. Até cinco laudas. Teses e Dissertações – descrição sucinta, sem bibliografia, de dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência. Uma lauda.
Apresentação de artigos O Boletim recebe contribuições somente em formato digital. Os arquivos digitais dos artigos devem ser submetidos online na plataforma ScholarOne via o site do Boletim <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html>, ou diretamente via o link <https://mc04. manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, fornecendo obrigatoriamente as informações solicitadas pela plataforma.
Cadastramento O(s) autor(es) deve(m) realizar o cadastro (Login/Senha) criando uma conta pessoal na plataforma online, na seção “CREATE AN ACCOUNT” ou “NEW USER” e preencher corretamente o perfil. O cadastramento/criação de uma conta precisa ser feito somente uma vez. Após isso, a conta deve ser usada para todas as submissões de trabalhos, revisões e pareceres.
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Preparação de originais Todas as submissões devem ser enviadas por meio da plataforma de submissão online ScholarOne. Os originais devem ser enviados 1.
Em Word, com fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5, em laudas sequencialmente numeradas. Os trabalhos de linguística indígena devem utilizar fonte compatível com o padrão Unicode, como Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma e outras que incluam todos os símbolos fonéticos da IPA. Times New Roman é preferível, mas inclui IPA em Unicode somente a partir das últimas edições de Windows. Nunca deve-se improvisar símbolos do IPA usando letras comuns com tachamento
2.
(imitando ɨ, ʉ, etc.).
Da primeira página, devem constar: a. título (no idioma do texto e em inglês); b. resumo; c. abstract; d. palavras-chave e key words.
3.
Os originais não podem incluir o(s) nome(s) do(s) autor(es) e não podem incluir agradecimentos.
4.
Deve-se destacar termos ou expressões por meio de aspas simples.
5.
Apenas termos científicos latinizados e palavras em língua estrangeira devem constar em itálico.
6.
Os artigos deverão seguir as recomendações da ABNT para uso e apresentação dos elementos bibliográficos: resumos NBR 6028; citações em documentos NBR 10520; referências NBR 6023.
7.
Tabelas devem ser digitadas em Word, sequencialmente numeradas, com claro enunciado.
8.
Ilustrações e gráficos devem ser apresentados em páginas separadas e numeradas, com as respectivas legendas, e submetidos na plataforma online em arquivos à parte. Imagens devem ter resolução mínima de 300 dpi, e tamanho mínimo de 1.500 pixels, no formato JPEG, ou TIFF. Devem ter, no máximo, 16,5 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em duas colunas), ou 8 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em uma coluna). As informações de texto presentes nas figuras devem estar em fonte Arial com tamanho entre 7 e 10 pts.
9.
Figuras feitas em programas vetoriais podem ser enviadas, preferencialmente, em formato aberto, na extensão .cdr (X5 ou inferior), .eps ou .ai (CS5 ou inferior).
10. O texto do artigo deve, obrigatoriamente, fazer referência a todas as tabelas, gráficos e ilustrações. Quando for necessário o uso de mapas, dê preferência na identificação com símbolos (devido a limitações com cores, em versões impressas). 11. Somente numeração de páginas e notas de rodapé deve ser automática. Textos contendo numeração automatizada de seções, parágrafos, figuras, exemplos, ou outros processos automatizados, como referenciação e compilação de lista de referências, não serão aceitos. 12. Observar cuidadosamente as regras de nomenclatura científica, assim como abreviaturas e convenções adotadas em disciplinas especializadas. 13. Notas de rodapé devem ser numeradas em algarismos arábicos e utilizadas apenas quando imprescindíveis, nunca como referências. 14. Referências a manuscritos, documentos de arquivo ou textos não publicados (relatórios, cartas etc.) devem ser feitas em notas de rodapé. Citações e referências a autores no decorrer do texto devem subordinar-se à seguinte forma: sobrenome do autor (não em caixa alta), ano, página(s) (exemplo: Goeldi, 1897, p. 10). 15. Todas as obras citadas ao longo do texto devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo, e todas as referências no final do artigo devem ser citadas no texto.
16. Citações de obras como “apud” também devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo. Os nomes de múltiplos autores ou organizadores citados como “et al.” devem todos aparecer nas referências no final do artigo.
Estrutura básica dos trabalhos 1.
Título – No idioma do texto e em inglês (quando este não for o idioma do texto). Deve ser escrito em caixa baixa, em negrito, centralizado na página.
2. Resumo e Abstract – Texto em um único parágrafo, verbo na voz ativa e terceira pessoa do singular, ressaltando os objetivos, método, resultados e conclusões do trabalho, com no mínimo 100 palavras e, no máximo, 200, no idioma do texto (Resumo) e em inglês (Abstract). A versão para o inglês deverá ser feita ou corrigida por um falante nativo (preferivelmente um colega da área), o que é de responsabilidade do(s) autor(es). 3. Palavras-chave e Keywords – Três a seis palavras que identifiquem os temas do trabalho, para fins de indexação em bases de dados. 4. Texto – Deve ser composto de seções NÃO numeradas, e sempre que possível com introdução; marco teórico; desenvolvimento; conclusão e referências . Evitar parágrafos e frases muito longos. Optar pela voz passiva, evitando o uso da primeira pessoa do singular e do plural ao longo do texto. Siglas devem inicialmente ser escritas por extenso. Exemplo: “A Universidade Federal do Pará (UFPA) prepara novo vestibular”. Citações de até três linhas devem estar dentro do parágrafo e entre aspas duplas (“); citações com mais de três linhas devem ser destacadas do texto, com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor e sem aspas. Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde ainda durante o século passado, a subjugação das tribos Miaotse pode ser identificada à urbanização das suas terras (Buarque de Holanda, 1978, p.61). 5. Agradecimentos – Devem ser sucintos: créditos de financiamento; vinculação a programas de pós-graduação e/ou projetos de pesquisa; agradecimentos pessoais e institucionais. Nomes de pessoas e instituições devem ser escritos por extenso, explicando o motivo do agradecimento. Note que a primeira versão submetida é para avaliação anônima e deve estar sem agradecimentos. 6. Referências – Devem ser listadas ao final do trabalho, em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor. No caso de mais de uma referência de um mesmo autor, usar ordem cronológica, do trabalho mais recente ao mais antigo. Todas as referências devem seguir as recomendações da NBR 6023 da ABNT. Evita-se o uso indevido de letras maiúsculos nos títulos de artigos ou livros. Somente nomes próprios, substantivos alemães e as palavras de conteúdo de títulos de revistas e de séries devem começar por uma letra maiúscula. Obs: A utilização correta das normas da ABNT referentes à elaboração de referências (NBR 6023/2002) e o uso adequado das novas regras de ortografia da Língua Portuguesa nos artigos e demais documentos encaminhados ao “Boletim” são de responsabilidade dos autores. A seguinte lista mostra vários exemplos de referências nas suas categorias diferentes: Livro: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906.
Livro: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Org.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012. Série/Coleção: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Capítulo de livro: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Capítulo de livro e Série/Coleção: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Org.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Artigo de periódico: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Artigo de periódico: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, out. 2005. Artigo de periódico em meio eletrônico: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 06 mar. 2015. Artigo e/ou matéria de jornal: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Artigo e/ou matéria de jornal em meio eletrônico: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 19 set. 1998. Trabalho apresentado em evento: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Trabalho apresentado em evento em meio eletrônico: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Acesso em: 21 jan. 1997. Documento eletrônico: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 23 jan. 2012.
Documento jurídico: SÃO PAULO (Estado). Decreto no 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998. Documento jurídico: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução no 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, maio/jun. 1991. Documento jurídico: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 dez. 1997. Seção 1, p. 29514. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização)–Faculdade de Odontologia, Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). Tese (Doutorado em Ciência da Informação)–Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Tese (Doutorado em Antropologia)–University of New York, Nova York, 1984.
Avaliação inicial Será feita uma avaliação inicial da submissão pela administração editorial, seguindo um checklist de critérios básicos. No caso que a submissão está incompleta ou as imagens não estão conforme as especificações dadas acima, o artigo será devolvido via a plataforma online como “UNSUBMITTED”. Isso significa que o artigo volta para a fase de ainda não estar submetido, com uma explicação das pendências. Após de resolver as pendências o autor pode ressubmeter o artigo, escolhendo a opção “RESUBMIT”.
Revisão de artigos Após receber os pareceres anônimos, o Editor decide se o artigo será aceito para publicação. Se aceito, o autor é convidado a revisar o artigo com base nos pareceres e nas observações do Editor. O autor deve explicar como a revisão foi realizada, dar justificativa se um conselho do parecerista não foi seguido e, obrigatoriamente, usar a ferramenta “Controle de alterações” do Word para realizar as mudanças. O artigo revisado deve ser enviado através da plataforma online, usando o link de revisão em “AUTHOR RESOURCES”, clicando em “CREATE REVISION”.
Provas Os trabalhos, depois de formatados, são encaminhados através do sistema de e-mail do ScholarOne, em PDF, para a revisão final dos autores, que devem devolvê-los com a maior brevidade possível. Os pedidos de alterações ou ajustes no texto devem ser feitos por comentários no PDF. Nessa etapa, não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem alteração na paginação. Caso o autor não responda ao prazo, a versão formatada será considerada aprovada. Os artigos são divulgados integralmente no formato PDF no sítio da revista, no DOAJ e na SciELO.
Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br
Lembre-se: 1- Antes de enviar seu trabalho, verifique se foram cumpridas as normas acima. Disso depende o início do processo editorial. 2- Após a aprovação, os trabalhos são publicados por ordem de chegada. O Editor Científico também pode determinar o momento mais oportuno. 3- A revista não aceita resumos expandidos, textos na forma de relatório e nem trabalhos previamente publicados em anais, CDs ou outros suportes.
BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUCTIONS FOR AUTHORS Mission and Editorial Policy The mission of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas is to publish original works on Archaeology, History, Anthropology, Indian Languages, and related fields. The journal accepts contributions in Portuguese, Spanish, English and French for the following sections: Articles – scientific and original analytical papers stemming from studies and research, which effectively contribute to building knowledge in the field. Maximum length: 30 pages. Review Articles – analytical texts or essays, with theoretical and/or literature review on a certain subject or topic. Maximum length: 30 pages. Short Communications – short preliminary reports (shorter than an article) on field observations, challenges faced and progress made in on-going research emphasizing hypotheses, mentioning sources, partial results, materials and methods. Maximum length: 15 pages. Memory – this section includes texts on collections or items of collections considered relevant for scientific research; documents transcribed in whole or in part submitted with an introduction; and biographical essays, including obituaries or individual memories. Maximum length: 15 pages. Debate – critical essays on current issues. Maximum length: 15 pages. Book Reviews – descriptive and/or critical reviews of printed or electronic publications. Maximum length: 5 pages. Thesis and Dissertations – thesis and dissertations abstracts, with no references section. Maximum length: 1 page.
Submitting a manuscript Manuscripts should be sent to the Scientific Editor by email (boletim.humanas@museu-goeldi.br), with a letter containing: title, full name (no abbreviations) of the main author and other authors, mailing address (complete address, zip code, phone number, fax, e-mail), and a declaration stating the main author is responsible for the inclusion of the remaining co-authors. The journal has a Scientific Board. The manuscripts are first examined by the Editor or by one of the Associate Editors. The Editor has the right of recommending alterations be made to the papers submitted or to return them when they fail to comply with the journal’s editorial policy. Upon acceptance, the manuscripts are submitted to peer-review and are reviewed by two specialists who are not members of the Editorial Commission. In the event of disagreement, the manuscript is submitted to other(s) referee(s). In the event changes or corrections need to be made, the manuscript is returned to the author(s) who have thirty days to submit a new version. Files related to not accepted manuscripts will be deleted. Publication means fully assigning and transferring all copyrights of the manuscript to the journal. The Liability Statement and Assignment of Copyrights will be enclosed with the notice of acceptance. All the authors must sign the document and return it to the journal.
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Basic text structure Title – The title must appear both in the original language of the text and in English (when English is not the original language). Title must be centralized and in bold. Do not use block capitals. Abstract – This section should be one paragraph long and highlight the goals, methods and results of the research. Minimum length: 100 words. Maximum length: 200 words. The abstract should be presented both in the original language of the text and in English. The English version must either be composed or corrected by a native speaker, which is the responsiblity of the authors. Keywords – Three to six words that identify the topics addressed, for the purpose of indexing the paper in databases. Body of the text – Papers should preferably be divided in the following sections: introduction, theoretical background, development, conclusion, and references. Lengthy paragraphs and/or sentences should be avoided. Acronyms should be preceded by the word or phrase to which it refers to when appearing for the first time. Example: “The Universidade Federal do Pará (UFPA) is preparing a new admission exam”. Quotations under three lines should be included in the body of the text between quotation marks (“). Quotations over three lines are separated from the text and indented in block, with no quotation marks, and the font must be smaller than the font used in the text. Acknowledgements – Should be brief and can mention: support and funding; connections to graduate programs and/or research projects; acknowledgement to individuals and institutions. The names of the individuals and institutions should be written in full together with what motivated the acknowledgement. References – Should appear at the end of the text in alphabetical order according to the last name of the first author. In the event of two or more references to a same author, please use chronological order starting with the most recent work. References should comply with ABNT recommendation NBR 6023, following the examples below: Books: VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. Chapters: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Ed.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. p. 133-154.
Papers in journals: GOELDI, Emílio. O estado atual dos conhecimentos sobre os índios do Brasil, especialmente sobre os índios da foz do Amazonas, no passado e no presente. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, v. 2, n. 4, p. 397-417, 1898. Series/Collections: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Thesis and Dissertations: MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Thesis (PhD Anthropology thesis) – University of New York, New York, 1984. Electronic document: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010. 2011. Available at: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Accessed on: Jan. 23, 2012.
Proofs Authors will receive their paper in PDF format for final approval, and must return the file as soon as possible. Authors must inform the Editors in writing of any changes in the text and/or approval issues. At this stage, changes concerning content or changes resulting in an increase or decrease in the number of pages will not be accepted. In the event the author does not meet the deadline, the formatted paper will be considered approved by the author. Each author will receive two printed copies of the journal. The papers will be disclosed in full, in PDF format in the journal website, DOAJ, and SciELO.
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