IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL
ANO I • EDIÇÃO 01 • ABRIL 2017
MUITO ALÉM DO HOMEM E DA MULHER
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Editorial
A importância da família na aceitação da orientação sexual do indivíduo Um homossexual é morto a cada 28 horas no Brasil. No ano de 2016 foram cerca de 150 vítimas. São números alarmantes e inacreditáveis. A homofobia é uma das principais causas. No Brasil ela não é considerada crime. A vedação constitucional de preconceito em razão de sexo – que alcança a discriminação por orientação sexual ou identidade sexual – continua sem uma legislação que criminalize esses atos. Nesse fato, nossa legislação deixa a desejar. Hoje ainda somos pegos de surpresa por ainda existir tanto preconceito e discriminação relacionados à orientação sexual e identidade de gênero. Mas o que nos deixa mais indignados é que mesmo assim nada é feito: não há lei, não há conscientização governamental. O que realmente fica é o trauma psicológico. É o luto de amigos e familiares. É a busca pela paz e pela justiça –que não é feita. Mas a homofobia nem sempre
vem das ruas, de estranhos ou de terceiros. Por incrível que pareça ela está muito mais perto do que se imagina. A relação familiar é um fator de grande importância na construção da identidade do indivíduo. Nossos primeiros passos, nossas primeiras palavras, nosso mais prematuro sinal de afeto vem de casa. Por isso é fundamental a aceitação familiar. Quando uma criança e/ou um adolescente se identifica com uma identidade sexual diferente daquela que lhe foi empregada, automaticamente ela se sentirá retraída. Quando há um bom relacionamento familiar é um pouco mais fácil. É necessário que haja sempre uma comunicação entre as partes (pais, filhos). A partir do momento que há aceitação familiar, encarar o mundo lá fora se torna menos agressivo do que realmente é. O olhar de quem tem a postura de quem realmente quer ser, de suas opções,
de seus desejos, se torna mais corajoso. Afrontar os preconceitos que existem no mercado de trabalho, por exemplo, seria um desafio ainda maior se não fosse o apoio que vem do ventre familiar. O reconhecimento pessoal é importante, mas o familiar é essencial.
Bianca Oliveira de Carvalho Editora biancaa.carvaalho@hotmail.com
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SUMÁRIO
Fizemos um pequeno dicionário para deixar bem claro alguns termos utilizados na revista.
Aplicativos de Paquera
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Da descoberta à aceitação
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Homossexualidade não é doença, mas homofobia sim!
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O grupo LGBT e as dificuldades no Mercado de Trabalho
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Direitos LGBT: devagar, mas na direção certa Transformação
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Caso haja alguma dúvida, você pode recorrer ao próprio glossário!
Identidade de gênero: modo como a pessoa se identifica: homem ou mulher. Orientação sexual: desejo afetivo e sexual que a pessoa tem por outra: heterossexual, homossexual, bissexual.
Não entendeu? Vem cá que eu te explico! Homossexual: pessoa que se sente atraída sexualmente, emocionalmente ou afetivamente por pessoas do mesmo sexo/ gênero. Gay: o termo é geralmente associado ao homossexual masculino. Homem que é atraído sexualmente e/ou afetivamente por outro homem. Lésbica: mulher que é atraída afetivamente e/ou sexualmente por outra mulher.
EDITORA-CHEFE BIANCA CARVALHO
PLANEJAMENTO GRÁFICO BIANCA CARVALHO JOÃO BATISTA ORIENTAÇÃO GESNER DUARTE PÁDUA COLABORADORES ARTHUR BILEGO ADAILSON PEREIRA VASCO AGUIAR
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Bissexual: pessoa que se relaciona com ambos os sexos/ gêneros. Transexual: é quando a identidade sexual não está de acordo com o seu sexo biológico. Independente do gênero (podem nascer homens ou mulheres). O que define o transexual é que seu corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas
num corpo de homem, ou vice versa. Cisgênero: refere-se ao indivíduo que se identifica, de todas as formas, com o seu gênero de nascença e ao sexo biológico. Travesti: ainda que ele tenha o mesmo desejo e invista em roupas e hormônios femininos, mantém o órgão genital masculino, seja por escolha ou não. Drag queen: são pessoas que se fantasiam como sendo do sexo oposto com o intuito geralmente de fazer shows profissionais. Um drag queen pode ser um cisgênero, por exemplo. O fato dela se fantasiar do sexo oposto não interfere na sua orientação sexual. Transformistas ou crossdressers: pessoas que vestem roupas usualmente próprias do sexo oposto,
sem que tal atitude interfira necessariamente em sua orientação sexual. Ou seja, uma pessoa crossdresser não necessariamente pautará sua orientação em função desse seu gosto por roupas do sexo oposto. LGBTTTIS: sigla que designa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgênero, intersexuais e simpatizantes. Também se usa apenas a sigla LGBT. Assexualidade: orientação sexual que se caracteriza pela ausência de desejo sexual por todos os sexos/ gêneos, sendo que para alguns assexuais, há falta de atração romântica. Não binária: Uma pessoa cuja identidade de gênero não é nem homem nem mulher, está entre os sexos ou além, ou é uma combinação de gêneros.
Aplicativos de Paquera N
ão é de hoje que a tecnologia cruza caminhos entre pessoas de uma forma rápida e eficaz. Em questão de segundos você pode ter contato com um amigo que mora do outro lado do mundo em tempo real via webcam, conhecer outros países pelo Google Maps e até mesmo o amor da sua vida em apenas um clique por algum aplicativo de relacionamento. Você provavelmente deve ter tido algum relacionamento virtual ou, pelo menos, conhecido alguém que já teve. O Site UOL foi um dos pioneiros a introduzir bate-papos online. Com uma lista que redireciona pessoas com determinados tipos de interesses (amizade, sexo, namoro, cidades), as salas deram início a comunidade de internautas que viam naquelas conversas uma forma de comunicação instantânea e virtual. O avanço das tecnologias fez com que as conversas migrassem das telas dos computadores para nossos celulares. Dessa forma, o que não falta são aplicativos de relacionamento. Existem aqueles desde os mais populares como o Tinder e Duego, e também os mais específicos, ou seja, aqueles para determinados interesses. Um exemplo disso é o Grindr (disponível para IOS e Android), o aplicativo tem um dispositivo que localiza até 100 pessoas à sua volta. Só no Brasil existem cerca de 130 mil usuários. Dessa forma, a dificuldade de conhecer um parceiro no dia a dia se tornou praticamente remota.
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Luis Antônio Bitante Fernandes, professor doutor em sociologia da UFMT, diz que “os aplicativos para celular é a tendência da qual estamos vivenciando. A cada dia usuários tornam essas ferramentas como algo necessário em suas vidas. Os aplicativos de paquera não são novidades. Há um bom tempo vem sendo usados como forma de estabelecer relações. É só lembrar das salas de bate papo, elas foram utilizadas para estabelecer relações em diversos níveis de intencionalidade e hoje, até onde eu sei, já caíram em desuso. O futuro da comunicação, deve ser uma ferramenta para o uso inteligente e é neste sentido que devemos pensar e repensar nossas formas de comunicação.” Mas apesar de todos esses benefícios e possibilidades, os usuários estão sujeitos a serem vítimas de algum tipo de ameaça. Ernane Felix, 19 anos, ex morador de Barra do Garças e ex
estudante do curso de Jornalismo da UFMT, acha que os aplicativos têm seus riscos. “A maioria dos aplicativos dão a localidade dos usuários mais próximos de você. A possibilidade de alguém te perseguir ou ameaçar por algum motivo são grandes. A pessoa tem que ter muita coragem de marcar um encontro, até porque geralmente você nem ouve a voz com quem se comunica. Apenas há comunicação por conversas básicas e fotos (que nem sempre são reais).” Por outro lado, existem aqueles usuários que se sentem seguros e satisfeitos com essas redes. Jorge (nome fictício), 23 anos, morador de Barra do Garças-MT e usuário dos aplicativos de relacionamento gay, diz que antes de migrar para o celular, usava as salas de bate-papos para conhecer novas pessoas. Para ele, os aplicativos que usa são mais seguros, pois além de ter a opção de ver os perfis das pessoas,
Dhiego, estudante do curso de jornalismo UFMT
mostram também sua rede de amigos. “Antes, no bate-papo, você poderia não revelar seu nome, não precisava se identificar. Já nos aplicativos não tem como esconder seu rosto. Além disso, ele mostra todos os amigos em comum”. Mesmo com todas essas alternativas de identificação, ainda existem pessoas com más intenções que veem nesses aplicativos uma ótima oportunidade para localizarem suas “presas”. Por isso é importante não cair em qualquer papo para depois não ser pego de surpresa. Rainner Luiz, 23 anos, usuário dos aplicativos, e estudante do curso de Educação Física da UFMT, diz que existe uma variedade de pessoas que não são gays, não tem interesse em ter um relacionamento, mas que tem contas ativas nos aplicativos. “Quando percebo que a pessoa não tem amigos em comum e fotos pessoais, eu não aceito em minhas redes”. Pela curiosidade e interesse em saber como funcionam os aplicativos, suas normas e seu uso, criei uma conta “fake” no SCRUFF. Logo de cara me identifiquei com uma lista de normas e políticas de uso, e uma delas me chamou bastante a atenção:
Isso me fez entender que os criadores dos aplicativos também estão cientes dos riscos que essas ferramentas podem causar. Pensando nisso, fiz uma pequena pesquisa com 10 usuários, a fim de saber se eles leem as políticas de uso dos aplicativos antes de se cadastrarem. E os resultados foram impressionantes: nenhum deles leram as normas concedidas pelas ferramentas de relacionamentos na hora de se cadastrar. Marcos*, 25 anos, ex morador de Barra do Garças, afirma que sempre foi bem cuidadoso: “Eu sempre tomo bastante cuidado quanto a isso. Antes de marcar um encontro, colho o máximo de informações possíveis da pessoa: número de celular, redes sociais, amigos em comum e, em todos os encontros, opto por lugares públicos e, de preferência, durante o dia.” Mas nem todos os usuários têm o mesmo cuidado. Em novembro de 2016, na cidade de Uberlândia-MG, três jovens gays foram assassinados em menos de 15 dias após marcarem um encontro por aplicativos de relacionamentos. Luis Felipe Nascimento Rodrigues, 26 anos, estudante do curso de Jornalismo da UFMT, também acha que os aplicativos, em algumas ocasiões, não dão total segurança aos usuários:” É difícil saber a real intenção das pessoas nesses aplicativos. Elas podem colocar diversas informações inverídicas apenas com o intuito de chamar atenção, mas elas podem muito bem estar enganando as pessoas com quem se relaciona.” Ele questiona, também, as pessoas que rotulam seus interesses físicos e comportamentais que, por vezes, chegam a ser preconceituosos e racistas: “Eu nunca sofri preconceito direto, mas já vi muitos perfis que são bem seletivos como: não curto negros, gordos ou afeminados. Então, de certa forma, cria-se um filtro padronizado.” Quando perguntado se há diferenciação dos usuários de cidades
Luis Felipe, estudante de jornalismo UFMT
interioranas e de capitais, ele afirma: “Já usei aplicativo aqui na Barra e em São Paulo. Lá (São Paulo), as pessoas são muitos mais preconceituosas em relação a isso e também à faixa etária”. Por outro lado, em 2015 foi criado um aplicativo GPSGAY que auxilia no combate à homofobia e violência. Ele funciona da seguinte forma: oferece um espaço para que os usuários cadastrados façam postagens públicas caso sofram algum caso homofóbico, de ameaça e riscos, ou seja, ele serve como um boletim de ocorrência online para um público específico. Em 2016, nos jogos Olímpicos e Paralímpicos no Rio 2016, o Ministério da Saúde juntamente com o aplicativo Hornet, lançou o projeto Close Certo, que eram ações onlines que serviam para informar os usuários sobre prevenção, teste e tratamento aos jovens homossexuais que são mais vulneráveis à infecções sexualmente transmissíveis e epidemias de HIV/AIDS. Os aplicativos de relacionamentos, sem dúvida, servem como ponte para estreitar laços, independente da distância. Na atualidade, o amor e o sexo não funcionam só pela junção de corpos, mas também por conexões virtuais. Mas só depende de cada um saber como lidar com essas redes. Bianca Carvalho
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Conheça também outros aplicativos! O Scruff possui a mesma tecnologia do Grindr, porém ele permite que você conheça um número restrito de usuários. Uma outra opção que a ferramenta proporciona é a de saber quem visitou seu perfil, como a plataforma do Orkut, alguém aí se lembra?
O BoyAhoy Gay Chat está mais para uma rede social. Ela permite que você publica fotos, comenta e curte o perfil de outro usuário. Caso o perfil também curta o seu, você será avisado. O aplicativo está disponível para IOS e Android e, o interessante é que ele possibilita a interação entre os usuários de uma forma mais leve, como por exemplo encontrar alguém que apenas queira conversar e arranjar amizades.
Já o Hornet é aquele aplicativo sem papas na língua. Ele serve para pessoas que queriam ter encontros sexualis e casuais (e que fique por aqui). Há opção de visualizar perfis e tem acesso ao bate-papo.
O Gayvox é um aplicativo para conhecer lésbicas. Ele possibilita navegar por perfis próximos a sua localização. Também há a opção de selecionar alguns critérios pessoais como físicos e interesses.
Happn é aquele aplicativo que mostra o perfil de pessoas que cruzam seu caminho. Sabe aquela alma gêmea que você viu no supermercado mas teve medo de puxar assunto? Com o Happn as chances de você conseguir localizar essa pessoa são gigantescas, isso claro, se ela também tiver o aplicativo no celular.
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Da descoberta à aceitação
Foto: Vasco e Adailson
Estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Araguaia, Marina Campos e Suzana da Conceição são lésbicas assumidas. Com estilos visuais opostos, sentem diferenças na maneira como são tratadas por sua condição. Em conversa com nossa reportagem, as estudantes relatam suas experiências durante a descoberta da sexualidade e as dificuldades que enfrentam diante do preconceito que sofrem.
Suzana Conceição e Marina Campos
DESCOBERTAS
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atural de Belém do Pará, Suzana, tradicional e a religiosidade dos pais. também faziam esta cobrança. Depois de 22 anos, estudante do curEla revela que se relacionou com de tanta insistência acabei aceitando, so de Jornalismo da UFMT, diz que um menino em razão da pressão fa- mas nosso namoro não durou um quando era criança já sentia mês, não era o que eu queria”. algo diferente acontecenMarina, 19 anos, também do, mas foi na adolescência assume que, já na infância Não me atraio por todas as que teve certeza que não era sentia atração por meninas. como as outras garotas, “as “Sempre as olhava, mesmo mulheres que conheço, não meninas ficavam falando sosentindo que aquilo era errabre meninos que achavam iné porque sou lésbica que do, pela minha criação catóteressantes, mas eu não sentia lica. Mas aos quatorze anos quero ficar com qualquer nenhuma atração por eles”. me apaixonei por uma gaEla conta que por volta dos rota e não teve como negar menina, respeito todos da treze anos começou a notar minha condição”. E assim mesma maneira que quero as meninas com mais interescomo Suzana, ela também se do que os meninos. “Foi namorou um garoto, e a hisser respeitada nessa época que passei a gostória, segunda relata, hoje tar de uma garota, mas para é motivo de risos, “namomim aquilo era errado, minha rar com um menino não foi criação conservadora contribuiu para miliar e de amigos. “Tinha dezesseis uma boa experiência, e por incrível me sentir desconfortável com esta si- anos, foi uma pressão da minha famí- que pareça, meu ex-namorado, hoje tuação”. Suzana acredita que demorou lia, eles adoravam ele, ficavam me co- é assumidamente gay, a vida é muito para se aceitar em razão de sua criação brando para namorá-lo, meus amigos engraçada”.
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LIBERTAÇÃO E ESTEREÓTIPOS Para Marina, entrar na universidade foi uma libertação, tanto que um mês antes do início das aulas decidiu cortar os longos cabelos. “Sempre quis ter os cabelos curtos, mas minha mãe nunca autorizou que eu cortasse, porém quando passei na universidade e fui morar sozinha, vi que seria a hora”. A estudante explica que queria começar uma outra etapa em sua vida, conhecer pessoas novas, e para isso ser completo “meu desejo era que me vissem do jeito que eu queria ser”. A estudante sabe que sua escolha acarreta consequências nem sempre boas, “sou o estereótipo da lésbica, me visto de maneira masculina, meu corte de cabelo é masculino, mas gosto de ser assim e ponto. As pessoas têm medo de se aproximar de alguém como eu por medo de serem rotuladas como sou, isso é triste”. O ônus para ela é sentir o receio de meninas em se aproximarem por ‘pensar’ que tem algum interesse sexual por elas. “Não me atraio por todas as mulheres que conheço, não é porque sou lésbica que quero ficar com qualquer menina, respeito todos da mesma maneira que quero ser respeitada”. Mas lamenta que muitas vezes perde possíveis amizades por preconceito daquelas que nem sequer dão a chance para criar laços, o que considera uma pena. Já Suzana, por não se encaixar no estilo típico do que se considera uma lésbica, sofre de outra maneira, segundo ela, com a ignorância de pessoas desinformadas. “Eu já ouvi várias vezes a pergunta ‘Você tem certeza que é lésbica?’, as pessoas ficam presas a um certo padrão de lésbica, que ela tem que ter um estilo mais masculino, isso é falta senso.” O que mais a irrita são comentários que considera desnecessários, “não sou muito vaidosa, me arrumo em ocasiões especificas,
coloco uma saia, me maquio, ponho salto, e quando nesse momento falo que sou lésbica, não canso de ouvir ‘Nossa! Mas você é tão bonita para ser lésbica’, me irrito muito com comentários deste tipo, a idiotice me tira do sério”, diz.
e entrei no banheiro. ” A estudante releva a atitude da funcionária, pois segundo ela, entende que cada pessoa tem ideologias e criações distintas, “mas não aceito o preconceito, nunca vou entender. No entanto prefiro me
O PRECONCEITO DE CADA DIA
esquivar de embates desgastantes, eles podem ficar maiores do que deveriam ser”. Para Suzana, cada um sofre o preconceito de uma forma, “não posso afirmar que eu sofro menos por não parecer lésbica, porque cada um sabe a dor que sente, claro que diferente da Marina, quando ando na rua as pessoas não praticam atos cruéis como fazem com ela”. Porém, ela descreve uma situação que passou e considerou desagradável, vivida na cidade de Catalão, em Goiás. “Morava neste município e tinha uma namorada lá, a cidade era pequena e muitos eram contra nosso relacionamento ”. A estudante relata que as duas estavam em uma lanchonete, de mãos dadas durante todo o tempo. “Uma família que estava sentada ao lado de nossa mesa se sentiu incomodada por estarmos de mãos dadas. Foram reclamar para os funcionários da lanchonete e tivemos que nos retirar do local”. Ela considera esta, uma das experiências mais ruins que já passou, “se sentir inferior é terrível”. Vasco Aguiar e Adailson Pereira
Marina já passou por diversas situações em que esteve diante de preconceito, ainda mais depois que decidiu adotar o estilo masculino para se vestir. “No final de 2016 estava dentro de um ônibus, em Araguaiana e os passageiros se recusavam a sentar ao meu lado. Diziam em tom de voz alto que estavam com medo de pegar a minha ‘doença’. Isso é cruel, não sou um animal para ter que passar por isto”, lamenta. Ela conta um outro caso, vivido na universidade em que estuda atualmente, “estava entrando dentro do banheiro feminino, e lá havia uma funcionária da limpeza trabalhando, ela pediu para que eu saísse de lá, pois não deveria usar o banheiro feminino, a contestei dizendo que eu era uma mulher assim como ela”. Marina relata que, a funcionária disse não se sentir à vontade em estar dentro de um banheiro feminino com uma lésbica. A estudante preferiu se retirar. “Para não causar mais atrito decidi sair dali. Fiquei do lado de fora, esperei que ela saísse
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Você sabia? No Brasil, a adoção de crianças e/ou adolescentes por casais homossexuais é sim possível. O estatuto da criança e do adolescente não faz nenhuma referência em sua seleção de processo de adoção sobre a sexualidade do casal. O que existe é a verificação psicológica e financeira do casal, sejam eles heterossexuais ou homossexuais.
Desde maio de 2013 o Brasil é um dos poucos países do mundo em que o casamento homoafetivo é permitido, segundo a resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A primeira operação de mudança de sexo ocorreu na União Soviética na década de 1970, mas durante 20 anos o sucesso da cirurgia foi mantido em segredo.
No mundo inteiro, tradicionalmente celebra-se o chamado Dia do Orgulho de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros – LGBT no dia 28 de junho. A significância do dia 28 de Junho é que marca o início do movimento moderno LGBT em prol da liberdade de expressão e igualdade de direitos deste segmento da população.
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São Paulo tem a maior parada gay do mundo! O movimento LGBT tem seu registro marcado no Guinness Book desde o ano de 2006. Atualmente o evento atrai mais de cinco milhões de pessoas por ano!
Em novembro de 1997, a cidade de São Francisco elegeu o primeiro político abertamente gay. Harvey Milk entrou para uma junta legislativa local. Morreu assassinado um ano depois.
Inicialmente a bandeira LGBT tinha oito cores, as seis atuais e mais duas, o rosa e o turquesa. A cada cor é atribuído um significado especifico e com o objetivo de definir a cultura, os interesses e todo o movimento. ROXO – Significa o espírito, o desejo de vontade e a força. AZUL – Significa as artes e o amor pelo artístico. VERDE – Simboliza a natureza e o amor pela mesma. AMARELO – Simboliza o sol, a luz e a claridade da vida. LARANJA – Simboliza a cura e o poder. VERMELHO – Significa o fogo, a vivacidade. Cores antigas: ROSA – Simboliza o sexo e o prazer carnal. TURQUESA – Simboliza a harmonia e a pacificação.
Cirurgias de mudança de sexo são realizadas pelo SUS desde 2008. Cena de beijo entre casais formados por homens (e por mulheres) apareceu em episódio da série ‘Star vs. as Forças do Mal’, do Disney Channel, nos EUA, em março de 2017.
Os comportamentos homossexuais também existem entre os animais não racionais, sejam eles mamíferos, aves ou insetos.
Só no ano de 1973 a ‘American Psychiatric Association’ retirou a homossexualidade da lista de distúrbios mentais.
No final de junho de 2015, o Supremo Tribunal norteamericano legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todos os estados do país. Já em Moçambique, a homossexualidade deixou de ser crime no início deste mês de julho.
Robeyoncé Lima foi a primeira transexual do Norte e Nordeste a poder usar nome social na carteira da OAB.
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Homossexualidade não é doença, mas homofobia sim! Depoimentos de jovens que foram vítimas de preconceito e discriminação Segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, só no ano de 2013 foram registrados pelo Disque Direitos Humanos 1.695 denúncias de 3.398 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 1.906 vítimas e 2.461 suspeitos.
JADER GOMES, 30 anos
As pessoas percebiam que eu não me comportava completamente como os meninos da minha idade. Eu não gostava do futebol, eu não ouvia as bandas de rock que os coleguinhas ouviam... Isso era o que bastava para em algum momento ouvir algum tipo de graça que de alguma forma me abalava e me deixava em alguma situação desconfortável que fosse. Me lembro de uma ocasião onde uns meninos levaram para a escola umas revistas de conteúdo +18. Um colega de classe jogou uma na minha mesa e anunciou para o resto da turma que a única revista que eu quis ver era a que tinha homem nu. Algumas pessoas riram e outras viram que era uma ‘armadilha’ de um adolescente fanfarrão para que eu me tornasse o foco da zoação. O que não esperavam era que eu ia cagar potes para tal situação e rebater dizendo que estranho mesmo era ele ter em casa revistas com “pepecas e pintos”. No final, ficou tudo bem. Mas o preconceito e a maldade estavam ali naquela situação.
HIGOR MENDES, 22 anos
Um dia eu estava acompanhando meu pai no mercado, que até então não tinha conhecimento sobre minha orientação sexual. Nesse dia ele resolveu conversar sobre alguns boatos que chegaram até ele sobre minha condição sexual. A princípio fiquei sem reação e quando achei que o assunto recém começado havia acabado, veio uma enxurrada de palavras e frases menosprezando algo que é natural, algo que eu não escolhi.
BRUNA MACHADO, 26 anos
Tive uma experiência com minha ex sogra. Ela não aceitava de forma alguma que sua filha fosse homossexual. Sempre a menosprezava com xingamentos e ameaças. Houve uma situação em que ela falou que tinha nojo da filha por ser o que era, e que se a filha se assumisse e fosse morar com qualquer mulher, ela iria fazer de tudo pra tirar o filho da minha ex. Ameaçou e disse que iria atrás do pai da criança para pedir a guarda.
MATHEUS BURJACK, 23 anos
Durante a vida inteira caminhei sob o olhar julgador de todas as pessoas a minha volta. Me lembro de uma vez, quando criança, meu pai estava com os amigos dele na porta de casa, e em certo momento me pediram para caminhar de modo que ficasse de costas pra eles. Andei. e quando olhei para trás, estavam rindo e falando “é ... tem jeito não” (claramente falando do meu modo de andar) me calei e sabia exatamente do que se tratava a chacota.
É um serviço de utilidade pública da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), vinculado a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, destinado a receber demandas relativas a violações de Direitos Humanos, em especial as que atingem populações com vulnerabilidade acrescida, como: crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, LGBT, pessoas em situação de rua e outros, como quilombolas, ciganos, índios, pessoas em privação de liberdade.
Me senti a pior pessoa do mundo, sem reação e com a privacidade invadida. Eu só queria correr dali porque o que eu mais temia estava acontecendo. Depois disso nos afastamos.
O serviço inclui ainda a disseminação de informações sobre direitos humanos e orientações acerca de ações, programas, campanhas e de serviços de atendimento, proteção, defesa e responsabilização em Direitos Humanos disponíveis no âmbito Federal, Estadual e Municipal.
Hoje temos pouco contato. Pior que não ser aceito pela sociedade e não ser aceito pela sua própria família.
O Disque Direitos Humanos – Disque 100 funciona diariamente, 24 horas, por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar 100. As denúncias podem ser anônimas, e o sigilo das informações é garantido, quando solicitado pelo demandante.
MONIQUE, 25 anos
Tive minhas redes sociais “hakeadas” para minha mãe ter acesso às minhas conversas. Hoje minha mãe me respeita por ser homossexual, mas lembro que na época que isso aconteceu ela me colocou sentada na sua frente e leu todas as minhas conversas em voz alta, enquanto eu estava aos prantos. Nunca me senti tão envergonhada por simplesmente ser eu. Eu não via problema nenhum em ser como eu era/sou, até por que não tinha problema nenhum comigo.
Qual o horário de funcionamento?
A Ouvidoria e o Disque Direitos Humanos - Disque 100 são responsáveis por receber, examinar e encaminhar as denúncias de violações de direitos humanos, sem as informações para registro, a verificação da situação de violação só poderá ser averiguada pelos órgãos competentes da rede de direitos humanos, com informações suficientes de onde encontrar a vítima e de como é a violação. O que acontece após o registro da denúncia? As denúncias recebidas são analisadas e encaminhadas aos órgãos de proteção, defesa e responsabilização em direitos humanos, no prazo máximo de 24 horas, respeitando a competência e as atribuições específicas, porém priorizando qual órgão intervirá de forma imediata no rompimento do ciclo de violência e proteção da vítima. Fonte: Secretaria Especial de Direitos Humanos.
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e para uma pessoa “aceita pelas normas da sociedade” é difícil encontrar emprego, imagina para o grupo LGBT? E isso não é encarado apenas nas ruas. Desde sua formação inicial, a não aceitação familiar e a falta de apoio governamental, eles sofrem total desprezo na hora de encarar o mercado de trabalho. Katlyn Kayte, 34 anos, moradora de Goiânia, transexual homossexual, casada há 03 anos, sabe muito bem como é difícil conseguir um emprego digno. “Fiz seleção em 20 empregos, passei em todos. Mas a partir do momento que me viram pessoalmente, falaram que iriam entrar em contato comigo e até agora nada. Até em telemarketing está difícil”. O preconceito em pleno século 21 nos faz repensarmos se realmente a sociedade passou a aceitar a opção sexual e/ou a identi-
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dade de cada cidadão. Assim como Katlyn, milhares de transexuais, travestis, gays e lésbicas acabam não conseguindo um emprego digno. Sem perspectiva de um futuro promissor e falta de dinheiro para seu próprio sustento, a grande maioria encontra na prostituição uma forma de “acolhimento” e “aceitação” do empregador para com o candidato. Conforme o artigo 1º da Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define discriminação como: “a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados”. Porém, não é dessa forma que vemos na prática. Além de colocarem suas vidas em risco devido as doenças sexualmente transmissíveis, elas ainda correm um grande risco de serem agredidas pelos seus clientes. E isso não são casos reservados. O Brasil está entres os países que mais matam travestis e transexuais no mundo. Entre Janeiro de 2008 e Março de 2014, foram registradas 604 mortes no país, segundo pesquisa da Organização não Governamental Transgender
Europe (TGEU), Rede Europeia de Organizações que apoiam os direitos da população transgênero. Segundo Luis Antônio Bitante Fernandes “A própria condição de transexuais e travestilidade já colocam pessoas essas pessoas à margem da sociedade. Isso não significa que elas são menores ou inferiores como a sociedade as veem, mas sim, faz parte de um processo pelo qual “outros” não conseguem enxergar a diferença como parte de um todo.” Paollye Castiel, 23 anos, transexual, moradora de Barra do Garças-MT, é cabelereira e modelo, mas diz que quando os dois serviços não dão lucro, acaba recorrendo ao “Book Rosa”. “A própria cidade/sociedade destina o lugar delas - transsexuais e travestis; o lugar da obscuridade, do não visto, da subalternidade, do não reconhecimento, do trabalho discriminado e violento, assim, a elas é destinado o trabalho da venda do corpo, enquanto objeto de desejo e enquanto objeto de curiosidade, de fetiche”, afirma Bitante. Em uma pesquisa feita na cidade de Barra do Garças-MT, pelo grupo de pesquisa GIS, no qual Bitante é coordenador, foi observado que é dado como direito do exercício do mercado de trabalho setores como: cabelereira ou promotora de festas. Fora isso, atualmente existe apenas uma travesti na cidade que possui vínculo de trabalho conquistado por concurso público. Monique Mallmann, lésbica, 20 anos, é moradora de Barra do Garças e atualmente trabalha em uma empresa da cidade. Ela diz que no seu atual emprego não há nenhum tipo de discriminação, pelo contrário, ele acolhe pessoas com diversos segmentos. “A empresa onde trabalho é livre de preconceitos e não me refiro apenas ao
Monique Mallmann
O grupo LGBT e as dificuldades no mercado de trabalho
grupo LGBT. Ela acolhe diversas pessoas e as aceitam exatamente como são. O que importa é nós possamos mostrar a capacidade profissional que temos, o que infelizmente não acontece na maioria das empresas.” Ela ainda afirma que o mercado de trabalho é um lugar em que o grupo LGBT é taxado como incapazes apenas por não se enquadrarem no padrão da sociedade. Pensando em reduzir o número de travestis e trans nas ruas, algumas empresas criaram sites que redirecionam as pessoas interessadas a acharem um emprego. O site “Transempregos”, por exemplo, já conta com cerca de três mil pessoas cadastradas e anúncios de mais de 50 mil empresas. O cadastro no site é totalmente gratuito.
Essa ferramenta tem servido como ponte tanto para as pessoas interessadas em trabalhar quanto para os empregados. Já o site “Transerviço” é voltado ao profissional trans ou travesti que quer ofertar seu trabalho e para pessoas que queiram contratar os serviços desses profissionais. O objetivo do site é criar um banco de profissionais e estabelecimentos que atendam essa população sem discriminação. Apesar de alguns projetos interessantes que estão à frente de algumas empresas, a luta não pode parar por aqui. Ainda é preciso que tenhamos leis de inclusão à população LGBT. Só então poderemos dizer que o mercado de trabalho é para todos. Bianca Carvalho
Empresas de tecnologias que abrem espaço para a inclusão do profissional LGBT 01. Accenture Presente no ranking de melhores empresas de tecnologia pelo mundo, a Accenture possui até uma página especial de carreira para falar sobre suas políticas e seu ambiente de trabalho para LGBTs. 02. Apple A companhia liderada por Tim Cook, também homossexual, não poderia ficar de fora quando se fala em políticas contra a discriminação de profissionais gays, lésbicas, bissexuais e trans. 03. AT&T Mais do que apenas mudar seu logotipo em comemoração à legalização do casamento gay nos EUA, a AT&T também foi eleita como uma das melhores empresas para o público LGBT trabalhar. A companhia ainda conta com o grupo LEAGUE, o qual ajuda a proporcionar um ambiente de suporte para empregados LGBT se desenvolverem profissionalmente. 04. Cisco Systems A Cisco Systems também se compromete em criar o melhor ambiente com políticas de respeito aos funcionários gays, bissexuais, transexuais e lésbicas. Na companhia, a organização dedicada a iniciativas para orientação e criação de políticas para profissionais LGBT é o GLBT&A. 05. Dell A Dell conta com um programa de incentivo à diversidade chamado PRIDE. Segundo a empresa, o grupo de funcionários costuma se reunir periodicamente para discutir formas de ampliar a inclusão de GLBTs (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros). 06. eBay Entre as gigantes da internet, o eBay é uma das companhias
que mais contam com diversidade em sua força de trabalho – na frente do Google e Facebook, por exemplo. A empresa também já foi eleita pelo Glassdoor como uma das melhores organizações para funcionários LGBT. 07. Facebook Apesar de neste ano o Facebook ainda não ter alcançado boas metas em diversidade, a companhia garante um local de trabalho e políticas que defendam os direitos LGBT. O CEO da companhia, Mark Zuckerberg, chegou a participar da Parada do Orgulho LGBT em 2013 junto com mais 700 funcionários e lançou, no dia em que os EUA autorizaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a ferramenta “Celebrate Pride”, para que qualquer usuário da rede social pudesse manifestar seu apoio ao movimento LGBT mudando a foto de seus perfis. 08. Google Assim como o Facebook, o Google ainda não possui o melhor índice de diversidade em seu quadro de funcionários. No entanto, a gigante da internet promete aumentar o número de mulheres e minorias em suas equipes e afirma que possui políticas para motivar, respeitar e incluir o público LGBT em sua força de trabalho. 09. Groupon Além de alcançar boa pontuação pelo Índice de Igualdade Corporativa (CEI), o Groupon também apareceu na lista do portal Glassdoor como uma das melhores companhias para LGBTs trabalharem. 10. HP A HP possui um grupo de funcionários dedicados à discussão sobre diversidade e inclusão desde os anos 1970, época em que foi criada uma política por igualdade de oportunidades na empresa.
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Direitos LGBT: devagar, mas na direção certa Ainda falta muito para que, de fato, a sensação de igualdade e dignidade - pilares da Constituição Federal de 1988 - seja alcançada por LGBT’s perante o restante da sociedade. Apesar disso, nosso ordenamento jurídico já assegura direitos importantes para essa parcela da população brasileira.
MERCADO DE TRABALHO o mercado de trabalho, por exemplo, medidas de incentivo à contratação de LGBT’s já são adotadas por grandes empresas. A rede de hipermercados Carrefour promove a contratação de transexuais e oferece cursos de capacitação em varejo para aumentar as chances de ingresso dessas pessoas no mercado de trabalho. A ONU (Organização das Nações Unidas) também desenvolve projetos de inclusão de LGBT’s no mercado de trabalho. A organização criou, inclusive, um manual (disponível em seu site) que incentiva a cultura de inclusão de LGBT’s por parte de todos os tipos de empresas. Com base em depoimentos de pessoas que passaram por diversos tipos de discriminação no ambiente de trabalho, a cartilha da ONU “Construindo a igualdade de oportunidades no mundo do trabalho: combatendo a homo-lesbo-transfobia” oferece diretrizes para a promoção dos direitos humanos a LGBT’s no mundo profissional.
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De qualquer modo, pessoas LGBT’s já estão ganhando espaço, mesmo em setores historicamente mais elitistas da sociedade brasileira. Em janeiro de 2017, a OAB/SP fez o primeiro registro no país de uma advogada travesti. Márcia Rocha, advogada e ativista de 51 anos de idade, poderá exercer a advocacia com seu novo nome social, direito concedido pela OAB a advogados travestis e transexuais no ano passado. UNIAO ESTÁVEL, CASAMENTO E FAMÍLIA A lei brasileira não permite expressamente o direito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas também não o proíbe. O artigo 226 da Constituição Federal, no parágrafo § 3º, diz que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Embora a Constituição cite apenas “o homem e a mulher” como os dois componentes de uma união conjugal, não há nenhuma vedação ou disposi-
tivo legal que exclua a possibilidade de um casal homoafetivo formalizar sua união. Apesar disso, muitos tribunais negaram esse direito aos casais homoafetivos desde o início da vigência da Constituição Federal, em 1988. Só em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu que casais de mesmo sexo devem ser reconhecidos enquanto família, sendo garantidos a eles os mesmos direitos dos casais heterossexuais (ou seja, os casais de mesmo sexo tem o direito a conversão da sua união estável em casamento, bem como, o direito a adoção). A decisão do STF também destacou que, no âmbito do serviço público e nas empresas privadas, deverão ser garantidos os mesmos direitos dos casais heterossexuais aos casais homossexuais, como a adesão à planos de saúde de forma conjunta, a licença gala, entre outros direitos. Seguindo o que já havia decidido o Ministério da Fazenda, o STF assegurou que casais de mesmo sexo agora também tem o direito a declaração de imposto de renda conjunta. Seguindo o mesmo posicionamento do STF a respeito do casamento homoafetivo, o Superior Tribunal de Justiça declarou que “a união estável entre pessoas do mesmo sexo pode ser convertida em casamento civil se assim requererem as partes”. Em consonância a esta decisão, vários cartórios espalhados pelo Brasil agora já possuem procedimento próprio de conversão da união estável homoafetiva em casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Por conta dessas importantes decisões, o Brasil registrou, nos anos se-
guintes, um aumento significativo no número de casamento entre homoafetivos. Em 2014, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou um crescimento de 31% nos números de casamento entre LGBT em comparação com 2013. Foram, no total, 4.854 uniões homoafetivas em todo o país (a maioria - 60,7% - estava concentrada na região Sudeste). Embora os casais homoafetivos ainda sejam amparados apenas pela jurisprudência dos Tribunais Superiores e por orientações de órgãos sem poder normativo, já existe uma corrente no Congresso Nacional para editar normas específicas para LGBT’s. Os deputados federais Jean Wyllys (PSOL) e Erika Kokay (PT) elaboraram o Projeto de Lei 5120/2013, ainda em trâmite no Congresso, que prevê a alteração do Código Civil para reconhecer o casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, no dia 8 de março, outro projeto (PLS 612/2011), que pretende alterar o Código Civil para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo e possibilitar a conversão dessa união em casamento. A caminhada para a sua aprovação final ainda é longa, pois o projeto poderá seguir para análise da Câmara dos Deputados se não houver recurso para votação em plenário. PENSÃO ALIMENTÍCIA E PENSÃO POR MORTE Paralelamente à decisão sobre o casamento entre LGBT’s, o STF passou a reconhecer, posteriormente, outros direitos concernentes à relação conjugal, como o direito à pensão alimentícia e a pensão por morte. “Ninguém pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por conta de sua orientação sexual.” Esse foi o entendimento do ministro Celso de Mello, do STF, ao conceder a um homem, em uma ação julgada pela Corte, o direito à pensão pela morte do companheiro.
De acordo com o ministro, é “arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual”. Na decisão, Celso de Mello ressaltou que o silêncio do Poder Legislativo sobre o tema gera “um quadro de (inaceitável) submissão de grupos minoritários à vontade hegemônica da maioria”. Com base nesse entendimento, o STJ também autorizou , além da pensão por morte, a partilha de bens em caso de separação conjugal homoafetiva. Em 2015, a Corte considerou também que um dos parceiros pode pedir pensão alimentícia ao outro depois da separação. A decisão do STJ serviu para assegurar o direito à alimentos em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável, em que o parceiro propôs ação cautelar de alimentos, julgada extinta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em razão da “impossibilidade jurídica do pedido”. O tribunal paulista entendeu que a união homoafetiva deveria ser tida como sociedade de fato, ou seja, apenas uma relação negocial entre pessoas, e não como uma entidade familiar. Tal entendimento, afirmou o relator do caso no STJ, Luis Felipe Salomão, “está em confronto com a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do STJ”. O ministro destacou que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.694, prevê que os parentes, os cônjuges ou companheiros podem pedir uns aos outros alimentos, na qualidade de sujeitos ativos e passivos dessa obrigação recíproca, e assim “não há porque excluir o casal homossexual dessa normatização”. REGISTRO PARENTAL NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA E ADOÇÃO DE FILHOS POR CASAIS HOMOAFETIVOS Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento
52/2016, que determina que os filhos gerados por reprodução assistida serão registrados, independentemente de decisão judicial, desde que os pais das crianças estejam presentes. A exceção se dá para casais casados ou em união estável - nesse caso, o registro pode ser feito na presença de apenas um dos dois. Da mesma forma, é permitido o registro duplamente materno de filhos em caso de reprodução assistida promovida por casais homoafetivos. Alguns estados brasileiros já têm legislações específicas sobre o registro de filhos de casais homossexuais gerados por reprodução assistida, como o estado de Pernambuco, que editou o Provimento 21/2015, que regulamenta essa possibilidade. O dispositivo também admite a multiparentalidade, tudo isso sem a necessidade de decisão judicial. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul publicou, , em 2013 o Provimento 80, onde entendeu não haver impedimento legal ao registro de filhos por dois pais ou duas mães. Argumentou que a reincidência de casos nesse sentido justifica o ato, além de atender aos princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da igualdade, da liberdade, da intimidade e da proibição de discriminação. Quanto à adoção de filhos por casais homoafetivos, não há nenhuma lei no Brasil que proíba ou impeça tal medida. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que regulamenta o procedimento da adoção no país, não cita, em nenhum momento, o gênero dos cônjuges adotantes. O Estatuto apenas determina que a adoção só pode ser concedida a parceiros que sejam casados ou mantenham união estável. Contudo, como não há previsão legal explícita que autorize a adoção por um casal homoafetivo, muitos juízes ainda negam o direito à adoção para essas pessoas. De qualquer modo, a negativa ao direito à adoção contraria a mencionada decisão do STF, que reconheceu, por unanimidade, a existência de mais um tipo de entidade familiar, e concedeu direitos Abril • 2017
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de casais convencionais aos casais homoafetivos, entre eles, o direito à adoção de filhos. SAÚDE O Ministério da Saúde assegurou, por meio da Portaria 2.836 /2011, a política de saúde integral da população LGBT. A Portaria instituiu metas a serem seguidas por entidades públicas de saúde para garantir maior assistência e igualdade a pessoas homoafetivas no SUS (Sistema Único de Saúde). Entre as metas apresentadas pelo Ministério da Saúde, estão a necessidade de: ampliação do acesso da população LGBT aos serviços de saúde do SUS; qualificação da rede de serviços do SUS para a atenção e o cuidado integral à saúde da população LGBT; garantia de acesso ao processo transexualizador - intervenção cirúrgica para mudança de sexo - na rede do SUS; e a definição de estratégias setoriais e intersetoriais que visem reduzir a morbidade e a mortalidade de travestis. O Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde foi regulado também pelo Ministério da Saúde, na Portaria n.º 457/2008. O procedimento cirúrgico para mudança de sexo é oferecido nas principais cidades do país e as informações sobre esse serviço podem ser obtidas no site Portal da Saúde, do Governo Federal. COMBATE À VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/ PR) é uma das principais entidades que atuam no combate à violência homofóbica e transfóbica no Brasil. A missão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), descrita em seu site, é a “de desenvolver políticas públicas de enfrentamento ao preconceito e à discriminação contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT).” Essa missão é executada pela Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (SNPDDH) por intermédio das co-
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ordenações-gerais de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. A SDH oferece serviços como o Disque 100 (telefone para denúncias de casos de violência e violações de direitos humanos) e elabora relatórios anuais sobre a violência contra LGBT’s no Brasil. De acordo com os dados do 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica de 2012, publicado pela Secretaria dos Direitos Humanos, foram quase 10 mil (9.982) denúncias de violações de direitos humanos relacionadas à população LGBT registradas pelo governo federal. Em 2011, esse número não chegou a sete mil (6.809) denúncias.
Ainda segundo a SDH, a cada uma hora uma pessoa homoafetiva sofre algum tipo de violência no Brasil. Em 2015, o Disque 100 foi acionado 1.983 vezes para relatos de denúncias contra a população LGBT, o que corresponde a um aumento de 94% em relação a 2014. O CNJ também promove ações de apoio e prevenção de casos de violência contra LGBT’s. O 1º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos, realizado pelo órgão, premiou o desembargador Danniel Gustavo Bom-
fim da Silva, do Tribunal de Justiça do Acre, por uma de suas decisões que estendeu as garantias da Lei Maria da Penha à uma vítima transexual (é mais comum que a Lei Maria da Penha seja empregada para amparar mulheres vítimas de violência doméstica). Apesar de todas essas medidas de proteção e combate à violência contra LGBT’s, a lei brasileira ainda não possui dispositivos legais específicos para punir casos de violência contra esse grupo de indivíduos, como a homofobia e a transfobia (nenhum desses tipos de violência é tipificado como crime na lei penal). PERSPECTIVAS FUTURAS Os projetos de lei se desenvolvem de maneira lenta no Congresso, e o ordenamento jurídico brasileiro ainda não produziu nenhuma norma específica para regulamentar direitos voltados à população LGBT, apesar das importantes conquistas dessa minoria. Tudo o que existe até agora são decisões do Poder Judiciário e resoluções de órgãos como o CNJ que concedem direitos aos LGBT, mas que ainda podem ser questionadas por juízes de alguns Estados por não constarem expressamente na Constituição Federal. De qualquer modo, se analisarmos do ponto de vista legalista, como fazem alguns tribunais pelo país, também não há proibição explícita aos principais direitos à homoafetivos em nenhuma lei vigente no Brasil. Portanto, esses direitos podem, sim, ser concedidos, apesar das lacunas da lei. O que não pode haver é a omissão de autoridades e a relutância em promover direitos e igualdade a todas as pessoas, independente de fatores como a opção sexual, como bem determina a Constituição Federal de 1988. Não se trata de gostar ou aprovar a opção sexual e os hábitos de outras pessoas, mas, sim, de aplicar a elas, como a todos os outros cidadãos, os direitos fundamentais já assegurados pela Constituição, enquanto as leis específicas para LGBT’s se desenvolvem no país. Arthur Bilego Abril • 2017
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Transformação J
ulian Asaff Azevedo, 25 anos, morador de Barra do Garças-MT, estudante do curso de Educação Física da UFMT, nasceu em um corpo feminino, mas nunca se identificou com ele. Desde criança, sempre gostou das mesmas brincadeiras de meninos e, ainda jovem, começou a sentir atração por mulheres. Apesar de não saber o que era ser transexual, tinha a impressão que ele não era como as outras crianças do gênero feminino. A auto aceitação não foi nada fácil. “Foi muito difícil, parecia ir contra a minha crença. Era como se Deus houvesse errado. Mas não consegui esconder de mim por muito tempo”. Com a família não foi diferente. Além do preconceito, Julian também teve que lidar com as piadinhas que vinham de dentro da própria casa e a rejeição da mãe “quando minha mãe descobriu que eu iria me assumir trans, ela pediu para eu tirar o meu sobrenome, pois tinha tido uma filha e não um filho. Ainda chegou a dizer que naquele momento eu tinha morrido para ela”. Antes de começar o tratamento de mudança de sexo, Julian teve ajuda de um professor na faculdade “ele trabalha com os LGBT e a tese do seu doutorado é sobre professoras trans no Brasil”. Julian comenta que seu professor o ajudou muito, pois naquela época ele ainda encontrava-se em
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Julian Asaff Azevedo
um momento de descoberta e precisava entender mais sobre o que era a transexualidade. Em 2015, aos 23 anos, Julian começou o processo de Redesignação Sexual. Seu tratamento é feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS aqui de Barra do Garças não oferece esse recurso, o que eles fazem é encaminhar o paciente para algum ambulatório que seja capacitado para fazer esses procedimentos e pagar as passagens de ônibus. Atualmente, seu tratamento é feito na cidade de Uberlândia-MG. Segundo ele, essa rotina chega a ser desgastante “a viagem é muito cansativa, porque são mais de 14 horas dentro de um ônibus. Assim que chego em Minas, tenho que fazer as consultas e exames. Tem vezes que volto ainda no mesmo dia”. Mas, mesmo assim ele não vê motivos para reclamar “sem sombra de dúvidas eu faria quantas vezes fosse preciso”. O SUS é responsável por realizar o tratamento psicológico, hormonal e cirúrgico desde a publicação da Portaria Nº 457, de agosto de 2008. Segundo o site do Portal do Brasil, até 2014 foram realizados 6.724 procedi-
mentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos em quatro serviços habilitados no processo transexualizador no SUS. Em 2016 houve um caso inédito em Mato Grosso, mais especificamente na cidade de Sorriso. O juiz da 3º Vara da Comarca da cidade, Anderson Cadiotto, autorizou a mudança do nome social e também de gênero (feminino para masculino) de uma criança de 09 anos. Em 2012, antes da sentença, os pais conseguiram um veredito Judicial para que a criança fosse tratada como menina e que, também, pudesse usar o uniforme escolar feminino. Reflexão do repórter: além de ter sido um caso inédito, também vejo como uma vitória! A cada dia, pais, familiares e amigos apoiam a decisão de uma criança e/ou adolescente a se tornarem o que realmente são. E isso é fundamental! Quando a aceitação e o apoio vêm de berço, o processo de mudança de gênero passa a ser menos agressor e mais acolhedor.
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Na escola, Julian sofria discriminação dos colegas, mas não se importava, pelo contrário “na escola sempre foi muito tranquilo porque o máximo que faziam era me chamar de homem e eu adorava isso” Os transexuais que optam por fazer a cirurgia de mudança de sexo passam por tratamentos tanto psicológicos quanto físicos. São necessários dois anos de tratamento hormonal e psicológico e o candidato deve ter mais de 21 anos para, enfim, a realização da cirurgia. Julian ficou na fila de espera por pouco tempo “levei 03 meses para começar a ser atendido, mas acontece que fui indicado por alguns conhecidos e por isso que foi mais rápido que o normal.” Julian optou por fazer a mastectomia (redução da mama) e a retirada do útero “o que mais me incomoda mesmo são os “intrusos” (seios, últero).” Ele ainda não quer fazer a colocação
de um pênis, pois acha a cirurgia muito arriscada no Brasil. “Não conheço ninguém que tenha feito a cirurgia, até porque os próprios médicos não te dão 100% certeza que, após a cirurgia, o paciente sentirá prazer. Por isso preferi não arriscar.”, afirma. Ele explica como funcionam os procedimentos pelo SUS: “Começamos com o clínico geral, passamos pelo psicólogo e logo após pelo endocrinologista. O psicólogo é, no mínimo, uma vez por mês. Já o endócrino pode ser a cada três meses, pois esse é o momento em que é feito os exa-
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mes para ver se os hormônios estão normais. Também faço consulta com uma ginecologista uma vez por ano”. Quando perguntado como são as consultas com o psicólogo, ele explica “quando você trabalha com psicólogo da área de sexologia tudo é mais fácil, pois você não tem que se justificar porque se identifica como um trans.” As mudanças no corpo de Julian já começaram a surgir “[...] já estou observando muitas mudanças, minha voz, meu cabelo está com umas entradas enormes (risos), mas tudo devido aos hormônios. Quem me conhece recentemente, não acha que sou um homem trans.” No Brasil já é possível uma pessoa trans ter o nome social nos documentos e, para isso, não é necessário que tenha feito a cirurgia de redesignação sexual. Em 28 de abril de 2016, foi aprovado o Decreto de Lei nº 8.727 que determina sobre o uso do nome social de travestis e de transexuais. Com essa aprovação, os cidadãos podem optar pelo nome social em identidades, cadastramento, formulários. Ou seja, eles basicamente passaram a ter os mesmos direitos dos cisgêneros. Julian já está com o processo em andamento para a retificação do nome e sexo. A espera é em média de dois a
Andrew Iosef Rodrigues
quatro anos. Ele será o primeiro homem trans de Barra do Garças a realizar esse procedimento. ”Primeiro junta-se todos os laudos e documentação pessoal e encaminha para o Ministério Público para analisarem e verificarem se falta alguma documentação. Caso esteja tudo conforme o solicitado, o Juiz é responsável por decidir se fica ou não autorizado o procedimento da mudança da documentação”, explica. Julian comenta o modo como a sociedade encara isso “a vida de um trans é tranquilo, desde que ele seja “hormonizado”, porque a partir do momento que você passa a se parecer mais como um homem cisgênero, a sociedade te vê com outros olhos”. Andrew Iosef Rodrigues, 26 anos, é morador da cidade de Pontal do Araguaia-MT e se considera um homem transexual heterossexual. Ele não se sente à vontade em dizer seu nome de nascença “me incomodo, embora eu ouça o meu antigo nome
com frequência. A “fulana” foi alguém que eu nunca quis ser. Quiseram ela e ela existiu por muitos anos. Eu agradeço e serei grato eternamente por todo cuidado que teve ao me proteger. Mas de agora em diante eu me assumo como Andrew.” Desde os 10 anos de idade, Andrew não entendia muito bem porque era uma menina, já que se sentia como sendo um menino. Ele relata um episódio bastante marcante em sua vida: “Lembro-me que meu pai tinha uma plantação de hortaliças e nela eu corria só de bermuda. Mas o interessante não era correr de bermuda, e sim o fato de que, naquele dia, eu usava uma cueca do meu irmão mais novo”. (Nesse momento, essa lembrança de Andrew me remeteu diretamente ao filme “Tomboy”. *MOMENTO SPOILER* em uma cena, a menina que se passa por um menino, tira a blusa e começa a jogar
futebol e a cuspir no chão como os outros garotos da vizinhança). Andrew diz que sempre foi muito seguro em suas decisões. Mesmo sendo de uma família bastante religiosa e passado por momentos muito difíceis, ele não deixou de correr atrás da sua própria identidade. Aos 24 anos que Andrew começou a entender um pouco mais sobre Transexualidade que, inclusive, foi introduzida pelo no nosso colega Julian, o primeiro homem transexual assumido em Barra do Garças-MT. Porém, só no final de 2016, com seus 26 anos, que Andrew se assumiu como um homem trans. “Não consegui colocar o homem que sou, de imediato, para fora. Eu ainda era muito medroso, ligava muito para questões religiosas [...]”, relata. Depois que começou a conhecer mais sobre o assunto em livros, pela internet e pelo WhatsApp (existe um grupo de pessoas trans da região do Araguaia que ajudou ele a conhecer outros jovens que também estão passando por momentos de reconhecimento, aceitação
e mudanças), Andrew se sentiu mais aliviado. Todas aquelas dúvidas, incertezas e desconhecimento que ele tinha desde aos 10 anos de idade não era nenhum tipo de aberração. Atualmente Andrew é um Pré T, ou seja, ele ainda não faz o uso de hormônios, mas já passou por um clínico geral e está na fila do SUS para a consulta com um endocrinologista. Ele está na fila de espera desde Janeiro/2017. Assim como Julian, Andrew não pensa em fazer a faloplastia (colocação de um pênis), pois também considera uma cirurgia bastante delicada. Seu principal objetivo, no momento, é o tratamento hormonal e a mamoplastia masculinizadora (retirada da mama). Quando perguntado se tem medo do futuro, Andrew responde: “Tenho medo de muitas coisas, mas do futuro não. Eu não quero viver como realmente sou. Terá obstáculos e não será nada fácil, mas estou disposto a enfrentar tudo para não voltar a me esconder”. Bianca Carvalho
Reflexão do repórter: é muito interessante analisar que muitas pessoas acham que ser transexual está relacionado ao desejo sexual do indivíduo. Mas é algo diferente disso: ser trans é ter uma identidade de gênero diferente daquela que lhe foi dada a partir do reconhecimento do seu sexo biológico. Nascer com vagina não quer dizer que o gênero daquela pessoa será feminino. Da mesma forma que nascer com pênis não decide se a pessoa terá o gênero masculino.
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Conheça famosos transexuais! Tammy Miranda está na lista de pessoas que se reconheceram como transexuais. Definido como homem trans heterossexual, o ator, cantor e ex-modelo é um dos casos mais famosos do Brasil. Antes de se assumir como homem trans, Tammy era modelo e chegou a posar para as revistas “PlayBoy” e “Sexy”. A repercussão da notícia foi gigantesca, pois Tammy passou a se definir totalmente com o seu oposto: cortou os longos cabelos, começou a tomar hormônios masculinos, fez a mamoplastia, deixou a barba crescer e assumiu um relacionamento com uma mulher.
A cartunista Laerte Coutinho assumiu sua transexualidade e sua bissexualidade. Laerte diz ter se descoberto após uma amiga comentar sobre seu personagem Hugo que se travestia de mulher. A partir de então ele não via motivos para manter aquilo em segredo e resolveu viver publicamente como trans.
Lea T é uma modelo e mulher trans. Embora ela não viva mais no Brasil, o mundo inteiro a conhece como a modelo transexual brasileira. Lea fez tratamento com hormônio, colocou prótese nos seios e também fez a cirurgia de redesignação sexual. Em sua última entrevista assumiu ter sentido prazer só depois de mudar de sexo.
A atriz americana Laverne Cox cativou e encantou o mundo no papel da presidiária Sophia Burset, da série “Orange is the new black”. Após sofrer muito bullying, agressões físicas e até tentar suicídio por causa da sua sexualidade, ela foi a primeira pessoa transexual a ser indicada ao Emmy, principal premiação da TV americana, e a aparecer na capa da revista americana “Time”.
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Preparados para a pipoca, refrigerante e assinatura vitalícia no Netflix? Separamos 10 filmes que abordam, cada um com sua forma única, a orientação sexual e identidade de gênero nas mais diversas formas. Vamos lá?
HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO (2014) O primeiro filme para entrar na sua lista de favoritos é “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”. Sim, vamos dar valor ao nosso cinema brasileiro! Esse é daqueles filmes que dá vontade de pedir para o diretor dar continuidade eterna. Envolvente e com um elenco jovem e carismático, o filme conta a história de Leonardo, um adolescente cego, que tenta lidar com sua mãe super protetora ao mesmo tempo em que busca sua liberdade e independência. Quando Gabriel chega na cidade e começa a estudar na mesma escola de Leonardo, novos sentimentos começam a surgir, fazendo com que ele descubra mais sobre si mesmo e sua sexualidade.
CUATRO LUNAS (2016) Cuatro Lunas conta histórias que abordam diferentes personagens, com o mesmo dilema e que no fim acabam se cruzando. Ele é um filme que fala muito sobre a questão do amor e da auto-aceitação. Um menino de onze anos se esforça para manter em segredo o afeto que sente pelo primo. Dois amigos de infância se reencontram adultos e iniciam um relacionamento que se complica quando um deles sente medo de ser descoberto. Um longo relacionamento entre dois homens é abalado com a chegada de um terceiro. E um homem de idade com família que é obcecado por um prostituto e tenta levantar dinheiro para pagar a experiência.
XXY (2008) Alex nasceu com ambas as características sexuais. Tentando fugir dos médicos que desejam corrigir a ambiguidade genital da criança, seus pais a levam para um vilarejo no Uruguai. Eles estão convencidos de que uma cirurgia desse tipo seria uma violência no corpo de Alex e, com isso, vivem isolados numa casa nas dunas. Até que, um dia, a família recebe a visita de um casal de amigos, que leva consigo o filho adolescente. É quando Alex, que está com 15 anos, e o jovem, de 16, sentem-se atraídos um pelo outro.
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MILK – A VOZ DA IGUALDADE (2008) Cativante, emocionante e com um final de deixar escorrer lágrimas! Milk, a voz da igualdade, conta a história de um cara determinado que decide fazer algo importante em sua vida. Ele abre uma loja de câmera e ajuda a transformar a área em um ponto de encontro para gays e lésbicas. Ele também se torna o primeiro homossexual assumido da nação eleito para um cargo público. Porém sua felicidade tem curto prazo, pois no ano seguinte é morto a sangue frio.
TRANSAMÉRICA (2006) Bree Osbourne é uma orgulhosa transexual de Los Angeles, que economiza o quanto pode para fazer a última operação que a transformará definitivamente em mulher. Um dia ela recebe um telefonema de Toby, um jovem preso em Nova York que está à procura do pai. Bree se dá conta de que ele deve ter sido fruto de um relacionamento seu, quando ainda era homem. Ela, então, vai até Nova York e o tira da prisão. O único problema é que Toby não sabe que Bree é seu pai. Transamerica tem uma narrativa surpreendente que mostra o relacionamento que cria forma a medida que pai e filho se conhecem.
MINHA VIDA EM COR DE ROSA (1997) TOMBOY (2011) “Tomboy”, é daqueles que de primeira você se apaixona. Principalmente pela sua protagonista: uma criança linda, delicada, mas que ao mesmo tempo não se identifica com as normas que a sociedade tenta impor a ela. O filme conta a história de Laurie, uma menina de 10 anos que gosta de se vestir como garoto. A criança tem uma dificuldade muito grande de se socializar, até que encontra uma amiga chamada Lisa e, inocentemente, começa a sentir atração pela garota. O filme gira em torno da crise de identidade de Laurie e a paixão por Lisa.
Durante um churrasco entre vizinhos, um garoto de 07 anos escandaliza todos ao aparecer vestido como menina. É uma situação embaraçosa para os pais novos naquele condomínio chique ao qual querem integrar. Enquanto Ludovic continua a viver como menina, seus pais custam a aceitar a diferença.
DIVINAS DIVAS (2012)
PHILADELPHIA (1994) A GAROTA DINAMARQUESA (2016) A Garota Dinamaquesa é daqueles filmes que emocionam e encantam do início ao fim. Edward Redmayne, mais uma vez, conseguiu dar vida a um personagem deslumbrante! A história é sobre Lili Elbe, que nasceu homem e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mud ança de sexo. O filme mostra a sensibilidade e a doçura da descoberta de Lili e sua busca pela identidade.
MADAME SATÃ (2013) Nas favelas do Rio de Janeiro, na década de 1930, João Francisco dos Santos é várias coisas – filho de ex-escravos, ex-presidiário, bandido, homossexual e patriarca de um bando de párias. João se expressa no palco de um cabaré como o travesti Madame Satã.
Andrew Peckett é um promissor advogado que trabalha para um tradicional escritório da Filadélfia. Após descobrirem que ele é portador do vírus da AIDS, Andrew é demitido. Ele contrata os serviços de Joe Miller, um advogado negro que era homofóbico. Durante o julgamento, este homem é forçado a encarar seus próprios medos e preconceitos.
Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Búzios são ícones da primeira geração de artistas travestis do Brasil. A partir de uma íntima relação com a diretora e com o teatro de sua família, importante palco na trajetória de todas elas, acompanhamos as personagens no processo de construção de um espetáculo que celebra seus 50 anos de carreira. O filme propõe a compreensão de suas vidas como obras de arte, mas também como ato político no Brasil de ontem e de hoje.
Bianca Carvalho
Abril • 2017
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Abril • 2017