Foto de capa: Cultivo na periferia urbana de Campinas (SP) realizado por pequenos agricultores, cujas terras estão rodeadas pelo agronegócio da cana-de-açúcar, visto ao fundo Crédito: João Zinclair
EDITORIAL
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
PRÁTICA AGROECOLÓGICA
A Reforma Agrária e a Agroecologia
O papel estratégico da Agroecologia para o MST
O modelo que une alimentos saudáveis e luta por Reforma Agrária
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Por Coordenação Nacional do MST
ENTREVISTA
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A Agroecologia e a crise civilizatória Por Luiz Carlos Pinheiro
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O trabalho nos canaviais: um mundo invisível Por Maria Aparecida de Moraes Silva
Ana Maria Primavesi fala sobre os desafios da agroecologia no Brasil
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Experiências do MST
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Agroecologia ou agronegócio? Por Osvaldo Russo
Por Adalberto Martins
Por Nina Fideles, Miguel Enrique Stédile, Setor de Produção do MST-RJ, Solange Engelmann, Cássia Bechara, Mayrá Lima, Dirceu Pelegrino Vieira e Edilaine Aparecida Vieira
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Formando (re)construtores do campo com Agroecologia
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Por Nilciney Tona e Aparecida do Carmo Lima
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Agronegócio e Amazônia: como políticas contraditórias se tornam ameaça
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Da Redação
Por Greenpeace
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Pela recampenização do mundo rural Por Paulo Petersen
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Frutas, legumes e verduras. Comer ou não comer? Eis a questão Por Fabio da Silva Gomes
31 Experiências internacionais
A agricultura e o clima Por Odo Primavesi
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A energia da terra Por Roberto Malvezzi
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Bolívia - Por João Campos
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Venezuela – Por Francisco Javier
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Paraguai - Ada Vera
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Haiti – Accene Joachen
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Moçambique – Por Diamantino Nhampossa
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ESTANTE
Roteiro de leitura sobre Agroecologia
CHARGE
Por Alessandra Silva Souza e Indianara Cristina Pires
Por Bira
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EDITORIAL
A Reforma Agrária e a agroecologia O dia 3 de dezembro marca o 25º aniversário da catástrofe de Bhopal (Índia). Naquela data, em 1984, um vazamento na indústria estadunidense UnionCarbide Corporation despejou nos ares de uma região densamente povoada 27 toneladas de gás tóxico metil isocianato, utilizado na fabricação de pesticidas. Estima-se que 30 mil pessoas morreram — oito mil nos três primeiros dias — por causa do acidente. Milhares sobreviveram com lesões físicas e do sistema nervoso. Infelizmente, nem mesmo a gigantesca proporção daquela tragédia serviu para sensibilizar a população mundial para dar um basta aos que lucram, fácil e rapidamente, com o envenenamento dos alimentos, do solo, das águas e do ar em nosso planeta.
Defendemos a agricultura saudável, promotora da justiça social e zeladora das riquezas naturais A tão propalada Revolução Verde, baseada no monocultivo extensivo e no uso de agrotóxicos, serviu de alicerce para a lucrativa indústria dos herbicidas, pesticidas e praguicidas, utilizados em larga escala na agricultura mundial. Estima-se que na agricultura brasileira são despejados, anualmente, 713 milhões de litros de herbicidas. No cerrado brasileiro há cerca de 12 mil espécie de plantas descritas. É a maior variedade de todas as savanas do mundo. Para os estudiosos, não há como saber quantas espécies perderam-se para sempre por causa do avanço da monocultura de grãos e das pastagens para o gado. Esse modelo de agricultura é prejudicial ao meio ambiente, aos produtores e consumidores de alimentos e aos interesses do povo brasileiro. Os dados do Censo Agropecuário de 2006 (IBGE) mostram que a agricultura
familiar, com apenas 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários, é responsável por 87% da produção nacional de mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos bovinos. Além disso, a agricultura familiar emprega 75% da mão de obra no campo. Quem produz a riqueza agrícola do país? Mesmo assim, nos últimos anos, aumentou ainda mais a concentração fundiária no Brasil. A política agrícola do atual governo, como a dos que o antecederam, ao priorizar o modelo agrícola do agronegócio, promove o empobrecimento de milhares de famílias nos meio rural (socorridas com o Bolsa Família), impulsiona o desaparecimento de pequenas propriedades agrícolas, a destruição da biodiversidade e a contaminação tóxica do meio ambiente e dos alimentos. Assegurar um modelo agrícola baseado na produção de alimentos saudáveis e na preservação ambiental, passa necessariamente pelo fortalecimento da agricultura familiar e por uma ampla e radical Reforma Agrária em nosso país. Derrotar o modelo do agronegócio significa também reafirmar o conceito de soberania alimentar de todos os povos. Mesmo com todos os avanços tecnológicos e científicos, o modelo de desenvolvimento econômico capitalista determinou que um bilhão de pessoas passa fome em nosso planeta. Para este modelo, extrair dos alimentos a maior taxa possível de lucros é mais importante que possibilitar a essas pessoas o acesso ao alimento. Assim, lutamos contra o modelo agrícola do agronegócio. Defendemos a agricultura saudável, promotora da justiça social e zeladora das riquezas naturais. É por isso que apresentamos esta Revista Sem Terra Especial, dedicada à questão da agroecologia. Esperamos que esta nossa publicação cumpra o papel de contribuir nesta luta!
EXPEDIENTE - Revista Sem Terra Especial Agroecologia. 2009/2010. Conselho Editorial: Adelar Pizzeta, Ana Chã, Antonio Biondi, Antonio David, Beatriz Pasqualino, Bernadete Castro Oliveira, Heloísa Fernandes, João Paulo Rodrigues, José Juliano de Carvalho, Neuri Rosseto, Marcelo Buzetto, Nina Fideles, Ricardo Antunes, Verena Glass, Walter Garcia e Wladyr Nader. Editores-chefe: Antonio Biondi (MTB 17.486/SP), Beatriz Pasqualino (MTB 42.355/SP) e Nina Fideles. Projeto gráfico e diagramação: Francisco Fábio de Souza e Eliel Almeida. Revisão: Pedro Nogueira. Divulgação, publicidade e assinaturas: Mary Cardoso. Colaboraram nesta edição: Alexandre Conceição, José Luís Patrola, Naila Freitas, Raquel Carvalho, Accene Joachen, Ada Vera, Adalberto Martins, Alessandra Silva Souza, Ana Primavesi, Aparecida do Carmo Lima, Beatriz Pasqualino, Bira, Diamantino Nhampossa, Dirceu Pelegrino Vieira, Edilaine Aparecida Vieira, Fabio da Silva Gomes, Francisco Javier, Greenpeace, Indianara Cristina Pires, João Campos, Joka Madruga, João Zinclair, José Maria Tardin, Julia Chequer, Leonardo Melgarejo, Luiz Carlos Pinheiro Machado, Maria Aparecida de Moraes Silva, Mayrá Lima, Miguel Enrique Stédile, Nilciney Toná, Neuri Rossetto, Nina Fideles, Odo Primavesi, Osvaldo Russo, Paulo Petersen, Roberto Malvezzi (Gogó), Setor de Produção do MST-RJ, Solange Engelmann, Verena Glass. Tiragem: 10 mil exemplares. Endereço: Alameda Barão de Limeira, 1.232 - Campos Elíseos – CEP 01202-002 - São Paulo – SP – Tel/fax: (11) 2131-0840 - Correio eletrônico: revistasemterra@mst.org.br - Página na internet: www.mst.org.br. Para assinaturas da Revista Sem Terra, escreva para assinaturas@mst.org.br.
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ENTREVISTA
“A saúde da planta não pode ser mantida com agrotóxicos” Da Redação*
Revista Sem Terra: Como a senhora chegou aqui no Brasil e se envolveu na discussão de agroecologia? Ana Primavesi: Estou fazendo mais de 64 anos de agroecologia. Desde que me conheço por agrônoma, eu faço agroecologia. Antes até! Eu tinha um professor, que toda a universidade criticou, que misturava biologia, botânica, ecologia e agricultura. Com ele, começamos a compreender as inter-relações. Mostrava que tudo é um conjunto e não fatores isolados. Isso lá na Áustria. Aí eu entrei logo em seguida na Agroecologia, me formei e só trabalhei nisso a vida toda. Nunca fiz outra coisa. RST: Aqui no Brasil, de que como a senhora começou esse trabalho da agroecologia? Afinal, a senhora trouxe uma novidade. AP: Na Áustria, estávamos numa cidade agrícola. A atividade agricultura
Aos 89 anos, Ana é daquelas cientistas que conhece como poucos a terra e defende com convicção o saber popular do campo na arte de lidar com a lavoura. Seus diversos livros sobre agroecologia são leitura obrigatória em cursos em todo mundo sobre o tema. É por isso que a equipe da Revista Sem Terra foi até Itaí, a 300 Km da capital paulista, conversar com ela. Em sua Fazenda Ecológica, Ana explicou porque acredita ser possível aliar a produção de alimentos à conservação do meio ambiente.
Verena Glass
Discutir agroecologia hoje em dia, num cenário em que o agronegócio é predominante, não é tarefa fácil. Imagine travar essa luta há mais de 60 anos. É o que faz a agrônoma austríaca naturalizada brasileira, Ana Primavesi, considerada a pioneira da agroecologia no Brasil. Ela desembarcou no país ao final da Segunda Guerra Mundial e, ao lado de seu marido Artur Primavesi, implantou o primeiro curso de pósgraduação nacional que enfocava o manejo ecológico do solo, na Universidade Federal de Santa Maria (RS).
era ensinada de forma geral, não específica, porque ela atendia todo sul da Europa, Oriente Médio até o sul da Índia. Então o ensino tinha que ser geral para que cada um depois conseguisse utilizar em sua região e adaptar a sua realidade. Por isso, não foi difícil no Brasil também. Esse conhecimento logo se adaptou por causa disso.
“Na agricultura convencional, o solo não é nada. É só suporte para a planta ficar de pé”
RST: Mas quando vocês chegaram aqui, já encontraram alguma base de uma agricultura mais tropical, mais ecológica? AP: O Brasil já tinha agricultura tropical, aliás, até 1945. Depois ele abandonou porque os estadunidenses faziam pressão e defendiam a agricultura química. Aí violaram tudo. Nos anos 60, os estadunidenses fizeram fantásticos negócios com a Revolução Verde. Ela consistia em simplesmente matar os solos para poder usar adubos e agroquímicos. Isso porque o pro-
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ENTREVISTA lhares de “tais” agrônomos que ensinaram essa agricultura. E aí começaram as minhas dificuldades, porque eu não aceitei isso. Até me chamaram de anti-americana, mas eu não sou. Sou anti-esse negócio que faziam, que é a maior porcaria que existe. Não dava para aceitar.
Paulo Magalhães
blema depois da guerra foi que as fábricas tinham produzido cada vez mais máquinas e químicos, com o fim dos confrontos, eles tinham estoques enormes e não podiam vender. Aí fizeram convênios em que a agricultura comprava esses químicos desnecessários e com isso ela endividava muito. Por isso se chama agricultura convencional até hoje. Isso funcionou fantasticamente nos EUA. É a base do desenvolvimento deles. Então eles dizem que isso seria muito melhor para a América do Sul e África. Vieram para cá e contaram a história para o Ministro de Agricultura. Eles acreditaram, porque os estadunidenses eram muito agressivos. Eles fizeram com os agricultores horrores: disseram que eram idiotas, contra o modernismo e tudo mais. Aí conseguiram entrar com a agricultura deles nos países e vieram mi-
“Todo mundo olha as folhas, flores, mas embaixo ninguém olha. Só que metade da planta está debaixo da terra”, afirma Ana
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RST: O que é a sua proposta de manejo ecológico do solo? AP: Manejo orgânico é a idéia de que o solo tem que ser vivo. E solo vivo precisa no mínimo de sete a oito toneladas de matéria orgânica por ano. Além disso, deve ter uma micro vida ativa, que tem que ser a mais variada possível, porque cada bactéria faz alguma coisa específica. Para isso, eu preciso de uma multiplicidade de culturas e matéria orgânica. Esta é a base. A matéria orgânica é a comida do solo. Você não precisa de matéria orgânica para produzir, porque ela não produz coisa nenhuma. Ela serve, exclusivamente, para a micro vida porque, afinal de contas, nenhuma planta come pedaços de outra. Então, as pessoas têm feito uma grande confusão achando que matéria orgânica é agricultura orgânica. Não é. Ainda não. O micróbio tem que ser bem nutrido, de maneira diversificada, para ter diversificação na vida do solo. Ele tem que se decompor e, depois, uma parte destes alimentos é perdida para água, uma parte absorvida pela argila, e uma parte é comida pelas bactérias. Só esta parte serve para a planta. A vida do solo é muito complicada, sabe? Eu acho que uma pessoa da cidade nunca vai entender isso (risos). A matéria orgânica não é para a planta. É para os micróbios. A vida no solo no clima tropical é somente até 15 cm. Na Europa até 30, 35 cm. Isso porque no clima temperado os micróbios que são dominantes são só
bactérias. Aqui tem fungo. E o fungo tem o santo costume de produzir antibióticos. E a partir de 15 cm tem tanto antibiótico no solo que acaba a vida. RST: Quando a senhora lançou esse primeiro livro “Manejo Ecológico do Solo” (Ed. Nobel), ele foi atacado por cientistas. O que estava em jogo nessa questão: a disputa teórica ou econômica? Ou ambas? AP: No final, a questão era econômica, porque os que me criticavam queriam vender os produtos químicos. Agora, se o solo está com saúde, não há doença, a planta cresce. Por exemplo, nós temos na Chapada Diamantina uma cooperativa de pequenos agricultores muito pobres. E eles reclamavam da terra, do clima. Eu disse a eles: “É difícil porque tem que ter um agrônomo na cidade e ele não pode atender todo mundo. Mas o problema não é perguntar ao agrônomo o que você faz na sua terra. Porque quem conhece sua terra é
“A escola não deve ser só escola. Ela tem que ensinar o contato com a terra” você. Oras, ele não tem um conhecimento tão profundo da sua terra a ponto de dar conselhos”. Aí, eu os aconselhei a olhar, discutir e acreditar neles mesmos. Aí eles retrucavam: “Ah, mas a gente é analfabeto”. E eu respondia: “Oras, você quer trabalhar no escritório, no computador? Não. Você é agricultor. E se o agricultor é analfabeto ou não tanto faz”. Se você sabe a prática, a teoria é outro assunto. Tempos depois, eu os encontrei com esposas, filhos, carro
e perguntei: “Mas o que aconteceu? Vocês eram tão miseráveis que não tinham nem um par de sapatos para botar e agora estão todos chiques!”. A resposta foi a de que fizeram o que eu mandei: acreditar neles mesmos. A questão é que o agrônomo só aprende a vender adubos, químicos. Foi isso que a escola ensinou a ele. Não foi agricultura. No máximo, o que ele aprende é lidar com máquinas. RST: Muitas vezes os assentados de Reforma Agrária são colocados em locais de terras muito ruins, onde não tem apoio técnico, infraestrutura. Aí a viabilidade do assentamento fica complicada, até porque muitas dessas pessoas não são mais aqueles agricultores de antigamente, são os filhos de agricultores, que nem sempre tem esse conhecimento da terra. Como a senhora vê essa questão? AP: Aí eu acho que tem um problema. Isso devia ser ensinado aos filhos de agricultores que não têm idéia do campo. Vocês deviam ter um tipo de escola em que se fizesse a prática para eles aprenderem a lidar com a terra. Isso porque o grande problema que eu vejo é que o pessoal não lidou mais com terra. Eles vivem aqui na cidade e querem voltar para o campo. Mas a terra é uma coisa que tem que ser conhecida, aprendida. A escola não deve ser só escola. Ela tem que ensinar o contato com a terra. O mais importante é isso! Por isso, vocês não podem simplesmente lutar para dividir a terra. Agora eu não entendo uma coisa: tem muita gente que quer voltar para o campo, mas o governo não faz nada para ajudar! RST: E mesmo sendo o Lula... AP: Mas o Lula não entende nada do campo. Ele era da cidade. Com 18 anos foi para São Paulo. Então, mesmo vivendo numa aldeia nunca
MDA
ENTREVISTA
A agricultura orgânica funciona e é sempre mais barata que a convencional, segundo a agrônoma
tinha contato com a terra. Aí está o problema. É preciso plantar para o sustento! Eu acho uma coisa incrível quando o agricultor planta soja, feijão e não cultiva nem um pé de alface. Isso não é possível. Ele tem que tratar do seu sustento antes. É muito mais interessante que ele comece a plantar uma horta substancial e algumas coisas de que precisa, e deixar só uma cultura para a venda. RST: Entender a terra é um processo bastante complexo. Qual é o grande ganho de se fazer essa agricultura mais ecológica? AP: Ecológico que dizer que em cada região se trabalha segundo as condições da terra. Agora, eu não posso simplesmente dividir uma fazenda e fazer só agricultura. Eu tenho que ter mais ou menos metade florestada, porque o vento baixa a produção entre 37% a 65%. Por isso, é importante ter metade da área estrategicamente reflorestada para o vento não passar. No Ceará temos agora uma experiência fantástica! Eles tomaram uma região semi-desértica e, com muito custo, começaram a reflorestar e a cortar o vento. Em seguida, plantaram. Agora a região
está toda recuperada e com agricultura bem próspera. Então, primeiro tenho que pensar o que quero produzir. Em seguida, tenho que ver a proteção do solo, que tem que ser protegido contra o impacto da chuva e a insolação. A terra não pode ficar quente nem seca. Temos muitos casos em que chegamos a um agricultor e ele reclama da vida na terra. É uma choradeira bastante grande. Aí ele vira para mim e diz que este ano perderam dois hectares que já estavam preparados, plantados, mas como depois faltou água, não teve jeito de irrigar. Então, eles simplesmente abandonaram o cultivo. Só que depois de ver as culturas desse agricultor, que não eram muitos boas, verificamos esses dois hectares. Abrimos o mato e vimos que lá estavam as verduras mais lindas de toda a propriedade! No mato, cresce muito bonito por causa da sombra, da diversidade das raízes. Parte do mato prejudica o cultivo, mas a maior parte não. RST: Qual é a receita, afinal, para garantir um bom solo para plantar? AP: O manejo do solo é básico. A planta fica boa se a terra está boa.
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ENTREVISTA RST: E não tem que ser adicionado nada? AP: Adicionado não. A terra tem que ter a matéria orgânica que sua vida precisa. Isto quer dizer que não pode ser um cultivo só. Além disso, tem que ter a proteção do solo contra o sol, o vento e o impacto da chuva. E depois vem o plantio. Se eu planto, por exemplo, arroz ou milho, não posso ter 10 cm de uma terra dura e deixar a raiz ficar lá em cima. Não adianta. Tenho que ir mais profundo. RST: E as doenças, pragas, ferrugem? AP: Mas o que é praga? Para mim, praga não existe. Existe uma vida intensa de micróbios, insetos etc que beneficiam a planta. A natureza não se pode dar ao luxo de manter alguma planta que não está com plena saúde. Então, no momento em que a planta está deficiente em alguma coisa, a saúde dela não vale mais a pena e vem um inseto e mata. Agora tem essa concepção bastante engraçada em que as pessoas dizem “Ah, a região está cheia de ferrugem, praga”. Não é que está cheio de pragas, porque isso existe sempre, em toda a parte. Não é que são pragas. Eles
simplesmente matam a planta quando ela não tem mais condições de viver. Então, a doença é para a vida não degenerar, e não para eliminar uma cultura. Agora, se o solo está compactado, aí precisa toda essa porcaria química. Se a terra fosse boa, não precisaria. Se a terra está ruim, a planta vai ficar doente. Lógico! Então vai precisar de agrotóxico. Quanto mais agrotóxico puser, tanto mais a planta fica de pé. RST: Esse cultivo mais ecológico exige também uma mudança de comportamento dos agricultores não? Há uma questão cultural? AP: Claro! É cultural, porque ele tem que deixar essa idéia de que a agricultura funciona em qualquer solo e aprender tudo o que nós fazemos. Na agricultura convencional, o solo não é nada para eles. É só suporte para a planta ficar de pé. Nada mais. Na agricultura ecológica, o solo é tudo. É o solo que produz. RST: Mas essa mudança de comportamento também deve ocorrer no campo da ciência, não? AP: É complicado de mudar a ciência,
Verena Glass
Uma planta precisa, no mínimo, de 45 elementos diferentes, mas na agricultura convencional só recebe 15
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porque ela é dirigida pelos EUA e eles querem vender químicos. Para a ciência mudar vai ser complicado! Agora, para o agricultor mudar ele só precisa ver como funciona essa agricultura ecológica! É impressionante como a agricultura orgânica funciona quando é bem feita. E é sempre mais barata que a convencional. RST: E qual a sua opinião sobre os transgênicos? AP: Os transgênicos são uma tristeza. O problema é que eles querem aumentar um pouco a vida da agricultura química, que não funciona mais. Nos EUA, de 12% a quase 20% da produção eles não conseguem mais ter, de tanto que a terra está estragada, sem água. Eles já estão até pegando água de cidades, mas essa água tem mil e uma coisas dentro que não prestam, então a terra fica infestada de produtos químicos. Eles estão praticamente no fim! Eu acompanho as pesquisas que eles fazem lá, por meio do Ministério da Agricultura e a gente vê que eles estão pouco a pouco acordando e vendo que não dá mais. A produção está baixando violentamente. RST: A senhora acredita em agricultura orgânica em larga escala? AP: Em larga escala como é feito com a soja, em 300 mil ha, eu acho que não. Mas em áreas menores sim. Até uns 200 ha dá, porque o agricultor tem que controlar e ver o que acontece. Agora, nessas superfazendas vizinhas daqui, por exemplo, com no mínimo 600 ha, é mais complicado. Eles plantam uma cultura só em larga escala e pronto. Por outro lado, temos um agricultor orgânico lá perto de Botucatu (SP) que tem verduras enormes, muito bonitas. E todo mundo pergunta como ele faz, quanta maté-
ENTREVISTA ria orgânica coloca: 50, 60 ou 70 toneladas por hectare? Ele coloca 15 t! E explica que o problema não é a matéria orgânica, mas sim a raiz, que as pessoas plantam mal. Eu já verifiquei que, algumas vezes, o sujeito que planta faz um buraco, bota a raiz e fecha. Não toma cuidado. Isso dobra a raiz, que aí não cresce mais e não produz mais nada.
do que não dá mais para produzir desse jeito porque a população está adoecendo. Aqui também 40% da população já é gorda. RST: Às vezes, quando a gente compra frutas, aquelas muito grandes têm muita água e pouco gosto. Essas são as que têm muito produto químico, não? AP: Elas têm pouco gosto porque só possuem três elementos. O resto é veneno.
RST: Você insiste que uma das melhoras maneiras de se comunicar com as plantas é por meio das raízes. Como você chegou a esse conhecimento? AP: Pouco a pouco. A gente olhava. Todo mundo olha as folhas, flores, mas embaixo ninguém olha. Só que metade da planta está embaixo da terra.
RST: E esses alimentos têm o mesmo nível nutritivo que os orgânicos? AP: Um planta precisa no mínimo de 45 elementos diferentes. Alguns estudiosos dizem 80. Hoje em dia, no máximo, as plantas recebem 15 elementos na agricultura convencional. O que a planta não tem, o animal não recebe e nem o ser humano. De onde recebemos os sais minerais?
RST: E eu posso plantar qualquer cultura de maneira ecológica? Soja, feijão, batata etc? AP: Sim. Qualquer coisa pode ser orgânica. E o solo tem que ser bem protegido. Só que vejo que o pessoal está virando o solo o mais fundo possível com o trator. A terra não aguenta assim.
RST: A senhora acredita que seria possível que a agricultura convencional, do agronegócio, se convertesse em um cultivo agroecológico? AP: Eu acho que esse caminho vai ser mais ou menos automático, porque a agricultura e toda a nossa economia não podem continuar como está. Vejamos essa crise. As pessoas acham que depois da crise tudo vai voltar a ser como era antes. Mas não vai. Após nenhuma crise se volta ao estado anterior. Toma-se outro caminho. Então, não acredito que se converta sozinho para a agricultura ecológica, mas se fizermos um esforcinho sim. Este ciclo da agricultura convencional está no fim. No meio científico, a agroecologia está começando a ganhar espaço, porque esses cientistas não podem fugir completamente disso. (*) Colaboraram nesta entrevista: Verena Glass, José Maria Tardin e Beatriz Pasqualino.
A agroecologia funciona com qualquer cultura, se o solo for bem protegido
Joka Madruga
RST: Com relação ao consumo da agricultura, dizem que os orgânicos têm uma série de vantagens para a saúde humana. A senhora faria uma comparação entre a saúde da planta e a do ser humano? AP: Lógico! Até os americanos estão dizendo isso: a saúde da planta não pode ser mantida com agrotóxicos. Tem que ser saudável mesmo, sem nada. São tantas as doenças hoje em dia. E dizem por aí: “precisamos de mais de hospitais”. Mas por quê? Porque tem cada vez mais e mais gente doente. Nos EUA, está todo mundo doente. Não tem mais gente saudável. Todo mundo gordo e doente. É por causa dos alimentos que não prestam mais. E eles mesmos estão dizen-
RST: E qual sua opinião sobre a hidroponia? AP: Todo mundo diz que é bom, que não precisa colocar agrotóxicos, pois o cultivo é na água. Oras, mas o agrotóxico vem na água! Eles já irrigam
direto com veneno. Por isso, eu sou contra. Até porque você coloca quantos elementos? No máximo oito. E a relação biológica da planta com o solo também desaparece.
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
João Zinda
Aliada à conquista de cada latifúndio para a Reforma Agrária, a produção agroecológica é a ferramenta principal para derrotar o modelo do agronegócio Coordenação Nacional do MST
Entre os anos 1914 e 1945, durante a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, cientistas dos principais países envolvidos nesses conflitos desenvolveram produtos químicos voltados à destruição dos soldados inimigos, construindo, para isso, enormes instalações capazes de produzir insumos para a guerra. Desenvolveram-se gases tóxicos e variadas substâncias químicas foram sintetizadas com finalidade militar. No entanto, observou-se que, além de matar os soldados, essas substâncias também destruíam plantas, animais e micro-organismos. Com o fim da guerra, novas pesquisas foram realizadas para redirecionar essa capacidade instalada para a produção de insumos para a agricultura: é daí que se derivam os adubos químicos e agrotóxicos. Ou seja, de produtos originariamente pensados para a morte e destruição nos campos de guerra, direcionou-se para a “proteção de cultivos” na agricultura.
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Some-se a isso o uso da mecanização intensiva e a evolução da genética com o surgimento de variedades de plantas e linhagens animais mais produtivas, que respondiam a esses insumos de forma a possibilitar produção agrícola crescente, e se tem as bases do que se convencionou chamar de Revolução Verde. Ela surge para se contrapor às revoluções populares e socialistas que varriam o planeta nesse período. Prometeu aumento da produção de alimentos e matérias primas, necessários para o desenvolvimento dos países, sem a necessidade de se fazer a Reforma Agrária, ou seja, sem afetar o poder dos latifundiários no campo.
Pobreza no campo No Brasil esse processo começa a ocorrer a partir dos anos 1950 tendo como veículo principal a constituição de empresas estatais de extensão rural (que mais tarde se
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO convertem no Sistema das Emater – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural estaduais). O papel desses técnicos era mostrar que as tecnologias da Revolução Verde eram modernas e superiores às tecnologias tradicionalmente utilizadas pelos agricultores. A isca utilizada para que os agricultores experimentassem e se “viciassem” nos insumos modernos foi o uso do crédito agrícola subsidiado. O resultado da aplicação desse pacote tecnológico na agricultura brasileira foi a ampliação das desigualdades sociais e econômicas e a destruição ambiental. Em milhares de fazendas, famílias inteiras de trabalhadores rurais eram dispensados e substituídos por tratores e colheitadeiras, e pelo uso de substâncias químicas (herbicidas, fungicidas e inseticidas). As novas tecnologias são poupadoras de mão de obra, provocando a expulsão dos camponeses, resultando na saída do campo brasileiro de mais de 50 milhões de pessoas em cerca de quatro décadas (1960-2000).
monocultivos, com pouquíssima gente vivendo e trabalhando. Com a expulsão e empobrecimento dos camponeses, criaram-se as condições objetivas para o surgimento de um movimento de massas voltado a reivindicar a realização da Reforma Agrária.
Luta contra o agronegócio No entanto, apesar dos 25 anos de existência do MST e das inúmeras conquistas que tivemos, o modelo implantado pelos militares em benefício do grande capital e do latifúndio não foi derrotado. Os sucessivos governos civis pósditadura, e mesmo o governo Lula, seguiram apoiando a expansão e sustentação desse modelo produtivo predador. Ainda hoje ele responde por grande parte da balança comercial brasileira, sendo fundamental na equação da economia
capitalista brasileira e internacional, tendo sido mantido intacto seu poder político (presença no Congresso Nacional, no Judiciário e incrustado nas instâncias do Poder Executivo) e ampliado seu poder econômico. O MST é ainda hoje um espinho para esse modelo, agora rebatizado de agronegócio, que fez com que o nosso país se tornasse o maior destruidor de florestas, o maior consumidor de agrotóxicos do planeta, e consequentemente, de contaminação de solos, águas, animais e pessoas. Esse modelo também acelera a erosão da biodiversidade, base da vida e de recursos importantes para a sustentabilidade da vida no planeta. De fato, a conquista de cada latifúndio pode representar uma derrota desse modelo. No entanto, se nas terras conquistadas, as famílias assentadas seguirem aplicando o mesmo modelo gerador dessa destruição, com base em
Uso do agrotóxico faz parte da estratégia do modelo predador do agronegócio
O MST aposta na agroecologia para mudar o modelo tecnológico e produtivo da agricultura brasileira
SXC
O MST surge em parte, como fruto da implantação do modelo da Revolução Verde, em especial dos processos de mecanização e quimificação da agricultura, que resultou na formação de desertos verdes — muita terra ocupada com
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
Eduardo Seidl
Produção de arroz agroecológico no assentamento Lagoa do Junco, em Tapes (RS)
monocultura-química-mecanização intensiva, somando-se agora à farra descontrolada dos transgênicos, estaremos recolocando o agronegócio e a Revolução Verde no nosso meio. Tal situação fomentará a decomposição gradual dos assentamentos conquistados em novos micro-latifúndios. Isso porque a forma como se executa a produção condiciona em muito a possibilidade de sobrevivência das unidades produtivas camponesas nas áreas de Reforma Agrária, dentro do capitalismo. O uso de tecnologias poupadoras de mão de obra é necessário em vista da concorrência de preços no mercado, e também em vista de diminuir a penosidade e o tempo de trabalho no campo. No entanto, isso só é
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válido se essa força de trabalho familiar liberada pelo emprego de tecnologias que poupam trabalho, for empregada produtivamente em outras atividades dentro da unidade de produção ou em atividades agregadoras de valor, vinculadas a ela, por meio de formas cooperativas de trabalho.
Crise mundial Ademais, vivemos um momento sem precedentes na história da humanidade, com a emergência
conjugada de três crises: a crise energética, a crise alimentar e a crise climática. Estamos no limiar de esgotar a era dos combustíveis fósseis (baseados no carvão mineral e no petróleo), que representou o sustentáculo energético do modelo de sociedade capitalista-consumista existente nos últimos 200 anos. Novas fontes de energia serão necessárias para alimentar o absurdo padrão de vida dos países ricos, cujo modelo de consumo, se entendido a todos os povos, esgotaria rapidamente o estoque de
Se o modelo do agronegócio for usado em áreas de Reforma Agrária, os assentamentos podem se tornar novos micro-latifúndios
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO recursos naturais existentes no planeta Terra. Lembre-se que é do petróleo que derivam grande parte dos insumos químicos utilizados na agricultura, como a uréia e alguns compostos químicos dos agrotóxicos. E que, para produzi-los, se gasta uma enorme quantidade de energia, originada majoritariamente de fontes fósseis.
O MST é ainda hoje um espinho para o agronegócio, que fez com que o Brasil se tornasse o maior destruidor de florestas do mundo No entanto, um dos mais importantes efeitos do uso descontrolado da energia fóssil está na emergência da crise climática,
com a elevação gradual da temperatura da terra, resultando no aumento dos eventos climáticos extremos como furacões, tufões, enchentes e secas. O clima no planeta está mudando aceleradamente tendo como causa o aumento na emissão de gases que causam efeito estufa. Também o desmatamento de imensas áreas de mata para produção agrícola ou especulação fundiária como é o caso dos cerrados e da Amazônia, no Brasil, contribuem para esse aquecimento global. Ora, o modelo produtivo agroecológico, diversificado e poupador de insumos, se coloca claramente em oposição a esse modelo dominante, controlado pelo agronegócio e que se utiliza fortemente de energias fósseis. A agroecologia se baseia no aprendizado com a natureza, de forma a debater as relações presentes na tecnologia utilizada, a fim de
potencializar os efeitos naturais de fertilidade, complexidade e produtividade ecossistêmicas.
Alternativa agroecológica No entanto, para a agroecologia funcionar é preciso que se mantenha e se apóie as comunidades rurais de forma a se manter o delicado equilíbrio ambiental. Além disso, ela precisa permitir aumentos de produção e produtividade baseandose no aumento da eficiência na captação e uso da energia solar e nas interações complexas entre seres vivos possível somente de ser explorada em unidades produtivas integradas, articuladas em processos cooperativos de trabalho. Isso porque a existência de processos produtivos com matriz tecnológica poupadora de insumos e que se utiliza de técnicas similares às da agroecologia é possível naquilo que
Julia Chequer
Fumaça de usina em Ribeirão Preto (SP), durante a transformação da cana em etanol, propagandeada como ecológica
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
MST durante protesto contra monocultivo de eucalipto (deserto verde) em 2009
se denomina de agricultura orgânica. Esse modelo pode funcionar perfeitamente dentro de uma perspectiva capitalista, de geração de lucro por meio da exploração do trabalho em grandes áreas produtivas, ainda que mais amigáveis ao meio ambiente, como é o caso das usinas verdes de produção de açúcar orgânico em São Paulo, que conseguem manejar ecologicamente monoculturas de cana
Para a agroecologia funcionar é preciso que se mantenha e se apóie as comunidades rurais de forma a se manter o delicado equilíbrio ambiental
Fotos: MST
Assentamento Sepé Tiaraju, en Serrana (SP)
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de 14 mil hectares. No entanto, tais modelos trazem consigo a perpetuação do sistema capitalista de exploração do ser humano e da natureza, o que deve ser combatido enquanto paradigma para o desenvolvimento humano futuro. É pela soma de todos esses aspectos analisados que temos compromisso enquanto MST com a vida presente e futura em vista do desenvolvimento atual e das futuras gerações, tanto para a população humana, como para outras formas de vida existentes no planeta Terra. Essas são razões básicas para se mudar o modelo tecnológico e produtivo dos assentamentos em particular e da agricultura brasileira em geral. E a agroecologia, com todas suas vertentes
(permacultura, SAFs – sistemas agroflorestais, PRV - Pastoreio Racional Voisin etc), é a nossa ferramenta principal no caso da agricultura. Camponesa em assentamento do Maranhão
O agronegócio está gerando uma catástrofe ambiental, social, econômica e política. A lição que se tira é a de que é preciso produzir respeitando a biodiversidade Luiz Carlos Pinheiro Machado*
A humanidade atravessa um momento crucial que está obrigando, até mesmo estadistas dos países causadores e responsáveis pela crise, a mudarem sua retórica e a aceitarem realidades até ontem negadas: há uma crise ambiental ameaçadora. Evidenciam esse quadro fatores como o nível das águas oceânicas elevando-se em até 60 cm e ameaçando populações costeiras; um bilhão de famintos (ONU, 2009); a drástica redução da terra arável pelo avanço urbano e desertificação acelerada (FAO, 2007); o aumento crescente da
população humana (FAO, 2006). Enfim, os dirigentes que ontem proclamavam as supostas benesses do sistema capitalista e seu neoliberalismo, hoje, falam, explicitamente, nos riscos para a própria sobrevivência humana no globo terrestre! É a crise civilizatória. Este quadro, nada alentador — ao contrário, muito preocupante — tem várias causas, todas ligadas à ideologia capitalista que, para sustentar a reprodução do capital, sem o que ela entra em autodestruição, põe o lucro acima de qualquer valor moral, ético ou social; a exploração desenfreada de recursos naturais não renováveis, como o pe-
tróleo, o gás e o carvão cujo uso deixa resíduos contaminantes que agravam a saúde ambiental do planeta; nível de consumo dos países mais desenvolvidos, e de forma particular pelos Estados Unidos que, com 4% da população mundial é responsável por 24% de todas as emissões de gás carbônico, nível de consumo, repito em contradição com a disponibilidade dos recursos; concentração sem precedentes de renda; desemprego, criminalidade e tantas outras mazelas que presenciamos todos os dias. Intencionalmente, deixei por último a catástrofe ambiental, social, econômica e política que o paradigma do
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO agronegócio — produções vegetal e animal — está produzindo, por meio das monoculturas vegetais e animais: soja, cana-de-açúcar, eucaliptos, pinus e confinamentos de bovinos, suínos e aves, produzindo alimentos contaminados e contaminando o ambiente, enfim, do agronegócio, absolutamente falido em termos financeiros, sociais e ambientais. Não fosse o subsídio de R$ 100 bilhões que o governo injeta, anualmente, no sistema com prazos de pagamento de até 40 anos e juros ridículos, certamente os produtores do agronegócio não sobreviveriam. E, se agregarmos os danos e custos das externalidades ambientais — erosão, desertificação, trabalho escravo, êxodo rural, contaminação de mananciais e tantos outros — então, dificilmente encontraríamos um produtor que seguisse os métodos da agronomia convencional. Em brevíssimas palavras, este é o quadro existente e onde se insere a agroecologia como a conduta capaz de, não só se confrontar com o agronegócio, mas de recompor o ambiente, produzir alimentos limpos para a humanidade, outorgar cidadania, especialmente aos pequenos produtores. Assim, com esses objetivos, a primeira e óbvia condição da agroecologia, deve ser produzir em
escalas tais que, no confronto com o agronegócio, possa gerar alimentos e matérias-primas no volume, na escala que a humanidade demanda. Entretanto, é indispensável dizer que o nosso primeiro e inadiável compromisso político, social e técnico, é gerar tecnologias apropriadas aos pequenos agricultores, assentados ou não, que lhes confira cidadania, isto é, renda suficiente para atender às suas necessidades básicas de habitação saúde, educação e lazer. E hoje, temos como produzir agroecologicamente em escala, tanto nas criações animais, como nos cultivos vegetais.
Fundamentos Conceitualmente, a agroecologia nada mais é do que a agronomia dos anos 40/50 do século passado, com a óbvia incorporação dos extraordinários avanços científicos e sociais dos últimos 60 anos. É preciso registrar que a agronomia convencional hoje ensinada nas escolas, ressalvadas as honrosas exceções, abandonou as técnicas de respeito à natureza e, a partir da chamada Revolução Verde, passou a ser, na prática, um braço das indústrias de agrotóxicos, de fertilizantes de síntese química, de outros insumos e
Rastros da destruição Segundo a ONU, a erosão destrói 2.420 toneladas de solo por segundo; os desertos avançam a 1.370 hectares por hora; anualmente morrem 20 mil pessoas envenenadas com substâncias tóxicas; morrem de fome 25 pessoas/minuto e a redução de terra arável está assim: Período
ha/habitantes
População-bi
1961/63
0,32
3,6
1997/99
0,20
6,0
2030
0,16
8,3
Fonte: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, 2006)
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de máquinas sem qualquer preocupação social e ou ambiental. Ao agro acrescentou-se a ecologia, em razão da indispensável proteção ambiental, diante da destruição desenfreada dos recursos naturais produzidos pelo agronegócio. Com isso, na verdade pretendeu-se explicitar as relações dialéticas existentes na natureza, onde tudo depende do todo e, não há fenômeno sem causa e nada acontece isoladamente; qualquer parte está relacionada com todas as partes, é o conceito holístico, onde as partes se relacionam dialeticamente, formando o todo e nenhum fenômeno deve ser analisado, se não em função e em relação ao todo. Para Engels, a “ecologia é a aplicação dialética nos sistemas vivos e a dialética é a generalização do método de ecologia vindo dos sistemas vivos para todos os sistemas”. Aliás, os clássicos do marxismo — Marx e Engels — há quase dois séculos já se preocupavam com essa relação dialética e diziam que o “homem é parte da natureza” e, portanto, cabelhe a responsabilidade axiomática de protegê-la, preceito incorporado à conceituação teórica de agroecologia.
Natureza A base científica de agroecologia com essas características e responsabilidades se alicerça no tripé: ciclo do gás etileno no solo, trofobiose e transmutação dos elementos à baixa energia. O gás etileno no solo, segregado pelas bactérias anaeróbias, viabiliza a nutrição equilibrada das plantas, colocando cada elemento, no momento preciso, no local exato para ser ingerido pela planta; a trofobiose, por meio dos mecanismos de proteossíntese, protege os vegetais dos ataques parasitas e, em so-
Natalie Rios
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO imediatas, mas as sequelas ambientais, sociais e produtivas nos tempos subsequentes se revelam negativos. Já os tempos da agroecologia são naturais e as produções são crescentes. Não se deve esperar grandes resultados financeiros imediatos, quase sempre enganosos: à medida que passa o tempo, os custos são decrescentes e os rendimentos e os resultados financeiros positivos são crescentes (Ribas). Isto é assim porque, à exceção das terras de mato (que devem ser protegidas), todos os solos do mundo estão intoxicados com o uso de agrotóxicos e fertilizantes de síntese químicas e é preciso desintoxicá-los, sempre com processos biológicos, como por exemplo, o Pastoreio Racional Voisin (PRV). O tempo demandado para a realização desse processo tem levado de dois a cinco anos. Sementeira de tomate no assentamento Carlos Lamarca, em Itapetininga (SP)
los férteis e equilibrados, com a seiva em proteossíntese, não há ataque de para-sitas. Finalmente, a transmutação dos elementos à baixa energia, com a combinação das massas atômicas dos elementos, organiza o complexo biomineral do solo, incrementado a sua fertilidade, sem a incorporação de qualquer fertilizante. Com o manejo desses três processos bioquímicos no solo bem estruturado, tem-se altas produções, limpas e com custos mínimos, capazes de enfrentar e superar o agronegócio. É preciso registrar que o principal insumo neste processo agroecológico é a energia solar, que é infinita, não polui e não tem custo. “O Sol é a vida de plantas, enquanto a planta é a expressão do poder do Sol” (Marx). Com a agroecologia e o manejo dialético dos fatores e recursos naturais, há que considerar os tem-
pos. Os tempos da natureza são inexoráveis. Não se pensou em modificar o período de gestação da vaca, de nove meses, mas os produtores querem e precisam de soluções imediatas. Isto não é possível porque os tempos da natureza são os tempos da natureza e há que respeitá-los! Certamente esta necessidade é difícil de atender, sobretudo pelos pequenos agricultores que vivem em permanente situação de aprêmio financeiro. Mas, há que atender aos tempos e isto é uma séria contradição a superar no dia a dia de nossos assentados. Não há milagres na agroecologia; há processos naturais que trazem grandes benefícios também econômicos para os produtores, mas há que respeitar os tempos. É preciso compreender que nos procedimentos do agronegócio as respostas produtivas quase sempre são
Conscientização Mas, os produtores não devem se desesperar porque, tão logo se inicia o processo, da construção agroecológica, após a ruptura com os métodos convencionais, já há produções limpas, que compensam financeiramente a mudança radical (por isso há rupturas e não transição) na conduta produtiva. Naturalmente que o produtor para dar esse passo avançado precisa, antes de tudo, ter convicção. E convicção se adquire por meio do saber, do conhecimento, do estudo. Na agroecologia não existem receitas, fórmulas. Existe o saber fundamental e, a partir dele, é o cérebro o principal insumo que movimenta os processos da natureza no sentido de uma produção limpa e elevada. A agroecologia valoriza a vida humana e todas as formas de vida. É por isso que a biodiversidade é sua condição intrínseca. E é também por
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO isso, que as monoculturas são inaceitáveis, porque destroem as cadeias naturais que dão sustentação à própria vida e, o que é muito importante, quando o processo produtivo respeita a biodiversidade, as produções são melhores, maiores, mais limpas e mais duradouras. Chega-se à verdadeira sustentabilidade. A biodiversidade implica, não somente a pluralidade florística, mas, também e necessariamente, a presença animal como fator de produção, porque o animal herbívoro — bovino, ovinos, bufalinos, caprinos, equídeos — é um importante agente de desintoxicação e descompactação do solo, naturalmente se criados racionalmente, com o PRV. Em outras palavras, a sucessão lavoura/criação faz parte da intrínseca da agroecologia.
A agroecologia valoriza todas as formas de vida. É por isso que a biodiversidade é sua condição intrínseca No processo de desintoxicação do solo, que inclui a descompactação, o fator mais decisivo é o incremento da matéria orgânica. Isto porque a matéria orgânica é o biocatalisador da vida do solo e todo o processo agroecológico depende e estimula sua formação. É novamente o processo dialético atuando com suas contradições e avanços. Por outro lado, a agroecologia não é apenas uma técnica de produção, pois se essa técnica não for acompanhada implicitamente das
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dimensões social, política, econômica, técnica, administrativas, energética, ambiental e cultural, será uma técnica convencional sem o componente dinâmico que a dialética incorpora ao processo. Não é suficiente produzir: é necessário produzir respeitando a dialética da natureza com a proteção à biodiversidade e desenvolvendo o processo a partir e incluindo as dimensões antes citadas.
Na prática Uma questão sempre presente na discussão do como fazer em agroecologia é como cultivar grãos de cereais e de legumes sem o uso de herbicidas. Os indicadores, que o agronegócio chama de inços — são plantas que emergem por alguma razão. Assim, o primeiro passo é analisar porque determinado indicador está presente. E a conduta agroecológica não usa qualquer herbicida, independente de sua origem, porque não queremos solucionar problemas; nossa conduta é não ter problemas... Assim, na olericultura, grande número de indicadores são benéficos porque servem de proteção ao ataque de muitas pragas que preferem as plantas nativas, indicadores, em vez das hortaliças cultivadas. Nas culturas de grãos o controle se faz com a cobertura do solo que, a não permitir a entrada de luz, não se dá a fotossíntese e os indicadores não emergem. Uma boa planta de cobertura é a mucuna, podendo-se organizar a produção de modo a semear-se sobre a mucuna morta, seja por conclusão de ciclo vegetativo, seja com o corte da planta. Sobre a cama morta de mucuna, semeiam-se os grãos com matraca nas pequenas propriedades e com máquina de plantio direto, quando se requer escala. Natural-
mente que essa é uma indicação genérica que, em cada caso deve-se buscar a melhor alternativa. Em agroecologia não há receitas... Além da recomendação de não se usar qualquer instrumento de agressão ao solo — arado, grades, subsolador etc — é indispensável uma rotação de culturas, aí incluindo a sucessão de plantas de famílias diferentes, bem como a sucessão vegetal/animal. Como a agroecologia é um método natural, há conceitos, às vezes milenares, que seguem atuais. É importante o produtor conhecer o chamado “saber ancestral” para usálo também dialeticamente. Ou seja, não se trata de um atrelamento a esses saberes e, sim, usá-los na dinâmica da produção com a indispensável adaptação, coerente com os avanços da ciência. Por fim, o contraponto da crise civilizatória no processo de alimentos é a necessidade imediata e imperiosa e inadiável de assegurarmos a soberania alimentar, que deve ser entendida pelo produtor como a capacidade de produzir todos os produtos indispensáveis à sua subsistência, com sobras para destinar ao mercado e, pela nação, a produção de todos os alimentos indispensáveis a seu povo onde, então, o uso e sucessão de sementes e germoplasmas independentes, é condição primeira. Em outras palavras, as patentes e gernoplasmos resultados da engenharia genética são incompatíveis e antagônicos à vida e, portanto, à agroecologia. (*) Luiz Carlos Pinheiro Machado Engenheiro agrônomo, doutor em agronomia, professor universitário, consultor agropecuário internacional.
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
Agroecologia ou agronegócio? Anna Kaln
Censo Agropecuário mostra que concentração de terras em grandes propriedades rurais não se alterou nos últimos 20 anos. E comprova: mesmo cultivando uma área menor, a agricultura familiar é a responsável por garantir a segurança alimentar do país
Produção de tomate no assentamento Santa Maria (PE) Osvaldo Russo*
Apesar dos assentamentos agrários (um milhão) realizados no Brasil desde a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1970 ¯ dos quais mais da metade de 2003 para cá ¯, os dados do Censo Agropecuário 2006, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no final de setembro de 2009, reafirmam, no entanto, o
Estrato de área
velho quadro da concentração fundiária no Brasil. As pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais, enquanto as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. O quadro de desigualdade é ressaltado pelo fato de as pequenas propriedades representarem 47% do total de estabelecimentos rurais,
enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,9% desse total. A concentração e a desigualdade podem ser comprovadas pela aferição do Índice de Gini da estrutura agrária do país. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Em 2006, o Censo mostra um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856).
Área dos estabelecimentos rurais (ha) 2006 1985 1995
Menos de 10 (ha)
9.986.637
7.882.194
7.798.607
De 10 ha a menos de 100 (ha)
69.565.161
62.693.585
62.893.091
De 100 ha a menos de 1.000 (ha)
131.432.667
123.541.517
112.696.478
1.000 (ha) e mais
163.940.667
159.493.949
146.553.218
Total
374.924.421
353.611.246
329.941.393
Fonte: IBGE, Censos Agropecuários 1985/2006.
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. A cultura com menor participação da agricultura familiar foi a soja (16%).
A crise mundial do capital reafirma a agricultura camponesa como estratégica ao desenvolvimento sustentável As informações do IBGE revelam também como a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras: geram um Valor Bruto da Produção (VBP) de R$ 677/ha, enquanto que a não familiar gera um VBP de R$ 358/ha (89% a mais). Geram 15 postos de trabalho/100 ha, enquanto que a não familiar gera apenas 1,7 pessoas/100 ha. Não por coincidência, o aumento observado da devastação das
nossas florestas foi maior no Norte e no Centro-Oeste, exatamente onde se deu a expansão da pecuária extensiva, da plantação de soja e das atividades do agronegócio. As exportações de commodities agrícolas transfor maram a alimentação em mercadoria, gerando lucros fabulosos sem qualquer preocupação com a necessidade de alimentar as pessoas. Segundo a Organização para as Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), um bilhão de pessoas passam fome no mundo. Ou mudamos a matriz da produção de bens agrícolas, democratizando a terra e priorizando a produção de base familiar, ou estaremos inviabilizando a vida saudável no planeta. A crise mundial do capital aponta para novas perspectivas de mobilização social e afirmação da agricultura camponesa como estratégica ao desenvolvimento sustentável, onde a Refor ma Agrária tenha centralidade, Leonardo Helgarejo
Nos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) estão quase 85% dos trabalhadores empregados. Embora a soma das áreas dos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) represente apenas 30,3% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por 84,4% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores e seus parentes representam 77% do total de pessoas ocupadas. Apesar de ocupar apenas ¼ da área, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção (R$ 54,4 bilhões). Mesmo cultivando uma área menor, a agricultura familiar é responsável por garantir a segurança alimentar do país gerando os produtos da cesta básica consumidos internamente. A agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59%
Para viabilizar um novo modelo agrícola, é preciso agilizar a Reforma Agrária. Na foto, Sem Terra na Fazenda Guerra, Coqueiros do Sul (RS)
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
Protesto do MST em frente ao Ministério da Fazenda em Brasília, durante jornada Nacional de Luta, em agosto/2009
democratizando a vida no campo, gerando empregos, respeitando o meio ambiente, promovendo o ser humano e produzindo alimentos saudáveis que garantam não só a segurança, mas a soberania alimentar do país. Os dados do Censo reafir mam a capacidade de resistência da agricultura familiar, que adota um modo de produção camponês diferente daquele do agronegócio, constituindo-se em uma das alternativas às crises Dica: A íntegra do Censo Agropecuário 2006 pode ser baixada em versão pdf em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ economia/agropecuaria/censoagro/ agri_familiar_2006/ familia_censoagro2006.pdf
A agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% do feijão e 58% do leite econômicas, sociais, alimentares e ecológicas provocadas pela globalização capitalista. Há necessidade, entretanto, de criação de um programa de incentivos para a organização de associações de agricultores familiares, garantindo o acesso dos camponeses e suas famílias a um sistema
público, com a participação dos movimentos sociais. Para a viabilização desse novo modelo agrícola, é preciso acelerar e qualificar a Reforma Agrária e o apoio à agricultura familiar para além da obtenção da terra, do mero assentamento e do acesso ao crédito. É preciso, sobretudo, romper progressivamente com o modelo atual, hegemonizado pelo agronegócio, priorizando a agroecologia e integrando a agricultura camponesa a um novo tipo de desenvolvimento. (*) Osvaldo Russo Estatístico, ex-presidente do Incra, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT).
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Arquivo Pastoral do Migrante - Guariba/ SP
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
A situação do trabalhador nos canaviais do Estado mais rico do Brasil, São Paulo, demonstra a face oculta do agronegócio no país, em que homens e mulheres possuem a mera função de repor as necessidades de consumo de mão-de-obra das empresas Maria Aparecida de Moraes Silva*
Atualmente, o estado de São Paulo possui uma área com quase cinco milhões de hectares de cana! Cada vez mais, as áreas de cultivo de muitas culturas como arroz, milho, trigo e até mesmo a pecuária e café são substituídas pelas plantações de cana. Cada vez mais, um verdadeiro “mar de cana” se alastra destruindo as antigas paisagens naturais e sociais da cultura cafeeira de antes. De acordo com dados recentes do Instituo de Economia Agrícola (IEA), de uma lista de 31 produtos, 22 deles tiveram decréscimo da área plantada no período de 2004-
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2005 a 2005-2006. Ao contrário, a área de cana apresentou um acréscimo de 10,6%, em apenas um ano, atingindo no ano de 2006, quatro milhões de hectares. Produtos como a mandioca, trigo, uva, soja, batata, cebola, algodão, sorgo e café sofreram reduções de áreas cultivadas. No que tange à pecuária de corte paulista, está sendo transferida para outros estados (como PA, MT, TO, MA, PI, BA e MG), segundo relatos de agropecuaristas. As mudanças na estrutura agrária vão além. A venda ou arrendamento de pequenas propriedades se observa com frequência, sobretudo das localizadas nos limites das áreas de cana.
A ideologia produzida pela agroindústria do setor sucroalcooleiro mascara a presença e a situação dos trabalhadores. Longe da luminosidade da aplicabilidade técnico-científica, há um mundo de intensa exploração da força de trabalho, precarização, miséria e sofrimento. Segundo a Pastoral do Migrante, em 2005, em São Paulo o número de migrantes ultrapassava os 200 mil. A partir do ano 2000, no entanto, assiste-se ao processo de mudança da cartografia migratória. Uma das explicações dada para a mudança da cartografia migratória reside no fato de que houve uma enorme inten-
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO sificação do ritmo do trabalho. acima de 30 anos, os trabalhadores já encontram mais dificuldades para ser empregados. Desta sorte, a vinda destes outros migrantes cumpre a função de repor, o consumo exigido pelas grandes empresas. Muitos dos migrantes são camponeses com terra, enquanto outros são rendeiros e outros já vivem nas periferias das cidades, na condição de proletários. A mudança da cartografia migratória para os canaviais paulistas, por meio da presença de maranhenses e piauienses vem ocorrendo nas últimas décadas em razão do avanço da sojicultura e da pecuária, responsáveis pelo processo de expropriação do campesinato dessa região, de um lado, e, do outro, do sucroalcooleiro paulista, demandante de grandes contingentes de força de trabalho. Esta migração é
essencialmente masculina. Enquanto os homens partem, as mulheres ficam. Algumas delas partem com os maridos e, às vezes, até com os filhos, para lhes preparar a comida e lavar suas roupas. Nas periferias das cidades-dormitório paulistas, vivem em minúsculos quartos alugados nos fundos-de-quintais. Quanto à origem social dos trabalhadores desta agricultura, a análise desenvolvida até aqui evidencia que se tratava de antigos colonos, parceiros, arrendatários, posseiros, moradores, pequenos proprietário do estado de São Paulo e de outras regiões do país. Enfim, um campesinato expropriado da roça, da morada, da posse, da terra, dos meios e instrumentos de trabalho. Este processo de expropriação que, em outras realidades históricas, levou séculos para se completar, no Brasil, bastaram-se apenas algumas décadas.
Atualmente, as condições de trabalho são marcadas pela altíssima intensidade de produtividade exigida. Na década de 1980, a média (produtividade) exigida era de cinco a oito toneladas de cana cortada por dia; em 1990, passa para oito a nove; em 2000 para dez e em 2004 para 12 a 15 toneladas! Este fato caracteriza este trabalho como extremamente árduo e estafante, pois exige um dispêndio de força e energia que, muitas vezes, os trabalhadores não possuem, tendo em vista o fato de serem extremamente pobres, senão doentes e subnutridos. A carência nutricional, agravada pelo esforço excessivo, contribui para a ocorrência de acidentes de trabalho, além de doenças das vias respiratórias, dores na coluna, tendinites, cãibras produzidas pela perda
Verena Glass
Avanço da cana tem gerado importantes impactos sociais, trabalhistas, ambientais e fundiários
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Arquivo Pastoral do Migrante - Guariba/ SP
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
Produtividade exigida do trabalhador já em 2004 ficou entre 12 a 15 toneladas por dia
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alguns casos de condições análogas à de escravo, aumento abusivo da exploração da força de trabalho, por meio da imposição das altíssimas taxas de produtividade, ocorrência de mortes súbitas, supostamente em função da fadiga e de mortes lentas, simbolizadas por uma verdadeira legião de mutilados. Casos de alergias e câncer de pele não são notificados como doenças laborais, nestes casos. O uso de veneno é muito intenso no processo, sobretudo nas estufas que preparam as gemas de cana para o plantio, atividade que emprega basicamente mulheres.
(*) Maria Aparecida de Moraes Silva Professora livre-docente da Unesp e pesquisadora do CNPq
No setor, avanço da mecanização caminha junto à precarização do trabalho em geral Verena Glass
de potássio em razão dos suores. De 2004 a 2009, a Pastoral do Migrante registrou 22 mortes ocorridas, supostamente, em função do desgaste excessivo da força de trabalho. Segundo depoimentos de médicos, a sudorese, provocada pela perda de potássio responsável por cãibras que podem conduzir à parada cardiorrespiratória. Outros casos se referem à ocorrência provocada por aneurisma, em função de rompimento de veias cerebrais. Em alguns lugares, os trabalhadores denominam por birola, a morte provocada pelo excesso de esforço no trabalho. Para este trabalho, o piso salarial é de R$ 510,00, sendo que o ganho é medido pelos níveis de produtividade. Constata-se que, sobretudo a partir da década de 1990 — quando se consolida o processo científico-técnico aplicado nesta agricultura pelo uso intensivo de agrotóxicos, implantação de novas variedades de cana e máquinas colhedeiras de cana, capazes de substituir até 120 trabalhadores —, ocorreram vários processos simultâneos: aumento da precarização das relações de trabalho, existência de
Quanto ao corte da cana, trata-se de uma atividade extremamente pesada e dilapidadora, pois a cana precisa ser cortada ao rés-do-chão, exigindo a total curvatura do corpo. Cálculos agronômicos registram que para um total de dez toneladas de cana, há a necessidade de 9.700 golpes de facão, portanto quase mil golpes por tonelada. A este cenário podem se acrescentados: o calor excessivo (a jornada de trabalho inicia-se às 7h e termina por volta das 17h); a fuligem aspirada no momento do corte; a má alimentação; a violência simbólica existente no sentido de considerar frouxo, fraco aquele que não consegue atingir a produtividade (média) exigida, além da ameaça de perder o emprego. A grande discussão hoje é o trabalho por produção, cuja abolição é defendida pelos promotores públicos, os quais acreditam que é a imposição da alta produtividade a responsável pelas mortes. É esta a face oculta do agronegócio sucroalcooleiro no estado mais rico do país.
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
Agronegócio e Amazônia: como políticas contraditórias se tornam ameaça ao Brasil e para tanto ocupar, interligar e produzir eram os objetivos centrais das políticas de governo. Concebidas de maneira totalmente dissociada da realidade local, tais políticas estimularam o avanço da ocupação de terras e desmatamento com profundos impactos socioambientais. Apesar do insucesso dos governos militares, ao longo das décadas seguintes,
A divulgação dos dados preliminares do desmatamento na Amazônia no segundo semestre de 2009 indica que esta poderá ser a menor taxa dos últimos 20 anos. A prevista perda de “apenas” 8.500 a 9.000 km2 de floresta entre 20082009, em detrimento dos 12,9 mil Km2 do período anterior, é vista com otimismo. A ampliação das ações de fiscalização e as medidas restritivas de crédito, vigentes desde 2007, contribuíram para reduzir o desmatamento, porém o desaquecimento da economia neste período certamente não pode ser desprezado. Encarar o desmatamento sob a ótica exclusiva da proteção e da coerção, sem abordar os fatores que fomentam essa dinâmica tem retardado um debate, absolutamente necessário e urgente, sobre o projeto de futuro para a Amazônia. Na ausência desse debate, políticas contraditórias de proteção e coerção do desmatamento e dos crimes socioambientais, se chocam com o extenso apoio político e financeiro que fomenta a expansão do agronegócio. Os projetos concebidos para a Amazônia sempre estiveram embasados na idéia de colonização. A Amazônia precisava ser integrada
pouco ou nada mudou na concepção do espaço amazônico. Principalmente, a partir dos anos 70, o agronegócio avançou rumo ao Norte, destruindo quase 50% do bioma Cerrado e alcançando a Amazônia. Além dos estímulos de políticas de governo, a dinâmica do desmatamento começou a ser influenciada também pela flutuação dos preços das commodities no
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Greenpeace
Devastação avança na Amazônia: projeto de futuro é debate necessário e urgente
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mercado internacional. Ainda que a grilagem e os grandes projetos de infraestrutura, em particular as rodovias, sejam importantes vetores de desmatamento, o avanço do agronegócio na Amazônia tem se mostrado agressivo.
Peso do agronegócio De maneira mais intensa, a partir de 1999, depois da desvalorização do real, o governo federal aumentou o crédito disponível ao setor agrícola empresarial, objetivando ampliar as reservas cambiais brasileiras. O agronegócio rapidamente ampliou sua participação na balança comercial, tornando-se um dos principais responsáveis pelos superávits do país. Ao se tornar o maior exportador mundial de carne e soja, o Brasil acelerou a expansão da fronteira agrícola sobre a Amazônia, sempre com amplo apoio financeiro e político do governo. Os investimentos do Plano Safra indicam o peso do agronegócio: para o período 2008/2009, do total de recursos investidos na agricultura, R$ 65 bilhões foram destinados à agricultura empresarial, em detrimento da agricultura familiar, para a qual foram destinados R$ 13 bilhões. A soja, que se tornou um dos principais produtos da balança comercial do país,
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Arquivo Greenpeace
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO recebeu, além de investimentos diretos, impulso tecnológico que permitiu o desenvolvimento de variedades adaptadas às condições locais. Aliado à disponibilidade de crédito, a cultura se expandiu, tornando-se um importante vetor de desmatamento. O estado do Mato Grosso é um exemplo emblemático: principal produtor brasileiro de soja, em menos de dez anos, ampliou sua área plantada com soja de 2,6 milhões de hectares para 5,2 milhões, respondendo em média por 40% do desmatamento na região neste período.
Moratória e desmatamento A Moratória da Soja, assumida pelas principais empresas comercializadoras do grão operando na Amazônia, é um exemplo de acordo setorial para deter o avanço do desmatamento pela expansão do agronegócio. Como resultado da pressão dos compradores europeus, sensíveis a demanda dos consumidores sobre a origem da produção, as empresas assumiram o acordo de não comercializar soja produzida em áreas desmatadas após julho de 2006. Com resultados positivos, principalmente quanto ao monitoramento da expansão da soja sobre novas áreas desmatadas, a Moratória não é uma solução definitiva. Os mecanismos de governança adequados, como o registro e
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO licenciamento de propriedades rurais, seguem sendo imprescindíveis. Na pecuária, a situação é mais grave tanto pela dinâmica da atividade quanto pelo maior envolvimento do governo brasileiro. Além de financiar o setor, o governo detém, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ações de grandes frigoríficos. Nos últimos seis anos, o governo destinou R$ 283,9 bilhões ao setor agropecuário empresarial e adquiriu aproximadamente R$ 5,46 bilhões em ações dos frigoríficos. Como reflexo desses investimentos, a pecuária é hoje responsável por cerca de 80% do desmatamento na Amazônia. As taxas de desmatamento têm acompanhado o crescimento do rebanho bovino: entre 1998 e 2004, o total de cabeças na Amazônia Legal passou de quase 37,8 milhões de cabeças para mais
de 65,7 milhões. Atualmente, na Amazônia, o rebanho bovino está estimado em 50 milhões de cabeças de gado, o que equivale a 2,6 cabeças por habitante. Com uma produtividade muito baixa, a pecuária avança sobre a floresta e a cada 18 segundos um hectare é transformado em pasto. A fronteira do desmatamento está se diluindo. Os desmatamentos menores que 25 hectares aumentaram de 73,3% em 2007 para 89% em 2008, dificultando sobremaneira as ações de fiscalização. As unidades de conservação estão cada vez mais ameaçadas e já respondem por 18% do desmatamento. A grande concentração do desmatamento (64%) em áreas privadas, posses e áreas devolutas reforça a necessidade de resolver o caos fundiário na Amazônia, assegurando às populações locais o direito à terra e acesso aos recursos naturais. A despeito
disso, e mesmo diante da mobilização da sociedade, a Medida Provisória 458, apresentada pela Presidência da República sob justificativa de legalizar terras ocupadas na Amazônia, foi sancionada. Em vigor desde junho, essa MP possibilitará a privatização de 80% (cerca de 67 milhões de hectares) das terras públicas apropriadas irregularmente. Até agora, tanto para a soja quanto para a pecuária, o alerta vem da sociedade que se estrutura por meio de acordos setoriais nos quais a participação do governo tem sido periférica. Ações de fiscalização, pactos setoriais e proteção de áreas são estratégias válidas, porém, na ausência do debate sobre o projeto de futuro que se deseja para a Amazônia, os mecanismos de governança necessários para deter o avanço do desmatamento não serão capazes de acompanhar a evolução do problema.
Greenpeace/ Daniel Beltra
Apesar da queda nos índices, desmatamento se espalha por áreas menores, e unidades de conservação estão cada vez mais ameaçadas
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Pela recampenização do mundo rural É onde encontramos as raízes das mazelas da sociedade e é nele onde encontramos potencial para enfrentá-las Paulo Petersen*
“Um novo rótulo para uma velha garrafa”. Nada mais preciso do que essa máxima popular para caracterizar a rápida disseminação do termo “agronegócio” no Brasil. Em sua aparente neutralidade, o vocábulo porta forte carga ideológica, sendo capaz de manipular de forma magistral até os espíritos mais críticos, confundindo os termos do debate político sobre os rumos do mundo rural brasileiro. Promovido por atores sociais comprometidos com a reiteração e exacerbação do histórico modelo de desenvolvi-
mento rural baseado na aliança entre o latifúndio monocultor, as empresas transnacionais do ramo agropecuário e o capital financeiro internacional, o termo se popularizou rapidamente graças à ação laboriosa e sistemática da “grande” mídia. A eficácia persuasiva desse tipo de estratagema, que procura vincular o agronegócio a um sistema de referências ideológicas positivas, não é negligenciável. Sua associação com as noções de modernidade científica, eficiência econômica, competitividade nos mercados e produtividade tem por papel ganhar a opinião pública
O agronegócio representa a continuidade de um padrão de ocupação predatório
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no que se refere às pretensas benesses das grandes fazendas modernizadas para a sociedade. O agronegócio brasileiro representa a continuidade de um padrão de ocupação dos ecossistemas caracterizado pelo nomadismo predatório que teve início com o extrativismo do pau-brasil há meio milênio. Nesse sentido, não condiz absolutamente com a imagem de modernidade que procura se autoatribuir. Pelo contrário, representa a versão mais acabada de um estilo de desenvolvimento orientado de fora para dentro cujo traço mais característico é uma racionalidade econômica informada
pelas expectativas de curto prazo para a recuperação do capital investido, em detrimento de quaisquer preocupações com o bem estar social e com a integridade do meio ambiente. Enquanto seus defensores ostentam a sua face high-tech e a pujança econômica, o preço social e ambiental que vem sendo pago pela sociedade para manter esse estilo de desenvolvimento mostra-se exorbitantemente elevado. A auto-declarada imagem de modernidade se associa ao emprego de um modelo técnico fundamentado no uso intensivo de agroquímicos, motomecanização e irrigação. Esse modelo “industrial” de agricultura é voltado para a extrema artificialização do meio natural de forma a criar condições ambientais ótimas para o desenvolvimento das lavouras e criações. Fundadas nessa lógica, as tecnologias ditas modernas difundem-se por meio de pacotes, permitindo a homogeneização dos métodos de manejo agropecuário e a expansão das monoculturas. O padrão de ocupação dos territórios rurais com base na especialização produtiva e nos grandes empreendimentos capitalistas faz convergir o interesse privado de maximização do lucro no curto prazo do setor do agronegócio com a estratégia governamental de captação de divisas públicas destinadas a realimentar o crescimento da economia. A essência perversa dessa racionalidade econômica se manifesta na aparente contradição entre índices empregados na medida do desenvolvimento. Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio nos territórios de expansão das monoculturas apresenta crescimento vertiginoso no curto prazo, os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) permanecem baixos ou mesmo em queda. De fato, nas regiões por onde os “desertos verdes” do agronegócio vêm se irradiando pelo Brasil afora o crescimento
MST
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A diversificação produtiva valoriza o trabalho das famílias e a redistribuição da riqueza
econômico não se converte em melhoria da qualidade de vida das populações locais, exacerbando o padrão básico de concentração da riqueza socialmente gerada. Não sem razão que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) atribui o recrudescimento da violência no campo ao avanço do agronegócio.
O movimento agroecológico Após cinco séculos de dominação social, econômica e ideológica das elites agrárias, assiste-se hoje no mundo rural brasileiro a emergência de um amplo processo social voltado para a construção de alternativas aos padrões ambientalmente predatórios e socialmente excludentes de ocupação e uso do território. A despeito da enorme diversidade dos atores sociais envolvidos nesse processo e dos contextos socioambientais nos quais eles estão inseridos, pouco a pouco vão se delineando os contornos que identificam os princípios ordenadores de um projeto alternativo para o mundo rural.
É no mundo rural onde encontramos as raízes das principais mazelas da sociedade e é nele onde ainda encontramos enorme potencial para enfrentá-las de forma estrutural. Economias rurais dinamizadas por unidades camponesas tendem a gerar uma oferta de alimentos mais elástica, o que beneficia o conjunto da população. A diversificação produtiva, característica da lógica econômica da agricultura camponesa, implica também na combinação das atividades agrícolas com as não-agrícolas, proporcionando um ambiente favorável à plena valorização do trabalho das famílias e à redistribuição da riqueza com a elevação do nível de renda médio da população rural. No atual contexto histórico, a recampenização do mundo rural deve ser compreendida a partir de duas dimensões complementares: a) Quantitativa, com o aumento substancial do número de unidades camponesas no país por meio da Reforma Agrária de ampla abrangência social e geográfica. b) Qualitativa, com o desatrelamento da agricultura familiar com relação à lógi-
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AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO determinante para convertê-la em elo subsidiário das cadeias agroindustriais dominadas pelo grande capital transnacional. Se é verdade que nunca antes nesse país se investiu tantos recursos na agricultura familiar, também é verdade que nunca antes o capitalismo lucrou tanto com
Esperar que mudanças estruturais se efetivem em aliança com o sistema de poder que faz perpetuar o status quo é um engano estarrecedor a exploração do trabalho da agricultura familiar e dos ecossistemas onde ela vive e produz. É nesse sentido que devemos também abordar a recampenização em sua dimensão qualitativa, ou seja, a reconstituição das bases camponesas da agricultura familiar. E é justamente nesse ponto MST
ca empresarial difundida pela modernização agrícola. A despeito das demonstrações do vigor econômico da agricultura familiar – atualizadas com a divulgação dos dados do Censo Agropecuário –, ainda é corrente a opinião expressa em vários meios políticos e acadêmicos de que a Reforma Agrária não mais se justifica no momento histórico atual. No entanto, vários estudos recentes vêm evidenciando o equívoco dessa visão ao demonstrarem que mesmo operando em ambientes políticos, financeiros e ideológicos hostis, os assentamentos geram impactos positivos nas regiões onde são implantados. Mas as múltiplas funções positivas da agricultura familiar não poderão ser desenvolvidas em benefício do conjunto da sociedade se perdurarem as políticas orientadas à sua modernização com base nos princípios técnicos da Revolução Verde e na lógica econômica do empreendedorismo capitalista. De fato, para a agricultura familiar, a modernização patrocinada pelo Estado tem sido
É preciso pensar a reconstituição das bases camponesas da agricultura familiar
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que a perspectiva agroecológica oferece uma contribuição determinante. Pelas condições territoriais, ambientais, sociais, culturais e científicas de que o Brasil dispõe, nossa sociedade não depende de aguardar por soluções vindas de fora para enfrentar os bloqueios estruturais que impedem a realização de seu projeto de nação. Afinal, não são muitos os países que têm a oportunidade de promover o desejado encontro entre terra sem-gente e gente sem-terra; que ainda dispõe de rica base cultural na população rural com uma fonte inesgotável de sabedorias passível de ser valorizada e desenvolvida se posta em interação sinérgica com o saber científico também disponível em nossas instituições de pesquisa e universidades; que possui ricos ecossistemas comportando uma megabiodiversidade ainda por ser conhecida e valorizada mediante processos sustentáveis de manejo. Em suma: se nossos bloqueios são de grandes dimensões, nosso potencial para superálos são igualmente enormes. Esperar que mudanças estruturais se efetivem em aliança com o sistema de poder que faz perpetuar o status quo é um engano estarrecedor. É preciso ter claro desde já que essas transformações não se efetuarão sem que interesses sejam contrariados. Sem que esse desafio seja assumido pelo conjunto da sociedade de forma a suplantar no plano político a obstinada resistência à transformações da aliança dos interesses das elites agrárias e agroindustriais brasileiras com o capital transnacional. E sem que as forças populares que militam se agreguem em defesa da democratização da sociedade em torno a um projeto alternativo para o mundo rural. (*) Paulo Petersen Engenheiro agrônomo, diretor-executivo da AS-PTA e vice-presidente da ABA-Agroecologia.
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Frutas, legumes e verduras. Comer ou não comer? Eis a questão Fabio da Silva Gomes*
Evidências científicas muito consistentes têm feito coro junto ao secular conhecimento tradicional de nossos povos que já nos indicavam as frutas, legumes e verduras como alimentos unanimemente benéficos à saúde. A análise do consumo de alimentos de grandes populações tem demonstrado que pessoas que possuem um maior consumo de frutas, legumes e verduras, têm menores chances de desenvolverem câncer de boca, de laringe, faringe, esôfago, pulmão, estômago, intestino grosso e reto. Com base nessas evidências, têm sido recomendado à população o consumo de pelo menos 400 gramas de frutas, legumes e verduras todos os dias, para prevenir o câncer e outras doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e doenças do coração. No entanto, é preciso considerar que os modos de produção de alimentos podem interferir nessa proteção à saúde das populações, além da saúde do planeta, uma vez que não comemos nutrientes, mas sim comidas que possuem múltiplas dimensões além da biológica (i.e. social, econômica e ambiental). Os efeitos diretos dos agrotóxicos nos agricultores, seus familiares e comunidades, que têm contato mais direto com esses venenos, já estão estabelecidos. No entanto, ao consumidor que não tem nenhuma noção do que se passa no campo, não tem sido oferecida qualquer
informação sobre os modos de produção dos alimentos, os quais são totalmente invisíveis aos olhos do consumidor. O consumidor poderia e pode interferir decisivamente nos modos de produção dos alimentos, mas, para tanto, deve ser informado e provocado no que se refere às formas de produção injustas e insalubres para as pessoas e para o planeta. Restringindo ainda mais a análise à saúde do consumidor, também é pos-
sível evidenciar como os modos de produção podem interferir na “saúde” do alimento e de seus consumidores. Neste contexto, duas vias merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, as frutas, legumes e verduras produzidas com agrotóxicos possuem menores concentrações de fatores protetores como antioxidantes — agentes encontrados nesses alimentos e que protegem as células da agressão de alguns agentes cancerígenos que podem transformar células saudáveis em células precursoras de câncer. Além disso, a ação exercida por componentes encontrados nesses ali-
mentos contra a proliferação de células cancerosas encontra-se mais ativa nos alimentos produzidos sem agrotóxicos. Em segundo lugar, os próprios resíduos de agrotóxicos ingeridos juntamente com os alimentos também podem produzir efeitos nocivos ao organismo, incluindo ações mutagênicas. É importante ressaltar que apesar das frutas, legumes e verduras serem os principais alvos relacionados à condenação de alimentos contaminados, os produtos processados também são produzidos com base em alimentos que podem ou não ter sido produzidos com agrotóxicos e esta informação também é desconhecida. O consumidor não pode mais delegar aos produtores a decisão do que comer. A responsabilidade dessa decisão deve ser compartilhada e ao mesmo tempo soberana. E a informação é o primeiro passo para a transformação. Consumidores críticos são capazes de promover mudanças em toda a cadeia, desde que sejam provocados a buscar informações, a exigir seu direito de saber o que está comendo e a exigir alimentos que tenham sido produzidos de forma mais saudável, tanto do ponto de vista biológico quanto ambiental, social e econômico. (*) Nutricionista e mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais – Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) / Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Analista de Programas Nacionais para Controle do Câncer do Instituto Nacional de Câncer.
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A agricultura e o clima Por Odo Primavesi*
A natureza possui três estruturas fundamentais mais visíveis: água da chuva, armazenada na vegetação e no solo – que é mantido permeável por cobertura vegetal permanente diversificada –; seus resíduos vegetais e suas raízes; e serviços ambientais, para garantir a vida e a produção, como a umidificação do ar, a estabilização da temperatura, chuvas regulares e de intensidade adequada. Pontos-chave da agroecologia. Isso é percebido quando comparamos uma área de floresta (ambiente natural clímax) ou de cerradão com uma área de rochas expostas, um ambiente natural primário sem as três estruturas e sem os serviços ambientais essenciais, sem solo, sem lençol freático, sem capacidade produtiva, sem plantas e animais, que irradia muito calor durante o dia, seco, com baixa umidade do ar, com ventos mais fortes, impróprio para a vida e a produção. A natureza também utiliza diversos procedimentos para evitar que a superfície terrestre queime sob ação da radiação do sol. Parte dela é filtrada, outra parte é refletida pelas superfícies claras (nuvens, neve, palha seca dos restos vegetais), ou é impedida de atingir o solo por anteparos que fazem sombra (nuvens, árvores). E quando a radiação consegue passar, existe o processo de atenuação do calor pela água presente no solo. E, existem os processos para dissipar esse calor, pela evaporação da água e formação de nuvens, pelas brisas e ventos e pela irradiação direta para o espaço, se os gases de efeito estufa deixarem. Assim, somente de 47% a 53% da radiação solar atinge a
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superfície terrestre, o que é suficiente para garantir a nossa vida e a produção. Veio o aquecimento global. Culpou-se os gases de efeito estufa que formam um cobertor em torno da Terra, que mantém uma temperatura que dê condições de vida às plantas, animais e humanos, e condições de produção de alimentos e outros. Mas nenhum cobertor gera calor ou esquenta. Ele retém o calor irradiado pelo corpo, pela Terra. Porém, existem áreas sem cobertura vegetal permanente dos solos e também áreas secas que geram calor em excesso. Áreas desérticas, áridas, semi-áridas e degradadas - sem as três estruturas e os serviços ambientais essenciais em ordem –, todas sem cobertura vegetal permanente. Não têm água suficiente para produzir alimentos em abundância. Considera-se que a produção vegetal depende em 70% da água no solo e no ar. Áreas secas geram picos de calor, que, em áreas sem cobertura vegetal evapotranspirante, geram quedas de umidade relativa do ar. Áreas em
degradação, ou degradadas, são aquelas com solo descoberto, exposto ao sol e às chuvas torrenciais, que encrostam superficialmente, compactam e impedem a absorção de água das chuvas que escorre, gera erosão, assoreamentos e enchentes. São áreas impermeáveis, que expulsam a água das chuvas de volta ao mar, e impedem a recarga dos lençóis freáticos e aquíferos. E se houver irrigação com essas águas subterrâneas, o nível de água abaixa mais rápido, necessitando-se aprofundar mais os poços, e as nascentes chegam a secar.
As causas e a solução E o que isso tudo tem a ver com agricultura? As atividades agrícolas são as áreas geográficas mais extensas sob ação do homem. Em um país onde, geralmente, a primeira atividade que se realiza é eliminar todas as árvores, queima-se a palhada, e deixa-se o solo nu, exposto ao sol e às chuvas tropicais. O solo encrosta e compacta. Dificulta o
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO desenvolvimento adequado das raízes, que são os “intestinos” e os “pulmões” das plantas. Dificulta ou impede a recarga do lençol freático. Esquenta. Gera brisas e ventos (grandes ladrões de água para os cultivos e os pastos), que aceleram o ressecamento da área. E aí, fica difícil alguma plantinha desenvolver e produzir fartura depois de 2, 3 anos. As pastagens degradam. As lavouras erodem e quebram a produção. Novas áreas de mata são derrubadas para repor as terras cansadas, degradadas rapidamente. E, quando essas áreas de lavouras e de pastagens forem extensas, em escala a perder de vista, sem uma árvore para vaporizar água na época da seca, o ar esquenta e a umidade do ar despenca, afetando a rebrota de plantas nesta área e no entorno e a saúde da população. Quando essa palhada é queimada, adquire cor escura; em vez de refletir a luz do sol, absorve toda a radiação solar e esquenta, derrubando mais ainda a umidade do ar, para em torno de 10 ou mesmo 5%, críticos para a saúde humana, para as criações e plantações. Quem tem esses mares de palha na época seca do ano? O produtor familiar certamente que não, pois trabalha com diversidade, em pequena escala.
Imagens de satélite do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que devido ao desmatamento sem critério de extensas áreas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, no período seco do ano, ocorrem irradiações de calor em excesso. Essas extensas áreas que geram calor em excesso comportamse como áreas degradadas, não cumprem os serviços ambientais essenciais à vida. Sem aquele “bafo do mato” benfeitor. E quando se queima essa palha, aí se destrói o alimento para os organismos do solo que ajudam a mantêlo permeável e produtivo. Destrói-se aquela “gordura da terra” tão importante. Áreas que esquentam mais geram mais ventos. Ventos que além de acelerar o ressecamento da terra, produzem deriva de produtos químicos que podem prejudicar lavouras vizinhas. Solução? Uma maior cobertura arbórea, imprescindível em região tropical e subtropical, para estabilizar temperaturas e garantir a umidade do ar. Para tanto, foi legalmente determinado o estabelecimento e a manutenção de matas ciliares e de reservas legais, e ainda mais, foram estabelecidos as grandes reservas e corredores ecológicos. E, para os sistemas de produção, foram desenvolvidos os sistemas agroflorestais
Mais para ler: Mudanças climáticas: visão tropical integrada das causas, dos impactos e de possíveis soluções para ambientes rurais ou urbanos. São Carlos-SP, Brasil: Embrapa Pecuária Sudeste, 2007. Disponível em: http:// www.cppse.embrapa.br/080servicos/ 070publicacaogratuita/documentos/ Documentos70.pdf Olá cidadã(o), jovem ou adulto! Entenda o cuidado com o seu ambiente, 2007. Embrapa Pecuária Sudeste. Disponível em: http://www.cppse.embrapa.br/ 080servicos/070publicacaogratuita/ documentos/Documentos77.pdf Conciliação entre produção agropecuária e integridade ambiental: o papel dos serviços ambientais. São Carlos-SP, Brasil: Embrapa Pecuária Sudeste, 2008. Disponível em: http:// www.cppse.embrapa.br/080servicos/ 070publicacaogratuita/documentos/ Documentos82.pdf
e silvipastoris, ou mesmo os reflorestamentos de corte escalonado. Os sistemas de plantio direto na palha e a integração lavoura-pecuária seriam um passo inicial de manejo adequado nos trópicos. Além das práticas de conservação de solo e de água, necessita-se atualmente a conservação de árvores vaporizadoras. Isso se torna cada vez mais premente, pois com o aumento da intensidade das chuvas, as simples práticas de conservação mecânica do solo, muitas vezes não são suficientes para reter a água das chuvas, precisase de árvores para interceptá-las e armazená-las, além de, com seu efeito de atenuação térmica, poder reduzir a intensidade das chuvas. (*) Odo Primavesi
Depois da seca, assentados colhem o que restou do feijão de corda no assentamento Baixão, em Itaitê (Ba)
Engenheiro Agrônomo e pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste.
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MST
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO
A ENERGIA DA TERRA Pensar a matriz energética sob o ponto de vista da agricultura não implica em produzir agrocombustíveis Roberto Malvezzi (Gogó)*
Há pouco tempo se dizia que a “terra já não era mais poder” aqui no Brasil. A sociedade brasileira teria evoluído e os setores industrial e de serviços teriam ocupado o espaço que antes pertencera aos donos da terra. No passado era indubitável, mas no presente já não seria mais realidade. Hoje, o simples fato de representar 30% das exportações brasileiras, faz com que o chamado agronegócio brasileiro tenha um poder político como jamais os antigos latifundiários tiveram. A bancada ruralista no Congresso chega à casa de 200 parlamentares que impõem ao resto da nação suas vontades, interesses e caprichos. Mais que nunca a terra é poder. Quando se apropria também da água, então esse poder deve ser considerado sempre ao quadrado. Terra mais água é poder ao quadrado. Acontece
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que os produtos do agronegócio não passam de meia dúzia de comodities: complexo soja, carnes, etanol e outros de peso menor na economia. Detendo esse poder, o setor pode impor seus interesses sobre o conjunto da sociedade. Um deles se expressa no setor energético. O cultivo cada vez mais intenso das melhores terras brasileiras para produzir cana é a prova dos nove de seu poder. Mas não é só. Cerca de 80% da matéria prima para o biodiesel provém da soja. Portanto, no agronegócio está a base dos chamados agrocombustíveis brasileiros, seja o etanol, seja o biodiesel. A força da terra está voltada para produzir energia líquida para movimentar veículos. Esse setor, por arrecadar dólares, é fartamente subsidiado pelo dinheiro público, tendo suas dívidas não só roladas, mas até liquidadas. Sem subsídios governamentais o setor não subsiste. Mas detendo o poder político, fechando um círculo
AGROECOLOGIA X AGRONEGÓCIO vicioso, sempre tem facilidade de renegociar suas dívidas em situações vantajosas. O setor, para produzir seus produtos, inclusive os agrocombustíveis, frequenta as páginas dos jornais e revistas como sistemático violador dos direitos trabalhistas e humanos, pagando pouco aos seus assalariados ou utilizando efetivamente a mão de obra escrava. O setor ainda é a ponta de lança da destruição ambiental brasileira, particularmente o desflorestamento da Amazônia e do Cerrado. Mas invade também a Caatinga ao longo do Rio São Francisco, trechos da Mata Atlântica, Pantanal e Pampa. No Cerrado, utiliza intensamente a água subterrânea para irrigar suas plantações de forma ilegal, muitas vezes sem outorga. Mas tem um agravante sem um estudo real da sustentabilidade do aquíferos. Dessa forma, se apropriando de terras antes públicas, da água, da mão de obra barata e escrava, financiado pelo dinheiro público, o agronegócio é mesmo um grande negócio.
O contraponto O último Censo Agropecuário brasileiro, do IBGE confirma a importância da agricultura familiar em nosso país. Responsável pelo abastecimento da mesa dos brasileiros, os produtos dessa agricultura não estão voltados para a exportação, mas para a segurança e soberania alimentar de nosso povo. A nação deveria fazer uma profunda reverência diante dos agricultores familiares, sejam eles de origem indígena e africana como no norte e nordeste, sejam eles de tradição européia como no sul e sudeste. Descendentes de alemães, italianos, polacos, ou mesmo os japoneses nos cinturões verdes das cidades, são os responsáveis pela nossa comida farta, variada e de qualidade. Se há fome é por problemas políticos e de políticas, não porque nos falta quem possa produzir.
Entretanto, corremos o risco de eliminar do território brasileiro essa categoria tão importante para nossa soberania alimentar. Vale o exemplo da Venezuela. Dominada totalmente por latifúndios, lá não há uma tradição de cultura camponesa. Por consequência, o País importa praticamente toda sua cesta básica. Agora, no governo Chávez, há uma tentativa de se criar uma agricultura camponesa. Mas não está sendo fácil. Quando não existe a cultura, a tradição, não se cria uma classe camponesa de um dia para o outro. Pois bem, o último Censo Agropecuário brasileiro indica que a agricultura familiar cada dia que passa perde espaço na terra, tem menos apoio econômico que o agronegócio, embora produza mais comida e gere mais emprego. É de se perguntar: para onde as políticas públicas querem conduzir o Brasil? Para a eliminação da classe camponesa, nos fazendo depender dos produtos do agronegócio voltados para a exportação de algumas comodities? Será que as autoridades brasileiras já avaliaram o que significa do ponto de vista cultural — saber produzir comida — a eliminação da agricultura camponesa? Dada a incapacidade brasileira de pensar estrategicamente, é bem possível que jamais tenham feito esse raciocínio. Aqui entra um dilema interno do próprio movimento camponês: vai voltar-se também para a produção de energia a partir da terra ou vai continuar produzindo alimentos? Esse debate não é falso. Vários assentamentos de Reforma Agrária no Nordeste — também outras regiões do país — dedicam-se à produção de cana para etanol. É bom que se diga: são excanavieiros e não sabem produzir outros produtos, a não ser cana. Prova dos nove do malefício que seja destruir uma cultura camponesa, seu “saber fazer”. Mas há argumentações internas nos
movimentos que os agrocombustíveis são uma oportunidade de geração de renda também para a agricultura familiar. É um campo minado e perigoso, sobretudo num mundo em que mais de um bilhão de pessoas passam fome. No Brasil, se formos considerar a regionalização da culinária brasileira, a questão se torna ainda mais delicada.
A nação deveria fazer uma profunda reverência diante dos agricultores familiares, sejam eles de origem indígena e africana como no Norte e Nordeste Entretanto, agricultores alemães e austríacos passaram a ganhar dinheiro com geração de energia, não dos agrocombustíveis, mas da solar e eólica. São donos de moinhos de vento e de um sistema de captação de energia solar imediatamente convertida em energia elétrica que é despejada na rede. O governo alemão compra essa energia. Há casos concretos em que um agricultor fatura mil euros por mês vendendo energia para o governo. Aqui sim estaria um futuro promissor para os pequenos agricultores brasileiros, já que nosso potencial eólico e solar são abundantes. Porém, permanece um desafio maior. Os camponeses brasileiros, ou transformam em poder político sua força econômica e social, ou vão perder sempre no Congresso as batalhas decisivas para os interesses do agronegócio. (*) Roberto Malvezzi Integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
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Verena Glass
Opção de camponeses do MST representa ruptura política em relação à hegemonia do agronegócio Adalberto Martins*
Nestes 25 anos de existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, fomos percebendo e desenvolvendo uma crítica às implicações do modelo do capital para a agricultura. Em certa medida, ao longo do tempo,
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fomos induzidos a reproduzir em nossos assentamentos a agricultura calcada nos insumos agroquímicos e na mecanização pesada. Muitas de nossas famílias, ao conquistarem a terra, iludiram-se que o modelo capitalista de agricultura traria o seu desenvolvimento e o bem-estar.
No entanto, diversos assentados, em seu fazer cotidiano, sentiram na pele as contradições e implicações concretas desta maneira capitalista de organizar a agricultura. As mudanças ocorreram por vários caminhos. Algumas famílias Sem Terra decidiram romper com esta lógica
PRÁTICA produtivista, porque foram contaminadas pelos agrotóxicos. Outras porque perceberam o alto custo de produção daquele modelo. Muitas outras porque se deram por conta da degradação que este modelo trazia para os seus recursos naturais, como solo, água, fauna e flora. Outras tantas modificaram, porque compreenderam a cadeia de submissão que tal modelo lhes arrastava.
experiências surgiram e prosperaram, indicando a possibilidade de estabelecermos uma nova relação com a natureza e entre os próprios seres humanos. Trata-se de uma maneira de produzir alimentos e meios de trabalho que se apóie na capacidade dos agro-ecossistemas locais, fazendo com que as forças da natureza coloquem-se ao nosso favor, tornado-se uma aliada, e não uma força inimiga a ser controlada ou combatida. Além disso, essas experiências vão mostrando como é possível desenvolver forças produtivas de uma forma não alienada, onde as capacidades humanas e da natureza se coloquem plenamente e de forma sustentável. Mesmo que limitada a algumas experiências locais, já compreendemos que a agroecologia é um elemento importante em um pro-
Rumo à agroecologia
jeto societário que negue o capital. Apesar da agroecologia não ter força em si mesma de edificar uma sociedade socialista, tal sociedade perderá sentido e força humanizadora se tal projeto não incorporar a agroecologia e realizar uma radical crítica ao modelo produtivista do capital. Esperamos com esta edição especial da Revista Sem Terra motivar todas as famílias camponeses, todos os intelectuais, os militantes das organizações sindicais, populares, religiosos, estudantes etc a acreditarem na possibilidade de organizarmos uma outra maneira de produzirmos no campo ajustado ao projeto revolucionário e socialista. (*) Adalberto Martins Setor de Produção do MST
Experiências locais de agroecologia trazem semente de um outro modelo de produção no campo
Verena Glass
Os métodos para o desenvolvimento da agroecologia também foram os mais diversificados. Várias famílias ou grupos produtivos decidiram eliminar o uso do agrotóxico em algumas culturas, construindo um processo gradual. Outras decidiram abolir os venenos e os adubos químicos em todas as atividades produtivas. Algumas foram mais longe e romperam, de uma única vez, todos os procedimentos tecnológicos da agricultura industrial. Além de gerarem alimentos saudáveis e mais nutritivos para as suas famílias, também se organizaram diversas formas de venda destes produtos, por meio de feiras locais, redes de comercialização de produtos ecológicos, como também foram aproveitados os canais institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos com doação simultânea e, ainda que inicial, as compras da agricultura familiar para a merenda escolar. Desta forma, conseguimos restabelecer a função social da terra. Onde antes, com o latifúndio, reproduzia-se a exploração do ser humano e a degradação da natureza, agora produzimos alimentos e recuperamos a natureza. Apesar das distintas motivações e dos diferentes métodos utilizados, as
AGROECOLÓGICA
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PRÁTICA
AGROECOLÓGICA
Rio Grande do Sul Na próxima safra, os assentados do MST no estado pretendem colher 1.830 hectares de arroz orgânico ou em transição. São 196 famílias que apostaram na produção agroecológica de uma cultura tipicamente associada com uso intensivo de venenos. Os resultados colhidos, literalmente, em seis anos de experiências convenceram mais famílias do MST a adotarem a agroecologia. “No começo, eram quatro ou cinco famílias que reservavam uns dois hectares de sua área para as experiências. A cada ano, crescemos mais de 20% tanto em número de famílias, quanto em área ou em produtividade”, comemora Emerson Giacomelli, assentado em Nova Santa Rita.
Rio de Janeiro Em agosto de 2009, as famílias dos assentamentos da região norte fluminense retomaram a organização de uma pauta antiga: a Feira da Reforma Agrária, que desde início de 2007 foi impedida pela Prefeitura local. A retomada deste importante espaço foi fruto da luta dos trabalhadores Sem Terra. Em março de 2009, as famílias assentadas ocuparam a Prefeitura de Campos dos Goytacazes, durante a Jornada de Lutas, reivindicando pautas ligadas às áreas da saúde, educação e produção.
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Estas primeiras experiências estavam localizadas nos assentamentos de Tapes e de Nova Santa Rita, mas hoje se estendem para assentamentos de mais quatro municípios gaúchos. Um deles é o Filhos de Sepé, em Viamão, antigo latifúndio onde a produção de arroz incluía a aplicação de veneno com aviões. Dentro do assentamento, há uma área de proteção ambiental e a nascente de um dos rios que abastece a capital Porto Alegre. Com a adoção da agroecologia, parte da biodiversidade local está sendo recuperada. “Já podemos notar a volta de espécies que estavam desaparecidas do local e o restabelecimento de um ecossistema”, explica Edson Cadore, agrônomo que acompanha a produção agroecológica na região. Entre as técnicas utilizadas na produção do arroz estão a rizipsicultura, que combina o plantio
Para os assentados, a Feira tem a proposta de levar a sociedade o debate da viabilidade da Reforma Agrária como produtora de alimentos saudáveis e baratos, da geração direta de empregos, além de moradia, saúde, educação. Os trabalhadores também querem aproveitar esse espaço para mobilizar mais famílias a participarem da discussão. “O foco é criar mais feiras no município, com o principio da agroecologia.”, afirma Francisquinho, do Assentamento Zumbi dos Palmares. A perspectiva dos produtores é espalhar Feiras da Reforma Agrária pelo município de Campos dos Goytacazes, como criar
Eduardo Quadros
A agroecologia em
Colheita do arroz agroecológico
com a criação de peixes. As espécies de carpas substituem o uso de venenos no combate a pragas, além de revirarem o solo. Outra técnica é a criação de marrecos combinada com o cultivo. Para o assentado Giacomelli, o uso
mais uma no município vizinho de Cardoso Moreira, onde existem três assentamentos. A feira é composta por 30 famílias que comercializam diversos produtos em 20 bancas, todos os domingos. São vendidas frutas, hortaliças, raízes, produtos processados como farinha de mandioca, tapioca, polvilho, queijo, doces, geléias, entre outros. Segundo o regimento interno, somente é permitido comercializar produtos agroecológicos. Não é permitida a utilização de agrotóxicos. Além desses produtos, também são vendido livros da editora
PRÁTICA
AGROECOLÓGICA
assentamentos do MST
destas técnicas está em sintonia com a proposta agroecológica. “É necessário usar de forma correta o solo e a água para não haver desgaste da natureza. A produção ecológica permite isso”, afirma. Os resultados são evidentes. O
custo da produção de arroz com veneno pode chegar a R$ 4 mil por hectare. Na produção agroecológica, os custos ficam em torno de R$ 1 mil. Além disso, os assentados têm colhido em média 85 sacas de arroz por hectare. Para Cedenir de Oliveira, assentado em Viamão e integrante da Coordenação Nacional do MST, a produção agroecológica por si só, não basta. “Produzir orgânico é interessante, bonito, agrega mais valor. Agora, agroecologia não é só produzir produtos orgânicos. Tem que ser modo de vida”, explica. “Aqui temos demonstrado que não somente produzimos orgânico, mas produzimos em cooperação. Se estivéssemos individualmente, não teríamos como estar hoje com esta mesma produção”, acrescenta. É por meio da cooperação agrícola, em diferentes níveis, desde os grupos nos assentamentos à comercialização,
que a produção do arroz orgânico é viabilizada. Os assentamentos de Tapes, Charqueadas e Nova Santa Rita possuem descascadores, silos e limpadores que atendem ao conjunto dos assentamentos do grupo orgânico. Uma nova agroindústria deve ser construída em Viamão para atender a demanda crescente dos assentados. O arroz é comercializado por meio da cooperativa regional e o produto leva na embalagem a bandeira do MST. Parte da produção é comercializada na Loja da Reforma Agrária, no Mercado Público de Porto Alegre, mas grande parte é destinada para atender programas municipais de merenda escolar ou a compra antecipada do governo federal. (Miguel Enrique Stédile, do Setor de Comunicação do MST-RS)
MST
Expressão Popular. A proposta é fornecer produtos saudáveis, como cultura para a sociedade. O município de Campos dos Goytacazes fica localizado na região norte do estado do Rio de Janeiro. Historicamente, é caracterizado como a principal região produtora de canade-açúcar do estado e uma das principais do país. Atualmente, o município possui oito assentamentos conquistados pela organização dos trabalhadores Sem Terra, através do MST, dos quais metade são consequência do processo de falência das usinas sucroalcooleira. (Setor de Produção do MST-RJ)
Feira da Reforma Agrária conta com 30 famílias do MST
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AGROECOLÓGICA
MST
PRÁTICA
Paraná Atualmente, o povo Sem Terra do estado conta com várias experiências em produção agroecológica. Um exemplo são as 108 famílias que vivem no Assentamento Ander Henrique, em Diamante do Oeste, na região oeste paranaense. Após uma parceria problemática com a Lar (Cooperativa Agroindustrial Lar), uma das maiores cooperativas da região, os assentados optaram pela produção agroecológica. A decisão foi tomada em 2003, quando as famílias registram no Regimento Interno do assentamento a opção em produzir de forma totalmente orgânica, evoluindo para a transição da matriz agroecológica. “Na linha de produção agrícola, fica definida a proibição de uso de qualquer produto químico. A mesma definição deverá ser respeitada por todos, pois as famílias optaram pela
MST
Assentado mostra o cultivo de produção agroecológica
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linha de produção 100% orgânica, cabendo a todos reflorestar e proteger as nascentes e o meio ambiente”, recomenda o documento. Nos último dois anos, os camponeses têm intensificado o desenvolvimento de várias práticas agroecológicas para o auto-consumo das famílias e comercialização, nas linhas de produção de leite, mandioca, milho, ervas medicinais, frutas, pequenos animais, trigo, batata doce, entre outros. O assentado Marino Giel, de 58 anos, conta que no início não foi fácil mudar, mas com a produção agroecológica a vida das famílias melhorou muito. “Quando decidimos produzir na agroecologia foi difícil porque o povo estava com aquele sistema do veneno na cabeça. Mas hoje ninguém mais quer voltar atrás. Além da produção ter melhorado, são produtos mais saudáveis”, afirma. Segundo o engenheiro agrônomo do assentamento, Allan Denizzard, a escolha pela agroecologia se constitui em uma decisão política de ruptura com o modelo convencional de produção agropecuária. “Esta definição caracteriza a mudança de mentalidade, que altera o sistema produtivo e a dinâmica de organização da produção do assentamento, influenciando o programa do sistema produtivo do PDA [Plano de Desenvolvimento Sustentável do Assentamento], que tem como objetivo definir diretrizes para o desenvolvimento sustentável dos assentamentos”, conta. A produção dos assentados é certificada pelo Centro de Apoio ao Agricultor (Capa) de Marechal Cândido Rondon, e a Rede de Agroecologia ECOVIDA: uma articulação de agricultores familiares, técnicos e consumidores reunidos em associações, cooperativas e
Transição para matriz agroecológica
grupos de famílias, que trabalham com a prática e incentivo da agroecológica. Além da produção nos lotes, as famílias implantaram um Núcleo de Pesquisas em Agroecologia, onde são realizados vários tipos de experimentos. Hoje uma das experiências mais marcantes é a produção de sementes crioulas, entre os camponeses, garantindo a autonomia na produção das próprias sementes. Também são utilizadas várias formas de adubação verde, manejo de solo adequado para
Pernambuco Na Zona da Mata Pernambucana, uma região historicamente marcada pelo monocultivo de cana-de-açúcar, pela violência patrocinada por usineiros e por condições precárias de trabalho nos canaviais, famílias de assentados da Reforma Agrária desenvolvem alternativas de produção ecologicamente mais sustentáveis e economicamente mais viáveis. No Assentamento Antonio Conselheiro, localizado no município de Gameleira, as 96 famílias assentadas possuem
Santa Catarina
foi definida pelos assentados
evitar erosões, criação de gado em sistema Voison (piqueteamento), e tratamento de doenças do gado leiteiro com aplicação de ervas medicinais. O Assentamento Ander Rodolfo Henrique, conta com 2.972 hectares, e está localizado na antiga fazenda Comil. A área foi desapropriada em novembro de 2003 e ocupada pelo MST, pela primeira vez, em setembro de 2001. (Solange Engelmann, do Setor de Comunicação do MST-PR)
um banco de sementes agroecológicas e um viveiro onde produzem mudas para a comercialização e para a diversificação da produção do assentamento. Onde ontem se produzia apenas cana-de-açúcar para a Usina Estreliana, hoje os assentados produzem graviola, laranja, banana, milho para a produção de óleo, maracujá, coco, limão, pimenta e hortaliças, tudo em sistema agroecológico, muito mais saudável para as pessoas e para o meio ambiente. (Cassia Bechara, do Setor de Comunicação do MST-PE)
MST
O MST de Santa Catarina desenvolve várias experiências na área da agroecologia nos assentamentos. Produção de hortaliças, frutas, leite, feijão, peixes, moranga e porcos estão espalhadas nas áreas de Reforma Agrária em todas as regiões do estado. Além dessas experiências, estão em funcionamento dois Cursos Técnicos em Agropecuária Agroecológica. Na Escola 25 de Maio, em Fraiburgo, região do planalto catarinense, duas turmas já se formaram e está em andamento a terceira. No Assentamento José Maria em Abelardo Luz, a Escola de Ensino Médio Paulo Freire desenvolve o Curso de Ensino Médio Integrado a Educação Profissional dentro do Eixo Tecnológico de Recursos Naturais “Técnico em Agroecologia”. A primeira turma teve início no ano letivo de 2009. O curso desenvolve, além da formação humana integral, as competências básicas necessárias aos educandos e educandas e a preparação para o pleno exercício da cidadania oferecida no Ensino Médio. A formação técnica em Agroecologia é necessária para preparar jovens filhos de agricultores assentados a serem capazes de construir um processo de permanência e fortalecimento das pessoas no campo. Além de contribuir para a mudança da matriz tecnológica e produtiva, explorando os recursos naturais de forma consciente, a iniciativa visa alcançar a sustentabilidade econômica e ambiental, somando desta forma na construção de um novo modelo agrícola popular, fortalecendo os assentamentos e a agricultura familiar.
Os sistemas produtivos da pequena propriedade baseados na agroecologia contribuem no combate ao êxodo rural e, consequentemente, na permanência da população no campo. Utilizando o método pedagógico voltado à capacitação das pessoas que dele participam, a Escola desenvolve a consciência organizativa combinada com outras dimensões da formação humana relacionadas aos objetivos gerais do curso e dos movimentos sociais – principalmente o MST.
Alunos da Escola Paulo Freire
Os objetivos específicos, desenvolvidos durante o curso visam garantir uma sólida formação básica unitária, politécnica que articula cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direitos de todos e condição da cidadania e democracia efetiva. Estimula-se também a capacidade de identificar e gerenciar novas oportunidades de trabalho e renda dentro da área de recursos naturais mais especificamente na agroecologia. Outro fator importante é a doação do corpo docente, buscando novas e modernas experiências de trabalho agroecológico que estimulam os educandos na busca pelo saber. (Dirceu Pelegrino Vieira e Edilaine Aparecida Vieira, do MST-SC)
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PRÁTICA
AGROECOLÓGICA Mayrá Lima
Distrito Federal Sábado, cedinho, a família de seu Ivo Barfknecht pode ser encontrada a postos na feira que acontece na quadra 315 norte, em Brasília, para atender a fila de clientes que já o esperam. Na sua banca, só frutas, leguminosas, mel e hortaliças, todas orgânicas, e produzidas por meio da união de nove famílias que abriram a AgroCarajás, uma empresa de produtos agroecológicos, localizada no Assentamento Cunha, na Cidade Ocidental (GO). E não é só nesta feira que os consumidores brasilienses podem encontrar os produtos da Reforma Agrária. São mais cinco lojas espalhadas pela cidade que escoam os produtos do assentamento, além de um ponto na Ceasa local. “A tendência é que o produto orgânico tome conta do mercado, mas o preço de venda ainda é uma dificuldade para o consumo de muita gente”, explica Seu Ivo. A opção pela agroecologia no assentamento foi tomada em 2002, quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Seu Ivo e os filhos Nivaldo e Marcelo Barfknecht
colocou o desafio para os seus militantes no DF e entorno. No ano seguinte, as famílias buscaram parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para o desenvolvimento de pesquisas em torno de sementes e produtos orgânicos. Hoje, o grupo pertencente à AgroCarajás não só está satisfeito com os resultados, como já possui crédito aprovado para a ampliação da empresa e a compra de mais maquinário para o processamento das frutas em geléias e polpas de frutas do cerrado, além da distribuição de sementes. “Vamos agora procurar transformar a empresa em uma cooperativa, com todas as suas burocracias. Na próxima safra, nós trabalharemos com a produção de sementes para a comercialização”, afirma animado Seu Ivo.
Produtos da AgroCarajós
Mayrá Lima
Coletividade
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Cada roça feita com qualquer leguminosa ou hortaliça é intercalada com pés de frutas, como mamão ou banana. A adubação é verde, ou seja, são usadas plantas que fazem o mesmo papel de nutrição do solo que
um adubo químico. As estufas, em formação, são feitas com bambus e lonas: uma economia de quase R$ 25 mil e que não agride a natureza. Todo o processo produtivo é realizado dentro do assentamento: desde a colheita, passando pela pesagem e culminando no embalamento é feito pelas famílias por meio do trabalho coletivo. As mulheres também realizam a tarefa de extrair e embalar plantas que podem servir como medicamentos. Todos garantem, por semana, cerca de R$ 600 a 700. “Vamos adquirir, agora, uma despolpadeira e uma embaladora a vácuo para ampliar a produção”, anuncia seu Ivo. A relação com a clientela cativa em todas as feiras e lojas também é citado como uma vitória. Seu Ivo, por exemplo, conhece todos os seus compradores e compradoras e sabe a necessidade de cada um e cada uma. “É bom trabalhar com clientes com consciência. Eles conhecem o que é orgânico ou não. Nem adianta tentar enganar”, alerta. (Mayrá Lima, do Setor de Comunicação do MST, em Brasília)
PRÁTICA
AGROECOLÓGICA
Rede do MST semeia mais saúde e menos agrotóxicos nas lavouras A Rede Bionatur de Sementes Agroecológicas nasceu em 1997 como mais uma ferramenta do MST para enfrentar o agronegócio, mostrando que dá para fazer uma outra forma de agricultura. Mostrar que a Reforma Agrária é sustentável, que a agroecologia é uma ferramenta viável junto com a produção de sementes, a auto-suficiência das famílias, a soberania alimentar e o mercado solidário. A rede consiste em organizar os assentados e assentadas para garantir uma produção auto-sustentável e uma renda familiar. No início eram apenas 12 famílias escolhidas para implementar o processo da produção de sementes ecológicas em três assentamentos no Rio Grande do Sul. Atualmente, a Bionatur está organizada em 230 famílias nos três estados da Região Sul. A Bionatur já desenvolveu técnica para produzir 117 variedades de hor-
Dica: onde encontrar A Bionatur comercializa dezenas variedades de sementes de hortaliças para qualquer parte do país e até mesmo para o exterior, via sedex ou por transportadora. As sementes são vendidas em envelopes de 10g ou em latas de 100g, 250g e 500g. Para mais informações acesse www.bionatur.com.br ou mande uma mensagem para bionatur@bionatur.com.br ou telefone para (53) 3503-126
taliças, 15 de adubação verde e 10 culturas essenciais para o auto-sustento das famílias. As sementes possuem certificação de produção agroecológica junto ao Ministério da Agricultura e são comercializadas em praticamente todos os estados do Brasil. A Bionatur é coordenada pela Cooperativa Agroecológica Terra e Vida (Conaterra).
Sustento da família O conceito de soberania alimentar é muito trabalhado pela Bionatur, que visa garantir ao agricultor a produção de sua própria alimentação, sem a dependência de empresas de sementes, adubos e outros produtos. O trabalho desenvolvido é em toda a unidade do lote, seja na produção de sementes ou em qualquer outra cultura, desde que ela seja diversa. “A idéia é você não ser apenas um produtor para se viabilizar economicamente, mas para defender a vida, a biodiversidade dentro da propriedade, do assentamento, e ter um alimento mais saudável para você e para o resto da sua família”, afirma Elton Seghetto, assentado em Hulha Negra (RS). Angelim Padilha, assentado da região de Candiota (RS), garante que poder alimentar sua família sem sair de casa é um grande avanço, mesmo que indo contra os valores comerciais da agricultura convencional. “Nosso objetivo não é enriquecer. É melhorar, encher a barriga. O que precisamos para uma mesa, podemos buscar na lavoura e não no mercado. Este é o
Atualmente, a Bionatur conta com 230 famílias na região Sul do país
meu ideal. Plantar de tudo para as refeições serem fartas”, diz. Para os agricultores, são muitas as dificuldades de iniciar a produção agroecológica, mas maiores são as vantagens de começar a plantar sem venenos. “Nós começamos com um pé na frente e outro atrás. Não sabíamos nem do que se tratava. Ninguém nunca tinha ouvido falar em agroecologia”, conta o agricultor Délcio Jacó, assentado em Hulha Negra. Ele afirma que dez anos após optarem pela Bionatur, as famílias conseguem produzir sementes e plantar qualquer alimento sem agrotóxicos. “Isso eu assino embaixo”, garante. (Nina Fideles, do Setor de Comunicação do MST)
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PRÁTICA
AGROECOLÓGICA Riquiele Capitani
Formando (re)construtores do campo com Agroecologia A luta pela apropriação do conhecimento histórico, científico e técnico produzido pela humanidade Educandos da Escola Latino Americana de Agroecologia Nilciney Toná* Aparecida do Carmo Lima**
O desenvolvimento do capitalismo no campo no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1960, intensificou o investimento do capital e a mecanização agrícola, subordinando a agricultura à indústria. Seja na compra de insumos industrializados, seja na venda de matéria prima para agroindustrialização ou na própria lógica de produção agropecuária. Este processo teve profundas consequências sociais, econômicas e ambientais para toda sociedade, em especial para as famílias camponesas. Nos últimos dez anos, o MST e a Via Campesina intensificaram seu esforço para construir uma nova forma de organização do campo e de produção agropecuária. Existem diversas experiências sendo desenvolvidas e compreende-se que a agroecologia é estratégica para o desenvolvimento dos assentamentos e possibilita garantir maior grau de autonomia aos camponeses e camponesas e suas organizações.
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Uma das iniciativas dos trabalhadores dos movimentos sociais do campo neste sentido é a luta pela apropriação do conhecimento histórico, científico e técnico produzido pela humanidade. Este conhecimento, embora reconhecido como necessário, não deve ser visto como o único verdadeiro. Ao contrário, deve dialogar com o conhecimento dos camponeses, construído por sua íntima relação com o ambiente em que vivem e manejam, pela observação e pelos aprendizados por tentativas, erros e acertos desenvolvidos no ato cotidiano da busca da sua produção e reprodução social. Essa perspectiva tem orientado a formação desenvolvida nos centros de formação e escolas de agroecologia do MST e da Via Campesina no Paraná. Estes espaços, organizados pelos movimentos sociais do campo, contribuem no processo de luta e organização do sujeito camponês. São realizadas diferentes atividades de formação e educação, destacando-se os cursos formais, técnicos de nível médio, sequenciais e tecnólogos em agroecologia.
Ressalta-se que os centros/escolas de formação não estão legalizados como instituições de ensino, mas são denominados assim pelos próprios sujeitos Sem Terra e camponeses. A escolarização é feita com os cursos formais, mas as práticas educativas são realizadas em parceria com o Instituto Federal do Paraná (IFPR) — que certifica os cursos e contribui de modo relevante na construção dos deles -, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) — por meio dos recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). A Casa Familiar Rural Padre Sasaki, por exemplo, tem o Curso Técnico certificado pelo Governo do Paraná.
Cursos técnicos É no ano de 2003 que se tem a criação e aprovação dos cursos técnicos em Agroecologia no MST no estado. Já foram concluídas sete turmas, cujas práticas educativas em agroecologia proporcionaram a formação de 185 militante-técnicos, habilitados profis-
PRÁTICA sionalmente para intervir na organização e construção de práticas agroecológica nas áreas de Reforma Agrária e comunidades do campo. Atualmente existem em andamento sete turmas dos cursos de Agroecologia, envolvendo cerca de 270 estudantes. Por meio do método de formação desenvolvida nestas práticas educativas, cada educando e educanda é desafiado a acompanhar, desde o início do curso, aproximadamente 50 famílias, contribuindo tecnicamente e também na organização dos assentamentos e comunidades do campo. Durante o tempo em que permanecem nas comunidades estabelecem uma relação com as famílias, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento do campo e a construção da agroecologia. Assim, os cursos técnicos
e as atividades relacionadas à eles atingem cerca de 13,5 mil famílias em todo estado. Os cursos formais acontecem em regime de alternância. Atividades teóricas e práticas na escola e períodos de atividades práticas relativas a agroecologia durante o tempo comunidade. Estes dois momentos (tempo escola e tempos comunidade) são compreendidos como partes não separadas de um mesmo processo educativo. Embora tenha uma intencionalidade de formação específica e profissionalizante, a perspectiva é a formação do ser humano em sua totalidade. Para isso, se adotam como eixos metodológicos principais: a alternância, o trabalho como elemento pedagógico fundamental, a formação integrada ao processo de produção, organização de tempos
Centros/escolas de formação do Paraná: a) Escola Iraci Salete Strozak, (Cantagalo) e Escola Ireno Alves dos Santos (Rio Bonito do Iguaçu). Ambas pertencem ao Centro de Desenvolvimento Sustentável Agropecuário de Educação e Capacitação em Agroecologia e Meio Ambiente (CEAGRO); b) Escola José Gomes da Silva, do Instituto Técnico de Educação e Pesquisa da Reforma Agrária (Itepa), constituída em 2000, no Município de São Miguel do Iguaçu; c) Escola Milton Santos (EMS), constituída desde 2002 no município de Maringá, se tornou um espaço de diálogo com o meio urbano; d) Os movimentos da Via Campesina inauguraram, em
2005, no muncipío da Lapa, a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), que realiza o Curso de Tecnologia em Agroecologia; e) A partir de 2007, as escolas de formação passam a articular atividades em comum com a Casa Familiar Rural Padre Sasaki, em Sapopema. Em 2006, a Casa teve aprovada a implementação do curso de técnico em agropecuária com ênfase em agroecologia. O local é regido por uma associação de agricultores, na sua maioria pais de estudantes, muitos deles jovens de assentamentos e está vinculada a Associação Regional das Casas Familiares Rurais do Sul do Brasil (Arcafar-Sul).
AGROECOLÓGICA
educativos para diferentes atividades, organização de coletivos e co-gestão dos estudantes, relação escola e comunidade como elemento estratégico, a qualificação aliada à escolarização, à formação política e de caráter. Cada espaço formativo compartilha de linhas políticas e princípios comuns dos movimentos sociais populares que os constituem e possuem também a sua especificidade de acordo com o contexto no qual se inserem. Nestes espaços, além dos cursos técnicos em agroecologia, acontecem também outras atividades formativas como encontros, seminários, cursos e reuniões. Cada local também desenvolve experiências práticas de produção ecológica (agroflorestas, leite, cereais, hortaliças, frutas, mandioca, pequenos animais etc), bioconstruções, uso de energias renováveis e recuperação e preservação ambiental. As práticas educativas e ecológicas desenvolvidas têm por objetivo geral estabelecer uma proposta de educação da classe trabalhadora em que as técnicas e as ciências, em diálogo com o saber popular, possam, no contexto da luta dos movimentos sociais, contraporem-se ao agronegócio e reconstruir o campo em novas bases sustentáveis e, portanto, volte-se para a vida do humano com dignidade e respeito ao ambiente. (*) Nilciney Toná Agricultor e militante da Via Campesina. Graduado em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá e coordenador político — pedagógico dos cursos técnicos em Agroecologia do MST. (**) Aparecida do Carmo Lima Agricultora, educadora popular e integrante da coordenação pedagógica da Esola Milton Santos e do curso técnico em Agroecologia. Graduada em Pedagogia do Campo pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
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PRÁTICA
Bolívia
AGROECOLÓGICA
Um potencial protagonista do Processo de Câmbio
Na Bolívia, riqueza natural e cultura indígena se chocam com força do agronegócio João Campos*
A Bolívia tem papel destacado, mundialmente, na produção de alimentos orgânicos. Esse destaque tem como principais razões as propícias condições oferecidas pela riqueza natural do país e a cultura indígena ancestral que segue viva no cotidiano dos povos originários. Por outro lado, carrega fortes heranças da política agrícola desenvolvida com as imposições dos EUA durante décadas e com o avanço da fronteira agrícola brasileira na região do chamado Oriente Boliviano. O governo e as organizações sociais indígenas e campesinas que conduzem o Processo de Câmbio em curso na Bolívia — conjunto de iniciativas para
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transformação social e econômica a partir do governo Evo Morales — têm no desenvolvimento de sistemas de produção agroecológicos um enorme potencial transformador. O país reúne uma enorme diversidade ecológica e ecossistemas que permitem o cultivo de muitas culturas. Trata-se ainda de um dos povos que possui maior domínio de técnicas agrícolas concebidas a partir de conhecimentos locais e fundadas no princípio de respeito e adoração à “Mãe Terra”. O fato dos povos detentores desses conhecimentos não terem sido exterminados, física e culturalmente, fornece à Bolívia uma produção considerável de alimentos orgânicos (uma das maiores do mundo). Esses
princípios de respeito e adoração se manifestam principalmente em dois aspectos: na utilização coletiva da terra para produção e sociabilidade e na prioridade de produção de alimentos saudáveis para o auto-consumo. Porém, as consequências da Reforma Agrária de 1953 e a influência estadunidense na política agrícola boliviana representaram forte ameaça a essa forma ancestral de relação com a terra e permitiram o avanço da Revolução Verde em diversas regiões do país. Hoje, na região oriental, muitos latifundiários brasileiros e diversas transnacionais investem fortemente na produção de transgênicos e na atividade agrícola voltada à exportação. Muitos conflitos por terra se espalham na
PRÁTICA
Sistemas agroecológicos Nesse processo de embate, podemos destacar o esforço do MST-B (Movimento dos Trabalhadores Campesinos Originários Sem Terra da Bolívia) em desenvolver sistemas agroecológicos nas suas comunidades. O MST-B existe desde 2000 e está organizado nos departamentos de Tarija, Santa Cruz, Bene e Pando. Contando com um vasto leque de parcerias, entre elas a com o MST brasileiro, o movimento boliviano pretende desenvolver nos próximos três anos um grande projeto nesse campo.
A iniciativa envolve formação política, capacitação técnica e desenvolvimento de produção orgânica em seus territórios. A contribuição com esse processo possibilita ao MST e à Via Campesina Brasil um enorme aprendizado. Os indícios cada vez mais fortes de que o capitalismo não oferece um destino digno à humanidade levam as organizações sociais a somarem esforços. Desejosa de profundas transformações, se juntam na realização de lutas e na construção de experiências que apontem para outra forma de organizar a sociedade. Oxalá, essa parceria contribua para o Processo de Câmbio boliviano e traga luz e novas perspectivas na área da agroecologia em geral.
Formação política caminhará junto ao aprendizado das técnicas de produção Fotos: João Campos
região, configurando um dos grandes desafios políticos ao governo de Evo Morales: propiciar condições que fortaleçam a soberania alimentar em detrimento do avanço do agronegócio no país.
AGROECOLÓGICA
(*) João Campos Integrante do MST-SP
Produção de alimentos saudáveis está entre as prioridades dos pequenos agricultores
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PRÁTICA
Venezuela
AGROECOLÓGICA
Um projeto integrado às perspectivas do país Arquivo Centro “Bolívar em Martí”
Centro “Bolívar em Martí” combina iniciativas agroecológicas e educação ambiental
Público do centro é bastante variado, indo de estudantes a moradores da região
Francisco Javier*
No setor La Bandera do Município Libertador do Distrito Capital (Caracas) está a sede do Centro de Ecologia Social “Bolívar em Martí”, que desenvolve programas de formação em agroecologia e em educação ambiental, em conjunto com a for mação político-ideológica. Fundado em 1989, por iniciativa de um grupo de jovens das paróquias de Coche e El Valle, o centro tem orientado sua ação
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para o trabalho em setores populares, urbanos e rurais, a partir de uma perspectiva contrahegemônica que enfrenta o modelo de “desenvolvimento” predador do capitalismo transnacional, promovendo a consciência ecossocial emancipadora e o desenvolvimento de estilos de vida alternativos no marco da construção do ecossocialismo. O ”Bolívar em Martí”, é autogestionado e ocasionalmente recebe modestas contribuições de instituições do Estado, com as quais tem
unido esforços para levar à prática planos e programas que estão em sintonia com os planos de desenvolvimento nacional. No centro, confluem conselhos comunais, estudantes, ativistas sociais, trabalhadores e vizinhos que se integram em um variado leque de atividades que inclui, entre outros aspectos, e além da agroecologia, projetos de desenvolvimento de ecotecnologias, bioconstrução, recuperação dos recursos hídricos, saneamento ambiental, minhocultura, produção de biofertilizantes e arte ecológica. Também serve como espaço para o trabalho, a troca e a formação relacionados com os propósitos de diversas missões sociais postas em marcha pelo governo revolucionário da República Bolivariana da Venezuela, especialmente aquelas vinculadas às áreas cultural, educativa, ambiental, agrícola e de economia social. Atualmente, o “Bolívar em Martí” desenvolve um projeto piloto de agroecologia e educação ambiental em comunidades camponesas do eixo Junko-Carayaca, que abrange vários municípios dos Estados Aragua, Miranda e Vargas da zona central do país. Esse projeto, alinhado com o Plano de Desenvolvimento Nacional Simón
PRÁTICA Bolívar 2007-2013, inclui a eliminação progressiva do uso de agrotóxicos e o saneamento integral de um enorme aterro sanitário de resíduos sólidos localizado no Parque Nacional Macarao, bem como de várias bacias de rios localizadas na região. Também tem como objetivo a formação de uma ecoaldeia destinada ao resgate da agricultura ancestral da região, a formação de quadros
camponeses em agroecologia e a formação ecossocial de estudantes das missões Sucre e Ribas. O projeto conta com a ativa participação de conselhos camponeses, conselhos comunais, profissionais e estudantes de diversas instituições de ensino universitário. Para 2010, o “Bolívar em Martí” projeta a criação do canal de televisão “Comarca Ecológica”, que vai transmitir, a partir de suas instalações
AGROECOLÓGICA
de La Bandera, uma programação com conteúdos ecossociais para boa parte do centro e do sudoeste da cidade de Caracas. Igualmente, está prevista a construção de uma pequena planta de insumos para a produção agroecológica. (*) Francisco Javier Integrante do Centro de Ecologia Social “Bolívar em Martí” Tradução: Naila Freitas
O grande desafio da Venezuela neste momento é resolver o problema da dependência da importação de alimentos, superando uma fase nefasta para o campesinato, criado pela burguesia petroleira há mais de 50 anos. Nestes últimos cinco anos, a revolução bolivariana tomou como desafio estratégico romper a dependência histórica e construir a soberania alimentar no país; A soberania alimentar vem sendo construída conjuntamente com políticas voltadas a resolver a falta de produção e iniciar – ainda muito timidamente – um processo de produção agroecológica que tem como eixo as escolas de agroecologia. O tema já existe como matéria universitária na Universidade Bolivariana de Venezuela (UBV) e em muitas outras escolas de nível médio. Além disso, no âmbito da Alternativa Boliviana para as Américas (Alba) o MST
construiu, junto com o governo da Venezuela e a Via Campesina, a primeira universidade campesina para formar engenheiros/as agroecológico/a de toda América Latina e Caribe: o Instituto LatinoAmericano de Agroecologia-Paulo Freire (Iala). Antigos latifúndios de monocultivo, sobretudo de gado extensivo, têm sido desapropriados e transformados em empresas estatais agroecológicas. E, somando-se os fatores já elencados, iniciou-se a discussão do Primeiro Plano Nacional de Agroecologia. Além disso, estão sendo construídos laboratórios de bioinsumos, para uso e pesquisas de áreas campesinas. Na Venezuela, percebe-se, também, uma clara política contra os transgênicos, contra a utilização de grãos alimentares para bicombustíveis e em defesa da construção da soberania alimentar. Ainda que tais políticas não se transformem da noite para o dia – inclusive pela dependência de alimentos que afeta a Venezuela –, há políticas já colocadas
Arquivo Centro “Bolívar em Martí”
Análise: A agroecologia como estratégia bolivariana para a produção de alimentos
Produção de alimentos agroecológicos integra política venezuelana por soberania alimentar
para derrotar os monopólios das transnacionais de alimentos. Por fim, as iniciativas históricas dos campesinos e do movimento agroecológico da Venezuela agora tem no Estado um apoio fundamental para construir a soberania alimentar – agroecológica e libertária! – no país. (Alexandre Conceição, da Brigada Venezuela MST-Via Campesina Brasil)
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PRÁTICA
Paraguai
AGROECOLÓGICA
Por que uma nova proposta para o campo se faz necessária? Desafio dos movimentos é colocar a agroecologia na agenda das políticas públicas Ada Vera*
O Paraguai, com 43% de população rural, é um país agroexportador e monocultor. As famílias camponesas vêm sofrendo um acelerado processo de decomposição social, produto desse modelo agroexportador que transformou a agricultura campesina em agricultura de mercado. Este modelo leva a uma possibilidade de subsistência escassa. As origens da agroecologia no Paraguai remontam ao final da década de 1980, no contexto da crise de agroexportação. E, nos últimos dez anos, a produção agroecológica é uma das formas de produção alternativa que
tem ganhado impulso, especialmente das organizações civis. Atualmente, existem mais de 90.000 hectares de produção orgânica certificada no país, segundo os dados do Ministério da Agricultura e Agropecuária. Embora exista uma estratégia nacional em termos legais para o fomento da produção orgânica, não se conta com uma política de Estado que promova a pequena produção campesina e, muito menos, uma política em relação à agroecologia. Uma experiência do modelo de produção a partir da agroecologia pode ser encontrada nas comunidades de Juan de Mena, Cleto Romero e 25 de
Para agricultores paraguaios, agroecologia pode trazer independência do modelo agroexportador
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Dezembro, dos Departamentos de Cordillera e San Pedro, respectivamente. Estes grupos de camponeses vêm promovendo a busca de respostas que se ajustem às necessidades desse setor, encontrando na agroecologia uma alternativa que combina a possibilidade de subsistência e o respeito ao meio ambiente. Concebida assim, a agroecologia permite às famílias camponesas saírem da dependência da agricultura convencional que visa à agroexportação, de modo a atingir a segurança alimentar. No início desta experiência, no ano de 1993, não se tinha uma visão de totalidade, eram realizadas práticas isoladas, bem como práticas orgânicas
PRÁTICA
Aspectos sociais, culturais, ambientais e políticos vem sendo trabalhados nos cursos
com critérios da agricultura convencional. Em uma segunda etapa, dirigida à agroecologia, trabalhou-se para dar o salto, “da horta” para “todo o sítio” e das “práticas isoladas” para uma “ação integral”. Como eixo central, a recuperação, melhora, e conservação do solo. Na etapa de consolidação, chegou-se à superação das visões e práticas inerentes à agricultura convencional para a exportação e foi incorporada a construção da integralidade vinculada à agroecologia nos aspectos sociais, culturais, ambientais e políticos.
Além disso, hoje em dia se trabalham: a conservação da biodiversidade, a diversificação da produção, a autogestão de insumos e tecnologia apropriada, a organização das famílias, a pós-safra (para garantir a quantidade necessária de sementes nativas e grãos para o autoconsumo) e a renda. Em relação à agroindústria, trabalha-se com a perspectiva de uma fábrica de açúcar integral manejada pela organização campesina. Outro aspecto importante é a educação, razão pela qual na comunidade de Juan de Mena foi instalada a Escola Agroecológica, que põe ênfase na
AGROECOLÓGICA
formação da infância e da juventude com o currículo adequado à realidade rural, definindo como eixos curriculares a agroecologia e a mudança social. Conclusões No Paraguai, a progressiva expansão da agroexportação vai redefinindo gradualmente as relações sociais e o território nacional. Para que se chegue à sustentabilidade da agroecologia, serão necessárias estratégias articuladas de camponeses, técnicos e instituições, em aliança com outros setores. De outro modo, nossas ações nunca superarão a categoria de experiências. A grande tarefa dos movimentos populares no Paraguai, por fim, será a de colocar a agroecologia como parte da política estatal. (*) Ada Vera Rojas Integrante do CCDA (Centro de Capacitación de Desarrollo Agrícola, ou Centro de Capacitação de Desenvolvimento Agrícola), do Paraguai. Tradução: Naila Freitas ** Este artigo incorpora uma breve síntese do material de “Sistematização de Experiências do CCDA e as organizações camponesas”, publicado em 2006.
Fotos: Arquivo CCDA
Alianças com outros setores e mobilizações serão essenciais para inserir a agroecologia nas políticas públicas
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PRÁTICA
Haiti
AGROECOLÓGICA
Aposta para a salvação do planeta Accene Joachen*
O Mouvman Peyisan Papay (MPP) é um movimento camponês no Haiti que nasceu em abril de 1973 em uma localidade chamada Papaye, próxima à cidade de Hinche, no departamento do Centro do Haiti. O MPP surge graças à iniciativa de um senhor chamado Chavannes Jean Baptiste, que começou com um trabalho de investigação com os camponeses dessa localidade para conhecer suas percepções sobre a agricultura. Ainda no início de 1973, foram criados os dois primeiros agrupamentos de camponeses na região, um em Papaye e outro em Bassin Zim, localidade que se encontra a cinco quilômetros de Papaye. O primeiro agrupamento recebeu o nome de Kè kontan (“Coração feliz”) e o outro de Chavannes Jean Baptiste. É a partir destes dois agrupamentos agrícolas que o MPP vai ser construído, apresentando um crescimento desde a década de 1970, e chegando em 2009 a um total de 63 mil membros, entre homens, mulheres e jovens: - 1973: 2 agrupamentos - 1975: 9 agrupamentos - 1976: 39 agrupamentos - 2009: 4.500 agrupamentos
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Igor Felippe Santos
Desde 1973, movimento investe na agricultura campesina como base do desenvolvimento sustentável
PRÁTICA
AGROECOLÓGICA
Métodos e metas
Análise: A agricultura haitiana em meio a um dramático quadro
O MPP preconiza, desde sua criação, a agricultura campesina como base do desenvolvimento sustentável que garante a soberania alimentar, o respeito ao meio ambiente e o autodesenvolvimento do país. O método utilizado pelo movimento neste sentido é o da agrossilvicultura, que combina a conservação dos solos e da água, a produção agrícola e o reflorestamento, utilizando técnicas biológicas e mecânicas de proteção dos solos. A conservação de solos e o reflorestamento constituem as grandes prioridades do MPP. Contudo, são também ações permanentes com o objetivo de preservar o meio ambiente. Além disso, o Movimento procura aumentar a fertilidade do solo com a utilização de adubos orgânicos produzidos com diferentes métodos, tais como: compostagem, adubo verde, cultivo de plantas que fixem o nitrogênio no solo — como no caso da Canavalia Ensiformis — e da minhocultura. Empreendemos, ainda, a luta integrada contra os insetos e doenças, utilizando pesticidas naturais e medidas biológicas. O MPP também trabalha na transformação dos produtos agrícolas, especialmente do milho, mandioca, amendoim e da cana-de-açúcar. E investe no cultivo de verduras, instalando hortas familiares que permitem a produção de alimentos sadios e livres de agrotóxicos para a alimentação das famílias. Uma iniciativa inserida na política de soberania alimentar da organização.
O meio rural haitiano, como todo o país, é muito pobre. Em torno de 65% da população, de um total de cerca de 9 milhões, é camponesa e vive extremas dificuldades. Primeiramente, o meio rural vivencia o problema da terra. A grande maioria dos camponeses têm pouquíssima terra e na maioria dos casos não possuem nenhuma titulação e regra para seu uso. Há, portanto, um natural desinteresse pelo uso e pela conservação da mesma. Por outro lado, a crise ambiental se agrava cada vez mais, devido ao uso intensivo de tecnologias nocivas ao meio ambiente e ao consumo intensivo de carvão, utilizado em 70% das cozinhas do país. Em todo o território, restam apenas 3% de cobertura florestal nativa. Por último, o meio rural vive uma crise econômica muito grave. As políticas neoliberais e o livre comércio estão destruindo a capacidade produtiva do país. Em 1970, o país produzia praticamente 90% de sua demanda alimentar. Atualmente, importa-se cerca de 55% de todos os gêneros alimentícios consumidos. A agricultura baseia-se em técnicas rudimentares e pouco se vê de exploração racional dos
Igor Felippe Santos
No Haiti, mandioca é um dos itens básicos do cardápio da população
Hoje em dia, utilizam-se novas técnicas vindas da permacultura para complementar a metodologia de agrossilvicultura. Em nossa política de soberania alimentar, temos um programa agropecuário em pequena escala, incluindo avicultura, piscicultura, suinocultura, apicultura e
escassos recursos disponíveis. A maioria dos agricultores cultivam em terras que não lhes pertencem, levando a uma utilização predatória do solo. O desafio das organizações camponesas e da cooperação internacional se insere nesse contexto. São várias as experiências desenvolvidas por organizações na perspectiva de outro modelo de agricultura. A pequena propriedade da terra proporciona uma facilidade em adotar técnicas agroecológicas benéficas à vida humana e aos recursos naturais. Assim, a luta camponesa se direciona na construção de uma nova agricultura como única possibilidade de assegurar a vida no Haiti. Um país abandonado, que exige a adoção de uma política de incentivo e formação dos agricultores numa nova direção. Apenas uma verdadeira revolução no campo poderá evitar uma catástrofe demográfica sem precedentes no Haiti – que o futuro reserva, caso o problema agrário não se resolva logo. Brigada Dessalines (programa de cooperação entre a Via Campesina Brasil e organizações camponesas do Haiti) caprinocultura. A criação de animais desempenha um papel importantíssimo em nossa maneira de ver a agricultura sustentável. (*) Accene Joachen Engenheiro agrônomo, integrante do MPP Tradução: Naila Freitas
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PRÁTICA
Moçambique
AGROECOLÓGICA
Um período crítico para a agricultura familiar Avanço do neoliberalismo e do agronegócio colocam em risco as práticas camponesas Diamantino Nhampossa*
Moçambique é um país eminentemente rural e os camponeses ocupam a maior parte dos seis milhões de hectares de terras cultivadas no país. A agricultura é a atividade econômica mais importante e é coroada pela Constituição da República como “base do
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desenvolvimento”. O processo de colonização portuguesa, apesar de ter danificado muitos aspectos histórico culturais das populações autóctones, não conseguiu afetar de forma substancial o conhecimento endógeno sobre agricultura. A maior parte da população camponesa do país desenvolve agricultura na base de práticas que
se assemelham ao que hoje se denomina agroecologia. Estas práticas agrícolas endógenas permitiram que Moçambique conseguisse atravessar os momentos mais críticos da sua história sem que o povo perecesse de fome. Durante as duas guerras (luta pela independência: 1964-1974 e guerra civil: 1976-1992) e perante situações calamitosas de inundações ou secas prolongadas, os camponeses sempre desempenharam o papel heróico de alimentar o povo. A agroecologia em Moçambique está numa fase crítica. A adoção de políticas neoliberais em finais dos anos 80 levaram à eliminação do apoio do Estado à agricultura familiar e permitiram a retomada do agronegócio. Além disso, a ocorrência de fenômenos naturais extremos (inundações, cheias, erosão de solos, variação da temperatura) e a progressiva perda de sementes locais (indígenas) são aspectos que colocam em risco o conhecimento milenar em poder dos camponeses sobre a arte de fazer agricultura de forma sábia. O maior perigo reside ainda no fato de os detentores do poder acreditarem no agronegócio e no mercado como soluções para o problema da insuficiência de alimentos para o consumo no país. Já existem em Moçambique casos
PRÁTICA de expropriação ilegal de terras que antes eram usadas por camponeses para produzir comida, por empresas que pretendem instalar empreendimentos capitalistas. Desempenham papel central nesses conflitos as plantações de cana-de-açúcar, pinhão-manso (Jatropha curca), eucalipto, e, ainda, instalações de parques e unidades de turismo.
AGROECOLÓGICA
No Moçambique, práticas sustentáveis e autônomas de agricultura enfrentam a pressão do agronegócio
Preocupada com a situação, a União Nacional de Camponeses (UNAC), movimento nacional de camponeses que integra a Via Campesina, decidiu orientar os seus esforços na luta pela soberania alimentar. Assim, essa é uma das bandeiras mais importantes do movimento, visando salvaguardar a vida por meio da prática de uma agricultura que dê ênfase aos interesses dos camponeses e que seja ambientalmente sustentável e economicamente livre das forças do capital nacional e internacional. A agroecologia hoje é praticada pelos camponeses e suas organizações produtivas de uma forma quase isolada. Deste modo, a conjuntura impõe que ela seja apresentada pelos movimentos como uma opção ou alternativa política efetiva para o desenvolvimento da agricultura no país. A colaboração que a Unac iniciou com MST em 1998 na área de formação trouxe reconhecíveis ganhos. Primeiramente, no campo na construção da matriz política sobre o entendimento da agricultura ecológica no contexto de Moçambique, e, também, no desenho de uma
Fotos: Johan Savstrom
Luta pela soberania alimentar
metodologia de formação política para camponeses e suas lideranças. Atualmente, vários cursos de formação em Agroecologia nos aspetos teóricos e práticos são realizados em todo o país. A colaboração com a Agroecologia ainda é praticada de forma isolada pelos camponeses e pelas organizações
Associação Nacional de Pequenos Agricultores de Cuba (Anap) vem tendo importante papel nesse sentido, com destaque à presença de um cubano em Moçambique por um período de um ano, durante o qual promoveu o uso da metodologia campesino a campesino. Como forma de garantir o domínio e a autoridade no tema, a Unac está planejando enviar jovens para se formarem no Instituto LatinoAmericano de Agroecologia (Iala). Perante a pressão exercida pelas políticas neoliberais, pelo agronegócio, pelas multinacionais e por outros interesses capitalistas, o grande desafio que o movimento de camponeses tem é o de garantir a manutenção de formas de produção agroecológicas sustentáveis, com o controle dos camponeses — ao mesmo tempo que se reorganiza, atualiza, dinamiza e se mobiliza para vencer. A vitória prepara-se, a vitória organiza-se! (*) Diamantino Nhampossa Integrante da Unac
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ESTANTE
A Agroecologia em livros Roteiro de leitura para quem quer se aprofundar nesta ciência Alessandra Silva Souza Indianara Cristina Pires
Pensadores da academia e dos movimentos sociais, nas últimas décadas, vêm trazendo para o debate político o conceito de sustentabilidade na agricultura como elemento de superação do padrão de agricultura industrial, defendendo a proposta da Agroecologia. Um projeto cujas bases ainda estão sendo fundadas, e que coincide com a crescente preocupação pela preservação dos recursos naturais, motivada especialmente pela rapidez com que o pacote industrial da revolução verde foi difundido pelo campo. Nesta estante da Revista Sem Terra Especial Agroecologia, apontamos algumas das obras consideradas fundamentais para a compreensão da Agroecologia. Uma visão desta enquanto ciência
portadora de um enfoque metodológico próprio e que contempla uma teoria complexa, de um campo científico multidisciplinar que congrega estudos e conhecimentos tanto das esferas produtivas, quanto econômicas, sociais, ambientais, culturais, políticas e éticas da sustentabilidade. Assim, vincula o conhecimento tradicional ao conjunto de diferentes práticas sustentáveis de agricultura e ao conhecimento técnico e científico, no intuito de pensar estratégias sustentáveis para o campo. No Brasil, destaca-se a pesquisadora Ana Maria Primavesi (entrevistada desta edição) que vem contestando o modelo vigente no campo e desperta para novos métodos de agricultura sustentável e agroecológica. Pelo mundo, diversos pesquisadores e estudiosos têm divulgado as bases teóricas e as diversas técnicas que contribuem para a consolidação da ciência e do conceito de Agroecologia. Miguel Altieri, na América Latina; Rachel Carson e Stephen
R. Gliessman, nos EUA; e Eduardo Sevilla Guzmán, na Espanha, estão entre os que dedicaram e/ou ainda dedicam suas vidas ao estudo da Agroecologia e das diversas temáticas que, transversalvemente, contribuem para a construção desta ciência. Os movimentos sociais e demais organizações que compõem a luta pela Reforma Agrária, pela transformação e reavivamento do campo também têm trazido sua contribuição, por meio de seminários, jornadas e eventos. Nesses, têm sido fundamental, por fim, as publicações editadas com vistas aos encontros, levadas à base do movimento e que perpetuam e difundem os conhecimentos camponeses sistematizados por meio das práticas agroecológicas. *Colaboração de Solange Engelmann, do Setor de Comunicação do MST-PR
Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável Stephen R. Gliessman – Editora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Este livro, publicado em 2000, foi projetado para ensinar ecologia no contexto da agricultura. Traz as experiências de Gliessman nos vários países em que vivenciou e desenvolveu suas pesquisas, coletou inúmeros dados e histórias dos povos por onde passou,
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aliando conceitos ecológicos e agronômicos. Mostra de maneira simples e direta a viabilidade da Agroecologia comparando modelos tradicionais com modelos sustentáveis. É um excelente livro para quem quer ensinar, aprender e ousar.
PRÁTICA
De la sociologia rural A agricultura ecológica e a máfia a la Agroecologia Eduardo Sevilla Guzmán dos agrotóxicos Editora Icaria no Brasil Esta obra, publicada em 2006, traz um panorama importante para a compreensão da Agroecologia a partir da busca de uma identidade camponesa. O livro apresenta o contexto histórico da sociologia rural, e de como a partir dela o pensamento dos atores sociais e suas atividades relacionadas ao campo, evidenciando-se a agricultura, passou a ser um “território” de disputas e interesses. Destaca um debate político sobre a questão da Agroecologia, como as demais produções do autor relacionadas a esta temática.
Agroecologia Militante Ivani Guterres Editora Expressão Popular Coletânea de textos referentes à ecologia, biodiesel, agroecologia e organizações sociais, publicada em 2006. Carrega os aspectos de seu recémfalecido autor, unindo o seu critério da preocupação científica à militância social junto ao trabalhador rural.
Sebastião Pinheiro, Nasser Youssef Nasr e Dioclécio Luz Editora Fundação Juquira Candirú Publicação em 1998, esta obra não apenas denuncia, mas mostra que o assunto não se restringe ao universo das áreas rurais. O livro destaca que as consequências do uso de agrotóxicos afetam toda a sociedade, não só em relação ao consumo de alimentos, mas também pela contaminação ambiental que pode gerar. É uma obra recomendada a todos, particularmente aos que acreditam numa saída alternativa para a agricultura.
AGROECOLÓGICA
Sobre a evolução do conceito de campesinato Eduardo Sevilla Guzmán e Manuel González de Molina Editora Expressão Popular Esta obra, publicada em 2005, traz “importantes ferramentas teóricas com as quais se poderá neutralizar a ofensiva neoliberal que, da academia e da prática política, está se desenvolvendo na América Latina ao apresentar uma inevitável evolução da agricultura familiar para o agronegócio, no contexto da agricultura industrializada em sua atual versão transgênica”. Assim, pode-se crer em outra solução para os problemas sociais e ambientais que atravessamos. E o campesinato levanta elementos que contribuirão para a solução da crise em que vivemos.
Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa Miguel Altieri – Editora PTA/FASE A obra, publicada em 1989, traz abordagens sobre as bases teóricas da Agroecologia; estudo sobre os agroecossistemas; planejamento de sistemas e tecnologias agrícolas alternativas; agricultura orgânica;
sistemas alternativos de produção: rotação de culturas e cultivo mínimo, agroflorestais; manejo ecológico de insetos, doenças e plantas espontâneas; qualidade e manejo do solo.
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PRÁTICA
AGROECOLÓGICA
Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos – a teoria da trofobiose Francis Chaboussou – Editora Expressão Popular Obra essencial, publicada em2006, e que lançou um dos pilares da Agroecologia. O leitor encontrará uma sólida argumentação científica, demonstrando que os parasitas não atacam as plantas cujos sistemas nutricionais estejam equilibrados; em contrapartida, são os
fertilizantes solúveis e os agrotóxicos que os atraem, gerando um ciclo de dependência. Chaboussou mostra como o equilíbrio biocenótico da fertilidade do solo propicia a produção de alimentos limpos, sem uso de agrotóxicos ou fertilizantes químicos.
Manejo Ecológico do Solo: a agricultura em regiões tropicais Ana Maria Primavesi – Editora Nobel Esta obra, publicada em 1979, destina-se a todos que trabalham no campo e procuram uma resposta aos inúmeros problemas que surgem diariamente. Mostra o solo como
ele é: um mecanismo complexo, animado, praticamente vivo, que se modifica constantemente, e cujo manejo não é tão difícil, conhecendo-se os seus princípios básicos.
Desenvolvimento territorial e Agroecologia Adilson Francelino Alves, Beatriz Rodrigues Carrijo e Luciano Zanetti Pessoa Candiotto (orgs.) – Editora Expressão Popular As reflexões e experiências tratadas neste livro, de 2008, são compostas por diferentes vivências, formações e formas de atuação dos autores nos capítulos. Apesar de se traduzirem em textos redigidos com linguagens heterogêneas, demonstram a diversidade de atores sociais e de instituições preocupados com a questão da Agroecologia, como estratégia de desenvolvimento para territórios com a presença de agricultores familiares.
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A reconstrução ecológica da agricultura Carlos Armênio Khatounian Editora IAPAR Esta obra, publicada no ano de 2001, busca transformar o leitor num entusiasta, praticante e conhecedor dos caminhos que podem levar a reconstrução ecológica da agricultura. Sua concepção é o resultado da compilação de informações e reflexões ao longo de mais de duas décadas de estudo.
Primavera Silenciosa Rachel Louise Carson Editora Melhoramentos A obra marcou o século 20. Originalmente lançado nos EUA (Silent Spring), em 1962, Rachel Carson mostrou como o DDT — o mais poderoso pesticida que o mundo conheceu – penetrava na cadeia alimentar e acumulava-se nos tecidos gordurosos dos animais, inclusive do ser humano, com o risco de causar câncer e danos genéticos. Sua maior contribuição foi a conscientização pública de que a natureza é vulnerável à intervenção humana. Poucas pessoas até então se preocupavam com problemas de conservação e em se importavam se algumas ou muitas espécies estavam sendo extintas.