OUTRAS VERDADES - sobre a relação entre arquitetura e fotografia hoje

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OUTRAS VERDADES

sobre a relação entre arquitetura e fotografia hoje

Maria Beatriz Saade TCC Graduação . Departamento de Arquitetura e Urbanismo PUC-Rio . Julho 2019 . Orientação: Ana Luiza Nobre


OUTRAS VERDADES

sobre a relação entre arquitetura e fotografia hoje

Maria Beatriz Saade TCC Graduação . Departamento de Arquitetura e Urbanismo PUC-Rio . Julho 2019 . Orientação: Ana Luiza Nobre



sumário introdução

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independência e expansão da imagem fotográfica

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imagem, verdade e realidade a fotografia e o princípio de realidade fotografia e verdade fotografia e pós-fotografia a expansão da imagem arquitetônica

outras verdades: arquitetura e fotografia

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correspondência com o real fotografias documentais fotografias crítico-documentais fragmentos do real apropriações fotográficas alinhamento conceitual

emancipação do real fotografia construída renderização

considerações finais

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bibliografia

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Capa: Corinne Vionnet, Coliseu, Photo Opportunities, 2005 Página anterior: Erik Kessels, exposição “24 hours in photos”, FOAM, Amsterdam, 2011 i  Alloa, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p.10. ii. Dostoiévski, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 217 iii Bandeira, Pedro. “Tudo é Arquitetura” ïn: Ursprung, Philip; Lopes, Diogo S.; Bandeira, Pedro. Eduardo Souto de Moura Atlas de Parede Imagens de Método. Porto: Dafne Editora, 2011. p13

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“A múltipla proliferação de imagens no mundo contemporâneo parece - e esse é seu paradoxo inversamente proporcional à nossa faculdade de dizer com exatidão a que elas correspondem” i Emmanuel Alloa

“Para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente de lhe adicionar a mentira” ii Fiódor Dostoiévski

“Sei que com a verdade eu não chego lá” ii Eduardo Souto de Moura

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INTRODUÇÃO

1  “dar like” é uma gíria que significa “gostar” de uma publicação (no caso, do Instagram) e é representado por um símbolo convencionado pela comunidade virtual. 2  A Villa Savoye foi construída entre 1928 e 1929 para Pierre Savoye como residência de fim de semana na região de Poissy, a 30 km de Paris. Le Corbusier usou novas técnicas construtivas para atingir nessa obra a síntese de seu pensamento:os cinco pontos por ele considerados fundamentais para uma nova arquitetura, que poderia transformar a sociedade, estão presentes na Villa Savoye. Em 1965, sob a guarda do Ministério da Cultura da França, recebeu o título de Monumento Histórico. Transformando-se em museu, passou a receber mais de 20.000 visitantes por ano.

Realizar um trabalho sobre a relação entre arquitetura e fotografia se justifica para mim por diversos motivos. Para começar, meu interesse pela fotografia é anterior à arquitetura, e se manteve firme ao longo dos anos. Além disso, a inegável presença da imagem e sua ampla disseminação no mundo contemporâneo, juntamente com o seu caráter múltiplo, despertaram minha atenção para essa relação. Durante o curso de arquitetura, tive a sensação recorrente de que o uso das imagens era feito sem grandes questionamentos. Quantas vezes analisei projetos dos quais, de tanto ter visto as imagens, tinha a impressão de que as memórias criadas por elas não eram muito diferentes das minhas memórias presenciais. Apesar de todas as mudanças ao longo do tempo, a fotografia supostamente ainda documenta a produção arquitetônica e produz referências amplamente usadas. Iniciei esse projeto com muitos questionamentos relacionados à profusão de imagens arquitetônicas na internet e mídias sociais, onde profissionais e amadores têm oportunidades semelhantes e onde, em geral, se dá a principal busca de informações hoje. Me incomodava a quantidade de imagens similares entre si vistas em mídias sociais diariamente, todas lotadas de likes1, apresentando muitas vezes arquiteturas semelhantes, com ângulos e recortes parecidos. Outro ponto é a miscelânea de tipos de imagens: fotografias, fotomontagens, colagens, renderizações, todas encontradas na rede juntas, sem legendas, a naturalidade dessa convivência e da recepção pelo público. Em determinado momento da pesquisa, olhando o Instagram da Villa Savoye2, me deparei com turistas em poses performáticas diante da obra de Le Corbusier (fig.1). Tem-se uma obra icônica, enquadrada de modo semelhante às suas imagens mais conhecidas - que enfatizam as características da arquitetura de Le Corbusier -, porém, a edificação está ao fundo, em segundo plano, como um cenário. Há uma inversão no protagonismo da imagem: transfere-se a importância da obra

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em si para a figura em primeiro plano em atitude claramente exibicionista. A pose é planejada, ela se dá no centro da imagem e a obra está enquadrada de modo a ser facilmente reconhecível. É uma segunda camada de intenções que ganha força porque usa como base uma obra e uma imagem conhecida e consagrada.

3  vide “fotografia e pós-fotografia”

Se comecei o trabalho acreditando que já sabia onde chegaria, fui percebendo que a pesquisa é que daria as cartas. E assim foi. Às minhas perguntas iniciais "a fotografia pode dar conta da tridimensionalidade da arquitetura?" ou "a fotografia mostra a verdade da arquitetura?", a resposta que encontro hoje é que essas não são as questões a serem colocadas. As imagens circulantes são uma realidade em si, são outra matéria, tem "verdades" próprias. Somos expostos diariamente a imagens de todos os tipos, fotografias, fotomontagens, renderings, entre tantos outros e, apesar do estranhamento que algumas podem causar, elas penetram igualmente na memória, muitas vezes sem diferenciação, representando realidades, existentes ou não. E queiramos ou não, a fotografia - sobretudo a digital - multiplica o sentido da arquitetura e assim fomenta a sua apropriação, recepção e compartilhamento por parte de um público cada vez mais amplo. O trabalho se estrutura em três partes: a primeira abrange a definição de conceitos importantes que vão permear todo o texto, a construção de um pequeno panorama da fotografia no século XX, chegando à discussão atual sobre a pós-fotografia3, a análise da autonomização do fotográfico frente ao princípio de realidade e à ideia de verdade e a discussão sobre a ampliação das fronteiras da imagem de arquitetura. Na segunda parte, faço uma seleção, categorização e estudo de imagens fotográficas de arquitetura e na terceira, passo às considerações finais, no intuito de pensar uma produção arquitetônica mais ampla. Gostaria de deixar claro que o trabalho se refere à relação da fotografia com a arquitetura e à potência dos encontros que acontecem e que podem vir a acontecer entre os dois campos.

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fig.1 - imagem retirada do instagram #villasavoye, 2018

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INDEPENDÊNCIA E EXPANSÃO DA IMAGEM FOTOGRÁFICA 4  Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1988

imagem, verdade, realidade

5  Flusser, Vilém. O universo das imagens técnicas - o elogio da superficialidade. São Paulo:

Etimologicamente, "imagem" deriva do latim imago, que designa a máscara mortuária usada em funerais na Antiguidade romana, feita em gesso ou cera e depois usada como ornamento. A máscara mortuária conserva por semelhança o que não está mais lá. Se tomarmos o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, encontramos uma definição de imagem como o que “guarda por semelhança ou sinal das coisas, que pode conservar-se independentemente das coisas” 4. A imagem substituiria ou representaria algo que está fora dela por uma relação de correspondência.

Annablume, 2008, p.19.

Para Vilém Flusser, as imagens são manifestação da capacidade imaginativa do homem de representar o mundo. O autor distingue imagens tradicionais (pinturas, figuras pictóricas, desenhos) de imagens técnicas (fotografias, imagens de TV, de vídeo, de terminais de computador). Segundo Flusser, as imagens tradicionais são inteiramente produzidas pelo homem, enquanto as técnicas são mediadas por aparelho científico, previamente programado, que reduz a liberdade produtora. Sua tese em "O universo das imagens técnicas - elogio da superficialidade" é de que as imagens técnicas “não ocupam o mesmo nível ontológico das imagens tradicionais, porque são fenômenos sem paralelo no passado.”5 As primeiras partem do volume - do mundo ao redor - e a transformam em superfície bidimensional pela eliminação da profundidade, como em uma tela de pintura por exemplo. São produzidas por um gesto que leva do concreto ao abstrato. As segundas são criadas por pontos ou pixels que formam superfícies como em uma tela de TV. São produzidas, então, por um gesto que leva do abstrato ao concreto. Flusser acredita que estamos na emergência de um novo nível de consciência “onde os fios condutores que ordenam o universo

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(...) estariam se desintegrando espontaneamente". 6 Encantados com a virtualidade, mergulhamos em um mundo de bits sem questionamentos, e ficamos perdidos entre os intervalos de pontos sem dimensão. Flusser sugere que a forma de concretizar esses intervalos, fazer essa junção, é transformando os bits em imagens, que emergem do abstrato para o concreto, criando superfícies. As imagens técnicas, para ele, são “virtualidades concretizadas e tornadas visíveis”7. O autor levanta a questão das imagens técnicas pretenderem ser cada vez mais como as tradicionais, tentando revelar as circunstâncias cotidianas e se mostrando às vezes até "melhores" que elas.

6  Flusser, Vilém. O universo das imagens técnicas - o elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008, p. 23 7

idem, p. 24

8  Alloa, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p.10.

Se Flusser, pelo estudo dos modos de produção das imagens, sinaliza que seja necessária a consciência de ler as imagens técnicas como tal, sob o risco de ofuscamento do próprio mundo percebido, Emmanuel Alloa discute as imagens pela perspectiva do observador. O autor sugere que ao olhar a imagem, se reconhece seu poder de tocar o que está ausente, tornando presente o que está distante. E "essa pretensão de ser presente, de se apresentar no lugar daquilo que é representado, faz da imagem literalmente, pretendente do ser” 8. Na fotografia digital, e mais precisamente nas imagens criadas em computador, o lugar da imagem fica ainda mais incerto, já que a relação entre objeto e referente é ainda mais problematizada. Alloa utiliza a distinção platônica entre as imagens-cópia (eikónes) e imagens-simulacro (eídola) para tentar entender a imagem manipulada ou criada em computador. Enquanto as imagens-cópia representam o objeto, mas estão separadas dele, as imagens-simulacro se confundem com o objeto ao qual se referenciam, se misturando com ele e tornando indiscernível onde começa a representação e onde termina o representado. Uma imagem renderizada, com linguagem fotográfica, se refere a um objeto inexistente. No entanto, ela é "lida" como

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9  Flusser, Vilém. O universo das imagens técnicas - o elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008, p. 25

uma fotografia, pretendendo ser aquilo que não é. São imagens opacas, que começam e terminam em si mesmas, e que se utilizam dos conhecimentos prévios do observador para se fazer entender. Como sublinhou Alloa, não temos como saber com certeza o que elas querem dizer. E o reconhecimento desse não-saber é parte importante do presente trabalho. Nesse novo universo, os termos "verdade" e "falsidade" não fazem mais sentido, são limites inalcançáveis. "De nada adianta perguntar se as imagens técnicas são fictícias, mas o quanto são prováveis. Este é o novo significado do termo verdade: a tendência do universo rumo a desinformação pode ser calculada com probabilidade tão real que tal desinformação definitiva pode ser tida como informação verdadeira.”9 A discussão sobre imagem se converte, portanto, cada vez mais, em uma discussão sobre os conceitos correlatos de verdade e de realidade. O real será tomado aqui no trabalho como o que a princípio é considerado como verdadeiro, como o que é constatável pelo homem, como o mundo que percebemos. Consciente da amplitude e densidade do conceito e dos limites deste trabalho, pretendo atentar para a sua complexidade. Apesar de supostamente acreditarmos que o real é aquilo que vemos, aquilo que está ao nosso redor, ele nos escapa o tempo inteiro, é impalpável, inclassificável. Márcio Seligmann-Silva lembra que a relação entre realidade e verdade está presente desde a famosa alegoria da caverna, em que Platão apresenta sua teoria das ideias: homens fixados em uma caverna desde a infância, presos de modo a só poderem olhar para frente, para a parede da caverna. Atrás deles, um muro. Pessoas erguem estátuas de seres humanos e de animais acima desse muro e conversam. Atrás de tudo, em terreno mais elevado, uma fogueira ilumina essas estátuas e projeta suas sombras na parede em frente aos homens presos. O que esse homens vêem é o que eles conhecem desde sempre, a única verdade que existe para eles. Sombras de seres humanos e animais,

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palavras que se misturam às formas distorcidas na parede. As imagens na parede aqui são cópias derivadas da verdade, mas para aqueles que só têm acesso à essas imagens elas são a própria verdade. "Para Platão, portanto, o ser humano no estágio da caverna (...) confundiria a imagem com as ideias e estaria condenado ao engano. O mundo sensível seria cópia das ideias, já os artistas fariam cópias de cópias."10

10  SeligmannSilva, Márcio. “Ficção e imagem, verdade e história: sobre a poética dos rastros”, in: Dimensões - revista de história da ufes, vol. 30, 2013, p. 17-51. 11.

idem.

Mas a noção de verdade vai mudando ao longo do tempo, e se Platão condenava o modo de usar e perceber as imagens, parte daí o receio de que a ficção possa manchar a verdade. Segundo Seligmann-Silva, até o século XVIII, que ele entende como fase inicial da Modernidade, não havia uma distinção entre fato e ficção. É ao longo do século XVIII que se desenvolve a visão positivista da verdade e surge a necessidade de se distinguir o jornalismo do romance, o fato e a ficção. Ao mesmo tempo, surge um olhar de suspeita sobre essa contaminação, a ideia de que a ficção deve ser combatida para que a verdade apareça. Os românticos alemães, por sua vez, representados principalmente pela obra de Friedrich Schlegel e Novalis, vão combater a visão positivista da verdade e desenvolver uma teoria do conhecimento que "enfatiza a não-compreensão e o elemento fragmentário"11, em que a verdade é feita também de ficção e imaginação e não se pensa a representação independente da dissimulação, aplicando o método da incompreensibilidade como um meio de compreensão. Seligmann-Silva afirma que a partir daí, a arte passa a ser espaço de construção de novas subjetividades. Apesar da problematização crescente dos conceitos de imagem, verdade e realidade provocada pelo desenvolvimento das tecnologias digitais, muitos se sentem incomodados pelo rebaixamento do valor da verdade, que vem continuamente sendo contaminada pela "mentira" e pela ficção. Mas em um mundo em que a virtualidade avança a passos

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firmes e a disseminação de imagens e narrativas fictícias cresce vertiginosamente, é inevitável que o papel da verdade seja revisto. Segundo o Dicionário Oxford, pós-verdade foi a expressão escolhida para representar o ano de 2016 e denota “circunstâncias onde fatos objetivos são menos influentes em definir a opinião pública do que os apelos ao emocional e às crenças pessoais”. O termo foi usado pela primeira vez em 1992 em um artigo do dramaturgo Steve Tesich na crise do Irã-Contra, mas foi no contexto do Brexit e da campanha de Trump que seu uso entrou para o domínio público. Cada vez mais importa menos o que é verdadeiro ou falso, mas o que repercute no observador, aquilo que se conecta com a sua subjetividade.

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a fotografia e o princípio de realidade

12  Dubois, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1993. p. 26

O daguerreótipo surge em 1839 como o primeiro registro fotográfico fixado em uma superfície, tendo a arquitetura e a cidade, com sua característica de permanência, seus principais objetos. A fotografia era uma novidade que se acreditava “reter” o tempo como a pintura nunca havia feito. O mundo real passa a ser representado com uma precisão nunca vista: famílias podiam conhecer seus antepassados, viagens podiam ser documentadas. A ideia de que a fotografia era a imitação mais perfeita do real - por se inscrever inteiramente em uma superfície de forma automática, segundo as leis da química e da ótica, sem a interferência da mão do homem (nessa época, a função do fotógrafo se resumia quase sempre a apertar um botão) - era praticamente unânime. Apesar do discurso inicial da fotografia como um registro automático, é fundamental ter em mente que a fotografia não é apenas a imagem que se apresenta, ela é uma composição de fatores: dos agentes - o operador, o observador -, do objeto, e das ações que a constituem - o clique, a recepção e a contemplação. Portanto, a fotografia não pode ser vista fora do seu fazer. Philippe Dubois 12 na abertura de seu livro “o ato fotográfico” afirma a importância da imagem-ato: "Com a fotografia não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser. A foto não é apenas uma imagem (o produto de uma técnica e de uma ação, o resultado de um fazer e de um saber-fazer, uma representação de papel que se olha simplesmente em sua clausura de objeto finito), é também, em primeiro lugar, um verdadeiro ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas em trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la literalmente: algo que é, portanto, ao mesmo tempo e consubstancialmente, uma imagemato, estando compreendido que esse "ato" não se limita trivialmente apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto da "tomada"), mas inclui também o ato de recepção e de sua contemplação (e hoje, de seu compartilhamento). A fotografia, em

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suma, como inseparável de toda a sua enunciação, como experiência de imagem, como objeto totalmente pragmático. Vê-se com isso como esse meio (...) implica de fato ontologicamente a questão do sujeito, e mais especialmente, do sujeito em processo." 13 O autor apresenta em seguida um percurso histórico da relação entre fotografia e o princípio de realidade, dividindo-o em três estágios. Segundo ele, no primeiro, quando a técnica fotográfica surge, a imagem criada era vista como um espelho do real, o que Dubois chama de discurso da mimese. Segundo a classificação de signos de Charles Sanders Peirce14, de 1865, o discurso da mimese se equipara à noção de ícone, isto é, o efeito de realidade ligado à imagem fotográfica se dava pela semelhança existente entre a foto e seu referente. No século XX há um deslocamento do discurso da imagem fotográfica, que se afasta da ideia de semelhança para se aproximar do conceito de transformação do real (o que Dubois, chama o discurso do código e da desconstrução). Assim, se manifesta uma reação contra a ideia do ilusionismo do espelho fotográfico com textos que se insurgem contra o discurso da mimese, tentando-se demonstrar que a imagem fotográfica não era um espelho neutro, mas apresentava suas “falhas” na tarefa de retratar perfeitamente o real, que incluía agora algo a mais, subjetividade ou intenção. Podemos dar como exemplo as imagens feitas na segunda metade do século XIX por Charles Marville (1813-1879), contratado pelo então prefeito de Paris, Georges-Eugène Haussmann, como fotógrafo oficial das mudanças que ocorriam na cidade (figs. 2 e 3). Marville documentou de forma sistematizada as áreas que seriam demolidas, as obras em andamento e o resultado final (fotografou a Paris que deixava de existir e a nova cidade construída em seu lugar).

13  Dubois, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1993. p. 15 14  Charles Sanders Peirce (1839- 1914) nasceu em Cambridge, Massachusetts e foi importante pensador da semiótica. Para o autor, a representação da realidade se dava em três modos, dependendo da relação do objeto com o sujeito mediado pelo signo: Ícone: um parâmetro com relação de semelhança com o objeto. Uma foto, por exemplo. Índice: um parâmetro cujo o signo possua uma relação de causalidade que indique seu significado. Por exemplo, uma pegada na areia indica que alguém andou ali. Símbolo: uma relação de convenção estabelecida entre o signo e seu significado.

As imagens comissionadas, simbólicas, afirmavam o glamour da nova cidade que surgia (fig. 3). Muito mais do que imagens,

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15  Dubois, Philippe. O ato fotográfico. : Campinas: Papirus, 1993. p. 431

eram uma forma de propagandear e divulgar a ideia de uma nova e grandiosa cidade, que surgia dos becos escuros; uma cidade moderna, digna de orgulho, uma nova Paris.

16  Barthes. Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 72

O terceiro estágio, segundo Dubois, é a fotografia como um traço do real (o discurso do índice e da referência). Segundo ele:

17  Barthes. Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 72: “o nome do noema da Fotografia será então “isso-foi”, ou ainda: o Intratável. Em latim (...) isso seria sem dúvida: interfuit: isso que vejo encontrou-se lá, nesse lugar que se estende entre o infinito e o sujeito (operator ou spectator); ele esteve lá, e todavia de súbito foi separado; ele esteve absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto, já diferido.”

"Uma consequência importante dos discursos (anteriores) de desconstrução dos códigos da imagem fotográfica é o notável deslocamento da questão do realismo. (...) Se a fotografia não pode mais, por essência, revelar a verdade empírica, vamos assistir ao desenvolvimento de diversas atitudes que vão todas no sentido de um deslocamento desse poder de verdade, de sua ancoragem na realidade rumo a uma ancoragem na própria mensagem.”15 O discurso do índice ganhou vigor no final dos anos 70 com a "redescoberta" das teorias de Ch. S. Pierce nos Estados Unidos e dos textos de Roland Barthes (principalmente “A Câmara Clara”, de 1980) na Europa. Tendo já superado a ideia de que a fotografia é um espelho do mundo, há um deslocamento dessa verdade da realidade aparente para a mensagem da imagem, seu significado interno. Barthes chama de "referente fotográfico" (...) a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não existiria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. (...) Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá."16 O noema de Barthes do "isso-foi"17 no entanto, já não consegue dar conta da produção imagética hoje. O advento da fotografia digital nos anos 90 e suas subsequentes evoluções tecnológicas poderiam acrescentar nesse percurso histórico de Dubois uma outra possibilidade da imagem fotográfica: a emancipação do real: A imagem fotográfica perde seu elo com o referente e passa a ser independente, ter existência própria. Na arquitetura, o melhor exemplo são os renderings, visualizações muitas vezes hiper realistas de edificações não existentes (fig.4).

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fig. 2 - Charles Marville, La Bièvre, (de la rue de pont-aux-biches), 1862 fig. 3- Charles Marville, Place Maubert, 1865

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fig. 4 - Beeple Crap, Red Wonder, 2019

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fotografia e verdade

18  O Photoshop, 1º software de manipulação de imagens, foi lançado em 1990 pela Adobe e desenvolvido a partir de 1987 por Thomas e John Knoll.

A manipulação de imagens, entendida como uma mudança ou variação no conteúdo original da imagem, já era usada muito antes do surgimento de softwares como o Photoshop nos anos 8018. Desde os primórdios da fotografia, a manipulação de imagens e as edições gráficas já existiam, como podemos observar na fotografia que Valério Vieira (1862-1941) apresentou na Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos em 1904 (fig. 5). Na imagem, vê-se a apresentação de uma orquestra, onde todos os músicos, além das figuras da plateia, dos garçons, do busto em cima do móvel e dos quadros pendurados na parede retratam o próprio fotógrafo. Ao todo, são 30 imagens de Valério Vieira, compondo uma única imagem. Podemos tomar ainda a primeira imagem produzida por Daguerre (fig. 6.1 e 6.2) do Boulevard du Temple, que apesar de ser, na época, uma rua movimentada de Paris, parece saída de uma cidade fantasma. Por causa do longo tempo de exposição, somente os objetos fixos apareciam na fotografia: praticamente a arquitetura, as ruas, as árvores. As pessoas, os veículos em movimento, não foram registrados. Em uma segunda imagem podemos ver um engraxate e seu cliente, parados o tempo suficiente para serem capturados pela lente da câmera, talvez uma imagem planejada pelo fotógrafo. Duas considerações são pertinentes aqui. As pessoas e objetos móveis não aparecem na imagem por uma questão técnica da época, mas o que vemos, ao olhar a imagem, decididamente são ruas vazias. Sem o conhecimento de como essa imagem foi produzida para facilitar seu entendimento, o que vai ser transmitido é provavelmente algo muito diferente daquilo que foi fotografado. Nesse caso, não houve intenção do fotógrafo, ao passo que a presença das duas pessoas na segunda imagem já tem como propósito driblar a técnica e manipular o resultado da imagem. Segundo Joan Fontcuberta: "Ainda hoje, tanto no âmbito cotidiano quanto no contexto estrito da criação artística, a fotografia aparece como uma tecnologia a serviço da verdade. A câmera testemunha aquilo que aconteceu; o filme fotossensível está destinado a ser

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um suporte de evidências. No entanto, isso é só aparência; é uma convenção que, a força de ser aceita sem paliativos, acaba por se fixar em nossa consciência." 19 O conceito de “verdade” contido nas imagens fotográficas parece ainda arraigado na forma como as imagens são vistas. Algo de singular diferencia a fotografia dos outros modos de representação, e subsiste, apesar de tudo, na imagem fotográfica, um sentimento de realidade incontornável do qual não conseguimos nos livrar, apesar da consciência de todos os artifícios que estão em jogo nela e que se combinam para a sua elaboração.

19  Fontcuberta, Joan. O beijo de Judas - Fotografia e verdade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010

A fotografia já nasce, então, com as duas determinações: ser registro e ficção.

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Fig.5. - Valério Vieira. Os trinta Valérios, c, 1901, Acervo FBN

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fig. 6.1 / 6.2- Boulevard do Temple, Louis Daguerre, 1838

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fotografia e pós-fotografia

20  Fontcuberta, Joan. A câmera de Pandora a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: G. Gili, 2014, P.63

Segundo Fontcuberta, a “fotografia digital é aquela cuja visualidade já não repousa mais em um sedimento de prata metálica, mas em uma retícula de pixels provisoriamente ordenados conforme determinados códigos gráficos.”20 Alguns autores consideram a fotografia digital como uma nova categoria de imagens, que pode ser chamada de pós-fotográfica. A pós-fotografia inclui as imagens captadas por câmeras digitais ou smartphones, aquelas captadas de forma analógica e depois escaneadas (se transformando em pixels) e também as imagens produzidas em computador, sem referente, mas que mantém uma aparência fotográfica, realista. Em 1957 Russel Kirsch produziu a primeira imagem digital a partir da fotografia de seu filho (fig. 7) em um computador, através de um scanner, para o United States National Bureau of Standards. Em 1988 a Fujifilm lançou a primeira câmera com cartão de memória que armazenava entre 5 a 10 fotografias. A partir da década de 90, a fotografia digital se consolidou e se disseminou tanto entre profissionais quanto entre amadores. O surgimento de câmeras digitais cada vez mais potentes, menores e mais fáceis de operar fez com que as câmeras analógicas fossem paulatinamente trocadas pelas digitais, mais práticas, econômicas, sem rolos de filme, com grande capacidade de armazenamento e visualização instantânea. Outro marco neste desenvolvimento foi o lançamento em 2000 no mercado japonês do primeiro telefone móvel com câmera. A partir daí o desenvolvimento dessa tecnologia não parou de evoluir. A fotografia digital, reforçada pela disseminação dos computadores pessoais e dos softwares de manipulação de imagens, das redes de difusão de dados, foi se infiltrando e tomando o lugar da fotografia analógica.

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fig. 7 - Russel Kirsch. Primeira imagem digital a partir da fotografia, 1957

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21  Fontcuberta, Joan. A câmera de Pandora a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: G. Gili, 2014, P.64

O diagrama 1 mostra os atributos da fotografia e da pós-fotografia. Em termos de construção da imagem, a fotografia analógica se inscreve de uma única vez em uma superfície: quando o fotógrafo aperta o botão da máquina, ele capta a cena, através de propriedades de luz e da ótica, que se projeta sobre a superfície fotossensível. Daí o seu valor como documento, por sempre trazer consigo rastros do real. Já a fotografia digital é formada por pequenas unidades gráficas, os pixels. Segundo Fontcuberta "a fotografia analógica se inscreve e a digital se escreve". 21 Com forma final muito semelhante à da fotografia analógica e sendo também gerada segundo propriedades idênticas de luz e ótica, a imagem digital acaba se apropriando de valores já consolidados da primeira. Apesar da fotografia digital permitir uma manipulação mais fácil e acessível, acreditava-se que ela não trazia nenhuma mudança substancial. O que ficou nítido, no entanto, com o passar dos anos, é que a fotografia digital trouxe decididamente uma transmutação dos valores fundamentais da fotografia analógica. A questão que se coloca é de conceito: como a facilidade da “mentira” digital afeta a consciência crítica do público. As imagens geradas dentro do computador não apresentaram mais referente no real e se mostram muitas vezes em formas convencionalmente realistas. Elas podem compartilhar o realismo como estilo, mas na pós-fotografia não há compromisso com a realidade. Se compararmos o surgimento do daguerreótipo no século XIX e da pós fotografia no século XXI, vemos que no primeiro houve uma ruptura tangível: o surgimento da fotografia fez com que artistas buscassem novas funções para a pintura, que não a representação; no segundo, o que se vê é uma disrupção invisível: a tecnologia digital delimitou o espaço da fotografia analógica (gráfico 1), empurrando-a para práticas artísticas específicas, e invisível porque os usuários foram se adaptando facilmente às novas ofertas tecnológicas e não se deram conta da força dessa mudança até que ela se tornasse indiscutível. (Fontcuberta, 2016).

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Quanto à noção de original, “a pós-fotografia assina a desmaterialização da autoria ao dissolver as noções de originalidade e de propriedade. Leva também a repensar, atualizando Benjamin, o estatuto da obra de arte na era da apropriação digital: se a revolução digital trouxe também a desmaterialização dos conteúdos através da difusão via internet, a apropriação se impõe de forma cada vez mais natural se transformando em um novo paradigma da cultura pós-fotográfica.” 22 A ideia de apropriação de imagens encontradas na rede dando um novo sentido a elas vem ganhando terreno em meio ao excesso de imagens encontradas. Exemplo disso é o trabalho da artista franco-suíça Corinne Vionnet (fig. 8), que questiona se existe um condicionamento (consciente ou não) no momento de fotografar que acaba produzindo praticamente as mesmas imagens já postadas e compartilhadas antes. Corinne sobrepõe conjuntos de fotografias de lugares culturalmente simbólicos, mostrando uma grande redundância imagética. O mesmo vale para muitas fotografias de arquitetura que se espalham na rede: apesar de terem como objetos obras diferentes, parecem sempre a mesma foto, mesma composição, mesma luz, mesmo céu, mesma distância.

22  Fontcuberta, Joan. La furia de las imagenes - notas sobre la postfotografia. Barcelona: Galaxia Guternberg, 2016.

As imagens mudam de natureza e passam a fazer parte de uma nova ordem visual onde a velocidade, a imaterialidade e o compartilhamento constituem suas mais novas características, e essa é a grande mudança de paradigma. Eleva-se a ideia de construção de verdade: “A fotografia não chega a desaparecer como modelo do visual nem como cultura: simplesmente sofre um processo de desindexilização. A representação fotográfica se liberta da memória, o objeto se ausenta, o índice evapora” (Fontcuberta, 2012). A criação da internet, das mídias sociais e da telefonia móvel afetou todos os níveis de vida, econômica, política e social. O mundo adquiriu instantaneidade e se tornou vez mais global. A possibilidade de sermos produtores e consumidores de imagens transformou a mediação do mundo pela fotografia em um grande amálgama. Devemos entender

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as imagens hoje sob a lógica do excesso, que produz uma visibilidade nunca antes imaginada, dando acesso à muitas imagens antes inatingíveis. Ao mesmo tempo, a pós-fotografia transforma a imagem em bits, informação sem corpo, posta em circulação em fluxo frenético e incessante, efêmero, transitório. O instante decisivo é substituído pela velocidade e o refinamento pela rapidez (Fontcuberta, 2016). A pós-fotografia seria então uma nova categoria de imagens ligada à reprodução e à circulação, à ideia da independência da imagem, que se distancia cada vez mais do original, e muitas vezes não tem rastro ou referente. A etimologia do termo pós indica abandono, expulsão, despedida, algo que é deixado para trás. Assinala aquilo que não é mais, mas sem indicar o que vem adiante.

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fig. 8 - Corinne Vionnet. Coliseu, Photo Opportunities, 2005

OUTRAS VERDADES

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1839 daguerreótipo

1982 cad/3d studio max

1988 1990 1a câmera photoshop digital

fotografia fotografia analógica

inscrição em uma superfície

noção de original documento memória

“verdade” existência de um referente

Diagrama 1: atributos da fotografia e da pós-fotografia

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1992 w.w.w.

2000 telefone com câmera

2010 instagram

pós-fotografia fotografia digital imagens geradas por computador

unidades gráficas mínimas (pixels)

intervenção do fotógrafo na construção da imagem independência do referente compartilhamento via internet aumento da produção imagética velocidade de disseminação

OUTRAS VERDADES

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a expansão da imagem arquitetônica

23  Instagram’s user base grows to more than 500 million.<https:// www.reuters.com/ article/us-facebookinstagram-users/ instagrams-user-basegrows-to-morethan-500-millionidUSKCN0Z71LN> acesso em 01/04/2018 24  InfoTrends Research. <https://store. infotrendsresearch.com/ category_s/62.htm> acesso em 01/04/2019. As estatísticas disponíveis gratuitamente nas redes são poucas. Os dados mais acurados são ainda de 2016. Os outros são projeções. 25  Classifiquei a projeção como conservadora porque de 2015 a 2017 a o crescimento previsto é de 100 milhões de usuários/ano, quando em uma projeção linear, esse número já seria bem mais alto. 26  Fontcuberta, Joan. A câmera de Pandora a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: G. Gili, 2014, P.30

Com a evolução digital, a relação das pessoas com as imagens também muda: hoje, o ato fotográfico, o clique, o compartilhamento são quase tão ou mais importantes do que a produção de imagens, como podemos ver pela quantidade de fotos postadas nas mídias sociais, muito maior do que podemos consumir. Dados de 2016 da Reuters.com23 mostram que a postagem diária (entre fotos e vídeos) no instagram está próxima dos 95 milhões. De acordo com o InfoTrends24, a projeção conservadora25 é de um aumento de 9% do número de fotos tiradas por ano de 2016 para 2017, chegando a 1.200 bilhões (gráfico 1). Ou seja, se supormos que levamos 1 segundo para ver cada imagem, levaríamos mais de dois anos para darmos conta das postagens de apenas um dia. O trabalho de Erik Kessels, “24 hours in photos” de 2011 (fig. 9), aborda essa nova dimensão da produção imagética. O artista imprime todas as fotos postadas em 24 horas no Flickr, na época o maior portal de fotos. O resultado são 350.000 impressões que inundam o espaço da galeria e não conseguimos dar conta de ver. Nenhuma delas é clicada por ele. O trabalho de Kessels discute o estatuto da fotografia hoje, em que imagens já não servem mais como preservação da memória de ocasiões importantes, nem como construção de identidade através dessas lembranças, mas se definem como uma nova forma de comunicação, exclamações de vida. Todos os eventos são fotografáveis e compartilháveis: as fotografias confirmam a realidade e multiplicam as experiências. Nessa massificação de imagens, a foto não documenta mais um acontecimento, ela faz parte dele. Como afirma Fontcuberta, “Não existem mais fatos desprovidos de imagens e a documentação e transmissão do documento gráfico já são fases indissociáveis do mesmo acontecimento.” 26

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1200

1100

fotografias poduzidas em bilhões

1000

810

fotografia digital fotografia analógica

660

380 350

1990

2017*

1980

2016

1970

2015

1960

2014

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2013

25

2012

10

2011

3

2010

1

1930

86

gráfico 1: evolução do número de fotografias tiradas por ano fonte: 1000memories / infoTrends / os números após 2013 são projeções

OUTRAS VERDADES

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27  Picon, Antoine. A arquitetura e o virtual: Rumo a uma nova materialidade. In: O campo ampliado da arquitetura - antologia teórica 1993-2009, organização Krista Sykes.

A entrada de softwares de criação arquitetônica no mercado a partir de 1982 com o lançamento pela Autodesk do CAD - Computer Aided Design - levantam reações contra e a favor da criação de projetos arquitetônicos dentro do computador: as posições contra falavam em um distanciamento da experiência física frente ao virtual e as opiniões a favor vislumbravam o surgimento de uma nova noção de materialidade. Antoine Picon27 acredita no entanto, que a grande disseminação imagética da arquitetura não deve ser vista como distanciamento do material, mas como remodelação. Considera que quase toda materialidade ou aspecto de nosso ambiente é em grande parte uma construção social, que a nossa experiência no mundo é quase sempre domesticada pela cultura, filtrada pelas lentes reais ou simbólicas, nossos gestos e percepções, direcionados pela tecnologia e suas máquinas. O autor também argumenta que a abstração sempre fez parte da representação da arquitetura. Desenhos e plantas são necessariamente abstratos e já nascem com características de verossimilhança e indeterminação, permitindo futuras mudanças nas decisões projetuais. Evidentemente, as fotografias de arquitetura também são impactadas pelas mudanças tecnológicas. Antes do surgimento da internet, elas circulavam praticamente em revistas técnicas, de decoração ou de viagens e tendiam a ser produzidas por profissionais ou amadores da fotografia. Ao longo das últimas décadas, com a fotografia digital, softwares de manipulação de imagens como o Photoshop, a criação da internet e das mídias sociais, esse espectro tanto de produção quanto de consumo se ampliou significativamente. As imagens de arquitetura também tiveram seus códigos alterados: já não precisam de cortes e plantas para se legitimar, perdendo parte de sua especificidade técnica. Vê-se, então, uma suposta democratização da produção e do acesso às imagens de arquitetura, ampliando e questionando as suas fronteiras disciplinares. Essa ampliação não está isenta de ambiguidades e equívocos, como indica Pedro Bandeira: "As imagens prestam-se à subjectividade, à descontextualização, ao excesso, à fragmentação, à sobreposição, 33


fig. 9 - Erik Kessels, exposição “24 hours in photos” , FOAM, Amsterdam, 2011

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28  Bandeira, Pedro Jorge Monteiro. Tese de Doutoramento “Arquitectura como Imagem, Obra como representação subjetividade das imagens arquitectónicas - Volume 1”, Universidade do Minho, Departamento Autónomo de Arquitectura, Julho 2007, P.3.

à ilusão, à manipulação, ao simulacro, à substituição... E, no entanto, o observador não parece temer o seu efeito." 28 A perda de inocência que o surgimento das novas tecnologias traz, libertou a fotografia arquitetônica de parte de sua objetividade, e essa "imagem desobrigada da verdade" foi aceita com muita naturalidade pelo observador, que se torna aqui aliado nessa nova produção imagética. Como propõe Pedro Bandeira, a perda da inocência é a constatação da existência de uma nova perspectiva do olhar em relação a um objeto já conhecido. Aconteceu primeiro com a pintura, com o surgimento da fotografia que toma seu lugar em termos de representação do real, e depois com a própria fotografia, que se liberta da objetividade, se desobrigando da verdade e da representação do real. A imagem fotográfica de arquitetura ganha força com os renderings, essa nova categoria de imagens que surge com o 3D Studio Max no mesmo ano em que o Autocad chega ao mercado. Os renderings já estão longe de ser fotografia, são construídos inteiramente dentro do computador, já nascem sem referente no mundo real, e podem circular independentemente de projetos nas redes de difusão. São imagens que muitas vezes parecem fotografias, usam linguagem fotográfica, mas não se referem a nada exterior, somente a si mesmas. Desterritorializadas, sem origem, estão em toda parte. Muitas vezes a hiper-realidade desejada, amplamente usada na arquitetura, deixa pouco espaço para a imaginação e pode gerar confusão por não sabermos diante do que estamos. A experiência visual de um rendering pode se assemelhar muito a de uma imagem fotográfica e pode ocupar o mesmo espaço em nossa memória visual. Hoje não há como negar a abrangência das imagens arquitetônicas, tanto em termos de produção quanto de recepção e disseminação. Cada vez mais, as imagens arquitetônicas independem de um arquiteto para serem produzidas, prescindem do acompanhamento de plantas e cortes ou qualquer imagem técnica para serem entendidas e ainda atingem um público muito mais amplo e interdisciplinar. Como vislumbrou Picon, temos definitivamente uma remodelação da materialidade da arquitetura e o alargamento do seu alcance. 35


O fotógrafo português Fernando Guerra29 por exemplo, tem 146 mil seguidores30, entre apreciadores de seu trabalho, arquitetos, estudantes de arquitetura e empresas. De acordo com as postagens em seu perfil do Instagram, uma imagem alcança facilmente entre 3 a 5.000 pessoas. Uma revista como a Casa Vogue Brasil tem 1,1 milhão de seguidores31. Isso significa que no Brasil, país com uma população de 212 milhões de habitantes e 65 milhões de usuários de Instagram32, o Instagram da Casa Vogue Brasil pode atingir 1,70% da população. Uma reportagem recente do jornal The Guardian relata que, apesar do aumento vertiginoso de fotografias tiradas e postadas diariamente, as feiras, exposições e museus dedicados à fotografia contemporânea vem proliferando como nunca e que um dos temas caros à fotografia de arte é o questionamento do próprio meio digital onde está inserida. E as imagens críticas - imagens fotográficas produzidas por artistas ou fotógrafos, não comissionadas, com carga crítica política, econômica ou social - que se mantinham nas galerias e museus para um público também especializado, hoje tem um grande papel como instigadoras do pensamento arquitetônico para além dos seus limites tanto criativos, críticos quanto da própria noção de arquitetura em um mundo cada vez mais virtual. 33

29  Fernando Guerra | FG+SG < https://www. archdaily.com.br/br/ photographer/fernandoguerra-fg-sg> acesso em 01/04/2019 30  Instagram, conta: fernandogguerra. 31  Instagram, conta Casa Vogue Brasil 32  fonte: NapoleonCat. com 33  What’s next for photography in the age of Instagram? <https:// www.theguardian.com/ artanddesign/2018/ oct/14/futurephotography-in-the-ageof-instagram-essaysean-o-hagan> acesso em 01/04/2019

OUTRAS VERDADES

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OUTRAS VERDADES: ARQUITETURA E FOTOGRAFIA Existe então um imensidão de imagens (arquitetônicas ou não) disponíveis ao mesmo tempo na rede para quem se interessar, tendo como referência objetos existentes, obras construídas, ou criadas a partir de projetos, ideias, críticas em contínua expansão. Cada imagem arquitetônica toma seu caminho (produção-postagemcompartilhamento): algumas não tem referência no real, são independentes, quase outra matéria, outras se mantém mais próximas do que consideramos realidade, desdobrando-se em novos sentidos e subjetividades, ampliando as fronteiras disciplinares. Com o intuito de mapear as bordas da expansão da imagem arquitetônica, busquei imagens fotográficas com formas de produção diferentes, feitas por diferentes agentes, atingindo diferentes públicos. A categorização proposta leva em conta a ligação da imagem com seu referente no real. As primeiras imagens compõem o grupo correspondência com o real e o segundo, emancipação do real (diagrama 2). O primeiro grupo é constituído por imagens fotográficas que se definem prioritariamente pela sua correspondência com o real, que possuem algum traço ou referente que as conectam à arquitetura construída. Algumas estão mais próximas do que acreditamos ser a realidade, outras estão ligadas por um fio mais sutil. Nessa categoria, a câmera, seja analógica ou digital, garante certo nível de indicialidade: um objeto arquitetônico, em algum momento, foi necessariamente disposto diante de uma lente. Essa categoria é dividida em 5 subgrupos: fotografias documentais, fotografias crítico-documentais, fragmentos do real, apropriações fotográficas e alinhamento conceitual. Na origem do documentarismo, os fotógrafos se baseavam no tripé: verdade, credibilidade e objetividade. A fotografia documental, que constitui o primeiro subgrupo, busca apresentar o real, mas muitas vezes, "o uso estritamente documental da câmera fracassa na tentativa de captar a realidade viva; somente enganando podemos alcançar certa verdade, somente com uma 37


simulação consciente nos aproximamos de uma representação satisfatória." 34 Nessa subcategoria, portanto, algumas vezes a manipulação pode ajudar na "honestidade" das imagens, fazendo com que a realidade desejada fique mais evidente.

34  Fontcuberta, Joan. A câmera de Pandora a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: G. Gili, 2014, P. 109

No segundo subgrupo estão as fotografias que chamei de críticodocumentais, que apresentam ou partem de objetos arquitetônicos "reais" mas que manifestam também uma carga de ficção ou narratividade, libertando a fotografia da descrição. As fotografias crítico-documentais são usadas como meio de expressar uma ideia ou conceito que se sobrepõe ao objeto. Aqui, o fotógrafo imprime o seu olhar, dá o tom da história que quer evidenciar. Nas fotografias inseridas nesse subgrupo "as impressões e sensações do fotógrafo são francamente exploradas e traduzidas por meio dos mais variados recursos técnicos e estéticos (...) São imagens capazes, então, de se vincular a um modo de representação que vai para além da remissão ao referente: à coisa fotografada, são agregadas lembranças, crenças, valores, interesses, desejos e receios do próprio fotógrafos". (Lombardi, 2007). A terceira subcategoria é a dos fragmentos do real. Um fragmento é um pedaço de um objeto que foi partido, uma parte menor que faz parte de um todo. Nessa subcategoria, os fragmentos são partes de imagens retiradas, recortadas de seu contexto original - muitas vezes carregando a essência dessa origem - e realocadas em novas combinações, que geram uma tensão entre a realidade e a ficção. Na quarta subcategoria, apropriações fotográficas, estão imagens em que, sob a tutela de uma arquitetura icônica, camadas de novos sentidos se sobrepõem ao conceito de arquitetura moderna impregnado na imagem da obra. A quinta subcategoria, alinhamento conceitual, reúne imagens em que a obra arquitetônica tem sua essência conceitual reforçada através de parcerias entre arquitetos e fotógrafos, onde obra reforça a imagem e a imagem reforça a obra.

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35  Baudrillard, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Editora Relógio d’água, 1991. P.153

O segundo grupo considera as imagens independentes de uma referência real. O conceito de emancipação do real vem de encontro com a ideia da pós-fotografia. A imagem pixelizada se subdivide, se desdobra, se reconfigura e se transforma. Novas realidades são criadas em invólucros que podem ter aparência realista ou ser completamente imaginários. São imagens independentes, com existência própria. O real como conhecemos pode estar presente ou não, e tudo passa a ser possível. Essa categoria compreende dois subgrupos, o primeiro, fotografia construída expõe as imagens fotográficas feitas a partir de um modelo construído. "os modelos já não constituem uma transcendência ou projecção, já não constituem um imaginário relativamente ao real, são eles próprios uma antecipação do real"35 O segundo subgrupo, renderização, se constitui por imagens criadas dentro do computador, independentemente do real. Algumas podem ter aparência realista a ponto de serem confundidas com imagens fotográficas e outras podem partir para a abstração, criando realidades novas e desconhecidas onde conseguimos enxergar muito pouco das convenções do real.

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OUTRAS VERDADES

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bordas do fotográfico

emancipação do real

fotografias construídas

obra construída

renderização

bordas do fotográfico Diagrama 2 - bordas do fotográfico

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bordas do fotográfico

correspondência com o real

bordas do fotográfico

fragmentos do real

obra construída

fotografias documentais

fotografias crítico-documentais

alinhamento conceitual apropriações fotográficas

OUTRAS VERDADES

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correspondência com o real 36  Nobre, Ana Luiza; Wisnik Guilherme; Milheiro, Ana Vaz. Coletivo. 36 projetos da arquitetura paulista contemporânea. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

fotografias documentais As fotografias documentais podem ser feitas por fotógrafos comissionados para registrar arquiteturas construídas - para divulgação da obra, para editoriais de revistas -, ou como parte de trabalho pessoal. Em maior ou menor grau, a assinatura do fotógrafo se mistura com os traços do arquiteto e com a fotogenia da obra. As fotografias documentais tem um compromisso com a ideia de registro. É a categoria que mais se aproxima do fotodocumentarismo e seu tripé, verdade, objetividade e credibilidade. A fotografia de Nelson Kon (fig. 10) capta a totalidade da obra. Usando uma lente grande angular, Nelson faz uma foto panorâmica onde conseguimos ver as duas fachadas da edificação e seus contrastes. O edifício alonga-se sobre o terreno como a visão alonga-se sobre o edifício. A luz dourada do entardecer se reflete nos brises metálicos verticais, enquanto a curva em concreto se suaviza na sombra uniforme. A paleta de cores entre o bege e o cinza só é quebrada pelo azul do céu. As nuvens se direcionam para o centro do construção, quase de encontro à jovem árvore, eixos que se cruzam: o olhar é captado nesse ponto e redistribuído para as fachadas reforçando a integração entre obra e natureza. Nelson Kon é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo e é fotógrafo especializado em arquitetura e cidades, atuando profissionalmente desde 1985. Seus trabalhos são na sua maior parte comissionados, tanto por arquitetos como por revistas de arquitetura e seu grande acervo compreende principalmente imagens da arquitetura brasileira moderna e contemporânea. As fotografias de Nelson Kon se tornaram quase um padrão, sobretudo na construção de uma linguagem para a arquitetura paulista. O livro Coletivo: 36 projetos da arquitetura paulista contemporânea publicado em 2006 36, por exemplo, tem a maioria dos projetos 43


fotografados por Kon. O fotógrafo imprime, necessariamente, seu olhar e sua identidade nas fotografias que faz e por mais que o conceito arquitetônico seja diferente em cada projeto, é possível ver semelhanças entre as imagens apresentadas.

37  outra nomenclatura usada para renderização, do inglês, visualization

Kon domina a linguagem fotográfica e sua técnica é precisa. Suas fotografias são registros da arquitetura construída em seu melhor ângulo, luz e enquadramento sempre em busca da fotogenia de cada edificação. Ao mesmo tempo em que há um compromisso com a verdade mostrada, a forma final de suas imagens é objetiva, mas agradável aos olhos. São imagens imediatas e atrativas, características necessárias hoje para que se destaquem entre tantas outras. A fotografia do Chaoyang Park Plaza em Beijing (fig.12) de Iwan Baan provoca uma dúvida: não se sabe se é uma imagem fotográfica ou uma imagem criada em computador. Os pássaros, a neblina, o edifício pouco nítido, recursos muito usados em renderizações induzem à suspeita. Podemos comparar por exemplo com a visualização37 feita pela MIR do projeto do escritório Snøhetta para a Ópera de Shanghai (fig. 11): paleta de cores semelhante, recursos que criam um "clima" semelhante, como as silhuetas dos barcos, o brilho refletido na água, a nebulosidade. Essas duas imagens mostram os atravessamentos entre as linguagens visuais dos diferentes modos de produção, uma hibridização de mão dupla das gramáticas arquitetônicas, não só partindo da fotografia para o rendering, como também do rendering para a fotografia. Na imagem do Chaoyang Plaza, Baan faz uma vista aérea da inserção do edifício na cidade. O fotógrafo foi contratado para fazer as fotos do edifício em agosto, quando a cidade é quente e úmida. As condições atmosféricas acabam por destacar a forma sinuosa e sulcada do Chaoyang Plaza e reforçar o seu aspecto orgânico e monumental em contraste com as construções prismáticas ao redor. A neblina realça também a escala e presença da edificação frente às outras, principalmente as mais baixas na lateral direita. Os pássaros direcionam o olhar para o edifício de forma contundente OUTRAS VERDADES

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38  informações contidas no site do fotógrafo Iwan Baan <https://iwan.com/ about/> acesso em 17/05/2019

sendo difícil desviar a visão para outros aspectos da imagem, como se mostrassem: aqui vemos o Chaoyang Plaza. E o resto. O fotógrafo holandês é conhecido principalmente por suas imagens que narram a vida e as interações de indivíduos ou comunidades com a arquitetura e seu contexto. Iwan Baan (1975) estudou na Royal Academy of Art em Haia e trabalha com publicações e fotografia documental em Nova York e Europa. Na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2012 ganhou o Leão de Ouro de melhor projeto da Exibição Internacional Common Ground com as fotos da Torre David em Caracas (fig. 13) 38. Iwan Baan trabalha com arquitetos como Rem Koolhaas, Herzog & de Meuron, Diller Scofidio, entre outros. Além dos trabalhos comissionados, já colaborou com vários projetos de livros, como o próprio Torre David: Informal Vertical Communities. Agora vemos uma fotografia dos fotógrafos Hufton e Crow do icônico Centro Heydar Aliyev no Azerbaijão (fig.14). O escritório de Zaha Hadid ganhou o concurso para a construção do Centro em 2007, finalizando a obra em 2013. Baku, capital do Azerbaijão, fica na costa ocidental do Mar Cáspio e se tornou independente da antiga União Soviética em 1991. A exemplo de outras capitais do Oriente, Baku tem investido fortemente na modernização e desenvolvimento de infraestrutura. Com grandes reservas de petróleo e gás, é uma região muito disputada e rica. De 1993 a 2003 esteve nas mãos do governo autoritário de Heydar Aliyev, cujo Centro de Zaha homenageia. Hoje é governado pelo seu filho, Ilham Aliyev. Aqui se coloca a questão da fotografia arquitetônica como instrumento político: o quanto o conhecimento do entorno político-econômico muda o olhar sobre a imagem da obra? A arquitetura de Zaha deveria fazer um contraponto às arquiteturas da época da dominação soviética, e assim o fez. Uma obra feita de curvas e dobras que

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assume o papel de símbolo de uma nação se reerguendo, em busca de independência de um passado representado pelas linhas rígidas do antigo governo. O quanto isso é verdade ou somente o que a imagem simbólica deseja passar? O quanto realmente se apreende através da fotografia frontal "perfeita" de H+C? Com a luz do entardecer em contraste com as janelas iluminadas em amarelo, o plano da praça à frente e a cidade de Baku ao fundo. Sem um olhar atento, essa é a imagem que fica na cabeça, a que pode ser confundida como a própria arquitetura, com o própria cidade e país onde se encontra.

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fig. 10 - Nelson Kon, SEBRAE, grupo sp, 2010

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fig. 11 - MIR, Shanghai Opera, Snøhetta, winning proposal, s/d

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fig. 12 - Iwan Baan, MAD’s Chaoyang Park Plaza in the Beijing haze, 2017

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fig. 13 - Iwan Baan, Torre David, Caracas, 2012

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fig. 14 - H + C, Heydar Aliyev Centre, Baku Azerbaijan, Zaha Hadid Architects, 2013

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fotografias crítico-documentais

Thomas Struth fotografa o Tel Aviv City Hall em 2011 (fig. 15). O edifício foi projetado nos anos 50 pelo arquiteto Menachem Cohen para ser a sede da prefeitura até que em 1972 é transformado em local de eventos culturais. Nas escadarias do edifício, no dia 4 de novembro de 1995, minutos depois de participar de uma manifestação pela paz na Praça dos Reis (hoje Praça Yitzhak Rabin), o premiê Yitzhak Rabin foi assassinado por um radical de direita. A fotografia faz parte do projeto This Place, que explorou a complexidade de Israel e da Cisjordânia, como lugar e metáfora, pelos olhos de doze fotógrafos internacionais, entre eles, Thomas Struth, Stephen Shore, Frédéric Brenner, Jeff Wall. A fotografia de Struth foi feita em câmera de grande formato fixada em tripé, o que faz com que ganhe grande precisão e excelente resolução. Sua forma final apresentada com 1,25 x 1,60 metros permite a visualização de todos os detalhes. A imagem mostra o City Hall em enquadramento frontal, a escadaria à esquerda, a praça à frente. Não há pessoas na fotografia - como acontece também em muitas outras fotografias de paisagem de Struth - com exceção dos três homens trabalhando em um andaime. Vista de longe, a imagem parece homogênea, mas observando de perto, as janelas, apesar de terem o mesmo tamanho, não seguem um padrão de cor nem um ritmo determinado. Esse quase improviso traz indiretamente a presença humana para a imagem. A arquitetura não é marcante, a imagem é plana, opaca, cheia de coisas não ditas. Não se entende muito bem o que o fotógrafo quis mostrar. Talvez não seja possível analisar essa fotografia sem se colocar no lugar do fotógrafo, que viajou seis vezes para Israel entre 2009 e 2014, fazendo imagens de vários locais como as montanhas de Golan, Ramallah e Nazareth. Seu pai lutou na segunda guerra de 1937 a 1945 em Wehrmacht e Struth conheceu a história do Holocausto ainda pequeno. A fotografia "vazia" do City Hall talvez deixe espaço para a falta de palavras, para a ausência, para que o observador a complete. Em uma entrevista, Struth diz que 53


gostou de fotografar o edifício ao entardecer, pela beleza e emoção da luz do crepúsculo, pelo seu reflexo nas janelas e, mais que isso, por saber que o sol estava se pondo para se levantar no dia seguinte. Em um lugar marcado pela tragédia do assassinato do premiê, que um ano antes havia recebido o Nobel da paz, acreditar na possibilidade da transformação e da renovação talvez seja a única saída.

39  < https://www. britannica.com/ biography/ThomasStruth> acesso em 18/05/2019

Thomas Struth (1954) nasceu em Geldern, Alemanha Oriental, vive e trabalha em Berlim e Nova York. Estudou pintura na Academia Estatal de Belas Artes de Karlsruhe. Suas primeiras fotografias em preto e branco de paisagens urbanas de Dusseldorf foram feitas como auxílio nas suas pinturas. As imagens frontais tinham grande semelhança com as tipologias industriais que os Bechers estavam criando - isso antes de Struth conhecer o trabalho do casal. Depois de uma exposição na qual participou em 1976, ainda como estudante, ficou claro que queria trabalhar com fotografia, e se juntou ao primeiro curso ministrado pelos Bechers, que fundaram o departamento de fotografia na Academia de Belas Artes de Karlsruhe. 39 Struth já expôs no Instituto de Arte Contemporânea de Boston (1994), no Metropolitan Museum of Modern Art (2003), Museo del Prado (2007), Whitechapel Gallery London (2011), Museu Serralves no Porto (2011-12) entre outros. O edifício Maine-Montparnasse II, do arquiteto Jean Dubuisson, foi construído entre 1959 e 1964 como parte de uma grande renovação urbana de Paris iniciada em 1960 e idealizada pelos preceitos modernos, provendo habitação para 2.000 pessoas. São 752 apartamentos distribuídos em 17 andares, em uma área total de 88.000 m2. Andreas Gursky fotografou a construção em 1993 (fig 16) usando câmera de grande formato - que permite uma imagem com mais informação, nitidez e resolução. As fotografias foram manipuladas na pós-produção criando um arranjo retangular quase abstrato. Com mais de três metros de comprimento por quase dois de altura, o fotógrafo mostra um objeto arquitetônico monolítico e monumental (fig. 17). Tal qual a construção de Dubuisson. Com o olhar distanciado, OUTRAS VERDADES

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a primeira leitura da imagem discute forma - prismática, moderna, impassível - e também ritmo e composição, evidenciados nas esquadrias de alumínio anodizado, nas lajes de concreto, nas janelas de vidro com cortinas de cores e formatos variados. Ao se aproximar da imagem (fig 18), no entanto, outras imagens, nítidas, se apresentam. Se apresentam porque o observador se mantém do lado de fora, como um voyeur, olhando, matando a curiosidade de ver o que acontece no interior do prédio. O todo se fragmenta em individualidades. A obra permite uma experiência visual tanto micro quanto macro do edifício. Pode-se observar inúmeros acontecimentos pessoais (fig.19) - cada um reduzido a uma unidade do tamanho de uma janela, não como uma narrativa mas como eventos pontuais e independentes. Com um passo atrás percebemos a dissolução desses pequenos acontecimentos na totalidade da obra. Com uma crítica aguda à sociedade capitalista e ao modernismo do pós guerra, Gursky mostra o indivíduo e o dissipa na solução moderna do habitar. Andreas Gursky nasceu em Leipzig na Alemanha em 1955, vive e trabalha em Düsseldorf. Formado em Artes pela Folkwang University of the Arts em 1980, estudou com Bernd Becher na Art Academy of Düsseldorf de 1980 a 1987, onde atualmente leciona. Começou a fotografar a capital parisiense no início dos anos 90 e sempre buscou seus temas na arquitetura de massa, aqui representada pela estética moderna e na infraestrutura do capitalismo global, na repetição e no detalhe mínimo.

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OUTRAS VERDADES

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OUTRAS VERDADES

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pรกgina anterior: fig. 15 - Thomas Struth, City Hall, Tel Aviv, 2011 fig. 16 - Andreas Gursky, Montparnasse, 1993

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OUTRAS VERDADES

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fig. 17 - Andreas Gursky, Montparnasse (180 x 350 cm), 1993 fig. 18 - Andreas Gursky, Montparnasse, 1993 - detalhe

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OUTRAS VERDADES

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fig. 19 - Andreas Gursky, Montparnasse, 1993 - detalhes

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OUTRAS VERDADES

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fragmentos do real

Fragmento: pedaço de objeto que foi partido; parte extraída de um todo; excerto. Untitled #8 de Filip Dujardin (fig. 21) mostra três construções prismáticas, bem proporcionadas, em ordem decrescente, da esquerda para a direita (no sentido tradicional de leitura de um texto na cultura ocidental). O entorno é praticamente inexistente, não vemos pessoas e o céu sem cor nem nuvens faz com que o olhar se concentre nas edificações. De uma forma geral, a imagem é muito nítida, com muita profundidade de campo. Todos os elementos estão em foco. Os primeiros dois edifícios compartilham e são suportados pelo mesmo embasamento, cuja materialidade neutra e homogênea parece fazer uma intermediação entre o terreno e a estrutura que se ergue. O terceiro edifício parece ser independente pelo uso mais uniforme dos materiais na fachada e por ter um ponto de fuga diferente dos dois primeiros (fig. 20), o que geralmente acontece com fotografias feitas com lentes grande-angulares. Vemos também uma correção das linhas verticais. Algumas partes se encontram aparentemente fora de lugar: uma porta posicionada no lado esquerdo do edifício menor não permite a passagem para o exterior por estar a alguns metros do chão e tubulações que saem de dentro das construções parecem não ter finalidade. A imagem desperta para a questão da função na arquitetura. A porta que não se conecta com lugar nenhum foge ao entendimento racional. Só cabe deixá-la ser, aceitála ali como prova da existência de outras possibilidades. Os materiais sentem o desgaste do tempo. Vemos o que parecem ser partes de contêineres coloridos, tijolos aparentes, concreto, vidros de vários tipos. Tem-se a impressão de serem reaproveitados, restos costurados em uma colcha de retalhos. As fachadas parecem feitas ao acaso, sem planejamento, com os materiais ali somente para cobrir algo, talvez um avesso, uma parte de trás. As faixas e blocos retangulares criados pela colocação das chapas metálicas e tijolos, à primeira vista dividem a imagem 65


horizontalmente, mas a descontinuidade e descasamento vão se tornando evidentes à medida que se olha com mais atenção: não se sabe onde começa um pavimento, onde termina o outro. Na verdade não se sabe nem mesmo se essas divisões na fachada correspondem à configuração interna. As aberturas, poucas, aleatórias e sempre fechadas não ajudam a desvendar o interior dessa construção. A repetição contínua de elementos, sem intervalos entre um e outro, torna a imagem compacta, hermética. O espaço é opaco, não permite o atravessamento, nem mesmo do olhar.

40  Jean-Louis Genard. Les Fictions Architecturales de Filip Dujardin. <http://sites. archi.ulb.ac.be/_triphot/ spip.php?rubrique154> acesso em 08/04/2019

Filip Dujardin é um fotógrafo belga nascido em 1971, formado em história da arte com especialização em arquitetura pela Universidade de Ghent e em fotografia pela Royal Academy of Fine Arts de Ghent. O seu primeiro trabalho de arte exposto foi a série fictions, em 2009: imagens de arquiteturas inventadas que beiram o real. Destaca-se a disposição em manter a tensão na imagem sempre levando a verossimilhança ao seu limite: nos deslocamentos dos elementos arquitetônicos em termos temporais e espaciais e na transposição das convenções da representação fotográfica realista. Seu vocabulário arquitetônico, desvinculado das amarras funcionais, se amplia e se desdobra. As fotografias de arquitetura que produz, seleciona e agrupa em pastas em seu computador são sua matéria prima: villas, edifícios, texturas, galpões, telhados, janelas, tudo lá… os fragmentos arquitetônicos, dissociados no tempo e no espaço, constroem algo novo. O trabalho desperta nossa atenção para uma desconexão entre o que vemos e a mensagem que nos é enviada. Através de deslocamentos, Dujardin contrapõe em suas imagens referências realistas facilmente reconhecíveis e nos apresenta outras possibilidades.40 Da série sheds de 2008 (figs 22, 23 e 24), na qual trabalhou antes de fictions, veio a inspiração para Untitled #8. Dujardin partiu para os campos de Flandres em busca de arquiteturas genéricas, galpões e cabanas feitas por fazendeiros para suprir as necessidades de abrigo para animais ou estocagem de OUTRAS VERDADES

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41  Jean-Louis Genard. Les Fictions Architecturales de Filip Dujardin. <http://sites. archi.ulb.ac.be/_triphot/ spip.php?rubrique154> acesso em 08/04/2019

produtos. A arquitetura anônima, sem grandes gestos, produzida com restos de materiais, se revela bucólica, emocional. Dujardin parece ter usado a materialidade e o sentimento que essas construções provocam em sua imagem ficcional Untitled #8. É possível ver o contraponto entre o pensamento racional - representado pelas formas prismáticas das edificações que remetem à estética moderna - e o sentimento provocado por uma arquitetura anônima, sem projeto, com grande carga poética - vista na transposição da materialidade das fotografias dos galpões (sheds) para as fachadas. Uma tensão entre o racionalismo e o improviso. Se considerarmos a linguagem como qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais e a gramática, um conjunto de regras que determinam o uso correto da língua escrita e falada, na arquitetura, a gramática cria os tipos e estilos, que são as regras que a fazem compreensível, inteligível, comunicável. Ao mesmo tempo que a gramática é restrição, da restrição nasce a possibilidade de se ir contra ela. É o que acontece no trabalho de Dujardin, uma quebra de regras, onde a forma reconhecível tradicional é o que propicia a transgressão, como um jogo que cria insubordinação às regras estruturais. 41 Dujardin opera seus deslocamentos, construindo uma outra gramática com grande porosidade entre a ficção e a realidade. Seu movimento desprende a arquitetura de suas restrições funcionais, e como ele mesmo reforça, não sendo um arquiteto (e não querendo ser), tem toda a liberdade de usar os elementos arquitetônicos independentemente de suas funções. Ao mesmo tempo, a fotografia assume um outro posto, não como representação, mas como apresentação de ideias. Ela é parcialmente mimética, apresenta fragmentos de realidade, mas sua composição gera desconcerto. “Como em algumas ficções cinematográficas de que fala Jean-Marie Schaeffer, as fotografias de Filip Dujardin, embora fictícias, assumem uma forte reivindicação de realismo. Esse realismo revela-se ao mesmo tempo hiper-realismo e surrealismo, e é nessa duplicação que reside parte de sua força 67


de interpelação. A ficção não é mentira. A intenção da ficção não é enganar, mas se manter entre o engano e a realidade."42 A intenção de Dujardin não é fazer ficção científica e sim criar imagens limítrofes, quase plausíveis, que suscitam dúvidas quanto sua veracidade. Há imagens com aparência realista mas ao mesmo tempo com elementos arquitetônicos distanciados de seus significados habituais, deslocados espacial e temporalmente. As imagens Composite N, I e J (figs. 26, 27e 28) também abordam a ideia de verossimilhança e deslocamentos temporais e espaciais. O próprio nome da série, Capriccio, faz referência aos Caprichos Arquiteturais, tipo de pintura produzido no século XVIII. Os caprichos eram fantasias arquiteturais, onde o pintor colocava na mesma tela edificações, ruínas arqueológicas e outros elementos arquitetônicos em combinações ficcionais ou fantásticas. Na pintura Capriccio con edifici palladiani de Canaletto (fig. 25), expoente do gênero, o canal atravessado por uma ponte parece saído da vista 43 de Windsor feita pelo próprio artista. Se as gôndolas fazem acreditar que estamos em Veneza, as construções (a Basílica Palladiana à direita e o Palazzo Chiericati à esquerda, projetados por Andrea Palladio) estão em Vicenza. Ao centro, vemos o projeto também de Palladio da Ponte de Rialto, nunca realizado. Aqui temos duas arquiteturas deslocadas espacial e geograficamente convivendo com a paisagem veneziana e ainda dividindo o espaço com um projeto não concretizado, todas apresentadas na imagem sem distinção, criando uma nova realidade possível. Philipp Schaerer (1972) é arquiteto e artista visual suíço. Estudou arquitetura na Swiss Federal Institute of Technology in Lausanne (EPFL) e trabalhou como gerente de conhecimento (knowledge manager) no escritório de Herzog & de Meuron de 2000 a 2006. Schaerer organizou para o escritório um sistema com 32.000 imagens entre paisagens, arquiteturas, gráficos, composições, cores, formas, pessoas, efeitos de luz, tipos de coberturas, materiais,

42  Jean-Louis Genard. Les Fictions Architecturales de Filip Dujardin: Comme certaines fictions cinématographiques dont parle JeanMarie Schaeffer, les photographies de Filip Dujardin tout en étant fictionnelles assument une forte prétention au réalisme. Ce réalisme se révèle dans le même temps être un hyper-réalisme et un surréalisme à la fois, et c’est dans ce dédoublement que réside une part de leur force d’interpellation. La fiction n’est pas le mensonge. L’intention fictionnelle n’est pas de tromper, mais de jouer sur les marges du leurre et de la réalité. Pour suivre Schaeffer : précisément d’activer ludiquement l’imagination au cœur d’un processus de dédoublement des mondes, le monde réel et le monde fictionnel. <http://sites.archi.ulb. ac.be/_triphot/spip. php?rubrique154> acesso em 08/04/2019

43  “O vedutismo é um gênero pictórico do Setecentos que se divide entre a

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vista de fantasia (Capriccio) e a vista exata. No Capriccio são representados juntos elementos reais e de fantasia com um resultado pitoresco e teatral, enquanto as vistas exatas são mais objetivas, influenciadas pelas teorias iluministas. Em Veneza, o vedutismo está inserido no cerne da cultura iluminista. Tudo o que sabemos da realidade o sabemos pelas representações que se formam na consciência: não saberemos jamais se são idênticas à realidade.” Argan, G.C. História da Arte Italiana 3 - De Michelangelo ao Futurismo, p. 404. 44  Entrevista com Philipp Schaerer: It’s just me and my Mac. <http:// architecturewriter. weebly.com/ acesso em 21/04/2019

texturas, superfícies, entre outros. O sistema foi desenvolvido com a sistematização e indexação das imagens e, como em um Google imagético particular, a partir de uma determinada busca, temos uma resposta em imagens.44 Por exemplo, se a busca pedir “textura de areia”, todas as imagens que tenham sido indexadas com essas palavras aparecerão como resultado. Seu trabalho como artista é um amálgama de conhecimento fotográfico, habilidade de construção, composição de imagens digitais e prática arquitetônica. Schaerer questiona a criação de imagens no meio digital e aponta caminhos para uma produção imagética desvinculada de convenções realistas. Em sua série Capriccio, constrói imagens a partir de recortes fotográficos ou feitos em computação gráfica. São sempre os mesmos componentes, os mesmos pontos de vista e as mesmas proporções, como mostra o esquema da figura 28, separados em cinco elementos: chão, embasamento, vegetação, fachada e cobertura em diversos arranjos. A imagem parece seguir uma lógica de montagem como se pode ver nas figuras 25, 26 e 27. Importante notar que o posicionamento e escala das partes são sempre os mesmos em todas as imagens (fig 29). As construções estão sempre centralizadas, ocupando grande parte da imagem, a vegetação, distante, se encontra também sempre na mesma posição, às vezes mais aparente, às vezes menos. O céu é uniforme, sem cor nem nuvens. O chão toma toda a parte inferior, é o único elemento que tem profundidade e também o único que poderia indicar um possível uso da construção, a que ela se destina. Mas são suposições. Alguns elementos parecem ter correspondência no real, outros não, não há uma regra aparente. Enxergamos nas imagens com nosso olhar treinado, arquiteturas e seus elementos. Mas a imagem, com sua planaridade, poderia representar qualquer outro objeto, uma caixa de sapatos, por exemplo. No composite J, passei algum tempo tentando reconhecer e nomear o beiral, sem chegar a nenhuma conclusão. Talvez a cobertura não seja feita de nenhum elemento construtivo e talvez nem seja uma cobertura. Parece uma cobertura, está localizada onde deveria estar, mas talvez não seja. O trabalho de Schaerer se aproveita de um vocabulário arquitetônico conhecido 69


para desconstruir suas regras e apresentar algo que entre em choque com os nossos conhecimentos, questionando sua veracidade. Na composição N (fig. 25), a fachada em enxaimel45, sistema construtivo típico de algumas regiões montanhosas da Alemanha, está associada ao clima frio que a imagem evoca, mas não apresenta os telhados de duas águas comuns a essa arquitetura e sim uma cobertura que se supõe plana.

45  técnica de construção que consiste em paredes montadas com hastes de madeira encaixadas entre si em posições horizontais, verticais ou inclinadas, cujos espaços são preenchidos geralmente por pedras ou tijolos.

Na composição J (fig. 27), a construção sólida de concreto chumbada com grampos de aço e embasamento largo e estruturado pode ser associada a um clima árido, enquanto a cobertura com detalhes ameniza a dureza da imagem. Parece uma máquina de guerra parada em uma área de manobras de veículos. Na composição I (fig. 26), a vegetação densa sugere um clima tropical; a fachada é de madeira pintada de preto, com base dentada em metal e a cobertura de vidro que traz suavidade à fachada. As imagens das arquiteturas de Schaerer no entanto, não apresentam uma tipologia definida, não são de nenhuma época específica, nem tem função determinada. São arquiteturas onde os elementos arquitetônicos partem de uma base de dados visual, sejam eles fotográficos, ou criados inteiramente no computador, para depois serem montados conforme o projeto do artista. Podemos ver semelhanças entre o trabalho de Philipp Schaerer e o de Ernst e Hilla Becher, que a partir do fim dos anos 50 (e por quase 50 anos) começaram a produzir e classificar fotografias de ruínas arquitetônicas de origem industrial na Alemanha, fazendo ver as reminiscências da paisagem moderna e seu rastro de objetos esquecidos (fig. 30 e 31). As imagens do casal Becher são documentais, organizadas, assépticas, sem presença de pessoas. São, a princípio, imagens sem expressão, tomadas frontalmente, que valorizam a geometria das formas. O isolamento dos objetos libera-os de qualquer objetividade. Eles chegam a um outro lugar, onde a arquitetura é puramente objetual, despida das suas funções, uma abstração.

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46  Blake Stimson, ‘The Photographic Comportment of Bernd and Hilla Becher’, in Tate Papers, no.1, Spring 2004. <https://www. tate.org.uk/research/ publications/tatepapers/01/photographiccomportment-of-berndand-hilla-becher> acesso em 19/04/2019

Os Becher eram rigorosos na produção de suas fotografias: na proporção do objeto dentro da imagem, no enquadramento frontal, no uso das mesmas condições de iluminação sem sombras, na ausência de pessoas, no uso de filme preto e branco. Seu sistema de trabalho era baseado no princípio do arquivo, da compartimentalização. 46 Esses princípios também são fundamentais nos trabalhos de Schaerer e Dujardin. Os tons de cinza e areia usados em Capriccio, assim como a frontalidade das imagens e a ausência de pessoas se relacionam com as escolhas cromáticas e de enquadramento dos Becher. A falta de cor não deixa que o olhar se perca, a frontalidade diminui a presença do fotógrafo/produtor, as imagens têm grande uniformidade, são despersonalizadas e não privilegiam nenhum objeto em relação a outro. A ausência de pessoas é vista também na obra de Dujardin, mas a presença humana pode ser sentida na transposição da materialidade das arquiteturas anônimas encontradas nos campos de Flandres. Aqui, a busca por arquiteturas genéricas é um ponto de contato com a obra do casal Becher. Dujardin constitui seu arquivo com suas fotografias, enquanto Schaerer tem seu próprio sistema de busca, mas em ambos, o arquivo é o meio para se chegar às imagens. Já no trabalho do casal Becher, a criação de um inventário formal organizado e sistematizado das ruínas modernas era um objetivo em si. Em Capriccio, há uma despoetização da imagem, ela é racional, um exercício formal de composição de fragmentos arquitetônicos apresentados em inúmeras combinações. Não há privilégio de uma parte em relação a outra: todas têm a mesma importância, o mesmo tratamento, como um inventário do vocabulário arquitetônico. Não há representação de arquitetura, mas possibilidades de criação de uma outra "realidade", que pode ser constituída em infinitas combinações. Uma imagem da série vista isoladamente, por exemplo, pode até ser confundida com uma representação de arquitetura, mas o trabalho visto em conjunto (fig. 30) não deixa dúvidas quanto à não realidade das imagens. Uma "realidade" que, 71


levada ao limite em sua repetição de elementos, perde seus atributos individuais e se torna ainda mais genérica, abstrata. A quantidade de informações visuais é tão grande que acabamos por deixar de ver. Schaerer não se preocupa em dar às imagens uma aparência de real: elas são atemporais, a-históricas, mostram sim a infinitude de possibilidades que o fotográfico e a criação de imagens digitais traz. Dujardin, por sua vez, contrapõe recortes de realidades carregados de significados. Se em um rápido olhar as fotografias do casal Becher e de Dujardin (em sheds) podem se parecer, a intenção é muito diferente. Percebemos uma busca por fragmentossíntese, que concentrem em si a essência tanto material quanto emocional do objeto fotografado. Em sheds, essa síntese está na materialidade dos galpões, reforçada pela paleta de cores, pela a nebulosidade e desfoque da vegetação no plano de fundo. Esses fragmentos-síntese, quando transportados para uma composição como Untitled #8, materializam de forma poética a determinação do artista de contrastar o racionalismo do moderno com a ficção.

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fig. 21 - Filip Dujardin. Untitled #8, sĂŠrie fictions, 2009

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figs 22/23/24 - Filip Dujardin. Série sheds, 2008 fig. 28 - Canaletto. Capriccio con edifici palladiani, 1756-1759

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fig. 26/27 - Philip Schaerer, SĂŠrie Capriccio, Composite N / J, 2015

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fig. 28 - Philip Schaerer, Série Capriccio, Composite I, 2015

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fig. 29 - decomposição de Capriccio: chão, embasamento, vegetação, fachada e cobertura.

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fig. 30: composição de Capricci. O, I, H, D, C, N, J, K

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fig. 31 - Ernst e Hilla Becher. Stoneworks, 1982

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fig. 32 - Bernd Becher, Hilla Becher, Framework Houses, 1959-73, 41.2 x 30.5 cm.

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apropriações fotográficas

47  Fontcuberta, Joan. La furia de las imágenes - notas sobre la postfotografia. Barcelona: Galaxia Guternberg, 2016. p.53, tradução livre 48  idem, P. 55, tradução livre 49  artistas como Troy Brauntuch, Jack Goldstein, Sherrie Levine, Robert Longo, e Philip Smith entre outros.

A escala crescente de produção e compartilhamento de imagens nos faz questionar por exemplo, onde estaria o valor da fotografia hoje. Uma possível resposta para essa pergunta pode estar no que Joan Fontcuberta indica como “a capacidade de dotar a imagem de intenção e sentido, em fazer com que a imagem seja significativa. Ser capaz de expressar um conceito, ter algo a dizer e dizer através da fotografia.” 47 A qualidade da fotografia não é mais medida tanto pela sua aparência, mas pelo seu conceito, seu uso, como e onde está sendo mostrada. A mesma imagem pode ser adequada em um contexto e inadequada em outro. Segundo o autor, o que na verdade prevalece é o sentido que o artista determina à imagem. O valor de criação passa então do clique para a gestão do conceito da imagem. Para ele, a autoria e a arte estão no ato intelectual de projetar valores outros na imagem, celebrando o espírito e a inteligência sobre a competência técnica. “Apesar de que na origem de cada imagem existe uma intenção, sempre é possível projetar uma segunda camada crítica que mude a sua semântica e modifique seu estatuto inicial. Essa segunda visão atua com esse valor de prescrição, descobre o que estava encoberto, coloca discurso onde não havia nada. Assim, a imagem se transforma, como o “object-trouvé” dos surrealistas.” 48 O conceito de apropriação, segundo Fontcuberta, aflorou nos anos 80, nas mãos de críticos e artistas pós-modernistas. Douglas Crimp, crítico de arte, montou em 1977 a exposição "Pictures" no Artists Space em Nova York e apresentou um grupo de artistas com trabalhos em várias mídias49 (escultura, vídeo-instalação, fotografia). A exposição discutia o estatuto da imagem e a sua função representativa. As raízes podem ser encontradas em Duchamp, nos surrealistas e dadaístas, que incorporavam fragmentos do mundo em suas obras e posteriormente na Pop-art de Andy Warhol e em Robert Rauschenberg. Em seu texto para a exposição "Pictures", Crimp afirmava que a: “representation has returned in their work not in the familiar guise of realism, which seeks to resemble a prior existence, but as an autonomous function…It is the representation

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freed from the tyranny of the represented.”50 A exposição deu origem a um novo vocabulário conceitual, que incluía palavras como cópia, reciclagem, paródia, alegoria, simulação. Na exposição, os ready-mades e as fotomontagens transgrediam a escultura e a representação realista tradicionais. Em outra fala, Crimp sustentava que "não estamos a procura de fontes de origem, mas de estruturas de significado: sob cada imagem sempre há outra imagem" 51 Era uma crítica à ideia de originalidade e autoria tão caras ao modernismo.

50  A representação aparece nos trabalhos dos artistas não como espelho do real, mas assumindo uma função autônoma. A representação se liberta da tirania do objeto representado. Tradução livre de texto do catálogo da exposição “Pictures”.

Sherrie Levine (1947), que participou da exposição "Pictures" continuou a produzir obras apropriacionistas, desafiando a autoria como em Untitled, After Edward Weston (fig. 33). Segundo os autores de “Art Since 1900”, Levine "pirateia" uma série de fotografias de 1925 em que Weston mostra seu filho com o torso nu com braços e pernas cortados e coloca seu nome como autora da obra. Levine questiona a originalidade da fotografia, que parece usar imagens de esculturas clássicas gregas como referência. O "autor" dessa imagem passa a ser múltiplo: desde os escultores gregos que copiavam-se uns aos outros, aos arqueologistas que escavaram as ruínas, até curadores de museus que mostram as esculturas, assim distanciando o próprio Weston da autoria da obra.

51  “We are not in search of sources of origins, but of structures of signification: underneath each picture there is always another picture”. Tradução Livre. Foster, H., Krauss, R., Bois, Y-A., Buchloh, B., Joselit, D. Art Since 1900 - modernism, antimodernism, postmodernism, Thames & Hudson, 2011.p.624.

A categoria apropriações fotográficas pretende discutir a ideia de originalidade, de autoria, além de trabalhar a fotografia como palimpsesto, como escrita em cima de escrita, significado em cima de significado através do uso de uma imagem que já possui um valor simbólico, moral ou estético reconhecido e tem esse valor deslocado, revisto, contraposto em outras camadas de valores. No presente trabalho, o objeto escolhido para o estudo das apropriações fotográficas é a Villa Savoye. A Villa foi projetada por Le Corbusier e construída entre 1928 e 1929 para Pierre Savoye como residência de fim de semana na região de Poissy, a 30 km de Paris. Le Corbusier usa novas técnicas construtivas para atingir nessa obra a síntese de sua arquitetura: os cinco pontos da arquitetura moderna

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52  Segundo Beatriz Colomina em “Privacy and Publicity”, no capítulo “The Mechanical Eye” Le Corbusier retocou a fotografia da Villa Savoye, como já havia feito em outras obras de modo a reforçar o conceito da arquitetura modernista. Ele distinguia claramente o espaço real e o espaço de uma página de revista e por isso alguns elementos em uma fotografia deveriam ser minimizados para não dispersar a atenção do leitor. 53  Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das letras, 1992. P. 387 54  idem, p. 387.

considerados por ele fundamentais estão lá, junto com a ideia de transformação da sociedade através da arquitetura. 52 Le Corbusier subverte a ideia de Villa como construção senhorial, que coroa a paisagem, deslocando a garagem para o centro do térreo, enaltecendo o homem moderno e sua máquina, aproximando e equilibrando o sistema homem-natureza. Da casa o homem vive e vê a paisagem. Há um esforço do arquiteto em estabelecer um equilíbrio entre a vida íntima e a paisagem. A casa faz um “mediação funcional - poder-seia dizer: um transformador de intensidades luminosas e grandezas espaciais - entre o ambiente íntimo, dotado de vida, vinculado à existência civilizada e o ambiente livre e expandido de uma paisagem que, civilizadamente, não é perturbada pela construção.” 53 Na fotografia da obra icônica (fig.34), a construção parece pousada em uma clareira. Segundo Le Corbusier, “a casa (está) na relva como um objeto, sem perturbar coisa alguma”54. O plano frontal não evidencia nenhum detalhe em particular, captando a totalidade da obra. Tudo é importante, o todo é importante. É uma imagem inteira, mas também partida: terra e céu, branco e preto, cheios e vazios, luz e sombra. A luz define os volumes enquanto as sombras, os vazios. Os movimentos na construção aparecem pelas paredes curvas à esquerda e pela rampa atrás do bloco maior. O grande volume branco ocupa o centro da imagem e quase se mistura na luminosidade do céu. Os pilares ligam o volume ao terreno, ao mesmo tempo que partem em quatro a sombra escura que se forma no interior do térreo. Os retângulos escuros, centrais, definidos pelos pilares são perturbadores pelo desconhecimento do que eles abrigam. Dentro do retângulo branco, a grande abertura horizontal se destaca, paralela ao chão; só aqui, o olhar atravessa o interior da construção: há uma penetração nos dois sentidos entre objeto e espaço. O todo se divide mais, sempre proporcionalmente e se torna composição: o grande retângulo contém outros retângulos menores em grande quantidade. Quanto mais para dentro se olha mais eles aparecem, e se repetem, e se multiplicam. O olhar que vem de fora enxerga o interior e perpassa e continua. O que era plano ganha profundidade e continuidade. 87


A fotografia de Hiroshi Sugimoto, por sua vez, (fig. 35) tem a Villa Savoye na mesma posição da imagem anterior, mostra a mesma fachada, mesmo enquadramento, mas perdeu a profundidade de campo. Nada está em foco, nada é mais sublinhado ou reforçado. Mesmo assim, a Villa é facilmente reconhecível. É impossível não ver aqui a obra de Le Corbusier, a menos que o observador não a conheça (e aí a fotografia terá outra leitura).

55  Exposição com curadoria de Richard Koshalek e Elizabeth Smith.

Hiroshi Sugimoto (1948) nasceu em Tóquio, no Japão. Estudou política e sociologia na Rikkió (Saint-Paul) University em Tóquio e Fine Arts no Art Center College Design em Pasadena, Califórnia, se mudando depois para Nova York. Desenvolveu também grande afinidade com a prática arquitetônica. Em 1997 iniciava a sua série Architecture, que consistia em imagens desfocada de edifícios icônicos da arquitetura moderna, que dois anos mais tarde integrariam a exposição “At the End of the Century: One Hundred Years of Architecture” 55. A Villa Savoye de Sugimoto (fig. 35) está encoberta por uma névoa que faz desvanecer os volumes. Luz e sombra se misturam, são matéria prima da imagem. A geometria, ao mesmo tempo que é suavizada pelo desfoque, se torna mais nítida pelo que a imagem não mostra: a imaginação, a memória e o conhecimento da arquitetura moderna completam o entendimento da imagem. E se não houver conhecimento suficiente, cabe imaginar novas relações a serem estabelecidas, novas leituras, por mais irreais que sejam. Como se apagando algumas luzes, deixando a sombra aparecer na imagem, fosse possível enxergar mais. Sugimoto parece buscar uma essência ou síntese da arquitetura, aqui desprovida de função. A casa não é mais uma máquina de habitar, ali não há pessoas, não há a integração do homem com a paisagem, não há escala, nem contexto. Não estamos falando mais dos preceitos da arquitetura moderna, mas do tempo que a envolveu, como se do presente olhássemos para o passado. Sugimoto fala de um tempo mais lento, que desafia a velocidade atual. Um tempo (tanto da pose quanto o tempo que passa), da impermanência e da arquitetura como vestígio. Como cita Pedro Bandeira em OUTRAS VERDADES

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56  Bandeira, Pedro Jorge Monteiro. Tese de Doutoramento “Arquitectura como Imagem, Obra como representação subjetividade das imagens arquitectónicas - Volume 1”, Universidade do Minho, Departamento Autónomo de Arquitectura, Julho 2007, P.101.

sua tese, escolhendo usar como base imagens emblemáticas, Sugimoto aceita o desafio de esvaziar uma imagem reconhecível até o limite onde ela ainda guarda sua essência.“É este estatuto de “arquétipo” que facilita Sugimoto, na maior parte dos casos, ao procurar a “essência” numa única fotografia, estando certo de que esta imagem será suficiente para despertar todas as outras que não nos mostra mas que já existem na nossa memória.” 56 Na imagem de Luis Santiago Baptista (fig. 36) temos novamente o mesmo objeto e o mesmo enquadramento, mas aqui há claramente uma manipulação digital que se sobrepõe à imagem "original". O volume do edifício divide com os outros elementos da imagem o destaque visual e as cores usadas faz com que o olhar não se fixe imediatamente em nenhum ponto, percorrendo a imagem lentamente, tentando construir uma narrativa. Em todo o entorno da Villa Savoye onde antes era um gramado, vemos uma variedade de cultivos em um campo sendo lavrado por duas pessoas. Essa imagem não é mais planar. As linhas de plantio trazem profundidade de campo à imagem além de deslocar o ponto focal do centro para a direita, onde estão os trabalhadores. A garagem se mantém no térreo, mas no lugar do veículo de passeio, podemos ver um trator, um equipamento de trabalho. O moinho de vento à esquerda instalado no meio da vegetação intocada sugere a necessidade de energia limpa e sustentável e da preservação da natureza. O volume superior é envolvido com uma chapa de aço ondulado vermelho, material usado geralmente em contêineres e galpões e a grande abertura horizontal permanece, permitindo a possibilidade que se percorra o interior do edifício com o olhar. Vemos dois momentos diferentes contidos na mesma imagem: o interior da construção, que não sofreu alterações com relação a imagem "original", e o exterior renovado. Como em um palimpsesto, sobras de escrita passada se misturam à escrita atual.

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Apesar de ter sido construída como máquina de morar, a Villa Savoye foi muito pouco habitada, seja porque para seus donos ficavam muito longe de Paris, seja porque foi usada como depósito na segunda guerra mundial, seja porque passou a fazer parte de uma cultura arquitetônica midiatizada como tantas obras emblemáticas, tornando-se um museu e Patrimônio Mundial da Humanidade. A Villa é uma sobrevivente da arquitetura moderna, e aqui, produz seus próprios gêneros alimentícios para subsistir. Luis Santiago Baptista é arquiteto, mestre em Cultura Arquitetônica contemporânea pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e doutorando em Cultura Arquitetônica e Urbana no Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra. Além de projetos como arquiteto, é professor auxiliar na Escola de Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação de Lisboa, tem trabalhos escritos como crítico de arquitetura e é também diretor da Revista Portuguesa de Arquitetura e Arte Contemporânea, Arqa. Em seu trabalho Modern Masterpieces Revisited, do qual a Villa Savoye (fig. 36) faz parte, Baptista apresenta 20 imagens manipuladas digitalmente de obras icônicas modernas. São imagens críticas que sugerem deslocamentos temporais e de contexto e tem como objetivo fazer pensar. As associações que as imagens despertam são diferentes para cada um e não necessariamente falsas ou verdadeiras, são leituras. Olhando para essa imagem de Luis Baptista, não consigo deixar de "ver" outra obra, cujo arquiteto, em entrevista, refuta a influência moderna: a fotografia da Villa dall'Ava, de Rem Koolhaas (fig.30) com seu volume superior revestido de aço na mesma cor e com uma grande abertura retangular no centro. A conexão aqui parece acontecer em sentido contrário. A partir do aço vermelho da imagem de Baptista comecei a ver semelhanças entre as duas Villas. A fotografia da Villa dall'Ava pertence à série de fotografias feita por Hans Werlemann da casa.

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A Villa dall'Ava parece usar referências modernas com ironia, deixando claro que formas prismáticas, janelas longitudinais ou pilotis não constituem necessariamente uma obra moderna. As fotografias de Werlemann reforçam esse deslocamento: estão sempre em perspectiva, algumas certamente feitas com lentes grande-angulares, que tendem a alongar as formas e as linhas. Ficam para trás os enquadramentos frontais e as imagens planares tanto usadas na divulgação da estética moderna. Se derivarmos a ideia de apropriação para o projeto da Villa dall'Ava veremos que se encaixa na arquitetura de Koolhaas. Ele se apropria dos 5 pontos que constituem a arquitetura moderna para Le Corbusier e os sobrescreve, os subverte, apontando que não é mais possível propor algo inteiramente original, e sim inconformista. O arquiteto enterra a seriedade e as verdades absolutas e a transforma sua arquitetura em um campo de experimentações onde a ironia substitui a razão.

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fig. 33 - Untitled, After Edward Weston, 1980

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fig. 34 -Villa Savoye, Le Corbusier, 1928 Flickr user world3. Licensed under CCBY-NC-ND-2.0

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fig. 35 -Hiroshi Sugimoto. Architecture Series, Villa Savoye, 1998

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fig. 36 - Villa Savoye, Luis Santiago Baptista, 2016

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fig. 37. Hans Werlemann - Villa dall’ava, Rem Koolhas, 1991

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alinhamento conceitual

Se pensarmos em termos de experiência arquitetônica (seja ela presencial ou por meio de imagens), podemos pensar naquelas obras que só conhecemos por imagens (projetos não construídos, projetos inacessíveis ou utópicos - que estão em nossa memória tão vivos quanto arquiteturas construídas -, obras icônicas das quais só conhecemos as fotografias), naquelas que conhecemos inicialmente por imagens e depois em visitas, ou naquelas que conhecemos simplesmente pela vivência. Qual será a experiência mais verdadeira? Existiria uma "verdade" da arquitetura? O que seria essa "verdade"? Seria seu conceito inicial? Seria a vivência da obra? Seria a materialidade, o tocar nas paredes, sentir o cheiro? Seria estar dentro ou estar fora? Ou seria como uma imagem tão potente que penetra por baixo da pele e faz sentir? Seria uma música, um som? Ou seria tudo junto, cada um ou as inúmeras combinações possíveis? Como em operações aritméticas, as memórias formadas pelas imagens podem se somar, subtrair, ser subtraídas ou mesmo ser multiplicadas pelas memórias formadas pela vivência, cada uma criando suas próprias conexões mentais e sensoriais individuais e cada uma com suas própria verdade. Verdade essa sem forma definida, que pode ser alterada a cada nova informação acrescida. As imagens das obras apresentadas neste capítulo apresentam uma amplificação de significado, onde a imagem reforça a arquitetura e a arquitetura reforça a imagem, onde fotógrafo e arquiteto partilham conceitos e multiplicam os sentidos da relação entre arquitetura e fotografia. A Villa dall'Ava nasceu do desejo do casal Boudet de possuir uma residência com dois apartamentos independentes: o marido queria uma casa de vidro e a esposa, uma piscina na cobertura, de onde pudesse ver a torre Eiffel. Koolhaas projeta uma estrutura híbrida, com bosque de pilares, viga de seção variável e uma piscina que funciona como sustentação.

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Na segunda fotografia de Werlemann (fig. 38), apesar da parede e corredor de um dos blocos da residência ocupar praticamente a metade da imagem, o que vemos, antes de mais nada, é a girafa. A girafa é excêntrica, incomum, singular, surpreendente. Talvez ela esteja na imagem exatamente para adjetivá-la. O burlesco se encontra entre o construído e o entorno. Entorno esse nobre e residencial do Alto-do-Sena: Saint-Cloud é um dos bairros mais ricos de Paris e da França, ficando em segundo lugar na renda familiar média (dados de 2010)57. A Villa dall’Ava, projeto de Koolhaas de 1991, está instalada ali, em um terreno que desce para o Sena, com o Bois de Boulogne atrás, uma vista panorâmica da cidade, e conta ainda com duas obras de Le Corbusier próximas, a Maison La Roche (fig. 39), que funciona como museu desde 1996 e a Ville Cook (fig. 40), além de várias casas do século XIX. Há uma ironia no projeto: a construção no terreno que ficou vazio por muito tempo incomodou a vizinhança aristocrática e o resultado final provavelmente destoou do gosto local.

57  Les 10 communes les plus riches de France: <https://www. linternaute. com/actualite/ economie/1209374-lesvilles-les-plus-richeset-les-moins-richesde-france/1211571-plusriches-defrance> acesso em 23/04/2019

Se o DNA da arquitetura da Villa dall’Ava tem um tom irreverente, as imagens que a representam não poderiam ser diferentes. As fotografias de Werlemann constroem uma narrativa surrealista em uma montagem quase cinematográfica, com direito a girafas, nadadores, cortinas e personagens enigmáticos. A arquitetura apresentada está distante da seriedade e a experimentação é nítida. Tanto imagem como arquitetura tem caráter transgressivo, inquietante, capaz de gerar questionamentos, e juízos de valor, bons ou maus, não importa. O que importa é que ficam na memória. Importante notar que não se pode falar da arquitetura de Koolhaas sem falar da sua conexão com outras mídias. Para Koolhaas a arquitetura não existe sem a sua mediatização. O livro S,M,L,XL é um ótimo exemplo. Lançado em 1995, foi o primeiro livro de um grande escritório a almejar ser mais do que um portfolio. Nele Koolhaas oferece sua proposta estética e intelectual em uma mistura de ironia, estranhamento, análises, ensaios, imagens.

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58  Girnos, Gabriel E.S. “O design da mídia livro na construção de um discurso projetual: o caso da Villa dall’Ava de Rem Koolhaas em S, M, X, XL”. in arq.urb número 10, segundo semestre de 2013 59  A revista Documents foi publicada na França entre 1929 e 1930 por Georges Bataille (1897-1962), escritor francês nascido com extensa obra, que transita entre literatura, filosofia, antropologia, economia, sociologia e história da arte.

Ele "investe na ideia pós-moderna de hibridação cultural na variedade de gêneros de linguagem empregados: texto puro, texto ilustrado, texto no estilo dicionário, diário, poesia, fotografias, diagramas, plantas, cortes, histórias em quadrinhos, e outras variedades." 58 A forma como são colocadas imagens e palavras lembra como a revista Documents de Georges Bataille 59 era apresentada, como um megafone, um amplificador: artigos, frases se juntavam à montagem figurativa e produziam um resultado que era muito maior que a soma das partes da qual era composta. O trabalho de montagem de Koolhaas no S,M, L, XL e mesmo o trabalho fotográfico de Werlemann da Villa dall' Ava tem um efeito semelhante de amplificação. Um reforça o outro e ambos se expandem. Para Koolhaas, a ideia de atravessamentos interdisciplinares e a necessária ampliação do campo de atuação da arquitetura para sua própria sobrevivência sempre fez parte de seu discurso. Werlemann é fotógrafo de arquitetura e colaborou em vários projetos de Rem Koolhaas. Na terceira fotografia que compõe a série de Hans Werlemann da Villa dall'Ava (fig. 41), vemos uma mulher na janela que novamente captura o olhar, mas segue uma outra narrativa. A mulher, que parece personagem de um filme de suspense, está do lado direito da janela enquanto o esquerdo está encoberto por uma cortina. Os galhos das árvores secas do lado de fora tornam o acontecimento sombrio e a presença do vizinho e dos cabos de força à direita fortalecem a narrativa. A imagem remete ao filme "Janela Indiscreta" de Hitchcock (fig. 42). Mas, apesar da imagem ser noturna, a fotografia tem várias fontes de luz, que iluminam a cena e deixam a dúvida sobre o crime. Passamos então para a materialidade mostrada na imagem, onde se misturam no plano frontal o a chapa metálica ondulada cinza e os pilares esguios e assimétricos, iluminados de várias direções, dando movimento e profundidade. Ainda vemos os materiais usados no outro bloco, o

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aço vermelho, a estrutura do mesmo material, a parede de pedras e o vidro. A luz azul atrás no centro da imagem integra toda a cena. Diferentemente das fotografias documentais, as imagens de Werlemann tem caráter próprio e autonomia. Se essa autonomia fazia parte do briefing ou se já era parte do trabalho de Werlemann na sua parceria com Koolhaas, não se sabe. O certo é que ao mesmo tempo que as imagens são autônomas elas estão em sintonia com a obra e isso amplifica seu valor. O Storage Building Ricola de Laufen (fig. 43), na Suíça, finalizado em 1987, é um armazém totalmente fechado e automatizado para a estocagem das balas de ervas da empresa. O empilhamento de painéis eternit da fachada - lâminas de madeira com revestimento cimentício - se adensa de cima para baixo, em três momentos. O distanciamento entre as placas é menor na parte de baixo e vai aumentando em direção à cobertura. A dupla de arquitetos usou como referências visuais o empilhamento tradicional das tábuas nas inúmeras serrarias da área, assim como a pedreira de calcário dentro da qual o edifício se encontra (fig. 44). A arquitetura pode ser vista como superfície, como a própria imagem que a documenta (fig. 43). Segundo Jacques Herzog60, no projeto da Ricola, sob influência do minimalismo e da arte conceitual, os arquitetos usaram a estratégia de oferecer diferentes níveis de realidade e escala dependendo da distância do observador ao objeto. Próximo à fachada, a imagem da edificação desmorona, só se vêem os componentes, nada além de parafusos insignificantes e pranchas (fig 45). Essa aproximação ao objeto foi muito importante para a dupla, pois gerou um novo modo de olhar para a superfície do edifício, investindo-a com um tipo de materialidade e realidade próprias.61

60  Herzog, Jacques; Wall, Jeff; Ursprung, Philip. Pictures of architecture, architecture of pictures. Bregenz: Kunsthaus Bregenz, 2004, p.49 61

idem, p. 49

“when you move up very close to the building, the image of the façade falls apart: you only see single components, nothing but paltry screws and planks. It was a new step for us, a new way of looking at the surface of the building, investing it with a kind of materiality and reality of its own.” tradução livre

A fotografia de Ruff (fig. 43) tem enquadramento central e perfeita simetria. Depois de ter analisado a série Capriccio de Phillip Schaerer, é impossível não ver as semelhanças: um bloco único, perfeitamente

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centralizado tanto verticalmente quanto horizontalmente, as linhas verticais sem distorção, com alguma vegetação à esquerda e uma construção indefinida à direita do volume central, tudo em foco. O céu sem nuvens nem cores e o chão como o único elemento que traz alguma perspectiva à imagem, que no mais, é plana. Não há presença humana. Na parte de baixo, as pequenas vigas que suportam o prédio estão expostas e vão diminuindo da esquerda para a direita. Inúmeros braços de madeira sustentam a cobertura. A imagem fala principalmente de ritmo: o ritmo do adensamento das placas horizontais da fachada, o ritmo vertical das divisões das placas, o ritmo dos pequenas vigas na base da construção, o ritmo das ripas de madeira que suportam a cobertura. A fachada parece pesar sobre o chão, parece esmagar as placas de Eternit da parte inferior. A própria imagem parece armazenar materialidades: sejam as placas cimentícias na horizontal ou as pequenas vigas na vertical, os materiais se encontram uns sobre os outros, o tempo todo. Em termos de escala, o volume parece gigantesco perto da escada à direita e a abertura à esquerda. Essa fotografia tem uma história interessante. Depois de ficar na dúvida se aceitava ou não o trabalho de fotografar o armazém da Ricola, Thomas Ruff apresentou uma imagem de grande formato sem distorções ou ruídos, sem pessoas ou veículos e sem a cobertura de um edifício anexo, retirada digitalmente. Apesar de Ruff ter tratado pessoalmente os negativos, montando-os em uma imagem única, as fotografias originais, muitas, tiradas em diversos ângulos foram feitas por um fotógrafo local que enviou as imagens para Ruff. O fotógrafo fez algumas operações para chegar a imagem “perfeita”: usou 25 placas Eternit por faixa horizontal, por exemplo, quando na verdade são somente 23 (fig. 46), sem comprometer a altura do edifício. Sem apegos ao realismo, a preocupação do fotógrafo está na mensagem que a fotografia vai transmitir ao observador sobre a concepção do edifício. A imagem parece comprovar uma frase de Dostoiévski encontrada no gabinete de arquitetura do arquiteto Eduardo Souto de Moura: "Para tornar a verdade mais verosímil, precisamos necessariamente de lhe adicionar a mentira" 105


Thomas Ruff (1958) é um fotógrafo alemão que vive e trabalha em Düsseldorf. Estudou na Academia de Belas Artes de Düsseldorf de 1977 a 1985, onde foi aluno de Bernd Becher. Seus colegas de turma eram Andreas Gursky, Candida Höfer e Thomas Struth. Ruff começou seu trabalho fotografando paisagens, mas logo seu foco passa para interiores e retratos. Inicialmente em preto e branco, passando para imagens coloridas, com fundos em cores sólidas. Começou a experimentar grandes formatos com a série Haus (19871991), da qual a fotografia do armazém da Ricola faz parte. 62 Mas por que Jacques Herzog e Pierre de Meuron escolheram um fotógrafo-artista e não um documentarista para fazer as imagens do armazém? Desde 1980, Herzog & de Meuron tem recorrido a artistas/fotógrafos de renome internacional para o desenvolvimento de seus projetos e também da sua documentação (Bandeira, 2011). Obviamente, isso implica riscos já que o olhar do fotógrafoartista nunca é isento, e sim crítico sobre o objeto arquitetônico.

62  Thomas Ruff biography: <https:// www.guggenheim. org/artwork/artist/ thomas-ruff> acesso em 01/05/2019 63  Herzog, Jacques; Wall, Jeff; Ursprung, Philip. Pictures of architecture, architecture of pictures. Bregenz: Kunsthaus Bregenz, 2004, p.13

O envolvimento de H&dM com ferramentas de mídia como vídeos e fotografias sempre esteve presente, além da ideia de transversalidade entre a arquitetura e a imagem. Segundo Herzog, em 1978, começando a trabalhar juntos, a dupla buscou uma linguagem própria, uma identidade. Ainda sem clientes, escolheram o vídeo, mídia praticamente inédita para arquitetura na época. As imagens de vídeo eram envolventes, segundo Herzog, porque se relacionavam com a vida real, pareciam reais e assim era possível mostrar o projeto de um modo realista, sem ter construído nada efetivamente. “So, we produce images that could become architecture” 63. E essa é a potência da imagem de arquitetura: não ser ainda, mas poder vir a ser. Em “Pictures of architecture, architecture of pictures”, Herzog diz que a dupla de arquitetos nunca se identificou com os conceitos do pós-modernismo e do desconstrutivismo que surgiam no final dos anos 70, início de 80, e que influenciaram tantos outros. Enquanto o foco em geral era dado na criação do novo a qualquer custo, H&dM centraram suas imagens no familiar, no popular e até mesmo no banal, criando imagens iconoclastas que iam contra a imagética da época. OUTRAS VERDADES

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64  No período de 1981 a 1991, Ruff arquivou várias fotografias de jornais alemães que tratavam de economia e política no contexto da queda do muro e da reunificação alemã para depois refotografar. Foram 400 imagens, sem manipulação, apresentadas fora de contexto e sem legendas. 65  Steganha, Roberta. Tese de Doutorado “Thomas Ruff e o olhar fotográfico da arte contemporânea”, Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, 2016, p.157. 66  Bandeira, Pedro Jorge Monteiro. Tese de Doutoramento “Arquitectura como Imagem, Obra como representação subjetividade das imagens arquitectónicas - Volume 1”, Universidade do Minho, Departamento Autónomo de Arquitectura, Julho 2007, P.121. 67  Herzog et de Meuron, Architektur Denkform exh. cat. Architektur Museum Basel. “the reality of architecture is not built

Em 1991, os arquitetos levaram à Bienal de Veneza uma exposição feita somente de fotografias, da qual a imagem de Ruff do armazém da Ricola fez parte. Outro exemplo de uso de imagens, desta vez na fachada, é a Biblioteca da Escola Técnica de Eberswalde (fig.47). Construída na antiga Alemanha Ocidental, os painéis de concreto que revestem o edifício são serigrafados com imagens selecionadas por Thomas Ruff de sua série Newspaper Photographs64 mais por sua qualidade estética do que por seu conteúdo.65 Segundo Bandeira, “podem ser feitas duas leituras (sobre o uso de imagens na fachada da Eberwalde): uma que pretende afirmar a ideia da fotomontagem e do ornamento, outra no sentido das imagens serem novamente significantes com relação ao conteúdo programático do edifício: ser memória colectiva.”66 O armazém da Ricola na Bienal de Veneza mostra a imagem como obra, enquanto a Biblioteca de Eberswalde mostra a obra como imagem. Na exposição Architektur Denkform (arquitetura, um modo de pensar) em Basel, 1988, uma das placas expositivas que acompanhavam uma das imagens dizia: "A realidade da arquitetura não é a arquitetura construída. Uma arquitetura cria sua própria realidade estando construída ou não-construída e é comparável à autonomia de uma pintura ou escultura. A realidade que queremos mostrar não é o que efetivamente foi construído, o tátil, o material. Claro que gostamos de coisas tangíveis, mas adoramos as qualidades espirituais e o valor imaterial." 67 Tanto Rem Koolhaas quanto Herzog & de Meuron mostram uma grande disponibilidade de trabalhar de forma multidisciplinar: Koolhaas se aproxima mais do design gráfico e do cinema enquanto H&dM buscam a arte em seus atravessamentos. De uma forma ou outra, as imagens apresentadas pelos dois escritórios são sempre mais do que a realidade representada. No caso de Koolhaas as fotografias de Werlemann vem carregadas de referências gráficas, cinematográficas e arquitetônicas. Uma mistura que traz grande dinâmica e narratividade às imagens. Ruff, por sua

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vez, tem uma forma mais racional e sóbria de apresentar a arquitetura. A imagem fala de superfície, de ritmo e escala que são os pontos a serem destacados na obra. Cada um dos fotógrafos aprofunda na imagem o conceito da arquitetura representada. Uma diferença que se percebe aqui na relação entre arquitetos e fotógrafos é o tipo de envolvimento: Werlemann parece se dissolver ou se misturar na obra de Koolhaas. Mesmo nas buscas na internet ele praticamente não existe dissociado do arquiteto ou de seu escritório OMA. Ruff , por sua vez tem um trabalho próprio e potente como fotógrafo e por isso mesmo foi escolhido por Herzog & de Meuron.

or unbuilt architecture: an architecture creates its own reality outside the state of built or unbuilt and is comparable to the autonomous reality of a painting or a sculpture. The reality that we mean is therefore not what has really been built, the tactile, the material. Of course we love all things tangible but only in the context of the whole (architectural) work, We love their spiritual qualities, their immaterial value.”

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fig. 38 - Hans Werlemann - Villa dall’ava, Rem Koolhas, 1991

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fig. 39 - Rory Hide, Maison la Roche. Fonte: Archdaily, s/d

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fig. 40 - Charles Girard. Ville Cook, 1926

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fig. 41 - Hans Werlemann - Villa dall’ava, Rem Koolhas, 1991

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fig. 42 - cenas do filme “janela indiscreta� de Alfred Hitchcock, 1954

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fig. 43 - Thomas Ruff, armazĂŠm da Ricola, em Laufen, de Herzog & de Meuron, 1991

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fig 44 / 45 - Herzog e de Meuron, Ricola Storage Building, Laufen, Switzerland, 1987

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fig. 46 -Manuela Müller, armazém da Ricola, em Laufen, de Herzog & de Meuron, 2018 fig. 47 -Margherita Spiluttini, Biblioteca da Escola Eberswalde, de Herzog & de Meuron, 1994-1999

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emancipação do real 68  “Jeff Wall an impossible photograph” <https://www.youtube. com/watch?v=L_ gAQNuDUOo> acesso em 13/05/2019

fotografia construída A categoria fotografia construída se constitui de fotografias feitas a partir de modelos criados pelos próprios fotógrafos, sejam eles cenários, maquetes ou instalações. Os modelos aumentam a distância entre fotografia e realidade, criando mais um intermediário entre esta e o observador. Como os modelos criados dentro do computador, os modelos reais são construções de uma realidade independente, possível ou não, e por isso estão aqui classificados como "emancipação do real". E como os modelos virtuais, são tentativas de controle do real, que se traduzem ao final, como modo de direcionar o sentimento do observador através da imagem. A diferença da fotografia tradicional (snapshot) da sua versão construída é que na primeira, muitos dos elementos que constituem a imagem estão ali acidentalmente: o fotógrafo usa os elementos existentes e compõe a imagem. Na fotografia construída, diferentemente, não há casualidades. O que está ali foi deliberadamente pensado e produzido.

Jeff Wall

Jeff Wall se inspira em cenas já vividas e as recria detalhadamente em estúdio, de acordo com a sua memória, para depois as fotografar. O objetivo dos seus cenários-imagens é surpreender o observador. Suas fotografias estimulam um olhar mais atento por não se saber se tratam efetivamente de realidade ou criação. Em um vídeo para a Art2168, a entrevistadora pergunta para o fotógrafo: "aquele homem se olhando na janela de vidro (fig. 48, mask maker), usando aquela calça costurada com pedras e correntes, você fez aquela calça? Falou para ele usar? Tem algum artifício na imagem? Como você a descreveria?" Para o que Wall responde: “isso é informação

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confidencial. Posso dizer que o que você vê acontecendo, aconteceu. Mas como aconteceu, é uma informação secundária. Se eu encontrei esse homem na rua ou se eu reconstruí essa cena, isso faz realmente diferença?" 69 Wall encoraja assim os espectadores a examinarem seu trabalho mais de perto e a tirarem suas próprias conclusões. É no envolvimento com a imagem que passamos a ver. O fotógrafo canadense (1946) classifica sua fotografia como "cinematografia" onde usa elementos de outras formas de arte, como pintura, cinema e literatura. Trabalha com o que chama de near documentary photographs (fotografias quase documentais), que um olhar desatento pode confundir com simples snapshots (fotografias espontâneas, feitas sem nenhum tipo de intencionalidade ou produção prévia). Já expôs no MoMA, Tate Modern e Chicago Art Institute entre outros. Em algumas de suas obras, recria sensorialmente cenas de pinturas famosas pela sua paleta de cor, linhas horizontais, verticais e posicionamento de personagens, como em picture for women de 1979, inspirado na composição de un bar aux foliesbergère de Édouard Manet (figs. 49 e 50). Na pintura de Manet, a bartender, no centro da pintura, olha para além da tela. Atrás dela vemos um espelho que reflete a agitação do bar, criando inúmeros pontos de vista e à direita o reflexo das suas costas e do homem que a observa. As luzes pendentes dão profundidade à pintura. Na fotografia de Wall vemos a mesma constituição principal da pintura. A ideia de estarmos olhando a cena refletida cria mais um interposto à realidade. Os dois personagens se encontram entre o espelho e a grande janela no fundo, a mulher olha para fora, querendo dizer alguma coisa, as lâmpadas acesas dão profundidade à cena e a própria câmera se encontra no centro da fotografia, como personagem principal, o controle nas mãos do fotógrafo. Wall reorganiza a fotografia de modo a produzir uma sensação caleidoscópica que nos traga para dentro da imagem, e faz nos perder no ir e vir entre o nosso olhar e o seu rebatimento.

69  “- let me just ask a question: the gentleman on the wall there who’s looking in the plate-glass window and who has these incredible trousers on. Did you make those trousers? Did you impose those trousers on him? Is there any artifice going on? How do you describe that? this is classified information. What you see happening, happened. That’s all I have to tell you. How it happened is a secondary to the fact that it happened. Let’s imagine that I’ve found this man on the sidewalk and got him to do what he was already doing or if I had elaborately reconstructed that, what’s the difference?“ <https://www.youtube. com/watch?v=L_ gAQNuDUOo> acesso em 13/05/2019 tradução livre

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Em Morning cleaning (fig. 51), Jeff Wall fotografa um funcionário fazendo a limpeza do Pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe antes da abertura das portas para os visitantes. O fotógrafo diz que a imagem é "quase documental", uma vez que para manter todas as pedras e vidros brilhantes para os turistas verem, alguém precisa limpá-los. O interessante na obra icônica do arquiteto é que desde que foi desmontado em 1930, após a exposição, até 1986, quando foi reconstruído pelos arquitetos Ignasi SolàMorales, Christian Cirici e Fernando Ramos, o Pavilhão só existiu por meio de fotografias em preto e branco (BANDEIRA, 2007) e sua reconstrução só foi possível pela mesma razão. Qual a diferença aqui entre obra original, obra reconstruída e fotografia da obra? Será que a obra reconstruída não constitui um modelo?

James Casebere

O que primeiro se vê em "Yellow Overhang with Patio" (fig.53) definitivamente é a cor amarela em todos seus tons, solar, viva. O olhar percorre a imagem da direita para a esquerda continuamente, pelas linhas de luz e sombra: sobem a parede à direita, percorrem o teto, descem à esquerda e continuam pelo piso, subindo novamente o plano vertical da parede. Se conseguirmos fugir ao movimento circular, paramos no início da sombra do lado direito. Entramos devagar e com curiosidade na imagem, seguindo seu eixo principal, percorrendo o corredor pela região escura em direção ao fundo, a porta francamente aberta nos convidando a entrar. Chegamos enfim ao último plano, onde uma porta vermelha se sobrepõe à parede azul, ambas estão unidas pela única linha diagonal, fechando com chave de ouro a travessia. Mas as sombras coloridas no chão indicam que ainda há possibilidades de caminho. Não é uma resolução fácil, o olhar é indeciso. Apesar das cores e da aparente vivacidade, o silêncio atravessa a fotografia e o

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percurso é solitário. O azul e o vermelho indicam algo diferente do amarelo tão presente. Não há figura humana, as figuras humanas somos nós dentro das cores e luzes de Casebere. James Casebere (1953) nasceu em Detroit e estudou na Calarts (California Institute of Arts). Em 40 anos de trabalho vem explorando a relação entre escultura, fotografia, arquitetura e cinema, construindo e fotografando modelos. Seus trabalhos já foram expostos em diversos museus, incluindo MoMA, Guggenheim e Whitney Museum, entre outros. Em abril de 2019 recebeu o prêmio Abigail Cohen Rome pela Academia Americana em Roma. O fotógrafo pesquisou a arquitetura de Luis Barragán através de arquivos digitais e livros e toda a informação foi levantada antes de visitar as obras (o que só ocorreria depois do trabalho pronto). Os enquadramentos são baseados nas fotografias feitas por Eduardo Luque (fig.52). O trabalho de Luis Barragán é conhecido pelo uso da cor, da luz e da água com forte ênfase nos planos e nas espacialidades criadas por eles. O amarelo para Barragán está relacionado com a espiritualidade e o corredor retratado na imagem, onde se encontra o altar da família, leva até a água. O pilar vermelho no meio da piscina não tem função estrutural, ele é plano e contraste. A Casa Gilardi (fig. 44), construída em 1976, foi a última obra do arquiteto e localiza-se em um terreno de 10m x 36m na cidade do México, com um grande jacarandá na frente ao redor do qual a casa se desenvolve. As cores mais uma vez são parte da arquitetura de Barragán, cores da cidade, cores dos mercados, cores de Frida Kahlo e Diego Rivera. Olhando a imagem original (fig.51) e aquela feita por Casebere, a diferença é nítida. Casebere elimina todas as imperfeições que poderiam comprometer a iconicidade da imagem. Como se ele filtrasse a fotografia de Eduardo Luque, retendo todas as impurezas e ainda acrescentando a dinâmica e o movimento que o original apenas sugere. A fotografia depurada de Casebere evoca

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70  “James Casebere at the Parrish Art Museum” <https://vimeo. com/264252471> acesso em 06/05/2019

sentimentos primordiais como a solidão. Sair de uma área de luz, talvez falsamente atrativa, e o confronto com a sombra. Yellow é uma síntese da realidade, espécie de imagem mental, emocional. Casebere menciona a "Poética do Espaço" de Gastón Bachelard: mais do que ser objetivas, suas imagens são memórias afetivas despertadas pelo que vemos, memórias individuais, daquilo que lembramos e do que esquecemos. As imagens trabalham em ambas direções, elas estão em nós e nós estamos nelas, desafiando a nossa percepção da realidade. Mas o que é real na fotografia de Casebere? Há um referente claro, o modelo usado pelo fotógrafo, mas esse referente é construído. A imagem que vemos está há 3 graus de separação da arquitetura: antes de Yellow Overhang estão o modelo construído e a fotografia de Luque. Yellow carrega características objetivas da arquitetura de Barragán, como a distribuição de planos e cores, mas seu discurso é outro, seu discurso é o de Casebere. A imagem ao mesmo tempo emocional porque evoca sentimentos, como de serenidade e reflexão, é controlada nos mínimos detalhes. O que o fotógrafo acreditava não funcionar na arquitetura ou não "caber" na fotografia era transformado, como por exemplo as escadas, que foram suprimidas. Casebere conta em entrevista em entrevista no Parrish Art Museum70 que quando visitou a Casa Gilardi algumas características o surpreenderam, como a textura muito grossa das paredes, as cores berrantes e a escala: alguns espaços não passavam a intimidade esperada. Essas características sempre estiveram lá, mas o mergulho virtual na obra certamente leva a sensações diferentes daquelas produzidas no contato direto com a arquitetura. Talvez a pesquisa virtual possa ser tendenciosa. Buscamos encaixar as informações que encontramos de forma a ratificar as ideias que já estamos começando a esboçar, enfim, criamos expectativas. No momento que se está diante da obra não há escolha. A obra nos olha de volta. A experiência da obra não pode ser substituída por imagens, a experiência das imagens será sempre outra. Mas, qual imagem "traduz" melhor a arquitetura de Barragán? A de Luque ou a de Casebere?

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Filip Dujardin

Na série side walls de 2016, Filip Dujardin modifica seu processo de trabalho de fotografia de arquitetura construída-fragmentação gráfica-reconstrução gráfica onde cria arquiteturas imaginárias através de fragmentos de realidade para fragmento de arquiteturaconstrução-fotografia. Convidado para fazer uma exposição em uma galeria na Bélgica, “descobre” o tijolo como unidade mínima, o “grão” da arquitetura, assim como o pixel o é para a computação gráfica. Diferentemente da arquitetura imaginária criada pelos deslocamentos do vocabulário arquitetônico imagético (série fictions), ele desloca efetivamente o fragmento mínimo da arquitetura da sua função habitual e fotografa. Ele ergue paredes, complementa escadas e cria objetos com tijolos deslocados das suas posições naturalizadas que incrementam, em suas palavras, as fricções da arquitetura (figs. 54 e 55). Interessante é que o produto final das instalações de Dujardin são sempre as imagens. Diferentemente de um trabalho de land art em que a fotografia documenta a existência da obra, aqui a obra é um meio para se chegar a fotografia. Com tijolos se constroem paredes, que se transformam em construções, e tudo termina em pixel novamente. Ainda em 2016, Dujardin é solicitado a fazer uma intervenção na cidade de Cortrai na Bélgica, à beira do rio Lys, com o intuito de aproximar as pessoas da água. Seguindo com a ideia de partir do tijolo como grão da arquitetura e retirando dele suas funções arquitetônicas convencionais, ele constrói uma grande parede, como uma casa que se desdobra, mostrando elementos arquitetônicos em uma escala reduzida. As imagens que cria a partir dessa intervenção poderiam ter sido criadas através de manipulações digitais, como em fictions, mas agora são efetivamente “documentais”, já que partiram de um modelo no real.

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Sua realidade, porém, parece irreal. Ao mesmo tempo, a construção é usada como arquitetura, como um monumento, um marco ao redor do qual as pessoas se encontram (fig. 56). As fronteiras entre imagem e realidade, entre fotografia e arquitetura se embaralham. A imagem como obra, a obra como imagem em um intercâmbio contínuo. A categoria fotografia construída está representada, como se vê, por três abordagens bastante diferentes. Jeff Wall intenciona replicar sensações em um observador atento. A dúvida de que talvez aquilo que se vê não seja real é essencial para prender a atenção do espectador. Casebere produz modelos sem excessos, sintéticos, que quase se parecem com imagens mentais. As grandes dimensões das fotografias permite que o observador entre e participe da imagem. Já Dujardin cria modelos dúbios que transitam entre arte, arquitetura e imagem, produzindo deslocamentos do vocabulário arquitetônico através dos próprios elementos construtivos depois transformados em imagens.

fig. 48 - Jeff Wall, mask maker, 2015

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fig. 49 - Jeff Wall, Picture for Women, 1979

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fig. 50. Édouard Manet, Un bar aux Folies-Bergère, 1882

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fig. 51. Jeff Wall, Morning cleaning Mies Van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999

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fig. 52 - Eduardo Luque, casa gilardi, Luis Barragán, s/d fig. 53 - James Casebere on Luis Barragán: Yellow Overhang with Patio, série Emotional Architecture, 2016

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fig. 54 - Filip Dujardin, Série Side Walls, 2016

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fig. 55 - Filip Dujardin. Instalação e fotografia, Cortrai, província de Flandres, Bélgica, 2016 fig. 56 - Uso da intervenção de Dujardin em Cortrai, 2016

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renderização

71  Elizabeth Mcdonald, “From China, without love”. In: Clog: Rendering, 2012.

Nessa subcategoria pretendo pontuar algumas das inúmeras possibilidades e desdobramentos do rendering, deixando um estudo mais aprofundado para um trabalho posterior que certamente levará em conta as intencionalidades da renderização - se as imagens são criadas para atender clientes ou público em geral, se são para concursos, se são imagens críticas, se são imagens de processo dentro do projeto. Além de investigar os novos mercados que estão sendo criados, as novas necessidades dos clientes, a mudança que produz no modo e nas prioridades de se fazer arquitetura, as consequências da forma massiva como vem se disseminando, a questão da autoria. Há muitos pontos a serem discutidos sobre o tema. Um dos desdobramentos importantes, por exemplo, seria o desenvolvimento de um olhar crítico sobre como vem se modificando a prática da arquitetura nesses últimos anos com a evolução das tecnologias digitais. Os escritórios de arquitetura não podem mais abrir mão das imagens renderizadas, seja como ferramenta de projeto usada para explorar possibilidades, desenvolver ideias e detalhes, seja para apresentação de projetos. A criação de renderings vem tomando, assim, um bom espaço na prática atual da disciplina - como também no ensino da arquitetura. Em artigo publicado na Clog Magazine 71 , a arquiteta Elizabeth Mcdonald - responsável pela área de urbanismo e planejamento ambiental da UC Berkeley e professora na especialização de planejamento urbano na universidade - questiona o que acontece com a prática da arquitetura quando essa função é terceirizada. Se por um lado, os arquitetos ficam mais livres para trabalhar, sem se preocupar com a apresentação ao cliente - para quem a qualidade visual é cada vez mais importante - por outro, perde-se a oportunidade de resolver questões pertinentes ao projeto. Além disso, uma imagem construída internamente do escritório, por quem faz parte e conhece o projeto, certamente será uma imagem diferente da construída por terceiros. Como muitos escritórios e arquitetos autônomos vem então optando por terceirizar as renderizações, uma nova demanda por produção de imagem é criada. Ao mesmo tempo em que se 137


inaugura uma nova oportunidade de trabalho, um novo nicho a ser explorado, há um risco de pasteurização do que é oferecido como produto final. Essa homogeneização pode ser constatada em uma simples consulta ao instagram. Empresas de rendering vem se multiplicando ao redor do mundo e parecem usar os mesmos ângulos, os mesmos céus, os mesmos contrastes, os mesmos brilhos, as mesmas paletas de cores, fazendo com que os projetos se pareçam muito entre si. No site da Super cheap 3D (fig. 57), por exemplo, até mesmo com um PDF das plantas de um projeto já é possível fazer uma renderização "de qualidade", conforme anunciado. Frequentemente as imagens são fotorrealistas e apresentam “realidades” facilmente digeríveis, reconhecíveis, imagens isentas de falhas, de sujeira, de sinais de decadência ou pobreza. Uma versão melhor e muito mais vendável do que acreditamos ser a realidade. A revista Clog72 separa a produção de imagens renderizadas em categorias: interna (in house) e terceirizadas (outsourced). Se as primeiras podem variar de US$0 a US$1.100, as segundas saem de US$ 800 e podem atingir US$10.000 por visualização. Isso implica em uma grande variedade na qualidade produtiva das imagens. A imagem renderizada é construída a partir de um modelo 3D e criada inteiramente dentro do computador. Na renderização tudo é possível, todos os elementos são controlados e escolhidos, o tempo, a luz, as sombras, as pessoas, a vegetação, a paleta de cores, o enquadramento. Como na fotografia construída, não há acaso, não existe um único elemento presente sem motivo. Muitas vezes os renderings arquitetônicos são confundidos com imagens fotográficas, com referente no real, mas diferentemente das fotografias construídas, a distância entre uma imagem renderizada e a realidade nunca é vencida. A imagem renderizada e seu referente se encontram no mesmo lugar, dentro do computador. Os renderings realistas aproximam o cliente não-arquiteto e o público em geral do projeto, tornando a imagem acessível, compreensível e atraente (quando é o caso). As renderizações acabam muitas OUTRAS VERDADES

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72  Clog: Rendering, 2012

vezes sendo "lidas" mais com a emoção do que com a razão. E ao final, o objetivo de uma renderização bem sucedida é esse mesmo, gerar um sentimento positivo que facilitará as outras etapas de projeto junto a um cliente ou a um júri, por exemplo. Quando o escritório suiço Herzog & de Meuron divulgou a imagem para a futura Filarmônica de Hamburgo (fig. 61), ela rapidamente adquiriu status de símbolo não só do projeto, mas da cidade. Muito antes de ser construída, foi reproduzida pela mídia local em outdoors, busdoors, camisetas e até mesmo em guias de turismo. Teve divulgação em revistas e jornais dentro e fora do país, com ampla aprovação pública. Com posição privilegiada geograficamente, Hamburgo é a terceira maior cidade da Alemanha, conhecida pelo seu porto, o Reeperbahn, e por sua excelência musical. Em 1997 se iniciou o projeto HafenCity Hamburg para revitalização da área portuária da cidade, como ocorreu em outros portos ao redor do mundo. O coroamento da HafenCity era exatamente a construção da Filarmônica que seria o grande marco cultural da cidade. O projeto de H&deM gerou grande entusiasmo: para muitos, representava a possibilidade de criação de um emblema cultural da ordem da Torre Eiffel ou do Cristo Redentor. A leitura da renderização da Filarmônica foi altamente favorável porque vinha de encontro às expectativas de investidores, autoridades e opinião pública. O fato da renderização apresentar linguagem fotográfica facilitava a assimilação do projeto e sua contextualização. A euforia inicial, no entanto, deu lugar à frustração para grande parte da população, principalmente pelos custos adicionais e atrasos na obra - iniciada em 2006 com previsão de término em 2010, só foi finalizada em novembro de 2016. Mas a renderização é superfície, pronta para ser consumida, para ser assimilada como verdade. Como uma construção, com outras necessidades de tempo, com limitações materiais poderia concorrer com uma imagem que já tinha tamanha pregnância? Importante perceber como uma imagem criada dentro de computador, uma imagem de projeto, ganhou tanta notoriedade 139


e autonomia, assumindo o papel de referente da futura obra. Mas vamos admitir que a renderização feita pela empresa de visualizações arquitetônicas bloomimages (fig. 58) e a fotografia de Iwan Baan (fig 59) parecem ter partido do mesmo referente. O que afasta e o que aproxima as duas imagens? À parte a diferença nas posições das aberturas frontais, na qualidade da imagem, (afinal de 2006 para 2019, o avanço tecnológico é considerável), o que parece distinguir o rendering da fotografia é a unificação de cores: escuras em todo o embasamento, próximas ao tom da água, e claras em cima, a superfície de vidro da edificação refletindo o tom azul violáceo do céu: não há detalhes desnecessários para distrair o olhar, o único destaque é a construção que se ergue monumental, soberana no entorno esvaziado: a Filarmônica aporta no cais, na cidade, com toda a sua grandiosidade. Talvez a maior diferença aqui seja a intenção da imagem. A renderização enobrece o projeto, encanta, cria desejo, ela é ficção. A fotografia de Iwan Baan é nítida, mostra a materialidade, a inserção da obra no contexto, a monumentalidade também, mas a construção parece menos irreal, permitindo a apropriação da obra pelo público, agora, novamente orgulhoso. Por outro lado, os renderings podem se apresentar em formas menos literais, deixando mais espaço para que o observador preencha os “espaços vazios”. Na visualização feita pela Luxigon do CBD (central business district) de Shenzen na China (fig. 63), projeto do escritório MVRDV, o espectador, como se posicionado em um edifício em frente, ao mesmo tempo que participa da imagem, mantémse distante do distrito comercial. Apesar das inúmeras pequenas figuras humanas no edifício à esquerda, o olhar distanciado vê apenas pontos que não parecem criar um vínculo com o observador. A imagem gera perguntas, desperta a curiosidade, não "entrega" tudo. A luz, muito importante aqui, orienta o olhar, que se move da edificação da esquerda, com suas lajes flutuantes, para o centro, onde está o edifício com blocos horizontais sobrepostos. O clarão traz dramaticidade, reforçando a atmosfera onírica. O prédio da direita se desfaz na claridade, deixando ver a continuação do distrito OUTRAS VERDADES

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73  Christian Zöolner, “The Elbphilarmonie renderings”. In: Clog: Rendering 74  Phillip Schaerer and Eric de Broche des Combes em palestra na Princeton School of Architecture, 2015 < https://vimeo. com/111418679> acesso em 01/05/2019

atrás. O restante do entorno, com formas prismáticas ofuscadas, mostra a diferença entre o que se quer criar e o já existente. Talvez o importante ao olhar uma imagem renderizada seja a certeza de que ela não é arquitetura. Acreditar, como acontece em determinados momentos, que a renderização é a edificação ainda não construída pode gerar decepção, como foi o caso da Filarmônica de Hamburgo. Talvez o rendering pudesse servir mais como representação de algo em evolução, como uma ferramenta de projeto, como transmissão de conceitos e não tanto como uma imagem-fim em si mesmo, como acontece com frequência. Trond Greve Andersen, sócio da empresa de criação de imagens MIR, em entrevista para a CLOG Magazine, comenta que são os mais jovens que entendem melhor esse tipo de imagem: se por acaso encontrarem a cantora Rihanna na rua, saberão que ela não vai ser a mesma que aparece nos seus vídeos e fotos, porque tem a exata noção de que são mundos diferentes. Em palestra na Princeton School of Architecture 73, os arquitetos Philipp Schaerer e Eric de Broche des Combes (fundador da Luxigon, empresa especializada em rendering 3D e visualizações arquitetônicas baseada em Paris) sustentam que o futuro para as renderizações é o afastamento do fotorrealismo. Schaerer sugere que a estética digital vai influenciar cada vez mais o modo como percebemos, entendemos e representamos o mundo real. Apresenta, então, uma lista de verbos com ações que traduzem as novas qualidades estéticas digitais, para serem aplicados ao projeto de arquitetura ou à própria criação dentro do computador: 74 Agrupar, separando os objetos por semelhanças, por cor ou forma; descontextualizar, transpor um objeto para um lugar inesperado; montar, fazer colagens, colocar juntos elementos para produzir um sentido novo; reduzir (em termos de resolução), usar a pixelização como modo de simplificação, buscando a menor unidade possível; deformar, mudar as escalas dos objetos, juntar

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objetos de escalas diferentes produzindo estranheza; sobrepor, aplicar texturas inesperadas sobre outras; misturar, combinar formas produzindo outras; paralisar, fixar movimentos antes de serem concluídos, dando uma ideia de continuidade; amplificar, aumentar características, distorcendo relações; suprimir, limpar imagens, filtrá-las para que sobre somente o essencial.75

75  “grouping, staging, assembling, downsampling, deforming, crosscovering, blending, freezing, amplifying, suppressing.”

Como imagens técnicas no sentido flusseriano, as renderizações necessitam de um equipamento para se constituírem, e esse equipamento impõe certos limites à criação. Schaerer acredita que essa predefinição existente nos softwares pode levar à criação de imagens repetidas, estereotipadas. Talvez, a vocação da imagem criada em computador esteja no uso de uma linguagem digital própria, e não em tentar se parecer com o que não é. Poderíamos comparar o momento de hoje, de busca de uma estética condizente com a natureza do digital, e o caminho que a fotografia percorreu até chegar à uma linguagem própria. Como vimos no percurso histórico proposto por Philippe Dubois para a relação da fotografia com a realidade, a fotografia passou por vários estágios até alcançar sua maturidade criativa. Assumiu, em um primeiro momento, a função de representação e registro vinda da pintura: de modo semelhante, a imagem renderizada pode estar se apropriando da linguagem fotográfica como um degrau para alcançar sua essência. O rendering é o extremo da imagem digital e talvez sua vocação seja explorar a tênue fronteira entre realidade e ficção. Já que as renderizações são emancipadas do referente, essa característica pode ser usada a seu favor, se desvinculando da aparência fotorrealista tão comum às imagens de arquitetura, ampliando as suas possibilidades de expressão e construindo uma estética que seja consistente com as novas ferramentas digitais.

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fig. 57 - site da supercheap3d.com, <https://supercheap3d.com> acesso em 24/05/2019

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fig. 58 - imagem criada pela empresa bloomimages, 2006, projeto de Herzog & de Meuron

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fig 59 - Iwaan Baan, Elbphilharmonie, Hamburg – Herzog de Meuron, 2017

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fig. 60 - Luxigon, MVRDV, Shenzen, CN

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

76  exposição montada no IMS Rio entre 16 de março e 30 de junho de 2019 77  Nascido em Nový Jicin, cidade hoje pertencente à República Tcheca, o cineasta e artista alemão Harun Farocki (1944-2014) tornou-se conhecido pelo teor político de suas obras exibidas em circuitos de cinema e museus. Com mais de 100 filmes e instalações produzidos desde a década de 1960, Farocki foi também editor, ensaísta e professor. 78 https://languages. oup.com/word-ofthe-year/word-of-theyear-2016. Acesso em 03/07/2019 79 o termo pósverdade foi definido pelo dicionário Oxford como “relativo a circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que emoções e crenças pessoais”

Em uma das obras apresentadas na exposição "Harun Farocki: quem é o responsável" 76, o artista tcheco77 conversa com Vilém Flusser sobre a capa (do dia) de um jornal berlinense sensacionalista. Eles analisam a imagem (enquadramento, cor, disposição), o texto (cor, tamanho, posição) e como todos os dados se entrelaçam para criar verdades que "choquem" o leitor, verdades que partem essencialmente de fatos mas são manipuladas e revestidas de outras camadas, verdades que entram por baixo da pele de seus leitores distraídos. Farocki defende que é preciso ter um olhar crítico, duvidar das imagens, entender a quem beneficiam, enfim, aprender a lêlas. Os olhares distanciados do escritor e do artista decompõem as manchetes do jornal e revelam novos estratos de verdade. O artista morreu antes do termo pós-verdade ter sido escolhido pelo dicionário Oxford78 como a expressão do ano em 2016. Mas seu trabalho fala o tempo todo das construções de verdades através de imagens que apelam às "emoções e crenças pessoais"79. Como dito anteriormente, o prefixo pós significa abandono, desmoronamento de algo anterior, daquilo que estávamos acostumados a acreditar que era o verdadeiro. Mas indica também a abertura para algo que vem em seu lugar: deixamos a ideia de uma verdade única para trás e nos vemos às voltas com muitas verdades. Com a imagem de arquitetura não é diferente. As muitas verdades podem aparecer como novas visões criativas da realidade, expandindo o campo da arquitetura ou como imagens pasteurizadas, como as renderizações hiper-realistas de edifícios ainda não construídos usadas como estratégia comercial. Em texto de 1990 o arquiteto italiano Vittorio Gregotti79 já questionava a importância que muitos arquitetos davam à fotografia de arquitetura usada na divulgação das obras e que muitas vezes se sobrepunha ao projeto. Segundo o autor, "o conjunto imagemmercado substitui a realidade e acaba sendo a principal fonte de experiência, a matéria principal da reflexão e modelo para a própria prática artística. Porém, essa matéria replasmada pela 149


mídia resulta fortemente homogeneizada por esse processo e acaba por produzir uma diversidade de coisas iguais." Apesar de ter sido escrita em 1990, a crítica de Gregotti é atualíssima. Em tempos em que as imagens pós-fotográficas são reproduzidas e compartilhadas em quantidades e velocidade nunca imaginadas, essa sobreposição ao projeto arquitetônico fica ainda mais evidente: ideias são vendidas pelas suas imagens, concursos são ganhos pelas suas imagens, clientes desejam as imagens. E as imagens que mais importam, no caso, são aquelas que mantém uma relação visual com a realidade percebida (ou com suas versões "melhoradas") - sejam elas fotografias documentais ou imagens inteiramente produzidas no computador.

79 Gregotti, Vittorio. “A imagem”. in Casabella, julho/ agosto de 1990 80 Gadanho, Pedro. “Image after photoshop - architecture and its visual (dis)contents” in: Fiction and fabrication - photography of architecture after the digital turn. Lisboa: Hirmer Verlag, 2019

Por outro lado, as renderizações são hoje parte integrante da prática arquitetônica e, acredito, ainda terão um longo percurso pela frente na busca de uma linguagem própria. Caminhando na direção de novas concepções estéticas que se dissociem do realismo visual tão presente, artistas-arquitetos como Philipp Schaerer podem dar uma boa indicação do que as imagens criadas em computador podem vir a ser. As imagens renderizadas servem muito bem - e certamente continuarão a servir - à divulgação de obras por construir, mas não se pode esquecer que têm também um potencial enorme como ferramenta de projeto. Na prática da arquitetura, a fotografia contribui em todas as fases do projeto, seja na elaboração, no estudo, na documentação, sendo muito mais do que um simples meio de comunicação da obra. Podemos citar o exemplo do arquiteto português Eduardo Souto de Moura que utiliza as imagens fotográficas como insumo de projeto. Os recortes de jornal, embalagens de cigarros, instantâneos, fotografias, desenhos, imagens clássicas que habitam as paredes do escritório de Souto de Moura funcionam como arquivo e memória e ajudam na produção de analogias tão caras ao arquiteto. Pedro Gadanho 80 diferencia os termos fotografia arquitetural ("architectural photography") e fotografia de arquitetura OUTRAS VERDADES

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81 Gregotti, Vittorio. “A imagem”. in Casabella, julho/ agosto de 1990 82 Bandeira, Pedro Jorge Monteiro. Tese de Doutoramento “Arquitectura como Imagem, Obra como representação subjetividade das imagens arquitectónicas - Volume 1”, Universidade do Minho, Departamento Autónomo de Arquitectura, Julho 2007

("photography of architecture"). O primeiro está ligado, segundo ele, às necessidades do arquiteto e da sua prática: são as imagens produzidas com a intenção de passar um determinado conceito, divulgar, promover, vender, e os fotógrafos precisam ajustar a sua criação às demandas do cliente. A fotografia arquitetural coloca a fotografia a serviço da arquitetura e do arquiteto. Como exemplo, podemos citar as fotografias comissionadas e parte das renderizações. O segundo termo se refere às imagens que são criadas com maior autonomia e liberdade. A fotografia de arquitetura está a serviço do fotógrafo, sem intermediários. Aqui podemos citar como exemplos os trabalhos de Filip Dujardin, James Casebere, Hiroshi Sugimoto, Philipp Schaerer, entre outros. Essas imagens pertencentes ao segundo grupo (que aqui incluem praticamente todas as categorias analisadas no trabalho com exceção das fotografias documentais e parte das renderizações), desapegadas de qualquer demanda externa e desvinculadas da necessidade de materialização, apontam para novas direções críticas, expressando novas ideias, experimentações, colaborando para uma reflexão social, política, cultural e artística. Segundo Vittorio Gregotti, "a imaginação e a reflexão no seu contínuo intercâmbio, constroem novos pedaços de realidade - modificando e tornando mais rico o mundo de nossa experiência."81 As imagens arquitetônicas hoje podem vir a transformar o modo como a disciplina da arquitetura vê e representa a si mesma, ser um meio de observar criticamente a cultura arquitetônica, e segundo Gadanho, gerar um "cross-pollination" entre as duas disciplinas: arquitetura e fotografia, borrando as fronteiras entre os dois campos e expandindo seus limites. Lembremos que arquitetos trabalham dentro de limites impostos pela regulamentação, pela necessidade de construir a preços baixos, pela competitividade do mercado, pela falta de tempo, pela falta de qualidade.82 Em um mundo onde a arquitetura construída não acompanha a velocidade do pensamento arquitetônico, hoje prioritariamente traduzido em imagens, pode-se pensar que essas 151


imagens passam a ter um papel cada vez mais importante na expressão criativa arquitetônica e na expansão desse campo. Essa ampliação pode ser pensada também em termos de diferentes experiências arquitetônicas, como falado anteriormente: existem obras conhecidas só por imagens, obras conhecidas inicialmente por imagens e depois ao vivo, existem aquelas que só conhecemos pela vivência. As memórias formadas pelas imagens podem se somar, subtrair, ser subtraídas ou mesmo ser multiplicadas pelas memórias formadas pela vivência. E hoje, com a multiplicidade e onipresença das imagens arquitetônicas, sejam referenciadas em obras existentes ou não, as vivências criadas podem ser as mais variadas em termos de potência e sentimento.

83 Bandeira, Pedro Jorge Monteiro. Tese de Doutoramento “Arquitectura como Imagem, Obra como representação subjetividade das imagens arquitectónicas - Volume 1”, Universidade do Minho, Departamento Autónomo de Arquitectura, Julho 2007, p.130

O diagrama 3 nos mostra essas novas manifestações, esse espaço ampliado da arquitetura e da imagem arquitetônica, que contém novos modos de representação, novas concepções estéticas, novos processos de criação projetual e novas qualidades experimentais da obra. Cada imagem analisada mostrou a sua verdade, a verdade que eu pude perceber. Algumas com mais transparência, outras com maior opacidade; com algumas me senti mais conectada e consegui ver facilmente, com outras a demora no enxergar me levou onde não esperava chegar. Antes de estudar cada imagem, busquei informações sobre o fotógrafo ou autor, sobre o contexto e circunstâncias em que havia sido produzida. Mas o momento de olhar realmente a imagem era a hora de parar tudo e mergulhar; era como ultrapassar a soleira e entrar pela primeira vez em uma obra arquitetônica ainda desconhecida. Sentir a imagem como se sente a arquitetura. Não que elas sejam a mesma coisa, mas a disposição de estar presente, de certo modo, é comum em ambas. Como afirma Pedro Bandeira, "a experiência da obra é única, mas (...) a arquitetura não se esgota na realidade materializada: ela é imagem na sua origem e no seu fim "83.

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dissolução de fronteiras e expansão dos campos da arquitetura e da fotografia

re fer en te

dissociação de plantas e cortes

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pós verdade

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ficções

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redefinição da noção de realidade

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dissociação do hiper realismo

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hiper realismo

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novos modos de representação

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log

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novas qualidades experienciais da obra

novas concepções estéticas narrativas ficcionais

arquitetura me

aritmética de vivências

desconstrução da imagem

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fotografia como instrumento de criação

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novos processos de criação projetual

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renderização como instrumento de criação

Diagrama 3: ampliação dos campos da arquitetura e da fotografia

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